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O SERTÃO VIROU LAR

A pandemia levou muita gente a experimentar um novo jeito de viver. A ilustradora Bruna Barros foi uma delas: saiu de São Paulo para morar no calor do sertão de Alagoas, na Ilha do Ferro. Enquanto se adapta aos dias quentes e ao relógio que corre devagar, ela divide as alegrias e agruras de quem fez uma mudança radical. Em forma de carta a uma amiga que tomou decisão parecida, mas trocou de país – neste caso Cajón del Maipo, no Chile –, Bruna conta como tem sido a experiência

TEXTO E ILUSTRAÇÕES BRUNA BARROS

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Querida amiga,

Me senti profundamente acompanhada nessa jornada de seguir tendo no sonho a fonte máxima de inspiração para a vida. Fiquei pensando em você e imaginando a sua família vivendo ao pé da Cordilheira dos Andes. A pandemia e todas as crises que ela trouxe nos colocam, sem dúvidas, numa fase dura, mas também nos deixam descobrir que a vida pode ser vivida de outras formas.

Eu e o Allen [seu companheiro que é músico] resolvemos prolongar a nossa estadia na Ilha do Ferro por outros seis meses. A casinha que tínhamos alugado foi vendida e agora arrumamos uma outra, de pau a pique e com vista para o rio São Francisco.

De barro por fora e paredes caiadas por dentro, os cômodos são todos interligados e o ar fresco, quando chega, consegue atravessar todos os ambientes. A casa foi comprada na tentativa de preservar a memória do vilarejo. Como

na Pompeia (o bairro onde eu morava em São Paulo), o espírito da modernização passa como um trator por cima da história, destruindo deliciosas platibandas com a promessa grotesca de um futuro glorioso de cimento, muros e brilho – muito brilho.

Passamos as últimas semanas cuidando da reforma da casa. Várias pessoas estão envolvidas nas adaptações que estamos fazendo. É tudo muito divertido e me sinto o tempo inteiro aprendendo.

Foram dias intensos de entra e sai de gente. Eles dão pitacos, oferecem mudas, revivem memórias. Pessoas passam e nos contam dos antigos moradores, de seus sonhos recorrentes com a casa, dos pés de pinha que havia no quintal e das noites memoráveis de cantoria junto ao artista e músico que viveu e morreu aqui.

Nos mudamos há dois dias.

Escrevo embaixo de uma varandinha com teto de palha e tomo uma garrafa de água atrás da outra. Vejo barcos que chegam e partem. Os urubus sobrevoam as catingueiras. Às vezes, paro para entrar debaixo do chuveirão. O calor ainda é o nosso maior desafio.

Quase não consigo trabalhar, tenho desenhado muito menos e a leitura é um passatempo impossível. De uma às quatro da tarde o tempo não passa. Tudo fica parado e só crianças e desavisados transitam pelas ruas. O meu computador às vezes trava e agora mesmo tive que deixá-lo por alguns minutos dentro da geladeira para poder seguir escrevendo.

Pensando no cenário onde vocês estão na Cordilheira dos Andes, quase morri de inveja. Logo imaginei o friozinho gostoso vindo das pontas nevadas dos picos. Ontem eu ri quando Allen me disse que da próxima vez que sentir frio vai escorrer uma lágrima dos olhos. Agora, pensando nos cumes brancos das suas montanhas, eu também me emocionei. Vivi uma sensação de aconchego, uma lareira, um livro... talvez até uma cobertinha de tricô.

No sertão só encontro aconchego quando mergulho no rio ao meio-dia. A suavidade da água fresca abre meus poros e me sinto como uma cobra com a pele endurecida pela inclemência do sol. Ao meio-dia a água é transparente e posso ver claramente as algas que formam pequenas florestas molhadas. Nelas habitam peixes de todos os tamanhos. No rio as crianças brincam enquanto as mães lavam roupa. Cachorros se esfriam, homens refrescam cavalos e trabalhadores se lavam depois de uma manhã empoeirada.

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