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ENTRE LENÇÓIS

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POR ROBERTA SENDACZ

Amor demais

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FOTO FERNANDO TORRES; ARTE ISABELLE TUCHBAND

A personagem disse que nunca mais transaria com ninguém depois de ter perdido a virgindade. Mais tarde, desenvolveu o pensamento de que o amor não caberia em seus relacionamentos. Depois, somou mais de sete relações sexuais dentro de um vagão de trem. Acabou se tornando ninfomaníaca. Essa é a história de Joe, vivida por Charlotte Gainsbourg em Ninfomaníaca, filme de Lars von Trier, disponível na Netflix. Filha de um médico e botânico inglês, Joe foi ficando cada vez mais viciada no sexo ocasional de emoções duvidosas e cheio de mentiras. “Gozei a primeira vez na vida com você”, disse para um coitado louco por ela, ou, “não quero mais te ver porque não te amo”. Se Charlotte incorpora Joe neste filme, em outros faz papéis mais caretinhas, como uma mulher separada com filhos no recém-lançado The Passangers of the Night, na meio comédia Sonhando Mesmo Acordado. Em mais dois outros pesados de Lars von Trier Anticristo e Melancolia, que abordam a depressão, em sua forma mais dolorosa. Em entrevistas, Charlotte diz que prefere viver de fato as outras, pois assim fica escondida da vida real. Filha de pais nada ortodoxos, Jane Birkin e Serge Gainsbourg, importantes na cena cultural europeia e mundial até hoje, a atriz é casada com o ator e escritor israelense Yvan Attal e tem três filhos. Nada muito maluco até agora comparado à personagem de Ninfomaníaca.

No filme, Joe aprende com o pai as belezas da natureza, a classificação das árvores e a magia das estações, por exemplo, a do inverno, quando surge a “verdadeira alma” da natureza. O pai lembra de Epicuro (imortalizado por Karl Marx e também cultuado por Trier). O pai gosta bastante de Bach e ensina a jovem a virar uma mulher culta. Para Joe, o sexo é elevado à categoria máxima do corpo. O homem vira número: ela perde a conta de com quantos teria ido para a cama (ou banheiro, ou vagão, ou rua). Adora destruir lares em nome do sexo sem cálculo, da loucura e da insaciedade. O amor até aqui foi obrigado a ficar do lado de fora. É uma pessoa sem sentimento? Sim, trata-se da mecanicidade do sexo. A materialidade que esvazia a cabeça em nome do rabo para ser um tanto animal. Charlotte como atriz mostra a si como pessoa um pouco atormentada pelas coisas naturais da vida. E, em francês, essa prática vem à tona por ter tudo a ver (também no cinema francês).

No ano passado, Charlotte lançou um filme com sua mãe, Jane por Charlotte, tido como um presente de filha, com coisas que ela aprendeu muito em sua vida e também nas filmagens. Filosofia pura. Elas trocam figurinhas o tempo todo. Possível rever as pedras da relação entre mãe e filha. Charlotte não quer ser uma pessoa que goza de liberdade plena na vida, isso muito ligado ao poder da maternidade, de ter sua mãe e de ser mãe. Este um papel distinto do de Joe, cujo significado de liberdade está num boquete atrás do outro. Outras Joe, que não são assombradas pela ninfomania, mas cultivam o sexo em série: Solange, de A Dama do Lotação, que para se vingar do marido arranja parceiros em pontos de ônibus. E mais, Séverine, de A Bela da Tarde, que se prostitui em um bordel por puro fetiche.

Dentre outros autores que aparecem em Ninfomaníaca, está Edgar Allan Poe, explicado no filme como um homem que morreu de bebida e gostava de realidade crua. Joe pode ser uma mulher de Poe: de rua, espancada, triste, pesada, sofrida, que, no entanto, guarda um segredo para o fim, antes de virar parede – ela infelizmente ama! Ama muito. n

ROBERTA SENDACZ É FORMADA EM JORNALISMO E FILOSOFIA, ESPECIALIZADA EM FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA E EROTISMO

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