Edição 185 • Janeiro 2016
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Justiรงa & Cidadania | Janeiro 2016
2016 Janeiro | Justiรงa & Cidadania 3
Edição 186 • Janeiro de 2016 • Capa: Ana Andrade
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Manaus Julio Antonio Lopes Av. André Araújo, 1924-A – Aleixo Manaus – AM CEP: 69060-001 Tel.: (92) 3643-1200 Ano II - nº 4 - Outubro 2007
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– XXV Troféu Dom Quixote: 8 Capa Cavaleiros da Justiça
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Editorial – Impeachment inexequível
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Oscar Dias Corrêa, jurista, intelectual, político, juiz
Em Foco – O admirável mundo novo da arbitragem
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Segurança jurídica nos contratos de concessão e permissão no transporte público e terrestre de passageiros
Parâmetros para a nomeação do administrador judicial e fixação dos seus honorários na recuperação judicial
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A desjudicialização do planejamento tributário: breve estudo sobre a falta de julgado sobre planejamento tributário nos Tribunais Superiores
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O Federalismo, os tratados internacionais e a influência da União nos tributos estaduais e municipais
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A advocacia pro bono no Novo Código de Ética e Disciplina da OAB
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Agricultura familiar e produção de alimentos
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O futuro da justiça: pontos de vista sobre o cenário brasileiro
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Prateleira – Leonardo Antonelli lança livro no Museu da Justiça
A aplicação subsidiária e supletiva das novas regras do CPC no processo do trabalho
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Tempos que foram e voltam sutilmente
Agrupamento Europeu de Interesse Econômico, um exemplo a ser seguido pelo Mercosul
E ditorial
Impeachment inexequível
A
discutida aplicação do impeachment que se propala em todos os ambientes políticos e jurídicos da Nação torna-se inócua em face da disparidade dos assuntos tratados e dos inconsequentes e controversos interesses que se processam no Congresso Nacional, cujo desfecho tende ser rejeitar o pedido da medida prevista nos artigos 51 e 52 da Constituição Federal. Já em editorial publicado anteriormente, sem termos a veleidade de hermeneuta mas com a experiência jornalística e política de mais de meio século de vivência nas respectivas áreas, já augurávamos o insucesso da medida em razão da evidente importunidade, decorrente, entre outros motivos, da difícil e conturbada situação política e econômica vivenciada. 6
O insuspeito parecer do eminente jurista e mestre do Direito professor Ives Gandra Martins relacionando as teses legais sobre a aplicação do impeachment, apontando e mostrando o caminho de uma decisão política, mostrase mais consentâneo com a realidade. As manifestações vindas a público na ocasião com as várias opiniões pró e contra tornaram evidente a conotação política alicerçada pelos pronunciamentos dos eminentes e experimentados juristas egressos do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Velloso e Carlos Ayres Britto, além de outros abalizados entendidos na matéria que não encontravam qualquer evidência de comprometimento da Presidente Dilma Rousseff, não só com as operações Mensalão e Lava Jato, mas também com qualquer nódoa pessoal surgida no seu governo que pudesse comprometêla definitivamente. Ao contrário, vários foram os pronunciamentos da Presidente Dilma, desde o primeiro governo, expressando e afirmando com veemência constante aversão à corrupção, à impunidade e, inclusive, reprimindo com denodada contrariedade os malfeitos que ocorreram e incriminando seus desastrados e comprometidos partidários. Os atos de improbidade e corrupção foram cometidos em abuso de confiança por criminosos servidores públicos, inclusive por políticos desclassificados e indignos, por uma bandidagem de desmerecidos empresários, justificadamente já denunciados e presos, em razão da ação investigatória da Polícia Federal e denúncia do Ministério Público, aliado à pronta e enérgica ação do juiz federal Sérgio Moro, com a finalização da merecida cadeia e apropriação de bens adquiridos ilicitamente por essa quadrilha de ladrões.
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complicada situação pessoal vivida pelo presidente e pelas correntes partidárias que se chocam e não conseguem definir a permanência ou o afastamento da presidência da Casa, a questão do impeachment se torna mais distante de ser posta em discussão, tornando-se, portanto, completamente inviável e impossível de ser apreciada. Lamentavelmente, ao vermos pela televisão o triste espetáculo sobre as discussões e entreveros que têm acontecido no plenário da Câmara dos Deputados, sentimos o pesar de constatar a falta de civismo dos respectivos atores que se desmandam em impropérios e ofensas recíprocas, que não se coadunam com o simbolismo e a respeitabilidade que deveria existir e prevalecer na Casa onde, como representantes do povo brasileiro, os deputados têm o dever e a obrigação de se portar com civilidade. Entretanto, com o que se pode deduzir do deprimente espetáculo, com a existência dos grupos estapafúrdios se gladiando histericamente, não será possível arregimentar o número mínimo suficiente de deputados para aprovar matérias que dependem de quociente específico para votação, como é o caso do impeachment. E, como é para benefício das instituições, o impeachment é inexequível. Foto: Ana Wander Bastos
O envolvimento que se pretende fazer da Presidente Dilma com os desvios e a corrupção na Petrobrás é inaceitável e inadmissível, em razão do posicionamento firme e das positivas atitudes moralizadoras que a Chefe do Executivo tem adotado desde a sua posse, reafirmando o combate à corrupção e à impunidade, alicerçado pelas repetidas ordens e instruções repassadas aos órgãos fiscalizadores do governo, principalmente a Polícia Federal. Todas essas ações configuram o seu permanente propósito moralizador a dignificar a administração pública, como comprovam o afastamento e a demissão de altos funcionários comprometidos com atos de corrupção. Acresce em abono de seu passado de lutas e sacrifícios os duros percalços por que passou, além do enfrentamento ideológico contra as forças da ditadura militar, as sofridas prisões por cerca de três anos e as violências e torturas suportadas que enrijeceram e formataram o seu caráter, abonando a sua conduta e dando crédito e segurança para declarar e reafirmar os princípios que está cumprindo no governo, como demonstrado em todas as ocasiões com que tem se deparado. Ocorre, ainda, que, apesar da situação vexaminosa decorrente dos escândalos que estão acontecendo, a Nação se encontra em pleno Estado Democrático de Direito, evidenciando-se, apesar dos tumultos políticos que ocorrem principalmente no Congresso Nacional, em razão de interesses pessoais, que os acontecimentos não chegam a perigar as instituições vigentes, tornando-se inoportuna qualquer tentativa que apregoam para alterar a situação democrática em que vivemos. No presente momento, diante da balbúrdia política interna na Câmara dos Deputados, motivada pela difícil e
Orpheu Santos Salles Editor
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Capa
XXV Troféu Dom Quixote Cavaleiros da Justiça Revista Justiça & Cidadania entrega os troféus Dom Quixote e Sancho Pança a personalidades do mundo jurídico que se destacam na luta pelos direitos e na defesa da cidadania. Por Ada Caperuto
Fotos: Ana Andrade
Solenidade de outorga do XXV Troféu Dom Quixote no plenário do TJRJ 8
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econhecer os méritos daqueles que trabalham pela ética e pela moralidade, atuando na defesa diária dos direitos e da cidadania: esse é o principal objetivo da premiação promovida anualmente pela Revista Justiça & Cidadania e concedida a magistrados e personalidades do mundo jurídico. Realizada em 30 de novembro de 2015, no Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a solenidade de outorga dos troféus Dom Quixote de La Mancha e Sancho Pança chegou à sua 25ª edição. A iniciativa tem apoio do Instituto Justiça & Cidadania e do TJRJ. Com abertura do ex-senador Bernardo Cabral, chanceler da Confraria Dom Quixote, o evento contou com as presenças de Orpheu Salles, presidente da Confraria Dom Quixote e editor da Revista Justiça & Cidadania; desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, presidente do TJRJ; desembargadora Maria Inês da Penha Gaspar, primeira vice-presidente do TJRJ; desembargadora Maria Augusta Vaz, corregedora-geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro; Thiers Montebello, presidente do Tribunal de Contas do Município; e Hariman Dias de Araujo, procurador geral da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. No discurso de abertura, Bernardo Cabral fez referência ao símbolo da premiação, o mais famoso personagem da literatura espanhola. “O escritor Miguel de Cervantes, ao relatar o embate de Quixote contra os moinhos de vento, de certo modo retrata a insurreição dos camponeses contra aquela que era considerada a moderna tecnologia, que traria concorrência desleal e seria motivo de opressão aos pequenos produtores rurais. Foi esta mesma visão que teve
Orpheu Salles ao dar vida à Revista Justiça & Cidadania. Ele é como um Quixote redivivo, com a finalidade maior de alcançar cinco principais itens: ética, moralidade, dignidade, justiça e direito à cidadania.” Cabral também aproveitou a oportunidade para se referir à atual conjuntura do País, que atravessa séria crise política e econômica. “O momento é de solidariedade, a fim de ajudar o Brasil a sair do poço escuro da apatia, do medo, do desânimo e do descrédito. A Nação precisa continuar empenhada em reencontrar os caminhos da sua grandeza e,
para isso, se faz necessário que nos voltemos para sua reconstrução jurídica. Chega de desfaçatez. Está na hora de colocar um ponto final na crise política, moral e econômica”, declarou. Tiago Salles, presidente do Instituto Justiça e Cidadania, falou em seguida. Ele ressaltou a mensagem sobre Amizade que foi tema do convite para a solenidade. “Lealdade e igualdade são elementos essenciais nesse tipo de relacionamento. E isso também envolve participar da vida do outro, cuidar para evitar julgamentos precipitados e vigiar que se
A Desembargadora Maria das Graças Cabral Viegas Paranhos, presidente do TRT-1ª Região, recebendo o Troféu Dom Quixote do Desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, presidente do TJRJ
O Desembargador Ferdinaldo Nascimento recebendo o Troféu Dom Quixote do seu filho, o Dr. Wagner Madruga do Nascimento
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Fotos: Ana Andrade
Desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, presidente do TJRJ, entregando o troféu do Governador do Estado do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, a seu representante, o Secretário de Estado Leonardo Espíndola, Chefe da Casa Civil do Estado do Rio de Janeiro
Desembargador Sérgio Nogueira de Azeredo entregando o Troféu Dom Quixote ao Procurador-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Marfan Martins Vieira
caminhe no mesmo rumo. É falando em amizade que explico a razão de homenagearmos os senhores aqui presentes na noite de hoje. Todos vocês são homens e mulheres de raras qualidades e contar com sua amizade e confiança é um motivo de grande orgulho para a Confraria, o Instituto e a Revista.” Logo após a cerimônia de entrega dos troféus (veja quadro no final da matéria), o desembargador Caetano Ernesto da Fonseca Costa, diretor geral da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj), falou em nome de todos os agraciados. “De10
vemos seguir na luta contra os ‘moinhos de vento’, quando forem estes edificados em nome dos desmandos, da corrupção e das injustiças sociais”, disse. O magistrado continuou seu pronunciamento comentando sobre a realidade de hoje, que se revela como uma conjuntura de miséria e de injustiças sociais, que fogem do que prega nossa Constituição. “Nós, agraciados, somos hoje convocados a integrar esse seleto regimento comandado pelo nosso nobre Dom Quixote na busca da igualdade social, construindo um mundo onde não seja significativa a diferença en-
tre os homens e que todos tenham um mínimo de dignidade para viver”, enfatizou. Ele ainda destacou a figura de Orpheu Salles, que, tal como o cavaleiro Quixote, travou sangrentas batalhas em prol da justiça e da garantia dos direitos fundamentais. “Receber esta homenagem é uma honra, mas uma honra que se renova com o compromisso de perseverar em nossa luta”, concluiu. Encerrando a solenidade, Orpheu Salles rememorou a história de êxitos da Revista Justiça & Cidadania e agradeceu a presidência do Tribunal pela oportunidade de usufruir Justiça & Cidadania | Janeiro 2016
Maria Cecília Baetas Dyrlund entregando o Troféu Dom Quixote ao seu marido, o Desembargador Poul Erik Dyrlund, presidente do TRF-2ª Região
Desembargador Caetano Ernesto da Fonseca Costa, diretor da Emerj, após receber o Troféu Dom Quixote da sua esposa, a Juíza de Direito Dra. Adriana Ramos de Mello
DesembargadorJosé Carlos Maldonado de Carvalho recebendo o Troféu Dom Quixote do Desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, presidente do TJRJ 2016 Janeiro | Justiça & Cidadania 11
Fotos: Ana Andrade
Desembargador Cherubin Helcias Schwartz Junior recebendo o Troféu Dom Quixote de sua esposa, Sra. Ana Beatriz Carvalho Gomes da Silva
Desembargador Guaraci de Campos Vianna após receber o Troféu Dom Quixote do editor da Revista Justiça & Cidadania, Orpheu Salles
do espaço para fazer esta homenagem. “Desde a primeira edição do Prêmio, entendemos que a figura de Dom Quixote se aproximava muito da realidade profissional dos magistrados, pela perseverança, pelo sacrifício diário. A partir de então, decidimos que ele seria o símbolo da revista e da luta que travamos em defesa dos princípios morais e éticos. Hoje, vocês se tornam também exemplos desse embate. Falar, nos dias de hoje, nos ideais e princípios desposados pela figura de Dom Quixote e seu fiel escudeiro é lembrar seus feitos e aventuras. É lembrar que 12
alguém que leu, que aceita e que pratica os mesmos princípios deixados por aquele cavaleiro estão aqui, estão no Supremo, estão neste Tribunal, enfim, são os representantes da Justiça. A luta que travamos segue no sentido de trazer, de cooptar, as pessoas que defendem os mesmos princípios de moralidade e dignidade de Dom Quixote. E cada um de vocês, ao olharem para esta estatueta, entenderão que devem continuar a perseguir o ideal que motivou as homenagens feitas aqui hoje.” O desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho lembrou ainda
que o troféu é um tributo de reconhecimento às personalidades do ambiente jurídico que têm em comum essa luta pela ética, pela justiça, pelos valores dos direitos humanos e da cidadania. Uma iniciativa que, segundo ele, está em mãos seguras. “A revista, a Confraria e o Instituto estão bem dirigidos pelo nosso querido Bernardo Cabral – que é senador vitalício em nossos corações e por este sempre jovem Orpheu Salles e seu filho, Tiago Salles que defendem tais valores com garra e fibra”, concluiu o presidente do TJRJ. Justiça & Cidadania | Janeiro 2016
Desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo recebendo o Troféu Sancho Pança do editor-executivo da Revista Justiça & Cidadania, Tiago Salles
Desembargador Cesar Felipe Cury após receber o Troféu Dom Quixote do Desembargador Fernando Cerqueira Chagas
Desembargador Werson Franco Pereira Rêgo após receber o Troféu Sancho Pança dos seus filhos, Mariana Bacelar Rêgo, Bárbara Bacelar Rêgo e Vitor Bacelar Rêgo 2016 Janeiro | Justiça & Cidadania 13
Fotos: Ana Andrade
Desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, presidente do TJRJ, entregando o Troféu Dom Quixote ao Desembargador Doorgal Gustavo Borges de Andrada, do TJMG
Desembargador Egas Moniz de Aragão Dáquer entregando o Troféu Dom Quixote ao Juiz de Direito Dr. José Guilherme Vasi Werner
Sra. Cristiane Barbati entregando o Troféu Dom Quixote ao seu marido, o Juiz de Direito Dr. Rafael Estrela 14
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A Juíza de Direito Dra. Anelise Duarte entregando o Troféu Dom Quixote ao seu marido, o Juiz de Direito Dr. Antônio Aurélio AbiRamia Duarte
Sr. João Augusto Morais Monteiro entregando o Troféu Dom Quixote ao Sr. Enéas da Silva Bueno, executivo da Rio Ônibus
Sr. Robinson da Silveira Gil entregando o Troféu Dom Quixote ao seu filho, o advogado Eduardo Gil, executivo da Souza Cruz 2016 Janeiro | Justiça & Cidadania 15
Fotos: Ana Andrade
A advogada Juliana Bumachar recebendo o Troféu Dom Quixote do Juiz de Direito Dr. Luiz Roberto Ayoub
Sr. Anderson Prezia, Secretário da OAB/RJ, entregando o Troféu Dom Quixote ao Sr. Luciano Bandeira, Direitor da OAB/RJ
Desembargador Adilson Macabu entregando o Troféu Dom Quixote à advogada Marianna Fux 16
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Oscar Dias Corrêa, jurista, intelectual, político, juiz
Carlos Mário da Silva Velloso
Ministro do STF aposentado Membro do Conselho Editorial
H
á dez anos faleceu o ministro Oscar Dias Corrêa, um dos maiores juízes do Supremo Tribunal Federal (STF). Nascido em Itaúna, no oeste de Minas, diplomou-se, em 1943, pela Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, hoje Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Quando de seu falecimento, em 2005, exercia eu o cargo de presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cargo que Oscar exercera com honra e lustre. Na moção de pesar que lavrei, lembrei que, após a sua formatura, passou ao desempenho da advocacia, de par com intensa atividade intelectual. Conquistou, aos 30 anos de idade, em memorável concurso, a cátedra de Economia Política, hoje Direito Econômico, da Faculdade de Direito da UFMG. Transferindo-se para o Rio, a fim de ali exercer o mandato de deputado federal, passou a lecionar na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em outras universidades. Entre os livros jurídicos que escreveu, destaco: “A Constituição de 1967,” “A Constituição de 1988”, “A Defesa do Estado de Direito e a Emergência Constitucional”, “O Sistema Político-Econômico do Futuro – o Societarismo”, “O Supremo Tribunal Federal Corte Constitucional do Brasil”. Este último, dos primeiros livros, registra o professor Kildare Carvalho, da UFMG, a propugnar pela Suprema Corte Constitucional e pelo controle concentrado 18
“Há, entretanto, que fazem desse amor uma alavanca que os impulsiona à ação em defesa do que amam. Essas palavras cabem bem ao ministro Oscar Corrêa.”
Justiça & Cidadania | Janeiro 2016
Mario Miranda Filho/Agência Foto
de constitucionalidade “que dá amplitude e força ao papel do STF como guardião da Constituição”. Político, com Milton Campos, Pedro Aleixo, Afonso Arinos, Guilherme Machado, Alberto Deodato, Paulo Pinheiro Chagas, Magalhães Pinto, João Franzem de Lima, Carlos Horta Pereira, entre outros eminentes homens públicos, foi um dos fundadores da União Democrática Nacional. Deputado da Assembleia Legislativa de Minas, liderou a oposição ao governo do Estado, então do PSD. Secretário de Estado da Educação, em Minas, elaborou, com equipe de intelectuais, festejado plano estadual de educação. Deputado federal em mais de uma legislatura, afastou-se da política partidária quando da extinção da UDN e porque não concordara com o ato institucional que investira o Congresso de poder constituinte originário. Somente o povo, titular do poder, poderia fazê-lo, declarou Oscar no seu discurso de despedida da Câmara. Passou a dedicar-se, então, ao magistério e à advocacia, com escritórios no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em Brasília. Aposentado do Supremo, foi Ministro da Justiça do governo Sarney. Intelectual de escol, produziu belas obras literárias, das quais dou realce: “Brasílio”, romance histórico-político, “Vultos e Retratos”, “Vozes de Minas”. Foi membro da Academia Brasileira de Letras, da Academia Mineira de Letras, da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, da Academia Internacional de Direito e Economia.
Juiz do STF, proferiu votos notáveis, técnicos, jurídicos, sem distanciar-se, entretanto, da Constituição substancial que se constitui da realidade econômica, social, política, sociológica da nação, repassados da fina ironia que o caracterizava. Era um debatedor temido. Integrou e presidiu o Tribunal Superior Eleitoral. Oscar Corrêa muito amava o STF. Referindo-me ao ministro Gonçalves de Oliveira, quando o Supremo celebrou a sua judicatura, assinalei que há os que apenas amam e se contentam em amar, silenciosamente. Outros há, entretanto, que fazem desse amor uma alavanca que os impulsiona à ação em defesa do que amam. Essas palavras cabem bem ao ministro Oscar Corrêa. Não foram poucas as vezes que Oscar, na tribuna da Câmara e na mídia, rebateu críticas injustas à Corte, ele que proclamava que o seu maior orgulho residia no fato de ter sido juiz do STF, a joia das instituições republicanas brasileiras, segundo o bâtonnier Levi Carneiro. Jurista, intelectual, político, que fez da ética o norte de sua vida, juiz do STF, Oscar foi um mundo. Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, anotou que o homem é, na vida pública, o que é na vida privada, na vida familiar. Oscar Corrêa foi exemplar chefe de família, compartilhando com Diva Gordilho Corrêa, sua companheira de toda a vida, e os seus filhos, nora, genro e netos alegrias e tristezas. Assim foi o republicano Oscar Dias Corrêa, que pautou a sua vida pela supremacia do bem público, da res publica, a res populi – da coisa pública, a coisa do povo.
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Segurança jurídica nos contratos de concessão e permissão no transporte público e terrestre de passageiros Ricardo Villas Bôas Cueva
A
Ministro do STJ Membro do Conselho Editorial
reflexão sobre a segurança jurídica nos contratos de concessão e permissão no transporte público e terrestre de passageiros deve começar pela discussão do próprio conceito de segurança jurídica. O que significa segurança jurídica no Estado de Direito? Como se protege a confiança legítima de que o sentido das normas não será alterado? Como isso se dá nos contratos administrativos e, particularmente, nos contratos de concessão e permissão de transporte coletivo de passageiros? Segurança jurídica remete à relação entre tempo e Direito. Em um mundo no qual há incertezas e contingências incontroláveis, o Direito tem uma função estabilizadora das expectativas normativas que procura fazer que o que foi superado no passado não possa ser ressuscitado. No Brasil e na maioria dos ordenamentos, há uma proibição geral, uma cláusula geral ou princípio geral de irretroatividade, que é aplicado, sobretudo, na área penal. Esse princípio não é absoluto, mas traz consigo a proteção tradicionalmente atribuída ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada e à anterioridade tributária. Não há uma proteção absoluta contra a retroatividade da lei, que é admitida em algumas hipóteses. Mas a estabilização das expectativas normativas, conquanto seja uma função primordial do Direito, também pode gerar 20
injustiça. Segurança jurídica e justiça são dois vetores do Direito que podem conflitar. Gustav Radbruch, um grande filósofo do Direito, ensina que, embora sejam valores de igual peso, que se opõem em muitos momentos, a segurança jurídica, ou seja, a estabilidade normativa, é de tal importância que acaba tendo uma precedência prima facie sobre os princípios de justiça não positivados do Direito. Essa precedência, entretanto, não se sustenta se a injustiça da norma de direito positivo for insustentável. A tensão entre dois valores até certo ponto antagônicos – a estabilidade do Direito pela segurança jurídica e o valor de Justiça – está presente também na reflexão mais contemporânea. Na doutrina alemã, a segurança jurídica deve refletir um estado de coisas no qual não pode pairar nenhum tipo de dúvida sobre os deveres e direitos do cidadão. É um elemento essencial do Estado de Direito, que se presta a proteger o cidadão das surpresas e de eventuais exigências descabidas do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário. No Brasil, esse debate tem sido travado sobretudo no Direito Tributário. O professor Humberto Ávila, por exemplo, sustenta que a ideia de segurança jurídica está atrelada a todo o sistema jurídico, a todas as fontes do Direito, às leis, aos atos administrativos e às decisões judiciais. São três os seus elementos fundamentais: o primeiro é a possibilidade de conhecer as normas jurídicas, a cognoscibilidade das
Justiça & Cidadania | Janeiro 2016
Foto: Coordenadoria de Editoria e Imprensa - STJ
normas jurídicas, o que significa acessibilidade às normas, sua inteligibilidade e sua capacidade de serem percebidas e interpretadas por métodos que sejam intersubjetivamente controláveis; em segundo lugar, confiabilidade, ou seja, a proteção do ato jurídico perfeito, da coisa julgada e do direito adquirido; há também uma terceira dimensão, a da calculabilidade, que se traduz na proteção da confiança e a proibição da arbitrariedade (Teoria da Segurança Jurídica. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2014). A proteção da confiança é particularmente delicada nas relações verticais entre o Estado e os particulares. É que no Direito Público, prevalecem as noções de supremacia do interesse público, e de sua indisponibilidade. Tais conceitos asseguram à Administração, em princípio, o direito de anular seus próprios atos. A questão que se põe, então, é como disciplinar os efeitos retroativos da anulação dos atos administrativos. Para tanto, a doutrina distingue a retroatividade autêntica da retroatividade aparente. Vale lembrar, a propósito, que o Supremo Tribunal Federal (STF) já teve oportunidade de classificar a retroatividade em máxima, média e mínima, de acordo com seu grau de intensidade. De todo modo, a retroatividade autêntica é aquela que se verifica quando a lei nova retroage para alcançar as consequências jurídicas de ações pretéritas, enquanto na retroatividade aparente a lei nova produz efeitos para o futuro, mas alcança atos ou relações jurídicas
que começaram no passado e que ainda subsistem. O princípio da proteção da confiança legítima, reconhecido no direito alemão (artigos 48 e 49 da lei do procedimento administrativo) e no direito comunitário europeu, proíbe a retroatividade autêntica, com algumas exceções, como quando a confiança do particular for adequadamente tutelada ou quando não houver confiança a proteger, quando a retroatividade for benéfica ou ainda quando houver interesse público preponderante. A retroa tividade aparente, contudo, em regra, é admitida. Ainda assim, a confiança legítima pode ser protegida, se ficar demonstrado que a alteração normativa foi súbita e imprevisível, que havia base objetiva a gerar expectativa de estabilidade normativa, que houve prejuízo e que a confiança do particular deve preponderar sobre o interesse público subjacente. No Brasil, a confiança legítima também é tutelada. O art. 2o da lei do processo administrativo (Lei no 9.784/1999), por exemplo, vincula a Administração Pública ao princípio da segurança jurídica e proíbe interpretação retroativa da norma administrativa (inciso XIII). Além disso, o art. 54 da mesma lei limita o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários ao prazo decadencial de cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. A proteção
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da confiança legítima se manifesta, ainda, na norma que permite ao STF declarar a inconstitucionalidade de lei com efeitos ex nunc. Em regra, a declaração de inconstitucionalidade em controle abstrato implica retirar do ordenamento a norma invalidada pela decisão judicial. Mas o art. 27 da Lei no 9.868/1999 faculta ao STF, em vista de “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”, “por maioria de 2/3 de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. No novo Código de Processo Civil (NCPC), a possibilidade de modulação dos efeitos de decisões judiciais passa a alcançar também as hipóteses de “alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos” (art. 927, § 4o, NCPC). Passamos agora ao exame do regime jurídico aplicável aos serviços públicos. Os serviços públicos, como estabelecido no artigo 175 da Constituição Federal, devem ser prestados pelo Estado, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre por meio de licitação, por meio de contratos administrativos. Tradicionalmente, permissão é ato unilateral, precário e revogável a qualquer tempo, praticado no desempenho de competência discricionária. Concessão é ato bilateral, que gera direitos e obrigações para ambas as partes. A distinção entre essas duas modalidades de outorga administrativa, outrora muito clara, foi esmaecendo com o tempo, já que o Estado Democrático de Direito pressupõe a existência de direitos e garantias. Tanto uma como outra podem ser revogadas a qualquer tempo. Mas pode-se dizer que a permissão destina-se a situações precárias, enquanto a concessão se destina a situações que envolvem investimentos maiores e com maior prazo. A concessão é adequada para a transferência da prestação de serviço ao setor privado, quando isso implicar atuação de médio e longo prazo, com a exigência de investimentos em bens reversíveis ao patrimônio público. A autorização, por outro lado, na lição de Marçal Justen Filho (Concessões de serviços públicos: comentários à Lei no 8.987 e no 9.074/95. São Paulo: Dialética, 1997. p. 90), “pressupõe atividade econômica em sentido estrito, que não caracterize serviço público, tal como consta do art. 170, parágrafo único, da CF. Existem serviços, que não são públicos, cujo desempenho pelos particulares sujeita-se à fiscalização estatal”. Exemplos são os serviços médicos, atividade bancária ou, ainda, o aproveitamento de potenciais hidráulicos de pequeno porte para fins privados, mediante autorização prevista na Lei no 9.074/1995, bem como a exploração de portos (Lei no 8.630/1993). Recentemente a ANTT, com fundamento na 22
“A revisão dos contratos administrativos com base na teoria da imprevisão é complexa, pois põe em xeque a própria ideia de licitação, já que admite a alteração de contrato que resultou quase sempre de concorrência na qual, em princípio, sagrouse vencedora a proposta mais vantajosa para a Administração.”
Lei no 10.233/01, com as alterações da Lei no 12.996/2014, editou a Resolução no 4.770, de 25 de junho de 2015, que dispõe sobre a prestação do serviço regular de transporte interestadual e internacional de passageiros sob o regime de autorização. As outorgas para prestação de serviços públicos por particulares, mediante concessão ou permissão, materializam-se em contratos administrativos. Neles, a proteção da confiança legítima é particularmente complexa, pois deve-se levar em conta a supremacia do interesse público, a indisponibilidade do interesse público, bem como a ausência de autonomia da vontade. Não há vontade livre a autônoma do Estado. A vontade do Estado decorre diretamente da lei. A vontade do particular tampouco é autônoma, na medida em que lhe cabe preencher os brancos deixados pela administração. Como lembra Marçal Justen Filho, na obra acima referida, há cláusulas mutáveis e imutáveis. Podem ser alteradas as cláusulas que dizem respeito à definição quantitativa e qualitativa do objeto, às condições de execução da obrigação, à fiscalização das atividades do contratado para cumprimento da obrigação por ele assumida e à extinção do contrato. O que é imutável é a equação econômicofinanceira sobre a qual se funda o contrato. Ou seja, em princípio, todas as cláusulas são mutáveis. É certo que alteração unilateral pela Administração obriga-a a compensar o contratado pelos encargos adicionais que
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venha a sofrer. As chamadas cláusulas exorbitantes dos contratos administrativos devem ser interpretadas no contexto do Estado Democrático de Direito, ou seja, o poder-dever da Administração de alterar unilateralmente os contratos administrativos não pode se confundir com direito subjetivo, ilimitado e incondicionado. A faculdade ou prerrogativa de alterar unilateralmente o contrato administrativo deve destinar-se à “melhor adequação às finalidades do interesse público” (art. 58, I, da Lei no 8.666/1993). Mas como garantir a intangibilidade do núcleo econômico do contrato? Na Lei no 8.666/1993, o reajuste é determinado de acordo com índices pré-fixados no contrato, que podem ser específicos ou setoriais (art. 40, XI). A atualização se dá quando a Administração atrasa pagamentos, devendo o contrato fixar o critério desde a data do vencimento até a de efetivo pagamento (art. 40, XIV, c). Já a revisão ou recomposição está condicionada à ocorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis mas de consequências incalculáveis, para manter o equilíbrio econômico financeiro inicial do contrato (art. 65, II, d). A revisão dos contratos administrativos com base na teoria da imprevisão é complexa, pois põe em xeque a própria ideia de licitação, já que admite a alteração de contrato que resultou quase sempre de concorrência na qual, em princípio, sagrou-se vencedora a proposta mais vantajosa para a Administração. Contratos de obra pública ou de prestação de serviços contínuos, que podem vigorar até cinco anos, já apresentam enorme dificuldade para admitir a recomposição do valor originalmente contratado. Contratos de concessão de serviços públicos, bem como os de Parceria Público-Privada (PPP), apresentam dificuldade especial, pois os prazos são maiores, 10, 15 anos ou mais, com muito mais incerteza e fatores imprevisíveis, com estruturas de custos mais complexas, que acabam por impor a elevação das tarifas pagas pelos usuários ao longo do tempo. Como acentuado por Lucas Furtado, “as decisões acerca dos aumentos das tarifas decorrentes da recomposição do equilíbrio financeiro dos contratos devem ser bem fundamentadas, técnica e juridicamente, de modo a permitir o controle e a comprovação da legitimidade do processo de execução da política tarifária previamente definida. Do contrário, as revisões tarifárias decorrentes dos processos de recomposição de equilíbrio desses contratos tendem a ser constante fonte de insegurança para as concessionárias, para a Administração Pública e, principalmente, para os usuários” (Curso de licitações e contratos administrativos. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 622). A Lei da Mobilidade Urbana (Lei no 12.587/2012) deixa entrever que a questão do equilíbrio econômicofinanceiro nos contratos de concessão de transporte
coletivo de passageiros é mais mais complexa do que em outros contratos de concessão, uma vez que a política pública relativa a transportes urbanos, de que trata a lei, contempla, para a fixação da tarifa, vários componentes que não dizem respeito, diretamente, à prestação do serviço. O art. 8o, por exemplo, que cuida das diretrizes da política tarifária, prevê elementos muito heterogêneos, como a promoção de equidade no acesso, a ocupação equilibrada da cidade, entre outros. Ainda assim, no art. 9o, a lei é muito clara quanto à existência de um regime econômico-financeiro da concessão e da permissão, que são estabelecidos como o resultado de uma licitação, reproduzidos em contrato. Quem fixa os índices tarifários é o poder concedente, mas há possibilidades de reajustes, revisões ordinárias ou de revisões extraordinárias da tarifa. No Resp 976.836/RS, julgado no rito dos recursos repetitivos e relatado pelo Ministro Luiz Fux, ficou assentado: 1. A Concessão de serviço público é o instituto através do qual o Estado atribui o exercício de um serviço público a alguém que aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas sob garantia contratual de um equilíbrio econômico-financeiro, remunerando-se pela própria exploração do serviço, e geral e basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários do serviço. 2. O concessionário trava duas espécies de relações jurídicas a saber: (a) uma com o Poder concedente, titular, dentre outros, do ius imperii no atendimento do interesse público, ressalvadas eventuais indenizações legais; (b) outra com os usuários, de natureza consumerista reguladas, ambas, pelo contrato e supervisionadas pela Agência Reguladora correspondente”.
O recurso tratava da possibilidade, ou não, de haver repasse às tarifas – no caso, relativas à prestação do serviço de telefonia – das imposições tributárias da União e deixou claro que o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão é uma cláusula-pétrea. O julgado deixa claro que a Lei das Concessões protege de maneira inequívoca o núcleo econômico do contrato. Em resumo, pode-se dizer que o princípio da segurança jurídica é norma de sobredireito que paira sobre o sistema e que protege a certeza (vigência, conteúdo e efeitos temporais) e a estabilidade (direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada e confiança jurídica) das normas e das relações jurídicas. E que nos contratos administrativos, aí incluídos os contratos de concessão e permissão para prestação do serviço público do transporte coletivo de passageiros, quase tudo pode mudar. O que é imutável e constitui cláusula-pétrea é o equilíbrio econômicofinanceiro, tutelado pela Constituição e por leis específicas, tal como reconhecido na jurisprudência.
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A advocacia pro bono no Novo Código de Ética e Disciplina da OAB Marcus Vinicius Furtado Coêlho
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Presidente Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil
uís Gama, jornalista e escritor brasileiro do século XIX, atuou pro bono em defesa das liberdades democráticas do cidadão negro, sendo ícone na luta contra a escravidão. Esse tipo de personalidade é que inspira a advocacia brasileira a defender, independentemente de contraprestações financeiras, instituições sem fins econômicos, ou aqueles que não possuam recursos para arcar com os honorários advocatícios sem prejuízo do próprio sustento. Há dois anos, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) suspendeu as regras estaduais que restringiam a advocacia pro bono no País, impedindo injustas limitações ao seu exercício. Para regular o tema, a Ordem aprovou, no Novo Código de Ética e Disciplina (NCED), o dispositivo responsável por dispor, em âmbito nacional, sobre este serviço imprescindível para a concretização da isonomia e do acesso à Justiça. O NCED, desde abril do ano corrente, vem sendo debatido no Conselho Federal da OAB, que, na incumbência do art. 54, inciso V da Lei no 8.906/1994, busca promover alterações de forma a melhor regular a ética no âmbito da advocacia, sob o desígnio da ampla participação. A proposta foi elaborada por uma comissão de Conselheiros Federais, sob a relatoria do decano do Plenário, Paulo Roberto de Gouveia Medina, sendo submetida à ampla abertura para consulta pública pela Internet e consulta às instituições e entidades da advocacia. A aprovação da advocacia pro bono, entre diversos dispositivos, é fruto desse trabalho contínuo e, sobretudo, democrático. Cumpre destacar que a expressão latina não indica, simplesmente, um serviço gratuito, ou “para o bem”. A palavra bonum, em seu sentido clássico, possui carga 24
semântica relacionada ao interesse público, coletivo, como em commune bonum, ou bem comum. É essa a abrangência que deve ser tomada pelo termo. O advogado, ao atuar pro bono, está não só fornecendo um serviço gratuito, mas também agindo em prol do interesse público, de objetivos sociais e constitucionais, como a igualdade entre os sujeitos, a paridade de armas no processo judicial e o acesso à Justiça. O instituto da advocacia pro bono, ressalte-se, não se confunde com a previsão do art. 5o, inciso LXXIV, de que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Esse múnus estabelecido no rol dos direitos fundamentais é exclusivo do Estado, e não se estende aos particulares no exercício de sua profissão. O profissional da advocacia, em sua missão privada de resguardar a Constituição e representar o cidadão, exerce um múnus público. Conforme preleciona o art. 2o, § 1o do Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei no 8.906/1994), “no seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social”. O advogado valorizado significa o cidadão respeitado. Eis, então, a importância de sua participação no processo democrático. Ao advogado deve ser garantido o livre exercício profissional, isento de quaisquer empecilhos que prejudiquem a sua missão pública e, reflexamente, lesem o cidadão por ele representado. A advocacia, seja pública ou exercida por profissional autônomo, tem como escopo a defesa do interesse público e está relacionada ao atendimento de encargos coletivos cujo desdobramento deve ser o efetivo acesso à Justiça. É o advogado o responsável pelo diálogo pautado na igualdade entre os indivíduos no sistema jurídico, sendo indispensável para a realização da paridade de
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Art. 30. No exercício da advocacia pro bono, e ao atuar como defensor nomeado, conveniado ou dativo, o advogado empregará o zelo e a dedicação habituais, de forma que a parte por ele assistida se sinta amparada e confie no seu patrocínio. § 1o – Considera-se advocacia pro bono a prestação gratuita, eventual e voluntária de serviços jurídicos em favor de instituições sociais sem fins econômicos e aos seus assistidos, sempre que os beneficiários não dispuserem de recursos para a contratação de profissional. § 2o – A advocacia pro bono pode ser exercida em favor de pessoas naturais que, igualmente, não dispuserem de recursos para, sem prejuízo do próprio sustento, contratar advogado. § 3o A advocacia pro bono não pode ser utilizada para fins político-partidários ou eleitorais, nem beneficiar instituições que visem a tais objetivos, ou como instrumento de publicidade para captação de clientela.
O caput estabelece que, assim como ocorre nas relações de consumo, a gratuidade não exime o profissional de garantir a qualidade dos serviços advocatícios, nem afasta a responsabilidade por eventuais falhas na prestação. Deve o advogado empregar “o zelo e a dedicação habituais”, ou seja, o empenho nas causas pro bono deve ser o mesmo de qualquer outra controvérsia judicial em que atue o advogado. O primeiro parágrafo, por sua vez, conceitua a advocacia pro bono como a prestação de serviços jurídicos, de forma gratuita, eventual e voluntária, em favor de instituições sociais sem fins econômicos e aos seus assistidos, desde que não disponham de recursos para a contratação de profissional. Cabe registrar que “prestação de serviços jurídicos” não se limita à defesa de interesses da parte em processo judicial, especialmente em um momento da história cuja bandeira é a desjudicialização das lides e o desafogamento dos Tribunais brasileiros. Prestar serviços jurídicos, portanto, é também promover acordos extrajudiciais, aconselhar atos da vida civil, entre outras condutas que digam respeito à atuação do advogado. O direito é de acesso à Justiça, e não ao Judiciário. A advocacia pro bono é, ainda, gratuita, eventual e voluntária. Isso quer dizer que não pode o profissional
Foto: Revista Veja
armas entre os indivíduos e a consolidação do direito à defesa. Ferramentas como a advocacia pro bono são imprescindíveis para que todos sejam juridicamente assistidos por um profissional responsável e adequado à defesa dos interesses legítimos. A regulação da advocacia pro bono pacifica o entendimento sobre as hipóteses em que é permitida, sanando quaisquer divergências entre as Seccionais da Ordem. A íntegra do dispositivo aprovado pelo Conselho Pleno da OAB é a seguinte:
da advocacia dela utilizar-se com a finalidade de angariar clientela ou recursos financeiros. Deve advogar voluntariamente, imbuído do espírito de atender as necessidades da parte hipossuficiente no sentido de garantir a isonomia, orientando-se pelo interesse público. O final do § 1o e todo o § 2o delimitam, subjetivamente, o conceito de advocacia pro bono. São três os sujeitos-alvo dessa prática: instituições sociais sem fins econômicos; os seus assistidos, desde que não tenham condições de contratar advogado; e as pessoas naturais que, sem prejuízo do próprio sustento, não possam arcar com a remuneração deste profissional. O §3o, por fim, estabelece restrições objetivas, ao prever que a advocacia pro bono não pode ter propósitos político-partidários ou eleitorais, nem funcionar como instrumento de captação de clientela. A atividade deve possuir, como finalidade, o atendimento do interesse público. Este é o intento, e não outro, sob pena de violação da ética profissional. É sabido que o advogado é indispensável à administração da Justiça, nos termos do art. 133 da Constituição republicana de 1988. O exercício da advocacia, como múnus público constitucionalmente previsto, pressupõe a ativa participação na luta pelo primado da Justiça, em sintonia e harmonia com os fins sociais e o bem comum. A regulação da advocacia pro bono, por meio do dispositivo analisado, confirma esse ideal e ratifica a essencialidade do advogado para a construção de uma sociedade justa, equânime e solidária, com a garantia do efetivo acesso à Justiça.
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Agricultura familiar e produção de alimentos1
Fernando Curi Peres
Professor Titular Sênior do Departamento de Economia e Administração da ESALQ-USP
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Foto: Arquivo pessoal
ntre as justificativas e arrazoados destinados a angariar apoio político à causa da pequena propriedade rural, como instituto socialmente superior de organização social da estrutura da posse da terra, está a afirmação, de origem desconhecida e recorrentemente repetida, de que “a agricultura familiar é a responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos no Brasil”. Embora frequentemente mencionada por ocupantes de importantes posições políticas e de outros órgãos constituintes da sociedade organizada, a assertiva não corresponde à realidade revelada pelos dados disponíveis. Por outro lado, o reconhecimento da falsidade da afirmação não tira da agricultura familiar outros méritos sociais, os quais devem lhe garantir o apoio de políticas públicas destinadas a assegurar sua sobrevivência na estrutura industrial do setor. A nota aponta conclusões de trabalhos que utilizam, rigorosamente, as normas do método das ciências na refutação daquela afirmativa. Os cultores do direito, em geral, e os juristas brasileiros, em particular, poderiam usufruir de importantes benefícios analíticos se interagissem mais com outras áreas do conhecimento. Deve-se lembrar que sua atuação – que em geral ocorre em três dimensões (fato, valor e norma), como brilhantemente sintetizado por Miguel Reale2 – está calcada na percepção e na análise dos fatos. Por outro lado, o método das ciências é especialmente
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apropriado às revelações do que os fatos, ou as evidências, podem mostrar.3 Em verdade, a única competência das ciências, derivada inerentemente do seu método, é a explicação das coisas e fenômenos existentes no mundo físico e em suas manifestações. Elas ambicionam explicá-los como eles são, mas não se prestam para explicar ou indicar, como eles devem, ou deveriam, ser. Esta é a seara do jurista! Mesmo sabendo das limitações das ciências em seu propósito de explicar “objetivamente” os fenômenos, como se fosse possível sua descrição e análise feita por um observador completamente estranho ao fato – ou “de fora” como indicado por Hans Kelsen4 – o método das ciências, fundado na testabilidade de hipóteses sugeridas pelas teorias, destina-se somente a mostrar, ou descrever, o mundo como ele é. Os procedimentos do método, como proposto por Francis Bacon e René Descartes, foram inicialmente aplicados pelos gênios de Isaac Newton e Galileu Galilei; em seguida seu uso foi expandido e é, hoje, utilizado tanto pelas ciências naturais, quanto pelas sociais. Como o escopo dos pensadores do direito vai muito além do simples propósito de explicar como são, ou se comportam, as coisas ou fenômenos do universo – objeto único e limite máximo do método das ciências – eles teriam melhores desempenhos se baseassem suas análises e proposições em resultados estabelecidos pelos profissionais que, efetiva e rigorosamente, procuram entender e descrever os fatos. A alternativa – de alicerçar as análises e procedimentos jurídicos na percepção do fato pelo aplicador do direito – produz visões altamente influenciadas por sua sensibilidade artística, ou pela capacidade de outros em sensibilizá-lo de alguma maneira. Deve-se notar que o artista é alguém capaz de perceber e comunicar alguns aspectos, ou características, dos fenômenos e das coisas que afetam, mais ou menos profundamente, os sentidos ou sentimentos das pessoas. Assim, quando percebidos por meio deste tipo de sensibilização, os fatos podem se apresentar ao aplicador do direito de forma altamente deformada, ou sem correspondência real com o mundo fático! Voltando à afirmação, cuja falsidade motivou esta nota, segundo a qual “a agricultura familiar é responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos no Brasil”, é oportuno evidenciar os resultados encontrados em alguns estudos. Com base nos dados do Censo Agropecuário de 1995-1996 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Centro de Estudo Agrícolas do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (CEA/IBRE/ FGV) produziu estudo divulgado pela Confederação Nacional da Agricultura que mostrava a falsidade
daquela proposição. As definições utilizadas para classificar as propriedades foram as do Programa Nacional de Agricultura Familiar.5 Desde aquela época, os dados mostram, claramente, que a proporção dos alimentos consumidos no País – que seriam produzidos nas propriedades enquadráveis nas categorias definidas como propriedades familiares – estava entre 20% e 25% do seu total. Infelizmente, os dados não permitem acompanhar os destinos dos produtos desde a fazenda até seu consumo final. Assim, mesmo supondo que toda a produção das propriedades enquadráveis destinou-se ao consumo doméstico, a afirmação – ou proposição – é, ou deve ser considerada, falsa! Mais recentemente, utilizando dados do Censo Agropecuário de 2006 do IBGE e a Lei no 11.326, de 24 de julho de 2006, que definiu as propriedades classificáveis como empresas familiares do campo, Rodolfo Hoffmann mostrou a implausibilidade da afirmação objeto desta nota. Entre os produtos que considerou em sua análise, os quais perfazem a grande maioria dos utilizados na alimentação dos brasileiros, somente a produção da mandioca iguala, ou ultrapassa, 70% da nacional. Note-se que o autor ressalva a pressuposição heroica de que a produção e o consumo interno de mandioca e de seus derivados são iguais. Na contundente afirmação que fecha o trabalho6 deste insuspeito autor, ele afirma que: Como neto de imigrantes alemães que criaram seus filhos no Brasil com base na agricultura familiar, nada mais distante das intenções de quem escreve do que reduzir a importância que o leitor atribui à agricultura familiar. Mas a afirmativa de que “a agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos no Brasil” não tem base e, pior, não tem sentido. O reconhecimento da importância da agricultura familiar no Brasil não precisa de dados fictícios.7
Notas Parte do conteúdo desta nota está discutida no relatório do Projeto de Reformulação do Ensino da FAZU do convênio CEPEA-ESALQ/ ABCZ. 2 REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. 3 PERES, Fernando C. O estudo do direito e o método das ciências. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v.108, p. 399-411, jan./dez. 2013. 4 Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Trad. de João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 5 Estudo citado por: PERES, Fernando C. A propriedade familiar e a pesquisa agropecuária. In: PATERNIANI, Ernesto (Editor Técnico). Ciência, agricultura e sociedade. Brasília: Embrapa Informação Tecnológica, 2006. 6 HOFMANN, Rodolfo. A agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos no Brasil?. Segurança alimentar e nutricional, Campinas, vol. 21, n. 1, p. 417-421, 2014. 7 Idem, p. 420. 1
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O futuro da justiça
Pontos de vista sobre o cenário brasileiro
Milton Augusto de Brito Nobre
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Desembargador do TJPA Ex-presidente do Conselho dos Tribunais de Justiça
1. Introdução ste artigo reproduz, com algumas supressões e vários acréscimos, a exposição que fiz durante o 9o Encontro Nacional do Poder Judiciário, realizado em Brasília nos dias 24 e 25 de novembro de 2015, cujo texto escrito abandonei para recorrer à apresentação de improviso, a fim de fugir da monotonia que, por maior que seja o esforço, sempre resulta da simples leitura de trabalhos que contêm dados numéricos e referências técnicas. Achei, porém, indispensável manter, em suas primeiras linhas, o agradecimento que fiz ao Senhor Ministro Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pela renovação do convite ao Conselho dos Tribunais de Justiça do Brasil,1 que propiciou a minha breve fala, na qualidade de seu presidente, no painel, coordenado pela Senhora Conselheira Daldice Santana e em parte presidido pelo Conselheiro Carlos Levenhagen, na honrosa companhia dos doutores Gil Guerra, presidente interino da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Antônio César Bocheneck, presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), e da Doutora Maria Rita Manzarra, Representante da Associação Nacional dos Magistrados Trabalhistas (Anamatra). No pronunciamento feito no 8o Encontro Nacional, ressaltei que a postura do Colegiado que presidi, por expressa disposição de seu Estatuto, é de natureza institucional. Vale dizer, não tem qualquer objetivo corporativo, embora de suas atividades possam resultar efeitos que repercutam nesse âmbito, uma vez que toda 28
instituição pressupõe um modo adesivo de participação dos seus integrantes, o qual é necessariamente reflexivo dos propósitos, dos planos e das metas institucionais. Enfatizo, novamente, este ponto, para relembrar que, nos seus 23 anos de existência, o então Colégio e hoje Conselho, mesmo quando formula ou apoia algum pleito em favor da magistratura estadual, tem em mira o bom desempenho e a qualidade funcional da maior parcela do Judiciário, na medida em que congrega quase 70% dos juízes brasileiros e responde por mais de 75% da prestação jurisdicional em nosso país. Como o tema estabelecido para o painel foi “A visão de futuro da justiça pela magistratura” e o tempo disponibilizado para cada orador limitado em 15 minutos, devo logo esclarecer que vou dividir as minhas considerações, além destas notas introdutórias, em três partes: na primeira, desejo, após rápida reflexão sobre o enunciado do tema, estabelecer uma ponte entre a exposição que fiz no 8o Encontro Nacional do Poder Judiciário e o que pretendo dizer nesta oportunidade; na segunda, vou apenas firmar alguns pontos de vista, com o alcance limitado pela moldura construída na primeira parte, quanto ao futuro da justiça brasileira; e, finalmente, na terceira farei indicações a pretexto de concluir. Acrescento ainda, nesta introdução, embora possa soar óbvio , que minhas observações são relativas à justiça não como valor ou virtude, mas sim como método de resolução estatal de questões sociais controvertidas na versão adotada há muito no Brasil.
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Foto: Glaucio Dettmar/CNJ
2. A única verdadeira certeza do futuro é ser um amanhã indeterminado A única verdadeira certeza do futuro é ser um amanhã indeterminado, ou seja, algo que está para vir ou para acontecer, mas que pode não chegar ou não ocorrer. Daí porque há quem não se arrisque a fazer prognósticos como, por exemplo, o notável magistrado e processualista José Carlos Barbosa Moreira2 que afirmou não se atrever a isso “sem a adequada bola de cristal”. Por esse mesmo motivo, isto é, de poder a realidade no amanhã ser diferente ou não confirmar o previsto, embora Leibniz tenha falado em futurição como determinação dos acontecimentos futuros e O. K. Flechtheim3 tenha designado futurologia, “a ciência das perspectivas prováveis do futuro destino do homem, da sociedade e da cultura”, há quem negue o seu caráter científico, afirmando que “é um jogo de azar, que pode ser praticado por qualquer pessoa” e que, “em tese, não se cobra alguém por vaticinar o errado”.4 Neste ensejo, não há oportunidade para aprofundar o debate a esse respeito. Portanto, sem tomar partido em controvérsia tão complexa, respondo ao desafio de dar uma visão de futuro da justiça brasileira, enfocada como aparelho estatal de solução de controvérsias, sem qualquer preocupação de caráter científico. E, usando alguns dados da sua realidade em passado recente e do presente, sob a premissa básica de que haverá continuidade e regularidade de fatores, arrisco-me a revelar pontos de vista indicativos de tendência que, caso sejam adotadas iniciativas de impulso, poderão vir a ser confirmados.
“O custo do Judiciário dos estados, que tem um número de magistrados e de servidores muito superior ao das Justiças Federal e do Trabalho somadas, bem como atende mais do que o dobro da demanda por prestação jurisdicional sob o encargo dessas Justiças mantidas pela União, tem sido bem menor.”
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Enfatizo que não pretendo mirar o futuro olhando pelo retrovisor, mas somente considerando a realidade do que tem sido, apresentar algo que pode ser feito para aperfeiçoar o modelo de justiça adotado no Brasil. Para não recuar além do necessário no tempo, volto ao que afirmei no Encontro do ano passado, quando me referi ao esgotamento da capacidade de resposta dos meios disponíveis pelo Judiciário para atender, de modo eficiente, à demanda por prestação jurisdicional, mormente tendo em consideração o desequilíbrio de seus custos. Em resumo, e evitando repetir dados que mencionei à exaustão naquela oportunidade, destaco apenas que, conforme o recente relatório da pesquisa “Justiça em Números” do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no ano de 2014, as despesas do Poder Judiciário Nacional somaram aproximadamente R$ 68,4 bilhões, o que apresentou crescimento de 4,3% em relação ao ano de 2013 e de 33,7% nos seis últimos anos, equivalendo, no exercício-alvo, a 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e a um custo per capita/ano de R$ 337,00. No detalhe que mais interessa a esta exposição: cerca de R$ 37,6 bilhões, correspondendo a 55% daquelas despesas totais, foram gastos com a Justiça Estadual; R$ 14,2 bilhões, equivalentes a 20,8%, com a Justiça do Trabalho; e R$ 8,7 bilhões, equiparados a 12,7%, com a Justiça Federal, somando, portanto, o custo desses dois segmentos mantidos pela União – sem incluir o relativo aos Tribunais Superiores5 (correspondente a cerca de R$ 3,0 bilhões ou 4%) – quase R$ 23 bilhões, isto é, 33,5% do mesmo montante integral. Esses dados são suficientes para revelar, de modo inconteste, que o custo do Judiciário dos estados, que tem um número de magistrados e de servidores muito superior ao das Justiças Federal e do Trabalho somadas, bem como atende mais do que o dobro da demanda por prestação jurisdicional sob o encargo dessas Justiças mantidas pela União, tem sido bem menor, sendo importante também registrar que um processo em tramitação no Judiciário Estadual não chega a despender um terço do custo de um processo trabalhista e em torno da metade de um processo da Justiça Federal.6 Mostram, além disso, e o que me parece mais importante, que o custo do modelo atual de resolução estatal de questões sociais controvertidas no Brasil já atingiu patamar elevadíssimo e que a ampliação da capacidade instalada do Judiciário, isto é, o aumento do número de juízes e de servidores, bem ainda dos meios técnicos e de infraestrutura de apoio, está esbarrando no limite do suportável pela sociedade. Chego, assim, aos pontos que desejo destacar quanto ao futuro da justiça no Brasil. 30
3 Alguns pontos para tecer um amanhã melhor A fotografia da justiça brasileira no amanhã, como penso já ter deixado claro, é algo verdadeiramente impossível de revelação porque esbarra no limite da técnica. Todavia, mantido o modelo atual, o que parece resultar nítido dos macrodesafios estabelecidos no 7o Encontro Nacional do Poder Judiciário, creio ser necessário adotarmos, com urgência, uma política de equilíbrio e nivelamento de custos, de modo a alcançar a tão almejada eficiência em um futuro breve, a qual deve ser construída e executada pelo CNJ com ampla participação de todos os Tribunais e das entidades representativas da magistratura. Mas não só isso! Como entendo que o nosso modelo de resolução estatal de conflitos sociais controvertidos não será modificado na próxima década e até mesmo em mais tempo, inclusive porque não me parece terem sido esgotados todos os meios de aperfeiçoá-lo, penso que, ao lado dessa política, é chegada a hora de chamarmos para a mesa do diálogo não apenas os atores da cena judicial (magistrados, membros do Ministério Público, advogados, especialmente da advocacia pública, e os defensores), mas todos os interessados e responsáveis pela realidade da Justiça brasileira com o elevadíssimo número, sempre crescente, de processos judiciais. A sociedade precisa ser motivada e se convencer que, tal como a saúde, a educação e a segurança da justiça são deveres do Estado e responsabilidade de todos. Como dever e responsabilidade do Estado, a União, que já goza do privilégio de possuir um Judiciário especializado para as questões de seu interesse, os 26 estados, o Distrito Federal e os mais de 5.600 municípios desta vasta terra brasileira têm a obrigação fundamental de contribuir efetivamente para desatravancar os órgãos jurisdicionais e de não utilizar-se da judicialização como meio de postergar o cumprimento de obrigações devidas ou retardar respeito aos direitos das pessoas. De igual modo, os cidadãos e as empresas, especialmente as de grande porte, tais como as dedicadas às atividades financeiras, transporte, telefonia e outras prestações de serviço de massa, precisam compreender que o uso desvirtuado da justiça e do litígio – que tem sido reiteradamente denunciado pela atual gestão da AMB – termina sendo um bumerangue, na medida em que a sobrecarga da máquina judiciária está exigindo cada vez mais recursos financeiros e isso só pode ser obtido mediante aumento da carga tributária que, no nosso País, já é insuportável. Em resumo, o futuro mais ou menos exitoso do modelo vigente passa, em primeiro lugar, pela equalização dos gastos com os três maiores segmentos do nosso Judiciário
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e por ampla conscientização nacional quanto aos efeitos danosos da cultura do litígio. Precisamos que todos se compenetrem de que, como alertou José Renato Nalini,7 competente Presidente do e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o Judiciário não é um problema exclusivo dos juízes, nem dos demais profissionais da área jurídica. O Judiciário é um serviço estatal posto à disposição do povo. É a população legitimada a discuti-lo, a oferecer propostas de aperfeiçoamento, a zelar pelo seu efetivo bom funcionamento, a exigir dele a eficiência prometida pelo constituinte.
E concluiu: Sem esse debate nacional, as soluções brotadas no natural hermetismo da cultura jurídica nem sempre atenderão ao desejo da sociedade. Esta mesma que sustenta o equipamento judicial, cujo crescimento é contínuo e permanecerá à mesma lógica.
Só por essa via começaremos de modo eficaz a mudança de que o modelo em vigor necessita. Só assim conseguiremos engajar as academias e as escolas de advocacia em um grande programa de preparação dos futuros bacharéis em Direito e reciclagem dos atuais advogados para generalizar a prática do esgotamento dos meios consensuais de composição e resolução das relações jurídicas conflituosas, única forma segura de efetivamente reduzirmos a judicialização a patamares controláveis pela capacidade de resposta eficiente do Judiciário, vale dizer, com duração, qualidade e custo adequado dos processos. Sem que haja ampla conscientização nacional de que as pessoas têm capacidade e podem resolver os seus problemas jurídicos de maneira justa por meio da conciliação, da mediação, do arbitramento e de outros meios diversos da adjudicação, ou seja, sem recorrer à via judicial, jamais alcançaremos mudar o panorama revelado na realidade de hoje, na qual prevalece a atuação do Estado-Juiz assistindo a todos na solução de suas demandas, por mais que ocorra grande aumento nos dispêndios da União e dos estados com a manutenção da cada vez mais agigantada estrutura do Judiciário. Esse caminho que acredito ser possível com ampla participação nacional, para que não se limite e pare tão somente na modificação das leis processuais, na tropicalização de institutos e práticas estrangeiras, certamente poderá possibilitar o alcance da eficiência da justiça brasileira que tanto almejamos. Com efeito, assim como a sentença, conforme bem leciona Lênio Streck,8 não é uma obra solipsista ou – digo eu – eremítica do juiz. Assim, também, a justiça não é obra exclusiva do Judiciário. Da sua construção participam as partes e seus procuradores (membros do Ministério
Público, advogados e defensores), sinteticamente todas as pessoas de direito público ou de direito privado que judicializam suas questões controvertidas. Daí porque todos devem assumir a parcela da responsabilidade que lhes cabe pelo quadro atual da Justiça brasileira e participar, na medida dessa responsabilidade, da construção do futuro melhor. Não é demais, pelo menos de passagem, ressaltar que a tão criticada e reclamada morosidade da Justiça brasileira não pode ser imputada com exclusividade à ineficiência de um Judiciário que, em um ano, contando com 16.927 magistrados, consegue julgar mais de 28,5 milhões de processos (cerca de 1.680 por juiz/ano). A interação de todos os atores, como agentes que participam ou potencialmente podem participar do sistema de administração da justiça, somada à contribuição efetiva da sociedade, dizendo o que quer e o que está disposta a pagar pelo funcionamento eficiente desse sistema, no meu modo de ver, apresenta-se imprescindível à construção do seu futuro consistente. Em pequeno grande livro editado em 2015, o professor Eduardo Vera-Cruz Pinto,9 membro do Conselho Superior da Magistratura de Portugal há mais de dez anos, sustenta para o futuro da Justiça em Portugal, mais do que uma reforma radical no modelo vigente, uma ruptura desse modelo. Não creio que isso seja necessário nem adequado à realidade brasileira, embora pense que precisamos ir além das simples reformas. A Ministra Carmen Lúcia, Vice-Presidente do STF, falando durante o 105o Encontro do Conselho dos Tribunais de Justiça afirmou que “o Judiciário não precisa de uma reforma e, sim, de uma transformação”, continuando: “precisamos de uma mudança de cultura, de fazer coisas novas”. Mirando, em sua integralidade, o modelo que temos no Brasil, penso que essa mudança de cultura, de fora para dentro e de dentro para fora da Academia, a partir de ampla discussão nacional, é imprescindível ao futuro da justiça. E estou convicto de que compete ao Judiciário alavancar essa transformação, convocando a sociedade para contribuir na construção do futuro da Justiça que almeja. Antes de encerrar, registro que avançamos muito nos últimos dez anos graças ao inegável esforço desenvolvido por todos os tribunais brasileiros, sob coordenação do CNJ, o que nos permite afirmar que o Judiciário está apto a cumprir esse papel. Afinal, aí estão os avanços alcançados com o planejamento estratégico e o estabelecimento de metas anuais de desempenho, o processo eletrônico, com o fórum da saúde, o Programa “Conciliar é Legal” e, mais recentemente, com os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e de
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Cidadania (Cejuscs), as audiências de custódia, difundidas pelo esforço pessoal do Ministro Ricardo Lewandowski, e o programa de recuperação de valores inscritos em dívida ativa dos estados e municípios que está sendo implantado, com sucesso, por inspiração da Corregedora Nacional de Justiça, Ministra Nancy Andrighi. 4. Conclusão Concluindo, anoto que o Judiciário, para dar partida e conduzir exitosamente a transformação inovadora necessária a elidir a cultura do litígio – caminho único em direção ao futuro eficiente da justiça no nosso País – necessita que a magistratura se fortaleça como um todo vencendo os velhos preconceitos internos que ainda dividem seus diversos segmentos, além de criar isolamentos e produzir políticas corporativas não raro tendentes, no longo prazo, à autofagia. Realmente, um desafio da magnitude do que proponho exige que o Judiciário, não obstante federativamente dividido para efeitos funcionais, seja de fato nacional e uno, como já definiu o STF. E isso tem como pressuposto que consigamos vencer, em primeiro lugar, o que chamo de preconceito da superioridade ou da maior eficiência, que, com as naturais exceções, em síntese e para exemplificar, assim se desdobra: os magistrados estaduais acham que, por terem competência mais ampla, maior volume de processos para decidir e serem em maior número, são mais importantes
do que os federais e do trabalho;10 os magistrados federais acham que são mais preparados que os estaduais e do trabalho e que, por terem competência para conhecer e dirimir as questões de interesse da União, são os mais importantes; os magistrados trabalhistas, por sua vez, acham que, por serem especializados e federais, também são mais importantes do que os estaduais; os magistrados de 2o grau ou dos Tribunais de Apelação acham que são mais importantes que os de 1o grau, daí porque os das justiças federal e do trabalho não quiseram mais ser chamados de juízes e adotaram a designação desembargador ao arrepio da Constituição. Sei que falar desses preconceitos nada agrada a muitos. Sei, por isso mesmo, que não atrai simpatias e certamente não terá o aplauso dos que possam se sentir incomodados. Não importa! Dizer o que alguns ou até mesmo muitos não querem ouvir é, alguém já alertou, acima de tudo exercício pleno da liberdade e, como penso, direito fundamental sujeito apenas à legitimação pelo dever ético de autenticidade. Esses preconceitos, tipicamente provincianos – e digo assim por entender que no DNA do imaginário brasileiro ainda encontramos genes dos mais de trezentos anos em que fomos província – servem de obstáculos à união integral da magistratura. E sem essa união jamais o Judiciário conseguirá ser indutor e catalisador, em futuro breve, do grande processo de transformação inovadora de que necessita a Justiça brasileira.
Notas Antigo Colégio Permanente de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil. O Futuro da justiça: alguns mitos. Revista de Processo. São Paulo, RT, no 99, p. 163. 3 Futurologia: a batalha para o futuro. Colônia, 1970. 4 José Renato Nalini. O futuro da justiça. Diário de São Paulo, 20/8/2015. 5 Importa registrar que nesses números relativos aos dispêndios da União não estão incluídos os gastos com a Justiça Eleitoral (cerca R$ 4,8 bilhões ou 7,0% do total) nem com toda a Justiça Militar (que envolve despesa também dos estados), esta com um custo naquele ano em torno de R$ 117 milhões ou 0,2% sobre a mesma base de cálculo. 6 Resumo demonstrativo da despesa total por quantidade de processos – Ano: 2014 1 2
Item (1) Despesa total (2) Quantidade de processo em tramitação Despesa total / Quantidade de processos em tramitação
Estadual (R$) * 37.715.769.688,00 57.210.697 659,24
Justiça Federal (R$) 8.710.192.624,00 8.484.488 1.026,60
Trabalho (R$) 14.203.126.022,00 4.396.590 3.230,49
*Inclui dados da Justiça Militar dos estados Fonte: (1) e (2) Relatório Justiça em Números 2015 – CNJ
7 http://www.migalhas.com.br/dePeso/. Acesso em: 16 nov. 2015. 8 Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: RT, 2014. p. 322ss. 9 O futuro da justiça. São Paulo: Editora IASP, 2015. 10 Como a magistratura estadual é bem mais antiga do que a federal e a trabalhista tem maior capilaridade territorial, na medida em que não se limita às grandes cidades fazendo-se presente nos mais longínquos lugarejos do território nacional. Enfrenta ainda hoje sérias adversidades de transporte e até mesmo manutenção, porém terminou com representação bem menor no Conselho Nacional de Justiça. Tende a reagir diante de certas políticas judiciárias que, embora visando a alcançar melhor desempenho do Judiciário em âmbito nacional, são modeladas em formas adequadas à realidade desses dois últimos segmentos. 32
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P rateleira
Leonardo Antonelli lança livro no Museu da Justiça
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agistrados, advogados, familiares e amigos prestigiaram o lançamento do livro “Correção Legislativa da Jurisprudência: uma análise das emendas constitucionais em matéria tributária”, de autoria do advogado Leonardo Antonelli, realizado no mês de dezembro no Museu da Justiça, no Rio de Janeiro. Na obra, produzida pela Editora JC, o autor discorre sobre a relação entre constitucionalidade, legalidade tributária e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,
defendendo o princípio da separação dos poderes e a garantia da harmonia e equilíbrio entre eles. Em seu livro, Antonelli explica que, a partir da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal tem declarado inconstitucional uma série de cobranças tributárias. Ao mesmo tempo, o Poder Legislativo vem corrigindo a jurisprudência e promulgando emendas constitucionais, tornando válidas as cobranças. O objetivo do trabalho é concluir em quais hipóteses é possível a correção e quais delas são inconstitucionais. Fonte: Amaerj
Fotos: Rosane Naylor
O autor entre a irmã, Giovana Antonelli, e a esposa, Guilhermina Guinle
Leonardo Antonelli ao lado do desembargador Sylvio Capanema e do presidente da Amaerj, o Juiz de Direito Rossidélio Lopes
Desembargador Siro Darlan e desembargador Marcos Alcino de Azevedo Torres prestigiando o lançamento
O autor ao lado do desembargador Carlos Santos de Oliveira durante o evento
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Tempos que foram e voltam sutilmente Técio Lins e Silva
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Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros
ivemos 21 anos de ditadura. Muita gente boa não gosta do nome, prefere esconder a verdade com eufemismos que não resistem a uma fria análise do que foi a vida dos advogados brasileiros naquele período. Hoje, depois de o primeiro civil assumir a Presidência da República, em 15 de março de 1985, tivemos um surpreendente – e longo – período de estabilidade institucional. Promulgada a Constituição Cidadã, na época uma Carta digna do orgulho nacional, permitiu sete eleições presidenciais realizadas com escrutínios confiáveis e que levaram à alternância de partidos políticos no poder; o incremento da livre participação da sociedade nos debates públicos; o combate à censura; o afastamento de um presidente acusado de corrupção e o inegável fortalecimento de nossas principais instituições. Esses 30 anos de democracia de fato garantiram a independência dos três Poderes da República, um mérito incontestável. O Supremo Tribunal Federal (STF) julga com a mais absoluta liberdade. Se, por um lado, amadurecemos a democracia, fortalecemos suas instituições, aumentamos a participação da sociedade nos debates políticos e condenamos a censura, por outro somos permanentemente revisitados pelos fantasmas de outrora e estamos longe de nos livrar dos ranços ditatoriais. Não são raras as demonstrações de autoritarismo por parte de representantes dos três Poderes da República. Ao contrário do que se pensa, há punições em excesso e ainda se aplica a tortura como método de “confissão” nos porões das delegacias e penitenciárias do País. No âmbito do Poder Judiciário, são os advogados as 34
maiores vítimas desses resquícios ditatoriais, comumente apresentados sob um falso manto democrático. Exemplo recente disso é a limitação, cada vez mais intensa, do uso do nosso remédio heroico, o Habeas Corpus (HC). Cumulado a esse preconceito, acrescentemse os métodos pós-modernos de tortura por meio das chamadas “Delações Premiadas” em troca da liberdade, da atenuação das acusações e da negociação, inclusive, da própria pena a ser cumprida. Tornou-se comum essa prática que impõe a renúncia ao direito de defesa, ao direito de não se incriminar, ao direito ao silêncio e ao fim da imunidade penal da mentira para os acusados da prática de atos criminosos. Tal qual ocorreu com a decretação do Ato Institucional no 6, de 1969 – é inevitável a comparação – do dia para a noite os advogados foram surpreendidos por uma mudança total de entendimento do STF, proferida pela primeira vez nos autos do HC 109.956. Abruptamente, sem qualquer aviso prévio, passou a prevalecer, na Corte Suprema, a lógica de que é inconcebível a impetração de HC em substituição ao recurso cabível contra o acórdão que tenha denegado a ordem na instância inferior. Qualquer advogado militante sabe que, a despeito de toda a informatização da Justiça, um recurso não é encaminhado aos Tribunais Superiores em menos de 30, quiçá 60, dias. E, quando o assunto é liberdade, quem está preso tem pressa. Ainda bem que essa limitação durou pouco e as cortes encontraram uma forma de contornar essa prática. Mas não são só essas as arbitrariedades modernas, com as quais convivem os advogados. Também preocupam as crescentes invasões aos escritórios de advocacia:
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Foto: Aquivo pessoal
computadores e arquivos de clientes são permanentemente devastados e a ação é fundamentada em mandados de busca e apreensão genéricos que afrontam a legalidade. Não bastasse isso, os advogados são obrigados a delatar seus clientes, ou são igualados a eles, como se criminosos fossem. Como poderá sobreviver a advocacia, especialmente a criminal? Como garantir ao cidadão seu direito de defesa, se a ameaça de persecução penal recai sobre quem o representa? Vivemos hoje o tempo do Estado Policial, das frequentes limitações ao exercício da defesa, de Leis que afrontam prerrogativas da Advocacia. Tempos em que os juízes não recebem advogados, desconfiam de nossos escritos e da nossa palavra; são situações estas nunca vistas no País, nem mesmo nos períodos mais sombrios, nem na época dos Atos Institucionais do regime militar. Nesse momento de arbítrio e fúria, vale revisitar o passado, com a consciência do que não queremos repetir e a humildade de reconhecer que alguns exemplos de cordialidade e respeito à Advocacia precisam retornar nos dias atuais. A ditadura militar brasileira, com seus seus 17 Atos Institucionais (AIs) editados sem qualquer legitimidade e regulamentados por 104 atos complementares, desmantelou os Poderes e órgãos do Estado, ignorando e tornando letra morta a Constituição. Suspendeu a democracia e criou um Estado de exceção, enterrando o Estado de Direito e as instituições democráticas. Logo na decretação do primeiro AI, tornou-se clara a afronta direta ao equilíbrio dos Poderes, transferindo-se poderes excepcionais para o Executivo, ao mesmo tempo em que se subtraía a autonomia do Legislativo e do Judiciário.
A ditadura foi enrijecendo ano após ano e, no período entre 1968 a 1978, o Brasil viveu os piores momentos da repressão. O golpe dado como AI-5 sepultou de vez a democracia, proibindo qualquer manifestação de natureza política, autorizando a cassação dos mandatos eletivos, a suspensão dos direitos políticos, a demissão ou aposentadoria de juízes e de funcionários públicos, o fechamento do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas estaduais, a suspensão do HC nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular e determinando o julgamento dos “subversivos” em tribunais de “crimes políticos”. Menos de um ano depois, em setembro de 1969, foi editada a severíssima Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei no 898/1969), que punia os “subversivos” com dez, 20, 30 anos de cadeia, prisão perpétua e pena de morte. O regramento excepcional criado pelo Regime Militar praticamente impossibilitava a defesa dos presos políticos, pois nada pode ferir mais a luta pela defesa da liberdade do que o fim de seu melhor instrumento, seu remédio heroico, o HC. Eu próprio vivi intensamente os anos da ditadura e sou testemunha ocular dessa recente história, em que as liberdades e outros tantos direitos fundamentais estiveram rompidos, impedindo que o exercício da Advocacia pudesse ser realizado de maneira livre. Nesse período, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) exerceu papel fundamental. A tortura foi oficializada pelo regime militar como método de investigação penal. Assim, desconstituir a prova produzida sob este procedimento odioso, inconcebível, passou a ser o objetivo principal dos criminalistas brasileiros e, por isso, a importância de suas atuações na luta em defesa dos perseguidos políticos. Não era possível ao advogado avistar-se com o cliente preso, pois a Lei de Segurança Nacional, de 1969, estabelecia prazo de incomunicabilidade de 10 dias. Assim, antes de qualquer estratégia de defesa, o desafio do advogado era quebrar a incomunicabilidade. Isso sem poder fazer uso de HC! As conversas, quando finalmente autorizadas, frequentemente se davam diante de agentes da ditadura, de modo que o segundo desafio do advogado era conseguir um mínimo de privacidade. Os chamados “anos de chumbo” – final de 1968, até o fim do governo Médici, em março de 1974 – foram os mais repressivos da ditadura, com muitas prisões injustas, torturas e mortes. Os desmandos do Estado totalitário incluíam, ainda, o recrudescimento da censura à imprensa, à música, ao teatro e ao cinema e o cerceamento absoluto da liberdade de expressão, manifestação e pensamento. Durante quase dez anos, a Lei previu pena de morte para crimes políticos. O Decreto-Lei no 898/1969 atribuía aos juízes militares poderes de vida ou morte sobre os
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indivíduos, até dezembro 1978, quando foi editada a Lei no 6.620/1978. Denominada “Nova Lei de Segurança Nacional”, embora mantivesse as mesmas tipificações penais da lei anterior, ao menos diminuiu significativamente as penas atribuídas aos crimes contra a Segurança Nacional, isto é, aos chamados “crimes de sangue”. Era o início do arrefecimento da ditadura, mas apenas o início. O Movimento pela Anistia ganhou força, com apoio de entidades como a OAB, a Associação Brasileira de Imprensa e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. As denúncias de violações aos direitos humanos cruzaram o oceano. O Brasil começou a ser cobrado por organizações internacionais e por países que viviam regimes democráticos e mantinham relações diplomáticas com o governo brasileiro. Pressionado interna e externamente, o governo militar elaborou e encaminhou ao Congresso Nacional um projeto de Lei de Anistia extremamente restritivo, que não incluía os presos da luta armada e os chamados “crimes de sangue”. O Movimento de Anistia insurgiu-se contra tal projeto, exigindo sua ampliação, para incluir os presos políticos por crimes àquela época considerados de “terrorismo”, como sequestro, assalto a banco e ações de devastação e saqueamento, bem como para inserir o que ainda hoje se busca: a localização dos desaparecidos políticos, a identificação dos mortos pela repressão do Estado e a punição dos agentes que praticaram tortura aos opositores do regime. Os presos “excluídos” da Lei de Anistia mobilizaram-se contra o referido Projeto de Lei e entraram em greve de fome, por tempo indeterminado, em vários presídios do País, assim permanecendo durante 33 dias, até a sanção da Lei da Anistia, no dia 28 de agosto de 1979. Embora considerada uma vitória sob o ponto de vista político, a Lei de Anistia permaneceu sendo criticada, por seu caráter restritivo. Tamanha injustiça só foi corrigida pela via do Judiciá rio, destacadamente, mais uma vez, pela ação dos Advogados, que tiveram um duplo papel, ora no plano político (luta pela anistia, direitos humanos e liberdades), ora no plano jurídico (o dia a dia do Foro da Justiça Militar, o contato com a clientela, a representação e o importante papel desempenhado pela OAB). Pode-se dizer que a anistia no Brasil se processou em duas frentes diversas: a política e a jurídica. E esta última deve-se, sobretudo, ao exercício da Advocacia. Como já apontado acima, com a reforma da Lei de Segurança Nacional, em dezembro de 1978, reduziram-se, significativamente, as penas atribuídas aos presos políticos. Cabia, então, aos advogados, exigir a aplicação da nova Lei, para libertá-los, fosse por extinção de pena, fosse por liberdade condicional. Por isso é que, durante muito tempo, tinha-se a falsa impressão de que a Anistia havia 36
alcançado também os militantes da guerrilha armada. Não alcançou. O fato de eles terem sido soltos, por decisão dos Tribunais Militares, não significa que tenham sido anistiados. Diferentemente daqueles que voltavam do exílio, os presos políticos tiveram seus direitos políticos cassados por dez anos. A Advocacia conseguiu, mesmo no auge da ditadura, fazer que a Justiça Militar cumprisse o papel de não permitir que fosse instalada no País uma Justiça de Exceção. O Estado era de Exceção, mas a Justiça não. Hoje, vivemos em um Estado Democrático de Direito, temos uma das Cartas Constitucionais mais belas do mundo, eleições livres e diretas para o Executivo e o Legislativo e uma democracia em permanente processo de construção e fortalecimento. Como pode, apesar desse cenário, a Advocacia brasileira sofrer abalos frequentes e tão violentos? É inconcebível! Entre os mais recentes exemplos de afronta à Advocacia, podemos citar a Lei Anticorrupção (Lei no 12.486/2013), inspirada na legislação americana antiterrorista, fundamentada sob a lógica da “lei e da ordem”, do medo e do terror. Tal lei limita o exercício de nossa profissão, ao determinar o comportamento que devem ter os Advogados ao tomarem conhecimento de que seus clientes, eventualmente, cometeram atos de improbidade ou contrários à lei. Desrespeita-se o direito de defesa! O direito de defesa é sagrado e não pode ser desvirtuado por uma equivocada lógica que confunde o advogado com o cliente! O Brasil tem cedido às pressões internacionais e importado legislações que não nos vestem bem. Não nos servem, não cabem em um País ainda tão marcado por longo período ditatorial e, sobretudo, em um País que não possui, em seu histórico, episódios recentes de “terrorismo”. Foi a ditadura que utilizou tal nomenclatura para descrever crimes praticados contra o Estado que, longe de configurar “terrorismo”, representavam uma tentativa de retomar a democracia pela força e se rebelar pela luta armada. Certo ou errado, aquele era o método adotado por jovens guerrilheiros que em nada se assemelha ao que chamamos de terrorismo nos dias atuais, cujo temor tem sido alastrado pelos Estados Unidos da América. É no bojo dessas propostas que não nos servem que tem sido importado o preconceito e uma verdadeira satanização da Advocacia. Não é a primeira vez que isso ocorre. Também a Lei no 12.683/2012, “para tornar mais eficiente a persecução penal dos crimes de lavagem de dinheiro”, exige que o profissional liberal envie às autoridades informações sobre operações de seus clientes, entre outras medidas que, à toda evidência, ferem o direito ao sigilo resguardado pela Constituição do Brasil.
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Caso se recuse a cumprir a determinação legal, o profissional liberal pode ser considerado, por omissão, partícipe do crime de lavagem praticado por terceiro. Além disso, pode responder administrativamente pelo fato. Tremendo despropósito da Lei! Não à toa, a Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) ajuizou a Ação de Inconstitucionalidade no 4.841, contra tais dispositivos da Lei no 12.683/2012, ainda em tramitação no STF, sob a relatoria do Ministro Celso de Mello. Tais determinações – de que o advogado seja um fiscal e delator de seu cliente – ferem de morte o Estatuto da Advocacia que prevê, no artigo 7o, inciso XIX, como um direito do advogado: Recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional.
A relevância do sigilo profissional é tamanha que, mesmo quando presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado, as informações de seus clientes devem ser preservadas. Segundo o art. 7o, XX, § 6o do Estatuto da Advocacia, em qualquer hipótese, é: Vedada a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes.
Mas, não há limites para a sanha persecutória! Não bastasse a abominável delação, após a publicação da Lei de Lavagem de Dinheiro, diversos Procuradores da República começaram a sustentar que, se o réu estava respondendo a uma ação penal por lavagem de dinheiro, não poderia pagar honorários advocatícios. Sustentavam que o advogado receberia recursos provenientes de crime e, portanto, incorreria no mesmo delito pelo qual seu cliente estava sendo acusado, ou em receptação. Houve até mesmo quem pedisse, nos próprios autos da ação penal, que o réu indicasse o valor dos honorários pagos para sua defesa na causa. Não poderia haver maior despropósito! Ora, desde que receba seus honorários formal e regularmente, sem qualquer ato de ocultação ou dissimulação destes, o advogado não pode ser responsabilizado criminalmente pelo delito de lavagem de dinheiro de seu cliente. Tampouco pode-se impedir que o réu escolha livremente seu defensor, cuja relação deve ser de confiança. Adotar entendimento diverso, em verdade, impossibilitaria que o acusado frequentasse um restaurante, fizesse exercícios em uma academia, fosse assistido por seu médico ou dentista, fizesse compras em um supermercado. To-
dos seriam receptadores em potencial, o que configuraria um desmesurado absurdo. Não se pode admitir, sob qualquer fundamento, que o advogado que defende um criminoso seja a ele equiparado. O advogado não defende o crime, mas o criminoso. Mas não é de pessimismo que se forja a Advocacia. Se soubemos reagir quando nada mais nos parecia favorável, é possível reagir em tempos democráticos, reforçando lemas tão fortemente defendidos pelo Estatuto da Advocacia. Somos indispensáveis à Administração da Justiça! Esse é nosso hino, nosso mandamento maior, que precisa ser respeitado e reconhecido como verdadeiro alicerce de uma Justiça livre e democrática. Quando a Justiça, os juízes ou os órgãos do Poder Judiciário impõem limitações ao advogado estão impondo limitações ao próprio funcionamento da Justiça e ao Estado de Direito Democrático. Ao ser apresentado, o Projeto de Lei no 7.508/2014 recebeu o apoio da unanimidade dos membros do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) que, em sessão plenária, aprovou o parecer do advogado Renato de Moraes, membro efetivo do IAB, assim sintetizado: Projeto de Lei Federal. Acréscimo de dispositivo ao Código Penal. Violação de prerrogativas do Advogado. Tipificação de crime (Artigo 350-A) com a seguinte redação: “Violar ato, manifestação, direito ou prerrogativa do Advogado, nos termos da lei e no exercício de sua função, impedindo ou prejudicando seu exercício profissional. Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa. §1o. A pena é aumentada de um terço, se do fato resulta prejuízo ao seu constituinte. §2o. Somente se procede mediante representação” Art. 133 da Constituição Federal. Lei no 8.906/1994. Pertinência e urgência. Acolhimento.
As prerrogativas profissionais são as garantias de que o advogado poderá cumprir seu múnus público, o que, indiretamente, se constitui também em garantia ao cliente de que terá preservados seus interesses jurídicos. Oxalá recebamos essa proteção penal, ainda que simbolicamente, já que a reprimenda não resultará na prisão do infrator. Mas a sua existência, o simples enunciado na lei penal, consolida a proteção da cidadania e é pedagógico para os que não gostam dos advogados. Integro uma geração de advogados que conheceu o que há de mais sombrio, repressivo e ditatorial em termos de Ordem Jurídica. Mas aprendi que advogar é resistir; e não permitir que esses tempos recentes que se foram voltem a nos ameaçar como tem acontecido assustadoramente! Agradeço a pesquisa realizada por minha Colega de Escritório, Advogada Maíra Fernandes.
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E m foco, por Wilson Aquino Foto: Marcelo de Jesus
Juristas de todo o mundo participaram do I Congresso Internacional CBMA de arbitragem
O admirável mundo novo da arbitragem
A
reclamação de que “a justiça é lenta” está perto do fim. Pelo menos em casos de litígios nas relações comerciais. Desde a instituição da Lei da Arbitragem no País, em 1996, essa via alternativa de justiça, que tem entre seus pilares o compromisso de solucionar conflitos com rapidez e eficiência, tem ganhado força junto ao empresariado nacional e já é considerado o modelo mais adequado para a resolução de desavenças que envolvam direitos patrimoniais das partes. Reflexo disso são os números apresentados pelo Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), que, em apenas um ano, aumentou o índice de arbitragens realizadas em 600%. 38
Para pensar o passado, o presente e, principalmente, o futuro da Arbitragem no Brasil, o CBMA realizou o “I Congresso Internacional CBMA de Arbitragem”, nos dias 10 e 11 de dezembro, no Centro de Convenções da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), na capital fluminense. O evento trouxe para a mesa de debates nomes de peso do Poder Judiciário e do Direito brasileiro, como o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcus Vinicius Furtado Coelho, o desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Alexandre de Freitas Câmara, os professores Joaquim Falcão, Nelson Eizirik, Marçal Justen Filho e
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Carlos Alberto Carmona, além de grandes advogados que atuam na área. Desde 2003 – quando a OAB ajuizou, no STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra o artigo 1o da Medida Provisória nº 2.221, que incluía na Lei Federal nº 4.591/1964 a obrigatoriedade de resolução de determinados conflitos mediante arbitragem – até a consagração do instituto houve longo caminho. E quase nada escapou dos debates. “Arbitragem no setor de óleo e gás”, “Arbitragem e Direito Tributário”, “Processo Civil e Arbitragem”, “Arbitragem nos conflitos envolvendo a Administração Pública” e “Direito Arbitral Brasileiro” foram algumas dos temas debatidos. O painel sobre “Arbitragem Internacional” trouxe atuantes especialistas estrangeiros. Os norte-americanos Luis O’Nagthen, professor da Miami University, e David Lindsey, advogado de Nova Iorque, e a advogada, com nacionalidades brasileira e portuguesa, Ana Elisa Bruder, do escritório Mayer Brown, em Frankfurt, Alemanha, dividiram suas experiências com a plateia. Assim como os portugueses Nuno Villa Lobos, presidente do Centro de Arbitragem Administrativa de Portugal, e os advogados José Miguel Júdice e Pedro Leite Alves. Ao participar da mesa de abertura do evento, o presidente da OAB lembrou o episódio da ADI. “A OAB tem evoluído junto com a sociedade”, destacou Coêlho, ao explicar que a entidade tinha o entendimento, na época, que o compromisso arbitral impedia o acesso à Justiça e feria a cláusula constitucional da inafastabilidade da jurisdição ou do direito ao acesso à Justiça. “Essa era a posição da OAB, não vai uma crítica ao passado. Isso é uma evolução das coisas”, salientou. “O que ontem era algo visto com muito distanciamento e até oposição pela nossa entidade, hoje está cada vez mais nos corações e nas mentes dos advogados brasileiros. A arbitragem deve ser mais um espaço de atuação da advocacia no Brasil”, conclamou. O STF decidiu, no final de 2001, que a Lei era constitucional. “A partir daí são criadas Câmaras de Arbitragem no Brasil e começa a florescer uma cultura de resolução de conflitos pela via da Arbitragem”, explicou o presidente do CBMA, Gustavo da Rocha Schmidt. A aceitação desse modelo de alternativa não para de crescer. Segundo pesquisa da professora e advogada Selma Lemes, o número de processos arbitrais saltou de 21 casos, em 2005, para 207, em 2014, nas cinco principais câmaras de arbitragem brasileiras. Os litígios entrantes nesses Tribunais de Arbitragem, nos últimos 10 anos, envolveram valores estimados em R$ 29 bilhões, de acordo com a mesma pesquisa. Segundo Gustavo Schmidt, a arbitragem tem uma série de vantagens em relação ao procedimento judicial. A primeira delas é que é muito mais rápida. “Um conflito de R$ 1 bilhão vai demorar 10, 20 anos no
Judiciário para ser resolvido. Na arbitragem demora dois anos, sendo que há cálculos indicando que a média tem sido de 1 ano e 8 meses”. Um dos motivos da celeridade começa pelo fato de não haver recursos. “Além disso, tem outras vantagens. A arbitragem permite que sua causa seja julgada por árbitros altamente especializados na matéria. Aquela pessoa é escolhida porque entende tudo do assunto. No final das contas essa acaba sendo uma solução tecnicamente melhor”, defendeu. Na arbitragem, as partes elegem o árbitro que vai presidir o processo. No Judiciário, os juízes dos casos são sorteados, e é natural que o magistrado não possa conhecer de todos os assuntos ao mesmo tempo”, esclareceu Schmidt. Apesar das aparentes diferenças com o sistema judicial, arbitragem e Poder Judiciário se harmonizam no entender de vários juristas. Entre os quais o desembargador Alexandre Câmara, membro do Comitê Brasileiro de Arbitragem e benemérito do Instituto Nacional de Mediação e Arbitragem. “Sem participação do Judiciário haverá casos em que a arbitragem não vai atingir os resultados a que se propõe. Poderá surgir necessidade de atos de império que o árbitro não poderá realizar. Mas é necessário que, havendo esses casos, o papel do juiz seja o de auxiliar. Ele deve, unicamente, praticar os atos necessários para viabilizar a atuação do órgão arbitral”, ponderou Câmara. Para ele, o Judiciário não pode fechar os olhos para a arbitragem e vice-versa. “Tem de haver cooperação. Tanto no sentido de ajuda, como no de trabalhar juntos para que resultados sejam alcançados”, sustentou. Câmara disse que, por influência de culturas jurídicas estrangeiras, no Brasil formouse um ambiente que leva a sociedade a acreditar que o meio ordinário para resolver conflitos é o Judiciário, quando na realidade deveria ser o extraordinário. “Tenho sustentado – e às vezes enfrentado olhares enviesados – que precisamos inverter essa lógica. Arbitragem, mediação e conciliação são os meios mais adequados e civilizados para resolução de conflitos. O verdadeiro meio alternativo é o meio judicial. Só deveríamos ir ao Judiciário quando os outros mecanismos falhassem”. Para Sérgio Tostes, Presidente da Comissão de Mediação, Conciliação e Arbitragem do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), “a Arbitragem é o futuro. A Justiça continuará a existir mais fortalecida, porque vai se dedicar mais às causas sociais”. Administração Pública e arbitragem: solução jurídica e econômica A exposição do ministro Barroso foi um dos pontos altos do evento. Ele ressaltou que, segundo as últimas estatísticas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existem cerca de 100 milhões de ações em trâmite no Brasil. “Isso,
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Fotos: Marcelo de Jesus
“Na verdade, litigantes habituais, como o Poder Público e alguns setores econômicos específicos, usam o Judiciário frequentemente para procrastinar o pagamento de ações. O Poder Judiciário não pode ser o centro da vida brasileira. Ninguém pode achar que a judicialização seja a forma normal de viver a vida. A forma normal é a composição amigável.”
Ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal
estatisticamente, significa – considerando que somos 200 milhões de brasileiros – que um em cada dois brasileiros está em juízo. Provavelmente, é um dos maiores índices de judicialização do mundo”. Ele, no entanto, esclareceu que essa conclusão, de que quase todos os cidadãos estão presentes no Judiciário, é um equívoco. “Na verdade, litigantes habituais, como o Poder Público e alguns setores econômicos específicos, usam o Judiciário frequentemente para procrastinar o pagamento de ações. O Poder Judiciário não pode ser o centro da vida brasileira. Ninguém pode achar que a judicialização seja a forma normal de viver a vida. A forma normal é a composição amigável”, destacou Barroso. O grande advogado, segundo o ministro, vai deixar de ser aquele que “faz peças belíssimas e depois, uns sete, oito anos depois, obtém uma longa sentença. O mundo atual não comporta esse timing do Poder Judiciário”. Para ele, os processos têm de durar seis meses ou, no máximo, um ano. Se for muito difícil tem que demorar 18 meses. É uma ilusão achar que o processo que não termina beneficia alguém. Creio que a advocacia do futuro é a do advogado negociador, que consegue não litigar em juízo. E dentro desse setor vai ter um nicho que vai ser do advogado “resolvedor” de problemas, que vai fazer uma espécie de arbitragem light, a quem as partes podem recorrer. O ministro Barroso também comentou a Lei nº 13.129, em vigor desde julho, que faculta à Administração Pública a utilização da arbitragem. Antes, porém, ele lembrou à plateia que já foi procurador do Estado do Rio de Janeiro. 40
E como ex-advogado público, classificou a atuação em juízo da Fazenda Pública como um verdadeiro desastre. “O Poder Público litiga, frequentemente, com requintes de má-fé”, disparou o ministro da Suprema Corte brasileira. “Um tipo de litigância que contesta tudo, recorre de tudo durante o processo de conhecimento, depois durante a execução e depois não paga o precatório. Essa é a prática do litígio da Administração Pública. O Estado se comporta de maneira incorreta com o seu cidadão. É indecente”, resumiu. Barroso sustenta que antes de chegar à arbitragem, a Administração Pública tem de mudar o modo como litiga em juízo, afirmando em seguida “que tudo que pode ser objeto de contrato pode ser objeto de arbitragem na Administração Pública”, como telecomunicações, transporte, parcerias públicoprivadas (PPPs) e contratos de exploração e produção de petróleo e gás natural. Sobre esse ponto, a professora Selma Ferreira Lemes, que participou do painel “Arbitragem nos Conflitos Envolvendo a Administração Pública”, ao lado de Marçal Justen Filho, Pedro Leite Alves e o presidente da CBMA, Gustavo Shmidt, chamou atenção para um fundamento, considerado por ela muito importante, mas relegado ao esquecimento: o princípio da economicidade. “A cláusula de arbitragem no contrato administrativo de PPP ou de concessão não é uma cláusula jurídica para resolver conflito, é uma cláusula financeira, porque ela traz uma economia que pode chegar a 58% dos custos do processo. Portanto, não é algo a ser negligenciado”, destacou.
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Geração de empregos Além do avanço na legislação, outro fator festejado no Congresso foi o fato de a arbitragem ser uma atividade geradora de empregos. “Quando se fala em Câmara de Arbitragem, as pessoas pensam logo em advogados, mas para cada profissional de advocacia envolvido em mediação ou arbitragem existem outros quatro empregos vinculados, nas mais diversas áreas”, afirmou o diretor de arbitragem do CBMA, Joaquim de Paiva Muniz. Ele citou o exemplo de Paris, sede da maior câmara do mundo, a Câmara de Comércio Internacional (CCI), que gera para a capital francesa cerca de 200 milhões de euros por ano. “O que me anima nisso é que estamos diante de um novo mercado de trabalho”, destacou o professor Joaquim Falcão, diretor do Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro. Ele divulgou um estudo da FGV que estima que 17 mil novos postos de trabalho serão criados somente na área da mediação e destacou ainda o uso da rede mundial de computadores na arbitragem. “A nossa escola está investindo nisso”, revelou, afirmando que alguns alunos estão montando empresas de mediação pela internet. “A lei está em vigor, o mercado de trabalho está latente, é preciso agora atrair o consumidor porque isso é do interesse público”, concluiu. Temas do dia a dia de quem trabalha com arbitragem foram abordados no Congresso. A questão da autonomia privada e da ordem pública, o sigilo da arbitragem e a transparência das empresas de capital aberto, a lista fechada para conselho arbitral, os honorários de
sucumbência e custos de arbitragem, o sigilo da arbitragem e a transparência das empresas de capital aberto, a cláusula compromissória, os custos de sucumbência na arbitragem internacional e os mecanismos do Common Law (Direito Comum) estiveram presentes nos debates, cuja qualidade impressionou o advogado nova-iorquino David Lindsey. “A Arbitragem se desenvolveu no Brasil em 20 anos o mesmo que nos Estados Unidos em 75. O Brasil é hoje a estrela sul-americana da arbitragem”, afirmou. O Congresso terminou com a proposta de ser realizado anualmente e com muitos elogios ao organizador do evento e presidente da CBMA Gustavo Schmidt. Em seu discurso de encerramento, Schmidt destacou que o Rio de Janeiro avança para se tornar o principal centro de solução de conflitos extrajudiciais do Brasil. “A qualidade e a eficiência da secretaria, a melhora das instalações da Câmara. Isso é resultado de um processo que conta com a participação de toda a equipe”, repartiu os méritos. A CBMA é um órgão sem fins lucrativos fundado em 2001 por três das mais representativas entidades da economia brasileira: a Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ), a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados e de Capitalização (Fenaseg) e a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). “Fenaseg, Fenaseg e Associação Comercial fizeram tudo isso, porque acreditam que é pelas instituições que se vai fazer a mudança do Brasil”, afirmou o presidente da ACRJ, Paulo Protásio.
“Um conflito de R$ 1 bilhão vai demorar 10, 20 anos no Judiciário para ser resolvido. Na arbitragem demora dois anos, sendo que há cálculos indicando que a média tem sido de 1 ano e 8 meses.”
Gustavo da Rocha Schmidt, presidente do CBMA 2016 Janeiro | Justiça & Cidadania 41
Parâmetros para a nomeação do administrador judicial e fixação dos seus honorários na recuperação judicial Luiz Alberto Carvalho Alves
Juiz de Direito do TJRJ
A
Lei no 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, prevê no capítulo II, seção III, arts. 21 e seguintes, além das competências e responsabilidades que recaem sobre o administrador judicial, alguns parâmetros para a sua nomeação e a fixação de seus honorários na recuperação judicial. Podemos transcrever os seguintes comandos legais aplicáveis ao tema:
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Foto: Bruno Dantas
Art. 21. O administrador judicial será profissional idôneo, preferencialmente advogado, economista, administrador de empresas ou contador, ou pessoa jurídica especializada. Parágrafo único. Se o administrador judicial nomeado for pessoa jurídica, declarar-se-á, no termo de que trata o art. 33 desta Lei, o nome de profissional responsável pela condução do processo de falência ou de recuperação judicial, que não poderá ser substituído sem autorização do juiz. Art. 24. O juiz fixará o valor e a forma de pagamento da remuneração do administrador judicial, observados a capacidade de pagamento do devedor, o grau de complexidade do trabalho e os valores praticados no mercado para o desempenho de atividades semelhantes. § 1o Em qualquer hipótese, o total pago ao administrador judicial não excederá 5% (cinco por cento) do valor devido
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aos credores submetidos à recuperação judicial ou do valor de venda dos bens na falência. § 2o Será reservado 40% (quarenta por cento) do montante devido ao administrador judicial para pagamento após atendimento do previsto nos arts. 154 e 155 desta Lei. § 3o O administrador judicial substituído será remunerado proporcionalmente ao trabalho realizado, salvo se renunciar sem relevante razão ou for destituído de suas funções por desídia, culpa, dolo ou descumprimento das obrigações fixadas nesta Lei, hipóteses em que não terá direito à remuneração. § 4o Também não terá direito à remuneração o administrador que tiver suas contas desaprovadas. § 5o A remuneração do administrador judicial fica reduzida ao limite de 2% (dois por cento), no caso de microempresas e empresas de pequeno porte. (Incluído pela Lei Complementar no 147, de 2014) Art. 25. Caberá ao devedor ou à massa falida arcar com as despesas relativas à remuneração do administrador judicial e das pessoas eventualmente contratadas para auxiliá-lo.
Mediante a leitura dos dispositivos supramencionados, podemos afirmar que a lei fixa como requisito legal para o exercício da função de administrador judicial ser profissional idôneo, e como parâmetros para escolha destes profissionais os que, de preferência, sejam advogados, economistas, administradores de empresas ou contadores, sendo o rol de profissionais meramente exemplificativo, devendo prevalecer o profissional idôneo de confiança do juiz que preside a condução do procedimento recuperacional. Faculta, ainda, a possibilidade da nomeação de uma pessoa jurídica especializada na função. Quanto à remuneração, cabe ao juiz fixar o valor e a sua forma de pagamento, tendo como parâmetros legais a capacidade de pagamento do devedor, o grau de complexidade do trabalho e os valores praticados no mercado para o desempenho de atividades semelhantes. Fixa como limite máximo da remuneração o percentual de 5% dos valores devidos aos credores sujeitos a recuperação judicial, sendo que na hipótese de a devedora ser microempresa ou empresa de pequeno porte o limite máximo cai para o valor de 2% sobre a mesma base de cálculo. A proposta deste trabalho, de natureza prática, é buscar transformar os parâmetros legais acima trans critos em critérios objetivos e efetivos no dia a dia do exercício da função jurisdicional, à luz dos Princípios Jurídicos que norteiam a matéria sem se afastar de seus aspectos econômicos e financeiros. Os operadores do Direito Empresarial não podem se afastar dos aspectos econômicos e financeiros sempre presentes nas relações jurídicas empresariais, sob pena de tornar o texto da lei
“Embora a lei faculte ao juiz nomear como administrador judicial pessoa jurídica ou pessoa física, deve-se, sempre que possível, optar pela pessoa jurídica especializada, que pode e deve fornecer e indicar toda uma equipe interdisciplinar de profissionais que atuarão em conjunto e em seu nome, proporcionando maior celeridade, técnica e profissionalismo, evitando que o administrador, como pessoa física, tenha de utilizar da prerrogativa do art. 22, I, “h”, da Lei de Recuperação e Falência (LRF), contratando profissionais para auxiliá-lo, só retardando e tumultuando o andamento do feito.” letra morta, sem aplicabilidade e eficácia para atingir aos fins almejados. Para que possamos entender a propositura pretendida no tema, é necessário fazer uma rápida abordagem de como era enfocada a matéria na legislação revogada, Decretolei no 7.661/1945. Quais eram os eventuais parâmetros existentes e, mais relevante, se eram efetivos e eficientes no procedimento da concordata, instituto que correspondia à recuperação judicial na legislação vigente. Na legislação revogada existia a figura do comissário, que atuava no instituto da concordata, seja ela preventiva ou suspensiva, e a figura do síndico, na hipótese do procedimento falimentar, ambas com as funções análogas ao do administrador judicial prevista na Lei no 11.101/2005, seja na recuperação judicial, seja na falência. Como na legislação vigente, exigia-se para o exercício da função de comissário ser pessoa de reconhecida idoneidade moral e financeira, porém entre os maiores credores (art. 60 c/c art. 161, VI do Decreto-lei no 7.661/1945). Não se exigia qualquer requisito de profissionalismo, bastando ser um dos maiores credores do devedor. Na prática, tal dispositivo era de difícil cumprimento e sem efetividade, pois os credores não aceitavam o encargo em razão da complexidade do trabalho, grande responsabilidade e duvidosa remuneração, pois muitas das
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vezes a falência sobrevinha sem restar qualquer ativo para o pagamento dos credores. O que se presenciava era o fato de o juiz responsável pelo procedimento da concordata, após várias tentativas de buscar um credor para assumir o encargo, acabar nomeando, por ausência de opção, pessoa de sua confiança estranha ao quadro de credores para o exercício da função, geralmente advogados militantes na comarca, permanecendo todas as incertezas de sua eventual remuneração, atuando, geralmente, de forma gratuita na expectativa incerta do recebimento de uma remuneração futura se a empresa concordatária suportar ao final, deixando de atuar, por tais razões, com zelo e profissionalismo necessários ao encargo. Tal realidade fática contribuiu significativamente para a ausência de efetividade e a ineficiência do instituto da concordata no Decreto-lei no 7.661/1945, trazendo grande descrédito, pois concordata era sinônimo, no meio jurídico e social, de processos volumosos, morosos, sem solução e que só beneficiavam empresários maus pagadores, desonestos e fraudadores. Com o advento da Lei no 11.101/2005, que introduziu várias inovações e modificações, regulando o estado de crise econômica, financeira e patrimonial das empresas e a sua eventual insolvência, principalmente a substituição da concordata pelo instituto da recuperação judicial, que se demonstra muito mais eficiente na busca do soerguimento da empresa em crise, com novos princípios e conceitos, e profissionalizando a figura do administrador judicial como auxiliar do juiz, podemos vislumbrar novos rumos na busca de se reparar a má ideia de que a antiga concordata e a sua atual sucessora, recuperação judicial, não cumprem com o objetivo jurídico-social de soerguimento da empresa em crise, permitindo a manutenção da fonte produtiva, do emprego dos trabalhadores, dos interesses dos credores estimulando a atividade econômica. Nessa linha de raciocínio que se busca a fixação dos critérios para a nomeação e a remuneração do administrador judicial, profissional que deverá exercer a sua função de forma ativa, auxiliando o juízo no cumprimento do princípio da preservação da empresa viável e da imediata liquidação das inviáveis, protegendo o ordenamento econômico. Critérios objetivos de nomeação do Administrador judicial Embora a lei faculte ao juiz nomear como administrador judicial pessoa jurídica ou pessoa física, deve-se, sempre que possível, optar pela pessoa jurídica especializada, que pode e deve fornecer e indicar toda uma equipe interdisciplinar de profissionais que atuarão em conjunto e em seu nome, proporcionando maior celeridade, técnica 44
e profissionalismo, evitando que o administrador, como pessoa física, tenha de utilizar da prerrogativa do art. 22, I, “h”, da Lei de Recuperação e Falência (LRF), contratando profissionais para auxiliá-lo, só retardando e tumultuando o andamento do feito. Entre os profissionais indicados, é relevante que figure entre eles pelo menos um dos sócios-gerentes da pessoa jurídica para fins de responsabilidade na condução dos trabalhos. O administrador judicial, como pessoa física, mostrase mais razoável nas hipóteses de recuperação judicial de micro e pequenas empresas em que a complexidade do trabalho é menor e mais adequada à capacidade de pagamento do pequeno empresário devedor. Cabe destacar que, embora com todos os esforços dos servidores públicos que atuam com liquidante judicial, temos de admitir a absoluta incapacidade, por ausência de recursos deles, em exercer a função de administrador judicial de forma ativa e célere nas recuperações judiciais, proporcionando, muitas vezes, o insucesso do procedimento. Critérios objetivos para a fixação dos honorários do administrador judicial Na decisão em que o magistrado defere o processamento da recuperação judicial, nos termos do art. 52 da LRF, deverá nomear o administrador judicial e, também, fixar de plano a sua remuneração e a forma de seu pagamento, observando os parâmetros do art. 24 da LRF: capacidade de pagamento do devedor, grau de complexidade do trabalho e os valores praticados no mercado para o desempenho de atividades semelhantes, respeitando os limites de 5% ou 2% dos valores devidos aos credores, conforme já mencionado. Embora o art. 52 e a própria Lei no 11.101/2005 não sejam claros e não imponham o momento exato em que o juiz deverá fixar o valor e a forma de pagamento da remuneração do administrador judicial, é de extrema importância a sua definição na decisão de deferimento do processamento da recuperação judicial em razão de que a empresa poderá, além de se manifestar diretamente quanto a sua capacidade de pagamento, analisada de forma sumária pelo magistrado, se planejar para assumir a despesa dentro de sua realidade financeira, buscando valor razoável entre a sua capacidade e a complexidade do trabalho a ser desempenhado durante todo o período de 30 meses de processamento regular da recuperação judicial. Por sua vez, o valor fixado deverá ser parcelado, de regra em parcelas iguais, nos 30 meses subsequentes à decisão de deferimento do processamento da recuperação judicial, compreendendo os 180 dias (seis meses) definidos no art.
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6o, parágrafo 4o, da LRF, em que o plano de recuperação judicial deverá ser aprovado, somados aos dois anos em que a empresa permanece sobre fiscalização do administrador judicial quanto ao cumprimento das obrigações assumidas no plano, cabendo a sua extinção após o transcurso deste prazo, conforme arts. 61 c/c 63 da LRF. A importância desse parcelamento é relevante tanto para a empresa como para o administrador judicial, propiciando condições necessárias para o efetivo pagamento da remuneração de forma parcelada e programada, sem onerar excessivamente a recuperanda, e proporcionando as condições financeiras para que o administrador judicial exerça suas atribuições durante todo o período. Ao se definir a forma de pagamento da remuneração do administrador judicial em, no mínimo, 30 meses, é relevante se destacar a inaplicabilidade do comando do art. 24, parágrafo 2o, da LRF na recuperação judicial, sendo devida a reserva de 40% da remuneração, a ser pago ao final, somente na hipótese do procedimento falimentar, pois o administrador judicial, no processo recuperacional, não é gestor de patrimônio e bens alheios, atua como mero fiscal das atividades da empresa, não tendo o dever de prestar contas como na hipótese do processo de falência onde este administra e aliena todo o ativo e patrimônio da empresa falida. Cabe transcrever os seguintes acórdãos do TJRJ neste sentido: 0044372-20.2009.8.19.0000 (2009.002.41700) AGRAVO DE INSTRUMENTO DES. FERDINALDO DO NASCIMENTO – Julgamento: 9/3/2010 – DÉCIMA NONA CÂMARA CÍVEL AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ADMINISTRADOR JUDICIAL. REMUNERAÇÃO. O MM. Juízo a quo fixou os honorários do administrador judicial em 1% (um por cento) dos débitos objeto da recuperação, a serem pagos em 24 (vinte e quatro) parcelas mensais. Posteriormente, o percentual em questão foi reduzido para 0,8%, com o qual as empresas em recuperação não manifestaram qualquer oposição. Da mesma forma, quedou-se inerte o Ministério Público, em virtude do que a questão restou preclusa, inexistindo fundamentos que justifiquem a modificação do referido percentual. No que concerne à reserva de 40% (quarenta por cento) da remuneração do administrador judicial, prevista no art. 24, parágrafo 2o, da Lei no 11.101/2005, trata-se de exigência destinada aos procedimentos de falência, nos quais o administrador funciona como gestor dos bens do falido. Na recuperação judicial, o principal papel do administrador judicial consiste na fiscalização das atividades do devedor e no cumprimento do plano de recuperação. Infere-se do art. 22, inciso II, alínea “c”, da Lei no 11.101/2005
que, na recuperação judicial, a prestação de contas do administrador judicial se refere às atividades da recuperanda e não de sua administração. MANTENÇA DA R. DECISÃO AGRAVADA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. Data de Julgamento: 9/3/2010 (*) __________________________________ 0032592-10.2014.8.19.0000 AGRAVO DE INSTRUMENTO DES. MARILIA DE CASTRO NEVES – Julgamento: 17/9/2014 – VIGÉSIMA CÂMARA CÍVEL RECUPERAÇÃO JUDICIAL. FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS. ADMINISTRADOR JUDICIAL. DECISÃO QUE FIXOU OS HONORÁRIOS NO PERCENTUAL DE 3% (TRÊS POR CENTO) DO VALOR DEVIDO AOS CREDORES. REDUÇÃO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL ONDE O ADMINISTRADOR JUDICIAL NÃO ADMINISTRA A EMPRESA RECUPERANDA, QUE CONTINUA A SER GERENCIADA POR SEUS ADMINISTRADORES. COMPETE AO JUIZ FIXAR O VALOR DA REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL, DEVENDO LEVAR EM CONSIDERAÇÃO A CAPACIDADE DO PAGAMENTO DO DEVEDOR, O GRAU DE COMPLEXIDADE DO TRABALHO DESENVOLVIDO E OS VALORES PRATICADOS NO MERCADO PARA O DESEMPENHO DE ATIVIDADES SEMELHANTES. RESERVA DE 40% (QUARENTA POR CENTO) DA REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL, PREVISTA NO ART. 24, PARÁGRAFO 2o, DA LEI No 11.101/2005. IMPOSSIBILIDADE. EXIGÊNCIA DESTINADA AOS PROCEDIMENTOS DE FALÊNCIA, NOS QUAIS O ADMINISTRADOR FUNCIONA COMO GESTOR DOS BENS DO FALIDO. PRESTAÇÃO DE CONTAS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL QUE SE LIMITA ÀS ATIVIDADES DA RECUPERANDA E NÃO DE SUA ADMINISTRAÇÃO. PRECEDENTES DESTA E. CORTE. PROVIMENTO DO RECURSO. UNÂNIME. Acórdão – Data de Julgamento: 17/9/2014 (*)
É relevante destacar, na decisão de fixação do valor dos honorários do administrador judicial, se este compreende apenas a remuneração de seu trabalho propriamente dito, ou engloba todas as despesas necessárias e regulares para o desempenho da função do administrador judicial, inclusive com o apoio da equipe interdisciplinar. Embora a legislação seja omissa, tem-se mostrado na prática a absoluta conveniência que o juiz, ao fixar a remuneração do administrador judicial, já leve em conta todas as despesas necessárias que este terá de realizar no desempenho de suas funções, como emissão de correspondências aos credores, transporte, alimentação e outras, desde que estejam dentro de um grau de despesa
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regular, razoável e prevista ou, ao menos, previsível. Nesse contexto, inclui-se o pagamento dos profissionais auxiliares e de apoio, tornando o procedimento mais célere e efetivo, razão pela qual, sempre que possível, devemos optar pela nomeação de uma pessoa jurídica especializada, com toda esta estrutura, ou física, que possua sua equipe própria. Por fim, devemos destacar que o valor e a forma de pagamento da remuneração do administrador judicial devem ser periódicas, proporcionando condições de autonomia financeira ao administrador judicial de efetivamente fiscalizar e acompanhar toda a atividade da empresa em recuperação judicial, visando trazer ao juízo a verdadeira situação econômica, financeira e patrimonial da empresa, sendo esta atuação transparente verdadeira garantia para os credores quanto às reais pretensões da empresa em recuperação, inclusive para exercerem o direito de voto na aprovação ou rejeição do plano de recuperação. Não se pode tolerar mais a atuação do administrador judicial como mero chancelador de informações trazidas pela recuperanda aos autos, dando azo aos maus empresários de se utilizarem da recuperação judicial como meio fraudulento de não honrar com as obrigações pactuadas com seus credores.
“Cabe ao Poder Judiciário, nesse momento, estar pronto para enfrentar esse desafio de colocar em prática todo o instituto da recuperação judicial, buscando o soerguimento das empresas viáveis e a liquidação imediata das inviáveis que já se encontram em estado de insolvência, protegendo a ordem econômica.”
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Por outro lado, o valor e a forma de pagamento da remuneração mencionados acima devem ser compatíveis com a capacidade de pagamento da empresa. Não restando presente a capacidade mínima da empresa em suportar tais despesas em seu processo de recuperação judicial, proporcionando ao administrador judicial uma atuação ativa, tem-se de chegar à conclusão de que esta já se encontra em estado de insolvência e inviável de se soerguer com o procedimento recuperacional. O último critério fixado pela lei, consistente na fixação dos honorários do administrador judicial à luz dos valores praticados no mercado para o desempenho de atividades semelhantes, vem se mostrando de difícil aplicabilidade de forma objetiva, servindo como um critério complementar e auxiliar dos demais, pois a atividade do administrador judicial possui peculiaridades tão distintas que se torna difícil buscar atividades semelhantes no ramo das atividades empresariais. Conclusão Embora a Lei no 11.101/2005 complete dez anos de existência, devemos reconhecer que o Brasil, nesses últimos anos, viveu em relativa prosperidade econômica e financeira não se exigindo, até agora, a efetiva aplicação do ordenamento jurídico referente à recuperação judicial, com um número reduzido de requerimento do benefício legal. Contudo, com a crise econômica global e, mais especificamente, a crise econômica, financeira e política que vivemos no Brasil este ano, o número de requerimentos de recuperação judicial já aumentou consideravelmente, sendo que as previsões futuras não são nada animadoras. Cabe ao Poder Judiciário, nesse momento, estar pronto para enfrentar esse desafio de colocar em prática todo o instituto da recuperação judicial, buscando o soerguimento das empresas viáveis e a liquidação imediata das inviáveis que já se encontram em estado de insolvência, protegendo a ordem econômica. Para tanto, um dos principais instrumentos conferidos pela lei ao Juiz, que preside o procedimento de recuperação judicial, para lhe dar efetividade é a figura do Administrador Judicial, que deverá ser profissional especializado, com condições mínimas estruturais e financeiras para atuar com independência e autonomia, sendo uma garantia do juízo e dos credores quanto à transparência da verdadeira realidade da crise econômica, financeira e patrimonial pela qual a empresa requerente atravessa. Por sua vez, a empresa que não possui capacidade mínima de pagar a remuneração do Administrador Judicial para que atue nestas condições já se encontra em estado de insolvência, não sendo hipótese de deferimento ou prosseguimento do procedimento recuperacional.
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Foto: Aquivo pessoal
A desjudicialização do planejamento tributário
Breve estudo sobre a falta de julgado sobre planejamento tributário nos Tribunais Superiores José Enrique Teixeira Reinoso
O
Advogado
planejamento tributário tornou-se ferramenta fundamental para a redução das despesas e, consequentemente, para a tomada de decisão dos empreendedores, consistindo em excluir, diminuir e retardar os tributos. Ocorre que essa ferramenta tem sido vilipendiada pela concessão recorrente de benefícios fiscais pelos entes tributantes nos últimos dez anos.
O presente artigo tem como objeto estudar a razão pela qual o contribuinte, no que tange ao planejamento tributário, vive flagrante insegurança jurídica, porquanto inexistem discussões específicas sobre planejamento tributário em sentido estrito sob o crivo dos Tribunais Superiores, como também sequer existe lei específica delimitando esse tema. Para tanto, este artigo pretende, em breves linhas, trazer à lume um dos motivos pelos quais o planejamento
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tributário nos últimos dez anos vem sofrendo uma espécie desjudicialização, que tudo indica ter como causa nevrálgica a concessão dos inúmeros planos de parcelamento concedidos pelos entes federativos, sejam esses: Refis, Paes, Paex, Refis da Crise e da Copa, bem como no Rio de Janeiro (Decreto no 45.492/2015), Minas Gerais (Decreto no 46.817/2015) e São Paulo (Decreto no 61.625/2015). Urge salientar que já até houve uma Medida Provisória de no 66/2002 sendo discutida no Congresso Nacional sobre os limites do planejamento. No entanto, continua sendo considerado um tabu, haja vista flagrante ausência de positivação da figura do propósito negocial elemento indissociável para planejar, bem como é inexorável a carência de jurisprudência sobre o núcleo duro do que seria o limite do legítimo planejamento tributário para o contribuinte. O ilustre professor Schoueri é límpido ao externalizar na Revista Dialética de Direito Tributário RDDT que: Muitas vezes, o empresário se vê obrigado a aderir ao programa de parcelamento não porque não creia em seu direito, mas porque sabe que, se vir frustrada sua expectativa, terá diante de si exigência que não poderá pagar, levando-o à insolvência, que muitas vezes atingirá seu patrimônio pessoal. Daí que, por uma questão de sobrevivência, melhor pagar parcelas que, posto julgue ele indevidas, permitem a continuação do seu negócio.
A atualidade do tema demonstra a sua importância, visto que, no mundo moderno, as relações são mais dinâmicas e muitas vezes não se pode esperar o tempo que é necessário ao processo legislativo e/ou à solidificação da jurisprudência dos Tribunais Superiores, para se decidir sobre assuntos rotineiros, como é o caso do planejamento tributário para sobrevivência econômico-financeira de toda e qualquer empresa. Ocorre que, como nos últimos 10 anos, existe um Refis a cada três anos na esfera federal, bem como similares programas pelos estados e municípios, desse modo a tributação tornou-se uma tributação dos bobos: quem paga na hora acaba sendo visto pelo mercado como um bobo, já que poderia em pouco tempo aguardar o próximo programa e pagar muito menos, tratando indevidamente essa postura como uma espécie de planejamento tributário às avessas. Com base nessa premissa, esses benefícios fiscais contaminam por sua vez qualquer tentativa de planejamento tributário arrojado, à medida que desmotiva o próprio contribuinte a se submeter o seu estudo ao crivo do judiciário e/o dos Conselhos de Contribuintes, que, por via reflexa, dificilmente são chamados a se manifestar sobre esse mister. Nessa toada, retira-se do Judiciário a prerrogativa de dar a última palavra acerca do planejamento, servindo 48
como uma espécie de combustível excelente nas mãos do Fisco para perpetuidade de programas de parcelamento e consequente manutenção da cegueira deliberada dos contribuintes, que aderem ao programa como salvaguarda da sua sociedade empresária. De mais a mais, em decorrência do esforço doutrinário, passou-se a adotar, de forma nebulosa, a figura do propósito negocial, ou da teoria da substância sobre a forma, já que os Conselhos de Contribuintes começaram a adotar tais figuras preliminarmente em uma série de decisões administrativas, porém com base em uma premissa delicada e ilegítima, já que desprovida de fundamento legal no ordenamento constitucional vigente. Assim, o contribuinte hoje, diferente dos 10 anos anteriores, quando se bastava respeitar ditames legais, o planejamento já seria considerado válido pelo Fisco; diversamente, na atualidade o contribuinte é obrigado a respeitar a figura do propósito negocial e seu respectivo teste, sem sequer haver previsão válida e concreta do tema no ordenamento jurídico, nem sequer o tema é chancelado pelos Tribunais Superiores, no que tange a sua constitucionalidade e/ou legalidade, em flagrante prejuízo ao direito fundamental do contribuinte. Outrossim, o Conselho dos Contribuintes nessa levada, em tese mais técnico no que tange a matéria tributária, já não se preocupa mais com a necessidade
“Nessa toada, retira-se do Judiciário a prerrogativa de dar a última palavra acerca do planejamento, servindo como uma espécie de combustível excelente nas mãos do Fisco para perpetuidade de programas de parcelamento, e consequente manutenção da cegueira deliberada dos contribuintes, que aderem ao programa como salvaguarda da sua sociedade empresária.”
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de invocar dispositivo legal, porquanto precisa dar uma deslinde às questões levantadas pelo contribuinte em defesa aos inúmeros Auto de Infrações lavrados que lá chegam para sua apreciação. Ora, é flagrante o cenário nebuloso que hoje vive o contribuinte, no que se refere à opção pelo que seria o legítimo planejamento tributário eficiente, eficaz e seguro. Nesse cipoal democrático, alimentado pelo malfadado manicômio tributário vigente, resta ao contribuinte se proteger desta zona de incerteza, aderindo ao Refis e/ ou seus consectários de forma desenfreada por ausência cabal de outra opção segura, a fim de não comprometer sua atividade econômica organizada. Urge salientar que é clarividente o ambiente de ausência de positivação do conceito de propósito negocial, bem como de ausência de qualquer postura judicial sobre o tema colacionado, deixando ao contribuinte alternativas inseguras e facilmente combatidas pelas autoridades fazendárias. Em face do expendido, é insofismável que a adesão ao parcelamento e/ou pagamento integral incentivado é o único caminho viável ao contribuinte para sua sobrevivência em tempos de crise. Entretanto, essa miopia deve ser combatida pela comunidade jurídica de forma enérgica, porquanto a adesão ao parcelamento deveria ser uma opção ao contribuinte, até porque nada mais é que uma espécie de confissão de dívida. Isto é,
quanto mais insegurança jurídica no que se refere ao planejamento tributário, mais barato será o preço pelo qual o contribuinte venderá sua “opção” ao devido processo legal. Logo, sem sombra de dúvida, esse mister deve ser objeto de atenção e debate pelos causídicos, sob pena de, por via reflexa, gerar uma redução drástica do contencioso administrativo e judicial tributário nos próximos anos.
Referências Bibliográficas ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. São Paulo: Malheiros, 2008. GRECO, Marco Aurelio. Planejamento tributário. São Paulo. Dialética, 2004. RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, interpretação e elisão tributária. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2003. SANTI, Eurico Marcos Diniz. Curso de especialização em direito tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2005. SCHOUERI, Luiz Eduardo. Direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2012. ____. O Refis e a desjudicialização do planejamento tributário. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 232. São Paulo: Dialética, 2015. p. 103-115. TORRES, Heleno Taveira. Direito tributário e a constituição: homenagem ao professor Sacha Calmon Navarro Coêlho. São Paulo: Quartier Latin, 2013.
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O Federalismo, os tratados internacionais e a influência da União nos tributos estaduais e municipais Carlos Ogawa Colontonio
A
Professor da Universidade Braz Cubas
1. O Federalismo brasileiro e os tratados internacionais Constituição brasileira adotou o modelo federativo de estado. A organização política ocorre dentro da ideia de descentralização do poder. União, estados, municípios e o Distrito Federal são entes federativos, cada um com autonomia administrativa, financeira e, principalmente, política.1 Em um país de dimensões continentais, como é o Brasil, a existência de diversas esferas políticas otimiza e facilita (pelo menos em tese) a atividade de governar e executar as políticas públicas. Há, para atingir os objetivos expostos, clara repartição e distribuição de competências entre as pessoas jurídicas de direito público interno, com o intuito de assegurar que todas as atividades necessárias para a gestão do interesse público sejam realizadas por aquele que teoricamente é o ente mais apto e, ao mesmo tempo, evitando que diversas esferas de governo repitam desnecessariamente os mesmos atos, evitando conflitos e o desperdício de tempo e de recursos. A repartição e distribuição de competência existe porque no modelo federal não há uma relação de hierarquia entre os entes políticos autônomos, mas sim uma “divisão do trabalho”. A União, em regra, detém atribuição sobre questões de interesse nacional e suprarregional, enquanto aos estados cabem os interesses regionais e, aos municípios, 50
“Uma convenção internacional, dessa maneira, só poderia afetar os tributos não federais quando os entes titulares de tais tributos também fossem signatários do pacto. Como tal participação é impossível, devido à falta de personalidade jurídica internacional dos entes regionais, distritais e locais, entende esta primeira linha de pensamento não ser possível que um tratado internacional exclua pela isenção os créditos tributários estaduais e municipais.”
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os interesses locais. Não é de se impressionar, portanto, que nossa Constituição tenha atribuído à União a missão de representar juridicamente o Brasil em suas relações internacionais. Para o meio internacional, pouco importa a divisão interna de um Estado Nacional. As relações entre os entes soberanos se dão por meio das autoridades que cada Constituição nacional escolheu para representar seu país. No nosso caso, representam2 o Brasil como sujeito de direito público internacional autoridades que pertencem ao Governo Federal, especialmente o Presidente da República, nosso Chefe de Estado, e o Congresso Nacional, a casa dos representantes do povo e das unidades federativas. Conforme o art. 49, I, e o art. 84, VIII, da Constituição Federal de 1988, é o Presidente da República que, inicialmente, celebra os tratos, geralmente participando diretamente (ou indiretamente, por meio de delegados) da fase das negociações preliminares, autenticação e assinatura do pacto internacional, cabendo ao Congresso Nacional a aprovação (referendo) do texto já aceito pelo Chefe de Estado como requisito para que a convenção passe pelo processo de formação e possa produzir efeitos dentro do nosso sistema jurídico pátrio.3 Assim, os tratados internacionais somente serão assinados, aprovados e ratificados pelas autoridades
constitucionalmente competentes, que em última instância são autoridades federais. Outrossim, a própria Constituição brasileira elenca, no artigo 21, em seu inciso I, que é matéria de competência exclusiva da União manter relações com estados estrangeiros e participar de organizações internacionais Estados e municípios,4 por sua vez, não são sujeitos de direito público internacional, pelo menos na ótica da nossa Constituição. Em alguns países, como na Alemanha e na Suíça, as unidades federativas podem celebrar tratados internacionais. Essa não é nossa realidade atual, apesar de que, no passado, na constância da Constituição de 1891, era possível aos Estados entabularem pactos internacionais, conforme nos informa Paulo Henrique Portela (2011, p. 102) É possível que um estado ou município brasileiro até mesmo pratique negócios jurídicos ou atos de gestão privados com entidades estrangeiras, como, por exemplo, com um banco internacional ou com uma nação estrangeira. Nunca poderão, contudo, participar de um tratado internacional como parte. O “monopólio” das autoridades federais para a adesão brasileira aos tratados internacionais traz consigo alguns problemas quando confrontamos tal exclusividade com a ideia da autonomia dos entes federativos não federais. Quais as consequências de o Presidente assinar
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e o Congresso aprovar uma convenção internacional que verse sobre matéria de atribuição dos estados ou dos municípios? Haveria intrusão da União em competência que não é constitucionalmente sua? Esta intrusão tornaria o tratado inválido do ponto de vista do direito interno ou pelo menos tornaria sem efeitos os acordos internacionais? Na seara tributária, parte dessas questões já é assunto antigo para a doutrina e para os Tribunais. 2. A isenção de tributos estaduais e municipais por tratados internacionais O problema: a União, por meio de suas autoridades, incorpora em nosso sistema jurídico um tratado internacional comercial que, entre suas cláusulas, prevê isenções tributárias para a circulação de mercadoria ou prestação de serviços entre os signatários. Ocorre que no sistema tributário pátrio, parte dos tributos relacionados à mercancia são de competência dos estados (ICMS) e dos municípios (ISS). Poderia o Governo Federal, por ato conjunto do seu Poder Executivo com seu Poder Legislativo, decidir pela dispensa de impostos que não são de sua alçada? Deparamo-nos com o que parece ser um grave problema. A Constituição Federal regula, no seu artigo 151, inciso III, que é vedado à União instituir isenções de tributos da competência dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios. Tal artigo constitucional invoca a regra da proibição da isenção heterônoma ou heterotópica. Defende-se que a União não pode isentar o contribuinte de tributo que a Constituição não lhe concedeu competência, ou seja, copiando a sabedoria popular, poderíamos dizer que “não se pode fazer bonito com chapéu alheio”. Trata-se de uma questão de competência tributária. O poder de criar, modificar, extinguir ou isentar os impostos de ICMS e de ISS é exclusivo, respectivamente, dos estados e dos municípios. Permitir que a União por ato de celebração de tratado internacional, legislativo ou não, regule sobre a exclusão dos créditos tributários de terceiro é violação direta do artigo 151, III, da Constituição Federal de 1988, tornando o ato federal inconstitucional. Uma convenção internacional, dessa maneira, só poderia afetar os tributos não federais quando os entes titulares de tais tributos também fossem signatários do pacto. Como tal participação é impossível, devido à falta de personalidade jurídica internacional dos entes regionais, distritais e locais, entende esta primeira linha de pensamento não ser possível que um tratado internacional exclua pela isenção os créditos tributários estaduais e municipais. Essa posição é defendida, por exemplo, no bojo do julgamento do Recurso Especial 90.871/PE, de relatoria do Ministro José Delgado.5 52
Há, todavia, forte e competente oposição a esse espectro ideal exposto. Alguns doutrinadores, especialmente os professores de Direito Internacional, defendem que não devemos focar sob a ótica da divisão política provocada pelo modelo federativo, pois quando nossa Constituição tratou dos aspectos jurídicos internacionais, adotou solução diferente do que para as questões internas. A ideia de repartição de competências (inclusive competência tributária) é uma fórmula que deve ser levada em conta apenas nas circunstâncias interiores. Diante dos “olhos” do sistema jurídico internacional não há qualquer divisão do poder, mas sim uma concentração de todo poder político em apenas um ser dotado de soberania. Descrevendo com outras palavras, o que há é o Brasil. Os Estados soberanos, como China, Estados Unidos da América, França, Argentina, entre outros, não assinam tratados com o Governo Federal, mas sim com o Governo brasileiro. O Presidente da República e o Congresso não atuam em nome da União ou de apenas um ente federativo. Atuam em nome da unidade conhecida como Brasil. As autoridades que participam do processo de assinatura, aprovação, ratificação e incorporação de um tratado não perseguem o interesse federal, mas buscam o interesse geral e nacional. Um tratado poderia resolver sobre a isenção do ICMS ou do ISS, pois quando observamos por uma ótica mais ampla, a partir de uma perspectiva internacional, evidencia-se que o pacto entre países alcança a pessoa jurídica chamada Brasil, sendo certo que os estados e municípios são apenas partes deste corpo e, por isso, devemos entender que o que obriga o todo (a pessoa jurídica de direito internacional) também obriga as partes (as pessoas jurídicas de direito interno). Quando Presidente e Congresso agem como autoridades brasileiras, incorporando tratados internacionais, vinculam todos os entes que também são brasileiros, independentemente do seu grau federativo. Essa linha, majoritária, é defendida, por exemplo, por Valério Mazzuoli (2014, p. 429), que acrescenta: Quando o Presidente da República celebra um tratado internacional (à luz do art. 84, inc. VIII, da Constituição) o faz não como chefe de Governo (figura de Direito Interno) mas como chefe de Estado (figura de Direito Internacional), com competência para disciplinar quaisquer dos seus interesses, sejam eles do conjunto federativo (interesse da União) ou de cada um dos componentes da Federação (interesse dos estados e dos municípios).
O pensamento vai ao encontro das necessidades da sociedade internacional. Afinal, quando um país membro da União Europeia, do Mercosul ou qualquer outro parceiro comercial pactua com o Presidente ou com o plenipotenciário brasileiro um tratado de redução
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tributária, objetivando quebrar barreiras aduaneiras, ele espera que todos em nosso território respeitem o acordo, independentemente das idiossincrasias internas decorrentes da descentralização política fruto do nosso modelo de organização de Estado. Não por outro motivo, esta corrente goza da adesão majoritária de nossa doutrina e da nossa jurisprudência dos tribunais superiores, especialmente do Supremo Tribunal Federal (STF), conforme podemos observar na ementa do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 543943/PR, de relatoria do Ministro Celso de Mello, julgado em 30/11/2010: RECURSO EXTRAORDINÁRIO – GASODUTO BRASIL-BOLÍVIA – ISENÇÃO DE TRIBUTO MUNICIPAL (ISS) CONCEDIDA PELA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL MEDIANTE ACORDO BILATERAL CELEBRADO COM A REPÚBLICA DA BOLÍVIA – A QUESTÃO DA ISENÇÃO DE TRIBUTOS ESTADUAIS E/OU MUNICIPAIS OUTORGADA PELO ESTADO FEDERAL BRASILEIRO EM SEDE DE CONVENÇÃO OU TRATADO INTERNACIONAL – POSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL – DISTINÇÃO NECESSÁRIA QUE SE IMPÕE, PARA ESSE EFEITO, ENTRE O ESTADO FEDERAL BRASILEIRO (EXPRESSÃO INSTITUCIONAL DA COMUNIDADE JURÍDICA TOTAL), QUE DETÉM “O MONOPÓLIO DA PERSONALIDADE INTERNACIONAL”, E A UNIÃO, PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO INTERNO (QUE SE QUALIFICA, NESSA CONDIÇÃO, COMO SIMPLES COMUNIDADE PARCIAL DE CARÁTER CENTRAL) – NÃO INCIDÊNCIA, EM TAL HIPÓTESE, DA VEDAÇÃO ESTABELECIDA NO ART. 151, III, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, CUJA APLICABILIDADE RESTRINGESE, TÃO SOMENTE, À UNIÃO, NA CONDIÇÃO DE PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO INTERNO – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.
3. A autonomia financeira e as receitas tributárias dos estados e municípios Apresentadas as duas posições, podemos avançar sobre mais uma questão. Apesar da rigidez dos argumentos apresentados pela segunda corrente, arriscamos apontar que, apesar de satisfazer as balizas do ramo internacional do direito, restam algumas arestas na adoção da possibilidade de isenção de tributos não federais por ato individual do governo geral. O ponto central recai sobre a característica federativa da autonomia financeira. Se a Constituição normatiza que estados e municípios são autônomos nas esferas política e administrativa, a autonomia financeira é obrigatória. Não há autonomia sem existir dinheiro suficiente para tornar o ente autossuficiente em relação aos outros corpos políticos que formam a federação. Em outras palavras, um município, por exemplo, não será autônomo se tiver
de “implorar” por recursos federais e estaduais para implementar suas políticas públicas. Permitir que as autoridades de cúpula do Governo Federal possam dispor sobre os créditos tributários dos outros entes é permitir, conforme o enfoque dado, que as autoridades federais possam dispor sobre as principais fontes de receita dos estados e municípios. Até que ponto tal capacidade não permitiria à União interferir, direta ou indiretamente nos cofres públicos e nas atividades dos entes regionais e locais, provocando verdadeira intervenção federal inconstitucional, por se afastar totalmente da ideia de extraordinariedade abrigada no artigo 34 da Constituição? Questionamos: seria arriscado permitir que o Presidente e o Congresso possam dispor de recursos de entes que não governam? Haveria alguma inconstitucionalidade caso grande parte dos créditos tributários decorrentes da circulação de mercadoria de todos os estados sejam excluídos por ato das autoridades de cúpula do Governo Federal, minguando ou mesmo abolindo a principal fonte de renda das unidades federativas? Na praxe hodierna encontramos dois caminhos: ou não é possível a isenção porque é vedada a isenção heterônoma (posição minoritária), ou é possível a isenção porque estamos diante de um quadro em que autoridades brasileiras (e não federais) isentam impostos brasileiros (posição majoritária). Mas se é possível a isenção, não estaríamos permitindo a intromissão indevida da União nas finanças, no orçamento e na competência material dos estados, municípios e Distrito Federal? O Governo federal possui “carta em branco” para resolver sobre receitas de terceiros? Arriscamos uma proposta. Acreditamos que uma possível solução seja a conciliação. Seria interessante permitir que os principais interessados – municípios e estados – despidos da possibilidade de participarem do tratado que determine a isenção dos seus impostos, possam, pelo menos, participar efetivamente, na esfera do Direito Interno, das decisões políticas que levem à assinatura e aprovação de um pacto internacional que incida diretamente sobre as matérias que sejam constitucionalmente de sua competência. Idealmente, os atos decisórios acerca dos tratados que tratam dos tributos não federais poderiam ser complexos, contando com a participação, ao menos em audiências públicas ou em reuniões colegiadas, dos representantes dos estados e dos municípios. Em relação aos estados, é bem verdade que já temos um órgão representativo das unidades federativas participando do processo de formação e incorporação dos pactos internacionais, qual seja o Senado Federal, que integra a fase da aprovação legislativa dos tratados.
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“A autonomia financeira dos entes regionais e locais é princípio basilar da nossa organização, que deve ser conservada prioritariamente a fim de evitar uma ‘Federação de fachada’.”
Todavia, seria importante também permitir a participação opinativa, no contexto da aprovação dos tratados, dos membros estaduais do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), especialmente diante da aceitação de convenções internacionais que disponham sobre os impostos estaduais sobre circulação de mercadorias, uma vez que a Lei Complementar no 24/1975 dita que as isenções sobre o ICMS, internamente, somente serão possíveis a partir dos convênios interestaduais elaborados no âmbito do Confaz. Ora, se a legislação afirma que a isenção de ICMS deve ocorrer pela junção das vontades dos representantes dos estados do conselho em destaque, nada demais admitir que estes mesmos membros possam também ser ouvidos diante da possibilidade de isenção do ICMS por fonte normativa internacional. Aos municípios deve ser franqueada igual oportunidade. Apesar do grande número de entes federativos dessa esfera (mais de 5.000), seria pertinente que representantes municipais, organizados em órgão ou conselho a ser criado especialmente para este fim, fossem consultados previamente à assinatura, aprovação ou incorporação de tratados internacionais que trouxessem como encargo a dispensa de receita municipal a partir da exclusão de créditos tributários próprios dos entes federativos em destaque. O que se procura é a cooperação federativa. A simetria de poderes deve conviver com a autonomia dos sujeitos de direitos da Federação. É imprescindível possibilitar que cada pessoa jurídica pública verdadeiramente atue nas decisões políticas que influenciam suas finanças, receitas e recursos, sob pena da descentralização política, ínsita ao federalismo, não passar de teoria espúria. 4. Considerações finais Como conclusão deste breve artigo, agasalhamos o fortalecimento de um federalismo cooperativo, simétrico 54
e, especialmente, dialógico. A autonomia financeira dos entes regionais e locais é princípio basilar da nossa organização, que deve ser conservada prioritariamente a fim de evitar uma “Federação de fachada”. Logo, é necessário encontrar fórmula de convergência (e não de divergência) para os interesses das diversas esferas de governo. Para que haja cooperação eficaz no seio do nosso federalismo, fomentando a simetria tão desejável em um modelo descentralizado, União, estados, Distrito Federal e municípios precisam “dialogar” efusivamente em todas as situações envolvendo atos federais, no meio internacional, que acarretarão ônus, compromissos e responsabilidades para os demais sujeitos de direito público. A tutela do interesse público é a tutela do interesse de todos.
Referências bibliográficas ALMEIDA, Edvaldo Nilo de. Direito tributário. Tomo I. Salvador: Juspodivm, 2011. BRANCO, Paulo; MENDES, Gilmar. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 8. ed. São Paulo: RT, 2014. PORTELA, Paulo Henrique G. Direito internacional público e privado. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2011. REZEK, José Francisco. Direito internacional público. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
Notas Há a autonomia política especialmente pelo fato de que cada um destes entes possui um Poder Legislativo próprio, produzindo leis que organizam e direcionam individualmente aquele sujeito federativo que compõe o todo, ou seja, o Brasil. 2 Ou “apresentam” o Brasil, conforme afirmam os adeptos da “teoria do órgão”, especialmente presente nas questões envolvendo o Direito Administrativo. 3 Aqui tomamos duas decisões para escrever o presente trabalho. Em primeiro lugar, apesar de diversas concepções possíveis, resolvemos tratar os termos “tratado internacional”, “convenção internacional” e “pacto internacional” como sinônimos, mesmo divergindo de alguns respeitados doutrinadores. Em segundo lugar, acabamos por tomar partido a favor de alguma concepção dualista da relação entre direito internacional e direito interno. Mesmo sabendo que é plenamente defensável a ideia monista de um ordenamento único de normas de fonte nacional ou internacional, para este trabalho vamos considerar que os tratados devem passar por um “procedimento de incorporação” para serem aptos a criarem direitos e deveres para os sujeitos de direto interno. 4 Além da União, há, no federalismo brasileiro, três entes federativos: estados, Distrito Federal e município. Mesmo sabendo desta realidade, em prol da fluidez do texto, trataremos apenas dos estados e dos municípios, mas sempre lembrando que todas as consequências que atingem estes entes também se aplicam ao Distrito Federal, já que este, por determinação constitucional (art. 32 e parágrafos), é titular das competências legislativas e tributárias atribuídas aos estados e aos municípios. 5 STJ, Resp 90.871/PE, rel. Min. José Delgado, julg. 17.6.1997, DJ 20.10.1997. 1
Justiça & Cidadania | Janeiro 2016
A aplicação subsidiária e supletiva das novas regras do CPC no processo do trabalho Mauricio de Figueiredo Corrêa da Veiga
Advogado
Foto: Arquivo pessoal
O
1. Introdução novo Código de Processo Civil (CPC) tem como objetivo simplificar o sistema processual com a adoção de mecanismos que atinjam o objetivo final da demanda com a resolução meritória do conflito, afastando, dessa forma, questões relacionadas ao que a doutrina denominou de “jurisprudência defensiva”, ou seja, aquela pode ser caracterizada como decisões tomadas pelo Tribunal no sentido de se obstar conhecimento de recurso “defeituoso”, sob o pretexto de se prestigiar a celeridade processual.
Com efeito, o método de resolução de conflitos, no caso, o processo, deve ser encarado como um facilitador e não pode se transformar em centro de atenção do juiz. A Justiça do Trabalho, desde os seus primórdios, foi pioneira nesse sentido e inspirou outros ramos do Direito, como, por exemplo, o Código do Consumidor e as alterações introduzidas no ainda vigente Código de Processo Civil. Mais recente é a Lei no 13.015/2014, em vigor desde 22 de setembro de 2014, que, entre outras previsões, acabou com o excesso de formalismo que caracterizou a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho na última década, na medida em que permite que o órgão julgador, no exame do recurso de revista, supere o defeito formal não reputado grave, para adentrar no mérito da impugnação. A única exigência feita é a de que o recurso seja tempestivo. Além disso, no intuito de assegurar a obtenção da tutela jurisdicional em um prazo de razoável duração (à luz do disposto no art. 5o, LXXVIII, da Constituição Federal), são adotados procedimentos para julgamentos em bloco, com a finalidade de obter maior segurança jurídica e efetividade da prestação jurisdicional. Outro ponto que merece destaque é a importância atribuída à autoridade dos Tribunais Superiores, tendo em vista que, no modelo até agora vigente, o princípio da igualdade de tratamento das partes não é respeitado, pois o mesmo dispositivo de lei é interpretado de maneira distinta pelos diversos tribunais do País. O presente estudo visa elucidar a disposição contida no artigo 15 do NCPC, que afirma que serão aplicadas as normas do novo código, de forma supletiva e subsidiária, na hipótese de inexistir norma que regule o processo trabalhista.
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2. Aplicação subsidiária e supletiva do novo CPC Dispõe o artigo 15 do NCPC, verbis: “Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”. Nota-se, de imediato, que a nova disposição consolidada no NCPC permite verdadeira oxigenação de ideias, conceitos e princípios entre os mais diversos ramos do direito processual que passam a interagir de forma permanente e complementar. Contudo, a primeira parte do dispositivo em comento é clara em estabelecer situação intransponível: as aplicações do novo Código serão implementadas somente quando não houver normas que regulem os processos trabalhistas. A novidade inserida é a aplicação supletiva das novas disposições, considerando que a aplicação subsidiária já era autorizada e prevista conforme disposição contida no artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sendo esta entendida como a possibilidade de utilização de regras e conceitos quando houver omissões e lacunas da lei processual trabalhista. Já a aplicação supletiva dá-se de forma complementar, ou seja, é mais autônoma do que a aplicação subsidiária e visa aprimorar e suprir as falhas existentes no processo do trabalho. Para melhor compreensão do significado da aplicação supletiva, é necessária uma incursão pelo próprio NCPC que também aborda o assunto em outros dispositivos consolidados, como, por exemplo os artigos 1.046, § 2o, e 196. O artigo 196, por exemplo, estabelece uma competência supletiva entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e os tribunais para regulamentarem a prática e a comunicação oficial de atos processuais por meio eletrônico. Logo, a regulamentação é complementar. Diante da análise conjunta de todos os dispositivos do novo CPC percebe-se que o legislador pretendeu conferir ao novo CPC um conjunto de normas básicas de introdução ao sistema processual brasileiro, com a finalidade de criar uma fonte permanente de atualização dos múltiplos segmentos processuais, mantendo as especificidades de cada ramo, porém estabelecendo como alicerces os princípios constitucionais. A aplicação supletiva prevista no artigo 15 do novo CPC é interpretada por Jorge Pinheiro Castelo como a “aplicação complementar das regras do NCPC que possam servir para incorporação progressiva das mais avançadas técnicas e meios processuais à satisfação da tutela jurisdicional, respeitados sempre os princípios constitucionais do processo, bem como a identidade, a organicidade, a coerência e a funcionalidade do sistema específico (compatibilidade) – no caso o processo do trabalho”.1 56
3. Aplicação supletiva do novo CPC e compatibilidade com a CLT A partir do momento em que o legislador afirmou a aplicação subsidiária e supletiva do processo civil no processo do trabalho, a conclusão a que se chega é a de que a intenção é fazer que as inovações do processo civil sejam aplicadas no processo do trabalho, desde que haja compatibilidade com as regras e os princípios trabalhistas. Além do artigo 769 da CLT, mencionado no capítulo anterior, o artigo 889 consolidado também contempla hipótese de aplicação subsidiária quando trata de procedimento em execução no qual se aplicam, de forma subsidiária, os preceitos constantes na lei de executivos fiscais. Mesmo antes da nova previsão legal, a prática demonstra que determinados preceitos do processo civil já vinham sendo aplicados no processo do trabalho, mesmo quando a CLT já contemplava norma expressa. À guisa de exemplo pode ser mencionada a previsão que diz respeito à distribuição do ônus da prova. O diploma trabalhista consolidado tem previsão expressa conforme se infere da redação do artigo 818 da CLT. Contudo, sempre se admitiu a invocação (e também conhecimento de recurso), do disposto no artigo 333, I, do CPC (que está em vigor). Trata-se, portanto, de hipótese clara de aplicação supletiva da regra processual comum, não havendo que se falar, nessa hipótese, de aplicação subsidiária, tendo em vista que a CLT tem regra própria a respeito. Portanto, a aplicação subsidiária de normas e princípios no processo do trabalho não é novidade, sendo que a previsão constante no artigo 15 do novo CPC vem em complemento aos dois artigos da CLT, que continuam a ter plena vigência, pois a aplicação subsidiária é reiterada no novo código. Logo, não há que se falar em revogação dos artigos 769 e 889 da CLT, tendo em vista a ampliação da aplicação das regras de processo civil que foi imposta pelo artigo 15 do novo CPC. Dessa forma, a finalidade é a de trazer para o processo do trabalho, suprindo as falhas existentes e de forma complementar, as normas de processo civil que sejam compatíveis com o ordenamento trabalhista. Contudo, deverá ser procedida uma análise crítica de preceitos que não podem ser aplicados no processo do trabalho em razão de manifesta incompatibilidade. Nesse sentido, pode ser mencionado o juízo de admissibilidade feito na apelação e no recurso especial (o que corresponderia ao nosso recurso ordinário e ao recurso de revista), respectivamente. De acordo com a disposição contida no artigo 1.010, § 3o, do novo CPC, em que pese a interposição do recurso ser feita perante o juízo a quo, a admissibilidade dos pressupostos intrínsecos
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de sua admissibilidade é feita, em primeira análise, no próprio tribunal ad quem. Com efeito, tal procedimento acarretaria a extinção do agravo de instrumento na Justiça do Trabalho, cujo regramento está disciplinado no artigo 897 da CLT. Portanto, esta hipótese, demonstra um exemplo de não aplicação do novo CPC em razão de manifesta incompatibilidade. Tal hipótese demonstra que apesar da permissão legal da aplicação supletiva das normas de processo civil no processo do trabalho, esta não poderá ser feita de forma casuística pelo julgador, devendo ser observados as normas e princípios inerentes ao processo do trabalho. Outro exemplo refere-se à observância da ordem cronológica dos julgamentos prevista no artigo 12 do NCPC. O processo trabalhista tem uma peculiaridade: na grande maioria das vezes, as ações trabalhistas possuem múltiplos temas que são objeto também de recurso ordinário e de recurso de revista. Portanto, é uma característica sui generis, razão pela qual pode ser que um processo com tema único possa chegar ao Tribunal, cabendo ao julgador definir se é mais producente decidir o referido processo antes de outro que tenha chegado antes. Caso contrário haverá uma proliferação de despachos monocráticos, tendo em vista se tratar de uma exceção contemplada no inciso IV do art. 12. Outrossim, a tal disposição interfere na autonomia do magistrado em relação aos critérios de organização e método de trabalho. 4. Hipóteses do novo CPC que são compatíveis com o processo do trabalho Inicialmente, deve ser destacado que mesmo antes da entrada em vigor do novo CPC já existe uma corrente que defende a impossibilidade absoluta de aplicação de qualquer diretriz do novo CPC no processo do trabalho, sob o argumento de que as novas diretrizes representariam “retrocesso” na própria concepção do Estado Democrático de Direito. Com a devida vênia, trata-se de posicionamento isolado, radical e carregado de conteúdo ideológico e que prega, de forma agressiva e inconsequente, uma desobediência ao que foi estabelecido pela própria Lei no 13.105/2015. Sem prejuízo de outros exemplos que podem surgir após a entrada em vigor do novo CPC, existem procedimentos previstos nele que, em razão de sua compatibilidade com as normas de processo do trabalho, podem ser aplicados e utilizados no procedimento trabalhista e a seguir serão exemplificados. No presente artigo serão apresentados alguns exemplos, tendo em vista a grande quantidade de hipóteses que poderão ter aplicação no processo do trabalho.
4.1. Garantia ao Princípio do Contraditório (arts. 9o e 10 do novo CPC) Os preceitos constantes nos artigos 9o e 10 do novo CPC asseguram os princípios insculpidos nos arts. 5o, LIV e LV, da Constituição Federal e evitam surpreender a parte com decisões proferidas sem o prévio conhecimento ou possibilidade de defesa. Apesar das exceções constantes nos incisos do próprio artigo, a regra é a de que não serão proferidas decisões inaudita altera pars. 4.2. Desconsideração da personalidade jurídica (arts. 133/137 do novo CPC) O novo CPC estabelece que o incidente de desconsideração de personalidade jurídica, ou de sua modalidade inversa, pode ser requerido ainda na fase de conhecimento, mediante procedimento no qual é assegurado o contraditório e produção de provas antes da decisão a ser proferida pelo magistrado. São os seguintes artigos inseridos no Capítulo IV que regulam a matéria: arts. 133, 134, 135, 136 e 137. De acordo com a previsão legal, a rejeição do pedido de desconsideração da personalidade jurídica durante a fase de conhecimento não implica em coisa julgada, na medida em que pode ser renovado na fase de execução na hipótese de surgirem fatos ou elementos novos. Não será instaurado o incidente de desconstituição da personalidade jurídica quando este for requerido na petição inicial, hipótese na qual será citado o sócio ou a empresa. Por se tratar de procedimento que zela pelos princípios do contraditório e da ampla defesa a sua aplicação guarda compatibilidade com o processo do trabalho, na medida em que, atualmente, a desconsideração da personalidade jurídica que é feita na fase de execução não assegura ao executado (terceiro) todas as possibilidades de defesa, até mesmo porque os tribunais têm entendido que, nessas hipóteses, o recurso cabível é o ajuizamento de embargos à execução e não os embargos de terceiro, o que representa verdadeiro cerceamento do direito de defesa da parte, mas que, felizmente, vem sendo afastado pela jurisprudência da SBDI-I e também das Turmas do TST. Verbis: RECURSO DE EMBARGOS. EMBARGOS DE TERCEIRO. SÓCIO. LEGITIMIDADE DE PARTE. RECURSO DE REVISTA CONHECIDO E PROVIDO. VIOLAÇÃO DO ART. 896 DA CLT NÃO RECONHECIDA. A c. Turma reconheceu a violação literal ao art. 5o, LIV, da Constituição Federal, afastando o entendimento do eg. Tribunal Regional que não reconheceu como parte legítima para interpor embargos de terceiros o embargante, sócio da empresa executada, diante da aplicação da desconsideração da pessoa jurídica. A ofensa à literalidade da norma
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constitucional decorreu da inobservância do princípio de que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Recurso de embargos não conhecido. (SBDI-I – E-RR – 982/2002-013-02-40 – DJ – 8/2/2008 – Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga) A) AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. EXECUÇÃO. SÓCIOS DA EXECUTADA. LEGITIMIDADE PARA PROPOR EMBARGOS DE TERCEIRO. Dá-se provimento ao agravo de instrumento, em face da aparente ofensa ao art. 5o, LIV, da Constituição Federal. B) RECURSO DE REVISTA. (...) 3. SÓCIO DA EXECUTADA. LEGITIMIDADE PARA PROPOR EMBARGOS DE TERCEIRO. Em observância ao preceito inserto no art. 5o, LIV, da Constituição, segundo o qual ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, deve-se reconhecer a legitimidade ativa dos sócios da empresa executada para opor embargos de terceiro. Recurso de revista conhecido e provido. (TST – 8a Turma – Rel. Min. Dora Maria da Costa – RR776-35.2010.5.10.0005, recorrente CARLOS IVANIR REIS PEREIRA e recorridos UNIWAY – COOPERATIVA DE PROFISSIONAIS LIBERAIS LTDA. e ANTÔNIO SILVA DE JESUS)
4.3. Contagem dos prazos (art. 219 do novo CPC) A partir do início de vigência do novo CPC, para a contagem dos prazos serão computados apenas os dias úteis, nos termos preconizados pelo artigo 219 do novo diploma. O artigo 775 da CLT dispõe acerca da regra da contagem dos prazos, prevendo a exclusão do dies a quo e a inclusão do vencimento. Mesmo que se entenda que a expressão “contínuos” possa significar sequencial e continuada – o que não é o caso, em virtude da aplicação supletiva contida no artigo 15 do NCPC – é possível se adotar a referida previsão no processo do trabalho. Com efeito, não há incompatibilidade da norma que estabelece a contagem de prazos em dias úteis com o processo do trabalho. 4.4. Julgamento antecipado parcial do mérito (arts. 354 e 356 do novo CPC) De acordo com a nova previsão as sentenças poderão também ser interlocutórias quando resolverem apenas uma parte da lide, desde que a questão seja incontroversa ou na hipótese daquele pedido estar em condições de imediato julgamento. Em razão da omissão existente na CLT tal procedimento pode ser perfeitamente incorporado ao 58
processo do trabalho, até mesmo porque não há que falar em incompatibilidade. Muito pelo contrário, trata-se de norma que agiliza a marcha processual. Tendo em vista a irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias no processo do trabalho, caberá à parte registrar por escrito o inconformismo2 e aguardar a resolução de mérito dos demais pedidos. 4.5. Necessidade de fundamentação completa da sentença (art. 489 do novo CPC) Provavelmente estamos diante de um artigo que provocou diversos debates e polêmica, mas, na verdade, trata-se de um dispositivo que irá aprimorar a entrega da prestação jurisdicional, pois dará maior transparência e legitimidade à prestação jurisdicional, conforme se infere no disposto no artigo 489 do novo CPC, que passa a estabelecer os elementos essenciais da sentença. Nota-se que o julgador deverá enfrentar as questões e os argumentos que poderiam levar à conclusão diversa daquela adotada. Contudo, deve ser ressaltado que muitos juízes já adotam esse critério em suas decisões, sendo esta, inclusive, a orientação pregada pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) conforme se destaca do trecho da decisão proferida pelo Ministro Alberto Bresciani nos autos do RR 102300-34.1996.5.01.0032, julgado pela 3a Turma daquela Corte. Verbis: A completa prestação jurisdicional se faz pela resposta a todos os argumentos regulares postos pelos litigantes, não podendo o julgador resumir-se àqueles que conduzem ao seu convencimento. A omissão quanto aos pontos relevados pelas partes pode conduzir a prejuízos consideráveis, não só pela possibilidade de sucesso ou derrota, mas também em face das imposições dos desdobramentos da competência funcional.
Nesse mesmo sentido, a ementa proferida pelo Ministro João Oreste Dalazen em julgamento do recurso de revista, oriunda da E. 4a Turma do TST. Verbis: RECURSO DE REVISTA. PRELIMINAR. NULIDADE. ACÓRDÃO REGIONAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL 1. Constitui dever do órgão jurisdicional, se instado mediante embargos de declaração, posicionar-se explicitamente sobre todos os aspectos relevantes, pertinentes e controvertidos da demanda, bem assim sobre os fundamentos jurídicos invocados pela parte na petição inicial, na contestação ou nas razões recursais. Exigência tanto maior quando se atenta para a circunstância de que o subsequente recurso de revista exige o prequestionamento explícito do tema (Súmula no 297 do TST) e, por outro lado, não se viabiliza para o reexame do conjunto fáticoprobatório (Súmula no 126 do TST).
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Portanto, a norma insculpida no art. 489, § 1o, IV, do novo CPC já tinha a sua aplicabilidade e observância, sendo que, nos casos em que não era observada, o TST determinava a observância de seus requisitos no intuito de assegurar a prestação jurisdicional completa, o que demonstra a sua manifesta compatibilidade com o processo do trabalho. Além disso, restou afastada a declaração de procedência ou improcedência do pedido por mera referência à súmula ou jurisprudência sem que seja feito o cotejo com o caso concreto que está sendo julgado. 4.6. Fraude à Execução (art. 792 do novo CPC) O artigo 792 do novo CPC trata da fraude à execução. Além da disposição contida no diploma legal estar em consonância com a disposição contida na Súmula no 375 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a jurisprudência dominante do TST tem privilegiado o terceiro de boa-fé. Muitas das vezes, o terceiro adquire um imóvel no qual não consta nenhum registro de gravame em cartório. Porém, em havendo reclamação trabalhista em curso, ainda que em fase de conhecimento, muitos são os casos em que é desconstituída (anulada) a alienação, independente se o terceiro estava de boa-fé ou não. Outra questão frequente é a venda, que é realizada porém o registro somente é concretizado quando já existe processo judicial. Ultimamente a jurisprudência do TST tem privilegiado o terceiro de boa-fé, conforme se extrai dos seguintes precedentes. Verbis: RECURSO DE REVISTA. EMBARGOS DE TERCEIRO. EXECUÇÃO. ADQUIRENTE DE BOA-FÉ. PENHORA SOBRE BEM IMÓVEL. ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA. AUSÊNCIA DE AVERBAÇÃO DO TÍTULO TRANSLATIVO NO COMPETENTE CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS. Depreendese da leitura da decisão recorrida que o imóvel, objeto de constrição judicial, foi alienado antes do ajuizamento da reclamação trabalhista. Desse modo, a penhora do referido bem deve ser desconstituída, ainda que a escritura pública de alienação não tenha sido registrada em cartório, em respeito ao direito de propriedade, porque se trata de adquirente de boa-fé. Recurso de revista conhecido e provido. (RR – 137800-96.2009.5.02.0447, Relator Ministro: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho – 1a Turma, Data de Publicação: DEJT 19/12/2011) RECURSO DE REVISTA. EMBARGOS DE TERCEIRO. ADQUIRENTE DE BOA-FÉ. ESCRITURA PÚBLICA DE DOAÇÃO. AUSÊNCIA DE REGISTRO DO TÍTULO TRANSLATIVO NO CARTÓRIO DE REGISTRO DE
IMÓVEIS. O bem objeto de constrição judicial foi doado por escritura pública antes do ajuizamento da reclamação trabalhista, sobre a qual pende os presentes Embargos de Terceiro. Desse modo, evidente que a doação não foi praticada com o fim de frustrar a atividade jurisdicional, ainda que o registro da escritura pública de doação tenha sido levado a cabo após o ajuizamento da reclamação trabalhista. Assim, demonstrada a boa-fé da adquirente, a penhora que recai sobre o referido bem não deve subsistir. Precedentes. Recurso de Revista conhecido e provido. (TST – RR-917-61.2012.5.01.0061, Relator Ministro Márcio Eurico Vitral Amaro – 8a Turma, Data de Publicação: DEJT 14/8/2015) RECURSO DE REVISTA. 1. FRAUDE À EXECUÇÃO. TERCEIRO QUE ADQUIRE BEM DE PESSOA ESTRANHA AO PROCESSO DE EXECUÇÃO. NECESSIDADE DE PROVA DA MÁ-FE. 1.1. Inicialmente frise-se que, como regra geral, este relator comunga do entendimento de que a existência ou não de fraude à execução decorre de interpretação de normas infraconstitucionais – arts. 591, 593 e 750, I, do CPC – e não dispensa reapreciação de matéria fática, não dando margem, assim, ao cabimento do recurso de revista (art. 896, § 2o, da CLT). Contudo, isso não ocorre quando a pretendida declaração de ineficácia do negócio jurídico supostamente fraudulento recai sob transação realizada por pessoas absolutamente estranhas à execução. Nessa hipótese, afigura-se possível a violação direta de normas constitucionais que tutelam a liberdade individual e patrimônio do terceiro de boa-fé. 1.2. Nos termos do art. 593, II, do CPC, a fraude à execução ocorre quando presentes dois requisitos: a litispendência, independentemente da natureza do processo (se de cognição, executivo ou cautelar) e a frustração dos meios executórios. 1.3. Quando o vendedor do bem alienado é o próprio executado, a fraude à execução não é de difícil constatação. Não é por outra razão que, ao adquirente de bens de expressivo valor monetário, cabe perquirir se o alienante encontra-se na posição de réu em demanda capaz de o reduzir à insolvência, sob pena de sofrer as consequências de possível e futura evicção. O adquirente do bem alienado em fraude à execução responderá pela sua incúria. Disto decorre a lição clássica de que, em regra, ao exequente descabe provar a existência do “consilium fraudis” entre alienante e adquirente. 1.4. Entretanto, essa conclusão vem sendo mitigada pela jurisprudência em algumas situações. Isto se dá, principalmente, quando se impõe ao adquirente do bem (terceiro de boa-fé) ônus desarrazoado com intuito de evitar a fraude à execução, ou mesmo quando a conduta daquele é irrelevante para a consumação desta. 1.5. É o que se divisa no caso vertente: ainda que o terceiro-adquirente tenha realizado exaustiva
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pesquisa cartorária em relação ao alienante do bem, que nada tem a ver com o processo em curso, não evitaria a frustração da execução, uma vez que a fraude, fosse o caso, ocorreria em momento pretérito ao do negócio jurídico do qual participou. Repise-se que é praticamente impossível ao adquirente do bem verificar a existência de litispendência em relação a todos os ex-proprietários que compõem a cadeia dominial do bem. 1.6. Efetivamente, o direito do credor trabalhista à satisfação de seu crédito – embora superprivilegiado – não é absoluto e, sendo assim, não pode violar a esfera patrimonial de pessoa absolutamente estranha à execução e que não manteve com o executado qualquer relação comercial. A propriedade privada e a segurança também são valores caros ao ordenamento jurídico brasileiro e, por isso, cabe ao exequente a prova de que o terceiro adquirente do bem alienado por quem não é parte na execução agiu de má-fé, para que fique configurada a fraude à execução. Precedentes. Recurso de revista conhecido e provido. (TST – RR-81700-45.2008.5.05.0004, Relator Alberto Bresciani de Fontan Pereira – 3a Turma, Data de Publicação: DEJT 29/5/2015)
Além disso, o § 4o do artigo 792 estabelece que antes de se declarar a fraude à execução, o juiz deverá intimar o terceiro adquirente para opor embargos de terceiro no prazo de 15 (quinze) dias. Portanto, a previsão que diz respeito à fraude à execução tem aplicação no processo do trabalho por força do disposto no art. 15 do novo CPC, inclusive no que tange ao prazo para a oposição dos Embargos de Terceiro. 4.7. Reclamação (arts. 988 a 993 do novo CPC) A Reclamação era muito utilizada no âmbito do TST, porém, em razão de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o Regimento Interno do TST foi alterado. O artigo 988 afirma que caberá a Reclamação da parte interessada e do Ministério Público para preservar a competência do tribunal, garantir a autoridade das decisões do tribunal, garantir a observância de decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade e garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência. Mais uma vez está sendo demonstrada a força e a relevância do precedente do Tribunal Superior. Além disso, criou-se a Reclamação, inclusive fora dos Tribunais Superiores, para preservar a competência e garantir a autoridade das decisões de qualquer Tribunal, assegurada a possibilidade de sustentação oral, conforme previsão constante no art. 937, VI, do novo CPC. É bem provável que com o passar do tempo e o amadurecimento das questões podemos chegar à 60
conclusão no sentido de que determinados artigos não podem ser aplicados no processo do trabalho por manifesta incompatibilidade, como também é possível se chegar à conclusão de que outros preceitos, que a princípio seriam incompatíveis, tenham aplicação supletiva e subsidiária no processo do trabalho. 5. Conclusão Diante de tudo o que foi exposto no presente trabalho, podem ser extraídas as seguintes conclusões acerca do tema proposto: a) O novo CPC visa simplificar o sistema processual com a adoção de sistemas e mecanismos que atinjam o objetivo final da demanda com a resolução meritória do conflito, em contraponto ao que se denominou de “jurisprudência defensiva”, largamente aplicada pelos tribunais, principalmente na última década. b) O art. 15 do novo CPC é um avanço legislativo e contribui para o aprimoramento do ordenamento jurídico trabalhista que passa a contar com um complemento de princípios, desde que sejam compatíveis com o processo do trabalho. c) Ao se fazer a análise dos dispositivos do novo CPC, percebe-se que o legislador pretendeu conferir ao CPC um conjunto de normas básicas de introdução ao sistema processual brasileiro, com a finalidade de ser uma fonte permanente de atualização dos múltiplos segmentos processuais, mantendo as especificidades de cada ramo, porém estabelecendo como alicerces os princípios constitucionais. d) A aplicação supletiva se dá de forma complementar, ou seja, é mais autônoma do que a aplicação subsidiária e visa aprimorar e suprir as falhas existentes no processo do trabalho. e) Não há que se falar em revogação dos artigos 769 e 889 da CLT, tendo em vista a ampliação da aplicação das regras de processo civil que foi imposta pelo artigo 15 do novo CPC. f) Em resumo, são os seguintes artigos do novo CPC que podem ser aplicados de forma supletiva e subsidiária no processo do trabalho: 9o, 10, 133, 134, 135, 136, 137, 219, 354, 355, 356, 489, 513, 536, 537, 674, 675, 676, 677, 678, 679, 680, 681, 682, 792, 927, 988, 989, 990, 991, 992 e 993.
Notas CASTELO, Jorge Pinheiro. Da aplicação subsidiária e supletiva do Novo CPC ao processo do trabalho (art. 15): exemplos de institutos, estruturas, conceitos, esquemas lógicos, técnicas e procedimentos incidentes sobre o processo do trabalho decorrentes da aplicação subsidiária e supletiva de procedimentos do Novo CPC. Revista LTr, 79-08/981, vol. 79, n. 8, ago. 2015. 2 Trata-se de procedimento a ser adotado por extrema cautela, no intuito de se evitar eventual alegação de preclusão. 1
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Agrupamento Europeu de Interesse Econômico, um exemplo a ser seguido pelo Mercosul Marcus Steele
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om a recente queda do Chavismo e do Kirchnerismo em razão das últimas eleições na Venezuela e na Argentina, o panorama do Mercosul tende a mudar, com uma possível unificação mais efetiva dos seus países membros, voltando a se pensar, quase 25 anos depois de sua fundação, em se conseguir, de fato, uma cooperação econômica eficaz, paralelamente à consolidação de uma integração político-social. Nesse cenário, sob o ponto de vista do direito empresarial e societário, nada mais oportuno do que se pegar carona em um instituto do direito comunitário, criado antes mesmo do próprio Mercosul, denominado Agrupamento Europeu de Interesse Econômico (AEIE), sobre o qual se segue brevíssimo relato, este amparado em trabalho elaborado para uma das cadeiras cursadas no período acadêmico de meu mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. O Conselho de Ministros da Comunidade, em 25 de julho de 1985, adotou, sob proposta da Comissão, o Regulamento que instituiu o AEIE, criando, dessa forma, nova entidade diretamente ligada ao direito comunitário e especificamente destinada à cooperação transnacional. Com efeito, trata-se do pioneirismo comunitário em matéria de direito das sociedades, ou seja, do primeiro instrumento criado pela própria legislação comunitária para esse ramo do Direito, o que veio, em consequência da sua específica origem, a conferir o benefício de seu reconhecimento automático perante todos os Estadosmembros, proporcionando, sem dúvida, rápida e harmoniosa aplicação transnacional com uma expansão contínua e equilibrada no conjunto da comunidade. A importância jurídica e econômica da norma em questão merece destaque. Sem dúvida, foi a primeira vez que, na Europa, um instrumento jurídico de natureza 62
comunitária colocou-se à disposição de empresas que ainda se deparavam com as clássicas (e retrógradas) tentativas de cooperação transfronteiriças, enfrentando seus sistemas jurídicos nacionais territorialmente limitados, o que as inviabilizava em sua maioria. O objetivo inicial do Conselho das Comunidades Europeias foi o de criar um instrumento jurídico adequado em nível comunitário, sob a forma de um agrupamento, com um quadro jurídico que facilitasse a adaptação das atividades das pessoas físicas, das sociedades e de outras entidades jurídicas às condições econômicas da Comunidade, com a pretensão de alcançar um mercado comum capaz de oferecer condições análogas às de um mercado nacional, realizando verdadeiro mercado único capaz de minimizar as dificuldades de natureza jurídicofiscal. A exemplo dos Agrupamentos Complementares de Empresas, porém em nível comunitário, a razão da criação do AEIE é a de permitir aos parceiros conjugarem uma parte de suas atividades, ao implementarem funções novas e complementares para o seu desenvolvimento individual, permitindo-se uma cooperação produtiva de interesses comuns. Destarte, este instrumento favorece a interligação e a cooperação entre entidades com sede em diferentes Estados da Comunidade. O AEIE, criado para ser novo instrumento de cooperação econômica na Comunidade Europeia, teve seu efetivo nascimento em 1o de julho de 1989, quando o Regulamento do Conselho de Ministros da Comunidade Econômica Europeia que o instituiu em 25 de julho de 1985 entrou em vigor, tornando-se aplicável na Ordem Jurídica dos Estados-membros. O embrião ideológico fora identificado em 21 de dezembro de 1973, quando a Comissão apresentou ao
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Conselho uma proposta de Regulamento relativa à criação de um instrumento jurídico de tal alcance, denominado, à época, de Agrupamento Europeu de Cooperação. Trata-se de entidade jurídica criada pelo Direito Comunitário, classificada por Annick Pétélaud como “o primeiro instrumento jurídico de acção comum interempresas, directamente constituído em nível europeu e regido a título principal pelo Direito Comunitário”. O AEIE inspira-se, segundo alguns autores, no “groupement d’intérêt économique” (GIE) do direito francês, instituído pela Ordonnance no 66-821 de 23 de setembro de 1967. Em conformidade com o citado modelo francês, o AEIE foi dotado de uma estrutura simples e flexível capaz de permitir aos seus membros facilitar e desenvolver a sua atividade econômica, sem, contudo, deixar de manter a sua entidade jurídico-econômica independente e autônoma. Como características peculiares desse instituto podemos declinar o caráter meramente auxiliar relativo à atividade econômica dos seus membros, a não exigência de capital para sua constituição, a transparência fiscal, a responsabilidade solidária e ilimitada dos seus membros pelas dívidas do agrupamento, a liberdade contratual dos membros na regulamentação das suas relações, o caráter transnacional, exigindo-se pelo menos duas nacionalidades, e a capacidade jurídica própria com previsão de representação perante terceiros por um órgão juridicamente distinto dos seus membros. O Regulamento (CEE) no 2.137/1985 do Conselho das Comunidades Europeias é a norma principal do instituto do AEIE, vindo a ser recepcionado por todos os Estadosmembros, que, por sua vez, o admitiram em sua legislação pátria deliberando as respectivas e próprias normas de âmbito interno. Antes da adoção do Regulamento supracitado, o direito das sociedades no patamar comunitário tinha-se feito apenas por Directivas do Conselho, as quais tinham como objetivo conciliar alguns aspectos das legislações dos diferentes Estados-membros. Com a vigência do Regulamento, substitui-se a “finalidade de aproximação de legislação” pela adoção de “regras uniformes” havendo, em muitos casos, a falta de correspondência com as normas jurídicas internas dos países que compõem a Comunidade. Pelo fato de o AEIE ter sido instituído por Regulamento, significa que tem caráter geral, ou seja, torna-se obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável nos Estados-membros. Cabe esclarecer, portanto, que o Regulamento não carece de qualquer ato interno de transposição por parte do Estado-membro por ser diretamente aplicável, ao contrário, todavia, da Directiva, que pressupõe a vinculação dos Estados-membros apenas quanto aos fins
determinados, deixando os meios de execução à escolha dos próprios Estados-membros, os quais são concretizados por via de um diploma de transposição. As regras de caráter uniforme emanadas do Regulamento fazem parte do direito comunitário, que nada mais é que um direito supranacional que prevalece sobre todas as normas nacionais em contrário. Ao direito interno do Estado-membro cabe aplicação de caráter residual. O Regulamento do AEIE contém disposições de ordem imperativa, tais como as atinentes à obrigatoriedade de um contrato escrito celebrado com certas formalidades, designadamente de registro e de publicidade e um dispositivo sobre nulidade, assim como à atribuição de capacidade jurídica ao agrupamento, definindo também quem pode ser membro, como será sua composição e alteração, delimitando uma estrutura mínima e destacando, ainda, alguns aspectos do funcionamento e de responsabilidades. O Regulamento do AEIE elaborado no direito português nasceu com o Decreto-Lei no 148/1990, de 9 de maio, pelo qual o instituto originário do direito comunitário passou a ser regulado em nível nacional, independentemente da autoaplicação da legislação comunitária, tendo por escopo a adaptação da norma geral ao caso específico português, declinando regras complementares. As questões relativas ao contrato de agrupamento e ao seu funcionamento interno, por exemplo, não serão fixadas pelo Regulamento do Conselho, ou pelo contrato, mas sim pela legislação do respectivo Estado-membro da sede do AEIE.
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No concernente aos domínios que não estão abrangidos pelo Regulamento do Conselho e, como exemplo, nos relativos à atividade do agrupamento, tal como do direito da concorrência, o AEIE está diretamente subordinado ao direito nacional aplicável aos que exercem atividade econômica. Em outros casos, como o direito social e o direito do trabalho, são aplicadas as leis que regulam tais assuntos no âmbito local. O Regulamento (CEE) no 2.137/1985 do Conselho, em seu artigo 1o, precisamente o no 3, determina que “Os Estados-membros determinarão se os agrupamentos inscritos nos seus registos por força do artigo 6o têm ou não personalidade jurídica”, remetendo ao direito nacional a incumbência de assim resolver, criando, portanto, a possibilidade de uma norma complementar e autônoma na esfera legislativa do Estado-membro, contrapondose em relação à capacidade jurídica própria, que já vem determinada de plano no direito comunitário (artigo 1o, no 2, do Regulamento do Conselho). Na legislação portuguesa, usada aqui como parâmetro, consagra-se explicitamente a forma pela qual se formalizará o contrato e qual será a sua natureza – civil ou comercial – consoante seu objeto. Rege ele ainda as matérias relativas à denominação do agrupamento, à cessão de participação, à exclusão de membro, às obrigações, à gerência, à prestação de contas, às falência e insolvência e ao processo de recuperação de empresas e à transformação. Por derradeiro, em seu art. 12o, dispõe o Decreto-Lei que serão aplicáveis aos AEIEs com sede contratual em Portugal as normas estabelecidas pela lei nacional para o agrupamento complementar de empresas em tudo o que não se encontre previsto nem no Regulamento do Conselho, nem neste diploma. Dessarte, dando como exemplo um AEIE sediado em Portugal, ser-lhe-á aplicado o direito material português relativo à formação e interpretação do respectivo contrato, bem como, porquanto omissa no texto, à fase pré-contratual. É oportuno esclarecer que a norma nacional não pode ser contrária ao direito comunitário, principalmente no consoante à matéria sobre agrupamento. A formação de um AEIE depende, fundamentalmente, de dois requisitos: a celebração de um contrato – o chamado contrato de agrupamento – e o seu registro nos termos exigidos para esse efeito pelos Estados-membros, procedendo-se à matrícula respectiva a qual deverá ser seguida da competente publicação, esta necessária para sua oponibilidade a terceiros. O AEIE adquire capacidade jurídica com a efetivação da matrícula, porém tornar-se ou não uma pessoa jurídica é assunto relegado à consideração do Estado-membro onde a matrícula (o consequente registro) será efetuada. 64
Tal capacidade jurídica abrange a faculdade de, em seu próprio nome, ser titular de direitos e obrigações de qualquer natureza, possibilitando celebrar contratos ou praticar outros atos jurídicos e proporcionando demandar e ser demandado em juízo. Conclui-se, pois, que o registro é, a princípio, condição de existência do próprio agrupamento como entidade jurídica autônoma, não gozando o contrato, por si só, de efeitos relativamente a terceiros. O artigo 5o do Regulamento do Conselho elenca os requisitos necessários do contrato de agrupamento. São eles: a denominação do agrupamento deve ser antecedida ou seguida pela expressão “Agrupamento Europeu de Interesse Econômico” ou das iniciais “AEIE” , dispensandose tal obrigatoriedade se a referida expressão ou as indicadas iniciais já fizerem parte da própria denominação do agrupamento; a sede do agrupamento; a finalidade precípua motivadora da formação do agrupamento; o nome, a firma ou a denominação social, a forma jurídica, o domicílio ou a sede social e, se for caso disso, o número e local de registro de cada um dos membros do agrupamento; e a sua duração, quando esta não for indeterminada. O Regulamento do Conselho não exige nenhum outro requisito de forma, podendo concluir-se, por conseguinte, que pode ser redigido por ato notarial ou por documento particular. A estrutura organizacional do AEIE é bem simples. Existirá obrigatoriamente a composição com dois órgãos: os membros agindo colegialmente (órgão colegial) e os gerentes. Entretanto, o próprio Regulamento admite que o contrato do agrupamento preveja outros órgãos, devendo, nessa hipótese, discriminar os poderes respectivos, como, por exemplo, o conselho fiscal ou um órgão consultivo. O Regulamento do Conselho é liberal quanto à aquisição do status de membro do agrupamento, como nota-se de imediato na leitura do seu preâmbulo, sendo, no entanto, exigida a condição de que os propensos membros já venham a exercer uma atividade econômica. O artigo 4o do Regulamento estabelece quem pode ser membro de um AEIE: a) as sociedades no sentido do segundo parágrafo do artigo 58o do Tratado CEE, bem como as outras entidades jurídicas de direito público ou privado, constituídas em conformidade com a legislação do Estado-membro, que tenham a sua sede estatutária ou legal e a sua administração central na Comunidade; b) as pessoas físicas que exerçam uma atividade industrial, comercial, artesanal, agrícola, bem como os profissionais liberais e, ainda, as pessoas que prestem quaisquer outros serviços na Comunidade. O mesmo artigo, mais a seguir, determina uma composição mínima para a formação de um agrupamento, exigindo, in casu: a) duas sociedades ou entidades jurídicas que
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tenham a sua administração central em Estados-membros diferentes; b) duas pessoas físicas que exerçam a sua atividade principal em Estados-membros diferentes; c) uma sociedade ou outra entidade jurídica e uma pessoa singular que tenham, respectivamente, a sua administração central e uma atividade principal em um Estado-membro diferente. Em vista da sua plena capacidade jurídica, o AEIE pode assumir, em nome próprio, compromissos de natureza financeira, devendo, no entanto, garantir o encargo com o seu próprio patrimônio, pois, em caso de falência do agrupamento, os seus membros respondem solidariamente perante terceiros pelas dívidas daquele. Assumiu a legislação comunitária, no caso, a adoção do princípio da responsabilidade ilimitada e solidária dos membros pelas dívidas do agrupamento. Tal empenhamento pessoal dos membros constitui a contrapartida da liberdade contratual que está no âmago do AEIE. E não era para menos, pois a não exigência de um capital obrigatório para a constituição do agrupamento, ou seja, a não necessidade de um ativo inicial para a sua formação, levaria, caso não fosse prevista esta responsabilidade, à falta de confiabilidade na instituição por parte de terceiros, que poderiam evitar contratar com os agrupamentos. Qualquer membro do agrupamento que deixe de fazer parte deste continuará responsável pelas dívidas resultantes da sua atividade, que tenham sido originadas anteriormente à cessação da sua qualidade de membro, durante os cinco anos seguintes a contar da data da publicação da respectiva cessação. A saída de um membro, seja pela forma que for, em regra, não implica a dissolução do respectivo agrupamento, salvo a hipótese de o contrato dispor de modo contrário. Os membros do agrupamento possuem grande margem para organizar a gerência de acordo com as necessidades de cooperação. O contrato de agrupamento ou, na falta deste, uma decisão unânime dos membros determina as condições de nomeação e revogação dos gerentes e fixa os seus poderes. A finalidade do AEIE é a de facilitar ou desenvolver a atividade econômica dos seus membros, melhorando ou aumentando os resultados dessa atividade. O agrupamento deve relacionar-se com a atividade econômica por eles engendrada, sendo criado para lhes permitir um desenvolvimento na sua própria atividade, aumentando seu desempenho e consequentemente seus lucros, atuando como verdadeiro aglutinador de recursos e serviços em prol do progresso e sucesso comuns. Esta interligação entre o agrupamento e seus membros é imperativa e constitui uma das condições essenciais da sua própria criação. Os agrupamentos não devem, nem podem, substituir seus membros, nem absorver totalmente a sua atividade. Com efeito, trata-se de um instrumento de cooperação econômica, e não de integração. O AEIE não pode agir 2016 Janeiro | Justiça & Cidadania 65
como se fosse uma sociedade, exercendo poder de direção sobre o grupo ou parecer-se com uma holding detendo participações financeiras nas empresas do grupo. A sua função precípua não é a de dirigir as atividades de cada um dos seus membros, mas sim a de coordenar algumas delas, cuja execução lhe é destinada. O Regulamento que instituiu o AEIE não vislumbrou a hipótese de transformação do agrupamento em outra entidade jurídica. Entretanto, tal possibilidade foi consagrada no direito nacional português – Decreto-Lei no 148/1990, de 9 de maio, que previu, em seu art. 11o, a transformação do AEIE em Agrupamento Complementar de Empresas, permitindo-a sem a necessidade de um processo de liquidação e sem consequentemente gerar a criação de nova pessoa jurídica. Pode-se cogitar desta transformação, por razões diversas, como, por exemplo, a falta de preenchimento dos requisitos de transnacionalidade – existência mínima de dois membros do agrupamento pertencentes a diferentes Estados-membros – o que levaria ao fim do agrupamento. Veja-se um exemplo: uma empresa alemã integrava um AEIE juntamente com duas outras de origem portuguesa, mas, por motivo de falência, deixou de fazer parte do agrupamento. Podem as empresas portuguesas continuar no âmbito nacional com a cooperação mútua transformando-se o agrupamento anterior em um Agrupamento Complementar de Empresas. Se porventura posteriormente essas duas empresas portuguesas resolverem agrupar-se com uma outra de origem francesa, nada as impede de readquirir o status de AEIE, pois o diploma legal prevê também a transformação do Agrupamento Complementar de Empresas no primeiro, seja originariamente, seja derivadamente. A dissolução de um AEIE implicará a sua extinção, mas a sua capacidade jurídica será mantida até o encerramento da respectiva liquidação. A liquidação ocorrerá em todos os casos de dissolução do agrupamento, quer resulte de deliberação de seus membros, quer seja consequência de uma decisão judicial. No direito nacional português, a personalidade jurídica do agrupamento persiste até final registro do encerramento da liquidação. Os AEIEs sujeitam-se às disposições do direito nacional que venham a regular as matérias relativas à insolvência e à cessação dos pagamentos. No âmbito do direito nacional português, o diploma de aplicação determina que o agrupamento sujeitar-se-á ao regime da falência ou da insolvência, consoante seja ou não comerciante, sendo-lhe aplicável o processo especial de recuperação de empresas e de proteção dos credores. De fato, a extinção do agrupamento não deve, a princípio, levar ao desaparecimento dos seus membros. 66
O carácter auxiliar do agrupamento, a sua verdadeira essência de agregador dos seus membros, justifica plenamente essa norma, evitando-se, assim, tratamento desigual e desequilibrado entre os seus membros. Daí poder-se dizer que a falência de um ou mais membros do agrupamento só resultaria da sua própria insolvência ou cessação de pagamentos. Ao reverso, as responsabilidades dos membros do agrupamento em caso de falência deste não serão necessariamente as mesmas, pois, em vista do princípio da responsabilidade solidária e ilimitada, os credores do agrupamento poderão acionar indiscriminadamente um ou mais dos seus membros. Como restou bem elucidado, o AEIE foi a primeira entidade jurídica verdadeiramente comunitária, criada para desenvolver um avanço na atividade econômica, na indústria, no comércio, na agricultura e nos serviços. Até então, se empresas públicas ou privadas de diferentes Estados-membros pretendessem associar-se, submeteriam-se obrigatoriamente às ordenações jurídicas de um ou do outro Estado-membro, restando por gerar um desequilíbrio nos respectivos desenvolvimentos, por muitas vezes beneficiando uma em detrimento da outra. A criação e normatização da existência jurídica do AEIE, por força do direito comunitário, impôs-se na ordem jurídica de todos os Estados-membros, tornandose norma direta e imediatamente aplicável. As pessoas físicas, as jurídicas, assim como todas as “outras entidades jurídicas”, de direito público ou privado, podem constituir um AEIE. O Regulamento propositadamente utilizou a denominação “entidade jurídica” pretendendo evitar qualquer interpretação restritiva, com o intuito de possibilitar a todas as pessoas jurídicas a adesão ou constituição de um agrupamento, quer tenham ou não a forma de uma sociedade, ou exerçam uma atividade econômica ou com finalidade econômica. Por derradeiro, é de bom alvitre realçar que o Regulamento interpreta de uma forma muito ampla a noção de atividade econômica. Esta interpretação muito “aberta” permite admitir como membros de um agrupamento empresas públicas ou semipúblicas – fundações, universidades, institutos de investigação –, tanto quanto recepciona pessoas que exerçam profissão liberal. Com o claro intuito de promover o crescimento econômico da Comunidade Europeia, este instituto supranacional tende a estimular a cooperação econômica transnacional, objetivando a criação de um melhor mercado para os Estados-membros, o que, de certo, levará à integração total da economia europeia. É com esse espírito que o Mercosul deve absorver essa experiência comunitária utilizando-se deste instituto para ajudar no seu crescimento econômico.
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