Revista Justiça & Cidadania

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Edição 175 • Março 2015


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Justiรงa & Cidadania | Marรงo 2015


S umário Foto: Mariana Fróes

– Presença feminina na 12 Capa tradição de 206 anos do STM

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O papel da mulher no Poder Judiciário e no cenário brasileiro

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Violência doméstica e familiar contra a mulher

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Dom Quixote – Assim na Justiça como na literatura

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Prateleira – Sobre fúria, ilusões e memórias

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A erradicação do trabalho infantil e o papel do cidadão

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Em Foco – Razão e sensibilidade

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“Para a mulher poder alcançar alguma coisa, terá de produzir muito mais do que o homem”

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Liquidação dos contratos de concessão de serviços públicos sob a ótica do law and econcomics

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A delação premiada tem limites na Lei no 12.850/2013 e não se confunde com o plea bargaining

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Culpa é hipótese de improbidade administrativa

Foto: Ana Wander Bastos

Editorial – Aposentadoria aos 75 anos

Foto: Fecomercio

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da advocacia

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A arbitragem no âmbito das concessões de aeroportos

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Mediação, Arbitragem, Conciliação e Negociação

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O inquérito policial como instrumento de garantia

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Um parecer jurídico


Edição 175 • Março de 2015 • Capa: Odair Amancio

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Ives Gandra Martins

Manaus Julio Antonio Lopes Av. André Araújo, 1924-A – Aleixo Manaus – AM CEP: 69060-001 Tel.: (92) 3643-1200 CTP, Impressão e Acabamento Edigráfica

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2015 Marรงo | Justiรงa & Cidadania 5


E ditorial

Aposentadoria aos 75 anos Reparação contra o desperdício de cultura e inteligência

N

ovamente vem à baila a extensão da idade da aposentadoria dos magistrados para os 75 anos de idade. Essa salutar iniciativa parlamentar em tramitação na Câmara dos Deputados resgata a praticidade e o bom senso que faltaram na sua aprovação, quando da votação da Emenda própria e alusiva na elaboração da Constituição Federal. Cuida-se de Emenda de alta relevância e oportunidade para a vida política do País, analisada com lógica e bom senso pelo egrégio colégio permanente de presidentes das cortes judiciárias do Brasil, emprestando seu aval à iniciativa, posto que, na textura atual, a aposentadoria compulsória no limite etário septuagenário tem-nos privado, por que não dizer levado ao desperdício e ao desprezo da inteligência, da cultura e da experiência de expressivos valores da nossa magistratura, na plenitude física e mental, no esplendor da sua formação jurídicojulgadora, algumas vezes rumando-os para outras atividades rendosas da atividade profissional, quando a nação poderia haurir do seu saber – os juízes mais refletidos com a experiência dos anos vivenciados. Respeita-se o princípio de isonomia erigido como norma constitucional de que não se admitem tratamentos diferenciados perante a lei – a regra da vedação ao exercício da função pública aos mandatos executivos e parlamentares –, o que importaria banir luminares valores humanos da vida pública – inteligências e lideranças que escreveram os mais altos capítulos da nossa história republicana. O que vale lembrar e reconhecer é que os grandes líderes mundiais, em todos os tempos, ostentaram faixa bem avançada e foram timoneiros de seus povos. 6

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Convenha-se que já existe a aposentadoria facultativa por tempo de serviço, destinada àqueles que se julgam exaustos para o exercício de seus misteres, ou mesmo desmotivados, como também os acometidos de incapacitação física ou mental. Por que, então, a impositiva compulsória, compelindo-o à ociosidade ou a outras atividades, condizentes ao seu talento, quando ainda o magistrado se acha em pleno vigor, idealismo e apto para o exercício do seu mistério julgador? Se é para propiciar ao governo federal e aos estaduais a oportunidade de investir, de livre escolha os ministros das superiores cortes, e no plano regional a representação classista, o argumento bate de frente com o superior interesse público que a tudo deve sobrepor. Tanto mais, em um ciclo evolutivo que transcende do segundo ao terceiro milênio, quando a humanidade se aprimora técnica e cientificamente alcançando a melhoria das condições de vida e do profissionalismo, não se admite que se dispensem, com pesados ônus para o erário, aqueles que, com plena vitalidade, oferecem seu ofício, sua cultura aliada à arte de bem julgar, à praticidade de dizer do direito e aplicação da justiça a quantos se socorrem do judiciário. A permanência dos magistrados por mais cinco anos, ou até um pouco mais, na atividade jurisdicional – a exemplo do que ocorre sem limitação etária em várias partes do mundo, ao diverso do que apregoam adeptos do apressamento da rotatividade expulsória no sistema vigente –não lhes concede os almejados e rápidos acessos aos degraus da carreira, senão os amplia, a par de moldá-los na experiência de vida, ampliação da cultura e aprendizado de conhecimentos jurídicos e sociológicos no trato das questões políticas e econômicas que chegam e são submetidos ao crivo judicial. Há de se considerar, também, que os aspectos de ordem constitucional, a natural responsabilidade de um órgão colegiado formado por homens de idade, experiência, estudo e reflexão, conferem-no aura de dignidade e sapiência, despertando no povo confiabilidade e tranquilidade, além da segurança proporcionada pela coerência e unidade de entendimento, calcadas decisões na lógica do razoável no enfrentamento das questões jurídicas, sociais e políticas de maior relevância para a sociedade e o País. Como assinala Norberto Bobbio, destacado filósofojurista do nosso contemporâneo, na sua monumental obra “O tempo da memória”, sob prefácio do diplomata pátrio Celso Lafer, “os resultados do pensamento, de caráter e de

juízo não diminuem mas aumentam com a idade”. É de se esperar que bom-senso, a lógica e o discernimento dos membros do nosso Congresso Nacional, na apreciação do referenciado destaque que eleva o limite etário de 70 para 75 anos dos magistrados, seja apreciado com amadurecida reflexão. A oportunidade que se apresenta na Câmara Federal, com a disposição de apreciar a matéria ainda no primeiro semestre, abre campo para que novamente as entidades representativas da magistratura se movimentem por meio do Colégio Permanente dos Presidentes dos Tribunais de Justiça, e especialmente com a cúpula dos tribunais superiores para a tomada de efetivo trabalho e positiva participação, visando reparar a anomalia que tolhe e impede a continuidade da ação e atividade judicante de experimentados magistrados, ainda aptos e altamente reconhecidos para o prosseguir prestando seus relevantes serviços ao Poder Judiciário, A fundamentação e o essencial deste editorial foi publicado na edição de março de 2000, há 15 anos quando se discutia, no Congresso Nacional, a Reforma do Poder Judiciário, quando, infelizmente, apesar das importantes medidas acrescentadas e postas em prática, perdeu-se a oportunidade de introduzir, na respectiva Emenda Constitucional no 45/2004, a alteração que elevava a aposentadoria compulsória para os 75 anos de idade. Quanto se perdeu no judiciário nestes quinze anos com o afastamento e a perda de aproveitamento da cultura, inteligência, experiência e argúcia jurídica, que deixaram de ser proferidos por magistrados compelidos a abandonar a toga, cujo exercício honraram, deixando em sábios despachos e sentenças um rastro de luminosos ensinamentos a servirem de caminho, lição e subsídio para os operadores do direito. Vale lembrar com saudade e tristeza a perda irreparável de cinco anos de relevantes trabalhos jurídicos, que deixaram de ser proferidos por luminares do direito ante a impositiva expulsória de eméritos juristas, que ficaram impedidos de exercer as atividades que lhes cabia perante os tribunais superiores em Brasília e nos demais tribunais de justiça em todo o País, propiciando com a ausência da participação o lamentável vazio e a triste lacuna.

Orpheu Santos Salles Editor

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Culpa é hipótese de improbidade administrativa

Ives Gandra da Silva Martins

Professor emérito das universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE Membro do Conselho Editorial

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ediu-me o eminente colega José de Oliveira Costa parecer sobre a possibilidade de abertura de processo de impeachment presidencial por improbidade administrativa, não decorrente de dolo, mas apenas de culpa. Por culpa, em direito, são consideradas as figuras de omissão, imperícia, negligência e imprudência. Contratado por ele – e não por nenhuma empreiteira –, elaborei parecer em que analiso o artigo 85, inciso V, da Constituição (impeachment por atos contra a probidade da administração) além dos artigos 37, § 6o (responsabilidade do Estado por lesão ao cidadão e à sociedade) e § 5o (imprescritibilidade das ações de ressarcimento que o Estado tem contra o agente público que gerou a lesão por culpa (repito: imprudência, negligência, imperícia e omissão) ou dolo. É a única hipótese em que não prescreve a responsabilidade do agente público pelo dano causado. Examinei, em seguida, o artigo 9o, inciso III, da Lei de impeachment (n. 1.079/1950 com as modificações da Lei n. 10.028/2000), que determina: São crimes de responsabilidade contra a probidade de administração: [...] 3 – não tornar efetiva a responsabilidade de seus subordinados, considerada manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição. 8

A seguir, estudei os artigos 138, 139 e 142 da Lei das S/As, que impõem, principalmente no artigo 142, inciso III, responsabilidade dos Conselhos de Administração, na fiscalização da gestão de seus diretores, com amplitude absoluta deste poder fiscalizatório. Por derradeiro, debrucei-me sobre o § 4o, do artigo 37, da Constituição Federal, que cuida da improbidade administrativa, e sobre o artigo 11 da Lei no 8.429/1992, que declara: “constitui ato de improbidade administrativa que atente contra os princípios da administração pública ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições” [grifos meus]. Ao interpretar o conjunto dos dispositivos citados, entendo que a culpa é hipótese de improbidade administrativa, a que se refere o artigo 85, inciso V, da Lei Suprema dedicado ao impeachment. Na sequência do parecer, referi-me à destruição da Petrobrás, reduzida a expressão nenhuma, nos anos de gestão da Presidente Dilma como presidente do Conselho e como Presidente da República, por corrupção ou concussão, durante oito anos, com desfalque de bilhões de reais, por dinheiro ilicitamente desviado, e por operações administrativas desastrosas, que levaram ao seu balanço não poder sequer ser auditado. Como a própria presidente da República declarou, que, se tivesse melhores informações, não teria aprovado

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o negócio de quase 2 bilhões de dólares da Usina de Pasadena, à evidência, restou demonstrada ou omissão ou imperícia ou imprudência ou negligência, ao se avaliar o milionário negócio. E a insistência, no seu 1o e 2o mandato, em manter a mesma diretoria que levou à destruição da Petrobrás, está a demonstrar que a improbidade por culpa fica caracterizada, continuando de um mandato ao outro. À luz desse raciocínio, exclusivamente jurídico, terminei o parecer afirmando haver, independentemente das apurações dos desvios que estão sendo realizadas pela Polícia Federal e Ministério Público (hipótese de dolo), fundamentação jurídica para o pedido de impeachment (hipótese de culpa). Não deixei, todavia, de esclarecer que o julgamento do impeachment pelo Congresso é mais político que jurídico, lembrando o caso do Presidente Collor, que afastado da presidência pelo Congresso, foi absolvido pela Suprema Corte. Enviei meu parecer, com autorização do contratante, a dois eminentes professores, que o apoiaram (Modesto Carvalhosa da USP e Adilson Dallari da PUC-SP) em suas conclusões. 2015 Março | Justiça & Cidadania


Um parecer jurídico J. Bernardo Cabral

Presidente do Conselho Editorial

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Foto: Ana Wander Bastos

A

pós os resultados da eleição para Presidente da Câmara dos Deputados, o país tomou conhecimento de que o Governo sofreu enorme derrota, tendo saído ferido em companhia do Partido dos Trabalhadores (PT), uma vez que, paradoxalmente, perdeu o comando da Câmara e de todas as Comissões relevantes. A seguir, a manifestação de para onde pretende caminhar a Oposição foi a apresentação de um requerimento, com o número necessário de assinaturas de deputados, para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Petrobrás, tomando conta do noticiário a renúncia da presidente da Petrobrás e de toda a Diretoria, motivada pela repercussão negativa no conceito nacional e internacional. Ora, com a derrota na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados, ficou evidenciado que o Governo não tem uma firme base parlamentar, uma vez que só tem garantido 25% dos votos dos seus integrantes, o que lhe trará, certamente, profundos dissabores, ampliados pelo péssimo cenário econômico, pelas gravíssimas ameaças de corrupção, pelo rombo estratosférico nos cofres da Petrobrás. Vale dizer: colocam o governo, literalmente, contra a parede. Ademais, por ora, ainda não se tem conhecimento, oficialmente, de quais os parlamentares que, eventualmente, foram envolvidos nas declarações do doleiro Alberto Yousseff, a ensejar, tudo isso, a especulação de que o ano de 2015 poderá ser tão agitado que ninguém poderá afirmar qual será sua extensão. O que torna tudo mais grave são os comentários em torno dos quais – se houver confirmação das denúncias até agora conhecidas sobre a chamada operação Lava Jato envolvendo a Petrobrás, políticos, empreiteiras e o Palácio do Planalto – o mandato presidencial corre um risco, podendo até chegar – como afirmam alguns – ao ponto de o “poder ser abreviado”.

Abordei esses comentários porque tenho em mãos um parecer jurídico de 64 páginas, em derredor de uma consulta feita ao ilustre Jurista Ives Gandra da Silva Martins, sobre a “responsabilidade dos agentes públicos por atos de lesão à sociedade, improbidade administrativa por culpa ou dolo e disciplina jurídica do impeachment presidencial”.

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Esse parecer em minhas mãos é pela amizade que há entre mim e Ives, a qual prefiro me valer das suas próprias palavras para defini-la – e o faço sem qualquer conotação presunçosa – quando por ocasião do seu pronunciamento ao me saudar como doutor honoris causa da Academia Brasileira de Filosofia: “Conheço Bernardo Cabral há pelo menos 40 anos, tendo, desde o nosso primeiro encontro particular, admiração por sua ação como advogado, como jurista, como líder de classe e, posteriormente, como político e constitucionalista”. Infelizmente, o espaço de que disponho não me permite dar aos que me honram com a sua leitura a dimensão da consistência do parecer desse notável constitucionalista que é Ives Gandra, onde se encontra, sem retoques, o momento histórico. Logo no seu início, o Professor Ives esclarece que a consulta foi formulada pelo advogado José de Oliveira Costa – já fez essa declaração publicamente – e não por nenhuma empreiteira, com o objetivo de “esclarecer se a improbidade administrativa a que se refere o inciso V, do artigo 85, da CF, capaz de justificar o impeachment presidencial, decorreria exclusivamente de dolo, fraude ou má-fé na gestão da coisa pública ou se também poderia ser caracterizada na hipótese de culpa, ou seja, imperícia, omissão ou negligência administrativa”. O Consulente também pede ao Professor Ives que esclareça “se, no caso de haver lesão ao patrimônio público em mandatos sucessivos, os atos lesivos continuados contaminam os mandatos futuros”. Como não podia deixar de ser, ao começo da sua resposta, com a dignidade profissional que o tem acompanhado ao longo de 58 anos de atuação como operador do direito, ressalta que ela será ofertada exclusivamente no campo jurídico, a fim de que não seja confundida “em face das críticas que, como cidadão, apresentei à política econômica da Presidente em exercício, nos últimos quatro anos, e que, infelizmente, se mostraram procedentes”. E essa ressalva tem de ser colocada em relevo porque diz respeito à sua condição profissional e de cidadão, eis que professor de Direito Constitucional durante 55 anos. Em sendo assim, nesse seu Parecer, o Professor Ives destaca que a sua análise não é a do cidadão, exercendo a cidadania, mas a do Jurista que se mantém adstrito ao texto constitucional. O Constituinte, vale ressaltar, não teceu quaisquer afirmativas sobre o aspecto subjetivo de que quem pratica atos contra a probidade da administração possa ser ele honesto ou desonesto. Não importa qual é a postura, mas em razão de, em sendo Presidente, ter praticado atos de improbidade contra a administração. Nesse passo, o parecer ressalta que “o constituinte, ao falar em crimes de responsabilidade, não distingue os crimes dolosos dos culposos”, além de esclarecer: “na condição de

“Em seu Parecer, o Professor Ives Gandra destaca que a sua análise não é a do cidadão, mas a do Jurista que se mantém adstrito ao texto constitucional.”

presidente, mesmo que seja um cidadão honesto e digno, praticou, por qualquer razão, não propriamente atos de improbidade, mas atos contra a ‘probidade de administração’”. Também, por oportuno, o Prof. Ives faz esta análise: “O certo, todavia, é que, mesmo que não sejam improbos, desonestos, imorais ou administradores de empresas, são responsabilizados por atos de gestão que possam implicar desvios de qualquer natureza. Tais atos, mais pelos seus resultados do que pela intenção, é que podem tornar o agente passível de responsabilização”. E conclui o seu raciocínio entendendo que, por essa razão, culposos ou dolosos, atos que são contra a probidade da administração podem gerar o processo político de impeachment. Muitas páginas adiante, o Professor Ives destaca: “Foi a própria presidente quem reconheceu que, num negócio que envolvia quase 2 bilhões de dólares (!!!), se tivesse sido alertada sobre as cláusulas que assinou, não teria concordado com o negócio. Ora, esta grave omissão, em que não procurou aprofundar-se nas condições de negócio bilionário, demonstra, pelo menos, a ocorrência de culpa gestora, quando não negligência administrativa e imperícia, pois não se tratava, repito, de um negócio sem expressão, mas de um negócio relevante, de quase dois bilhões de dólares”. Continuando nas páginas seguintes com a sua análi­ se, chega à conclusão com esta afirmação: “Concluo, pois, considerando o assalto aos recursos da Petrobrás, perpetrado durante oito anos, de bilhões de reais, sem que a Presidente do Conselho e depois Presidente da República o detectasse, constitui omissão, negligência e imperícia, conformando a figura da improbidade administrativa, a ensejar a abertura de um processo de impeachment”. O cenário é muito preocupante...

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C apa, por Ada Caperuto e Marcus Losanoff Foto: Arquivo STM

Desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, presidente do TJRJ

Ministra Maria Elizabeth Guimarรฃes Teixeira Rocha, presidente do STM

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Presença feminina na tradição de 206 anos do STM “De Bertha Lutz a Maria da Penha, árduas foram e permanecem sendo as batalhas pela igualação de gênero. As mulheres, hoje, exercem posições de destaque e de liderança devido ao seu esforço em aprimorar-se intelectualmente, à sua inteligência emocional e à sua atitude visionária, desprovida de preconceitos, uma vez que ela própria foi, e lamentavelmente ainda é, vítima de exclusões.” Ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha.

F

Foto: Isaac Amorim/ACS/MJ

undado em 1808, por D. João VI, o Superior Tribunal Militar (STM) é o mais antigo Tribunal brasileiro. Como característico aos círculos marciais, em que sempre prevaleceu a figura masculina, em quase 200 anos de história, a Corte jamais tivera em sua composição uma mulher. A responsável por quebrar esta tradição foi Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, ao ser nomeada ministra do STM em 2007. Em junho do ano passado, a mineira de Belo Horizonte quebrou outro paradigma: com a aposentadoria do ministro Raymundo Nonato de Cerqueira Filho, ela assumiu a presidência do Tribunal, para completar o biênio 2013– 2015, tendo como vice-presidente o ministro Fernando Fernandes. Aos 54 anos, casada com o General de Divisão Romeu Costa Ribeiro Bastos, Maria Elizabeth é bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), possui especialização em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas

Gerais (UFMG), mestrado em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa), doutorado em Direito Constitucional pela UFMG e pós-doutorado em Direito Constitucional na Universidade Clássica de Lisboa (UCL). Atuou também como professora de graduação e pós-graduação em faculdades de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Distrito Federal. Nesta entrevista ela fala sobre um de seus principais projetos à frente do STM: a digitalização dos arquivos da Corte, processos que remontam os primórdios de 1808. Isso inclui a divulgação pública de conteúdos relacionados a momentos marcantes na história da Nação, a exemplo das sessões secretas sob a égide da Lei de Segurança Nacional. São cerca de 10 mil horas de áudios de suas plenárias que aconteceram entre 1975 e 2004. Aproximadamente 10% desse total correspondem a julgamentos secretos de militantes de esquerda realizados nos últimos dez anos do período de regime militar. A meta busca,

principalmente, ampliar o acesso à rica fonte de estudos e pesquisas que representam os arquivos do Tribunal. Ao fazer um balanço de sua gestão, a ministra Maria Elizabeth destaca os reflexos de seu trabalho ao longo de oito anos, nos quais se vê como participante e testemunha de um momento histórico na Corte Militar. Algo que, em sua opinião, repercute na trajetória das mulheres brasileiras, que, com sua determinação, talento, esforço e valor, têm contribuído para tornar o Brasil um país mais justo. Revista Justiça & Cidadania – Em março, a senhora encerra sua gestão como presidente do STM. Qual o balanço que faz do período em que esteve à frente da Corte? Ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha – Apesar do curto interstício na Presidência do STM, as metas e os desafios por mim almejados foram bem-sucedidos e resultaram em benefícios aos jurisdicionados, servidores e cidadãos brasileiros. Nacional As ações queCrocce dependeram Secretário Flavio Caetano de soluções internas revelaram-se

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exitosas, valendo destacar o início da digitalização dos processos históricos que remontam os primórdios de 1808 e a consequente divulgação virtual na página web da Justiça Militar da União; a degravação da fita de rolo para mídia digital das sessões secretas sob a égide da Lei de Segurança Nacional. A realização de relevantes seminários e encontros jurídicos e as conquistas legislativas obtidas no Congresso Nacional me fazem crer que meus esforços frutificaram. JC – De fato, quando a senhora tomou posse, um de seus principais projetos seria a digitalização dos arquivos da corte, visando, em particular, facilitar a consulta por parte de pesquisadores. Qual a atual situação deste projeto? MEG – Ele encontra-se articulado em três frentes, a saber; livros antigos e de formato diferenciado estão sendo digitalizados na sede do Arquivo Nacional na cidade do Rio de Janeiro, e aqui destaco meus agradecimentos a tão nobre instituição, verdadeira guardiã da historiografia documental do Brasil. De outro lado, o Instituto dos Advogados Brasileiros, instituição jurídica mais antiga das Américas, igualmente sensível à relevância de oferecer à sociedade quase vinte milhões de páginas processuais que, em boa medida, refletem contextos, enriquecem, complementam e reforçam fatos e episódios históricos nacionais, obteve a aprovação do Projeto de Digitalização pela Lei Rouanet, junto ao Ministério da Cultura, de modo a permitir, na condição de proponente, a busca de patrocinadores para viabilizar a transposição digital de documentos datados do início do século XIX até o ano de 1989. Essa iniciativa, de autoria do Dr. Técio de Lins e Silva, presidente do IAB, em parceria com o STM, merece o reconhecimento e a gratidão da Corte. Por fim, os autos processados após 1990 estão sendo digitalizados in14

ternamente, pela Diretora de Documentação do STM, tudo nos moldes das normas vigentes do Arquivo Nacional. Sem dúvidas, a digitalização dos feitos da Justiça Militar Federal será de extrema valia para dar publicidade e máxima divulgação aos julgados do Brasil Imperial e Republicano, em especial os relativos ao período do regime militar, de forma a esclarecer e mostrar ao povo brasileiro a imparcialidade do Superior Tribunal Castrense, bem como sua coragem e independência naquele período, pondo fim aos estigmas a ele lançados injustamente.

“Os processos judiciais de competência da Presidência foram trabalhados com a máxima celeridade e efetividade possível.”

Tal como colocado, apesar de inexistir sigilo a estas informações, estando os arquivos da JMU abertos ao público em geral – basta um mero requerimento –, a transparência e o largo espectro da informatização ampliará o acesso à informação e ao conhecimento, mormente pelo fato de os depoimentos colhidos judicialmente tenderem a ter maior credibilidade por se encontrarem imunes aos lapsos de memórias e ao distanciamento temporal. JC – Outra de suas propostas seria lutar pela inclusão de um representante da Justiça Militar da União no

Conselho Nacional de Justiça. Quais ações foram feitas neste sentido? MEG – O Conselho Nacional de Justiça, por definição e finalidade, tem o propósito de espelhar a representatividade dos órgãos judiciais e os anseios da Justiça como um todo. Portanto, natural incluir os representantes tanto da Jurisdição Militar quanto da Eleitoral naquele órgão de controle. Para a Justiça Castrense, tal assento é de suma importância tendo em vista que, não obstante seus dois séculos de existência, a Justiça Militar da União ainda é extremamente desconhecida, seja pela sociedade, seja pelos próprios integrantes do Poder Judiciário e operadores do Direito. Vale mencionar que o tema foi debatido no Plenário do STM, sendo unânime a indicação de que o representante da Corte deveria ser um ministro civil e togado. Nesse norte, durante minha gestão, uma das ações que intentei foi elaborar uma sugestão de Proposta de Emenda Constitucional, apresentada ao senador Romero Jucá que, de pronto, comprometeu-se com a causa, sendo o autor da PEC no 21/2014 junto ao Senado Federal. A proposta obteve excelente receptividade por parte do relator, senador Inácio Arruda, a ela favorável, e, colocada em pauta na Comissão de Constituição e Justiça daquela Casa, houve pedido de vista, que interrompeu sua apreciação. Atualmente, com o início da legislatura, para dar-lhe prosseguimento, aguarda-se a eleição dos novos membros da CCJ e de seu Presidente, bem como a designação de relator. JC – Além dessas questões específicas, quais outros desafios foram enfrentados durante sua gestão e quais as principais conquistas? MEG – O principal objetivo da Justiça é promover a paz social, contribuir para a manutenção da ordem e da Justiça & Cidadania | Março 2015


Foto: Odair Amancio

democracia. Nesse sentido, os processos judiciais de competência da Presidência foram trabalhados com a máxima celeridade e efetividade possível, com a correta aplicação da Sistemática da Repercussão Geral. Alterei o Regimento Interno do STM para que, a exemplo do Supremo Tribunal Federal (STF), pudesse julgar os processos que me foram distribuídos antes de assumir a Presidência, de forma a não deixar qualquer passivo, ainda que mínimo, para meus colegas. Na esfera administrativa, foi criada a Assessoria Internacional da Presidência, já existente nos demais tribunais superiores, de suma importância para o diálogo com vários atores estrangeiros, jurisdições e organismos internacionais. Nesse diapasão, ela foi fundamental para a articulação e organização do Encontro da Justiça Militar da União com a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, evento de magnitude ímpar realizado na sede do STM em fevereiro do corrente ano, que debateu temas relativos ao papel das Justiças Militares no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O encontro, que contou com a participação dos Juízes e Comissionados, demonstrou que, ao contrário do erroneamente difundido pelos partidários da extinção da Justiça Militar no Brasil, inexiste aversão pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a esta Justiça desde que respeitados os princípios e as garantias fundamentais dos jurisdicionados. Paralelamente, foi revitalizada a Assessoria Parlamentar, protagonista de uma atuação eficaz junto ao Congresso Nacional, responsável pelo encaminhamento de diversos projetos, tais como a alteração na Lei de Organização da Justiça Militar para o julgamento monocrático de civis pelo Juiz-Auditor; pela aprovação da Lei no 13.096/2015, que trata da gratificação por exercício cumulativo

Ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, presidente do STM

de jurisdição; bem assim pela elaboração de pareceres e realização de audiências com parlamentares para que melhor compreendam o papel da Jurisdição Castrense. Sob outro conspecto, foi dado apoio ao Projeto da Justiça Eletrônica que propiciará, em breve, a implementação de um Sistema Eletrônico de Informação e agilizará o exercício da jurisdição, entre aperfeiçoamentos outros que advirão da Tecnologia da Informação para melhor servir a Instituição e o cidadão. Alfim, por meio da Assessoria de Comunicação Social, implementei o projeto “Diálogos Abertos” visando a maior interação com a sociedade civil; conclui o lançamento do novo

Portal da JMU, um esforço conjunto de três Presidências, e incentivei o aprimoramento de coberturas jornalísticas por meio das mídias sociais, entre elas o canal do STM no YouTube, medidas que vêm instigando o debate e incentivando a produção de artigos acadêmicos e doutrinários, fundamentais para dar visibilidade a esse ramo especializado do Direito. JC – Em 2010, a senhora assumiu a presidência do Grupo Especial de Estudos, com o objetivo de sugerir alterações nos Códigos de Processo Penal Militar e Penal Militar. Como se deu o trabalho deste grupo? MEG – O Grupo Especial de Estudos, com o objetivo de sugerir alterações

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no Código Penal Militar, concluiu seus trabalhos em abril de 2013, após vinte e três longas e profícuas reuniões, nas quais foram observadas as normas para elaboração, redação e alteração de leis e atos normativos constantes da Lei Complementar no 95, de 26 de fevereiro de 1998, e do Decreto no 4.176, de 28 de março de 2002. Precederam às discussões do grupo uma consulta pública disponibilizada no sítio do STM, que se estendeu por um período de dois meses, sendo as propostas enviadas por meio eletrônico devidamente compiladas e sistematizadas junto com as sugestões encaminhadas pelos órgãos oficiais consultados. O foco da Comissão – de composição heterogênea e democrática e que contou com a participação de ministros do STM, magistrados das Justiças Militares Estaduais, Defensores Públicos da União, Procuradores do Ministério Público Militar, juristas e professores –, foi a harmonização da legislação penal militar vigente com a Constituição de 1988, mediante a compatibilização das penas em consonância com os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal especializado, bem assim a tipificação objetiva dos crimes militares, evitando a formulação de normas penais em branco. Posteriormente, constituiu-se novo grupo para debater e propor a reforma do Código de Processo Penal Militar, presidido pelo Ministro Artur Vidigal de Oliveira. Ciente da necessidade da atualização normativa, durante meu mandato na Presidência do Tribunal, no ano de 2014, em audiência com o Presidente da Câmara dos Deputados, solicitei e foi autorizada a criação de um Grupo de Trabalho, formado por dez parlamentares, um representante do STM, um de cada Tribunal de Justiça Militar (TJM) estadual e um do Ministério Público Militar (MPM) para discutir e sugerir alterações normativas no âmbito legislativo. 16

“Com isso, quero dizer que as ações praticadas pelos militares e suas consequências no âmbito da caserna, no interior da corporação, são de difícil valoração para um juiz ordinário que a desconhece, porquanto a própria vida é secundária para aquele que veste a farda. Valores éticos especialíssimos norteiam, pois, o espírito do soldado.”

JC – Existe uma corrente do Judiciário que defende a extinção do STM. Qual sua opinião sobre isso? MEG – Eu respondo afirmando que todo oficial das Forças Armadas busca construir seu perfil e pautar sua autoridade à luz da legislação vigente. São cidadãos vocacionados, que têm como primeiro ato de ofício o juramento de lealdade e sacrifício à Pátria. Com isso, quero dizer que as ações praticadas pelos militares e suas consequências no âmbito da caserna, no interior da corporação, são de difícil valoração para um juiz ordinário que a desconhece, porquanto a própria vida é secundária para aquele que veste a farda. Valores éticos especialíssimos norteiam, pois, o espírito do soldado. Daí porque aqueles que defendem a extinção das Justiças Militares, federal e estaduais, não têm consciência das nefastas consequências que dela adviriam. Na Justiça Penal Castrense, os processos são julgados em curtíssimo espaço de tempo, elemento fundamental para a preservação da ordem dentro dos quartéis. Homens armados, detentores do monopólio da violência legítima, têm de ser controlados com rigor porquanto a quebra da cadeia

de comando ameaça a estabilidade do regime político. Estou a falar na preservação do Estado Democrático de Direito, uma vez que a contenção de levantes ou insurgências de cidadãos armados pelo Estado é fundamental para estabilidade e a paz social. A estrutura verticalizada das Forças Armadas faz exsurgir os primados da hierarquia e disciplina como meta-valores. A função militar se diferencia das demais pela missão que encabeça, daí a subordinação ganhar destaque por preservar a eficiência e a obediência no seio da tropa. É nesse cenário que a Justiça Militar, seja Federal ou Estadual, ganha preponderância e prevalência na garantia dos pilares fundantes do próprio Poder Judiciário. Imperioso a pronta, ativa e ágil estrutura judiciária, que deve ser integrada por magistrados devidamente preparados para apurar os delitos e punir os culpados com celeridade e expertise. Tanto é assim que na Oficina de Trabalho denominada “A Justiça Militar – Perspectivas e Transformações”, realizada pelo CNJ em 2014, por consenso, concluiu-se sobre a imprescindibilidade da permanência das Justiças Especializadas Justiça & Cidadania | Março 2015


(Militar Federal e Estadual) e pela necessidade da ampliação de sua competência, para adequar-se aos ajustes de ordem estrutural e à modernização da Judicatura. Por outro lado, não se olvide que as Forças Armadas são extremamente demandadas nos Estados Democráticos. Em tempos pretéritos a História do Brasil foi marcada por mudanças, muitas delas implementadas pelos militares ou com o seu apoio. Rememoro a independência e a razão pela qual até hoje a Bahia comemora o dia Dois de Julho, quando foram derrotados os portugueses lá sediados, por volta de 1825. Relembro, outrossim, a manutenção da unidade territorial pátria durante o período regencial e o segundo reinado, bem como a vitória na Guerra da Tríplice Aliança e, também, a instituição da República e, posteriormente, da República Nova, quando os militares insatisfeitos com a política café-com-leite iniciaram movimentos como o Tenentismo, que culminaram com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder. Pontuo ter a Intentona Comunista saído do interior dos quartéis, sob o protagonismo de Luís Carlos Prestes. E, contemporaneamente, saliento a participação do Exército, Marinha e Aeronáutica na pacificação das comunidades do Rio de Janeiro, sua atuação em missões de paz no exterior; sua defesa nas fronteiras terrestres, marítimas e aéreas brasileiras em um mundo cada vez mais intimidado pelo narcotráfico e pelos crimes transnacionais; seu papel humanitário junto a populações tradicionais, indígenas e ribeirinhas no norte do País; sua proteção ao meio ambiente, entre atribuições outras. O fato é que, hodiernamente, são elas responsáveis por missões as mais diversificadas, que vão ao encontro do ideário de legitimidade de um Brasil democrático. Portanto, incoerentes, para dizer o mínimo, proposições que propugnam a extinção das justiças castrenses,

desprovidas que são de argumentação técnico-jurídica e de fundamentos plausíveis, marcadas, tão somente, por uma forte carga de preconceito. JC – Ainda neste aspecto, há quem argumente, na defesa da extinção do STM, que a Justiça é Igual para todos; e que não haveria necessidade de uma Corte específica para julgamentos de militares. Mas é claro que as regras que regem um julgamento comum e um militar são diferentes; até porque os militares seguem seu próprio código de conduta. A senhora poderia apontar as principais diferenças entre ambos? MEG – Inicialmente, ressalto não ter a Justiça Militar Federal como objetivo julgar os militares, e, sim, os delitos militares definidos em lei, independentemente de seu autor, civil ou militar. Para os leigos, existe uma visão equivocada de que esta Justiça Especializada seria constituída por militares, para julgar militares. É o momento de desmistificar tal entendimento. A verdadeira finalidade da Jurisdição castrense é proteger as instituições militares. Daí o critério adotado pela Lex Magna de 1988 não ter sido o ratione personae. Isso porque, salvo o ratione legis, nenhum outro definidor de competência seria hábil a contemplar, isoladamente, todas as hipóteses em que a vulneração ao bem jurídico afeta direta ou indiretamente as Forças Armadas. Ocorre que, devido à importância dos bens jurídicos tutelados pelo Código Penal Militar, algumas regras diferenciam-se das normas contidas no Código de Ritos comum e em sua legislação complementar. Assim, os condenados na Justiça castrense não se beneficiam de diversos institutos previstos na legislação ordinária, a exemplo da substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de direito ou das medidas despenalizadoras inseridas pela Lei no 9.099/1995.

Certo é que, do militar, é exigida maior disciplina, sendo penalizadas diversas condutas que, no meio civil, passariam de meros fatos corriqueiros, sem repercussões no âmbito penal, como as hipóteses de dormir em serviço, abandonar o local de trabalho ou embriagar-se em serviço. A razão é que ele desempenha papel importantíssimo para a Nação e deve estar sempre pronto para responder ao chamamento de seus superiores, seja na defesa do quartel, seja na da Pátria. Nesse sentido, o art. 28 do Estatuto dos Militares estabelece diversas regras que “impõem, a cada um dos integrantes das Forças Armadas, conduta moral e profissional irrepreensíveis, com a observância dos [...] preceitos de ética militar”. E por nortearem-se sob o abrigo de tais preceitos, os integrantes das Forças Armadas devem respeitar as leis, garantidores que são da Ordem e do Progresso, síntese ideário insculpido na bandeira nacional. Engana-se, assim, aquele que crê ser a Justiça militar uma justiça corporativa. Ao revés, o rigor é muito maior e nela não se aplicam os princípios da bagatela ou insignificância, tampouco as medidas despenalizadoras da legislação criminal comum. Suas penas são mais severas que as previstas para delitos idênticos no rito ordinário, tudo em prol da manutenção da hierarquia e disciplina e do respeito às instituições castrenses – no caso de crimes cometidos por cidadãos civis –, fatores essenciais para a própria sobrevivência e coesão do Estado Brasileiro. Eu concluo dizendo que o princípio da isonomia, tão saudável à concretização do devido processo legal, estatui deverem os desiguais serem tratados desigualmente na medida de suas desigualdades. O primado da Justiça funda-se na sua estrita observância, sendo este o mister das Jurisdições Militares.

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JC – Quais foram os julgamentos mais relevantes ou polêmicos dos quais participou desde que passou a ocupar o cargo de ministra do STM? MEG – Os mais polêmicos, certamente, foram aqueles envolvendo o direito dos cidadãos homossexuais. Muito antes de o STF ter se manifestado a favor da união homoafetiva, assegurei, em decisão administrativa, o direito dos servidores da Justiça Militar da União de incluir seus companheiros e/ou companheiras, no plano de saúde como beneficiários. No seio das Forças Armadas, debater a orientação sexual dos seus integrantes consistia em um verdadeiro tabu, porém, hoje, a temática é recorrente, a despeito de encontrar resistências. Defendi, ainda, em diferente julgado, a aplicação do Pacto de San Jose da Costa Rica com vistas à incidência do art. 366 do Código de Processo Penal (CPP) no foro castrense, a fim de propiciar a suspensão do processo penal quando declarada a revelia do réu, após o chamamento judicial por citação editalícia. Dispõe o referido Tratado, que possui status de norma supralegal, a necessidade de comunicação prévia e pormenorizada ao acusado de imputação contra ele formulada, de modo a propiciar concretude ao princípio constitucional da ampla defesa. Se sua ciência é meramente ficta, como em princípio ocorre na citação por edital, não há, efetivamente, a possibilidade de aplicação desse postulado. Para além, suscitei a revogação pela Constituição Federal dos arts. 9o, § 1o, e 12, da Lei no 5.836, de 5 de dezembro de 1972, dispositivos que preveem o julgamento secreto durante o procedimento do Conselho de Justificação. Na mesma linha, votei pela revogação do art. 305 do Código de Processo Penal Militar (CPPM) que dispõe poder o silêncio ser interpretado em prejuízo do réu, diante de sua incompatibilidade com os ditames constitucionais. 18

Em outro feito, defendi a laicidade do Estado, em um processo no qual um Capelão da Aeronáutica foi denunciado por peculato por se apropriar dos óbolos e dízimos ofertados pelos fiéis e destinados à Igreja. Naquele caso, apontei a incompetência da Justiça Militar da União por não se tratar de bens sob administração militar. JC – Quando de sua posse como ministra do STM, a senhora declarou estar animada com os desafios de realizar seu trabalho em um ambiente totalmente masculino. Como tem sido essa convivência, quais as experiências mais relevantes que poderia citar? MEG – Tenho consciência de que meu trabalho ao longo desse tempo assinala não só um marco histórico na existência da Corte Militar, mas, sobretudo, repercute na trajetória das mulheres brasileiras, cuja determinação, talento, esforço e valor têm contribuído, de modo decisivo, para tornar o Brasil um país mais justo, mais consciente e mais aberto a todos, sem exclusões, discriminações ou intolerâncias. Mesmo após oito anos integrando o STM, estou ciente de ser atora e espectadora de um momento de transformações, que assume o elevado sentido de verdadeiro rito de passagem. Mais, vejo que, paulatinamente, o Estado Brasileiro vem desconstruindo posturas estigmatizantes, ao tempo em que consagra políticas afirmativas em favor da igualdade de gênero. De minha parte, esforço-me em defender e dar voz aos excluídos, postulando a mais ampla e absoluta isonomia entre seres humanos. Sendo a primeira mulher a integrar uma Corte predominantemente masculina, tenho a oportunidade de mostrar a sociedade a importância da inclusão, do respeito à alteridade e da relevância da tolerância.

JC – A senhora é a primeira mulher a exercer a Presidência do STM, assim como foi a primeira mulher a integrar a composição desta Corte. Quais são os reflexos da presença feminina no STM de 2007 para cá? MEG – Sinto-me honrada em ser a primeira mulher a tomar assento e a presidir o STM, a mais antiga Corte de Justiça do Brasil, que completou, em 2008, dois séculos de existência. É uma conquista de muitos anos de luta, que não é só minha, mas de todas as brasileiras, cada qual no seu universo, em uma sociedade ainda sexista e discriminatória. Estou convicta de que a participação feminina no Poder Judiciário e no STM, em especial, tem contribuído sobremaneira para ampliar horizontes e enxergar as celeumas sob um ângulo antes inexplorado, combatendo a rigidez de pensamento, a exclusão das minorias e o mero tecnicismo ou formalismo jurídico, com vistas à persecução da Justiça substancial. De Bertha Lutz a Maria da Penha, árduas foram e permanecem sendo as batalhas pela igualação de gênero. As mulheres, hoje, exercem posições de destaque e de liderança devido ao seu esforço em aprimorar-se intelectualmente, à sua inteligência emocional e à sua atitude visionária, desprovida de preconceitos, uma vez que ela própria foi, e lamentavelmente ainda é, vítima de exclusões. Agregue-se, estarem os valores éticos e morais, comprovadamente, entre os fatores que as colocam como melhores administradoras públicas e aplicadoras do Direito, com baixos índices de corrupção. Sem dúvida o empoderamento feminino aperfeiçoa a República. A ampliação da participação da mulher nos espaços públicos e privados é condição para o aperfeiçoamento da cidadania, afinal, como disse em meu discurso de posse, uma democracia sem mulheres é uma democracia incompleta. Justiça & Cidadania | Março 2015


O papel da mulher no Poder Judiciário e no cenário brasileiro Laurita Hilário Vaz

ais uma vez fui convidada pelos Diretores dessa prestigiada Revista para escrever breve nota acerca da importância da mulher no Judiciário Brasileiro, convite esse que sempre me deixa honrada. Encaro a tarefa cônscia da enorme responsabilidade que é a de transmitir para as novas gerações um pouco da intrépida trajetória das mulheres no mercado de trabalho. Hoje os jovens veem mulheres em postos de comando de setores públicos e privados sem muita estranheza e até com certo grau de naturalidade. Contudo, os mais velhos – e não tão velhos – certamente sabem que nem sempre foi assim, porque vivenciaram essa verdadeira revolução social. Saltando a fase da revolução industrial do século XVIII e indo direto para a história mundial recente, notadamente durante a Segunda Grande Guerra, vimos mulheres deixarem seus lares e afazeres domésticos para integrarem-se à força de trabalho, invadindo ambientes predominantemente masculinos. De lá para cá, cada vez mais, a mulher foi modificando usos e costumes em diversas searas profissionais. A imagem de fragilidade e dependência foi se amoldando à nova realidade, forjada com muito sacrifício, determinação e empenho, vencendo preconceitos e derrubando tabus. A mulher, nas últimas décadas, abriu espaços e vem ocupando postos de relevo no Poder Judiciário, justamente o mais conservador entre os Poderes da República. A saudosa ministra Cnéa Cimini Moreira de Oliveira, a quem

Foto: SCO/STJ

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Vice-Presidente do Superior Tribunal de Justiça

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rendemos homenagens, foi a primeira mulher a ocupar o cargo em um Tribunal Superior (TST) em dezembro de 1990. Em junho de 1999, a eminente ministra Eliana Calmon, magistrada de carreira da Justiça Federal, foi a primeira a ocupar um assento no Superior Tribunal de Justiça (STJ), dez anos depois de inaugurado. Depois dela, outras vieram. Atualmente, somos apenas seis dentre 33 ministros. Em dezembro de 2000, toma posse a primeira mulher a integrar a mais alta Corte do P aís: a ministra Ellen Gracie Northfleet, que ainda exerceu a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) por dois anos, antes de encerrar sua ilustre trajetória no Judiciário brasileiro em 2011. No cenário jurídico internacional, merece especial destaque a brilhante carreira de Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, magistrada brasileira que integrou o Tribunal Penal Internacional em março de 2003, com mandato de nove anos. Diferentemente do que ocorre nas Cortes Superiores, a proporção de mulheres na Justiça de primeiro grau reflete melhor o espaço que tem sido conquistado por candidatas que, cada vez mais, são aprovadas nos concursos públicos para ingresso na magistratura e também no Ministério Público, dividindo em números quase paritários os cargos de juízes e de promotores de justiça. Todavia, quando se trata das instâncias superiores e de cargos providos por indicação, o que se tem é diminuta participação feminina. Esses dados não traduzem falta de competência ou merecimento por parte das mulheres, mas, sim, a existência de dificuldades para transitar em espaços políticos historicamente ocupados por homens. Quando se chega ao ápice da carreira jurídica, a disputa não depende mais de um concurso público de provas e títulos, mas de abertura política e de reconhecimento dos próprios pares, na maioria homens, que, muitas vezes, dificultam o acesso das mulheres. Para as novas gerações, hoje, não é concebível sequer cogitar da exclusão da mulher do cenário social e político da nação. Contudo, é bom lembrar que o simples ato de votar é um direito fundamental que só foi conquistado, e com grande resistência, em 1934, quando tudo que a sociedade esperava da mulher brasileira era a total dedicação às tarefas domésticas e a criação da prole. O desate das amarras que a prendiam, submissa, junto aos deveres do lar passou, de forma crescente nos últimos anos, pela elevação do grau de escolaridade. Sem embargo, ainda se espera da mulher, de forma ostensiva ou disfarçada, a mesma dedicação aos afazeres domésticos de outrora. As mulheres, nesse contexto, têm de se desdobrar para cumprir dupla jornada: uma no exigente mercado de trabalho, onde sempre precisam renovar a prova de sua 20

capacidade, e outra em casa. Alguns homens vivem certa “crise de identidade”: não detêm mais a exclusividade do papel de provedor e, ainda, se veem chamados a colaborar em atividades domésticas que antes não eram da sua incumbência. Essa reacomodação de papéis, creio, ainda vai perdurar por mais algumas décadas. Enquanto isso, nota-se certo desconforto entre homens e mulheres, que não sabem, com certeza, se estão cumprindo bem o seu papel nos grupos sociais aos quais pertencem, o que, frequentemente, gera uma série de angústias e frustrações. A despeito das barreiras existentes e do longo caminho que ainda há a ser desbravado, temos o que comemorar. É inegável o progresso das mulheres na sociedade brasileira, galgando importantes cargos nos altos escalões do governo federal e dos estados, e na iniciativa privada. No Congresso Nacional, ainda é tímida a participação das mulheres, que não chegam a 15% do número de parlamentares: são 12 senadoras e 45 deputadas federais na atual legislatura. Na cúpula do Poder Judiciário, um dos mais apegados à tradição e ao conservadorismo, as mulheres vêm rompendo antigas barreiras: há duas magistradas, entre 11, no STF; no STJ, somos seis em 33; no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), duas em sete; no TST, cinco em 27; e no Superior Tribunal Militar (STM), uma, pela primeira vez, em 15: a ministra Maria Elizabeth Rocha, que ocupa hoje a presidência. Há ainda bravas mulheres nas forças armadas e forças auxiliares, no comando de aeronaves comerciais, na direção de grandes empresas e também na construção civil, mercado antes exclusivo dos homens. Conquistas importantes para a mulher brasileira foram concretizadas também no ordenamento jurídico, valendo ressaltar a Constituição Federal de 1988, que enuncia a igualdade de tratamento, sem distinção de sexo; o Código Civil Brasileiro de 2002, que reafirma o princípio da igualdade nas relações conjugais em vários de seus dispositivos, adotando a nova concepção de família dada pela Constituição Federal, fundada nos princípios igualitários e democráticos, em que se preconiza a direção conjunta da sociedade conjugal e administração dos bens comuns, além da igualdade no exercício do poder familiar; a Lei no 11.340/2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, é mais importante marco no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Tudo isso advém de longo processo sociológico que, pela própria natureza, não mostra resultados do dia para a noite, mas que precisa ser lembrado e combatido de forma contínua, para que as conquistas reflitam nesta e nas futuras gerações. Esse progresso, infelizmente, ainda não é a realidade de muitas mulheres, mormente quando se olha para

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Foto: SCO/STJ

Ministra Laurita Hilário Vaz

as classes sociais menos favorecidas, as quais ainda são vítimas de maus-tratos, violências, opressão e toda sorte de discriminações. Para essas o tempo parece correr bem mais devagar. Por isso, ao mesmo tempo em que fico feliz pelos avanços alcançados, entristeço-me por aquelas que ainda não vivem a plenitude da liberdade e igualdade de oportunidades. Essas mulheres desprotegidas, com baixo grau de instrução, sem trabalho digno e sem horizontes necessitam da ajuda das autoridades constituídas, da ajuda da comunidade, da nossa ajuda para, juntos, abrirmos trilhas, buscarmos veredas e encontrarmos soluções. No dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, na cidade norte-americana de Nova Iorque, fizeram

grande mobilização para reinvindicar melhores condições de trabalho e equiparação de salários com os homens. A manifestação foi reprimida com violência extrema. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas. Em 1910, durante uma conferência na Dinamarca, decidiu-se que, por isso, o 8 de março passaria a ser o Dia Internacional da Mulher, em homenagem àquelas corajosas mulheres que deram suas vidas em defesa de seus direitos. Em 1975, um decreto da ONU oficializou a data comemorativa. Nesta data, em que se comemoram a grandeza e a importância da mulher, espera-se que essas incansáveis lutadoras, que são o esteio do lar, a estrutura da família, possam viver plenamente sua cidadania e ser mais felizes.

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Violência doméstica e familiar contra a mulher Maria Regina Nova

Desembargadora do TJRJ Presidente da Comissão Judiciária de Articulação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar do Estado do Rio de Janeiro

Foto: TJRJ

Uma realidade contrária à filosofia do líder pacifista indiano Mahatma Gandhi: “Existem luzes de cautela chamadas Família”.

A

violência praticada contra a mulher é um dos temas mais complexos e indignos da história dos conflitos humanos. A arma, nesses casos, é aquela que, de acordo com o paradigma cultural da sociedade, deveria protegê-la. Esse contrassenso data de séculos, desde o princípio da humanidade, tendose, inclusive, o estupro como elemento de combate, sobressaindo a sua prática nos acertos de contas das diferenças étnicas, e em todas as guerras, até as atuais batalhas e atos ditatoriais. Passando-se à violência praticada no âmbito familiar, deparamo-nos com a ausência de reflexão e prática da filosofia do admirável líder pacifista indiano Mahatma Gandhi, “Existem luzes de cautela chamadas Família”, pois, nesses casos, é dela que a mulher precisa ser protegida, acautelada. Muito se debate a respeito dessa lamentável realidade, distinguindo-se várias teorias, mas nenhuma ostentando razoabilidade a justificar o ato e permitir que essa situação persista por tão longos anos, durante os quais, paralelamente, a humanidade vem se confrontando com expressiva evolução dos usos e costumes. Partindo-se do princípio de que se trata de uma questão cultural, constatase que o desenvolvimento revolucionário que vivenciamos não foi suficiente para combatê-la. Se seguirmos pelo lado socioeconômico, também encontramos um contraponto, pois já foi constatado que a agressão à mulher está presente em todas as classes, indistintamente. Não se pode também atribuir o comportamento agressivo a um exemplo familiar. Os valores repassados por nossa unidade básica são, sem dúvida, importantíssimos, mas não são definitivamente determinantes para as atitudes praticadas pelos homens, pois que sofrem a influência de 22

fatores externos que podem vir a alterá-los, especialmente com o avanço galopante da tecnologia, que permite ao indivíduo o acesso a todo tipo de informação, positivas ou não, o que leva a uma ressignificação e percepção do mundo. A Lei Maria da Penha, verdadeiro estatuto de proteção à mulher (Lei no 11.340/2006), foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro como divisor de águas em relação ao tema, um grito e um alento contra as barbáries cometidas. Essa regulamentação deu início ao rompimento do silêncio, à tipificação do ato com a punição específica, despertando a sociedade para as raízes dessa conduta criminosa. Não há dúvida de que se trata de um fator cultural, e, por isso, é preciso se ter em mente que, para erradicar esse conceito desvirtuado, objetivo maior da Lei Maria da Penha, necessário se mostra um trabalho intenso e efetivo, não só com os agressores, mas com as vítimas e, em especial, com a infância e a juventude, de modo a se alcançar uma mudança de paradigmas.

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E, nesse aspecto, destaca-se como relevante o disposto no artigo 45, parágrafo único, da referida Lei, segundo o qual, na sentença condenatória, deve constar a obrigação do agressor de frequentar o “programa de recuperação e reeducação”. A participação nesses grupos tem apresentado resultados práticos, constatando-se a alteração comportamental em significativo número de agressores, com informação de que a maioria não tem reincidido. Para isso, necessário o aparelhamento dos Juizados com profissionais da área da assistência social e psicológica em número adequado, de modo que todos possam dar efetividade aos programas de reeducação do homem e, por outro lado, retirar das mulheres o sentimento de submissão, arraigado em muitas pela ausência de autoestima, pela vinculação econômica, ou por fatores psicológicos. Essa tarefa vem sendo priorizada efetivamente pela Desembargadora Leila Mariano, primeira mulher a presidir o nosso Tribunal de Justiça. No aspecto econômico, pontuo o inciso V do artigo 22 do citado preceito, que determina, entre outras medidas protetivas de urgência, a prestação de alimentos provisórios à vítima. Em paralelo, mostra-se essencial a oferta de instrumentos para que elas possam se profissionalizar e adquirir independência financeira. Com a Comissão Judiciária de Articulação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar do Estado do Rio de Janeiro (Cejem), que presidi no último biênio, e da qual me desliguei no final deste mês de janeiro, estabelecemos um convênio com a ONG “Entre Amigas”, presidida pela jornalista Márcia Peltier, que proporciona uma gama de cursos profissionalizantes de alta qualidade. Logramos êxito, também, em obter junto à Fetranspor a gratuidade das passagens para as mulheres inscritas na referida Organização. Nossa Comissão solicitou ao departamento especiali­ zado do Tribunal a confecção de cartilhas sobre a Lei Maria da Penha com características didáticas próprias para as duas primeiras fases da vida, para serem distribuídas nos estabelecimentos escolares do estado do Rio de Janeiro, de modo que o menor, que já esteja cursando o período da alfabetização, e o adolescente, possam compreender com facilidade o seu significado. A prática continuada dessa tarefa por todas as instituições interligadas é fundamental para que se possa dar cumprimento à Lei Maria da Penha, que traz em sua essência o intuito de conscientização, de desconstrução de conceitos criados a partir de um arcabouço machista. Definitivamente o que se visa é obter uma mudança de comportamento, de definições preestabelecidas de maneira distorcida. Vários debates, jornadas e atos públicos são realizados, adotando como uma das principais ações a de divulgar ao máximo os direitos da mulher vítima de agressão e as medidas protetivas que podem ser tomadas a seu favor. A distribuição de

Cartilhas da Lei Maria da Penha nos referidos eventos tem o objetivo de informar os locais onde devem ser efetivadas as denúncias, ressaltando a possibilidade do imediato acolhimento das vítimas, tanto nas Casas Abrigo, como nas dependências do nosso Tribunal de Justiça, especificamente na Central de Abrigamento Provisório - (Cejuvida) - que funciona em sistema de plantão, criada no ano de 2010 pela Desembargadora Cristina Gaulia, que, brilhantemente, presidia a Coordenadoria da Violência Doméstica na época. Essa contínua e abrangente divulgação é que vem tendo como resultado o que a mídia propaga como “crescimento da violência”, mas que representa, na verdade, o aumento das denúncias, resultado do encorajamento das vítimas, cientes dos seus direitos e da proteção que lhes é conferida. Sublinho, também, como fato gerador do avanço na distribuição dessas demandas, a parceria firmada com a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, então chefiada pela Delegada Martha Rocha, que, mostrando um compromisso singular com a causa, determinou a realização de cursos continuados de reciclagem para os servidores em exercício nas Delegacias, comuns ou nas Especializadas (DEAMS), objetivando tornar esse contato, o primeiro das vítimas em busca de apoio após a violência sofrida, mais humanizado e absolutamente respeitoso, de maneira que elas se sintam protegidas desde aquele momento, quando chegam já bastante fragilizadas pelo ocorrido. A referida parceria não só oportunizou a integração entre os sistemas de informática das Delegacias de Atendimento às Mulheres e dos Juizados de Violência Doméstica, como também admitiu alterações significativas nos Registros de Ocorrências, que passaram a ser enviados eletronicamente para os Juizados, já contendo informações mais abrangentes sobre o fato, facilitando ao magistrado concluir em curto espaço de tempo sobre a medida protetiva mais adequada ao caso e aplicá-la de imediato. Nossos Juizados são orientados a prestar a atividade jurisdicional em obediência rigorosa às normas da Lei, de modo que nenhum tipo de preconceito influencie na decisão, seja social, econômico, financeiro ou cultural. Enfim, essas são algumas das medidas entre muitas outras que têm sido adotadas por todos aqueles que são comprometidos com essa causa, mas, sem dúvida, muito ainda há a fazer. No entanto, como escreveu Mario Quintana, “Podemos prometer atos, mas não podemos prometer sentimentos”. O trabalho contra a violência doméstica é árduo e depende não só das pessoas envolvidas profissionalmente com a questão, mas de toda a sociedade. Infelizmente, sabemos, ain­da levará outro longo tempo para alcançarmos o objetivo maior que, repito, é o de erradicá-la, finalidade esta que não pode ser tida como um pensamento utópico, pois representa­ ria o fim de uma esperança de que todas as mulheres tenham uma “família que lhes acenda sempre a luz da cautela”.

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D om Quixote, por Ada Caperuto Foto: Fábio Seixo

Andréa Maciel Pachá, Juíza do TJRJ

Assim na Justiça como na literatura O debate sobre Justiça a partir da perspectiva da cultura – exercício tão necessário – está ganhando espaço nobre com a criação do Fórum de Direito, Literatura e Cinema, pela Emerj. A iniciativa, que contribui para aproximar a Justiça e a população, será reforçada com a adaptação do livro “A vida não é justa”, de autoria da juíza Andréa Maciel Pachá, para o formato de série, pela Rede Globo.

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ominar e saber se expressar muito bem no idioma pátrio deve ser um dos atributos de todos aqueles que sonham conquistar status respeitável nas carreiras do Direito. Entre esse grupo há aqueles que se destacam, vão além e dominam com grande competência a arte da escrita. E, nesse passo, há quem se destaque ainda mais ao unir as 24

duas profissões: a de magistrado e a de escritor. Estamos falando da Ouvidora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a juíza Andréa Maciel Pachá. Autora de dois livros de crônicas, ela se prepara para avançar ainda mais em sua trajetória profissional, na qual literatura e Direito se entrelaçam e se completam, entre doses de ficção e realidade.

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No dia a dia do Tribunal, sua carreira primeira, Andréa passou a integrar o Fórum de Direito, Literatura e Cinema, criado pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), ao lado do juiz André Nicolitt, do advogado Marcelo Cerqueira, do cineasta Cacá Diegues e do desembargador Sérgio Verani, que foi diretor da Emerj nos dois últimos anos. “Nesse período, verificamos que havia e há grande interesse nos fóruns que reúnem outras áreas de conhecimento. Em algumas conversas, imaginamos que seria extremamente interessante buscar diálogo permanente entre o Direito, a Literatura e o Cinema. São ricos os debates que aprofundam o conhecimento da Justiça, do Direito e da Ética e que podem ser pensados a partir da ficção”, explica a magistrada. Andréa lembra que grandes referências humanas, muitas vezes, nascem da literatura e do cinema. “Veio do desembargador Verani a ideia de criar esse espaço e o principal objetivo é reunir saberes que fazem parte da nossa formação humana. A fragmentação do conhecimento não tem sido eficiente para nos ajudar a enfrentar as questões da contemporaneidade e os desafios que se multiplicam nos conflitos em forma de processos”, acrescenta. Com programação a ser anunciada em breve, o Fórum realizará cinco encontros anuais, que reunirão não apenas magistrados, mas toda e qualquer pessoa interessada que fizer sua inscrição pelo site da Emerj. “A partir da exibição de filmes e da indicação de livros, autores, cineastas, magistrados e advogados debaterão os conflitos e as pautas que se inserem nas obras, ampliando, ainda o conhecimento entre essas áreas tão distintas e tão afins”, anuncia a juíza do TJRJ. Ainda de acordo com ela, a pretensão, além de aprimorar a formação humana dos magistrados, é criar um ambiente de troca de experiências e saberes com outras áreas de conhecimento. “A correria do dia a dia, o excesso de trabalho e de compromissos têm nos deixado sem tempo para a reflexão. Conhecer mais as outras áreas e nos fazermos permeáveis a olhares externos ao Judiciário vai ao encontro do que se espera da Justiça. A publicação da criação do Fórum foi feita na última semana de janeiro e, a partir de março, começamos, com muita alegria e empolgação. Esperamos a participação de todos”, convida a magistrada. Justiça na telinha Também neste ano, Andréa Pachá avança em sua atividade paralela, a literatura. Seu primeiro livro “A vida não é justa”, lançado em novembro de 2012, teve os direitos adquiridos pela Rede Globo para a produção de uma série televisiva. Embora as informações sobre adaptação, roteiro e data do início das gravações ainda não tenham sido divulgadas pela emissora, a autora informa

que a adaptação será livre e não houve qualquer exigência quanto à fidelidade da obra. “Achei interessante essa experiência porque o meu trabalho foi escrever o livro. Penso que é importante respeitar a liberdade de quem faz as adaptações. É também um trabalho criativo e autoral”, afirma. Publicado pela editora Agir, a obra é inspirada em casos reais vivenciados pela magistrada, que atua há quase vinte anos como juíza em Varas de Família. Pelas páginas do livro desfilam temas como o divórcio, reconciliações, ações de paternidade e guarda de filhos. Um rico acervo de experiências com grande margem para trabalhar as emoções que sempre afloram quando se trata de relacionamentos humanos, sobretudo no âmbito das uniões (e desuniões) afetivas. A magistrada prefere não opinar sobre os atores que gostaria de ver interpretando suas crônicas, assim como não indica quais delas prefere ver nas telas primeiro. “Não estou acompanhando a formação do elenco; penso que esse é um trabalho de quem faz a adaptação. Não tenho preferência por uma ou outra história. Senti necessidade de contar todas elas e foi uma experiência extremamente feliz conseguir transformar em ficção a experiência que tive durante quase duas décadas de magistratura”. Além de “A vida não é justa”, Andréa publicou no final de 2014 a obra “Segredo de Justiça”, também pela Editora Agir. Ela conta que foi motivada a escrevê-los pela necessidade de compartilhar a rica experiência humana que vivencia. “De alguma forma, a publicação das histórias e a chegada do livro a muitos leitores que não são da área jurídica acabaram por transformar a imagem equivocada que se tem de um juiz e do exercício da magistratura. Diariamente, recebo mensagens e e-mails revelando a surpresa positiva com o cotidiano forense. A proximidade com as demandas da sociedade nos legitima como Poder e nos traz a certeza de que trabalhamos para solucionar conflitos e tornar possível a vida em grupo”, conclui.

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P rateleira

Sobre fúria, ilusões e memórias As obras de Homero, Cervantes e Machado estão entre as preferidas da escritora carioca Nélida Piñon.

Foto: Salvador.cervantes.es

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A

utora reconhecida e premiada em todo o mundo, Nélida Piñon selecionou três obras que marcaram sua vida e que recomenda como fundamentais para qualquer leitor. A tarefa não foi fácil. Ainda mais quando, na opinião da escritora, vivemos como que imersos em um verdadeiro universo de possibilidades literárias. “A literatura cobre o mundo. Para onde se vire, há um livro imprescindível para a civilização”, declara. O primeiro livro que aponta a consagrada integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL) nos conduz ao século VIII a.C: as narrativas “Ilíada” e “Odisseia”, atribuídas ao poeta Homero. “Considero textos fundacionais para o entendimento da fúria humana”, defende Nélida. Em seus milhares de versos, a Ilíada tem como tema central as aventuras do herói Aquiles durante a Guerra de Troia, que teria ocorrido entre 1300 a.C. e 1200 a.C. Em “Odisseia” está relatado o conturbado retorno do guerreiro Ulisses para sua casa, após a guerra, onde o esperam sua esposa, Penélope, e o filho, Telêmaco. Considerados o marco inicial da literatura narrativa como se conhece hoje, e dois dos maiores poemas épicos da história, as epopeias refletem suas influências também em outras manifestações artísticas e culturais até os dias de hoje. São, ainda, importantes Justiça & Cidadania | Março 2015


retratos sobre como eram a organização social, os costumes e as tradições da Grécia antiga. Para a escritora, outra obra fundamental para qualquer leitor é “Dom Quixote”, do espanhol Miguel de Cervantes. “É uma aventura enriquecida pela ilusão e pelo embuste inocente, em que assumir outra identidade impulsiona o sonho e o ridículo. Uma criação inigualável.” A obra traz a saga do protagonista homônimo, que fora de seu perfeito juízo, decide correr o mundo inspirado pela ficção romanceada sobre heroicos cavaleiros medievais. Ao lado de seu fiel escudeiro, Sancho Pança, o fidalgo castelhano se torna um cavaleiro andante. Expoente da literatura espanhola, a narrativa deve ser vista não apenas pela ótica do choque entre o idealismo e a crueza da realidade, mas pela perspectiva dos conflitos entre os distintos valores nos quais acreditam os dois personagens centrais. A escritora carioca, nascida em Vila Isabel, cita também a obra do conterrâneo Machado de Assis, que considera como “o que o Brasil tem de melhor”, sem citar título algum dos títulos das obras que compõem o importante legado de romances, crônicas, contos, poesias e dramaturgia. Com vasta produção iniciada

na segunda metade do século XIX, o escritor e jornalista talvez seja mais conhecido por duas de suas obras: “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro” – de um total de nove romances e peças teatrais, duzentos contos, cinco coletâneas de poemas e sonetos e mais de seiscentas crônicas. Machado influenciou grandes nomes da nossa literatura e ainda inspira todos aqueles que amam os livros. Fundador e primeiro presidente da ABL, ele é considerado o introdutor do Realismo no Brasil, mas sua obra é de tal forma rica que não se faz marcante apenas por sua impressionante habilidade de lidar com as palavras, mas está também celebrizada pelo testemunho escrito das mudanças políticas no Brasil em seus primeiros anos como República, e por um saboroso retrato da vida cotidiana da capital do País naquele período histórico. Filha de Lino Piñon Muiños, comerciante, e Olívia Cuiñas Piñon, Nélida recebeu estímulos para a leitura desde criança, mas foi também influenciada por constantes viagens em família. Sua obra revela, sobretudo, o amor por duas pátrias: a Galícia, de seu pai e avós maternos, e o Brasil. Formada em Jornalismo pela Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universi-

dade Católica do Rio de Janeiro, atuou em algumas das mais destacadas publicações nacionais e estrangeiras de conteúdo sociocultural. Ainda uma viajante, Nélida participa de congressos, seminários e encontros internacionais, proferindo conferências e palestras, sobre temas ligados à cultura, à literatura e à criação literária. Seu romance de estreia, em 1961, foi “Guia-mapa de Gabriel Arcanjo”, obra que fala sobre pecado, perdão e a relação dos mortais com Deus por meio do diálogo entre a protagonista e seu anjo da guarda. Sua obra está traduzida para países como Alemanha, Itália, Espanha, União Soviética, Estados Unidos da América, Cuba e Nicarágua. Merecedora de diversos prêmios literários, Nélida é também autora de “Madeira feita cruz” (1963); “Tempo das frutas” (1966); “Fundador” (1969); “A casa da paixão” (1972); “Sala de armas” (1973); “Tebas do meu coração” (1974); “A força do destino” (1977); “O calor das coisas” (1989); “A república dos sonhos” (1984); “A doce canção de Caetana” (1987); “O pão de cada dia” (1994); “A roda do vento” (1996); “O cortejo do divino” e “Até amanhã outra vez” (1999), “O presumível coração da América” (2002) e “Vozes do deserto” (2004).

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A erradicação do trabalho infantil e o papel do cidadão Daniela Gusmão de Santa Cruz Scaletsky

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o Brasil, é ilegal o trabalho executado por crianças e adolescentes com menos de 16 anos de idade – salvo na condição de aprendiz, com registro em carteira como tal, a partir dos 14 anos –, no setor formal ou informal ou ainda em atividades ilícitas. É o que estabelece o artigo 60 e seguintes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Referido artigo encontra base constitucional no artigo 227 da Constituição Federal segundo o qual “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. No âmbito internacional, a proibição brasileira do trabalho infantil encontra resguardo na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata da proibição das piores formas de trabalho 28

Presidente da Comissão para Erradicação do Trabalho Infantil do CFOAB Advogada

infantil e da ação imediata para sua eliminação. Esta convenção foi aprovada pela 87a Conferência Geral da OIT, realizada em Genebra em 1999 e internalizada em nosso País por meio do Decreto no 3.597, de 12 de setembro de 2000. Por seu turno, a Convenção 138 da OIT, que dispõe sobre a idade mínima para admissão a emprego, aprovada em 1973, estabelece que a idade mínima para o trabalho não será inferior à idade de conclusão da escolaridade obrigatória ou, em qualquer hipótese, não inferior a 15 anos. Interessa notar que a Convenção 182 utilizou a expressão “as piores formas de trabalho infantil” e, em seu artigo 3o, listou as situações que estariam compreendidas nessa definição, a saber: 1. todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, como venda e tráfico de crianças, sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados; 2. utilização, demanda e oferta de crianças para fins de prostituição,

produção de pornografia ou atuações pornográficas; 3. utilização, recrutamento e oferta de crianças para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de entorpecentes, conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes; 4. trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são suscetíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança. Por óbvio, as três primeiras hipóteses listadas trazem ao leitor a imediata certeza do acerto dessa proibição. Nossa legislação, contudo, foi além. Proibiu todo e qualquer trabalho infantil, como autoriza a “indeterminação” da quarta hipótese acima listada e optou por considerar trabalho infantil aquele realizado por crianças ou adolescentes com idade inferior a 16 anos, a não ser na condição de aprendiz, quando a idade mínima permitida passa a ser de 14 anos. Nossa legislação proíbe expressa­ mente o trabalho noturno antes de 18 anos de idade, bem como o trabalho insa­lubre, perigoso ou penoso. Também é vedado o trabalho que seja prejudicial Justiça & Cidadania | Março 2015


Foto: Francisco Teixeira

à formação do adolescente, ao seu de­ senvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horários e locais que não permitam a frequência à escola. No Brasil, são diversas as instituições públicas e organizações privadas empenhadas em monitorar e fiscalizar a correta aplicação das disposições legais que protegem a criança e o adolescente e são vários os programas governamentais com o objetivo de diminuir a pobreza e eliminar, como prioridade, o trabalho infantil. Esse enfrentamento tem como diretrizes as estratégicas pactuadas pela Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), por meio do Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador (2011 e 2015), que envolve diversas ações governamentais. O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) tem como objetivo, entre outros, a gestão integrada de benefícios e serviços destinados às famílias cujas crianças e adolescentes estejam em iminência ou retirados da situação de trabalho. Por seu turno, o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil iniciou, há alguns anos, o movimento de Caravanas contra o Trabalho Infantil, reavivando o Catavento de cinco pontas coloridas como símbolo da luta pela erradicação do trabalho infantil. Diferentes segmentos governamentais e não governamentais trabalham no enfrentamento do trabalho infantil, entre eles as Superintendências Regionais do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente, Conselhos Tutelares, Conselho Municipal de Assistência Social, Órgãos responsáveis pelas políticas públicas setoriais e demais instituições de controle do Sistema de Garantias de Direito. Em 2014, o Prêmio Nobel da Paz foi concedido a Kailash Sathyarti por seu trabalho no combate ao trabalho

infantil no mundo, em clara evidência de que o assunto continua sendo considerado fundamental para a humanidade, sendo claros os efeitos perversos do trabalho precoce de crianças e adolescentes. Crianças que trabalham ficam expostas a riscos de lesões, deformidades físicas e doenças, muitas vezes superiores às possibilidades de defesa de seus corpos, podem apresentar dificuldades para estabelecer vínculos afetivos em razão das condições de exploração a que estiveram expostas, são afastadas do convívio social com pessoas de sua idade e acabam sofrendo com múltiplas repetências e sendo levadas ao abandono da escola. O combate ao trabalho infantil no Brasil tem alcançado avanços nas últimas duas décadas, sendo certo que o número de crianças e adolescentes que trabalham vem declinando conti-

nuamente. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) divulgada em 2014 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi registrada queda de 12,3% no número de trabalhadores entre 5 e 17 anos de idade entre 2012 e 2013, restando 3,1 milhões de trabalhadores nesta faixa etária, após a saída de 438 mil crianças e adolescentes dessa condição. A maior queda percentual ocorreu entre pessoas de 5 a 9 anos de idade, faixa da qual 24 mil crianças deixaram de trabalhar. A maior queda de contingente, contudo, ocorreu no grupo de 14 a 17 anos de idade, cerca de 362 mil pessoas, sendo 225 mil delas nas regiões Nordeste e Sudeste. Os adolescentes de 14 a 17 anos de idade eram maioria (2,6 milhões) dos empregados menores. Cerca de 486

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mil crianças de 5 a 13 anos de idade estavam em situação de trabalho infantil, 15,5% dos ocupados de 5 a 17 anos de idade. Desse total, 58 mil tinham de 5 a 9 anos de idade, e 428 mil de 10 a 13 anos de idade. A maioria dos casos de trabalho infantil foi encontrada nas regiões Norte e Nordeste, onde chegavam a 24,9% e 21,4% da força de trabalho, respectivamente. O Norte foi a região em que houve maior saída de crianças e adolescentes (de 9,6% para 8,2%), acompanhado do Sul (de 10,4% para 9,1%). O índice da ocupação das pessoas de 5 a 17 anos de idade no Brasil foi 7,4% em 2013, ante 8,4% em 2012. O rendimento mensal domiciliar per capita real dos trabalhadores de 5 a 17 anos de idade foi estimado em R$ 557,00. Ainda assim, dificilmente será alcançada a meta brasileira de erradicação do trabalho infantil em suas piores formas até 2015 e toda e qualquer forma de trabalho infantil até 2020. Com o intuito de entender a dificuldade de erradicar o trabalho infantil, no Brasil e no mundo, e representar a sociedade civil nessa legítima luta, o Conselho Federal da Ordem do Advogados do Brasil criou a Comissão para Erradicação do Trabalho Infantil em outubro de 2014. Nesse curto tempo de trabalho, já foi possível perceber um dos principais óbices à total erradicação do trabalho de crianças e adolescentes: a falta de informação, sensibilização e mobilização da sociedade civil. A falta de convencimento dos cidadãos de que toda criança deve ser protegida e ter garantido o seu desenvolvimento pleno torna o problema complexo e quase invencível. Não haverá erradicação enquanto não houver real interesse da sociedade, e não apenas do governo, na formulação de políticas intersetoriais de redução de pobreza, com a proteção da família e das classes mais vulneráveis, aliadas a políticas educacionais, de saúde, cultura e esporte. Ainda que haja exemplos de trabalho infantil onde podem ser encontradas crianças com padrão familiar financeiro elevado, a grande massa de trabalhadores infantis advém das classes sociais mais pobres. E isso dificulta a luta pela erradicação do trabalho infantil, pois quem é atingido não tem voz e quem tem voz não tem interesse na mudança do quadro atual. Pelo contrário, muitas vezes luta pela sua manutenção. A mobilização contra o trabalho infantil fica facilitada quando crianças são utilizadas como mão de obra nas chamadas cadeias produtivas formais, ou seja, todo e qualquer ser humano entende a gravidade de uma criança operar um equipamento industrial. Contudo, muitos não consideram grave contratar uma menina de 13 anos de idade como babá ou empregada doméstica. Não atentam para o fato de que trabalho doméstico também é trabalho 30

“A falta de convencimento dos cidadãos de que toda criança deve ser protegida e ter garantido o seu desenvolvimento pleno torna o problema complexo e quase invencível. Não haverá erradicação enquanto não houver real interesse da sociedade, e não apenas do governo, na formulação de políticas intersetoriais de redução de pobreza, com a proteção da família e das classes mais vulneráveis, aliadas a políticas educacionais, de saúde, cultura e esporte.” infantil a ser fortemente combatido, uma vez que acarreta não somente consequências físicas danosas em razão de esforços físicos intensos e prejudiciais ao desenvolvimento, mas também danos psicológicos, sociais e educacionais. Aliás, o trabalho doméstico foi incluído na Lista TIP (das piores formas de trabalho infantil) por submeter o trabalhador a riscos ocupacionais como esforços físicos intensos, isolamento, abuso físico, psicológico e sexual; longas jornadas de trabalho, trabalho noturno, calor, exposição ao fogo, posições antiergonômicas e movimentos repetitivos; tracionamento da coluna vertebral, e sobrecarga muscular. Tais riscos trazem, como possíveis consequências à saúde, afecções musculoesqueléticas (bursites, tendinites, dorsalgias, sinovites, tenossinovites), contusões, fraturas, ferimentos, queimaduras, ansiedade, alterações na vida familiar, transtornos do ciclo vigíliasono, DORT/LER, deformidades da coluna vertebral (lombalgias, lombociatalgias, escolioses, cifoses, lordoses), síndrome do esgotamento profissional e neurose profissional; traumatismos, tonturas e fobias. Os casos de trabalho infantil estão concentrados no mercado informal, nas zonas rurais e nos lares brasileiros, o que faz crescer o desafio das organizações sociais de defesa dos direitos da criança e do adolescente. Uma criança ajudante de pedreiro, o filho que trabalha com o pai na lavoura e o boleiro de quadras de tênis são exemplos de trabalho infantil totalmente tolerados em nossa sociedade, o que torna ainda mais difícil a sua identificação e a inspeção dos órgãos fiscalizadores. É comum a afirmação de que o trabalho dignifica e que o trabalho infantil seria uma forma de evitar a ociosidade e a marginalidade encontrada nas ruas. Esse é um argumento

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incorreto, por simplista. Por óbvio, existem alternativas muito melhores para a formação das crianças e que não provocam danos à saúde física e mental. Crianças, estejam onde estiverem, em todo e qualquer estrato social, devem estar na escola, brincando ou aprendendo atividades culturais e esportivas. Isso e somente isso. De igual modo, não justifica o trabalho infantil a necessidade de a criança ter senso de responsabilidade, disciplina e socialização, uma vez que estes atributos devem ser adquiridos no convívio escolar e familiar. Não, o trabalho não enobrece a criança. Ao contrário, retira de seu conjunto de direitos fundamentais a possibilidade de viver de forma saudável, de estudar, brincar e aprender. Diminui ainda mais suas oportunidades e possibilidades e perpetua sua baixa instrução e pobreza. Mesmo as crianças que já têm baixo rendimento escolar não podem ser privadas do direito de frequentar uma instituição de ensino, cabendo à escola dar suporte diferenciado à criança e evitar que sua família veja o trabalho como substituto da educação formal. De todos os argumentos utilizados pela sociedade para justificar o trabalho infantil, o pior é o que o considera forma legítima de garantir a sobrevivência familiar. Pior porque se utiliza da luta diária pela subsistência para forçar crianças a assumir responsabilidades que deveriam ser exclusivas da idade adulta, sendo certo que: [...] aceitar o trabalho infantil como uma forma para garantir a sobrevivência da família é um argumento que resolve o problema apenas no curto prazo, pois no longo prazo o trabalho impedirá que a criança incremente seu capital humano ou até mesmo tenha sua saúde debilitada, restringindo suas possibilidades de ascensão profissional, e consequentemente de maiores ganhos. Ou seja, apesar de o trabalho infantil amenizar as dificuldades das famílias no curto prazo, não significa dizer que esses problemas irão estar resolvidos por completo. Pelo contrário, no longo prazo podem se repetir ou até mesmo se agravar. (André Luiz Pires Muniz; Tiago Farias Sobel, em Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP)

Quem tem a obrigação de cuidar da criança é a família, não o contrário. Uma sociedade séria e comprometida com a dignidade da pessoa humana não pode privar crianças de seus direitos, criando pequenos “arrimos de família”, que ao final do processo estarão alijados do desenvolvimento social, econômico e político do País, por falta absoluta de preparação para a vida social e profissional. Desenha-se, assim, o cruel ciclo vicioso de uma sociedade de castas, em que a ascensão social é expressão natimorta. De modo geral, as últimas informações da Pnad permitiram constatar que, mesmo ganhando menos que

meio salário mínimo, as crianças que desenvolvem algum tipo de atividade laborativa têm participação fundamental na renda familiar total, colocando em evidência que, para se reduzir o trabalho infantil sem elevar os níveis de pobreza no País, é necessário a criação e a aplicação de políticas econômicas e sociais que tenham a capacidade de gerar renda à população adulta menos abastada, de uma forma que compense a perda do rendimento infantil, sendo um dos exemplos o Bolsa Família. Sensibilização e mobilização de cada cidadão brasileiro: esse deve ser o objetivo. De fato, o sentimento de que o trabalho pode ser bom para uma criança pobre está profundamente arraigado entre nós e, para ser efetiva, a erradicação do trabalho infantil exige ainda sensibilização profunda de cada indivíduo para a importância do tema. Os pais precisam entender suas responsabilidades na educação e no desenvolvimento da criança e o Estado deve continuar garantindo o estabelecimento de instituições, instalações e serviços de assistência à infância. Deve também aperfeiçoar continuamente as medidas legislativas administrativas, sociais e educativas adequadas à proteção da criança. Além disso, na medida em que diminuíram os casos de trabalho infantil no setor empresarial formal, cabe exigir que as empresas fiscalizem sua cadeia produtiva, seus fornecedores de serviços e insumos, e conscientizem seus colaboradores sobre a importância da fiscalização, sendo fundamental tornar partícipes da luta as organizações de empregadores e de trabalhadores e as organizações civis. O País vive hoje um momento muito especial em relação às políticas sociais. É tempo de romper padrões de conduta centenários e criar novo cenário, em que crianças não podem ser vistas como mão de obra passível de contratação com módica remuneração. Cada cidadão, convencido da gravidade dessa situação, precisa ser agente de mudança e fiscal da lei. É possível desenhar nova realidade em que a criança e o adolescente tenham seus direitos básicos integralmente protegidos, a partir da atitude diária de cada cidadão mobilizado para a luta contra o trabalho infantil.

Referências bibliográficas BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). PNAD, 2006. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2006/suplementos/afazeres/publicacao_afazeres.pdf>. BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Programa de erradicação do trabalho infantil (Peti): manual de orientações. Brasília: MPAS, maio de 2002. BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil – Português. MUNIZ, André Luiz Pires; SOBEL, Tiago Farias. Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP. CAXAMBU – MG, 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.

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E m foco, por Ada Caperuto

Foto: Xxxxxxxxxx

Desembargadora Maria das Graças Cabral Viegas Paranhos

Razão e sensibilidade A nova direção do trt-rj

Desembargadora Maria das Graças Cabral Viegas Paranhos, nova presidente do TRT da 1a Região, destaca as metas do planejamento da nova direção do Tribunal que será majoritariamente gerido por mulheres no biênio 2015-2017.

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orça, sensibilidade, deter­ minação e capacidade produtiva são atributos frequentemente destacados na alma feminina ao relacionar qualidades positivas na gestão do Judiciário. Não é diferente no Tribunal Regional do Trabalho da 1a Região (TRT-RJ), onde uma mulher ocupa o cargo 32

mais importante da administração pela quarta vez. No entanto, de modo inédito, no biênio 2015-2017, a Corte terá seu comando nas mãos de quatro desembargadoras. Eleita por maioria de votos, Maria das Graças Cabral Viegas Paranhos é a nova Presidente. Ela terá a seu lado Ana Maria Soares de Mo-

raes, Vice-presidente; Edith Maria Corrêa Tourinho, Corregedora; e Rosana Salim Villela Travesedo, Ouvidora. Eleitas na sessão do Tribunal Pleno de 13 de novembro de 2014, as desembargadoras tomaram posse no início deste ano, em cerimônia realizada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Justiça & Cidadania | Março 2015


Nesta reportagem, a presidente Maria das Graças Paranhos fala so­ bre a nova direção o Tribunal, que ingressa com o Processo Judicial Eletrônico da Justiça do Trabalho (PJe-JT) instalado em 100% de suas unidades judiciárias. Além deste, que foi um dos desafios vencidos recentemente, entre os compromissos da nova gestão está a prática de uma política de prevenção de demanda e valorização da conciliação, cujo objetivo final é evitar a judicialização dos conflitos e contribuir para reduzir o acervo do TRT-RJ, que hoje está próximo de 766.860 processos. Ao contrário das demais eleitas, todas elas nascidas na cidade do Rio de Janeiro (veja box), Maria das Graças é natural da cidade paraense de Porto de Moz. Ela iniciou sua trajetória na magistratura como juíza substituta no TRT da 8a Região, em 1976. Em julho de 1982, foi aprovada em primeiro lugar no concurso público para o cargo de juíza do trabalho substituta na 1a Região. A magistrada passou por diversas comarcas até ser promovida a desembargadora, por antiguidade, em outubro de 1999. Na direção do TRT-RJ, ocupou outros cargos, como o de vice-corregedora (biênio 2009-2011), diretora do Centro Cultural (2011-2013) e vice-presidente (2013-2015). Revista Justiça & Cidadania – Quais foram as propostas apresentadas pela senhora durante a campanha para as eleições do TRT-RJ? Desembargadora Maria das Graças Cabral Viegas Paranhos – Durante a campanha, deixei clara a minha intenção de realizar uma administração compartilhada com os desembargadores e juízes de 1o grau; de desenvolver um programa formal de qualidade de vida, com especial atenção à saúde de magistrados e servidores; de ampliação da adequação ergonômica em todas as unidades do Tribunal; bem como de valorização

destes, oferecendo condições para melhorar a qualidade, a celeridade e a efetividade no 1o grau de jurisdição, entre outras medidas. JC – A partir dessas propostas, quais serão as principais metas durante sua gestão? MGC – Dar cumprimento à Resolução no 194 do CNJ, que instituiu a Política Nacional de Atenção Prioritária ao Primeiro Grau de Jurisdição, com a valorização do juiz de primeira instância, que é a porta de entrada para a Justiça. Valorizando o 1o grau, teremos maior eficiência no Judiciário. Pretendo, também, desenvolver projetos para “prevenção de demanda”, mantendo relacionamento mais estreito com a sociedade e ampliando as unidades de apoio judiciário, com a criação de Núcleos de Conciliação. Além disso, a proposta de Planejamento Estratégico para 2015-2020 do TRT-RJ reflete pontos relevantes que visam ao aprimoramento de todo o Judiciário do Trabalho para os próximos seis anos. O Planejamento é totalmente participativo, com a representação de juízes, desembargadores e servidores. A participação de juízes de primeira instância na gestão dos tribunais e a distribuição orçamentária equilibrada hoje é uma realidade. Pretendo ampliar ainda mais esta cooperação, com uma administração cada vez mais democrática, abrindo canal direto de diálogo com o 1o grau. JC – Como será efetivada esta cooperação? MGC – Uma prova de que pretendemos seguir neste caminho foi dada já na primeira semana de nossa gestão. Em 6 de fevereiro, me reuni, pela primeira vez, com magistrados de 1o grau – juízes titulares e substitutos – e gestores das unidades administrativas do Regional fluminense, quando foram apresentados os integrantes da equipe que prestarão auxílio na gestão do Tribunal pelos próximos

dois anos. Foi franqueada a palavra a todos os magistrados para que pudessem expor as necessidades das suas respectivas unidades judiciárias. Disse-lhes que queria ouvir mais que falar. A ideia de um diálogo aberto e franco agradou todos os presentes, que se sentiram encorajados a fazer proposições de boas ideias e também reivindicações de medidas que objetivem a melhoria das condições físicas e técnicas das unidades, assim como a qualidade de vida dos servidores. JC – Como será colocado em prática o programa de qualidade de vida para magistrados e servidores? MGC – Pretendo dar especial atenção à saúde do público interno, pois inúmeros magistrados e servidores deixam de comparecer ao trabalho por problemas relacionados à saúde, alguns decorrentes do próprio trabalho, o que causa profundo impacto na vida profissional e pessoal. Também estão em meus planos realizar pesquisas sobre as condições de saúde, as causas de afastamentos, o impacto causado pelo Processo Judicial Eletrônico na saúde dos magistrados e servidores e, ainda, desenvolver ações preventivas que evitem o agravamento do problema e reduzam o absenteísmo. JC – Além dessas, quais outras propostas mencionaria? MGC – Outros projetos são fomentar o banco de Boas Práticas da Justiça do Trabalho, reforçar, valorizar e apoiar as atividades da Escola Judicial e da ESACS [escolas de capacitação de magistrados e servidores]; realizar convênios com cursos de línguas estrangeiras, para servidores e magistrados; ampliar cada vez mais os convênios com instituições públicas e privadas para o combate ao trabalho infantil, ao trabalho escravo e prevenção a acidentes do trabalho; descentralizar unidades judiciárias, com amplo debate com os advoga-

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dos, servidores e magistrados; realizar concursos sucessivos para o preenchimento de cargos vagos de juízes substitutos; valorizar os servidores, com cursos de capacitação e qualificação; e ampliar o estágio de nível médio e universitário. JC – Qual é, em sua opinião, o principal desafio a ser vencido pelo TRT-RJ no atingimento de sua missão como representante do Poder Judiciário? MGC – O Processo Judicial Eletrônico da Justiça do Trabalho (PJe-JT) é uma realidade, já instalado em 100% das unidades judiciárias do TRT-RJ. Hoje o sistema já se apresenta mais estável e já começam a aparecer os ganhos decorrentes de sua implantação, como celeridade processual, redução de gastos públicos, acessibilidade, sustentabilidade. Passamos por dificuldades e encontramos resistência, mas hoje o processo eletrônico é mais bem aceito. Acredito que um dos desafios do Tribunal esteja na busca pela estabilidade desse sistema, que traz consigo a promessa de ser um meio para efetivar a Justiça Social, na medida em que vai agilizar o andamento das ações trabalhistas, eliminando tarefas burocráticas. JC – Como funcionarão na prática os projetos de prevenção de demanda? MGC – Este é outro importante desafio. Há uma verdadeira crise de litigiosidade no mundo, inclusive no Brasil, onde quase tudo tem de passar pelo crivo do Judiciário. Temos cerca de 95 milhões de processos ajuizados no País. O 1o grau acumula 90% dos processos da Justiça brasileira. O 2o grau lida com o excesso de recursos, o que atrasa a prestação jurisdicional. Pretendemos manter um relacionamento mais estreito com a sociedade, com a realização de campanhas, atos e seminários, identificação e atuação dos maiores litigantes e de lides trabalhistas repetitivas e temerárias, 34

com o objetivo de preveni-las; uma prestação jurisdicional célere, eficaz e a redução de processos são elementos necessários para fortalecer a conciliação, por meio da criação da Central de Conciliação, nos moldes estabelecidos pela Resolução no 125, do Conselho Nacional de Justiça.

vo, ao tráfico de pessoas e ao trabalho infantil. Temos avançado nas ações coletivas, e a recente Lei no 13.015, de 2014, que alterou a CLT, dispondo sobre o processamento de recurso de revista e de embargos no TST, trata de temas de relevância como a uniformização da jurisprudência.

JC – A senhora fala em aproximação com a sociedade, o que é uma realidade nos debates do meio Judiciário na atualidade. Como isso vem se refletindo no trabalho dos juízes hoje? MGC – Os juízes, antes confinados aos seus gabinetes, de meros intérpretes das leis e especialistas em assuntos jurídicos foram, pouco a pouco, sendo compelidos a participar ativamente da vida política e social dos cidadãos e vivenciar novo desafio. Além da função judicante, de despachar, realizar audiências, julgar, o juiz ainda tem de se especializar em gestão judiciária, de processos administrativos, gestão de pessoas, tecnológica e cumprimento de metas. Não somos contra as metas, mas é fundamental planejar o modo de realizá-las, mas não ficar obcecado por elas. É tempo de entender o tempo das coisas.

JC – De que modo é possível vencer outro obstáculo do judiciário trabalhista, a execução? MGC – Aperfeiçoando as ferramentas já existentes e criando núcleos de inteligência para pensar novas formas de dar viabilidade ao mandamento jurisdicional, por meio da fase de execução. No TRT-RJ, temos a Seção de Pesquisa Patrimonial [Secpep] – unidade que tem o objetivo de localizar bens patrimoniais passíveis de penhora entre as pessoas jurídicas e físicas executadas na Justiça Trabalhista –, a Central de Execução, o Simba [Sistema de Investigação de Movimentação Bancária]. Também devem avançar os convênios com pessoas jurídicas e instituições, de forma a franquear ao Judiciário meios de localização de devedores. A conciliação também deve ser um esforço constante. A solução dos conflitos por meio do diálogo sempre foi primordial no Judiciário Trabalhista, pois seu objetivo sempre foi restabelecer a paz social, além de ser um meio de desafogar o Judiciário.

JC – O Poder Judiciário brasileiro enfrenta há alguns anos grande desafio: a morosidade, um reflexo do aumento da demanda judicial. Qual é o cenário para o Judiciário Trabalhista neste viés? MGC – Entre o total de processos ajuizados no Brasil, estão cerca de três milhões de ações trabalhistas. A Justiça do Trabalho passou por grandes reformas, assim como todo o Judiciário, e deixou de ser vista apenas como a justiça do trabalhador, mas como aquela a quem compete restabelecer o equilíbrio social e jurídico nas relações de trabalho. Tivemos a ampliação de nossa competência, com a Emenda Constitucional no 45, passamos a julgar o dano moral, os acidentes de trabalho, o combate ao trabalho escra-

JC – Outro aspecto importante para o Judiciário é a reforma trabalhista. Debatido há anos, no entanto, o tema não avança como deveria. De que forma a concretização desta reforma poderia influenciar beneficamente o Judiciário Trabalhista? MGC – A Justiça do Trabalho é o centro aglutinador, para onde acorrem os três grandes vetores do mundo jurídico do trabalho – o direito sindical, o direito coletivo e o direito individual do trabalho. Fatos preocupantes são a desburocratização, a desregulamentaJustiça & Cidadania | Março 2015


ção das relações de trabalho, a criação do Contrato Coletivo do Trabalho, com a solução dos conflitos sem nenhuma interferência do Estado. Por outro lado, além das já mencionadas reformas pelas quais passou a Justiça do Trabalho, teremos o Novo Código de Processo Civil, cuja promulgação é aguardada ansiosamente pela comunidade jurídica, que repercutirá positivamente no processo trabalhista, em manifesta observância ao Princípio Constitucional da Razoável Duração do Processo. De todo modo, a modernização das leis trabalhistas deve respeitar os direitos preexistentes, os princípios

da Dignidade da Pessoa Humana, o da Proteção e as Convenções Internacionais da OIT. JC – A diretoria recém-eleita do TRT-RJ é encabeçada por duas mulheres, além de contar com desembargadoras na Corregedoria e Ouvidoria. Apesar disso, ainda há pouca representatividade das mulheres na direção dos Tribunais brasileiros. Qual sua opinião sobre isso? Acredita que a representatividade feminina deveria aumentar? MGC – O TRT-RJ está na vanguarda desse processo, pois esta já é a quarta gestão em que uma mulher é eleita

presidente. Mas a representatividade feminina na direção dos Tribunais brasileiros ainda não reflete a realidade da população brasileira, em que as mulheres são a maioria. Isso mostra que o Brasil ainda precisa avançar para uma distribuição equitativa de oportunidades. Mas acredito que as vitórias já alcançadas são significativas. As mulheres que vencem os desafios cotidianos, como conciliar casamento, trabalho e filhos, ou mesmo chegar à Presidência de um Tribunal, provam que a sensibilidade e a capacidade femininas as habilita a conseguir qualquer coisa, inclusive a igualdade efetiva.

Desembargadora Ana Maria Soares de Moraes Vice-Presidente do TRT da 1a Região (biênio 2015-2017) Trajetória: tomou posse em 15 de outubro de 1981 no cargo de juíza substituta do TRT da 1a Região. Foi promovida em maio de 1988 ao cargo de juíza presidente da JCJ da 1a VT/Niterói. Até dezembro de 2002 exerceu o cargo de juíza presidente da 32a JCJ, 17a JCJ, 44a JCJ e 60a JCJ, no Rio de Janeiro, e 1a JCJ (Araruama). Foi promovida em 2 de dezembro de 2002 ao cargo de Juíza Togada do TRT da 1a Região (atual Desembargadora do Trabalho). Foi eleita em 3 de março de 2008 para o cargo de vice-corregedora do TRT da 1a Região (biênio 2011-2013). Em 1o de março de 2013 foi eleita para o cargo de Corregedora do TRT da 1a Região (biênio 2013-2015).

Desembargadora Edith Maria Corrêa Tourinho Corregedora do TRT da 1a Região (biênio 2015-2017) Trajetória: iniciou sua vida profissional em 1977, no cargo de auxiliar judiciário do TRT da 1a Região. Em 16 de junho de 1987, após aprovação em concurso público de provas e títulos, ingressou na magistratura trabalhista, no mesmo órgão, sendo promovida a Desembargadora em 2 de dezembro de 2012. Foi Presidente da 8a Turma desta Corte, exercendo, cumulativamente, a atribuição de Ouvidora, durante o biênio 2013-2015.

Desembargadora Rosana Salim Villela Travesedo Ouvidora do TRT da 1a Região (biênio 2015-2017) Trajetória: ingressou na magistratura trabalhista em 1988, aprovada no concurso público de provas e títulos para o cargo de Juiz do Trabalho Substituto do TRT da 1a Região. Em 1992, foi promovida por antiguidade para o cargo de juiz titular da 21a Vara do Trabalho do RJ. Em dezembro de 2002 foi promovida por merecimento para o cargo de Desembargadora do trabalho no TRT da 1a Região. Compôs a Seção Especializada em Dissídios Individuais e foi eleita para integrar o Órgão Especial do TRT da 1a Região (biênio 2006-2008 e 2011-2013). Foi diretora do Centro Cultural desta Corte no biênio 2013-2015.

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Foto: Aline Massuca

“Para a mulher poder alcançar alguma coisa, terá de produzir muito mais do que o homem” Por Marcus Losanoff e Ada Caperuto

Entrevista: Dra. Silvia dos Santos Correia – advogada trabalhista, procuradora/Infraero e professora de Direito Material e Processual do Trabalho e de Direito Previdenciário

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procuradora, advogada e professora Silvia dos Santos Correia fala, nesta entrevista exclusiva, sobre diversos temas relacionados ao Direito do Trabalho. Entre eles, as novas regras do governo que alteram benefícios previdenciários e a possibilidade de se fazer a reforma da Previdência. Embora acredite que tal mudança esteja no plano da utopia, a procuradora sugere quais pontos devem ser discutidos pelo legislador. 36

Silvia também relembra sua experiência de quase 20 anos na área trabalhista, mas ressalta e lamenta as dificuldades de militar na advocacia em tempos atuais. Partindo de sua vivência como profissional e mãe, ela menciona, ainda, os avanços conquistados e os desafios a serem vencidos na questão dos direitos da mulher. Para ela, embora hoje se recorra mais à Justiça, as transgressões e lesões continuam, e de uma maneira cada vez mais acentuada.

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Justiça & Cidadania – Vinda de uma família sem tradição no Direito, como e quando a senhora começou a se interessar pela área? Silvia dos Santos Correia – Eu fiz vestibular para jornalismo, passei para a UERJ, tinha então 16 anos, e fiquei apavorada com a ideia do trote. Vi que havia outros cursos na grade, assisti a uma aula de introdução à ciência do Direito e me apaixonei. Procurei o reitor tentando mudar de curso, mas ele se recusou a fazê-lo. Fiz então um novo vestibular, passei e já no primeiro ano da faculdade fui estagiar com advogados em um escritório simples, ligado ao Direito do Trabalho. E gostei imediatamente dessa área. JC – Como a senhora avalia o Direito do Trabalho no País nos últimos 20 anos, baseando-se em sua experiência na área nesse período? SSC – Eu me formei aos 21 anos e, neste ano, completo 19 atuando. Na verdade, eu tenho uma visão pouco otimista. Nós tivemos avanços tecnológicos em vários procedimentos processuais, saímos da fichinha, fomos para o computador, ou seja, do processo físico para o eletrônico, mas nós não tivemos avanços efetivos nos direitos trabalhistas. Nós tivemos, sim, maior consciência a partir da Constituição. Ela abriu a visão de muitas pessoas leigas para os seus direitos, mas na prática eu não vejo avanço. Acho que se usa mais a Justiça do que antes, mas as transgressões, as lesões, elas continuam, e de uma forma mais acentuada. Quando comecei a estagiar, 25 anos atrás, já havia uma consciência do erro, as pessoas iam para a audiência cientes disso, não havia uma maldade do tipo “não vou pagar um centavo porque o processo vai levar uns oito anos”, pois a intenção do acordo era maior. E hoje, não. Sabe-se que lucram com a morosidade. Hoje advogar é muito difícil. Antigamente, as pessoas no cartório sabiam qual era o seu processo. Hoje ninguém sabe. É apenas um número. O advogado precisa ter um trabalho hercúleo para defender-se de uma injustiça. Quando o processo segue tranquilamente, tudo bem, mas diante de uma injustiça o trabalho é imenso. Estamos muito longe de atingir a consciência social. JC – É interessante porque, em tese, deveria ser mais fácil hoje, com a internet, os processos digitalizados, não? SSC – Mas o que acontece... Olha, eu tenho processo eletrônico, mas aqueles que eu considero os mais importantes, relevantes, eu os mantenho no físico, porque isso te obriga a ler. E o conhecimento que você tem lendo desse modo é muito maior que pela internet. Essa era a vantagem, obrigava-se a conhecer mais profundamente as coisas. Só vamos conseguir atingir uma melhora na qualidade da prestação de serviço público do Judiciário

quando houver um número razoável de processos para cada juiz. Isso é fato. Agora, esta redução de processos também não pode ser feita apenas por reduzir. O ideal seria que as varas acima de ‘x’ processos contassem com mais de um juiz, para permitir que aquele magistrado tivesse contato com um número razoável de processos, administráveis. O que há hoje é um desestímulo, pois a pessoa passa em um concurso, começa a trabalhar e vê uma pilha de processos, uma pauta de vinte urgências por dia, então a qualidade diminui. Acho que iniciativas como mutirões para promover acordos ou processos julgados por lote – dependendo do que seja – são boas medidas; mas a extinção de processo a torto e a direito também não é positivo. Porque ele vai entrar de novo ou vão acontecer injustiças. É preciso permitir um conhecimento mais próximo dos processos, para que possamos atingir a qualidade que tínhamos anos atrás, mesmo com a manivela, a máquina de escrever e a fichinha. Hoje, o que acontece é que cada juiz elenca dois ou três assistentes de sua confiança e ou serventuários, que são até capacitados, mas esse delegar precisa ser mais bem visto. Até porque o volume é grande. JC – Como especialista no assunto, qual a sua opinião sobre as novas regras que alteram benefícios previdenciários? SSC – Não é a primeira vez que passamos por grandes reformas. Essas foram alterações, sim, mas não grandes, como o fator previdenciário. Essas foram mudanças de ajuste de caixa, nada simpáticas, óbvio. Alguns disseram que houve muitas fraudes na pensão por morte, há pessoas que ficam muito tempo com auxílio-doença sem querer voltar a trabalhar, porque este era calculado por uma média – chamada “salário por benefício” – de todo o histórico de valores que serviram como fato gerador de suas contribuições. Se ele teve no passado salários altos e hoje não, nessa média o que poderia acontecer é que a pessoa teria um benefício com valor maior que o seu último salário. Sendo assim, ela não teria nenhum interesse em trabalhar, pois, digamos, ganhava R$ 1.000 e o auxílio-doença era de R$ 2.000. É melhor, claro, receber esses 2.000 em casa, ainda que esteja se tratando, do que 1.000 trabalhando. Com a mudança, para fins de auxíliodoença, só será considerada a média dos últimos 12 meses – chegou-se a todo esse tempo, no limite máximo, claro, senão pelo tempo que trabalhou, sejam dois ou três meses. O benefício do auxílio-doença é feito a partir de 91% dessa média. A chance de se obter o próprio valor do salário será muito difícil. E isso obrigaria a pessoa a se tratar e se recuperar logo para que volte a trabalhar. Aumentou-se o período que o empregador vai arcar com o afastamento dele. Antes da alteração eram 15, e agora são 30 dias. Na verdade, ele só vai para a Previdência a partir do 31o dia

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JC – O ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, chegou a dizer que as medidas servem para corrigir excessos e evitar distorções... SSC – Pois é, quando eles dizem estar fazendo isso por conta de fraudes, eu acho que não seria a melhor justificativa. É como a lógica em que “por causa do errado, paga-se o inocente”. Porque para as fraudes há os auditores fiscais, o INSS, que poderia puni-las. O motivo foi efetivamente questão de fraudes. Por que havia excesso? Porque gasta-se muito. O valor do salário é baixo e, se a pessoa soubesse que o salário dela é maior que o benefício, ela não se incomodaria, ou seja, deixase de aumentar o salário, mas criam-se limites para a concessão desses e contenção dos cofres.

Também não era exigida idade ao cônjuge e passou-se a exigir para garantir o direito. O benefício antes era estendido ao cônjuge de maneira vitalícia, agora não. Faz-se um cálculo em cima da expectativa de vida dele. Quanto maior a expectativa de vida significa que ele é mais jovem e, assim sendo, por menos tempo receberá a pensão. Por exemplo: com uma expectativa superior a 55 anos (hoje ela está em torno de 78 anos), ficaríamos com um viúvo por 23 anos, que agora receberá pensão apenas por três anos. Isso antes não existia. O recebimento era vitalício e não havia nenhum critério em relação a idade do cônjuge, da companheira ou companheiro. Apenas os cônjuges com idade igual ou superior a 44 anos é que seguirão com o benefício de modo vitalício. Então, ao meu ver, as mudanças sobre a pensão por morte foram as mais impactantes, porque afetam as pessoas que já estavam contribuindo com essa intenção. Acho até que poderia se fazer parâmetros com base no tempo, mas retirar a vitaliciedade eu, particularmente, discordo. Isso foge do escopo, que é a garantia da sobrevivência da família de quem morreu. Então, no caso da pensão por morte, as mudanças foram, sim, mais agressivas. Já no caso do seguro-desemprego o que mudou foi o tempo, de 6 para 18 meses, para a pessoa requerê-lo; novamente, para forçar o caixa a se fortalecer.

JC – Além da mudança no auxílio-doença, há alguma outra dessas novas medidas que lhe chamou especialmente a atenção, como o novo segurodesemprego ou o abono salarial? SSC – O seguro-desemprego não é um benefício previdenciário, mas do FAT [Fundo de Amparo ao Trabalhador]. A função é desestimular a pessoa a ficar inativa, sem produzir, sem buscar o mercado de trabalho, para evitar até que o empregado force o desemprego. Dessas mudanças todas, a que causou maior impacto foi, sem dúvida, a que tange a pensão por morte. Porque antes bastava que o falecido fosse segurado do INSS para que os seus dependentes tivessem automaticamente direito ao benefício. Todos iam, com o evento da morte, até o INSS comprovar a sua condição e recebiam o valor da pensão, dividido por quantos fossem os beneficiários. Não se pedia carência ou condições de tempo, não havia limitação quanto a idade dos dependentes, com exceção dos filhos (até 21 anos). Agora, com as novas regras sobre a pensão por morte, há carência onde antes não existia, ou seja, o segurado pode começar a trabalhar, a menos que tenha um infortúnio que não seja decorrente de acidente de trabalho – o que dispensa a carência –, e assim a regra não seria aplicada. Caso haja um mau súbito ou menos de 24 contribuições no histórico do empregado no INSS, não há direito ao benefício.

JC – Durante as manifestações de junho de 2013, o tema Reforma da Previdência – junto à Reforma Política e outros – surgiu como uma das bandeiras daquele movimento difuso, tornando-se pauta da grande mídia e assunto nos corredores do Palácio do Planalto. Como a senhora vê a possibilidade de que haja efetivamente uma Reforma da Previdência no País e qual seria a melhor forma de fazê-la? SSC – Essa nova medida provisória é um grande sinal de que a Reforma não vai acontecer tão cedo. Pensar em extinção do fator previdenciário, por exemplo, tudo bem, mas sem uma contrapartida? Acho que uma das questões que deveriam entrar nessa Reforma é o segurado poder usar da maneira que quiser as suas contribuições, ou seja, em vez de receber a aposentadoria, gradualmente, sacar tudo de uma vez só. É um direito que ele tem, quer dizer, aumentar o leque de opções para o segurado. Mas não acho que haverá mudanças concretas em curto ou médio prazo. O próprio fator previdenciário continuará por um bom tempo, mas existem questões que o governo deveria pensar, como no caso da desaposentação, que é polêmico, e eu tenho uma posição muito fria em relação a isso. Fato é que na lei não existe essa previsão da desaposentação. Hoje, o aposentado que volta a trabalhar, como já recebe aposentadoria, pela lei tem direito a três benefícios: salário família, se for enquadrado no novo emprego como sendo

de afastamento. Antes disso, quem arca é o empregador. Talvez por um erro de redação, ou alguma portaria ou decreto corrigido, no texto sobre o auxílio-doença dizia-se antes que nos afastamentos superiores a 15 dias a pessoa teria direito ao benefício. Após a alteração, o segurado terá direito ao auxílio-doença desde que cumprida a carência etc. e ao empregador custarão os 30 primeiros dias. E essas foram mudanças muito mais por contenção de despesas que simplesmente se negarem direitos, pois os benefícios continuam.

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de baixa renda; salário maternidade, dependendo da idade da aposentada só será possível por adoção; e reabilitação profissional. Se ele cair, não tem auxílio-doença. Ele volta a contribuir por causa do novo emprego e não entra este valor. Com a desaposentação, ele pede o direito que tem de cancelar aquela aposentadoria e recalcular com base nas novas contribuições hoje. Por isso o nome “desaposentação”. Mas até essa forma de cancelamento deve ser muito bem feita, porque não há essa previsão na lei. Este é um ponto que o governo teria de apreciar, pois as pessoas contribuem e esse dinheiro fica lá, como já disse. Daí a enxurrada de ações de desaposentação. Mesmo as decisões favoráveis, que já aconteceram, ficam muito complicadas de serem implementadas hoje. Por isso vejo que esse é um ponto que deveria efetivamente passar pela Reforma, ou haverá esse custeio sem retorno. Dizer que ele vai usar a reabilitação profissional, que é um benefício gratuito, é piada. Por exemplo: não existe a possibilidade sequer de que em 10 anos a pessoa possa ter uma aposentadoria complementar com base nesse tempo, o que acabaria com o problema. Isso tem de ser pensado. JC – Há mais algum outro ponto específico que deveria ser apreciado em uma eventual – e segundo a senhora, utópica – Reforma da Previdência? SSC – Acho que o fim do fator previdenciário é um ponto, aumentando os critérios de concessão e depois extinguindo-o – o que, na verdade, eu vejo como uma ilusão. Pois só vão tirá-lo como “fator previdenciário” e colocá-lo do mesmo jeito no texto da lei, ou seja, não vai existir o “fator”, mas sim a expectativa de vida, o que dará no mesmo, aumentando a idade, o tempo de contribuição com base na expectativa de vida. Outra questão é a restrição de alguns benefícios, o que também vejo como algo complicado. Sabemos que o contribuinte individual – ou seja, os profissionais liberais, os autônomos – é o que menos contribui hoje, por isso ele tem restrição de benefício. Mas existem benefícios, como o auxílio-acidente, que o legislador fala em acidente de qualquer natureza, pois muitos pensam que o auxílio está vinculado apenas a acidente de trabalho. Inclusive moléstias consideradas graves entram nesse escopo. E os profissionais liberais, na forma de contribuintes individuais, não têm acesso ao benefício, ainda que contribuam. Tudo isso precisa ser revisto. Como a preservação do poder aquisitivo do beneficiário, que leva a muitas discussões no tribunal, pois existem distorções na Lei no 8.213 (de benefícios previdenciários). Ali diz que os dependentes da classe 1, em que estão cônjuge, companheiro e filhos, têm presunção de dependência econômica, ou seja, não precisariam prová-la. Já o Decreto no 3.048 diz que é preciso a prova da condição de dependente, como a conta conjunta comum etc. Isso

não está exigido na lei e com certeza vai piorar agora. Essas discrepâncias da lei também deveriam passar por uma reforma. E o último ponto, de fato, é o relativo às perícias médicas, que também está sendo alterado, colocando agora a cargo da empresa, onde se tira do INSS, mas também resulta em um ponto complicado. Se tivéssemos apenas empregadores de boa-fé seria ótimo, mas mesmo com a ética profissional sabemos que o médico é um empregado como outro qualquer. Deixar o cargo de perícia para o profissional da empresa apenas é muito complicado. Da mesma forma que a perícia médica que estabelece alta programada é um absurdo sem tamanho. Não se pode olhar para uma pessoa com fratura e dizer que ela estará “boa” em 30 dias. Ele [o médico] não sabe se o empregado estará realmente apto para voltar a trabalhar nesse tempo. A alta significa cancelamento de benefício automático. E o empregado terá de “correr atrás” para se reestabelecer. Isso é um absurdo! Eu já acompanhei o caso de uma pessoa com cegueira, depois de glaucoma, ser examinada por um médico gastroenterologista que dizia que ela estava enxergando, mesmo com apenas 2% de visão. A perícia médica do INSS é complicada. O tratamento deve ser mais específico e a perícia feita de maneira mais criteriosa. JC – Para fechar, gostaria de saber a opinião da senhora sobre a questão da mulher na sociedade, os direitos, pois ultimamente temos visto mais notícias sobre o assunto. Falo não só da Lei Maria da Penha, mas de todas as leis protecionistas à mulher postas em discussão nos últimos anos. SSC – Houve avanços, não há dúvida, inclusive batalhados pelas próprias mulheres, que foram fazer concurso, que saíram da zona de conforto, que quiseram ter sua profissão, reconhecimento, liberdade de opinião e sobre seu corpo, como na questão do aborto, além da Lei Maria da Penha, claro. Ainda assim, acho que estamos apenas no início. Antes de ser mãe, você acha que pode fazer qualquer coisa que o homem pode fazer. Os empregadores acham que você pode. Eu já exerci cargo de chefia e sei disso. É fato que quando você é mãe – falo das que não delegam maternidade, claro – e você tem um filho ainda pequeno que está doente, não dá para ir trabalhar rindo ou virar a noite no escritório. Não há como não se sentir mais cansada quando chega em casa. A criança exige mais da mãe quando ela trabalha fora, ou seja, há uma diferença que deve ser reconhecida. Dentro do trabalho, além de existir essas diferenças, dependendo da vida pessoal que a mulher tem – com filhos pequenos ou não, morando longe ou não – há, efetivamente, ainda uma discriminação, uma diferenciação. Para a mulher poder alcançar alguma coisa, se você puxar uma média, ela terá de produzir muito mais do que o homem. A mulher precisa de um planejamento.

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Liquidação dos contratos de concessão de serviços públicos sob a ótica do law and econcomics Nikolai Sosa Rebelo

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Especialista em direito empresarial Membro da Comissão Especial de Arbitragem e da Comissão Especial do Jovem Advogado da OAB/RS

I. A Análise Econômica do Direito pesar das discrepâncias históricas, a partir dos estudos e obras de Ronald Coase e Guido Calabresi, a relação entre a ciência jurídica e a ciência econômica se tornou mais próxima, apesar das diferenças metodológicas de suas pesquisas. A economia e o direito passaram a conviver de forma mais harmoniosa, no sentido de melhor compreender os fenômenos sociais, bem como estudar as soluções de eventuais problemas da sociedade. No Brasil, a disciplina é denominada de “Direito e Economia” ou “Análise Econômica do Direito”, nomenclatura influenciada pela expressão da doutrina americana do “Law and Economics”. Nas palavras de Bruno Salama, “a disciplina serve para iluminar problemas jurídicos e para apontar implicações das diversas possíveis escolhas normativas”.1 O Direito e Economia, portanto, é conceituado como “um corpo teórico fundado na aplicação da economia às normas e instituições jurídico-políticas”.2 Assim, busca-se fazer a análise econômica de como a questão das indenizações e liquidações dos contratos de concessão são tratadas pelos tribunais pátrios a partir da corrente do “Direito e Economia Positiva Explicativa”. Esta corrente aproveita-se da capacidade explicativa da teoria econômica às questões jurídicas. Em um mundo de escassez, a economia explica que o direito busca a maximização de preferências. Por outro lado, deve-se mitigar tal pensamento, pois nem tudo no direito se 40

explica pela eficiência. Assim, a economia pode explicar boa parte do direito, mas não de forma completa. Sugerese, pois, que a economia seja conjugada com outros ramos do conhecimento, por exemplo, antropologia, história, sociologia etc. Em resumo, o nível epistemológico denominado Direito Economia Positivo “emprega principalmente modelos mentais e ferramentas analíticas típicas da economia”.3 Para compreender a disciplina, é importante ter em mente cinco conceitos básicos explicados pela obra já citada de Salama: a) escassez, b) maximização racional, c) equilíbrio, d) incentivos e e) eficiência. a) Escassez – é fundamental saber que vivemos em um mundo de escassez de recursos. Se tal premissa não fosse real, todas as pessoas teriam tudo o que quisessem e na quantidade que desejassem; b) Maximização Racional – diante da escassez de recursos, o indivíduo é forçado a fazer escolhas pessoais, de acordo com sua preferência, ele buscará mais benefícios com os menores custos; c) Equilíbrio – é o ponto em que todos os indivíduos estão alcançando maior benefício com menores custos; d) Incentivos – chamados pelo autor de preços implícitos, em que em uma economia de mercado, quando o preço aumenta, o consumidor compra menos produtos, quando o preço diminui, ao contrário, o

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Foto: Arquivo pessoal

consumidor compra em maior quantidade. O raciocínio do fornecedor é o oposto, quando o preço sobe, se produz em maior quantidade, quando cai, se produz em menor quantidade; e) Eficiência – é nada mais nada menos que a maximização de ganhos e a minimização dos custos. O procedimento é eficiente quando não for possível mais aumentar os benefícios sem implicar também o aumento dos custos. II. Análise crítica das soluções judiciais e administrativas sobre o tema com base no Law and Economics – o caso do transporte de passageiros E a partir desta análise econômica do direito, fazse a crítica do posicionamento judicial acerca do tema, com base na chamada “corrente normativa da análise econômica do direito” para manifestar a solução que entendemos adequada ao tema. Conforme se percebe, a liquidação de contratos de concessão ainda não teve tratamento adequado pelos tribunais brasileiros, que têm promovido soluções que desestimulam imensamente o investimento no Brasil. Se analisarmos o caso Varig, em que a empresa aérea viveu anos em dificuldade financeira, convivendo constantemente com congelamento tarifário até conseguir ter uma decisão judicial favorável à tutela do equilíbrio econômico financeiro do contrato de concessão, percebemos que efi-

ciência é algo que não tem sido preocupação da administração pública brasileira. Veja-se que o Estado deixou uma empresa desaparecer do mercado, com dívidas gigantescas em prejuízo não só dos seus acionistas, mas dos próprios funcionários, como evidenciou a questão do Fundo Aerus que deveria ter assegurado a aposentadoria de milhares de funcionários, o que não ocorreu. Felizmente, estabeleceu-se um caso paradigmático, apesar de dramático, para a questão do dever de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, com a condenação bilionária da União nesse caso Varig e também no caso Transbrasil. Outro ramo de atividade que sofre com esse tipo de questão é o transporte coletivo de passageiros, em especial, os concessionários ou permissionários de transporte urbano. Embora se tenha uma legislação federal que imponha a liquidação prévia dos contratos e posição doutrinária do calibre de Celso Antônio Bandeira de Melo a favor da indenização prévia nessas situações (conforme pareceres presentes em diferentes ações judiciais sobre o tema), as administrações públicas municipais e alguns tribunais têm desconsiderado por completo essa imposição legal. Os editais de licitação do transporte público urbano de diversos municípios desconsideram por completo o passado e o presente. Desconsideram que, para existir um sistema de transporte, empresas pioneiras investiram

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“O fortalecimento das instituições jurídicas é algo que deve ser prioritário em qualquer nação, pois, sem elas, o ambiente de investimentos é fragilizado e os incentivos para aplicar recursos nas atividades econômicas são diminuídos.”

suas vidas e seus recursos financeiros ao longo de décadas. Desconsideram ainda, a necessidade de ter um serviço que atenda os padrões de atualidade e qualidade exigidos pela lei, o que exige constantes investimentos. A liquidação é algo inerente a todo contrato de longa duração, como o são os contratos de concessão ou de permissão, àquela equiparada. A consequência desse descaso com a realidade é a perda de incentivos ao investimento na qualidade do serviço, que já começa a ser sentida pela sociedade. Fazendo-se a análise econômica das decisões administrativas e judiciais que deixam de aplicar a norma da liquidação dos contratos, temos aumento exagerado dos custos de transação.4 Ou seja, aumentam-se os custos necessários para se obterem todas as informações acerca dos contratos de concessão, pois não se sabe mais se a Lei e o Contrato serão cumpridos, uma vez que as normas hoje escritas amanhã não já valem ou simplesmente não são cumpridas. Além disso, analisando pela ótica dos incentivos, da eficiência e do equilíbrio, percebe-se que a não indenização desincentiva o investimento, pois não há recuperação plena do capital; diminui a qualidade e eficiência do serviço; e gera grande desequilíbrio de condições em que o concessionário atual entra em desvantagem contra outros concorrentes em novo processo de licitação por prejuízos causados diretamente por atos do Poder Público. O cenário se torna o pior possível. Por fim, sem a regra da liquidação e indenização prévias, principalmente de investimentos não amortizados e recuperados, além de perdas por defasagens tarifárias, serve de sinal a terceiros interessados em participar de novas licitações de como serão tratados. Ou seja, possí42

veis interessados passam a ter desconfiança do tratamento que receberão se contratados, uma vez que o tratamento aos atuais concessionários é sempre o pior possível. Como exemplo, podemos verificar a licitação do transporte público de Porto Alegre, em que, por duas ocasiões, se tentou licitar sem ter sido apresentada nenhuma proposta sequer. A sensação de insegurança jurídica faz parte do “custoBrasil”, o que nos faz estar na lamentável 120a posição do ranking dos melhores países para negócios do Mundo.5 III. A solução do problema O dever de liquidação ao atingir o termo do contrato é expressamente previsto no artigo 35, combinando o inciso I e os §§, abaixo transcrito: Art. 35. Extingue-se a concessão por: I – advento do termo contratual; [...] § 1o Extinta a concessão, retornam ao poder concedente todos os bens reversíveis, direitos e privilégios transferidos ao concessionário conforme previsto no edital e estabelecido no contrato. § 2o Extinta a concessão, haverá a imediata assunção do serviço pelo poder concedente, procedendo-se aos levantamentos, avaliações e liquidações necessários. § 3o A assunção do serviço autoriza a ocupação das instalações e a utilização, pelo poder concedente, de todos os bens reversíveis. § 4o Nos casos previstos nos incisos I e II deste artigo, o poder concedente, antecipando-se à extinção da concessão, procederá aos levantamentos e avaliações necessários à determinação dos montantes da indenização que será devida à concessionária, na forma dos arts. 36 e 37 desta Lei.

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Vale ressaltar que o artigo da lei mais mencionado ultimamente em matéria de liquidação e apuração dos valores indenizatórios é o artigo 42 da Lei no 8.987/1995, com as modificações da Lei no 11.445/07, que previu a necessidade do levantamento, mesmo em casos de contratações precárias ou anteriores à Lei, o que inclui centenas de permissões: Art. 42. As concessões de serviço público outorgadas anteriormente à entrada em vigor desta Lei consideram-se válidas pelo prazo fixado no contrato ou no ato de outorga, observado o disposto no art. 43 desta Lei. (Vide Lei no 9.074, de 1995) § 1o Vencido o prazo mencionado no contrato ou ato de outorga, o serviço poderá ser prestado por órgão ou entidade do poder concedente, ou delegado a terceiros, mediante novo contrato. (Redação dada pela Lei no 11.445, de 2007). § 2o As concessões em caráter precário, as que estiverem com prazo vencido e as que estiverem em vigor por prazo indeterminado, inclusive por força de legislação anterior, permanecerão válidas pelo prazo necessário à realização dos levantamentos e avaliações indispensáveis à organização das licitações que precederão a outorga das concessões que as substituirão, prazo esse que não será inferior a 24 (vinte e quatro) meses. § 3o As concessões a que se refere o § 2o deste artigo, inclusive as que não possuam instrumento que as formalize ou que possuam cláusula que preveja prorrogação, terão validade máxima até o dia 31 de dezembro de 2010, desde que, até o dia 30 de junho de 2009, tenham sido cumpridas, cumulativamente, as seguintes condições: (Incluído pela Lei no 11.445, de 2007). I – levantamento mais amplo e retroativo possível dos elementos físicos constituintes da infraestrutura de bens reversíveis e dos dados financeiros, contábeis e comerciais relativos à prestação dos serviços, em dimensão necessária e suficiente para a realização do cálculo de eventual indenização relativa aos investimentos ainda não amortizados pelas receitas emergentes da concessão, observadas as disposições legais e contratuais que regulavam a prestação do serviço ou a ela aplicáveis nos 20 (vinte) anos anteriores ao da publicação desta Lei; (Incluído pela Lei no 11.445, de 2007). II – celebração de acordo entre o poder concedente e o concessionário sobre os critérios e a forma de indenização de eventuais créditos remanescentes de investimentos ainda não amortizados ou depreciados, apurados a partir dos levantamentos referidos no inciso I deste parágrafo e auditados por instituição especializada escolhida de comum acordo pelas partes; e (Incluído pela Lei no 11.445, de 2007). III – publicação na imprensa oficial de ato formal de autoridade do poder concedente, autorizando a prestação precária dos serviços por prazo de até 6 (seis) meses, renovável até 31 de dezembro de 2008, mediante comprovação do cumprimento do disposto nos incisos I e II deste parágrafo. (Incluído pela Lei no 11.445, de 2007).

§ 4o Não ocorrendo o acordo previsto no inciso II do § 3o deste artigo, o cálculo da indenização de investimentos será feito com base nos critérios previstos no instrumento de concessão antes celebrado ou, na omissão deste, por avaliação de seu valor econômico ou reavaliação patrimonial, depreciação e amortização de ativos imobilizados definidos pelas legislações fiscal e das sociedades por ações, efetuada por empresa de auditoria independente escolhida de comum acordo pelas partes. (Incluído pela Lei no 11.445, de 2007). § 5o No caso do § 4o deste artigo, o pagamento de eventual indenização será realizado, mediante garantia real, por meio de 4 (quatro) parcelas anuais, iguais e sucessivas, da parte ainda não amortizada de investimentos e de outras indenizações relacionadas à prestação dos serviços, realizados com capital próprio do concessionário ou de seu controlador, ou originários de operações de financiamento, ou obtidos mediante emissão de ações, debêntures e outros títulos mobiliários, com a primeira parcela paga até o último dia útil do exercício financeiro em que ocorrer a reversão. (Incluído pela Lei no 11.445, de 2007). § 6o Ocorrendo acordo, poderá a indenização de que trata o § 5o deste artigo ser paga mediante receitas de novo contrato que venha a disciplinar a prestação do serviço. (Incluído pela Lei no 11.445, de 2007).

Em verdade, o artigo 42 é norma pacificadora, pois prevê que mesmo as delegações precárias ou anteriores à legislação também fazem jus aos levantamentos de eventuais indenizações decorrentes dos mais diversos elementos a serem apurados por auditoria especializada. Essa regra foi motivada em razão de todos (ou quase todos) os contratos de concessão estarem na condição referida no artigo, pois, antes da Constituição Federal de 1988, não havia exigência constitucional de licitação para delegação de serviços públicos. Quase todas as delegações, especialmente dos serviços de transporte coletivo por ônibus, operavam, e ainda operam, sob o regime jurídico de permissão e quase todas nasceram de processos espontâneos de iniciativa de pequenos empresários que, atraídos pela Administração, arriscavam seus patrimônios no serviço público, sem procedimento licitatório, estranho àqueles tempos de pioneirismo. Essa conduta tradicional da Administração – a de admissão de empresas no serviço público por procedimentos informais – contava com a crença de boafé dos administrados sobre sua legitimidade. O próprio STJ, no REsp 221-DF, inicialmente sustentava que “Antes da CF/88, o ato de permissão do serviço público não exigia prévia licitação, razão pela qual não foi contemplado no art. 4o da Lei no 4.717/65, que enumera as hipóteses de lesividade presumida”.

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Foto Mozart Iochims

Caso Varig: “eficiência é algo que não tem sido preocupação da administração pública brasileira.”

Sendo contratos de concessão de longa duração e, por equiparação, igualmente os de permissão (Lei no 8.987/1995, art. 40, § único), por exigirem investimentos relevantes que somente podem ser recuperados ao longo de vários anos, muitas concessões e permissões estavam e estão na situação prevista na norma do artigo 42. Isso ocorreu no transporte coletivo (contratos com prazos entre 20 e 40 anos), no fornecimento de energia elétrica (as primeiras concessões eram entre 60 anos), no serviço de tratamento de água e esgoto (prazos superiores a 20 anos) etc. Em função disso, nas licitações para delegação da execução de transporte coletivo que vêm ocorrendo, alguns municípios, de forma a proteger o erário, vêm fazendo prévia liquidação dos contratos de concessão em vigência, de modo a fixar um valor de outorga suficiente para cobrir eventuais indenizações e verbas de desmobilização (exemplo desta solução foi a licitação do transporte urbano de Curitiba). A Administração Pública, por meio de comissão designada para esse fim, assegurando o contraditório ao então delegatário, apura o valor justo para liquidar a concessão, reconhecendo este crédito, em processo administrativo próprio, e permitindo a sua utilização como lance para adimplemento da outorga, condicionado a ampla e irrestrita quitação das obrigações subjacentes que o originou. Se outro for o vencedor do certame, com o valor da outorga arrecadado, a Administração faz a prévia liquidação da concessão até então em execução. Como o serviço de transporte coletivo não pode sofrer qualquer tipo de interrupção, devido a sua essencialidade, 44

é recomendável, inclusive, que se estabeleçam regras de absorção da mão de obra e da frota então em uso, como ponto de partida, e, necessariamente, a previsão das verbas para as rescisões trabalhistas conforme dispõe o art. 486 da CLT. Esta é a única forma de se evitarem rupturas, pois diferentemente das obras públicas, que sempre foram concebidas com princípio, meio e fim, com verba prevista no certame licitatório para mobilização e desmobilização, o serviço de transporte surgiu de iniciativa de pioneiros do ramo, muitos anos antes da regulamentação legal, sempre concebido como um serviço contínuo, que envolve constantes e relevantes investimentos em frota, bilhetagem eletrônica e outros. Ocorre que não há, nem nunca houve, rubrica específica nos cálculos tarifários dos diferentes serviços públicos a título de verba de desmobilização da concessionária, razão pela qual, se encerrada a concessão sem a prévia liquidação prevista no art. 35 e 42, da Lei no 8.987/1995, provoca-se um caos social. Sem contrato e sem verba de desmobilização, o concessionário sai “quebrado”, sem sequer ter condições de adimplir as obrigações trabalhistas. Esta é realidade de todas as delegações de transporte coletivo do País. O mesmo entendimento é perfeitamente replicável para os serviços de produção e distribuição de energia elétrica, distribuição de água etc. Todos os serviços públicos são essenciais e necessitam ser prestados em caráter contínuo, exigindo-se a previsão de mecanismos jurídicos que evitem a sua paralisação.

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Os primeiros precedentes judiciais que aplicam as regras de obrigatoriedade dos levantamentos necessários à liquidação dos contratos começam a brotar nos Tribunais pátrios (TJPR, Proc. n. 930256-9 – Apelação Cível e Reexame Necessário, NPU 0021548-05.2010.8.16.0004). As decisões, porém, não exigem que a efetiva liquidação seja prévia, o que, com a devida vênia, parece não ser o entendimento mais adequado. A razão para “zerar” o contrato antes de nova licitação é justamente deixar o concessionário em situação igual aos concorrentes externos, ou seja, para que ele entre em paridade de armas com outras empresas, sem ter sua situação financeira impactada pelo necessário investimento na continuidade do serviço que deve ser constante, mesmo no final do prazo contratual, quando, sabidamente, não se terá mais o tempo para recuperar o capital por recursos do próprio contrato. Em outras palavras, a indenização prévia atende ao princípio constitucional do tratamento isonômico do atual concessionário em relação aos concorrentes externos que entram sem a mesma necessidade de comprometer seus recursos na véspera do certame licitatório. Além disso, tendo em vista o grande risco que a morosidade do judiciário traz à eficiência dos serviços públicos (vide caso Varig), principalmente a fim de se evitarem danos irrecuperáveis ao equilíbrio econômico-financeiro, entendemos, por adequado, que os editais de licitações permitam aos concessionários ou permissionárias buscarem seus direitos patrimoniais disponíveis dos contratos de concessão com o Poder Público por meio dos processos de arbitragem. Essa possibilidade está prevista legalmente tanto na lei de concessões (Lei no 8.987/1995, art. 23-A) quanto na Lei das PPPs (Lei no 11.079/2004, art. 11, Inciso II) e vem sendo amplamente utilizada nas concessões de produção de energia hidrelétrica (por exemplo, contratos de concessão de Belo Monte e de concessão de Jirau). Lembra-se que se trata de solução perfeitamente possível no direito brasileiro, conforme já se verificou em precedentes jurisprudenciais.6 Conclusão O fortalecimento das instituições jurídicas é algo que deve ser prioritário em qualquer nação, pois, sem elas, o ambiente de investimentos é fragilizado e os incentivos para aplicar recursos nas atividades econômicas são diminuídos. A Lei confere previsibilidade ao direito e, por isso, a coerência deve ser observada pelos Julgadores para não minar a segurança jurídica. O direito é um dos instrumentos da política econômica, pois é por meio de normas que se estabelecem os diferentes instrumentos de controle da economia. As regras emitem sinais aos investidores que aplicam seus recursos na atividade econômica, avaliando os

riscos da própria atividade, levando em consideração o arcabouço jurídico que regula a sua atuação. Cabe ao ente público, em um clima de segurança, criar os incentivos corretos para direcionar o investimento para os setores essenciais da vida social. Por tal razão, reconhecendo-se a importância social de determinados tipos de serviços é que se criou o conceito de “serviço público”. A partir desse conceito, criou-se o sistema de delegação dessas atividades, reconhecendo-se a incapacidade do Estado de atender satisfatoriamente a todas as necessidades da população. Da mesma forma, a delegação busca diminuir alguns riscos do investidor em troca de uma limitação da remuneração pela atividade econômica, ou seja, estabelecem-se contratos de longa duração, em que o Poder Público exerce forte controle dos preços e da concorrência destes serviços. O investidor tem um retorno seguro do seu investimento, mas não pode ampliar a sua lucratividade com a mesma liberdade do serviço de natureza privada, em razão da importância social destes serviços ditos públicos. A lógica econômica deste sistema é justamente uma remuneração menor a um risco menor. Destarte, à luz do Law and Economics normativo, entendemos pela necessidade de aplicarem-se as normas de liquidação e indenização prévia, a fim de se conceder maior segurança jurídica ao investimento dos concessionários e permissionários, contribuindo para a essencial previsibilidade do direito. Este tratamento virá em benefício não só dos investidores, mas possibilitará a melhoria geral dos serviços públicos, em razão do direcionamento dos recursos econômicos para a qualidade do desenvolvimento dessas atividades econômicas, mesmo ao final do prazo contratual, quando já não mais se terá o tempo para recuperar o investimento por receitas oriundas do próprio contrato.

Notas SALAMA, Bruno. O que é Direito e Economia. In TIMM, Luciano (Org.). Direito e Economia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. (no prelo) 2 SALAMA, Bruno. Op. cit., p. 51. 3 SALAMA, Bruno. Op. cit., p. 13 4 Conceito de Custos de Transação foi criado por Ronald Coase em seu clássico artigo The Nature of the Firm (1937), disponível em meio eletrônico em http://onlinelibrary.wiley.com/ doi/10.1111/j.1468-0335.1937.tb00002.x/epdf. 5 http://data.worldbank.org/indicator/IC.BUS.EASE.XQ 6 TIMM, Luciano Benetti. Arbitragem em contratos públicos: o posicionamento do STJ no caso CEEE-RS vs. AES. Revista da PGM, Porto Alegre, n. 22, p. 97-101, dez./2008. Disponível em: <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/pgm/usu_doc/ revistapgm22.pdf>. Sentença do Processo 14512/22.2011.401.3400 da 17ª Vara Cível da Justiça Federal do Distrito Federal, sobre a cláusula compromissória prevista no Edital de Licitação do Trem de Alta Velocidade. 1

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Foto: Arquivo TJMG

A delação premiada tem limites na Lei no 12.850/2013 e não se confunde com o plea bargaining Doorgal Andrada

O

Desembargador do TJMG

plea bargaining existente no direito norteamericano permite, via de regra, que no processo penal a acusação e o réu bar­ganhem acordos entre si – quase que de modo privado – que nem sempre necessitarão de homologação da justiça, dependo da legislação de cada Estado membro. A delação premiada que está regulamentada na Lei no 12.850/2013 difere desde o nascedouro daquele instituto, pois o sistema judicial dos Estados Unidos da América é 46

forjado na Common Law (que prestigia os precedentes) enquanto o brasileiro, de origem romano-germânico, é baseado nos Códigos, na conhecida Civil Law, muito embora o modelo norte-americano cada dia mais caminhe em direção a esse sistema. O acordo havido entre o MP e o réu no plea bargaining pode ser bem mais amplo e não se submete aos limites legais rígidos previstos em códigos e leis como aqui. Há casos em que o acusado se beneficia com forte redução da

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sua pena apenas por confessar um crime. Outros recebem alteração na capitulação da denúncia, e há o benefício da prisão perpétua para afastar a pena de morte. No Brasil, como sabido, a delação premiada se faz nos limites da recente Lei no 12.850/2013, observado o devido processo legal e a estrita observância da legalidade penal/ processual penal. José Carlos Cal Garcia nos alerta: Não obstante a expressa menção à matéria típica de direito processual, os benefícios previstos ao réu delator têm nítido caráter material, tais como a redução das penas e a fixação do respectivo regime de cumprimento. [...] discutir a delação premiada significa inseri-la no contexto da função estatal voltada ao esclarecimento de determinados fatos e cuja rigorosa observância dos direitos fundamentais relacionados com o devido processo legal é pressuposto de validade e legitimidade. (Boletim Eletrônico Conjur, 8/10/2014).

O acordo público – penal – entre as partes terá de passar pelo crivo da homologação judicial e da sua previsão legal. Se benefícios homologados deixarem de observar a legalidade plena, certamente irão influenciar a sanção e o processo penal, ficando passível de nulidade toda a decisão, data venia. Seriam provas viciadas, oriundas de atos ilegais. Assim, os parâmetros do acordo limitam-se aos que estão autorizados pela Lei no 12.850/2013. O inesquecível e renomado Francisco de Assis Toledo leciona com muita propriedade:

Foto: Depositphoto

O princípio da legalidade, segundo o qual nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes desse mesmo fato tenham sido instituídos por lei o tipo delitivo e a pena respectiva, constitui uma real limitação ao poder estatal de interferir na esfera das liberdades individuais. (Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 21) [grifo nosso]

Lei, mas sem poder atuar com abusos ante tal prerrogativa, fazendo-o somente por meio do que está previsto na lei em sentido estrito e nele encerrar toda descrição da conduta proibida e a correlata sanção. Cabe registrar algumas regras básicas para a nossa delação premiada, pois a Lei no 12.850/2013, no caput de seu art. 4o e o parágrafo 1o, também no parágrafo 8o do art. 4o, autoriza prêmios pela colaboração sob os seguintes prismas, obrigatórios: • somente para aquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal; • levar-se-á em conta, para a concessão do benefício, a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração; • o juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais; • vier a favorecer unicamente o acusado colaborador efetivo, jamais terceiros ainda que réus. Não se perfazendo o conjunto das regras acima, o acordo poderá ser declarado judicialmente nulo. E, se não bastassem as regras mínimas acima descritas, também o caput do já citado art. 4o nos diz expressamente que o réu “colaborador eficaz” terá em troca uma gama de benefícios bem limitados na lei, e o delator poderá ser premiado tão somente com: a) perdão judicial; b) redução em até 2/3 da pena privativa de liberdade; c) substituição da pena corporal por restritiva de direitos. Portanto, tendo sido barganhado algum benefício não

O grande Aníbal Bruno registra e nos ensina: O rigor dessa limitação e a força dessas garantias estão no princípio que faz da lei penal a fonte exclusiva de declaração dos crimes e das penas, o princípio da absoluta legalidade do direito punitivo, que exige a anterioridade de uma lei penal, para que determinado fato, por ela definitivo e sancionado, seja julgado e punido como crime. (Direito Penal, PG. 1.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1956. p. 192) [grifo nosso]

Esse princípio da reserva legal é fundamento básico do nosso direito penal e processual penal. Por ele o Estado está, por um lado legitimado, a estabelecer restrições a direitos fundamentais do cidadão de forma limitada na 2015 Março | Justiça & Cidadania 47


previsto na lei, o réu poderá estar sendo aquinhoado com uma premiação ilegal, indevida, cabendo ao magistrado afastar a cláusula legalmente defeituosa ou até mesmo não homologar o acordo ilícito. Eventuais benefícios penais fora da previsão do texto da lei ferirão os sagrados princípios da legalidade, da ampla defesa e do devido processo legal. A título de exemplo, enumeramos alguns benefícios que não estão elencados como prêmio e, data venia, não podem ser ajustados pelas partes: a) estender os seus efeitos do prêmio a terceira pessoa indicada pelo réu, visando beneficiar quem não é colaborador efetivo; b) deixar o Ministério Público de representar contra ele réu ou deixar de oferecer denúncia; c) validar informações que não se mostravam necessárias ou imprescindíveis ao processo e que poderiam, quando muito, caracterizar a atenuante da confissão espontânea; d) validar em benefício do réu eventual atuação ilegítima da polícia no curso das investigações; e) permitir como prêmio qualquer vantagem econômico-financeira ao réucolaborador. Assim, o Ministério Público, embora seja o titular da ação penal, a persecussão penal se submete aos princípios da Indisponibilidade e Indivisibilidade e não poderá, com base na Lei no 12.850/2013, dispor da obrigatoriedade da denúncia, ou seja, a delação premiada não permite negociar o não oferecimento da peça penal exordial. É certo que a Lei no 12.850/2013 trouxe para si experiências exitosas da Lei no 9.099/1995, que inaugurou entre nós o espaço da justiça penal consensual, como a transação penal e a conciliação civil. Também se inspirou fortemente no plea bargaining vivido no direito

”O acordo público – penal – entre as partes terá de passar pelo crivo da homologação judicial e da sua previsão legal.”

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norte-americano, mas dele se difere como já dito, pois, ao contrário da nossa lei, permite alterar ou até evitar o oferecimento da denúncia, e, de outro lado, ainda supervaloriza a confissão. Quanto ao modelo alienígena, Gabriel S. Queirós Campos nos descreve as controvérsias sobre a barganha penal “privada” norte-americana: A plea bargaining, contudo, consiste em um dos aspectos mais controversos do sistema de justiça criminal dos Estados Unidos da América. A crítica mais grave formulada contra o instituto é a de inconstitucionalidade por supressão de direitos fundamentais do acusado. Na doutrina especializada, Lynch (2003, pp. 24-27) recorda que o Bill of Rights norte-americano estabelece uma série de salvaguardas para o acusado, incluindo o direito de ser informado das acusações, o direito de não se autoincriminar. […] Ele questiona: é legítimo que o Estado use seus poderes de acusação e sentenciamento (charging and sentencing powers) para pressionar o acusado a renunciar a seus direitos? Além dessa feroz oposição, mencionem-se também os seguintes argumentos contrários a plea bargaining (CHEMERINSKY, LEVENSON, 2008, p. 649-651): (a) ela pode pressionar um inocente a confessar culpa para evitar ser condenado por uma acusação mais grave. Por esse argumento, guilty pleas seriam as principais causas de condenações equivocadas; (b) embora o processo de plea bargaining seja normalmente encarado como um “contrato” ou “acordo” entre acusação e defesa, na verdade há grande disparidade de poderes nessa negociação; (c) por ocorrer em um cenário privado, fora do alcance dos olhos do público, reduz-se a confiança da sociedade de que “a Justiça foi feita”; (d) ela permite que o acusado deixe de ser responsabilizado por todos seus atos, recebendo um “desconto” da Justiça, reduzindo-se o efeito dissuasório da punição; (e) a frustração das expectativas da vítima do crime, que não participam do processo e podem não concordar com a sentença mais favorável ao acusado confesso; e (f) tratamento supostamente desigual entre réus, conforme a jurisdição e sua situação econômica (e capacidade de suportar os ônus de um julgamento regular).

Vistos, portanto, que estes dois institutos de justiça penal consensual – brasileiro e norte-americano – não se confundem e quase são incompatíveis, sobretudo em face da grande diferença judicial vivenciada – através de séculos – entres os dois países: Common Law × Civil Law. Além disso, a federação lá praticada na sua plenitude permite que cada Estado-membro crie o seu próprio modelo apropriado de plea bargaining.

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O futuro da advocacia

Evidências preliminares do projeto Globalization, Lawyers, and Emerging Economies da Faculdade de Direito de Harvard David B. Wilkins Bruno Barata

Vice-Reitor da Faculdade de Direito de Harvard Advogado

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Foto: Arquivo pessoal

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1. Negócio usual ou admirável mundo novo? is a questão intrincada que advogados ao redor do mundo têm feito nos últimos anos: a crise econômica global que teve início nos Estados Unidos da América (EUA) com a quebra do banco Lehman Brothers, em 2008, e eventualmente disseminada sob moroso ritmo na maioria das principais economias do planeta – incluindo o Brasil – revelou mudança de paradigma para a advocacia? Ou nós estamos, apenas, vivenciando uma espécie de correção proveniente de resultados adquiridos em crises econômicas passadas, e, com o tempo, tudo voltará ao status quo? O tamanho e a duração da crise atual levaram acadêmicos e alguns profissionais do Direito a concluir que o atual momento se traduz em um paradigma que resultará na “morte dos grandes escritórios” ou – sob um aspecto apocalíptico –, o “fim dos advogados”. É muito cedo para dizer que algo tão dramático ocorrerá; assim como os mais razoáveis observadores pensam ser pouco provável o desaparecimento de grandes escritórios de advocacia e, muito menos, de todos os advogados. No entanto, há ótima razão para acreditar que um conjunto de mudanças fundamentais no mundo atual, que começou antes de 2008, mas que foi acelerado e aperfeiçoado em decorrência da crise, tem o condão de revelar importante efeito no futuro de todos os advogados – não apenas os que desempenham funções nos grandes escritórios – e nos desafiará a repensar nosso pensamento sobre as práticas e ideais da advocacia.

David B. Wilkins

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Três mudanças relacionadas entre si são particularmente relevantes. A primeira é a globalização da atividade econômica e a crescente mudança do local dessa atividade (das economias desenvolvidas do Norte e Oeste para as economias emergentes do Sul e Leste). A segunda é a revolução da velocidade e a sofisticação da tecnologia da informação – revolução que é destinada a intensificar o desenvolvimento em nanotecnologia, computação em nuvem e inteligência artificial que, exponencialmente, multiplica nossa capacidade de gerar, acessar e processar informações. A terceira, finalmente, é que nós estamos vendo: uma crescente junção das categorias tradicionais de conhecimento e organização que temos usado para entender o nosso mundo. Não foi há muito tempo que nós acreditávamos que havia nítida distinção entre categorias como “público” e “privado” ou “global” e “local” – ou, mais relevante para nossos propósitos – “lei” e “negócio”. Não significa dizer que essas categorias não são mais importantes, mas, hoje, ninguém acredita que elas definam adequadamente o mundo complexo em que vivemos. Pode-se dizer que é senso comum que a combinação dessas três tendências já reformulou grande parte do mundo em torno de nós. E não é surpreendente que essas três tendências também estão remodelando a advocacia e o mercado jurídico global. No entanto, atualmente, existe muito pouca informação sistemática e objetiva sobre como essa reestruturação está ocorrendo. 2. Center on the Legal Profession da Faculdade de Direito de Harvard O Center on the Legal Profession (CLP), da Faculdade de Direito de Harvard, foi desenvolvido para preencher essa lacuna. O referido centro é focado em três objetivos fundamentais: (i) a criação de uma pesquisa empírica de forma sistemática e imparcial sobre questões complexas que envolvam a advocacia; (ii) o desenvolvimento de novos caminhos de preparação de estudantes de Direito para esses desafios, conjuntamente com a Educação Executiva da Faculdade de Direito de Harvard, em que se lecionam os cursos de Liderança em Escritórios de Advocacia e Liderança para Diretores Corporativos, para, dessa forma, preparar profissionais; e (iii) moldar nova parceria entre a Academia e a prática profissional. Uma das principais iniciativas do CLP é o projeto Globalization, Lawyers and Emerging Economies (GLEE). O GLEE é um projeto multinacional e multidisciplinar, a fim de estudar o crescimento do sofisticado mercado jurídico no Brasil, na Índia e na China (com planos da expansão da pesquisa, nos próximos anos, para África, Oriente Médio e países que formavam a antiga

“Não existe uma ‘advocacia global’, o que temos é um sistema ‘glocal’ complexo que apaga a fronteira entre o global e o local.”

União Soviética). No momento, possuímos mais de 50 pesquisadores no Brasil, na Índia e na China, estudando todos os aspectos do crescimento e desenvolvimento de escritórios de advocacia e departamentos jurídicos, a transformação do ensino jurídico e a capacitação jurídica nacional e internacional. No Brasil, o GLEE está trabalhando com um destacado grupo de pesquisadores, em sua maioria da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Apesar de as pesquisas estarem em andamento, identificamos diversos – e importantes – elementos nos quais a globalização, a ascensão da tecnologia da informação e a junção das categorias de conhecimento e organização, estão transformando a prática do Direito ao redor do mundo. 3. As cinco tendências da nova (e global) advocacia Cinco importantes tendências estão surgindo no Brasil e em outros mercados jurídicos emergentes. Caracterizamos essas tendências por meio de movimentos entre as seguintes imagens arquetípicas simplificadas da advocacia: institucionalização, diversidade, concorrência, regulação externa e “glocalização”. Confira-se. 3.1 Institucionalização A maioria dos advogados ao redor do mundo pratica a advocacia individualmente ou em sociedades muito pequenas, até mesmo informais. No entanto, verificase forte tendência para a prática da advocacia dentro de um contexto organizacional de tamanho e escopo aumentados. Essa tendência teve início nos EUA durante as primeiras décadas do século XX, mas rapidamente se espalhou para outras partes do mundo nas primeiras décadas do século XXI. Os advogados brasileiros e de outras economias emergentes agora trabalham em grandes escritórios de advocacia, departamentos jurídicos de sociedades empresárias, de órgãos públicos e outras instituições.

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3.2 Diversidade A advocacia é, tradicionalmente, uma das profissões mais restritas do mundo, tipicamente aberta, apenas, para homens. Hoje, a advocacia ao redor do planeta está se tornando uma profissão feminina, ou seja, a maioria (em muitos países, a maioria de novos profissionais do Direito são mulheres). Essa, com efeito, é uma tendência no Brasil, onde mais de 60% dos graduados em Direito são do sexo feminino. No entanto, o plano de carreira típico de um advogado, em particular para um advogado em um grande escritório de advocacia, não é concebido apenas para um homem, mas, para um homem que tem uma esposa que não trabalha – uma raridade no Brasil e em muitos outros países. Essas organizações devem, portanto, encontrar formas de acomodar as mulheres ou correr o risco de perder talentos para os outros que estão competindo por seus serviços, incluindo os concorrentes estranhos à advocacia Nesse sentido, veremos, cada vez mais, essa “guerra por talentos” que, forçosamente, se intensificará na medida em que a profissão – em todo o mundo – torna-se menos isolada e mais competitiva. 3.3 Competição O mercado jurídico tem se tornado consideravelmente mais competitivo nos últimos anos. Os clientes – em particular, os corporativos – que têm se tornado mais sofisticados quanto às suas necessidades legais e com maior acesso a uma rede global de fornecedores dispostos e capazes de fornecer essa assistência demandam maior transparência e prestação de contas dos escritórios de advocacia acerca dos serviços jurídicos prestados (requerendo, aliás, que os escritórios calculem os honorários pela execução desses serviços não pelo número de horas as quais seus profissionais se dedicaram, mas, sim, pelo valor do serviço para a sociedade empresária – “output model”). Uma série de novos “inovadores disruptivos” está tentando trazer esse mesmo tipo de sofisticação ao cliente individual. Mudanças regulatórias recentes começaram no Reino Unido que já estão se espalhando para outras jurisdições alimentarão esse tipo de inovação (incluindo a competição correspondente em todos os setores do mercado de serviços jurídicos, especialmente em países como o Brasil, onde a advocacia tem crescido muito rapidamente). 52

Foto: Mariana Fróes

Apesar disso, nossa maneira de educar e socializar jovens advogados continua a proceder como se estivéssemos preparando-os para uma carreira jurídica solo. Sendo assim, temos falhado no reconhecimento das implicações de “quem está se tornando advogado”.

Bruno Barata, advogado

3.4 Regulação externa Historicamente, em praticamente todas as jurisdições, a regulamentação da advocacia deu-se em grande parte – se não inteiramente – pelas mãos da própria classe. Na verdade, “autorregulação” – geralmente definida como a liberdade do controle do Estado – sempre foi uma das características definidoras do que significa ser um “profissional independente” em geral, e um advogado em particular. Embora a advocacia mantenha um poder regulador importante na maioria das jurisdições, nos últimos anos, o Estado tornou-se um ator destacado na regulação profissional em todo o mundo. O General Agreement on Trade in Services (GATS), tratado da Organização Mundial do Comércio, e outras iniciativas reguladoras multipartidárias são suscetíveis de acelerar ainda mais essa tendência. No entanto, apesar da globalização, destaque-se que a regulação do exercício da advocacia no Brasil, sobretudo quanto ao aspecto anteriormente destacado, fundamentase em outro viés, tendo em vista sua incompatibilidade com qualquer procedimento de mercantilização. 3.5 “Glocalização” Tradicionalmente, a advocacia tem sido uma profissão localizada, justificadamente; o necessário conhecimento da legislação de determinado local e os respectivos

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procedimentos judiciais e extrajudiciais contribuíram para a centralização da advocacia em certo espaço. Além disso, e ainda mais fundamentalmente, a advocacia sempre foi pensada como um serviço “pessoal”, no qual o advogado e seu cliente sentam-se à mesa para se comunicar e resolver problemas. Como resultado, a língua, a cultura e a geografia também contribuíram para a “localização” da prática jurídica. Hoje, todos nós sabemos que nenhuma dessas restrições é tão vinculante quanto era em outra época. No entanto, não existe uma “advocacia global”, única e muito menos uma cultura jurídica mundial unitária. Como resultado, o que temos – e é provável que teremos para um futuro próximo – é um sistema “glocal” complexo que apaga a fronteira entre o global e o local. 4. Preparando para o futuro Como dissemos no início, se as alterações descritas anteriormente anunciam mudança de paradigma ou apenas correção importante, é claro que devemos desenvolver novas maneiras de capacitar advogados para enfrentar os desafios do século XXI. O cumprimento dessas metas exigirá nova parceria entre acadêmicos, profissionais e associações profissionais.

Os acadêmicos devem se comprometer a realizar uma pesquisa objetiva e independente sobre essas e outras tendências de remodelação da advocacia, a fim de desenvolver maneiras novas e inovadoras para ensinar os advogados a enfrentar esses desafios. Os praticantes devem, por sua vez, estar dispostos a contribuir com ideias, informações e recursos por meio dos quais os acadêmicos realizarão o respectivo trabalho crítico. E as associações profissionais e os atores políticos devem estar abertos ao debate sobre os múltiplos – e às vezes conflitantes – objetivos e propósitos da profissão. O desenvolvimento desse tipo de parceria é fundamental no Brasil, com seus quase um milhão de advogados prontos para levar o país a alcançar o seu lugar de direito na nova ordem mundial, sendo certo, portanto, que os atores acima mencionados devem imbuir-se da sensibilidade necessária para adequar as novas tendências externas à prática interna da advocacia, em um evidente (e essencial) esforço conjunto. O projeto GLEE está empenhado em participar desse significativo processo. Estamos ansiosos para apresentar os resultados de nossa pesquisa em um futuro próximo, contribuindo para o diálogo sobre o futuro da advocacia brasileira.

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A arbitragem no âmbito das concessões de aeroportos Fernando Villela de Andrade Vianna

Renato Otto Kloss

Vice-Presidente do Setor de Direito Aeroportuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem

Diretor do Setor de Direito Aeroportuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem

D

esde a edição de sua lei regedora (Lei Federal no 9.307/1996), a arbitragem tem conquistado cada vez mais espaço no Brasil como uma forma alternativa de solução de conflitos. Em 2001, com o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) pela constitucionalidade dessa norma no leading case sobre a matéria (SE 5206), o instituto revestiu-se da necessária segurança jurídica para a sua ampla adoção em contratos privados e, posteriormente, nos administrativos. Isso ocorre especialmente porque a solução de conflitos pela via arbitral guarda indiscutível importância estratégica no âmbito dos investimentos privados, na medida em que a maior celeridade minora sobremaneira custos de oportunidade. Além disso, a garantia de confidencialidade das discussões travadas e de seu resultado final, bem como a submissão do caso a árbitros de reconhecida expertise na matéria, constituem diferenciais sobejamente caros aos investidores, especialmente os estrangeiros, independentemente de toda a confiança que se deposite no Poder Judiciário. Com a implementação do Programa Nacional de Desestatização (PND) na década de 1990, a consolidação da arbitragem como fator favorável à atração de investimentos externos evoluiu a passos largos. O setor de telecomunicações foi o primeiro a prever a inserção de cláusula, definindo modo para solução extrajudicial de divergências nos contratos de concessão, nos termos 54

“No atual programa de concessões, o governo federal envolveu o centro nervoso da malha de transporte aéreo nacional, incluindo os aeroportos de maior movimentação e que são os principais distribuidores de voos do País.”

da Lei Federal no 9.472/1997 (art. 93, XV). Em seguida, vieram os setores de óleo e gás (Lei Federal no 9.478/1997, art. 43, X), transportes aquaviários e terrestres (Lei Federal no 10.233/2001, art. 35, XVI) e energia elétrica (Lei Federal no 10.848/2004, art. 4o, § 5o).

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As concessões aeroportuárias no âmbito do Programa de Investimento em Logística (PIL) A gestão pública de aeroportos brasileiros, até o início da década de 2010, era concentrada na Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero), empresa pública que tem por objeto implantação, administração, operação e exploração, comercial e industrial, da infraes­ trutura aeroportuária e a prestação de consultoria e assessoramento, naquilo que lhe compete, à construção de aeroportos.2 Cabia à Infraero também a superintendência técnica, operacional e administrativa das unidades da infraestrutura aeroportuária, bem como a promoção da constituição de subsidiárias para gerir unidades de infraestrutura aeroportuária cuja complexidade exigisse administração descentralizada. Com as fragilidades do modelo estatal de administração aeroportuária e diante da premência por investimentos maciços e imediatos no setor em virtude das necessidades impostas pela promoção da Copa do Mundo de Futebol da Fifa em 2014 e pelos Jogos Olímpicos de 2016 no País, a desestatização dos aeroportos brasileiros de maior expressão tornou-se necessidade insuperável. Assim, em 2011 foi realizada a primeira concessão aeroportuária federal, com o Aeroporto de São Gonçalo do Amarante/RN, que serviu de balão de ensaio para a modelagem definida. Aberto o caminho, veio, em 2012, a primeira rodada de licitações para a concessão dos aeroportos de Brasília, Viracopos e Guarulhos, e em 2013 os aeroportos do Galeão e de Confins. Muito embora já existissem aeroportos públicos administrados pela iniciativa privada, seja por concessão de serviço público, como é o caso do Aeroporto Internacional de Cabo Frio, ou por meio de contratos de prestação de serviço, fato é que a concessão desses seis aeroportos inaugurou estágio absolutamente inédito em gestão de infraestrutura aeroportuária no Brasil.

Foto: Arquivo pessoal

Por fim, o uso dos meios alternativos de solução de controvérsias ganhou a amplitude máxima no âmbito dos negócios celebrados pela Administração Pública, com a sua previsão na Lei Federal no 11.079/2004 (art. 11, III), que regula as parcerias público-privadas e com a sua inserção na Lei Federal no 8.987/1995, das ditas concessões tradicionais de serviços públicos, fruto do acréscimo do art.23-A1 pela Lei Federal no 11.165/2005. Nesse contexto, diante da decisão do governo federal de realizar a desestatização da administração dos principais aeroportos do País, inaugurando um novo campo de investimento de capital privado, em grande parte de origem estrangeira, nesse segmento de mercado, a referência à arbitragem era esperada e desejada.

Fernando Villela de Andrade Vianna

Isso porque essas são as primeiras concessões realizadas diretamente pela União Federal. As poucas existentes anteriormente ocorreram a partir da delegação de competência da União para estados e municípios, mediante a celebração de convênios, e sempre se relacionavam a aeroportos de menor expressão. No atual programa de concessões, o governo federal envolveu o centro nervoso da malha de transporte aéreo nacional, incluindo os aeroportos de maior movimentação e que são os principais distribuidores de voos do País (hubs). Se isso, por si só, já garante elevada complexidade às concessões, soma-se ainda a previsão da execução de pesados pacotes de investimentos e a obrigatoriedade de associação do licitante vencedor com a Infraero, para a criação de sociedade de propósito específico (SPE), com 49% de participação daquela estatal. Complexidade técnica da operação, elevados investimentos, dever de associação societária com o próprio Estado e a submissão a um novel marco regulatório – e ainda em formação – compõem panorama de adversidade significativa, de modo que a adoção, pela União, de medidas mitigadoras dos riscos envolvidos, capazes de aumentar a atratividade dos negócios, se revelou mais que recomendável. E a previsão da arbitragem em todos esses contratos se dá nessa linha. Passa-se a abordar, assim, as especificidades do emprego da cláusula compromissória nesses ajustes.

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Foto: Arquivo pessoal

A arbitragem nas concessões aeroportuárias Os contratos de concessão dos aeroportos de São Gonçalo do Amarante, Brasília, Viracopos, Guarulhos, Galeão e Confins dispõem de idênticas cláusulas compromissórias, presentes no item 15.5 do primeiro e no item 16.5 dos demais, com a seguinte redação: Quaisquer litígios, controvérsias ou discordâncias relativas às indenizações eventualmente devidas quando da extinção do presente contrato, inclusive quanto aos bens revertidos, serão definitivamente resolvidos por arbitragem, de acordo com o Regulamento de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI (doravante simplesmente denominado de “Regulamento de Arbitragem”), observadas as disposições da presente Cláusula e da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996.

Novamente por força de se ter um marco regulatório, regedor dessas concessões, muito recente, ainda sem tempo hábil para a formação de massa crítica sobre suas disposições, a aplicação da referida cláusula já suscitou consultas voltadas à definição de sua exata inteligência. Em suma, a pergunta a ser respondida é simples: o que pode ser submetido à arbitragem nessas concessões aeroportuárias? Em uma primeira abordagem, a cláusula pode parecer indicar que a arbitragem só seria possível nas hipóteses em que litígios, controvérsias ou discordâncias se relacionem às indenizações eventualmente devidas quando da extinção do contrato. Ter-se-ia, assim, uma previsão extremamente restrita de aplicação da arbitragem, contemplando, ao fim e ao cabo, um único tipo de litígio autorizador do estabelecimento do juízo arbitral – a discussão do valor da indenização devida pelo Poder Concedente ao concessionário, por ocasião do fim da concessão, notadamente a envolver o retorno de investimentos realizados e ainda não amortizados ou depreciados, a teor do art. 36 da Lei Federal no 8.987/1995.3 No entanto, leitura mais atenta identificará que o uso da conjunção coordenativa alternativa “ou” suscita outra leitura do conteúdo da cláusula compromissória, na qual são três as hipóteses de cabimento do procedimento arbitral: (i) para a solução de litígios, (ii) controvérsias ou (iii) “discordâncias relativas às indenizações eventualmente devidas quando da extinção do presente contrato, inclusive quanto aos bens revertidos”. Essa interpretação baseia-se, de pronto, no postulado hermenêutico segundo o qual não deve haver, tanto nas leis quanto nos contratos, palavras inúteis. Assim, se a cláusula faz menção a litígios, a controvérsias e a discordâncias relativas às indenizações eventualmente devidas quando da extinção do contrato, não se deve daí depreender que haveria uma única hipótese de aplicação da regra. 56

Renato Otto Kloss

Tem-se até aqui, entretanto, uma reflexão baseada apenas na literalidade da disposição, sendo aconselhável a busca de outros parâmetros de interpretação, para a confirmação dessa conclusão inicial. Identificados, pois, dois possíveis conteúdos, é necessário identificar o verdadeiro conteúdo da cláusula, conforme determina o art. 112 do Código Civil.4 Para tanto, far-se-á uso do ferramental hermenêutico, buscando enfrentar as duas interpretações segundo os critérios lógico-sistêmico, teleológico e axiológico. Não se fará uso do critério histórico, uma vez que os contratos administrativos são contratos de adesão, de sorte que não há negociação envolvida na formação e construção das disposições contratuais. O critério lógico-sistêmico de interpretação demanda o cotejo das cláusulas contratuais com outras de um mesmo instrumento, bem como com as normas do ordenamento jurídico. Nessa linha, interessante perceber que a cláusula compromissória está inserida no capítulo XVI, que versa sobre as disposições finais do ajuste. A relevância do posicionamento topográfico da cláusula fica evidente quando se nota que há, nos contratos em análise, um capítulo específico sobre a extinção da concessão (capítulo XIII). Assim, se a arbitragem estivesse limitada às divergências relativas às indenizações eventualmente devidas quando da extinção do contrato, certamente a cláusula estaria inserida no capítulo sobre o término do contrato.

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A opção do Poder Concedente por incluir a cláusula compromissória nas disposições finais do contrato, que tocam toda a avença, permite inferir que aquela regra não se restringe às indenizações pela extinção do contrato, como se poderia desavisadamente supor. O critério teleológico, como sabido, busca a definição da melhor interpretação a partir do fim buscado pelas partes com o contrato, e com a cláusula em específico. Conforme exposto anteriormente, a arbitragem é relevante atrativo para investimentos privados, em razão das repercussões econômicas de sua adoção, e não por outro motivo a possibilidade de sua utilização pela Administração Pública vem sendo expandida pela legislação pátria. E é sob essa perspectiva – de atração de investimentos e ampliação do espectro de abrangência – que a interpretação aberta da cláusula compromissória se apresenta como a mais adequada. Finalmente, vale trazer a esse estudo o critério axiológico de interpretação, a envolver a análise das cláusulas contratuais tendo em conta os valores que o ordenamento jurídico pretende tutelar, como a boa-fé e a função social dos contratos. O princípio da boa-fé objetiva, na dicção do art. 113 do Código Civil,5 exerce função interpretativo-integrativa, devendo prestigiar os fins buscados pelas partes mediante o contrato e impedindo que a expressão literal de suas cláusulas venha a atingir finalidade oposta ou contrária àquela que, razoavelmente, seria lícito esperar. Na hipótese em análise, como se assinalado, a inserção de cláusula de arbitragem teve o indiscutível condão de contribuir para a atração de investidores para o setor de infraestrutura aeroportuária, sinalizando maior flexibilidade e celeridade na solução de eventuais disputas. Especialmente por serem os contratos administrativos acordos de adesão, a interpretação deverá sempre ser a mais favorável ao concessionário-aderente, conforme determina o art. 423 do Código Civil,6 o que legitima, portanto, o direito do particular a se valer de uma leitura ampla da cláusula compromissória, a abarcar a maior variedade possível de disputas que possa advir do respectivo relacionamento contratual. No que concerne à função social do contrato, é conveniente anotar que os contratos de concessão de serviços públicos têm por desiderato a satisfação de uma demanda por determinado serviço, o qual deverá ser prestado de forma a satisfazer “as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”.7 À luz do princípio da eficiência – orientador não só das concessões de serviços públicos, mas de todas as relações pautadas no Direito Administrativo –, o procedimento arbitral é o melhor meio de se atingir o fim público de

pacificação de conflitos em contratos administrativos que contemplem direitos patrimoniais disponíveis do Estado, em razão de ser mais célere, econômico, técnico, informal e participativo do que o procedimento judicial.8 Além disso, a arbitragem ainda encontra amparo no princípio da consensualidade, tão enaltecido nos tempos atuais. Isso posto, revela-se notório que litígios relacionados a interesses patrimoniais da Administração Pública não raro se estendem por vários anos, não sendo difícil concluir que a perpetuidade desse cenário de incertezas é prejudicial a todos os interesses que legitimamente se manifestam no âmbito desses ajustes, inclusive o dos usuários. É, pois, o que conduz à conclusão de que a função social dos contratos de concessão será mais bem atendida sempre que se extrair desses instrumentos a inteligência que potencialize todos os interesses em jogo. E a morosidade na solução de conflitos certamente não se amolda a essa finalidade. Conclusão A arbitragem, instrumento há muito utilizado nas relações privadas, foi incluída pelo legislador ordinário, de forma abrangente e reiterada, no rol de instrumentos postos à disposição da Administração Pública, com o objetivo precípuo de atrair investimentos privados a setores sensíveis e carentes de investimentos em infraestrutura. No caso específico das concessões aeroportuárias, leitura mais atenta às cláusulas compromissórias presentes nos contratos celebrados revela um permissivo para adotar a arbitragem na solução de quaisquer litígios e controvérsias, inclusive aqueles relativos às indenizações devidas ao término do contrato, destacadamente considerados.

Notas Art. 23-A. O contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996. 2 Lei Federal no 5.962/1972, art. 2o. 3 Art. 36. A reversão no advento do termo contratual far-se-á com a indenização das parcelas dos investimentos vinculados a bens reversíveis, ainda não amortizados ou depreciados, que tenham sido realizados com o objetivo de garantir a continuidade e atualidade do serviço concedido. 4 Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem. 5 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. 6 Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente. 7 Art. 6o, §1o, da Lei Federal no 8.987/1995. 8 FERRAZ, Rafaella. Arbitragem em litígios comerciais com a administração pública: exame a partir da principialização do direito administrativo. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. p. 35. 1

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Itaboraí

Conheça Itaboraí, a cidade que será a segunda capital do estado e o melhor lugar para sua empresa.

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Mediação, Arbitragem, Conciliação e Negociação

Luiz Felizardo Barroso

Professor Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais Membro da Academia Fluminense de Letras

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Foto: Arquivo pessoal

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á, em tramitação no Congresso Nacional, quatro Projetos de Lei sobre Mediação: PLS no 517/2011 do Senador Ricardo Ferraço (mediação judicial e extrajudicial); PLS no 434/2011 de iniciativa do Ministério da Justiça (mediação extrajudicial, judicial, pública e on-line); Senado Federal – PLS no 405/2013 – de iniciativa do Ministro Luís Felipe Salomão (mediação extrajudicial e on-line) e mais o Projeto no 4827/1998, de autoria da Deputada Zulaiê Cobra (no 94/2002, no Senado). Impende que recordemos alguns conceitos como os da própria Mediação, Arbitragem, Conciliação e Negociação, para que melhor as situemos no universo em que estão inseridas, estendendo-nos, ao final, um pouco mais sobre a figura jurídica da Negociação, bem como sobre seus atores, já que esta figura encontra-se no âmago de todas as demais. Tanto a Mediação, como a Arbitragem, a Conciliação e a Negociação estão insertas no sistema que se convencionou chamar de não adversarial, que têm em mira preservar o bom relacionamento entre as partes, tratando os conflitos entre elas como eventos episódicos, não necessariamente negativos ou disfuncionais. Representam fatos da vida e ocorrem, por exemplo, quando pessoas ou entidades estão envolvidas em competição para o atingimento de metas, à primeira vista incompatíveis, ou quando entram em divergências ou, simplesmente, quando não puderam cumprir o pacto, no tempo e pelo modo convencionados. No sistema não adversarial, como o próprio nome indica, não há adversários, muito menos perdedores, ou

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ganhadores em uma disputa, contrariamente às pendengas judiciais, em que o perdedor, condenado pelo juiz estatal, sucumbe ao ganhador da demanda, guardando certo ódio ou, ao menos, grande ressentimento para o resto da vida. Mediação Caracteriza-se a Mediação pela eleição de um terceiro, o mediador, para ajudar na solução de um conflito, cuja função será apenas a de um facilitador, para que as partes cheguem a uma solução em face do impasse surgido. O processo de Mediação é menos formal que o da Arbitragem. Nela, as disputas são orientadas no sentido de se chegar a uma solução aceitável para ambas as partes, por acordo, ou mútuo consenso. Ao contrário, na Arbitragem é prolatada uma sentença – que não poderá mais ser questionada em juízo –, pondo-se, portanto, fim à questão. Arbitragem Sinônimo de arbitramento. Igual a julgamento, ou decisão, averiguação, ou avaliação feita por árbitro ou árbitros. Solução outorgada de uma ou mais controvérsias, favoravelmente, a uma ou mais pessoas de direito privado, por força de um acordo, ao qual se dá o nome de compromisso arbitral e pelo qual se manifesta, previamente, a vontade contratual de se transigir e conciliar, sujeitando-se à decisão do árbitro. Essa decisão arbitral não será válida ou justa, simplesmente porque se trata de um ato de autoridade, mas porque foi aceita, preventivamente, pela livre vontade das partes, que a tanto se comprometeram. A única diferença entre o árbitro e o juiz estatal é que o primeiro não dispõe de poder executório ou coercitivo, mas isso não significa dizer que não possua jurisdição, tal qual a possui o juiz estatal. O franchising e a arbitragem Seja qual for a alternativa, recomenda-se a adoção da cláusula compromissória de preferência cheia, para se desencadear a solução arbitral de conflitos. No plano interno, por exemplo, o anteprojeto proposto pelo Fórum Setorial da Franquia Empresarial, em seu artigo 6o, parágrafo único, prevê que a dirimência das pendências contratuais firmadas pelas partes possa se fazer, também, por juízo arbitral. In verbis: Art. 6o- [...] Parágrafo Único: “A solução das pendências contratuais firmadas pelas partes poderá, também, ser dirimida por juízo arbitral.

No Brasil, temos, pois, essa iniciativa parlamentar, qual seja a de uma proposição de alteração da atual lei do franchising, para que seja admitida a dirimência de litígios,

entre franqueador e franqueado, por meio do mecanismo da arbitragem. Nada impede, porém, que se recorra à solução arbitral de conflitos, em franquia empresarial, por exemplo, ou em qualquer outro tipo de relação contratual, mesmo sem previsão legal. Contudo, o contrário, será sempre preferível, tanto que a Associação Brasileira de Franchising (ABF Nacional) firmou convênio com o Conselho Arbitral do Estado de São Paulo (Caesp) e o Instituto de Mediação e Arbitragem do Brasil (IMAB) e está aconselhando seus associados a incluir, em seus contratos, a cláusula arbitral cheia e a recorrer a esaas instituições, preferencialmente ao Poder Judiciário, para a solução de impasses surgidos em seu relacionamento e que não possam ser removidos facilmente, sem a interferência de um mediador ou árbitro. Conciliação Dá-se a conciliação pela interferência de um facilitador para solução de um conflito. Nas Comissões de Conciliação Prévia, o conciliador se utiliza de alguns instrumentos de convencimento e de todas as técnicas de Negociação de que for capaz para facilitar a conciliação. Tal qual o mediador, o conciliador também funciona como um facilitador, para ajudar na solução do conflito estabelecido, possuindo, no entanto, um poder maior que o do mediador, podendo sugerir soluções para o referido conflito. O problema é que, na conciliação, o terceiro escolhido pelo Judiciário, por exemplo, não possui grandes especialidades, nem sempre o preparo técnico-jurídico requerido, sendo gritante, às vezes, sua falta de experiência. Ele até que não precisaria ser bacharel em direito, como, aliás, tem ocorrido, frequentemente no Juizado Especial Cível; nem isso é tão importante assim. Mas o problema é que eles têm se constituído em meros estagiários, sem nenhuma titulação, muito jovens, ainda, sem experiência profissional e, portanto, nem ao menos aquela proporcionada pela própria vida. O ideal mesmo é que o Conciliador tenha especialização na matéria, em que esteja sendo tentada a solução. Dessa maneira, ele terá maior capacidade para entender quais os aspectos realmente relevantes, dentro da estrutura do conflito. Negociação A palavra negociação é associada às vezes a negócio da qual seria derivada. Etimologicamente, porém, negotium não designa especificamente comércio, mas, sim, o conceito de atividade, utilidade; da ausência do ócio, da desocupação ou inatividade. (in ADRS – Métodos alternativos de solução de conflitos, análise estrutural, fundamentos e exemplos na prática nacional/internacional, GARCEZ, José Maria. 1.ed. [s.l.]: Lúmem Juris, 2013. p. 29).

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“Negociar não é, pois, coisa só de vendedores. Executivos de todas as áreas ganham muito ao dominar essa arte.”

O poder de uma negociação está na credibilidade, e esta se estabelece nos detalhes. Cumprir os prazos e ligar quando se promete, por exemplo, fazem parte dos detalhes. (JÚLIO, Carlos Alberto. Presidente de HSM. In Gazeta Mercantil, 4/6/2003, p. B).

representantes de seus contratantes, ao lado dos contratados daqueles para encontrar e negociar uma solução que atenda aos interesses de ambas as partes, têm colaborado, eficazmente, quando mais não fosse, para desafogar o Judiciário, evitando que mais uma ação judicial seja distribuída, com a resolução amigável do impasse financeiro, até então existente. As empresas de recuperação de ativos financeiros exercem, pois, nesse particular, uma missão social muito importante, a qual, a despeito disso, não foi até hoje bem compreendida por seus contratantes nem, muito menos, por nossas autoridades constituídas, que deveriam, por isso mesmo, exercer ação de apoio mais consistente em prol da robustez, higidez e hegemonia dessas mesmas empresas. Afinal elas trabalham sob o regime que se diz de parceria empresarial. Além de desafogo do Judiciário, as empresas de recuperação de ativos financeiros, complementando sua função social, reinstauram a cidadania do financiado, até então inadimplente e sujeito passivo de restrições creditícias, devolvendo-lhe sua capacidade para um endividamento consciente e sadio, com a contratação de novos empréstimos, se assim lhe convier. As empresas de recuperação de ativos financeiros, porque se valem institucionalmente da negociação, contribuem, pois, para que tenhamos uma sociedade mais justa, na qual os conflitos terão uma solução mais rápida e adequada, visto que levam sempre em conta os “dois lados da mesma moeda”, favorecendo o diálogo, ajudando, enfim, a sociedade a pacificar-se, tornando-a mais humana e igualitária.

As empresas de recuperação de ativos Como uma das formas de terceirização de serviços financeiros específicos e não consistentes do core business das instituições bancárias, a negociação praticada pelas Empresas de Recuperação dos Ativos Fungíveis por Excelência, colocando-se, como

O processo de negociação Todavia, não se iludam: a negociação é um processo consumidor de tempo e energia que gera impaciência nos mais afoitos. Além do mais, o negociador, embora represente uma das partes que, com a outra, quer, ou precisa negociar, deve, tal qual o mediador, no momento

Em uma acepção extensiva, segundo a origem etimológica da palavra, dá-se a Negociação quando as próprias partes, ou pessoas contratadas por ela, “negociam” diretamente, sem a interferência de um terceiro. A negociação existe desde que o mundo é mundo. Gostemos ou não, todos nós somos negociadores, sendo a negociação um fator da vida cotidiana, exercido a todo o momento, todos os dias, embora muitos não se deem conta. (conforme Roger Fischer e William Ury, integrantes de Harvard Negotiation Project, onde é utilizado seu manual intitulado Getting to yes Negotiation Agrement’s, apud autor e obra citados, p. 36).

Negociar não é, pois, coisa só de vendedores. Executivos de todas as áreas ganham muito ao dominar essa arte. Para que se verifique a negociação, não há necessidade da existência prévia de um conflito, aparentemente insolúvel só pela boa vontade das partes. Basta que surjam pontos de vistas contrários, ou divergências de cálculos ou mesmo pelo simples fato de que uma das partes não sabe, sequer, se a outra está disposta a negociar. Várias são as técnicas de negociação e mesmo obras inteiras são escritas e publicadas a respeito. Citaremos, como exemplo lapidar, o livro intitulado “Como Chegar ao Sim”, de coautoria de William Ury, professor da Harvard University, antes citado.

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em que as partes estiverem dispostas a renunciar um pouco cada qual de seus direitos, observar os seguintes dez mandamentos: Os Dez Mandamentos do Bom Negociador: 1 – Ter a paciência de Jó; 2 – Possuir as características de um lord Inglês; 3 – Dominar a astúcia de Maquiavel; 4 – Ser impenetrável como um rinoceronte; 5 – Fazer voto de silêncio como um Sacerdote, após do confessionário; 6 – Ser conhecedor em profundidade do processo de barganha; 7 – Ter a sabedoria de Salomão; 8 – Atingir a serenidade das águas de um lago; 9 – Ter a firmeza de uma montanha; e, por fim, 10 – Ser determinado como uma bússola.

Diretrizes para a Negociação Cristina Donadio, em seu artigo “A Negociação para Recuperar Empresas”, publicado na extinta Gazeta Mercantil, de 6/12/2004, elenca diversos pontos basilares, os quais, a nosso ver, podem servir de diretriz para qualquer tipo de negociação, devendo ser respeitados pelo negociador e/ou mediador para o sucesso do projeto e, entre eles: a) Ter a satisfação de seu cliente, como compromisso e meta; b) Sempre ter em mente a linha do tempo, a melhor estratégia e utilizar critérios objetivos para cada um dos procedimentos; c) Ter atenção e cuidado especiais com o momento da negociação. Deve organizar quantas reuniões e quantos contatos forem necessários, mas não em demasia, já que grande parte das reuniões é inútil e sem foco; d) Ter sempre em mente os prós e contras do negócio como um todo. Muitas vezes é preferível ceder em um dos pontos para fortalecer outro, não deixando que a intransigência e a falta de visão do “todo” comprometa o sucesso do projeto; e) Negocie e concentre-se, até o final, nos interesses e não nas posições, ou nas pessoas (acrescentaríamos nós), respeitando sempre o “dia seguinte” das partes envolvidas; f) Não se apegue pessoalmente ao projeto. Se necessário para seu sucesso, alterne os interlocutores; g) Cuidado com o acirramento irracional do conflito, com propostas excessivamente agressivas ou ameaçadoras. Elas podem simplesmente encerrar o processo sem que se chegue a uma composição; h) Atenção à estrutura dos pontos mais importantes do projeto. Ouça com atenção os argumentos das partes envolvidas e sempre obtenha o maior número de informações possíveis que poderão

auxiliá-lo no futuro do projeto e eventual mudança estratégica. Previamente, prepare-se para o contato direto com os interlocutores; pesquise quem são as partes, e qual o atual contexto da questão. Tenha em mãos todos os pontos para fazer da reunião a mais produtiva possível e não ser surpreendido com “novas informações e argumentos” da outra parte. Deixe de lado, ao menos nas primeiras tratativas, discussões acerca dos aspectos jurídicos. Importe-se, sempre, com os interesses do seu cliente. E a dica que consideramos a mais preciosa: tente descobrir qual o “mínimo aceitável pela outra parte”. Não poderíamos finalizar esta matéria sem antes trazer algumas advertências do eminente professor William Ury, já citado, como sejam: No instante da negociação, “ouvir com atenção e colocarse na pele do outro”. Isso significa: “encontrar os genuínos interesses por trás das posições assumidas”. “Analisar os fatos sob um viés destituído de julgamentos pré-concebidos, o que requer controle das emoções de preparação; em suma: desligar-se de seu ego”. “Muitas pessoas veem a Negociação como a divisão de uma torta, em que, quanto maior o pedaço que um dos lados pega, menor o que sobrará para o outro”. “O segredo é expandir a torta antes da divisão, criando valor para o todo”.

Em uma negociação entre empresas, que se arrastou por dois anos e meio, após quatro dias de intensa negociação, as partes perceberam, afinal, que, “o que queriam era liberdade e dignidade para seguirem em frente com suas vidas” (Valor Econômico, 21/11/2013, p. D3 – Gestão Negociar é separar as causas das pessoas, entrevista com William Ury). Ser feliz, portanto, é o que importa, concluímos nós. Para finalizar, invocamos a sábia advertência de Abraham Lincoln, um dos principais arquitetos da democracia norte-americana, que governou os Estados Unidos da América durante a fraticida Guerra de Secessão (1861-1965), em que os estados do Sul aristocrata lutaram contra os do Norte industrializado. São suas essas palavras, que ressaltam a importância do papel do profissional do direito nas disputas judiciais, no sentido de evitá-las ao máximo, por meio da negociação. Procurai evitar litígios. Persuadi, sempre que puderdes, vossos vizinhos a entrarem em composição. Mostrai-lhes como o vencedor nominal de uma pendência judiciária é, na realidade, muitas vezes quem perde: em custas, despesas e tempo. Agindo como apaziguador, o advogado tem excelente oportunidade de ser um homem de coração.

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O inquérito policial como instrumento de garantia

Fernando Veloso

Chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro

No cotidiano da Polícia, concretizam-se as decisões valorativas da Constituição.”: palavras de Peter Alexis Albrecht.1 Nesse sentido, a legitimação democrática da polícia judiciária, antes do papel repressivo da persecução de fatos puníveis, repousa na salvaguarda dos direitos e das garantias dos cidadãos. Decorre de tal raciocínio que a polícia judiciária, como agência investigativa, não poderá operar adstrita aos interesses da acusação, mas à verdade real dos fatos. Frisese: a função da polícia judiciária está indissoluvelmente ligada à apuração e elucidação da verdade dos fatos (sic: certeza processual aproximada). “A Polícia tem de investigar os fatos e de tomar as medidas necessárias ao seu esclarecimento, de modo independente, ou seja, sem que haja uma requisição ou uma ordem do Ministério Público”.2 Avançando o raciocínio, pode-se descortinar outra finalidade destinada ao inquérito policial, qual seja a de promover a garantia que tem o cidadão de não ser processado sem prévia apuração do fato e da autoria, obstaculizando ações penais temerárias. Acusar um indivíduo, imputando-lhe a autoria pela realização de um fato típico, ilícito e culpável, de forma despida de elementos mínimos de prova, é a mais chocante e nefasta violação ao senso moral da humanidade civilizada. Destarte, outra não pode ser a conclusão de que, no processo penal moderno, o escopo do inquérito policial, presidido pelo Delegado de

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Polícia, deva funcionar como filtro de contenção do poder punitivo imoderado do Estado, fazendo triunfar o estado de direito sobre a barbárie. Pensamos estar completamente superada a concepção clássica atribuída ao inquérito policial, conceituado como mera peça informativa, vigilante puramente dos interesses do titular da ação penal. Segundo a afonsina lição de José Frederico Marques, “a investigação é atividade estatal da persecutio criminis destinada a preparar a ação penal”.3 Nada mais ultrapassado e distante do estado democrático de direito. Na medida em que os Delegados de Polícia são os titulares da primeira intervenção jurídico-penal do fato, logo os primeiros protetores dos bens jurídicos dos cidadãos, o inquérito policial transforma-se inevitavelmente no primevo instrumento de racionalização e organização da disciplina do direito penal. Nesse viés, deve ser acentuado que o instituto do inquérito policial precisa ser compreendido como um saber digno e humanizado da disciplina social, responsável por promover o estado constitucional de direito. E como realizar esse projeto constitucional? Com a constitucionalização da investigação policial. Dessa forma, urge superar a visão utilitarista do inquérito policial, que não se trata de uma teia de aranha à qual se procuram pendurar os suspeitos de uma prática criminosa, tratados como objetos de investigação. Essa

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Foto: Arquivo pessoal

concepção, que desvaloriza o indivíduo, sujeito de direitos, em favor de supostos interesses do corpo social, não serve mais aos propósitos modernos. Primeiro devem ser observadas as garantias do indivíduo e, em sequência, o Estado. Sustentar o contrário seria equivalente a pregar o recuo da cultura jurídica aos tempos medievais. A nova seiva que deve possuir os estudos e as investigações científicas do inquérito, como processo policial investigativo, é a da reconstrução da verdade. Não qualquer verdade para buscar a condenação. A verdade reconstruída à luz do princípio da Paridade de Armas entre acusação e defesa. Para o Delegado de Polícia, a finalidade do inquérito policial será alcançada caso o resultado das diligências investigativas conclua pela identificação da justa causa habilitadora da ação penal (fato aparentemente típico, ilícito, culpável e elementos mínimos de autoria e materialidade). Da mesma forma, a finalidade do inquérito policial restará satisfeita caso as diligências investigativas, após a análise técnico-jurídica do fato, concluam pela inocência do investigado e consequente ausência de responsabilidade penal. Para o Delegado de Polícia, o valor da denúncia ou queixa-crime não difere do valor do arquivamento da ação pelo magistrado, uma vez ultimada a investigação que é marcada pela neutralidade. A culpabilidade e

inocência do investigado são predicados ou qualidades do atributo da verdade. O Delegado de Polícia é imparcial em relação ao resultado do inquérito policial. Seu escopo, como presidente do inquérito, é aplicar corretamente a lei penal e investigar laboriosamente a verdade dos fatos, dentro das balizas constitucionalmente admitidas. Não é sem razão que Luigi Ferrajoli, na sua monumental obra “Direito e Razão”, estabelece, no que tange a necessidade de imparcialidade, paralelismo do Delegado de Polícia com os Juízes de Direito: Em particular, a polícia judiciária, destinada, à investigação dos crimes e a execução dos provimentos jurisdicionais, deveria ser separada rigidamente dos outros corpos de polícia e dotada, em relação ao Executivo, das mesmas garantias de independência que são asseguradas ao Poder Judiciário do qual deveria, exclusivamente, depender.4

De mais a mais, compete sublinhar que vivenciamos o fenômeno da policialização do processo penal, em razão das modernas técnicas de investigação criminal, calcadas em avanços tecnológicos, que transferem para o palco do inquérito policial as provas cabais do fato, debilitando o próprio princípio do contraditório no processo penal. O Professor Geraldo Prado, em artigo de sua lavra, pontuou que:

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“O emprego de tecnologias modernas no inquérito policial também favorece a ampliação da segurança e garantias dirigidas aos cidadãos.”

Bernd Schünemann coloca em relevo que o processo penal das sociedades industrializadas submete-se à influência de “dois modelos rivais” , mas em ambos os casos as duas últimas décadas testemunharam a crescente importância da investigação criminal, haja vista: a) a tendência de expansão das formas consensuais penais (acordos penais), que diminuem os custos da Justiça Criminal; b) o incremento das técnicas especiais de investigação (TEI), particularmente os chamados “meios ocultos” (interceptação telefônica etc.), que caracterizam poderosa ingerência na intimidade alheia. A causa é decidida em caráter “quase definitivo” na investigação. O processo oral e em contraditório perde espaço e relevância.5

Faz-se necessário enaltecer que o emprego de tecnologias modernas no inquérito policial também favorece a ampliação da segurança e garantias dirigidas aos cidadãos, permitindo, por exemplo, maior integração entre órgãos envolvidos no sistema criminal. É o caso do sistema de controle operacional da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, que integra, em uma única base de dados, não apenas as Delegacias de Polícia, mas também o Ministério Público que acompanha procedimentos, realiza agendamento de audiências em Juizados Especiais 66

para o Poder Judiciário, encaminha medidas cautelares em casos de violência contra a mulher ao Poder Judiciário etc., deixando clara a importância do emprego da tecnologia em benefício do cidadão. Por todo o exposto, é de clareza hialina que a pedra de toque do moderno processo penal seja a imprescindível permeação do princípio do devido processo legal no seio do inquérito policial, e da imparcialidade na condução do procedimento investigativo, como instrumentos de garantia do cidadão. Desse raciocínio, depreende-se também que a investigação, na busca da verdade dos fatos, deva igualmente zelar pela produção de provas que beneficiem a defesa, quiçá que afastem as suspeitas que possam recair sobre algum dos investigados, uma vez que o norte das investigações não deva jamais ser o de encontrar “um” autor, mas sim e sempre de se encontrar “o” autor, se e quando houver. A busca da verdade mostra-se imperiosa. Por fim, para refletir, fiquemos com as lições do mestre de todos os estudiosos do direito penal, Prof. Nelson Hungria: Há no bojo da lei possibilidades que escaparam inteiramente à vontade subjetiva do legislador. Vontade da lei não é o mesmo que vontade do legislador. Costuma-se dizer, e com acerto, que a lei, às vezes, é mais sábia ou mais previdente que o legislador. Ainda mais: a lei não pode ficar inflexível e perpetuamente ancorada nas ideias e conceitos que atuaram na sua gênese. Não se pode recusar, seja qual for a lei, a denominada interpretação evolutiva (progressiva, adaptativa). A lógica da lei, conforme acentua Maggiore, não é estática e cristalizada, mas dinâmica e evolutiva. Se o direito é feito para o homem e não o homem para o direito, o espírito que vivifica a lei deve fazer dela um instrumento dócil e pronto para satisfazer, no seu evoluir, as necessidades humanas.6

O direito a um inquérito policial garantidor de direitos, conduzido com imparcialidade, é a primeira das garantias do cidadão!

Notas ALBRECHT, Peter Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, ICPC. p.297. 2 ALBRECHT, op. cit., p. 256. 3 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual. Vol. I. Campinas: Bookseller, 1997. p.139. 4 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, teoria do garantismo penal. São Paulo: RT. p.617, 2002. 5 PRADO, Geraldo. A investigação criminal e a PEC 3: IBCCRIM, São Paulo, ano 21, n. 248, p. 5-7, jul./2013. 6 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p.75. 1

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