Política da libertação: história mundial e crítica - Volume 1

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POLÍTICA DA LIBERTAÇÃO HISTÓRIA MUNDIAL E CRÍTICA Volume I


Enrique Dussel

POLÍTICA DA LIBERTAÇÃO HISTÓRIA MUNDIAL E CRÍTICA Volume I

Tradução Bertilo Brod Jorge Gimenez Peralta Paulo César Carbonari (Coord.) Roque Zimmermann

Passo Fundo IFIBE 2014


© 2014 Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE) – Tradução Título original: Política de la Liberación. Historia mundial y crítica © 2007, Editorial Trotta, Madrid, España ISBN 978-84-8164-924-6 (edição espanhola) Instituto Superior de Filosofia Berthier – IFIBE Mantido pelo Instituto da Sagrada Família Diretor Geral: José André da Costa Diretor Pedagógico: Paulo César Carbonari Diretor Administrativo: Iltomar Siviero Vice-Diretor Administrativo: Moacir Filipin Vice-Diretor Pedagógico: Valdevir Both O IFIBE agradece à Província Alemã dos Missionários da Sagrada Família pela colaboração que viabilizou a tradução desta obra. Edição: Editora IFIBE Coordenação Editorial: Paulo César Carbonari e José André da Costa Capa e Projeto gráfico: Diego Ecker Diagramação e Normatização: Wanduir R. Sausen Impressão e Acabamento: Gráfica Berthier Rua Senador Pinheiro, 350 – Rodrigues 99070-220 – Passo Fundo – RS Fone: (54) 3045-3277 E-mail: <editora@ifibe.edu.br> Site: <www.ifibe.edu.br> CIP – Catalogação na Publicação

D974p

Dussel, Enrique Política da libertação 1 : história mundial e crítica / Enrique Dussel ; tradução Paulo César Carbonari (coord.) ... [et al.]. – Passo Fundo: IFIBE, 2014. 595 p. ; 17x25 cm. ISBN: 978-85-8259-024-9 1. Filosofia política. 2. Política – História. 3. Sistemas políticos (1492 - ). I. Carbonari, Paulo César (trad.). II. Título. CDU: 94+321

Catalogação: Bibliotecária Daniele Rosa Monteiro - CRB 10/2091

2014 Proibida reprodução total ou parcial nos termos da Lei. Instituto Superior de Filosofia Berthier – IFIBE


APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA

O leitor e a leitora, principalmente o/a estudioso/a de teorias políticas, certamente se surpreenderá com esta obra de Enrique Dussel, pois, além da abrangência, da profundidade e da erudição, sua ousadia crítica e criatividade alcançam níveis raros em nossa época. Após ter participado da tradução de parte desta obra e fazer sua revisão geral, não pude deixar de recordar o que reiteradas vezes ouvi da boca de meus professores na década de sessenta do século passado quando, falando sobre a abrangência da obra de Santo Tomás de Aquino, diziam que ele abrangera toda a ciência produzida até então e se pronunciara sobre a totalidade dela. Diziam que esperavam para o nosso tempo alguém que fosse capaz de fazer o mesmo para termos uma visão sobre a totalidade do mundo e da produção da arte e do engenho humano. É claro, tamanha abrangência e profundidade resulta, hoje, totalmente impensável e impossível, visto que as ciências particulares atingiram tal amplitude e nível de profundidade e especificação que impossibilitam a quem quer que seja tal empreendimento. Entretanto, ao abordar o campo da filosofia política, Enrique Dussel consegue fazer algo notável para os tempos atuais, inscrevendo-se entre os autores mais profícuos, profundos e perspicazes de que se tem notícia. O que mais chama atenção em sua obra é sua coragem de se contrapor a inúmeros autores considerados clássicos, mas pouco criticados, mostrando suas incongruências, seus limites e suas fragilidades. Não bastasse tudo isso, o que surpreende é o alcance de sua abordagem, a par da análise acurada dos mais diversos autores através do percurso histórico de cada um. Diferentemente do que quase sempre encontramos nos autores que nos são oferecidos, para os quais toda a ciência e toda a história, toda a filosofia e quase todas as artes começam com os gregos e romanos, restringindo-se à produção do


Ocidente Europeu, Dussel ousa lançar-se nos primórdios dos tempos e em regiões e teorias quase nunca trazidos ao debate, encontrando na China, na Índia e em outros povos milenares doutrinas e teorias que não apenas comprovam a atual compreensão de que a história não começou com os gregos e de que a filosofia, a organização social, a economia, as artes e tantas outras ciências mais repousam em berços bem mais remotos do que supúnhamos. E isto o faz mergulhando em autores e teorias cuja existência, até o presente, era conhecida apenas por poucos especialistas. É claro, por outro lado, reconhece a contribuição de um Sólon, de um Platão, de um Aristóteles e de tantos outros da antiga Grécia, tanto quanto a engenhosidade dos romanos e de outros povos, jamais desdenhando a contribuição do Ocidente para as conquistas da atualidade, não lhes dando, porém, a preeminência, supremacia e o caráter absoluto como normalmente foi feito. Para os que sempre sentiram a ausência da contribuição mais ampla das culturas do Extremo Oriente, dos antigos persas e árabes, da rica cultura muçulmana desde suas origens, esta obra trará verdadeiras novidades, colocando-os em contato direto com autores e teorias desconhecidos quase por completo. Outro aspecto de não pequena monta é a coragem de contrariar teses que julgávamos perfeitamente assentadas e definitivas, principalmente ante dois aspectos que me parecem muito relevantes, a saber, a dos primórdios da Modernidade e a da voz que é dada às camadas sempre excluídas de qualquer acesso aos bens da humanidade e, além disso, sempre silenciadas e oprimidas pelos bem nascidos e opressores de todos os tempos. Deveras, sempre nos foi ensinado que o que chamamos de Modernidade havia nascido com Descartes e se consolidado com o Iluminismo, nos séculos XVI e XVII, que se estende pelos séculos XVIII e XIX, alcançando até mesmo os dias atuais. Dussel mostra que é ainda no século XV e na então central Espanha que se inicia a Modernidade, pagando tributo à conquista da América por espanhóis e portugueses e à tardia Escolástica, então vigente nestes países. No que se refere a dar voz aos até então sem voz, assim como a seus defensores, chama a atenção a valorização que dá aos seus mitos, crenças e símbolos – nisto seguindo a uns poucos autores presentes em cada época –, encontrando aí uma centralidade e a gênese de suas filosofias, valorizando o que sempre fora descartado como digno de constar em nossos estudos acadêmicos. O leitor ainda se surpreenderá com a criatividade e a ousadia do autor em suas críticas e posições pessoais e o incentivo a esta mesma criatividade e ousadia, instigando o leitor e a leitora a já não ser mais mero repetidor ou comentarista de verdades sempre afirmadas por outros/as autores/as e pensadores/as, mas a dizer a sua própria palavra e a buscar a própria interpretação da realidade presente, oferecendo outrossim proposições de alicerces mais condizentes à construção do necessário futuro novo. Muitos outros aspectos mereceriam ainda ser abordados nesta apresentação, que preferimos, porém, deixar à satisfação do/a estudioso/a e do/a leitor/a. Algo, apesar disso, parece-me ainda importante que seja dito. Estamos diante de uma


obra extensa, volumosa, erudita e muito bem fundamentada. Mas, apesar de tudo isso, é de leitura agradável, pois tudo é dito em linguagem direta e acessível a todos/as. Ao lê-la de ponta à ponta, tem-se a nítida impressão de que está dando um surpreendente passeio pela amplitude do universo e de sua história, rememorando o que de mais significativo nela se produziu no campo filosófico e principalmente no político, sempre ante os desafios de novas e fecundas propostas de construção do novo que livrará a humanidade de tanta opressão, sangue e morte, onde a vítima quase sempre é o pobre, o negro, o índio, o jovem, a criança e a mulher, entre tantos/as. Não poderia também deixar de cumprimentar aos colegas do Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE), uma instituição que há mais de 30 anos se dedica ao ensino da filosofia e também ao estudo e à pesquisa da filosofia da libertação, por assumirem o compromisso de fazer a tradução desta obra. Quero também agradecer à Província Alemã dos Missionários da Sagrada Família pela colaboração fraterna que viabilizou a publicação. Esta tradução reafirma o compromisso com a construção de uma filosofia libertadora entre nós. Com sua longa e vasta produção teórica, e especialmente com esta obra, Enrique Dussel seguramente se inscreve no rol dos mais profundos e produtivos e pensadores de nosso tempo e toda a humanidade. Boa e proveitosa leitura.

Passo Fundo, setembro de 2014. Roque Zimmermann Equipe de Tradução


SUMÁRIO

Prólogo ................................................................................................................... Capítulo 1 - Localização do lugar crítico-político nos sistemas regionais anteriores a 1492 ...................................................... § 1. No início, era a “vontade de viver”: o arqueossistema ...................... § 2. A revolução urbana e os primeiros sistemas políticos. O estágio I dos sistemas regionais ........................................................ 1. Os sistemas legais na Mesopotâmia ............................................................ 2. Egito e outras civilizações para o Leste ....................................................... 3. Mesoamérica e o Império Inca ................................................................... § 3. Os grandes impérios do cavalo e do ferro. A primeira unificação racionalizada do político no estágio II do sistema interregional ... 1. A filosofia política clássica chinesa............................................................... 2. O pensamento político do continente indiano ............................................. 3. A política nos Impérios do Irã..................................................................... 4. A política no mundo mediterrâneo. A “conexão fenícia”: o sistema político de Bíblos, Tiro e Cartago ................................................................ 5. Da pólis grega ao Império Helenístico ........................................................ 6. Da res publica romana ao imperium ......................................................... § 4. A rebelião das vítimas e a lenta invenção do estado secular .......... 1. Descobrimento da intersubjetividade crítica desde a alteridade. A diáspora judaica e a seita cristã entre as vítimas do Império Romano ...... 2. A “conexão bizantina”: a recaída na sacralização contraditória das cristandades orientais .....................................................

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3. O mundo latino-cristão do Império Romano Ocidental ............................ 99 4. A política no sistema mercantil clássico islâmico ........................................ 103 5. A política na Europa germânica isolada e periférica .................................. 114 Capítulo 2 - Localização do lugar crítico-político na “Modernidade nascente” (desde 1492) .............................................................. § 5. Contexto da política moderna ................................................................ 1. A questão da importância da China (1400-1800) ..................................... 2. Um mundo ainda antigo: o Império Otomano .......................................... 3. Veneza: um sistema político “oriental” na Europa periférica ..................... 4. O Renascimento italiano: Maquiavel ......................................................... § 6. A primeira “Modernidade nascente”: a cristandade hispano-americana (1492-1630) ............................................................ 1. O “projeto espanhol”. A origem atlântica da Modernidade ....................... 2. A epifania do “novo” Outro ........................................................................ 3. O “pai” da filosofia política moderna: Ginès de Sepúlveda ........................ 4. O primeiro antidiscurso filosófico da Modernidade: a crítica da expansão colonial europeia por Bartolomé de Las Casas ...................... 5. A filosofia universitária “moderna” justifica a ordem colonial: Francisco de Vitoria .................................................................................... 6. A institucionalização da alienação do Outro. O testemunho de Felipe Guamán Poma de Ayala .................................................................. 7. O deslocamento da alteridade: do indígena ao crioulo americano. O humanismo político de Francisco Suárez................................................. § 7. Outra primeira “Modernidade nascente”. A cristandade lusitana diante da alteridade do escravo africano ............................. 1. A África ocidental e o “projeto afro-atlântico português” ........................... 2. Primeira crítica filosófica contra a legitimidade da escravidão moderna: Bartolomé de Las Casas ............................................................................. 3. A escravidão na interpretação burguesa liberal: John Locke ...................... § 8. A segunda “Modernidade nascente”: as cristandades do Norte da europa (1630-1789) ........................................................... 1. A monarquia absoluta: Jean Bodin ............................................................. 2. O novo paradigma do discurso de fundamentação da política: Thomas Hobbes........................................................................................... 3. As Províncias Unidas em torno de Amsterdam: Baruch Spinoza ............. 4. Justificação filosófica da primeira revolução burguesa: John Locke.............

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Capítulo 3 - O discurso político na “Modernidade madura” ................ § 9. A “Modernidade madura” no Reino Unido e na França ................. 1. A nova estrutura geopolítica mundial ......................................................... 2. A Filosofia política anglo-saxã. O método da “derivação” por impossibilidade: David Hume ............................................................. 3. Da ética à economia política: Adam Smith ................................................ 4. A revolução burguesa continental na França. Uma desconstrução moderna da Modernidade: Jean-Jacques Rousseau ................................... § 10. A “Modernidade madura” na ilustração alemã. Filosofia política e Estado...................................................................... 1. A política como garantia da moral: Immanuel Kant ................................ 2. O Estado, um momento “transitório” na história: J. G. Fichte e F. G. Schelling........................................................................ 3. O Estado racional, colonial e metropolitano: G.W.F. Hegel ....................... 4. Crítica política ao Estado a partir das condições materiais: Karl Marx ...... § 11. Na dependência da “Modernidade madura”. Alguns temas para uma história da política na América Latina............................ 1. Cinco períodos da política latino-americana ............................................... 2. A impossível soberania colonial: o populismo latino-americano (1910-1959) (análises do discurso político) ....................................................................... 3. Uma década política argentina (1966-1976) e a origem da filosofia da liberação ............................................................................... 4. O “giro descolonizador” a partir do povo em direção da “segunda emancipação” (1959-) .............................................................

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Conclusão - Sentido da reconstrução histórica ......................................... 555 § 12. Do necessário giro descolonizador da filosofia política ................ 555 Índice alfabético de alguns temas e autores ............................................... 561 Bibliografia citada ............................................................................................... 565


PRÓLOGO

Nos propomos a de-struir – no sentido próximo ao heideggeriano1 – e a expor uma possível história da política, a história dos povos, que são os atores políticos, e o pensamento (em sentido lato) ou a filosofia política (em sentido estrito) que os inspirou, mesmo que ainda de maneira parcial (porque não se pretende fazer uma descrição completa, hoje ainda impossível), inicial (porque são somente hipóteses de trabalho) e indicativa (que deve seguir sendo desenvolvida ainda por muito tempo), como a propedêutica de um projeto para várias gerações vindouras. Em geral, estas histórias, mesmo as mais célebres e recentes, seguem certos marcos que as limitam. Romper com estes marcos, mesmo que propedeuticamente, é o propósito primeiro, frontal, desta história. Os limites que desejamos romper, de-struir, des-construir, para formular um relato sobre novas bases (não simplesmente re-construir), isto é, des-estruturar, para compor o relato a partir de um outro paradigma histórico, são os seguintes. O primeiro limite a superar é o helenocentrismo das filosofias políticas em voga. Todas começam sempre na Grécia. Quando se fala de demo-cracia, se esquece que demos, em egípcio, significa “aldeia”. Não é uma palavra grega, nem indo-europeia – se é que esta língua existiu, já que hoje isto é colocado em dúvida, como veremos. Quando se fala de díke, a justiça, se esquece que sua etimologia é caldaica e procede do acádico duku, portanto, semita. E assim poderíamos de-struir, des-construir uma por uma as palavras mais técnicas, mais fundamentais da política grega, que tem sua origem no mundo egípcio e mesopotâmico, fenício, semita, da Idade do Bronze, do III e do II milênio a.C., no território que os gregos posteriormente ocuparão como invasores bárbaros. 1

Veja-se minha obra Para una de-strucción de la historia de la ética (Dussel, 1973b). Seria uma desconstrução antiderridiana.

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O segundo limite a ser superado é o ocidentalismo das filosofias políticas, que não se dão conta da importância do Império Romano Oriental, de Bizâncio ou Constantinopla. Esquece-se que o Renascimento Italiano foi fruto do exílio dos gregos que abandonaram sua cidade capital, tomada em 1453 pelos turcos. Em 1456 começam as traduções de Ficino, em Florença. Que casualidade! Da mesma maneira, a glória de Florença e de Maquiavel deve ser colocada em seu lugar no que diz respeito ao modelo do Estado moderno que se pressagia no mundo bizantino, em Veneza ou Gênova, ambas cidades comercial, cultural e politicamente “orientais” do Mediterrâneo (vale dizer, parte do mundo bizantino). O terceiro limite é o eurocentrismo das filosofias políticas, que esquecem, por desprezo e ignorância, tudo o que foi alcançado, prática ou politicamente, por outras culturas, também na teoria. Na política não se estudam as altas culturas egípcias, mesopotâmicas, especialmente a tão política e estratégica cultura do Império Chinês, do Hindustão e do Islã e, igualmente, como latino-americanos, a política dos reinos astecas, maias e incas, por exemplo. O orientalismo depreciativo ainda campeia! Um quarto limite que se pretende superar nesta história é a periodização organizada segundo os critérios europeus da filosofia política (aquela maneira ideológica e eurocêntrica de organizar no tempo a história humana em Idade Antiga, Medieval e Moderna, por exemplo). Tudo isto pode, por ora, ser superado em parte. Contudo, ainda nos faltam estudos monográficos suficientes. De qualquer modo, pretenderemos propor uma nova visão da história, somente da história da política e da filosofia política que, em sua própria periodização e conteúdos, vá contra a visão dominante plasmada claramente pelos românticos alemães em fins do século XVIII e, especialmente, por Hegel. O quinto limite é um certo secularismo tradicional das filosofias políticas. Delineia-se, de maneira inadequada, e sem sentido histórico, o nascimento e o desenvolvimento da secularização da política. Esquece-se, por exemplo, que Thomas Hobbes é um teólogo da política que, em sua obra principal, Leviatã, dedica a metade do texto (a terceira e a quarta partes) a fundamentar a autoridade do rei no próprio Deus, acima da autoridade dos bispos anglicanos, desenvolvendo uma hermenêutica bíblica explicitamente teológica (como o anota, em parte, Carl Schmitt). É uma teologia política da cristandade própria da Modernidade e criticada, entre outros, por K. Marx. Um sexto limite é constituído pelo colonialismo teórico e mental das filosofias políticas dos países periféricos (o outro rosto do eurocentrismo dos países geopoliticamente centrais), que leem e interpretam, geralmente, mas com exceções, as obras da Modernidade política europeia desde a territorialidade pós-colonial, dentro da problemática dos filósofos do centro (H. Arendt, J. Rawls, J. Habermas, etc.), sem dar atenção para a visão metropolitana desta hermenêutica e sem desenvolver, como filósofos “localizados” no mundo pós-colonial, uma leitura crítica da metrópole colonial. Não chegaram ao “giro descolonizador”. É frequentemente uma filosofia política colonizada, como diriam F. Fanon ou A. Memmi. Um sétimo limite, e não o menor, que buscaremos superar como latino-americanos é o de não incluir a América Latina na Modernidade desde suas origens, já que foi (para o bem ou para o mal) participante principal da história mundial

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(ocasionando, por exemplo, com sua prata, o primeiro dinheiro mundial, e, com sua crítica à conquista, a primeira filosofia moderna propriamente dita). Para isso, seria preciso redefinir o início da Modernidade. Necessário se faria introduzir Espanha e Portugal (o “Sul da Europa”, para Hegel, que não é para ele, nem para os ilustrados do “Norte da Europa”, propriamente Europa, nem moderna), desde a invasão da América, em 1492, na Modernidade. Deste modo, a Espanha seria redefinida como o primeiro Estado “moderno” e a América Latina, desde a conquista, seria o primeiro território colonial da indicada Modernidade. Portanto, moderna, na medida em que é o “outro rosto” bárbaro que a Modernidade necessita para sua definição. Se isto fosse assim, então os filósofos espanhóis e portugueses (mesmo praticando uma fi losofia de cunho escolástico, mas, por seu conteúdo, moderna) e os primeiros grandes pensadores latino-americanos do século XVI deveriam ser considerados como o início da filosofia da Modernidade. Antes de Descartes2 ou Espinoza (ambos escrevem em Amsterdam, província espanhola até 1610, e estudam com mestres espanhóis), deve-se considerar na história da filosofia política moderna um Bartolomé de Las Casas, Ginès de Sepúlveda, Francisco de Vitoria ou um Francisco Suárez. Estes seriam os primeiros filósofos políticos modernos, antes de Bodin, Hobbes ou Locke. Necessário se faz aprender a descobrir novas perguntas para encontrar novas respostas. Será a árdua tarefa das próximas gerações latino-americanas que cultivarem a filosofia política. Tudo isso adquire especial relevância pela importância que os grupos latinos ou hispanos (comunidades de origem latino-americana) adquirem hoje na política interna do império norte-americano. A aliança teórico-estratégica entre os filósofos latino-americanos e os latinos nos Estados Unidos tem na atualidade uma significação política prática convergente. O “giro descolonizador” é uma novidade histórico-filosófica mundial. Desejaríamos que não se lesse esta história simplesmente como mais um relato, informativo de muitas posições teóricas inovadoramente interpretadas. Seria necessário, ao contrário, lê-la como um contrarrelato, como um relato de uma tradição antitradicional. Como um buscar o não-dito, já que “o dito, dito está” e não é saudável repeti-lo. “O dizer” – com E. Levinas – da corporeidade sofredora dos nossos povos é o ponto de partida. Espero que este longo caminho, que nos custou anos para expressar e uma vida inteira para começar a descobrir estas hipóteses contrafáticas,3 seja empreendido criticamente pelas novas e pelas futuras gerações latino-americanas de intelectuais e políticos cuja paixão consiste em estudar o não-investigado, descobrir o oculto..., desde a dor das oprimidas e dos oprimidos, das excluídas e dos excluídos, das condenadas e dos “condenados da Terra” e da história. 2

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No colégio jesuíta de La Fleche, Descartes estudou primeiro a Francisco Suárez e se formou em lógica com a Lógica mexicana de Antonio Rubio (segundo consta explicitamente em suas obras). A começar pela minha viagem à Europa, em 1957, onde permaneci dez anos estudando, em especial os dois anos em Israel entre palestinos, e mesmo antes, desde 1952, em minhas experiências políticas de líder estudantil universitário e membro da juventude de partidos políticos democráticos e antifascista da minha época.

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CAPÍTULO 1 LOCALIZAÇÃO DO LUGAR CRÍTICO-POLÍTICO NOS SISTEMAS REGIONAIS ANTERIORES A 1492

[1] “Localização” indica a ação hermenêutica pela qual o observador se “situa” (comprometidamente) em algum “lugar” sócio-histórico como sujeito de enunciação de um discurso e, por isso, é o lugar “de onde” se fazem as perguntas problemáticas (das quais se tem autoconsciência crítica ou não) que constituem os supostos de uma epistème epocal, como a que desenvolveremos nesta filosofia política crítica. Enunciamos inevitavelmente o discurso “desde algum lugar”. Desejamos elaborar uma descrição que, no maior grau possível, tenha autoconsciência de sua “situação” espacial, histórica, social, de gênero, étnico-racial, etc. Tentaremos superar certos “lugares” triviais, óbvios, ingênuos (que, não obstante, têm pretensão de cientificidade e objetividade perfeita), mas sumamente deformantes dos discursos. Por isso, negativamente, buscaremos fazer com que nosso discurso não seja “helenocêntrico”, nem tampouco “eurocêntrico”, “ocidentalista”, “colonialista”, meramente “moderno” (mas também não queremos que simplesmente seja “pós-moderno”), “racista”, “machista”, etc. É uma “pretensão” (claim, Anspruch) que, antecipadamente, já se sabe que não é possível de maneira perfeita e, por isso, avança-se sabendo ser falível, corrigível, mesmo que com sincera pretensão de verdade (e de verdade com pretensão de universalidade, enquanto não se demonstrar honestamente o contrário). Esta atitude crítica de querer ter o maior grau possível de reflexividade sobre o “lugar” desde onde se enuncia o discurso (o locus enuntiationis) deverá ser mantida como posição permanente. Para tanto, dedicaremos a este tema as primeiras teses provisórias de reconstrução histórico-mundial, como trilha crítica fundamental. A reconstrução histórica é parte da estratégia argumentativa. Alguns pós-modernos

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acostumados a desconstruir “grandes relatos” opinam que a “de-struição” que faço do macrorrelato hegeliano se parece com o mesmo tipo de macrodiscurso, mesmo que invertido. Mas, não é assim. Trata-se da destruição ontológica (Heidegger), da desconstrução discursiva (Derrida), da reconstrução epistemológica (Habermas) desde os vencidos, desde as vítimas da Modernidade (e, também, vítimas da destruição heideggeriana, despercebidas na desconstrução derridiana ou ausentes na reconstrução habermasiana). O partir de tais vítimas excluídas do processo da globalização exige que nosso discurso deixe de ser meramente negativo ou des-construtivo do macrorrelato moderno e fragmentário, que permanece no ceticismo da conversação rortyana para impedir à Modernidade reconstruir seu discurso. Todavia, todas estas tentativas semicríticas (destrutivas, desconstrutivas, reconstrutivas) não percebem o poder dominador e a pretensão de verdade sagrada do “fundamentalismo de mercado” (como o denomina G. Soros, 2000) que é, hoje, a ideologia dominante. O discurso crítico de libertação deve, portanto, abandonar a fragmentariedade do seu relato e começar a produzir um macrorrelato crítico (com pretensão de verdade, isto é, consciente de que é inevitavelmente falível, mas que não se pretende falível e, sim, com pretensão de verdade),4 para que o imaginário das vítimas, dos dominados, tenha a capacidade de projetar-se num lugar histórico com sentido, com sentido global (que deverá ser corrigido: por isso, tal macrorrelato é inevitavelmente falível). Através de múltiplas experiências pessoais em grupos de base, populares, feministas, ecologistas, lutadores contra o racismo branco, na América Latina, na África, na Ásia, na Europa, nos países do Leste europeu, nos Estados Unidos, posso afirmar que estas vítimas pedem um macrorrelato positivo para ter, ao menos, uma referência que possa evitar que aceitem, sem outra alternativa, o relato fundamentalista de mercado, helenocêntrico, eurocêntrico e, hoje, americanocêntrico.5 4

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Não tem o mesmo sentido enunciar algo como falseável (que não é o mesmo que falibilidade), o que inclui uma atitude negativa de não aderir à verdade daquilo que se enuncia (seria o não-compromisso do cético diante de todo enunciado), da honesta pretensão de verdade que sabe que seu enunciado pode ser refutado por um argumento melhor do que aquele que tem a pretensão de verdade aceita como própria. Vale dizer, no conceito de pretensão de verdade se inclui a possível falseabilidade (e sua inevitável falibilidade) do enunciado que, porém, não é aceito como falso e sim como verdadeiro. A “falseabilidade” popperiana contém uma atitude cética: a pretensão de verdade aceita a sempre possível falseabilidade (e a inevitável falibilidade de todo enunciado, porém, afirma que o enunciado é aceito enquanto verdadeiro (por ser o resultado do melhor argumento que explica a realidade tal como se nos apresenta em sua perspectiva e em seu mundo histórico, em seu desenvolvimento presente) e não enquanto falseável (e, por isso, falível). A falibilidade, por sua vez, tem a ver com a pretensão de validade. De maneira consciente, enunciaremos o “americanocentrismo”, já que, embora nem sempre, denominaremos os estado-unidenses de “norte-americanos” (contra a pretensão abusiva que reduz o continente americano somente aos anglo-saxões do Norte, excluindo a América Latina e o Caribe afro-americano). Neste caso, lhe daremos o sentido restritivo que “eles” lhe atribuem, sabendo que a América é muito mais do que os Estados Unidos anglo-saxão.

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§ 1. NO INÍCIO, ERA A “VONTADE DE VIVER”: O ARQUEOSSISTEMA [2] A espécie homo, como a do homo habilis, surge há quase quatro milhões de anos, de hominídeos superiores que precisaram abandonar a vida arbórea quando se dessecaram as selvas tropicais equatoriais do Leste da África. Ao descerem ao solo, aqueles indefesos hominídeos precisaram se colocar de pé, modificar sua coluna vertebral, diminuir, por sua posição ereta, suas mandíbulas (que, por serem onívoros, puderam mastigar por menos tempo seus alimentos), o que permitiu o crescimento do seu crânio e, com ele, do cérebro. Seu pescoço se modificou e, com isso, se desenvolveu um aparato fônico. O crescimento do neocórtex cerebral que, pela própria prática comunicativa foi desenvolvendo sua capacidade linguística, deu a esse homo uma capacidade expressiva maior do que a das outras espécies. Quiçá, em função da caça de animais, necessária para sua dieta onívora, precisou agrupar-se em grande número. A aliança entre famílias era exigida pela necessidade da produção e desenvolvimento da vida. Talvez, o primeiro que puderam intercambiar entre famílias para criar um clã de recolhedores, pescadores ou caçadores, foram os jovens membros da própria família (Cf. Morin, 1996). Quiçá, para que fosse possível o intercâmbio, foi preciso que nascesse a primeira instituição social presente em todas as culturas paleolíticas do Planeta: o tabu do incesto, ainda que já houvesse a proibição do assassinato dentro do clã e o canibalismo. Estas restrições tinham toda a estrutura das futuras “instituições políticas”: necessidade de disciplinar o instinto (Trieb, em Alemão, a pulsão freudiana), postergar o desejo (sexual do acesso ao filho ou à filha, que posteriormente será, na agricultura, a proibição de comer a semente para ser plantada ou o animal reprodutor do rebanho), admitir certo sofrimento6 para postergar dores maiores7 e a própria morte;8 6

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A “dor” de ter que obter solitariamente o objeto da caça ou de coletar raízes, menor do que caçar em grupo ou trabalhar a terra agrícola, o que inclui muitas “dores” do corpo, sofrimento das mãos, dor de levantar-se cedo, de dormir tarde, de enfrentar o frio na preparação dos campos, do corte da madeira dos bosques, etc. Por exemplo, a fome. O coletor, pescador ou caçador sofre mais do que o agricultor ou pastor para obter muito menos alimentos. A agricultura e o pastoreio exigem, então, certa “disciplina”, mas que é livre de “sofrimento”. Quer dizer: a “disciplina” não tem como antecedente a “liberdade” prístina da não-disciplina (como pretendem certos anarquistas extremos ou foucaultianos, mas não o próprio Foucault) e sim o maior sofrimento de outra “disciplina”, menos eficiente. A disciplina institucional (quando a instituição se encontra em seu momento criador ou “clássico”, não em sua decadência ineficaz e, portanto, “repressiva”, sem utilidade alguma para a maioria) é poupada de sofrimento, embora inclua sempre e inevitavelmente algum grau de sofrimento. Ver a Tese 17 da minha Ética da Libertação (Dussel, 1998), Apêndice I [404], p. 625-630. NT: Tradução no Brasil publicada pela Editora Vozes (2000). Alimentar-se e defender-se em comunidade permite que a produção e reprodução da vida humana sejam mais adequadas: posterga-se a morte ou se aumenta a média de sobrevivência, de longevidade, de expectativa de vida.

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obrigação de cumprir com a regra consensual (os pais não se achegam sexualmente aos fi lhos, reservados sagradamente para outras famílias do clã); imposição de castigos no caso de não cumprimento das regras; celebração de ritos de reparação como possibilidade de serem novamente integrados no consenso comunitário; exigência de respeito pelos anciãos que são a autoridade e os juízes, etc. O transformar a mera natureza instintiva, inóspita, em amável “casa” (oikos: ecologia) cultural do ser humano, por meio do trabalho, permitiu criar uma “ordem”. A ordem sociocultural havia nascido. Igualmente, havia nascido um sistema de funções, onde cada sujeito humano começava a cumprir funções, papéis, como um ator que segue um livreto já conhecido. Os sistemas sociais práticos de reprodução da vida exigiam, outrossim, consensualidade – acordo comunitário aceito mutuamente, como indicamos, à guisa de exemplo, pelo tabu do incesto, entre outras obrigações –, que a linguagem condiciona e permite. Esta ordem necessária e sagrada, e consagrada nas representações desenhadas e pintadas nas covas paleolíticas, nos mostra, igualmente, como no caso dos primeiros ritos mortuários (Morin, 1996), que são cerimônias de enterro, onde o cadáver é objeto de culto que o re-harmoniza com o cosmo, onde a ordem civilizatória do trabalho precisa esconder a violência da morte em suas instituições9 para pacificá-la numa vida comunitária ao menos internamente coesa. Trata-se de uma macro-organização prática, de crescente complexidade, da família, do clã, da aliança entre clãs, até o surgimento de tribos e etnias mais numerosas, que se movimentam por territórios amplos e que vão emigrando lentamente por todo o Planeta até ocupá-lo inteiramente. Há cerca de cinquenta mil anos, caminhando sobre o gelo, intrépidos povos migratórios do Extremo Oriente da Ásia cruzaram o Estreito de Behring e se internaram, de Norte a Sul, no continente americano. [3] Nestes quase quatro milhões de anos desde o Paleolítico, a espécie homo produziu os maiores descobrimentos que permitirão posteriormente desenvolver o que denominamos “o político”. Desenvolveu as línguas humanas, estruturas infinitamente complexas de memorização e expressão de sentido que permitirão a existência, a longo prazo, dos sistemas de legitimação comunitária (a validade intersubjetiva é sempre possível graças à existência de uma comunidade de comunicação, isto é, linguística); inventou a narrativa mítica como método para memorizar os argumentos explicativos de todos os momentos da vida humana; e descobriu o fogo, o maior de todos os instrumentos,10 há apenas uns seiscentos mil anos. 9 10

Qualquer morte, na origem sempre prematura, deve ter sido objeto de algum ato violento, caótico, anticivilizatório: o ataque de algum animal, de outro ser humano, de enfermidades mágicas e desconhecidas, de acidentes telúricos, etc. A cocção da comida diminuiu o tempo da digestão, protegeu a caverna dos animais perigosos durante a noite. Graças a estes descobrimentos, aumentou o tempo de vigília (não necessita dormir tanto para digerir o alimento e pode dormir mais profundamente). Ao longo de milênios, esquentará o lar, afugentará insetos e animais, endurecerá a madeira de suas armas, queimará os bosques, para preparar o terreno para a agricultura, derreterá os metais, iluminará seus passos durante a noite, efetuará sinais com comunidades distantes, queimará a terra endurecida na olaria e, posteriormente, na fabricação de ladrilhos, etc.

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Finalmente, no Paleolítico nasceu a lógica, que será desenvolvida no Neolítico, a idade das cidades e, por conseguinte, a idade do nascimento do “campo político”, estrita e explicitamente. A vontade de viver (Wille zum Leben), dirá Schopenhauer, está na base de todo querer, de toda motivação, de todo movimento. Todo campo político é o desenvolvimento último desta primitiva vontade de viver do ser humano, no amplo e obscuro, mas apaixonante, misterioso e inovador Paleolítico. A humanidade demonstrou que poderia perdurar, que podia existir como ser vivo, racional e pulsivo; a conatio esse conservandi (pulsão de conservar o ser) permitiu transitar a primeira história, o tempo originário da política, do começo do desdobramento das estruturas do protopoder, dos princípios implícitos fundamentais, das instituições originárias, do horizonte dentro do qual os nômades disputavam o “controle sobre um território”, sobre o qual se vagueava livremente e onde se conseguia reproduzir a vida pela colheita, pesca e caça. Contudo, o espaço foi se tornando reduzido, os clãs encontravam outros clãs que disputavam o mesmo território; os frutos ou as raízes alimentícias se tornavam escassas; os animais de caça se distanciavam; havia fome, instabilidade, luta entre etnias... Não era o “estado da natureza” de Hobbes (porque não havia nem indivíduos solitários, nem extrema liberdade; havia comunidades com mínima espontaneidade na urgente “necessidade” de reproduzir a vida imediata, a cada dia). A comunidade paleolítica do “arqueossistema” havia chegado ao seu fim. Era necessário um salto qualitativo na reprodução da vida, na organização da consensualidade e na regulação da luta hegemônica entre os clãs. Era o fim do Paleolítico e, certamente, não era o fim de um paraíso de liberdade utópica, e sim, ao invés, o fim de uma idade primitiva, violenta, dura, sofrida, que o ser humano tenta superar: o instinto declinante havia sido abrandado pelas “instituições” sociais nascentes. O instinto havia deixado definitivamente seu lugar aos princípios sociais implícitos e aos sistemas funcionais como espaços de crescente liberdade e superação da qualidade de vida. Avizinhava-se uma revolução prática e tecnológica. Era o tempo da origem do “campo político” propriamente dito, de uma ação que deixará lugar, para além da caça e da luta, às instituições fundamentais e onde se faz presente o exercício implícito dos princípios sociopolíticos, o consenso legítimo, a negociação dentro de tipo de convivialidade que garantiria, a longo prazo, graças a uma maior complexidade sistêmica intersubjetiva, uma melhor capacidade produtiva e estabilidade reprodutiva.

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§ 2. A REVOLUÇÃO URBANA E OS PRIMEIROS SISTEMAS POLÍTICOS. O ESTÁGIO I DOS SISTEMAS REGIONAIS [4] O processo de globalização que vivemos hoje, no início do terceiro milênio, talvez seja o término da revolução neolítica, por nós apontada como a idade na qual terminou a ocupação territorial nômade através da “dispersão” dos clãs de coletores e caçadores em todo o Planeta. Começou assim um processo de “contração” da humanidade, como o sugere Teilhard de Chardin. Desde a) o nascimento das primeiras cidades (onde vivia uma parte imensamente pequena da humanidade), até b) o começo deste século XXI (onde a maioria da humanidade vive em cidades),11 transcorreu todo o Neolítico (em sentido lato), que acaba de terminar. De certo modo, com a globalização da civilização urbana planetária entramos numa terceira idade: a “supercontração” em profundidade e dentro de um ilimitado espaço virtual da existência intersubjetiva do homo urbanus que tem capacidade como nunca na história da humanidade para uma comunicação fraterna e até solidária, ou para um patológico isolamento autista e exterminador. Mas, voltemos ao começo. Se, linguisticamente, “político” vem de pólis, em grego, e cidade de “civitas”, em latim, assim também conceitualmente o político propriamente dito será para mim um campo prático que toma em conta a “cidade”. Com efeito, há cerca de doze mil anos,12 em algumas regiões da terra termina o nomadismo paleolítico, o dos coletores, pescadores e caçadores ou o dos plantadores aldeões migrantes (como os tupi-guaranis da América do Sul, buscadores míticos incansáveis da “terra sem mal” em meio à selva tropical), para começar uma vida sedentária, em certos territórios fixos, dentro de determinadas fronteiras, conquistadas e protegidas. Uma “territorialização” apta para executar as técnicas disciplinares da revolução agrícola (que substitui a colheita de alimentos, cada vez mais escassos pelo aumento da população) nas regiões com sedimentos dos rios ou das grandes lagunas e do pastoreio (que substitui a caça) junto às pastagens abundantes para o gado. A vida sedentária permite organizar a complexa estrutura de regras que definem as variadas redes das relações de poder entre os habitantes das cidades: os protocidadãos ou simplesmente os membros das primitivas comunidades urbanas. Ali nasceu a política, o político, o campo político, as ações heroicas dos protagonistas originários, próprias do governo da cidade, intimamente ligadas à guerra e ao comércio. Ali se originaram as instituições legitimadas na sacralidade (como bem opinou Durkheim) e o exercício dos princípios implícitos (narrados sob a forma dos mitos) que lentamente vão se diferenciando. Isto porque, para a caça, 11

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A espécie homo se tornou uma espécie urbana, “um vivente que habita a cidade”, não, porém, no sentido restritivo e helenocêntrico de Aristóteles, que opinava que só eram “humanos” os “viventes que moravam nas pólis helênicas e, por isso, não eram “humanos” nem os asiáticos do Leste, nem os bárbaros europeus a Norte e a Oeste da Grécia. No Sul da Turquia e no Norte da Síria, no Médio Oriente, foram descobertas algumas aldeias, constituindo um conjunto urbano formado há uns dez mil anos a.C.

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foram necessários instrumentos que perfurassem as grossas e resistentes peles dos animais a fim de matá-los (isto é, imobilizá-los) para alimentar-se (vale dizer, reproduzir a vida humana). Os afiados instrumentos dos caçadores se levantaram contra outros seres humanos dos clãs ou etnias vizinhas. O caçador deu origem ao guerreiro. Quando surge a organização urbana, o guerreiro nômade, que defendia o clã peregrino, transforma-se naquele que conquista novos territórios para a cidade e é aquele que defende a cidade contra outros guerreiros. O pater famílias do clã é quem exerce o poder na origem. Depois vem o conselho de anciãos da tribo ou da etnia. Aparece também o guerreiro forte que impõe seu domínio à comunidade. Nascem os chefes dos clãs e das etnias. Com a cidade, o antigo chefe é agora um reizinho, frequentemente um guerreiro. A instituição do exercício delegado do poder é quase exclusivamente cumprida pelos que sabem usar as armas. Lentamente nasce o militar de profissão e com ele a dominação pela força. É a potestas. Inobstante a auctoritas ancestral é exercida pelo chefe religioso, o xamã, os anciãos, que têm a memória dos costumes, dos descobrimentos necessários para a reprodução da vida e dos mitos do grupo. [5] A política, portanto, percorrerá um longo caminho histórico para chegar, primeiro, às primeiras cidades modernas e, depois, às repúblicas. Trata-se de uma antiga tradição própria da organização de certo tipo de cidades, cidades-portos, que nasceram no interstício de reinos e impérios. Quando as cidades aumentam o número de seus habitantes e se criam redes comerciais cada vez mais extensas, surgem grupos de comerciantes enriquecidos que organizam, em certas cidades, uma maneira específica de estruturar o exercício do poder. Estas cidades eram livres dos reinos territoriais mais extensos ou dos impérios de turno. Organizam um tipo de governo à maneira de um conselho de anciãos, o senatus, ou dos membros mais proeminentes das famílias mais importantes da elite comercial. Este tipo de cidade atravessa a história durante os últimos seis mil anos. Chamamos atenção para algumas destas antigas cidades que aparecem já no VII milênio: na Turquia (Hüyük, datada pelo C14 em 6.385 a.C.), nas mesopotâmicas Uruk, Lagash ou Kish, ou as egípcias Abydos ou Tebas (já no IV milênio a.C.), até as do vale do Indo (como Mohenjo Daro ou Harappa), ou na China (desde Nankin, Cantão ou Hangchou) e, desde o III milênio a.C., no Mediterrâneo oriental, com portos como Bíblos, Sídon, Tiro e sua colônia, Cartago, ou a Cádiz atlântica, de cuja origem (semita ou egípcia)13 as cidades gregas como Atenas ou Esparta são herdeiras. Houve muitas outras cidades deste tipo no Mediterrâneo, incluindo Roma, Marselha ou Pérgamo. Indicamos este amplo processo porque no início estas cidades foram sempre repúblicas (não monarquias), governadas por oligarquias, 13

Bernal (1991, II) mostra a presença de cultura egípcia e semita desde o século XXXI a.C. na Grécia e na Trácia. Talvez o faraó Sesóstris (cerca de 1900-1800 a.C.) (Bernal, 1991, II, p. 196ss) tenha atravessado a Turquia e a Trácia (o deus Dionísio era um culto trácio-egípcio), a Escítia (ao Norte do mar Negro) passando pela Cólquida (até hoje com habitantes negros, não foi uma colônia egípcia? se pergunta Bernal [1991, II, p. 245]).

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frequentemente de ricos agricultores, industriais ou comerciantes. O démos egípcio14 e, depois, grego, e o senatus romano eram tipos oligárquicos deste governo (nunca democráticos, no sentido atual da palavra, já que excluíam a maioria dos habitantes das cidades por serem plebeus, libertos, mulheres, escravos, bárbaros, estrangeiros, etc.). Esta tradição oriental será transmitida ininterruptamente também no mundo bizantino e muçulmano (pensemos nas cidades florescentes e semiautônomas como Samarkanda ou Bujara, até Agra, na Índia, ou o porto de Malaka, não longe da atual Cingapura), em Chipre ou Rodes, até Veneza, dependente do império oriental, do qual, como veremos, nascerão os tipos de governo modernos, em especial o sistema misto inglês e, por último, a democracia republicana norte-americana.15 O primeiro imperador persa do primeiro império da história mundial precisa já fazer alianças com estas ricas e bem relacionadas cidades de mercadores que se protegem com grandes muralhas, que têm excelentes exércitos de mercenários e possuem grande desenvolvimento cultural e as maiores riquezas. Não é em vão que foi em Sídon e Bíblos que foi inventado o alfabeto fonético atual. O exército de Alexandre foi mais tempo detido pelas muralhas de Tiro do que pelos próprios exércitos do imperador persa. Esse tipo de governo urbano será o que hoje se globaliza, passando de uma oligarquia mercantil (ainda em Amsterdam) a uma cidadania homogeneizada e universalizada de maneira democrática. Porém, estruturalmente, é um processo urbano. O “cidadão” é o membro da cidade em sentido lato. Com o tempo, o campo político superará os limites da cidade e territorializará a campanha (o espaço agrícola circunvizinho à cidade), até incluir âmbitos maiores e constituir, ao final, os Estados modernos, que passarão por diversas formas de organização institucional e territorial a longo prazo. Certo é que desde as primitivas cidades neolíticas a complexidade aumenta, a memória oral se torna insuficiente, ainda que seja muito poderosa, e lentamente os relatos mais explicativos do núcleo ético-mítico da comunidade urbana começam a se objetivar em representações mnemotécnicas. Nascem, assim, já faz muito pouco, no III milênio a.C., as escrituras: ideográfica, primeiramente (e ainda hoje presente na China, com a vantagem de poder expressar por escrito línguas foneticamente muito diversas), silábicas e fonéticas, posteriormente,16 que permitem que 14 15

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“Phoenician Politics and Egyptian Justice in Ancient Greece” (Cf. Bernal, 2001, p. 345ss). Mesmo que as democracias americanas recordem Veneza, o Congresso rememora a assembleia popular (democratas), o Senado a representação dos principais e mais antigos (aristocratas) e o Presidente recordará o Doge eletivo ou o antigo monarca (monárquicas) (Cf. Popock, 1975, p. 183ss). É justamente numa destas cidades – Bíblos, Tiro, Sídon – onde o alfabeto se aperfeiçoa. Com efeito, o contato com o sistema ideográfico egípcio e o cuneiforme mesopotâmico deu a possibilidade a esta cultura intermediária de inventar o alfabeto fonético. O fato de um desenvolvido comércio de alto-mar, desde as costas palestinas até o Atlântico, atravessando todo o Mediterrâneo, incentivou nestas cidades a capacidade de escrever e, com muita precisão, textos de maior extensão. É interessante anotar que, na Ameríndia, os maias tiveram uma escritura ideográfica com elementos fonéticos (os “glifos”).

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se produza as primeiras coleções de regras intersubjetivas tornadas consensuais pelas comunidades urbanas, já claramente políticas, que denominamos “códigos legais”. Trata-se de um altíssimo grau institucional de racionalização das relações políticas de uma comunidade. Contra J. Derrida, assinalamos a importância positiva, construtiva e intersubjetiva da “escritura”.

1. Os sistemas legais na Mesopotâmia [6] O aparecimento dos primeiros arquivos de contratos privados (escritos em cuneiforme sobre ladrilhos cozidos e empilhados em bibliotecas enormes) e de regras ou leis, primeiramente divinas, e, pouco a pouco, com crescente intervenção reformista da parte dos reis, na Mesopotâmia, fez com que se iniciasse de maneira estrita a esfera “pública”. Esta esfera situa as relações intersubjetivas em certas condições de “objetividade” comunitária, que impede a fácil mudança da legislação oral em benefício das elites dominantes que transformam as leis por um flutuante capricho subjetivo, cujo critério é o interesse privado contra outros membros da cidade. Já no longínquo 2404 a 2375 a.C., o ensi de Lagash, chamado Enmetena, decretou a mais antiga reforma legal de que se tem conhecimento.17 Ali, é possível ler que o rei “dispensou Lagash das obrigações, devolveu seu filho à mãe e devolveu a mãe ao filho” (Lara Peinado, 1994, p. 4-5). Por sua vez, Uruinimgina (2353-2342 a.C), rei de Lagash, fez escrever na Lei 27 de suas Reformas: “Uruinimgina prometeu solenemente a Ningirsu – o deus pátrio – que nunca subjugaria o órfão e a viúva ao poderoso” (Lara Peinado, 1994, p. 24-25). É no Código de Shulgi (20942047 a.C.), na Lei 9, onde a formulação crítica chega à sua expressão clássica: Não entreguei o órfão ao rico, não entreguei a viúva ao homem poderoso, não entreguei o homem de um peso ao homem de mil pesos,18 não entreguei o homem de um cordeiro ao homem de um boi [...]. Não impus trabalhos, fiz desaparecer o ódio, a violência e o clamor pela justiça. Estabeleci a justiça19 no país (Lara Peinado, 1994, p. 59).

No Código de Hammurabi (1792-1750 a.C.) é igualmente recolhido o mesmo tipo de declaração: Os grandes deuses me elegeram e eu [Hammurabi], só eu, sou o pastor salvador, cujo cetro é justo [...]. Para que o forte não oprima o fraco, para fazer justiça ao órfão e à viúva na Babilônia [...], para fazer justiça ao oprimido, escrevi minhas preciosas palavras numa estela e a levantei diante de minha estátua de Rei de Justiça [...]. Que o oprimido, que está afetado por um processo, venha diante de minha estátua de Rei de Justiça 17 18 19

Este rei fez um tratado de paz com a cidade Lugalkiginedudu, “que constitui o mais antigo documento diplomático da humanidade” (Lara Peinado, 1994, p. XIX). O “pobre” ao “rico”. A lei escrita.

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e que se faça ler na estela escrita e que se escutem ali minhas preciosas palavras [...]. [Hammurabi] assegurou para sempre a felicidade das gentes20 e fez reinar a justiça no país (Lara Peinado, 1994, p. 59).21

O oprimido, injustamente tratado, que normalmente é um iletrado que não pode fazer valer seu direito, tem a possibilidade de “fazer que lhe seja lido o texto” e de conhecer diretamente seu conteúdo legal, o mesmo para todos e em todos os momentos do espaço e do tempo do sistema político (neste caso, do Império Babilônico). O fato de estar “escrito” modifica a subjetividade, no sentido já anotado por J. Derrida, porém o que este não descobre é o sentido universalista da validade que o texto tem para as vítimas concretas e reais de todo sistema político, econômico ou cultural. As vítimas, excluídas do conhecimento dos seus direitos pelos grupos dominantes, não podem se defender. O texto escrito universaliza a validade das regras sociais e políticas, cria um espaço “público”, isto é, inicia o amplo caminho da validade intersubjetiva que se desenvolverá como “legitimidade” de todo sistema político. O sistema político babilônico, com suas leis “escritas” e colocadas nas entradas das cidades, o lugar “público”, como acontecia com o chamado Código de Hammurabi, funda de alguma maneira a legitimidade da ordem monárquica babilônica e manifesta, ademais, enunciados críticos que permitem o desenvolvimento do sistema jurídico ao incluir aquela fórmula tantas vezes repetida antes e depois: “Faz-se justiça com a viúva, com o órfão e com o pobre” e “com o estrangeiro”. Em que sentido? No sentido de que as regras consuetudinárias conhecidas pelos membros dominantes do sistema político são agora válidas na esfera pública e compartilhadas explicitamente por “todos os membros” do sistema político. A informação pública das regras, que dá conhecimento dos direitos e deveres, cria certa simetria na participação dos “afetados”. Por isso, as pedras nas quais se esculpia a imagem do rei legislador com a coleção de suas leis eram reproduzidas em grande número. O rei exercia uma função de mediador entre os deuses e os homens e sua legitimação vinha “de cima”: A comunidade ideal, imaginada segundo o modelo tradicional para legitimar a autoridade real, converteu-se numa autoridade tangível através, primeiramente, do cultivo das relações entre as esferas do divino e do humano. O rei exercia uma função-chave para permitir ou impedir as relações com o divino (Launderville, 2003, p. 289).

Quando o rei deixava de cumprir as obrigações estipuladas pelos deuses, debilitava a totalidade da comunidade que governava:

20 21

O aspecto material da política. Lei XXIX (1994, p. 40); Lei XXV (p. 50); Ver Código de Hammurabi (1971, par. 282, ao final, p. 74).

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Se o rei pretendia exercer uma autoridade soberana sem atender à origem divina desta, suas ações costumavam suscitar conflitos e contradições dentro de uma comunidade que diminuía sua vitalidade e chegava, inclusive, à sua fragmentação (Launderville, 2003, p. 289).

Não obstante, o poder messiânico crítico dos ascetas do deserto – chamados nabiim ou videntes, profetas – e o próprio povo podiam depor os reis quando estes faltavam com seus deveres. É relevante observar que estes Códigos tão primitivos, que normatizavam o sistema de dominação, como o escravista e patriarcal, deixavam aberta sempre uma brecha crítica que permitia que a pressão social que estes sistemas de grande injustiça econômica e política (no nível material de reprodução da vida e a falta de participação legitimamente suficiente) produziam, que frequentemente se manifesta por grandes rebeliões ou golpes de Estado internos ou externos contra os grupos dominantes, estavam, ao mesmo tempo, “abertos” para “fazer justiça” com os pobres, com as viúvas, os órfãos, os estrangeiros, os devedores, a quem se perdoavam suas dívidas e até fazendo a libertação de escravos em certas circunstâncias políticas. Junto à ordem política coercitiva estabelecida se encontram normas críticas que deixam espaço às transformações, cuja utopia se manifestava como um voltar atrás até a igualdade primitiva do deserto, do nômade, da não-classe dos clãs anteriores à organização classista urbana, uma utopia existente sempre na ética das tribos de valentes pastores do deserto, árabes ou persas. Miticamente, Abel oferece aos deuses um cordeiro: é o nômade anterior à cidade. Caim oferece pão e vinho, fruto da agricultura, da dominação urbana. Caim é o mal, a dominação da classe urbana e sedentária, fixa, reprodutora, com dominação de classe. Abel é o bem, a igualdade originária nômade, móvel, criadora. Nietzsche vislumbrará em Caim a ordem urbana como o apolíneo e no Abel do deserto, como Zaratustra, a ruptura dionisíaca. Com efeito, a ordem urbana será sempre criticada pelos profetas éticos do deserto arábico (desde o profeta Oséias até Maomé). Aqui devemos nos deter um instante para anotar um aspecto de suma atualidade. Como já indicamos, o helenocentrismo é o pai do eurocentrismo. Mostrar que o “milagre grego” – dos românticos alemães do século XVIII – não existiu. Significa começar “de novo” a história da política. De uma maneira provocativa, porém, sumamente documentada, erudita e dificilmente refutável, Giovanni Semerano (1984; 2001) demonstra que o reino de Akad (com Sargón I:22 2350-2300 a.C.) sucedeu aos sumérios, se estendeu até o Indo e o mar Egeu, fazendo do Acádico (e seus documentos cuneiformes) a primeira língua regional. Posteriormente foi substituída pela língua caldaica, de maneira que, no II milênio a.C., o caldeu ocupou todo o espaço da Mesopotâmia, do reino hitita (cuja pretensa língua “indo-europeia” Semerano (2001, p. 25-26) põe tanto em questão que até mostra 22

Na obra citada, Semerano mostrará que do arcádico Sargón deriva o etrusco Tárchon/Tarchna, em assírio Sarru-kinu, que, em latim, é Tarquinius (o primeiro rei mitológico romano).

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sua inexistência23), de boa parte da futura Grécia, tendo sido utilizada também como língua comercial pelos fenícios, chegou à Índia e até a sul-oriental dravídica Tamil-Nadu (Semerano, 2001, p. 21). A filosofia pré-socrática foi profundamente influenciada pelo idioma semita-caldeu. A tese se enuncia assim: [...] o frequente uso do acádio [e do caldeu] como língua antiquíssima e de ampla documentação permite que evitemos nos referir a línguas afins tais como o indo-europeu sugerido nos manuais, historicamente inexistente (Semerano, 2001, p. 5).

O desmantelamento é radical. O kéntauros (centauro) grego vem de ken (assim como) tora (touro, em acádio e hebraico). Na origem da filosofia grega está o ápeiron (infinito) de Anaximandro. Semerano mostra que a raiz etimológica se encontra no semítico ‘aper (pó, terra), no acádio ‘eperu, no hebraico ‘afar, aquele indeterminado pó ou argila com a qual se fez o ‘adam (varão) da ‘dama (terra) (Semerano, 2001, p. 32; p. 49-66; p. 96-109). O conceito central na fi losofia e na política grega, a dike (justiça) (de Anaximandro ou de Heráclito), deriva etimologicamente do sumério diku-gal (juiz supremo), do babilônico diqugallu, do acádio duku (Semerano, 2001, p. 35; p. 258261). O autor vai desconstruindo as expressões filosóficas de Tales, Anaxímenes, etc. desde as línguas semitas (Semerano, 2001, p. 72ss). Assim, arkhé (princípio) deriva do acádio arhu (primeiro mês do ano e primeira lua). A Jônia esteve, portanto, completamente semitizada desde fins do III milênio a.C. Assim, ‘Europe (“o brumoso”) se diz, em assírio, arapu ou erepu, que significa igualmente “Ocidente”: Erubu, a filha de Cadmo (do acádio qadmu: “o desconhecido”) (Semerano, 2001, p. 84). Zeus, o grande deus (Zán, em cretense), procede do acádio zanau (chover), zanu (chuva). Hermes (o deus Dionísio,24 que se refere ao egípcio deus Thor) tem por antecedente o acádio herum (escavar), ermu (cobrir): o deus do mistério que se revela. Themis procede do acádio temu (juízo, direito). Em Heráclito, à justiça (dike) se lhe opõe ‘eris (luta); no Código de Hammurabi se encontra o conceito de arnu (violência, luta contra a justiça) (Semerano, 2001, p. 124). A alma (psikhés) remonta à etimologia ‘bhes (soprar), da qual deriva o sumério pesh, o semita nefesh, o acádio (na)pishu, em todos os casos, suspiro, sopro, palavra criadora. Mas, o capítulo mais interessante de Semerano é aquele no qual pretende mostrar a vinculação do direito semita-mesopotâmico com o pensar grego e romano. Licurgo, o primeiro legislador, seria a deformação de uma referência à “luz do sol” (leukós), como o outro mítico legislador grego (Za-leukós: Celeucos). Luk-ourgos seria algo assim como “a tábua luminosa da lei”, do acádio le’hu, donde deriva lex, 23

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Em sua última pequena obra, La favola dell’indoeuropeo (Semerano, 2005), destrói definitivamente as hipóteses sobre a existência desta língua “inventada”. Na realidade, todas as raízes etimológicas nos conduzem ao Médio Oriente (língua acádia, caldeia, babilônica, etc.) ou ao egípcio. O próprio Dionísio procede do acádio nasu (produzir), do hebraico nasah (verter água). É o “deus (Dio), ao qual se oferece”.

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legis. O ourgos ou érgon (trabalho e obra, em grego), procede do arcádio urhu, arameu orha, hebreu orho, que é a obra do legislador. Dracon seria a deformação do babilônico daraggu (via, direito). O mesmo acontece com Sólon. Na realidade, estes personagens míticos indicam simplesmente os fundadores do direito, das leis, que têm sua primeira referência nos Códigos mesopotâmicos. No mundo romano, tudo acontece de maneira semelhante. “Cavalo”, em latim equus, vem de ekewu (cavalo), em acádio; enquanto caballus provém do acádio kabalu, que significa “atacar com carro”. A palavra ius tem sua raiz em usu (em acádio, “ordem”, “linha de demarcação”). Sacer (de tanta importância para G. Agamben) também se relaciona com o acádio sakaru e sekerem (impedir o acesso, proibir, fechar), do semita skr (estar proibido). O que devia ter pensado de tudo isso Nietzsche com o seu Dionísio e seu Zaratustra “indo-europeus”, antissemitas?

2. Egito e outras civilizações para o Leste [7] Anatólia e Mesopotâmia eram o espaço geopolítico mais desenvolvido da originária revolução neolítica conhecida, que se estenderá até o Indo e até o Mediterrâneo oriental. Contudo, “Egito e China continuam sendo os dois modelos, as fontes originais da ciência, da técnica, da ideologia e da organização” política (Amin, 1974, p. 52). Com efeito, o Egito institucionaliza o primeiro Estado-nação com enorme continuidade e com isso terá a maior duração na história política mundial, desde aproximadamente o ano 3000 a.C. e, já sem interrupção, até o presente (já que conseguirá, de uma maneira ou outra, adotar os seus invasores, tanto os hicsos como os persas, os helênicos, os cristãos bizantinos ou, finalmente, os muçulmanos). No Egito (os “adoradores de Ptah”, da mesma origem etimológica que “co-pto”) “a classe-Estado, que se organiza em escala nacional, não é, contrariamente ao que muitos creem, particularmente despótica. A classe-Estado nacional tem em conta o interesse comum e organiza grandes trabalhos úteis” (Amin, 1974, p. 51). Quinze séculos antes das invasões da Índia (origem do Rig Veda), vinte e três séculos antes do profeta Isaías em Israel, vinte e quatro séculos antes de Confúcio, vinte e seis séculos antes de Platão,25 vinte e oito séculos antes da unificação do Império Chinês dos Hun e trinta séculos antes do cristianismo, as primeiras dinastias egípcias, a cidade de Mênfis e os relatos simbólicos sobre a ressurreição dos mortos – para os quais se edificaram as pirâmides – que rematarão no mito de Osíris, começam seu longo caminho histórico. Estamos na mesma fonte do que será a Grécia, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. O sistema político egípcio, longe de depender da vontade do faraó, estava sob o império da deusa Ma’at, lei divina e natural, cosmopolita, do universo e do Egito. Tradições firmes, classes sociais antigas, clãs sacerdotais e de sábios poderosos 25

Imagine-se que, desde as primeiras dinastias egípcias até Platão, transcorreram vinte e seis séculos e menos séculos de Platão até nós (somente vinte e quatro).

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organizavam uma sociedade agrícola, fora de todo perigo (pela defesa natural dos desertos). A legitimidade divina de suas instituições, a riqueza na fácil reprodução da vida, a grande eficiência tecnológica no manejo do rio Nilo deram a este Estado uma estabilidade tal que, durante treze séculos (de 3000 a 1780 d.C), nenhum outro povo perturbou seu progresso. O mito de Osíris merece atenção por sua importância política. Com efeito, este mito, muito presente no Livro dos mortos e em outros numerosos textos, relata o “ juízo final” do morto – não de uma alma, próprio de uma antropologia dualista, e sim, de todo o ser humano com sua ra (ou nome e determinação individual) – na grande sala de Ma’at, diante de todos os deuses, diante de toda a humanidade: Façam-no vir!, dizem os deuses, falando de mim. Quem és tu?, me dizem. Qual é teu nome?, me perguntam [...]. Vem, pois, e entra pela porta desta Sala das Duas Ma’at, posto que nos conheces (Lara Peinado, 1989, p. 210-211).

O decisivo deste mito é que inicia uma tradição ético-política que será própria das culturas cristãs, muçulmana e ocidental moderna. Trata-se da invenção da consciência singular ético-política intersubjetiva que, como um juiz subjetivo internalizado sempre presente, observa no secreto mais íntimo de toda ação, mesmo que realizada na esfera privada (por isso, o deus Osíris é representado por um “olho” nos textos hieroglíficos egípcios), sempre situa virtualmente o autor no horizonte “público” do “ juízo final”, diante de toda a humanidade. Sem necessidade de uma polícia secreta, o sistema político egípcio se fez presente, foi introjetado na consciência privada (agora defi nitivamente intersubjetiva), exigindo o cumprimento das normas institucionais, das leis do reino, da obediência às elites, do sistema tributário faraônico. Cada membro do sistema temia o deus onipresente26 e se imaginava a todo o momento estar sendo julgado na imensa “sala de Ma’at”: prodígio de invenção política hegemônica! Freud nos alerta que o Über-ich é já o mito de Osíris. Voltaremos a este tema. Por outro lado,27 a cultura egípcia encerra uma profunda afirmação quase-hedonista da existência ao considerar em alto grau de estima a satisfação e a reprodução da vida humana em todas as dimensões materiais28 possíveis, própria de uma antropologia unitária, carnal, de apreço das exigências materiais. Por isso, é critério ético-político do juízo de Ma’at aquele já conhecido: “dá pão ao faminto, água ao sedento, veste o que estava nu e dá uma barca ao náufrago [...]. Portanto, livrai-me, protegei-me! Não me acuseis na ‘presença’ do Grande Deus [Osíris]”.29 Esta acusação na “presença” de deus muda qualitativamente a densidade política da intersubjetividade egípcia. 26 27 28 29

Oni-”presença” indica justamente esta posição “pública” virtual do sujeito diante do tribunal de Osíris. Ver minha Ética (Dussel, 1998, par. 1). “Material”, no sentido de “conteúdo” ético-político e não meramente físico. Livro dos mortos, cap. 125 (ed. cit., p. 209).

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Sem sombra de dúvida, a política grega se inspirará no Egito e nas cidades-porto fenícias (as quais fundaram, entre outras cidades, Atenas e Tebas). Parecia que quando Platão escreveu a Política (os famosos “sábios” eram membros das classes dominantes dos sábios egípcios) pensava mais em Mênfis do que nos filósofos da Hélade. A democracia ateniense se assemelhava em muito aos sistemas políticos das repúblicas oligárquicas comerciais de Bíblos e Sídon (que não aceitavam a monarquia) e também à Saís egípcia, em sua estrutura interna. Queremos insistir neste aspecto histórico. No III e II milênios a. C., tudo o que será a futura Grécia havia sido colonizado por semitas e egípcios. Bernal (2001, p. 360ss), em sua mais recente obra, volta sobre o tema da “ justiça egípcia na Grécia antiga”: “Se as instituições, a língua e o pensamento egípcio foram adotados e adaptados na Grécia micênica, teria sido possível transmitir qualquer deles através da Idade Obscura até o período Arcaico?” (Bernal, 2001, p. 361). Hermes exerce um papel protagonista nas questões políticas, cuja referência egípcia é o deus Thot de Mênfis, embora também se confunda com Anúbis, que tem a ver com a medida, o peso, o valor das obras no dia do juízo de Ma’at (a Moira grega). Mêmnon (um nome egípcio), aliado de Aquiles, era negro (como os egípcios) e guardava relação com a questão da vida depois da morte, com o juízo – em relação com Thot e Anúbis. O problema jurídico-político tinha que ver sempre com o juízo do morto na sala de Ma’at e diante da balança de Osíris, daí a relação entre o legal e o funerário. A palavra grega aisimos (destinado), com raiz em aisa (destino), se refere ao egípcio isw (em copto asou), compensação à qual se é obrigado: É quase uma certeza que a etimologia do grego >isos procede do arcaico egípcio >isw (que significa: igual em participação, número ou direito). As palavras compostas com iso- tais como isonomia (igualdade), isogoria (igualdade de direito para falar ou, simplesmente, igualdade política) foram essenciais na formação da teoria democrática (Bernal, 2001, p. 363).

A relação entre “pesar” e a “ justiça” tem sua raiz no egípcio me’t, que significa “medir”, “recompensar”, “intercambiar”. O “destino” do morto é jogado na balança na “medida” de suas ações justas no dia do juízo. Daí que me’t significa também “verdade”, em relação com Moira (em grego). Ademais, “testemunha” num juízo (martys, em grego) deriva de mtr em egípcio (testemunha). A palavra grega basileus (oficial, sacerdote, rei) deriva de hrp que é o “bastão de mando” de quem tem autoridade. O mais interessante de tudo, para nosso propósito, é o seguinte: Também existem diversas palavras para povo ou súditos. Um exemplo é demos, originalmente território, do egípcio dmi (aldeia, cidade) e dmiw (citadino, cidadão); outro é ethmos, que provém de tnw>, ‘itnow e, copto ato (censo, multidão); um terceiro é ochlós (multidão, gentio), de ‘se (muitos, multidão). Nenhum destes casos tem etimologias indo-europeias (Bernal, 2001, p. 364).

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Por conseguinte, no futuro será preciso trabalhar muito além de uma história helenocêntrica, dando mais importância ao contexto semita e egípcio. Mais a Leste, antes das invasões dos povos do cavalo e do ferro, a Índia, no vale do Indo, até Penjab, mostra toda uma civilização urbana. A respeito deste tema, assim como da China pré-confuciana e pré-taoísta, nos referimos em outras obras (Dussel, 1966; 1975). Por isso não o abordaremos aqui.

3. Mesoamérica e o Império Inca [8] Faz uns quarenta mil anos que habitantes do Leste da Ásia, através do Pacífico oriental, chegaram na América, atravessando o estreito de Behring. Faz uns cinco mil anos a.C. que bandos nômades deram lugar a comunidades agrícolas.30 A partir desta ampla tradição autóctone, com influências neolíticas dos navegantes polinésios, aparecem no Extremo Oriente do chamado “Extremo Oriente” as culturas urbanas ameríndias nas zonas montanhosas, desde as cordilheiras mexicanas até os Andes, o que se denomina a “América nuclear”. São culturas com sistemas políticos altamente desenvolvidos. Pode-se falar da existência de Estados: A formação de classes que faz sua aparição na América pré-colombiana é de tipo tributário. Este é o caso dos incas, dos astecas e dos maias. Estas formações evoluíram de forma fechada, sem nenhuma ameaça exterior, dada a escassa população do continente e parece que alcançaram um alto grau de evolução análogo ao do Egito e da China, no velho continente (Amin, 1974, p. 55).

Façamos algumas referências aos sistemas políticos das altas culturas, partindo do Norte, por serem as regiões primeiramente atravessadas pelos clãs invasores. As culturas “mesoamericanas”, as mais densas em população e matizada articulação de diferentes grupos civilizatórios, com mais de cem etnias, mais de duzentas línguas e trinta e oito tipos de calendários que organizavam temporalmente a vida privada e pública destas comunidades políticas, se desenvolveram desde o rio Pánuco e até o Sul de El Salvador e Honduras. No período pré-clássico (1800-100 a.C.), nas zonas tropicais do golfo do México, já em 1200 a.C., os olmecas construíram plataformas elevadas de mais de um quilômetro de extensão, como no caso da região de São Lourenço. Era a “Montanha Verdadeira”,31 onde se celebrava a origem do universo,32 o lugar central do culto e o “espaço público” por excelência (Florescano, 1996, p. 33). Desta maneira, 30 31 32

No vale do México existem vestígios agrícolas de sete mil anos de antiguidade. Na Mesopotâmia, as pirâmides, montanhas artificiais, não serão outra coisa. Eram a reconstrução mítica da “Montanha Verdadeira”. É o “centro” do “campo político”, lugar da consagração dos reis e onde a terra se comunicava com o inframundo e com os céus. O apaixonante livro de Linda Schele (In: Freidel; Schele; Parker, 2000) descreve como descobriu que os cultos e representações nos centros cerimoniais maias (porém, também antes, entre os olmecas) (2000, p. 128ss) se referem de maneira direta e realisticamente

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[...] o povoado principal adquiriu o significado de assento da linhagem de governantes, santuário das divindades, mercado onde chegavam os produtos mais apreciados, cabeça do reino e eixo que concentrava o poder, a riqueza, o conhecimento, a identidade comunitária, o prestígio e o culto (Florescano, 1996, p. 39).

Em maia, amaq,33 em náhuatl, alttépetl (Cf. Lockhart, 1992, p. 14-58)34 – que se traduz deficientemente em castelhano por “pueblo” –, que significa a “Primeira Montanha Verdadeira” (a “colina carregada de água”), é o nome da “comunidade política” constituída pelos calpolli (grupo interfamiliar de base): é o lugar político por excelência, o “centro” do “campo político”. Entre os zapotecas a construção do monte Alba (cujo esplendor deve ser situado desde o ano 100 a.C.), demonstra o alto grau de desenvolvimento político alcançado, já que este centro religioso-cerimonial era um poderoso reduto militar, centro de longínquas conquistas – expressadas em glifos com figuras dos governantes de povos dominados – e de uma rede comercial importante. Desde Chiapas até as terras altas da Guatemala, no entorno do rio Usumacinta (como um verdadeiro Nilo americano), a cultura maia chegou a sua primeira confederação política com as cidades de Tikal35 e Kalak’mul (Sharer, 1994, p. 138ss).36 A figura política, religiosa e agrícola do ahau (o chefe militar)

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descritiva à posição dos astros (Via Láctea, estrela Polar, as “três pedras”, etc.) no firmamento. Graças a modelos informatizados foi possível reconstruir a imagem do firmamento no dia 5 de fevereiro (o “4 ahaw 8 kumk’u” maia) do ano 690 a.C. A imagem que se via no firmamento noturno do dia 5 de fevereiro (a outra data-chave é o dia 13 de agosto) nos primeiros séculos da era cristã hoje os chamulas celebram no dia 8 de fevereiro (pela variação que se produziu nos últimos 1300 anos). Esta data da comemoração da “origem do universo” (no ano 3114 a.C. para os maias) era quando os deuses colocaram as “três pedras do lar” (sobre a “tartaruga” – Órion, as estrelas Alnitak, Saif e Riegel, em torno do “vazio negro” (hoje, a Nebulosa M42), o fogo originário do universo, ponto sobre o qual giram no firmamento noturno todas as constelações. Depois, graças à “árvore do mundo” (o “crocodilo” de cabeça para baixo, a Ceiba [árvore] sagrada, a Via Láctea), os deuses “pararam”, desenrolaram para “cima” e sustentaram os céus, iniciando-se, assim, o nosso universo atual (a terceira criação). O “crocodilo” de cabeça para baixo (que é a Via Láctea) – Wakah-Chan para os maias) já era conhecido entre os olmecas. A Via Láctea, o “caminho branco” (Sakbe), era igualmente a “canoa” onde remavam os deuses e que afundou pouco antes da origem do universo. Com efeito, no dia 5 de fevereiro de 690 a Via Láctea, ao amanhecer, vai se afundando lentamente no firmamento. Leia-se as interessantes páginas de Linda Schele (2000, p. 54-105, em especial, p. 93). Schele escreve: “Com esta descoberta compreendi que provavelmente cada imagem importante do simbolismo cósmico maia (representado em templos e estelas) era um mapa do céu” (Schele, 2000, p. 84). Ver mais adiante [238]. Ver especialmente “Basic Principles of Altepetl Organization” (Lockhart, 1992, p. 15ss). Yax Moch Xoc foi o fundador da dinastia de Tikal. Existe a cronologia exata dos senhores de Tikal desde Ahau Jaguar (desde a data 8.12.14.1.15 = 292 d.C) até o Duplo Pássaro (9.5.3.9.15 = 556 d.C.) (Cf. Sharer, 1994, p. 175). Os maias imaginavam e punham data a acontecimentos a partir de 3114 a.C., tempo suposto do nascimento do primeiro Pai Hun Nal Ye. Sobre a organização política dos maias ver Sharer (1994, p. 491ss). Tikal chegou a ter 84 centros cerimoniais subordinados em uma extensa região central de Yucatán, incluindo toda a atual Belize. “The Emergence of States in the Maya Área” (Sharer, 1994, p. 143-144).

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é o centro da organização política e, talvez, ninguém mais recordado do que o recentemente redescoberto rei Pakal de Palenque. A cerimônia da transmissão do poder político ficou representada por uma misteriosa “cruz” (a “via láctea” que sustenta como uma “árvore sagrada” os céus, desde os abismos, dando ao mesmo tempo a “vida na terra e, por isso, permitindo o nascimento do “deus do milho”): O decifrar desta cena misteriosa revelou uma iconografia do poder: no tabuleiro do Templo da Cruz, Pakal transmite a seu filho o cetro do poder político; [...] cede-lhe [ademais] a punção sagrada dos sacrifícios37 e, no tabuleiro do Templo do Sol, lhe transmite os símbolos da guerra. [São] as três funções mais altas do governo maia (Florescano, 1996, p. 74).

A entronização de um rei, o poder político, era uma verdadeira recriação cósmica, pelo que era celebrada com um “4 Ahaw 8 Kumk’u”, momento da origem do universo. O poder político se fundava sobre a estrutura mais antiga da origem do universo. Este era parte do cânon de todos os relatos mesoamericanos, como indica Enrique Florescano: O mito cosmogônico gravado nos templos de Palenque é o exemplo mais antigo deste gênero de relatos. [...] Este texto começa com a criação e divisão do cosmo, festeja mais adiante o surgimento da terra e conclui com a fundação do reino e a enumeração dos governantes, cujas façanhas deram prestígio ao Estado. O que este texto acentua é a continuidade entre as origens da criação e a história dos reinos surgidos dessa gênese fundamental. Neste sentido, a história terrestre é um desprendimento, um resultado da criação divina (Florescano, 2004, p. 49-50).

Tratava-se, portanto, de uma concepção cosmogônica da política. Este cânon tripartite se encontra em todas as culturas mesoamericanas e parece proceder do elaborado em Tula-Teotihuacán, expressado, igualmente, no Popol Vuh, e cuja culminação está no México-Tenochtitlán. É bem provável que a decadência inesperada da civilização maia no final do século IX d.C. seja devida a um estado generalizado de guerras. Na época clássica a guerra era uma arte muito disciplinada. Devia atender a regras astronômicas (quando os deuses ou a disposição dos céus assim o requeria), agrícolas (recorde-se que, em pleno século XIX d.C., na “Guerra de Castas” em Yucatán, os maias foram derrotados pelo exército mexicano porque deviam voltar a cultivar suas milpas), às tradições da nobreza. Isto permitia que as guerras tivessem um “limite” bem determinado. Ao final da época clássica, talvez pela influência tolteca do Teotihuacán (a Tula histórica), a guerra se generalizou e os camponeses começaram a se fazer 37

Além da sua significação religiosa, o sacrifício indica também a possibilidade da fecundidade agrícola e igualmente de responsabilidade real. A política, como em todas as culturas, tem a ver primeiro com a agricultura, com a alimentação, com a reprodução material da vida humana, política.

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presentes. A guerra sem limites produziu uma destruição total. A civilização maia caiu no caos, no “estado de natureza” da “luta de todos contra todos”. [9] Mais ao Norte se encontra Teotihuacán, a cidade mais extensa e populosa38 da América até o século XIX que, no ano 50 d.C., começa a construção imponente da chamada “Calçada dos Mortos” (mais uma vez, a Via Láctea) e que é abandonada por seus habitantes em torno do ano 750 d.C. (vale dizer que seu esplendor alcançou mais de quinhentos anos, tantos como os da Bagdá dos califas ou da Modernidade até o presente). Esta imponente cidade é a recém-redescoberta “primeira” Tula,39 que tinha uma organização coletiva política sem chefes visíveis, espécie de sacerdotes (como uma Mênfis ameríndia), com o poder exercido com ordens de militares e de comerciantes, adoradores da grande “deusa das águas” ou da “cova”, doadora originária da vida e sobre a qual se construiu a chamada pirâmide do Sol. O desaparecimento da primeira Tula (Teotihuacán) produziu uma época de guerras – como as dos “Estados Combatentes” na China –, época de grande violência, de caos, como o de um “estado de natureza” retornante. A cidade de Xochicalco (que floresceu de 600 a 900 d.C.) por isso foi amuralhada, feita num local alto e escarpado – não muito longe de onde escrevo estas linhas –, sob a proteção do deus Quetzalcóatl, o teotihuancano símbolo do poder que também será encontrado entre os maias em Chichén Itzá (cuja época clássica foi de 800 a 948 d.C.), ou em Tula (a “segunda”, de 950 a 1150 d.C.) – que, com sua poderosa confederação, foi, de certa maneira, sucessora de Teotihuacán –, em Cholula (uma “terceira” Tula), todas cidades da época clássica que, como Xochicalco, também serão destruídas pela violência generalizada. No vale do México ressurgiu lentamente, entretanto, a ordem política sob a forma de negociações interurbanas. O sistema estatal mais desenvolvido, como o do Inca no Sul, se fundará sobre o desenvolvimento da estrutura interestatal das “confederações” pela etnia invasora e nômade dos nahuas adoradores de Huitzilopochtli: O maior alcance histórico da etnia mexica foi ter criado uma organização política capaz de dar-lhe cabida à extraordinária diversidade étnica, linguística, política e cultural da Mesoamérica. O exército da Tríplice Aliança40 foi um dos melhores instrumentos na perseguição deste objetivo ambicioso. Mas, quiçá, os meios mais efetivos 38 39

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Segundo alguns cálculos, chegou a ter até cem mil habitantes, com mais de duas mil fazendas de maçãs. Digo “redescobrir” porque não se sabia o que esta imensa cidade havia sido na história do vale do México até que, há pouco, se lançou a hipótese – rapidamente aceita por todos – de que, na realidade, consistia na mística cidade de Tula ou Tollan, a dos primeiros toltecas, origem de todas as civilizações clássicas do vale. Posteriormente, existiram outras Tulas, porém todas se referem à metrópole ideal, centro mítico do poder, cuja multilocalidade indica sua importância, como foi Roma. Constantinopla se considerava a “segunda” Roma e Moscou, a “terceira”. Ao que parece, de qualquer modo, a clássica e primeira Tula foi Teotihuacán. Tenochtitlan, Tezcoco e Tlacoplan.

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foram: as formidáveis redes comerciais que criaram um mecanismo de circulação e consumo de bens em toda Mesoamérica; a conversão do náhuatl em língua franca; a capacidade mexica para incorporar à sua própria cultura as tradições e conquistas dos povos mais adiantados [...]; e os poderosos mitos legitimadores que forjaram a ideia de um povo predestinado a imperar sobre as demais nações. Entre estes mitos, o mais importante dos dedicados a representar a unidade deste universo polimorfo foi o da figura do tlatoani que, no mundo mexico, ocupava alternativamente os lugares de deus criador, ancestral tutelar, guia e herói cultural, cabeça do reino, supremo sacerdote, comandante dos exércitos, patrono da fertilidade e benevolente protetor do povo (Florescano, 1996, p. 166).

O altepetl41se organizava na base no calpolli (o clã interfamiliar de base). Um grupo de calpolli constituía um grêmio, vários deles, um cacicado (por exemplo, o altepetl de Tlaxcala tinha quatro cacicados ou reinos: os de Tepeticpac, Ocotelolco, Ticatla e Quiahuiztlán42) que giravam no exército do poder do altepetl. A concepção era “dual”: o “alto” e o “baixo”: o omé, porém dentro da divisão quádrupla (ou, também, de seis, oito ou dez em seu conjunto, com funções em “movimento”, como o sol que “girava”). Cada cacicado tinha um tlatoani (cacique ou rei local) eleito que, por turno, se transformava na autoridade de todo o altepetl. Ele repartia as terras, distribuía as cargas tributárias e recrutava as forças para os exércitos. Não se tinha (como no Mediterrâneo) o conceito de cidade (pólis), e sim a “cabeça” que era, na realidade, a parte povoada da cada cacicado. Os “bairros” (tlaxilcalli) eram os participantes de cada cacicado no território urbanizado do altepetl e, por isso, em certos casos, o conjunto de tlatoque governava coletivamente. A confederação entre vários altepetl constituía uma comunidade suprema que, não obstante, seguia denominando-se altepetl (a grande comunidade de todos os mexicas). O tlatoani de Tenochtitlán (um altepetl mexica) tinha a função de rei principal ou imperador da confederação. Existiam, ademais, vários tipos de conselhos (como o Mul tepal entre os maias). A ordem sagrada sacerdotal exercia uma importante função de legitimação, já que a ordem política se fundava na própria estrutura do universo. A saída diária do sol e da lua, o movimento das estrelas e constelações, a chuva ou a seca, eram momentos políticos que permitiam o esplendor de um reinado ou sua crise. Era um cosmopolitismo (como todos os anteriores e muitos posteriores). Por isso, todo o sistema político, como já dissemos, baseava-se num sistema agrícola muito eficaz que o altepetl nunca deixava de controlar. A comunidade garantia a sobrevivência com quatro ou cinco meses de produção. O tempo restante era ocupado em outros afazeres políticos: a guerra, o comércio e as celebrações calendarizadas de legitimação. 41

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Este “conceito” é o centro de toda a estrutura política mesoamericana, aqui com denominação nahua. Altepetl (Cf. Lockhart, 1992, p. 14ss) ou “comunidade” política, que será traduzido na época colonial por “povo”, deve ser retido como uma categoria fundamental na política latino-americana. Nem “pueblo”, em castelhano e nem people, em inglês, podem expressar adequadamente seu conteúdo. O altepetl de Tenochtitlan tinha também quatro comunidades de base: Moyotlán, Teopan, Atzaqualco e Cuepopan (Cf. Lockhart, 1992, p. 22).

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O calmécac (escola de sábios, como a dos chineses ou gregos) educava a elite que dominava a escritura hieroglífico-fonética (no caso dos maias), o cálculo dos calendários que racionalizavam toda a vida mesoamericana, a adivinhação e as tarefas administrativas. Cada calpolli tinha um telpochcalli (casa de jovens), onde os jovens do povo recebiam adestramento militar e educação básica (Cf. López; Austin, 1982). Os sacerdotes e os escribas se diferenciavam dos tlanatimine, verdadeiros filósofos,43 que se ocupavam de transmitir os relatos constitutivos do núcleo ético-mítico dos astecas. A “Primeira Montanha Primordial” (o Templo Maior da cidade de Tenochtitlán) se situava no “centro” do mundo e era o lugar “público” por excelência: acima estavam os treze céus da região celeste (o Omeyocan) e, abaixo, se abriam os nove níveis do inframundo (o Mictlan) (Cf. López; Austin, 1992, p. 90). Os tlanatimine estudavam os livros (códices) dos limites políticos dos reinos; os livros do cálculo dos numerosos tributos; os livros dos tratados e negociações entre todos os reinos; os livros dos relatos dos deuses (narrativas míticas cosmopolíticas44), artes, explicações de leis de todos os reinos e os livros de interpretação dos signos (augúrios) e dos sonhos. Assim se educava os conselheiros da Confederação dos mexicas. [10] No Sul da América brilhou o Império Inca sobre os substratos de muitos sistemas políticos que prepararam seu advento. Esta civilização independente, desde o Norte do Equador até o rio Maule, no Chile, incorporando os territórios argentinos dos Andes até Mendoza, teve uma das organizações políticas mais estruturadas da história da humanidade: O império incaico era regido por uma nobreza hereditária, cujo centro era a pessoa sagrada do Inca, filho do Sol [...]. A nobreza, formada pelos membros de antigas linhagens incas assentadas nas proximidades de Cuzco e pela chefatura de povos conquistados, exercia funções superiores de administração do império, culto e guerra [...]. Abaixo dos nobres de sangue, vinha um estrato menos qualificado de sacerdotes, burocratas, chefes militares, comerciantes e curacas, formando todos eles uma pequena oligarquia [...]. Abaixo, estavam os servidores temporários (mitayos), recrutados nas comunidades rurais, para servir durante certos períodos do ano como mão de obra nos correios e transportes, nas minas e nas obras de construção e aquedutos e também como criados dos nobres (yanaconas) e como soldados. O campesinato formava a base da estrutura social (Ribeiro, 1977, p. 168).45 43 44

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Ver minha obra The Invention of Américas (Dussel, 1995, p. 95ss). O fato narrativo que justificava a dominação do império era uma verdadeira “teologia política” (como a chamaria Carl Schmitt), já que Tlacaelel ensinava que os astecas serviam fielmente à sobrevivência do universo ao fazer a guerra e manter a ordem no Camanuac (o “anel” ou a totalidade do mundo) para poder oferecer sacrifícios humanos que davam vida ao sol (Huitzilopochtli). Que melhor “teologia da dominação” podia um político imaginar? A política moderna secularizada não deixou de fazer uso de justificações semelhantes: qual é a exigência de expansão da “democracia” e a moralizante “luta antiterrorista” e antidrogas atuais (como do “Plano Colômbia”, em 2001), senão uma nova fundamentação de uma política norte-americana de dominação planetária? Sobre o tema ver Dussel (1966, par. 20).

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A organização política partia do ayllu (o calpulli dos astecas) que constituía o clã de base. Os clãs se organizavam em etnias, estas em províncias, que se agrupavam em estados ou reinos (antigas cidades monárquicas, agora conquistadas), sob o domínio da cidade de Cuzco, o Império. Como no caso de Tenochtitlán, a cidade de Cuzco estava organizada politicamente (e desde este centro sagrado, todo o Império), a partir do princípio dual: o Hanan e o Hurin Cuzco. De imediato, porém, pelo princípio quadripartite, cada parte se dividia em duas, dando lugar aos quatro suyu: o Chinchasuyu (Hanan/Hanan: o alto do alto, o mais prestigioso), que se estendia de Cuzco até o poente; o Antisuyu (Hanan/Hurin: o baixo do alto), ao Norte; o Collasuyu (Hurin/Hanan: o alto do baixo), até o sol nascente (Bolívia, Chile) e o Cuntisuyu (Hurin/Hurin: o baixo do baixo), até o mar do Sul. A cabeceira do Império, o umbigo (Cuzco) do universo, não era uma cidade, e sim a confluência urbana dos quatro suyu do Império (em cujo centro estava o templo do Sol: Coricancha).46 [11] A organização sumamente complexa aparece nas grandes linhas do Império Inca: na cabeça, o Inca (a família real); às suas ordens, os vice-reis dos suyu ou os visitadores ou juízes supremos de cada região (capac apos, tokoirikoqs); em cada região de províncias uma autoridade (que visitava, julgava, de família real que habita junto a Cuzco, porém no suyu respectivo, um tocricoc); um governador local (curaca) que governava sobre uns trinta mil tributários; um líder de cinco mil ou mil tributários (guarangas); os chefes dos ayllus (pachacas); o representante de dez tributários (chunga kamachikuqs) e o pai de família (Cf. Pärssinen, 1992, p. 412). Cada esfera tinha comandos administrativos econômicos (já que o sistema era tributário), agrícolas (responsáveis da construção e bom uso dos aquedutos), militares (com um exército permanente de mais de 27 mil quilômetros de esplêndidos caminhos e pontes, desde o Norte de Quito até o rio Maule, no Chile), religiosos (já que o calendário mítico-cosmológico regia a vida privada e pública, em torno do Inti raimi, a celebração do nascimento do sol, do ano e do fogo novo, o dia mais curto do ano: 21 de junho)47 e políticos, propriamente. Nesta data, por ordem imperial, apagavam-se todos os fogos de todos os lares do Império. Em Quito, o 46

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A obra de Martin Pärssinen (1992, p. 171ss) entra em detalhes sumamente importantes para entender a organização político-espacial e temporal dos incas. À organização “dual” e “quatripartida” – como entre os astecas – será preciso agregar a “tríade” que atravessa todo o sistema político (o primeiro: Qollana; o segundo: Payan e o terceiro: Kaiaw), hierarquizando o poder, os lugares e o sistema avaliativo. O famoso texto de Guamán Poma de Ayala, El Primer Nueva Corónica, é um testemunho privilegiado de tudo isso (Guaman Poma, 1980). Causa assombro a semelhança da organização política de Cuzco com Tenochtitlan, o que manifesta certamente uma mútua informação, embora seja indireta. No hemisfério Norte, o dia 21 de dezembro, data do sol natalis no Império Romano, foi adotado pelo cristianismo, celebrando-se o Natal (como a festa da origem do universo dos maias o 5 de fevereiro). É a passagem de símbolos de uma cultura a outra através de milênios. O sacro Império Romano será tão “sacro” como o asteca ou maia.

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“centro” do mundo, onde a “cruz” que projetava a sombra do sol das torres eretas sobre a terra tinha braços iguais para o Norte e para o Sul,48 acendia-se um pedaço de algodão com substância incandescente, graças ao calor do próprio sol que se refratava de uma polida superfície côncava de ouro, um “novo fogo” originado pela própria vitalidade (calor) do sol. Esse “fogo do Inca” e do sol se distribuía novamente a todos os lares do Império. Era o “fogo sagrado” da ordem política e civilizatória que criava a “ordem política” sempre precária diante do caos (o “estado de natureza” da política moderna). O filho do Inca que nascia nesta data, o Inti Raimi, podia ser eleito Inca. O sol, quando nascia, fazia também “nascer” o possível Inca: um “filho do Sol”. Trata-se, como sempre, de um cosmopolitismo autorreferente. Era um sistema comunitário restrito, sem qualquer tipo de propriedade privada, onde o cultivo da terra se realizava também em comunidade. José Carlos Mariátegui dará muita importância a este socialismo primitivo que ainda perdura nas comunidades indígenas em toda a América Latina. O último nível de legitimidade se fundava numa ontologia ética, num cosmopolitismo, a “pacha-sofia”, como denomina Josef Eastermann (1998), que obrigava todos os membros, desde o Inca até o último campesino, a cumprir com um mandato: “Atua de tal maneira que contribuas para a conservação e perpetuação da ordem cósmica das relações vitais, evitando todo transtorno a ela” (Eastermann, 1998, p. 231). O Império dos incas, como o dos astecas, era para seus contemporâneos a mediação necessária para a sobrevivência cósmica. Trata-se de um dos sistemas políticos mais coerentes do Neolítico que foi truncado pela invasão dos europeus no início do século XVI. 48

A “cruz” tem um lugar central em toda a cosmovisão dos povos ameríndios, desde o Alasca até a Terra do Fogo. Além de ser os quatro pontos cardeais, já sagrados no Extremo Oriente, é relacionada à sombra que projeta sobre a terra (a Pachamama), a Árvore Sagrada (ou simplesmente uma estaca fincada na terra ou uma torre de pedra, como no Império Inca). No Equador, o antropólogo Guayasamín, sobrinho do grande pintor, elaborou um vídeo onde mostra o sentido da “cruz” para todas as culturas americanas (desde a Mesoamérica até o Império Inca). Somente em Quito (que significa “centro do mundo”, em maia [sic!]) a sombra para o Norte e para o sul nos equinócios de inverno ou verão é igual. Em Cuzco, por encontrar-se ao Sul, a sombra (ou parte superior) da “cruz” é menor. Entre maias e astecas, por se encontrarem ao Norte do Equador, de Palenque, tendo em conta Itxam-Ye (7-Guacamayo ou a Ursa Maior), observa-se que a parte superior é maior. Isto introduz todo o problema do sol em movimento na cosmologia maia ou asteca e inca. O sol se “move” não somente no firmamento de Leste a Oeste. “Move”-se, sobretudo, de Norte a Sul, na sombra da Árvore Sagrada sobre a terra, por causa dos equinócios, e de Leste a Oeste (também da sombra sobre o solo) no dia, fazendo com que o ano forme uma “cruz”: a “cruz” que o sol desenha sobre a Terra, a ceiba, como árvore empírica que floresce em fevereiro (celebração da origem do universo) e cujas flores noturnas simbolizam a recriação da vida, a “Árvore do Mundo” que sustenta o céu e a Via Láctea, unificam-se de forma multifacetada para ser, ao mesmo tempo, a figura do rei, de Pakal em Palenque, que garante estabilidade, ordem, justiça e vida a seu “povo”. O poder é “verdadeiro” quando está fundado sobre a constelação de “Escorpião”, abaixo, e a Ursa Maior, acima, como uma Via Láctea que garante e legitima o reinado político.

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Expusemos indicativamente o primeiro estágio dos sistemas regionais que não têm maior relação direta entre eles. Se tivesse havido alguma relação direta entre estas altas culturas neste primeiro estágio, teria ocorrido somente no Oriente Médio, entre Egito, Mesopotâmia, Anatólia e o Mediterrâneo oriental. Nas outras regiões (no Indo, na China, nas culturas ameríndias) ainda não havia conexões históricas diretas, mesmo que na Eurásia houvesse algumas poucas.

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