Revista Justiça & Cidadania

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Edição 156 • Agosto 2013


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Justiรงa & Cidadania | Agosto 2013


S umário Foto: Eugenio Novaes

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Capa – Marcus Vinicius Furtado, defensor da liberdade e da ética Carta ao Leitor – Protagonistas de um Brasil melhor

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Dez anos do Estatuto do Idoso

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Revisitando a teoria da separação dos poderes

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Editorial – A indignação está nas ruas!

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A equidade no Código do Consumidor

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A segurança jurídica nos negócios imobiliários

Decisões contraditórias do Supremo Tribunal Federal

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Vida longa à República

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Uma aproximação dos caminhos da responsabilidade por danos

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Dom Quixote – Combate à fome e mudança de paradigmas

Registro especial de fabricante de cigarros – constitucionalidade e jurisprudência dos tribunais

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Judiciário do século XXI depende de gestão democrática

Possibilidade jurídica de títulos de crédito virtuais ou escriturais

Foto: Conectas Direitos Humanos

Foto: Arquivo JC

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Política e Direito

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Em Foco – “O aumento da participação on-line criou um caldo novo de cultura política”


Edição 156 • Agosto de 2013 • Capa: Eugenio Novaes

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C arta ao Leitor

Protagonistas de um Brasil melhor “A palavra é o instrumento irresistível da conquista da liberdade.” Rui Barbosa

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ós, jornalistas, partilhamos com os operadores do Direito o instrumento mais forte que o homem pode ter em suas mãos: a palavra! É com este recurso que gostaríamos de parabenizar os milhares de advogados e magistrados de todo o Brasil, por este 11 de agosto de 2013, quando comemoramos o Dia Nacional do Advogado, o Dia do Magistrado e o Dia do Direito. Um simples parabéns, no entanto, não bastaria. Nem resgatar a história que é conhecida de todos, a do famoso “Dia do Pendura”, quando os alunos das faculdades de Direito tinham o costume de comer em restaurantes e sair sem pagar a conta. Este dia marca a criação dos primeiros cursos superiores de Direito no País, em 1827, nas cidades de São Paulo (SP) e Olinda (PE). Mas, ao contrário da antiga tradição – hoje não mais praticada –, esta edição celebra a data e não deixa dívidas com a informação. Escolhemos esse momento para lançar a reflexão sobre a importância do papel dos operadores do Direito nos dias de hoje, por meio dos artigos de três destacadas personalidades do mundo jurídico. O primeiro deles é o desembargador do TJRJ, Marcus Faver, presidente do Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil, que faz um chamamento a todos os operadores do Direito para a importância de estarmos atentos a esse momento, em que a Nação caminha para um entrelaçamento entre a Política e o Direito. Diz ele: “As últimas manifestações populares no Brasil e, particularmente, no Rio de Janeiro, evidenciam uma profunda crise político-institucional em nosso país”. A segunda personalidade está na entrevista de nossa matéria de capa: o novo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcus Vinicius Furtado. Ele alerta: “Ninguém, em sã consciência, pode ignorar o que está acontecendo nas ruas. Não se trata de algo meramente espontâneo, como algumas pessoas a princípio imaginaram. Isso reflete o acúmulo de anos de insatisfação, de frustrações e de reivindicações não atendidas”. Finalmente, o diretor de campanhas da organização não governamental Avaaz, Pedro Abramovay, lança luz sobre a mobilização política on-line, o chamado “clicativismo”, que, segundo ele, gerou mudanças no “caldo político”. O que os discursos de Faver, Furtado e Abramovay teriam em comum? Os três chamam a atenção para a situação de mobilização em que se encontra o povo brasileiro, um momento de questionamentos, de manifestações e, especialmente, de luta por ética na vida pública. Nesse cenário, será decisiva a postura militante, ética e transparente de nossos advogados, bem como será fundamental a atuação consciente, digna e valorosa de nossos magistrados. Portanto, parabéns a vocês, advogados e magistrados, não apenas por sua data no calendário, mas porque sempre foram e sempre serão protagonistas de um Brasil melhor. Um forte abraço! Tiago Salles Editor-Executivo

Erika Branco Diretora de Redação

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E ditorial

A indignação está nas ruas!

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a edição de março último, dedicamos o editorial ao escritor alemão de nacionalidade francesa Stéphane Hessel, que morreu em Paris no dia 26 de fevereiro passado aos 95 anos. Esse meu contemporâneo era jovem, ativo, lúcido e indignado com as almas adormecidas que estão empobrecendo a aventura humana sobre a terra. Seu manifesto “Indignai-vos”, publicado há três anos, serviu de inspiração para o movimento Indignados que se espalhou pela Europa em crise. O texto é um chamamento à responsabilidade. É um repúdio aos que questionam a proteção social aos desvalidos. É uma aula de história e de coragem dos que resistiram ao nazismo e salvaram o mundo de um futuro de trevas. Os movimentos sociais e protestos populares que estão espocando nas capitais e no Distrito Federal refletem a mesma indignação com que Hessel se manifestou, e que, por certo, influenciada pela impunidade dos constantes abusos praticados em atos de corrupção política e administrativa, serviu de fonte inspiradora das multidões revoltadas. No citado editorial de março, já prevíamos a explosão de acontecimentos em face dos movimentos populares que estavam acontecendo em várias capitais por motivos variados. Era o prenúncio do clima de indignação que perdura nas ruas. Não é necessário buscar na mente as causas do desregramento da população com os atos de vandalismo, que, por enquanto, felizmente, estão reduzidos aos até poucos estragos produzidos, mas que servem, entretanto, como aviso e previsão de graves e terríveis acontecimentos que poderão acontecer e que, infelizmente, acontecerão se 6

outros fatos provocadores contra os sentimentos cívicos e morais da população surgirem. Os pronunciamentos de populares, colhidos pela mídia em todos os movimentos de protesto, são unânimes em apontar os principais fatos causadores da revolta: a constante e reclamada mediocridade do ensino, o desleixo absoluto no atendimento à saúde – com a falta de leitos, de assistência médica e hospitalar, além da carência de medicamentos –, assim como as denúncias de corrupção, que atingem publicamente todos os níveis da administração pública, praticadas em conluio com políticos e partidos, em uma degeneração imoral e vergonhosa. As incontáveis reclamações ouvidas dos manifestantes durante as passeatas contra os gastos absurdos das obras da Copa deixaram patente que o povo reclama contra a falta de ensino, saúde e moradia – ao contrário da intenção dos governos, dando-lhes panes et circum. As obras faraônicas dos seis estádios de futebol custaram, com o superfaturamento implícito e de costume: no Rio – um bilhão e duzentos milhões; em Brasília – um bilhão e duzentos milhões; em Salvador – seiscentos e oitenta e nove milhões; em Recife – seiscentos e oitenta milhões; em Belo Horizonte – seiscentos e sessenta e seis milhões; em Fortaleza – quinhentos e dezoito milhões, no total de quatro bilhões, novecentos e cinquenta e três milhões. Enquanto esse rio de dinheiro público foi gasto nababescamente, enriquecendo muitos políticos corruptos e desavergonhados com um esbanjamento deplorável

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Foto: Sandra Fado

e criminoso, a maioria da população sofre e se recente desgraçadamente nos corredores e pátios dos hospitais da ausência e da falta do direito que a Constituição da República garante, mas não lhes concede. Não é necessário repetir o que, a respeito dos faustosos estádios, escrevemos anteriormente no editorial de abril findo: “Miserável hipocrisia”, cujo despautério de gastos constituiu verdadeiro escárnio contra a pobreza da polulação carente, que, angustiada e desesperada, pervaga perante os hospitais e postos de saúde em busca da assistência que lhe é negada por falta de meios de atendimento, como ocorre e é corriqueiramente noticiado nos jornais e comentários na televisão. O Movimento Passe Livre foi o levedo da fermen­ tação que produziu a revolta, que era prevista pelo inconformismo das inúmeras passeatas. É óbvio que R$ 0,20 a mais nas passagens não seria suficiente para botar o povo nas ruas do país, em multidões cada vez maiores, com imagens impressionantes. Esse foi o detonador, o gatilho das manifestações de grupos distintos e de motivações difusas. Muitos foram e são os motivos da irritação que provocaram os acontecimentos. E eles estão acinto­ samente demonstrados nas constantes e vergonhosas denúncias de desregrada corrupção e enriquecimento ilícito perpetrado em obras públicas em todas as esferas dos executivos, principalmente em atos e desmandos praticados nos legislativos federal, estaduais e municipais, por meio de escândalos, improbidade administrativa e corrupção vergonhosamente divulgados constantemente na televisão, nas rádios e nos jornais. Sabe-se que, ao lado

de questões objetivas – como o aumento das passagens de ônibus – gritos mais abrangentes são entoados, alguns proclamando o aborto livre, outros exigindo o fim das discriminações, e que seguem falando de muito mais: de corrupção, de descaso, de desmandos, de desvios de conduta, do absurdo dos gastos da Copa, da saúde pública vilipendiada, do ensino acentuadamente depauperado, de tudo que passa a ser motivo para a baderna e a quebra da normalidade republicana. O que se constata é o clamor das turbas ganhando ressonância em todo o País a demonstrar insatisfação com o establishment, em uma evidente manifestação que, por certo, não vai parar, mas persistir em reivindicar as condições que lhes estão sendo negadas, não importando por quem. O ronco das ruas está mostrando que o povo acordou para o confronto, que, infelizmente pelas circunstâncias, se agravará e, como premonição, tende a continuar como afixado em uma das faixas: “O povo decidiu: ou para a roubalheira ou paramos o Brasil!”

Orpheu Santos Salles Editor

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C apa, por Ada Caperuto Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

Marcus Vinicius Furtado, presidente da OAB Nacional

Marcus Vinicius Furtado, defensor da liberdade e da ética Reforma política, estrutura do Poder Judiciário, mudanças nos cursos de Direito, conquistas recentes e projetos futuros da OAB Nacional são alguns dos temas abordados nesta entrevista com o atual presidente da entidade que congrega mais de 750 mil advogados em todo o País.

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arcus Vinicius Furtado é firme em suas respostas. Não titubeia e encanta por sua articulação. Não poderia ser diferente para esse advogado militante, que superou dificuldades pessoais, desenhou conquistas e, hoje, preside a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB Nacional). 8

Filho de um escrivão judiciário e de uma professora primária, o maranhense Marcus Vinicius nasceu na cidade de Paraibano. Ele perdeu o pai quando tinha apenas quatro anos de idade e, aos 11, mudou-se para Teresina (PI), onde seguiu com seus estudos como aplicado aluno. Formou-se pela Universidade Federal do Piauí (turma de 1993), fez pós-graduação pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutorado em Direito Processual pela Universidade de Salamanca, Espanha. Em janeiro deste ano, Marcus Vinicius venceu as eleições para a presidência da OAB Nacional com 64 votos dos conselheiros federais e comandará a entidade pelos próximos três anos. À Revista Justiça & Cidadania, ele fala abertamente o que espera da postura da entidade que preside e de seus congregados, opina sobre as recentes manifestações públicas que agitaram todo o País e dá seu amplo parecer sobre a crise política do atual governo, apresentando o anteprojeto de reforma que a OAB defende, denominado “Eleições Limpas”.

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Justiça & Cidadania – O senhor está completando o primeiro semestre de seu mandato. Quais desafios e conquistas foram obtidos até o presente momento? Marcus Vinicius Furtado – Foi, sem dúvida, um semestre intenso. Costumo brincar dizendo que o tempo está passando rápido demais. Temos muitas vitórias e conquistas a registrar nesse período e outros tantos desafios pela frente, naquilo que chamamos, desde o início, de gestão compartilhada. No plano do fortalecimento da advocacia, posso destacar a campanha em defesa dos honorários e a instituição da Ouvidoria dos Honorários, reforçada pela criação da Procuradoria Nacional das Prerrogativas, entre outros importantes avanços. Temos, também, avançado na questão do Processo Eletrônico, o PJe, uma inovação que não podemos ignorar e que está levando a OAB a instituir núcleos de inclusão digital para advogados de todo o País, especialmente os que trabalham em comarcas mais distantes e ainda se ressentem da falta de telefonia em banda larga. Tivemos, também, a aprovação, na Câmara dos Deputados, do projeto de lei que institui os honorários da advocacia trabalhista, e a alteração do parecer da Advocacia Geral da União no sentido de que as verbas de honorários sejam pagas aos advogados públicos. Sem esquecer, claro, da histórica decisão do Supremo Tribunal determinando o pagamento dos precatórios devidos. No momento, estamos lutando pela aprovação de lei para incluir os serviços de escritórios de advocacia no sistema do Simples Nacional, que já passou no plenário do Senado. Essa mudança estabelecerá um regramento jurídico, alcançando milhares de advogados que ainda se encontram na informalidade.

MV – Na verdade, eu defendo que a OAB seja protagonista de causas, e não comentarista de casos. Isto porque, agindo dessa maneira, acredito que está de acordo com o pensamento da advocacia e com sua missão institucional. A OAB deve pugnar pela justiça social, pelo Estado Democrático de Direito e pela Constituição Federal. Hoje, temos um quadro social em ebulição, como se constatou nas manifestações que atingiram os principais centros urbanos do País. Que causa melhor do que essa? A grande mudança que a população está cobrando começa, justamente, no nosso modelo político-eleitoral. Por isso, essa se tornou a bandeira da OAB para mudar a cara do Brasil nos próximos anos. JC – Quais são as outras bandeiras defendidas em campanha e ora colocadas em prática? MV – Todas as ações da atual gestão estão em completa sintonia com o nosso programa de trabalho, que, aliás, disse no primeiro dia que seria a nossa “Bíblia”. Constituímos comissões que estão desenvolvendo trabalhos que vão desde a valorização da mulher advogada até a causa indígena, por sinal, presidida por uma advogada de etnia wapichana. A OAB, historicamente, desempenha um papel vigilante diante do quadro social do País, do aumento da violência e da criminalidade, do descuido ético dos governantes, das violações aos direitos humanos e ao meio ambiente. Agimos como consciência crítica, dando voz à sociedade ao denunciar todas as formas de opressão e violência que atentam contra a cidadania.

JC – Qual é o significado do slogan de campanha: “OAB Independente, Advogado Valorizado”? MV – Ao assumir o cargo, tive a oportunidade de me dirigir aos advogados militantes como sendo os nossos “Cíceros” da labuta diária. O slogan decorre justamente do entendimento que temos da advocacia nos dias de hoje, um universo de mais de 750 mil profissionais que esperam uma atuação efetiva de sua entidade representativa em defesa de seus direitos. Para que possamos nos aprofundar na realidade da advocacia, cujo perfil tem se alterado radicalmente nos últimos anos a partir da ampliação de oferta de cursos jurídicos, do ingresso de novos profissionais no mercado e das demandas de uma sociedade também em transformação, precisamos de uma OAB independente e forte.

JC – Em seu discurso de posse, o senhor afirmou que pretende estreitar as relações com os poderes públicos. Qual vem sendo a estratégia para colocar essa ação em prática? MV – Nos inserimos na agenda nacional dispostos a manter um diálogo de alto nível com os poderes, e assim tem sido. Independentemente da reforma política e dos projetos de interesse da advocacia no Congresso Nacional, temos construído uma agenda bastante positiva com a classe política e avançado sobre temas que interessam a toda a sociedade. Mas o melhor exemplo desse diálogo deu-se em junho, quando tivemos a oportunidade de alertar, durante audiência com a Presidente Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto, para os problemas que poderiam advir da proposta de convocar uma Constituinte exclusiva como forma de debelar a crise. Como resultado, o governo retirou o assunto de pauta.

JC – O senhor tem defendido que a OAB deve se manifestar como protagonista de importantes causas sociais, e não apenas como mera coadjuvante. Quais causas sociais são prioritárias no atual momento do País?

JC – Existe, também, uma preocupação muito grande desta gestão em evitar ao máximo a “personalização” da entidade. De que modo alinhar a atuação das Seccionais da OAB, uma vez que sabemos que existem algumas unidades

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Foto: Lucio G. Lobo Júnior

Edifício onde está situada a sede da OAB, em Brasília

da Federação cuja Seccional é extremamente atuante, participativa e frequentemente consultada pela mídia? MV – Os presidentes de Seccionais têm ampla liberdade para expressar seus pontos de vista a respeito de temas que lhes são submetidos, e não poderia ser diferente. Somos uma entidade democrática, visceralmente comprometida com a liberdade de expressão e apaixonada pelo debate. JC – Outro ponto defendido pela OAB está na liberdade de expressão plena e no fortalecimento da democracia no País. Recentemente, tivemos episódios em que a liberdade de expressão foi exercitada por meio das novas tecnologias de redes sociais – suplantando até mesmo gigantes da mídia. O senhor acredita que esse é um bom caminho para a defesa da liberdade e o exercício pleno da democracia? MV – Esse assunto está na pauta do dia. Para a OAB, o direito de expressão contido na Constituição precisa ser exercitado em todos os meios de comunicação disponíveis, inclusive em períodos de eleições. Aliás, isso faz parte do anteprojeto que estamos apresentando para a reforma política. Por outro lado, reconhece que o direito de informar e de se expressar, em uma democracia, pressupõe responsabilidade 10

de seus protagonistas. Ninguém, por exemplo, pode gritar “fogo!” dentro de um recinto fechado e achar que o artigo 5o da Constituição lhe dá esse direito. Por essa razão, constituí recentemente uma Comissão de Liberdade de Expressão, que está sendo presidida por nada menos do que o ex-ministro Carlos Ayres Britto. É um tema palpitante. JC – Qual a opinião da OAB Nacional sobre as recentes manifestações públicas que pressionaram decisões do Legislativo – como a votação que derrubou a PEC 37, por exemplo? MV – Ninguém, em sã consciência, pode ignorar o que está acontecendo nas ruas. Não se trata de algo meramente espontâneo, como algumas pessoas a princípio imaginaram. Isso reflete o acúmulo de anos de insatisfação, de frustrações e de reivindicações não atendidas. O fato de ter se iniciado com o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus tirou da inércia uma multidão de insatisfeitos com outros serviços públicos. Diante do esforço do governo em erguer estádios milionários para a Copa do Mundo, os cidadãos viram que, quando existe vontade política, tudo é possível. Então, por que não dotar a administração pública do mesmo padrão? Essa é a grande lição.

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JC – O senhor se declara um defensor da reforma política no País. De novo, por força da população, a Presidente Dilma Rousseff está tratando desse tema com mais urgência. O plebiscito é mesmo o melhor caminho para isso? MV – A OAB não se opõe a nenhum tipo de consulta popular, mas entende que o plebiscito, neste momento, ao invés de ajudar, pode se transformar em uma cortina de fumaça diante da crise real, que é a de legitimidade das instituições. O momento é propício a uma reforma política naquilo que é essencial para que afastemos de uma vez por todas o problema da corrupção eleitoral. Temos de atacar a causa, que é o financiamento de campanhas por empresas. Está provado que o sistema eleitoral está falido. Por isso, estamos recolhendo assinaturas para o anteprojeto de lei de iniciativa popular que prevê a instituição do financiamento democrático de campanhas, vedando e criminalizando a prática do caixa dois. Nessa luta, a OAB lidera um movimento que envolve mais de cem entidades representativas da sociedade civil organizada. JC – Qual seria a reforma política ideal? MV – O anteprojeto de reforma que a OAB defende, que denominamos “Eleições Limpas”, pode ser resumido da seguinte forma: em primeiro lugar, o voto transparente em dois turnos, ou seja, o eleitor vota inicialmente no partido e em sua lista de candidatos, e, após, escolhe o candidato de sua preferência. O primeiro turno garantiria a opção em torno de um determinado projeto, enquanto, no segundo, seria escolhido aquele em quem o eleitor confia para executá-lo. Em segundo lugar, o fim do financiamento de campanhas por empresas privadas para impedir que o poder econômico influencie o processo político. Isso vai possibilitar, também, o barateamento das campanhas, de tal modo que o atual recurso utilizado para o financiamento de partidos no Fundo Partidário seja utilizado nas campanhas eleitorais. E, em terceiro lugar, queremos garantir a liberdade de expressão na internet. JC – E no que diz respeito ao Poder Judiciário, o senhor acredita que seja necessário algum tipo de reforma? Como enxerga hoje os tribunais estaduais quando observados sob o prisma da independência econômica e administrativa? MV – O Judiciário ainda padece de um sério problema estrutural. A partir da Constituição de 1988, a demanda por Justiça cresceu, mas os tribunais, infelizmente, não receberam a atenção que deviam e, hoje, sofrem uma crise de credibilidade perante a sociedade em razão da morosidade nas decisões. O descompasso entre o volume de processos que entram e os que são baixados é enorme. A fila, ao invés de diminuir, só cresce, prejudicando

principalmente o primeiro grau, que concentra o maior volume de processos. Esse problema afeta a todos e, o que é pior, gera insatisfação e descrédito. JC – O senhor também afirmou recentemente que “não vai admitir que o advogado seja usado como bode expiatório da morosidade do Judiciário”. Onde está a morosidade do Judiciário? MV – Infelizmente, alguns setores do Judiciário, à falta de uma explicação razoável, jogam toda a culpa pela morosidade dos processos no trabalho de defesa dos advogados. Em vez de admitir os problemas internos, buscam meios de limitar ou mesmo acabar com os recursos. A OAB não concorda com propostas de mudanças no sistema recursal por meio de emendas à Constituição, pois entende que qualquer instrumento restritivo à tutela jurisdicional representa uma afronta às cláusulas pétreas e ao sagrado direito de defesa. Esse é o sentido de nossa crítica. JC – Em um ano em que a Constituição Federal completa 25 anos de promulgação, gostaria de saber do senhor, que é um advogado constitucionalista, qual a sua opinião sobre a efetividade e a eficiência daquilo que está no texto da Carta, lembrando-se de que, enquanto alguns críticos apontam o alto de número de emendas sofridas, outros elogiam a prodigalidade do texto. MV – Em junho, ao promover um seminário sobre os 25 anos da Constituição, o Conselho Federal da OAB propôs a inclusão de um novo inciso no artigo 5o da Carta Magna. Por que isso? Para assegurar o direito dos investigados, em qualquer procedimento investigatório, de apresentarem Razões assistidos por advogado. Esse gesto representa nossa crença em uma Constituição que não é apenas uma norma de Direito, mas também um projeto de nação, que deve ser defendido e semeado. Há quem diga que se trata de um texto longo, quando comparado com constituições de outros países democráticos. Já houve até quem sugerisse torná-lo mais enxuto. Contudo, penso que, com a evolução da sociedade, não mais é suficiente um texto constitucional sintético, limitado ao conteúdo das constituições de três séculos atrás. A não efetividade de diversas normas constitucionais não é motivo para a sua supressão, mas deve servir como orientação para a ação da sociedade e do Estado no sentido de seu cumprimento. É o que estamos fazendo. JC – Em cooperação com o Ministério da Educação (MEC), a OAB pretende redefinir o marco regulatório do ensino jurídico no Brasil. Quais são os objetivos da Ordem com essa medida? MV – Por mais de uma década, a OAB vem alertando para o risco da banalização do ensino jurídico a partir da

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abertura desenfreada de faculdades de Direito. Temos mais faculdades do que os Estados Unidos, para se ter uma ideia. A OAB reclamava, mas o governo, por intermédio do Ministério da Educação, fazia ouvidos moucos e continuava autorizando o funcionamento de novos cursos. Dessa vez, porém, como resultado daquilo que chamo de diálogo de alto nível, foi diferente. Nas palavras do próprio ministro da Educação, o balcão foi fechado. Decretou-se uma moratória no sistema de autorizações. E fomos além ao estabelecermos um grupo de trabalho com vistas a definir um novo marco regulatório para o ensino jurídico no Brasil. É um fato histórico. Queremos ouvir a sociedade brasileira, em especial a comunidade jurídica e em particular a comunidade acadêmica, sobre a qualidade do ensino jurídico. Ao todo, estão previstas 13 audiências estaduais, terminando com uma plenária no mês de setembro em Brasília. JC – Isso seria um reflexo do desempenho que vem sendo obtido pelos bacharéis que prestam o Exame da Ordem? MV – O Exame de Ordem aprova uma média de 20 mil bacharelandos por vez. Como são aplicados três vezes por ano, isso dá um número de 60 mil novos advogados. É mais que uma França de profissionais da advocacia. O Exame de Ordem cumpre papel importante, inclusive para proteger o cidadão do profissional sem qualificação. Em pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas, revelouse que a ampla maioria dos bacharéis é favorável à sua permanência. Essa é também a opinião de professores de Direito e de diretores das boas faculdades, que não querem ser niveladas por baixo. Os cursos que primam pela qualidade aprovam quase todos os alunos e bacharéis logo na primeira submissão ao exame.

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JC – Recentemente, a OAB inaugurou no Estado do Rio de Janeiro um núcleo de inclusão digital. Parece que há um direcionamento da Ordem nesse sentido, o de ampliar o número de advogados aptos a peticionar de forma on-line e a operar com o processo judicial eletrônico. Como se apresenta esse cenário na atualidade, qual é a realidade dos advogados e quais são os planos de instalação de novos núcleos como esse? MV – Estamos realizando um grande esforço nesse sentido a partir de uma constatação: ainda é grande o número de advogados que, por motivos diversos, ainda enfrentam dificuldades de acesso à internet. Somos um país continental, com realidades distintas dependendo de cada região. Mesmo em grandes cidades, há locais de acesso à telefonia de banda larga e, em outros, não. A Escola Nacional de Advocacia (ENA) está formatando um programa de inclusão digital para o fornecimento de computadores e softwares, e, em uma etapa avançada, a instalação de centros de inclusão digital em todo o País, que terão professores-monitores treinados pelas Escolas da Advocacia. Estes irão orientar e capacitar advogados, sem custos, no uso das tecnologias para o processamento eletrônico de petições. Calcula-se que haja a necessidade de instalação de 1.100 centros dessa natureza, o que se dará de forma gradual e progressiva, na medida das necessidades e dos recursos disponíveis. JC – O senhor tem uma história pessoal de superação. Qual recado deixaria aos jovens que estão ingressando na carreira agora? MV – Por onde ando, sempre ouço falar que o exercício da advocacia tornou-se, nos dias de hoje, cada vez mais difícil. Há quem fale em crise na advocacia, crise no ensino, crise no Direito. No entanto, prefiro tratar desses problemas como desafios, sobre os quais devemos refletir e reagir. Essa é, portanto, minha mensagem. Mas gostaria, também, de lembrar que a conduta individual do advogado se reflete na sua imagem coletiva. Isso o torna comprometido com a ética. O advogado é indispensável à administração da justiça e não deve ter nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade. Nessas relações, impõe-se o respeito mútuo. É o que diz a lei, o nosso Estatuto. Mas, para finalizar, lembro as palavras do nosso patrono, Rui Barbosa, que, falando aos jovens advogados, clamou para que no perigo das lutas nos seja dado o heroísmo da coragem, ungindo o espírito da verdade para amar o estudo, ungindo o espírito da regeneração para detestar o abuso e ungindo o espírito da obediência para guardar a lei.

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Política e Direito Marcus Faver

Membro do Conselho Editorial Desembargador do TJRJ Presidente do Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil

O excelente artigo do Presidente do Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil, desembargador Marcus Faver, que publicamos a seguir, expressa e sintetiza, com real oportunidade, o discurso que o eminente jurista pronunciou em saudação ao preclaro Desembargador Adilson Vieira Macabu, na festividade de despedida pela sua lamentável aposentadoria compulsória, efetivada no exercício da 2a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. O chamamento que o Desembargador Marcus Faver faz aos operadores do Direito, principalmente aos membros da magistratura, torna-se importante face a situação atual, que demanda a busca do imprescindível entrelaçamento entre a Política e o Direito. A sociedade brasileira vivencia o sobressalto dos movimentos sociais que promovem convulsão nas metrópoles, tornando necessário o uso de instrumentos republicanos que, implícita e necessariamente, importam no exercício da Política e do Direito, sem os quais chega-se à desordem e, consequentemente, à anarquia e ao vandalismo, cuja prática já estamos assistindo nas ruas. A premonição do Presidente do Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil sobre a matéria do seu discurso é muitíssimo válida no momento presente para reflexão dos operadores do Direito, nossos estimados leitores.

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Foto: Arquivo JC

Nota do Editor

A

s últimas manifestações populares no Brasil e, particularmente, no Rio de Janeiro evidenciam uma profunda crise político-institucional em nosso país, gerada pelo fisiologismo; pela infidelidade das elites políticas e dos partidos; pela terrível e enraizada corrupção; pela permanente e crônica deficiência dos serviços públicos; por demandas sociais reprimidas; pelo abandono da coisa pública; pelo constante desprezo às necessidades básicas de qualquer ser humano; pela falta de credibilidade nos homens e nas instituições brasileiras, etc. Nesse quadro social, difícil e angustiante, algumas reflexões, a nosso sentir, fazem-se necessárias, primordialmente pela comunidade jurídica, que, realizando interpretação isenta da conjuntura social e análise doutrinária interpretativa inerente às suas atividades, tem a responsabilidade inafastável de traçar rumos e diretrizes para a sociedade brasileira. Temos a convicção de que há de se buscar o indis­ pensável entrelaçamento entre a Política e o Direito, ou seja, o entrosamento, a harmonia da comunidade

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com a personalidade, pontos extremos e autônomos da corrente social. Na verdade, o problema da Política (com P maiúsculo), isto é, da ciência de bem governar a vida em comum, na polis, não pode ser dissociado do problema do Direito, isto é, da vida pessoal, no plano do jus. Não podemos dissociar o “ser individual” do “social”, uma vez que o individual e o social se coimplicam diale­ ticamente. A Política visa diretamente ao Bem Comum e indiretamente ao bem próprio, individual. O Direito visa diretamente ao bem próprio, individual, e, indiretamente ao Bem Comum. Daí a importância essencial para a vida humana, dessa harmonia entre Política e Direito, tendo o Estado como regente do Bem Comum. Quando a Política nega o Direito, levanta-se o espectro da tirania. Quando o direito nega a Política, o espectro que se levanta é o da anarquia. A tirania, mesmo sob a máscara do simples autoritarismo, é a falsa ordem. Já tivemos amargas e recentes experiências nesta vertente. A Anarquia é a desordem provocada pelo individualismo irresponsável ou pelo vandalismo. Estamos enveredando, perigosamente, por este caminho.

Há que se buscar urgente e essencialmente a reci­ procidade entre autoridades no plano da Política e a preservação das liberdades no plano do Direito. Há que se batalhar com pragmatismo e eficácia pelo estado de direito democrático – pela democracia – pois é ele o regime único que procura reunir Política e Direito no plano da ordem pública. A comunidade jurídica deverá, de olhos e ouvidos bem abertos, atentar para os versos proféticos de Caetano Veloso em “Força estranha”: Eu vi muitos homens brigando. Ouvi seus gritos. Estive no fundo de cada vontade encoberta, e a coisa mais certa de todas as coisas. ..................................................................... Por isso uma força me leva a cantar, Por isso essa força estranha. Por isso é que eu canto, não posso parar. Por isso essa voz tamanha. A comunidade jurídica não pode nesse momento, omitir a sua voz, sob pena de pecar perante a história do Brasil.

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A equidade no Código do Consumidor

Sergio Cavalieri Filho

Membro do Conselho Editorial Desembargador aposentado do TJRJ Procurador-Geral do TCE-RJ

O

1. Introdução Código de Defesa do Consumidor (CDC) refere-se à equidade em dois momentos. Pri­­meiramente, no artigo 7o, ao dispor que “os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade”. No artigo 51, ao tratar das cláusulas abusivas, dispõe o CDC serem nulas de pleno direito “as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que (…) estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.” Em face da pluralidade de significados atribuídos à equidade e dos vários contextos em que a palavra é utilizada (Teixeira de Freitas1 já observava que o vocábulo equidade é uma das palavras mais utilizadas pelos operadores do Direito, sem que consigam, contudo, satisfazer o seu verdadeiro sentido), este estudo tem por finalidade contribuir para a identificação do sentido da equidade no Código do Consumidor. 2. Conceito multissignificativo Desde os seus primórdios, a equidade relaciona-se com justiça, liberdade, igualdade, adequação, proporção, 16

retidão e simetria, razão pela qual é impossível lhe dar uma definição rigorosa. O termo grego epiekeia significa o que é reto, equilibrado, justo. Por sua vez, o termo latino aequitas vai no mesmo sentido. De modo abrangente, é correto dizer que equidade é o valor inspirador do Direito, seu substrato ou sua própria essência, correspondente ao modelo ideal de justiça. Com sentido de direito justo, a equidade foi utilizada por Celso: “Direito é a arte do bom e do equitativo”2. Celso, ao definir assim o ius, quis chamar a atenção para a circunstância de que o Direito era intimamente penetrado pela aequitas: trata-se de um Direito justo. Cícero também considerava a aequitas como a regra moral do direito, afirmando que “o direito é a equidade estabelecida”3. Modernamente, a equidade repousa sobre a ideia fundamental da igualdade real, de justa proporção; indica o sentimento de justiça fundado no equilíbrio, na equanimidade, na serenidade, na imparcialidade, na retidão. Sintetiza princípios superiores de justiça que possibilitam ao legislador e ao juiz criar e aplicar o Direito com igualdade e razoabilidade, estabelecendo igualmente o direito de cada um. Em suma, a equidade é a justiça, não da lei, mas a justiça como ideia, noção ou princípio. 3. Funções da equidade Ao se falar em equidade da lei, equidade da justiça, equidade valor, equidade integrativa, equidade corretiva, equidade interpretativa, equidade quantitativa, esses

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Foto: Arquivo JC

e outros sentidos atribuídos à equidade na realidade indicam as funções que ela pode exercer. Entre tantas, três merecem destaque: a valorativa, a integrativa e a corretiva. 3.1. Equidade valor Como já destacado, a equidade é valor imanente do modelo ideal de justiça, umbilicalmente ligado ao conceito de Direito. Na sua função valorativa, a equidade permeia todos os princípios do Direito, é fundamento da sua coesão e harmonia social. É instrumento do legislador na elaboração da lei, exigindo que este, ao estabelecer a norma jurídica, escolha meios adequados, necessários e proporcionais (razoabilidade). No Direito romano, a equidade valor foi o fundamento da elaboração do direito honorário, que permitiu que se desenvolvesse e se humanizasse o velho ius quiritium, insulado no hermetismo de prejuízos de origem. O mesmo aconteceu na Inglaterra, por volta do século XVI, com a criação das Cortes de Chancelaria, que, sob a invocação da equidade, contribuíram para a formação de um complexo de princípios (rules of equity) transformados em corpo de normas jurídicas4. Há muito que se coloca ser a equidade um instrumento do juiz para integrar o Direito ou para ajustá-lo à realidade. Mas a equidade é antes de tudo parâmetro para a atividade legislativa, ideal condutor de todo o ordenamento jurídico. As leis devem ser justas e, para serem justas, não podem se afastar do ideal de justiça (equidade). Para haver

congruência entre a norma e suas condições externas de aplicação – causa, suficiência, vinculação à realidade –, é preciso se harmonizar com o ideal de justiça. Essa é a oportuna lição de Sílvio Venosa: “Tratamos aqui da equidade na aplicação do Direito e em sua interpretação, se bem que o legislador não pode olvidar os seus princípios, em que a equidade necessariamente deve ser utilizada para que a lei surja no sentido da justiça”5. Agostinho Alvim refere-se, também, à equidade valor, embora a denominando de equidade legal, verbis: “No segundo caso – equidade legal –, a justiça seria aproximada, pois ocorre quando o próprio legislador minudencia a regra geral, especificando diversas hipóteses de incidência da norma. Haveria uma aproximação ao caso concreto, mas não uma justiça perfeita (…) a equidade está no direito e não fora dele”6. Washington de Barros Monteiro lembra que “a equidade, como ideal ético de justiça, deve entrar na formação mesma da lei”7. Nas palavras de Ferreira Borges, “a lei sem equidade é nada; os que não veem o que é justo ou injusto senão através da lei nunca se entendem tão bem como os que o veem pelos olhos da equidade.”8 Em suma, justiça e equidade (valor) são inseparáveis. A justiça é uma virtude que consiste em dar a cada um o que é seu. Representa basicamente uma preocupação com a igualdade e com a proporcionalidade. A primeira, implica uma correta aplicação do Direito, de modo a evitar o arbítrio; a segunda, significa tratar de modo igual os iguais e de modo desigual os desiguais, na proporção de

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“Entretanto, por mais abrangente e minuciosa que seja, a lei não pode prever todas as circunstâncias particulares que se verificam na vida real. Não é raro ocorrer que o caso concreto apresente peculiaridades diversas das previstas ou que não foram previstas na lei.”

sua desigualdade e de acordo com seu mérito. Equivalência e proporção9. Temos como certo que o legislador valeu-se abundantemente da função valorativa da equidade ao estabelecer a vulnerabilidade do consumidor como pedra de toque de todo o sistema consumerista, bem como na modificação e na revisão de cláusulas contratuais excessivamente onerosas, na proteção contra as práticas e cláusulas abusivas e na inversão do ônus da prova entre os direitos básicos do consumidor. O próprio princípio da equivalência contratual, núcleo dos contratos de consumo, tem por fundamento a equidade. O desequilíbrio do contrato e a desproporção das prestações das partes ofendem o princípio da equidade. Enfim, esses e outros revolucionários institutos do CDC foram consagrados em busca do modelo ideal de justiça nas relações de consumo, ou, como está expresso no próprio Código, com base na “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo, na compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico (…), na boa-fé e no equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores” (art. 4o, III). 3.2. Equidade integrativa A lei, por necessidade lógica, é genérica e universal, ou, como observa Ruggiero, “[o] direito positivo, na verdade, não pode proceder senão por preceitos e disposições de caráter geral, pois que não pode observar cada caso individualmente e as circunstâncias particulares de cada relação de fato; regula o que sucede normal e geralmente 18

(id quod plerumque accidit) e, baseando-se na medida dos casos que sucedem mais frequente e vulgarmente, formula por abstração e quase como uma operação estatística a norma fixa e universal à qual todos os casos que se verifiquem no futuro devem obedecer.”10 Entretanto, por mais abrangente e minuciosa que seja, a lei não pode prever todas as circunstâncias particulares que se verificam na vida real. Não é raro ocorrer que o caso concreto apresente peculiaridades diversas das previstas ou que não foram previstas na lei. É aí que tem lugar a função integrativa da equidade, a mais conhecida e usual. Uma vez que a lei falhou por excesso de simplicidade, caberá ao juiz suprir a omissão estabelecendo a regra que o próprio legislador teria estabelecido se tivesse conhecimento do caso. Aristóteles, um dos primeiros filósofos gregos a tratar da equidade integrativa, na sua obra A retórica, disse que, “quando houver um vazio ou uma lacuna na lei, pode o juiz usar da equidade não para corrigir a norma existente, mas para suprir uma lacuna. Essa equidade integradora, que o juiz vai empregar no vazio da lei, é alcançada mediante o exame das circunstâncias do caso e o encontro de uma solução que esteja de acordo com o ordenamento e realize a justiça.”11 Desde Aristóteles, portanto, a equidade integrativa tem por função permitir ao juiz, havendo lacuna ou omissão na lei, resolver o caso, sem chegar ao ponto de criar uma norma, como se fosse o legislador. Como bem arremata Amaral Neto, a equidade é para Aristóteles “o método de aplicação de lei não escrita para remediar a aplicação da lei escrita.”12 Temos, também, como certo que a equidade a que se refere o CDC no seu art. 7o – “[os] direitos (…) que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade” – é a equidade em sua função integrativa, no caso de lacuna no sistema consumerista. Deve, então, o juiz procurar expressar, na solução do caso, aquilo que corresponda a uma ideia de justiça da consciência média, que está presente na sua comunidade. Será, em suma, a justiça do caso concreto, um julgamento justo, temperado, fundado no sentimento comum de justiça. 3.3. Equidade corretiva Além da equidade integrativa, ou além dessa função da equidade, Aristóteles se refere à equidade corretiva, em Ética a Nicômaco, aquela que o juiz vai aplicar quando tiver necessidade de afastar uma injustiça que resultaria da aplicação estrita da lei. É uma espécie de correção à regra geral, que deixa de ser aplicada diante da peculiaridade da espécie. Na sempre lembrada lição de Caio Mário, “considerado o sistema de direito positivo, ainda ocorre a presença da equidade, com a ideia de amenização do

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rigor da lei. Equiparada ou aproximada ao conceito de justiça ideal, a equidade impede que o rigor dos preceitos se converta em atentado ao próprio direito, contra o que Cícero já se insurgia ao proclamar ‘summum ius, summa injuria’.”13 Na sua função corretiva, a equidade permite ao juiz ir além da lei para garantir a aplicação do justo. Por outras palavras, o direito, que é obra da justiça para estabelecer uma relação de igualdade e equilíbrio entre as partes, na justa proporção do que cabe a cada um, permite ao juiz aplicar, em certos casos, a equidade corretiva. Essa equidade vai além da lei, porque procura garantir a aplicação do espírito da lei. Lembra o mestre Ruy Rosado a lição de São Tomás, segundo a qual “a equidade não é contra o justo em si, mas contra a lei injusta; quando ao juiz é permitido o uso da equidade, ele pode ir além da lei para garantir a aplicação do justo. O direito, que é obra da justiça para estabelecer uma relação de igualdade entre as partes, na justa proporção do que cabe a um e a outro, permite ao juiz julgar com equidade.” “Para aplicar a equidade ao caso concreto”, prossegue o Ministro Ruy Rosado, “nesse sentido de que é preciso afastar a lei injusta para obter a aplicação do princípio de justiça, disse ainda Aristóteles que o juiz deve usar a régua dos arquitetos de Lesbos, flexível e maleável, que permite ao engenheiro, ao medir o objeto, acompanhar os contornos desse objeto. Essa, diz ele, é a régua da equidade. Essa sempre é a régua do juiz, pois, ao tratar de aplicar a lei, deve o julgador usar uma régua que lhe permita ajustar a sua decisão à hipótese em exame, ajustá-la àquele caso, para fazer a justiça do caso concreto. Nesse sentido, a equidade é um princípio e uma técnica de hermenêutica, sempre presente em toda aplicação da lei.”14 Temos igualmente como certo que é à equidade corretiva que se refere o CDC quando, no inciso IV, do art. 51, fulmina de nulidade as cláusulas contratuais que sejam incompatíveis com a equidade. A norma dá ao juiz a possibilidade de valoração da cláusula contratual, invalidando-a (total ou parcialmente) naquilo que for contrária à equidade e à boa-fé. O juiz não julgará por equidade (como no caso de equidade integradora), mas dirá o que não está de acordo com a equidade no contrato sob seu exame, dele excluindo o que for necessário para restabelecer o equilíbrio e a justiça contratual no caso concreto. 4. Limites ao emprego da equidade Por todo o exposto é de se concluir que o emprego da equidade pelo juiz deve se limitar às hipóteses previstas no CDC. Em sua função integrativa, permite ao juiz suprir a omissão do legislador e preencher eventual lacuna do sistema consumerista. Por sua função corretiva, permitido

será ao juiz afastar obrigações iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, anular cláusulas contratuais excessivamente onerosas, etc., em busca de uma solução equitativa. A equidade, entretanto, em nenhuma hipótese poderá ser fundamento para afastar o direito positivo e se fazer livremente a justiça do caso concreto. De Page, citado por Caio Mário, já advertia que a equidade “não pode servir de motivo de desculpa à efetivação das tendências sentimentais ou filantrópicas do juiz (…) pois que a própria norma já contém os temperos que a equidade naturalmente aconselha.”15 Por último, observa Caio Mário que a equidade “é, porém, arma de dois gumes. Se, por um lado, permite ao juiz a aplicação da lei de forma a realizar o seu verdadeiro conteúdo espiritual, por outro lado pode servir de instrumento às tendências legiferantes do julgador, que, pondo de lado o seu dever de aplicar o direito positivo, com ela acoberta sua desconformidade com a lei. O juiz não pode reformar o direito sob pretexto de julgar por equidade, nem lhe é dado negar-lhe vigência sob fundamento de que contraria o ideal de justiça. A observância da equidade, em si, não é um mal, porém a sua utilização abusiva é de todo inconveniente. Seu emprego há de ser moderado, como temperamento do rigor excessivo ou amenização da crueza da lei.”16

Notas FREITAS, Teixeira de. Vocabulário jurídico: com apêndices. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1883. Verbete “equidade”, p. 66. 2 ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. v. 1. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense, [S.d.], p. 96. 3 Idem. 4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. I. 20.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 76. 5 VENOSA, Silvio. Direito Civil: parte geral. 12.ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 26. 6 ALVIM, Agostinho. Da equidade. In Revista dos Tribunais, v. 797, p. 767-770. 7 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: parte geral. v. 1. 25.ed. São Paulo: Saraiva, p. 44. 8 BORGES, Ferreira. Diccionário jurídico-comercial. Pernambuco: Typographia de Santos e Companhia, 1843, v. I. Verbete “equidade”, p. 150. 9 AMARAL NETO, Francisco dos Santos. A equidade no Código Civil brasileiro. In R. CEJ. Brasília, n. 25, p. 17, abr./jun. 2004. 10 RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil, Ed. Saraiva, 1971, 3.ed. v.I, p. 27 11 apud Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Comentários ao novo Código Civil, arts. 472 a 480. v. VI, tomo II, Gen/Forense, p. 155. 12 Op. cit. p. 19. 13 Op. cit. p. 76. 14 Op. cit. p. 154. 15 Op. cit. p. 77. 16 Op. cit. p. 76-77. 1

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A segurança jurídica nos negócios imobiliários

Sylvio Capanema

U

Membro do Conselho Editorial Desembargador aposentado do TJRJ

ma das mais relevantes conquistas da nossa ordem jurídica, implantada em nosso país após o advento da Constituição Federal de 1988 e recepcionada e ampliada pelo Código de Defesa do Consumidor e pelo Código Civil de 2002, foi a introdução, em todos os negócios jurídicos, das “cláusulas gerais” de boa-fé objetiva e da função social do direito, que passam a lhes ser implícitas. Isso permite que o juiz, quando provocado, “penetre” no interior dos contratos, levantando a ponta do véu que os encobre, na feliz expressão dos doutrinadores alemães, para aferir se estão eles a produzir efeitos positivos, inclusive para a sociedade como um todo, e se a conduta das partes em todas as suas fases, desde as tratativas, é a que teriam pessoas honestas. A boa-fé, que no passado constituía mera exortação ética que se dirigia aos contratantes, converteu-se em dever jurídico, desempenhando no Código Civil de 2002 uma tríplice função: a hermenêutica, ao se transformar em método de interpretação dos negócios jurídicos (artigo 113); a de fiscal da conduta das partes, na sua execução (artigo 422); e a de equilibradora da equação econômica dos contratos (artigo 478). Como figuras parcelares da boa-fé negocial, e a ela inerentes, surgiram os princípios da lealdade, da confiança e da preservação dos contratos, que constituem, hoje, o oxigênio da segurança jurídica, sem a qual nenhum mercado sobrevive. 20

A enorme densidade econômica e social de que se revestem os negócios imobiliários, que tornam realidade o mais acalentado sonho de todos os brasileiros, que é o de adquirir a casa própria, está a exigir, cada vez mais, que eles se alicercem na transparência, na lealdade e, principalmente, na mais absoluta segurança jurídica. E acreditamos que três pilares ajudem a construir esse resultado: • a segurança jurídica de todos os envolvidos (do dono do terreno ao adquirente final), de forma a garantir que todos recebam, na proporção combinada, o retorno do investimento feito; • a garantia de que os negócios sejam sustentáveis, ou seja, possuam viabilidade econômica definida com base em padrões validados pelo mercado; • a transparência integral desde a fase de planejamento. A preocupação prioritária do comprador e do investidor, especialmente estrangeiro, é com a segurança e a sustentabilidade do empreendimento, e não mais com a inflação, já que, quanto a esta, foram criados remédios econômicos, mas nenhuma panaceia contra a insegurança jurídica. Ao lado dos cálculos matemáticos para que se sustente a estrutura do edifício, o mercado tem que passar a construir, desde os seus alicerces, a segurança jurídica do empreendimento no interesse majoritário dos incorporadores, construtores, corretores e adquirentes de unidades.

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Foto: Rosane Naylor

“A preocupação com o equilíbrio ético e econômico dos contratos é missão de todos, inclusive dos advogados que atuam no mercado imobiliário.”

Para pavimentar essa estrada, alguns elementos nos parecem extremamente úteis: • o patrimônio de afetação; • no caso de operações complexas, como as operações hoteleiras e de built to suit, a celebração prévia de todos os contratos que serão necessários, tais como construção, gestão hoteleira, etc.; • as regras de governança corporativa; • as cláusulas de remuneração atrelada ao desempenho. Como a conscientização maior dos direitos, e dos instrumentos para defendê-los e exercê-los por parte de uma sociedade cada vez mais informada, pode inundar o Poder Judiciário por uma oceânica avalanche de ações, a preocupação com o equilíbrio ético e econômico dos contratos é missão de todos, inclusive dos advogados que atuam no mercado imobiliário. É importante louvar e ressaltar a relevância do paciente e produtivo trabalho que vem se desenvolvendo, reunindo magistrados, membros do Ministério Público, advogados e empresários do setor imobiliário, em sucessivos encontros, com o objetivo de encontrar melhores práticas para a formatação dos contratos imobiliários, na esperança de, pelo menos, mitigar os conflitos que hoje ainda existem no mercado. Divergências que antes pareciam irreconciliáveis, entravando o crescimento do setor, foram pacificadas, sendo algumas delas convertidas em súmulas do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Sobre aquelas em que ainda não se logrou um consenso, foram criadas comissões mistas, que prosseguem nos debates. Essa proposta coincide com o movimento necessário de desjudicialização da sociedade brasileira, para que se alivie a asfixia a que está condenado o Poder Judiciário em razão direta do volume quase incontrolável da demanda. A tendência saudável do mercado é a de criar práticas uniformes, que se submetam aos princípios já referidos da boa-fé e da função social, velando pelo equilíbrio ético e econômico dos contratos. Estamos fortemente convencidos de que o desenvolvi­ mento do mercado imobiliário, tão importante para a sociedade, passa, necessariamente, pela confiança recíproca entre incorporadores, investidores e adquirentes de unidades. Para usar uma expressão da moda, “as vozes das ruas” e dos canteiros de obras clamam por segurança jurídica, e o mercado imobiliário não se fez, perdoem o trocadilho inevitável, imóvel, mas, ao contrário, antecipou-se e tem dado provas de que caminha a passos firmes nessa direção. Como advogado com profundas e inabaláveis raízes, alegra-me essa consciência, e me encho de orgulho por participar, de alguma forma, dessa construção típica dos novos tempos: um mercado imobiliário seguro, ético e sustentável.

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Uma aproximação dos caminhos da responsabilidade por danos

André R. C. Fontes

Membro do Conselho Editorial Desembargador do TRF 2a Região

I. É por todos conhecida a ideia de que a responsa­ bilidade está relacionada às noções de obrigação e de garantia. O predomínio de concepções unitárias e de estrutura nos dispensa de retomar a polêmica da definição de responsabilidade por danos. A falta de consistência de algumas ideias, entretanto, não nos afasta da lembrança das raízes da palavra “responsabilidade”, originada da palavra latina sponseo, usada pelos romanos no contrato para, solenemente, obrigar o devedor. É que o problema da responsabilidade por danos, tal como conhecemos em nossos dias, não se formou senão após um longo desenvolvimento. Nos povos primitivos, imperava a vingança privada e a reparação do dano pela Lei de Talião, com sua máxima “olho por olho, dente por dente”. E, desde essa época, já se distinguiam de alguma maneira os danos entre particulares e aqueles relativos às autoridades. Foi sob a influência de ideias gregas, com as leis das XII Tábuas, que assumiram um certo caráter sistemático na Roma antiga. Se pensarmos que a lex Aquilia de damno sequer exigia a culpa do autor do dano, podemos constatar o longo tempo que necessitou o curso de seu aperfeiçoamento. Para conhecermos mais efetivamente a origem do termo “responsabilidade”, lembramos que ele entrou há pouco tempo na linguagem jurídica, possivelmente extraído de autores ingleses por filósofos continentais. 22

II. A responsabilidade vem definida como extracon­ tratual em contraposição à responsabilidade contratual. É chamada de responsabilidade aquiliana por derivação da lex Aquilia de damno, que, no ano II a.C., disciplinou uma área em boa medida coincidente com aquela hoje coberta pelo ilícito extracontratual, ou ainda como responsabilidade civil, invocada nesses termos para se contrapor à responsabilidade penal. A melhor maneira de entender a responsabilidade por danos é a sua caracterização como uma responsabilidade que prescinde da existência de uma relação obrigacional entre os sujeitos (a vítima e o outro, o causador do dano), o que levaria a se identificar com a responsabilidade resultante de uma obrigação, e ser o caso do ressarcimento do dano, como é o caso da responsabilidade contratual, que supõe uma relação concreta existente; e, por exclusão, não ser penal a responsabilidade. A injustiça de a vítima ter de suportar o prejuízo que agrava, irremediavelmente, sua esfera econômica de interesse conduz à melhor designação de responsabilidade por danos. Dado que, na vida moderna, seja pela multiplicação das atividades, seja pela complexidade técnica dos meios empregados, os problemas e os embates alargam-se enormemente, impondo o exame de todo fato doloso ou culposo que cause prejuízo a outrem corresponderá a um dano injusto, que obrigará aquele que o praticou ao ressarcimento do dano.

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Foto: Arquivo JC

III. Na aferição tradicionalmente considerada, concorrem os seguintes requisitos: • o fato; • a ilicitude do fato; • a imputabilidade do fato danoso; • o dolo ou a culpa do causador; • o nexo de causalidade entre o fato e o dano; • o dano. Na técnica da responsabilidade por danos em nosso tempo, três questões parecem orientar a sua aplicação: • se há responsabilidade; • quem é responsável; • quanto pagar. A indagação sobre se o dano verificado deve ser ressarcido ou não parece que se tornou a questão fundamental, pois ela constitui o coração da responsabilidade por danos, ou seja, a seleção entre os danos que devem ser ressarcidos e os que não devem. A segunda questão se abre sobre o pressuposto de que a primeira tenha uma resposta afirmativa: caracterizado o dano, ele seria ressarcível? Surge, então, a necessidade de se definir quem é obrigado a ressarcir o dano injustamente causado. A terceira questão pressupõe que o dano seja ressarcível e que seja individualizada a responsabilidade: trata-se, nesse aspecto, o ponto de estabelecer qual soma

de dinheiro o responsável deverá pagar à vítima, ou de qual modo deverá ser reparado o dano ocorrido. IV. Uma função compensatória ou reintegrativa é encontrada na responsabilidade por danos. O objetivo é compensar o dano pela perda ocorrida e reintegrar o patrimônio injustamente diminuído, reportando-se à consistência que tinha antes do fato danoso. Essa é uma função que corresponde a um elementar critério de justiça substantiva. Há, entretanto, um limite correspondente que, de modo exclusivo ou prevalente, determinará o ponto de vista individual do prejudicado, que sabidamente não opera nenhuma vantagem da sociedade no seu conjunto. Depois do ressarcimento, fica a indagação de se a função compensatória realiza plenamente a vítima, pois ela não é inteiramente satisfatória do ponto de vista social. E, em muitos casos, não se consegue satisfazer nem mesmo a vítima. É o caso do valor pago ao filho pela morte do pai, pois, em verdade, jamais compensará, adequadamente, a perda grave e repentina. Disso resulta que a responsabilidade opera como instrumento eficiente, do ponto de vista individual e social, que, além da sua função compensatória, outra resulta: a função preventiva. Limitar-se a intervir depois que o dano ocorreu, para depois retribuir o peso entre o causador do dano e o responsável, é socialmente menos

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“Essa nova concepção, que valoriza a função compensatória, poderia se exprimir na concepção segundo a qual toda atenção se apresenta, de uma ampla justiça restauradora a ser prestada pelo causador, em benefício da vítima.”

relevante do que atuar antes que o dano se verifique, com o fito de impedir que se produzam ou ao menos sejam reduzidos os números do resultado danoso. A vantagem resulta tanto para a vítima, como para a sociedade, para prevenir violações aos interesses psicofísicos da vítima ou mesmo a destruição de sua riqueza ou da própria sociedade. Esse objetivo é alcançado com a efetividade da ameaça de sanção estabelecida pela lei civil. Por impor o ressarcimento, menos danos se consumam, pois o temor de indenizar presume um comportamento de maior atenção e prudência, a ser empregado nas atividades, com cautela ou de segurança, de modo a não causar danos. Pode-se tomar em consequência uma terceira função da responsabilidade por danos: a função sancionatória e até mesmo educativa. Ela pode ser resumida da seguinte maneira: punir o responsável por seu comportamento reprovável de modo a desincentivar a sua prática. Essa função deriva do caráter ilícito, consistente na violação do comando normativo. E o comportamento mencionado não é somente ilícito, mas também socialmente reprovável. Uma concepção ética poderia ser identificada, mas cremos que hoje a dimensão ética parece ficar atenuada e se afirma uma concepção prática da responsabilidade por danos. Dessa forma, não é essencial que, em nome de um princípio abstrato de justiça, seja invocado para responsabilizar o causador do dano. O essencial é que a vítima receba ressarcimento proporcional e equivalente ao seu dano. Essa nova concepção, que valoriza a função compensatória, poderia se exprimir na concepção segundo a qual toda atenção se apresenta, de uma ampla justiça restauradora a ser prestada pelo causador, em benefício da vítima. Dessa maneira, duas questões devem ser observadas: • se houve o dano injusto; • quem deverá ressarci-lo. 24

V. O problema de responsabilidade por dano consiste essencialmente nisto: o de selecionar entre os danos quais são os que dão lugar à responsabilidade e os atos que deixam o causador do dano a ela imune de responsabilidade; ou, de forma mais sintética: selecionar os danos indenizáveis e os danos não indenizáveis! Ampliar as fronteiras da responsabilidade por danos e traçar um novo perfil, mais moderno e prospectivo, com o propósito de alcançar, com justiça e equidade, mais além da culpa, sem excluí-la, e mais além da responsabilidade individual, sem descaracterizá-la, impõe o fator de imputação ou atribuição para legitimar, passivamente, a quem se atribua o ressarcimento. Na sociedade moderna, será necessário estender os limites do âmbito de atividade danosa na mesma medida em que o homem desborda no acionar sua órbita tradicional nessa aventura que enfrenta com um universo totalizador e competitivo. Somente dessa forma atenderemos às necessidades de uma era tecnológica, que apresenta novos problemas à indenização por danos. Os juristas terão o desafio de encontrar respostas que logrem adequar o direito aos novos caminhos resultantes de produtos novos, tais como danos nucleares, ecológicos e aqueles resultantes da tecnologia da informática e da biotecnologia.

Referências Bibliográficas BUSTAMANTE ALSINA, Jorge. El perfil de la responsabilidad civil al finalizar el siglo XX. In BUERES, Alberto José e CALUCCI, Aída Kemelmajer de (org.). Responsabilidad por daños en el tercer milenio. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1997. CONCEPCIÓN RODRÍGUEZ, José Luís. Derecho de danos. Barcelona: Bosch, 1997. GESUALDI, Dora Mariana. Responsabilidad civil: fatores objetivos de atribuición, relación de causalidad. Buenos Aires: Ghessi-Carozzo, 1987. HERNÁNDEZ, Gloria María. Derecho de la responsabilidad. 2.ed. São Domingos: La Filantrópica, 2006. LIMA, Alvino. Culpa e risco. 2.ed. revista por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: RT, 1999. MOSSET ITURRASPE, Jorge. Responsabilidad por daños. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 1992. PINTO, Helena Elias. Responsabilidade civil do Estado por omissão na jurisprudência do STF. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. PIRRO, Massiminiano di. Responsabilitá Civile. Nápoles: Simone, 2007. ROPPO, Vincenzo. Istituzioni di diritto pivato. 4.ed. Bolonha: Monduzzi, 1998. ROSENKRANTZ, Carlos F. La responsabilidad extracontractual. Barcelona: Gedisa, 2005. SILVA PEREIRA, Caio Mário da. Responsabilidade civil. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. TORRENTE, Andréa. SCHLESINGER, Piero. Manuale di diritto privato. 18.ed. Milão: Giuffrè, 2007. TRABUCCHI, Alberto. Istituzioni di diritto civile. 44.ed. Nápoles: Pádua, 2009. VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A. Responsabilidad por daños. Buenos Aires: Depalma, 1994.

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Foto: Renato Stockler

D om Quixote, por Ada Caperuto

Combate à fome e mudança de paradigmas No Brasil, mais de 26,3 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçados ao ano. Esse montante poderia alimentar 35 milhões de brasileiros por mês. Sediada em São Paulo, a ONG Banco de Alimentos tem a missão de transformar radicalmente esse quadro, estendendo sua atuação à mudança comportamental.

N

osso país registra um dos maiores Produtos Internos Brutos (PIBs) e uma das maiores arrecadações de impostos no mundo. É o 4o maior produtor mundial de alimentos, gerando 126% das suas necessidades alimentícias. De toda essa riqueza, se desperdiça 26,3 milhões de toneladas de alimentos ao ano: o que poderia alimentar 35 milhões 26

de brasileiros por mês. Somente em hortaliças são desperdiçadas mais de 7 milhões de toneladas, ou seja, cerca de 35% de tudo o que se produz. Ao desperdiçarmos toneladas de alimentos diaria­mente, contribuímos para a degradação econômica e social do nosso País, prejudicando a saúde de milhões de pessoas, cidadãos que sofrem com a irracionalidade do desperdício.

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Somos o 6o país com maiores índices de subnutrição no mundo e contamos com 65,8 milhões de brasileiros (34,2% da população) em situação de insegurança alimentar, o que significa o acesso irregular e inconstante a alimentos em quantidade e qualidade adequadas, comprometendo o estado de saúde em seus diversos aspectos: físico, mental e/ ou social. Diante desse contexto, a ONG Banco de Alimentos, organização não governamental fundada em 1998 pela carioca Luciana Chinaglia Quintão, procura fazer o seu papel para mudar essa dura realidade. Formada em economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e pósgraduada em administração pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ela vive em São Paulo desde o final da década de 1980. Foi a capital paulista, e o bairro do Pacaembu, que ela escolheu para sediar a ONG, que tem como principal objetivo minimizar os efeitos da fome por meio do combate ao desperdício e da promoção da educação e da cidadania. “Meu trabalho nasceu pelas minhas experiências, vivências e observações que me levaram à consciência de que somos responsáveis por tudo que está à nossa volta. Somos nós mesmos que, através de nossos atos, criamos a realidade dentro da nossa casa, dentro dos nossos relacionamentos, da nossa comunidade, cidade, país, continente e planeta.”

Luciana cercou-se de uma equipe que partilha dos mesmos ideais, mais exatamente 13 pessoas, que são os colaboradores da equipe, como a gerente da ONG, a nutricionista Isabel Marçal. Ela explica que a Banco de Alimentos atua de três maneiras distintas e interligadas. A primeira frente de atuação é “minimizar os efeitos da fome e combater o desperdício de alimentos”. A ONG realiza o trabalho de “colheita urbana”, ou seja, arrecada alimentos que são sobras de comercialização e excedentes de pro­ dução, e os distribui para instituições filantrópicas. “Estes alimentos, que teriam o lixo como destino simplesmente por terem perdido seu valor de comercialização, mas estão próprios para o consumo, constituem-se na matéria-prima do trabalho”, diz Isabel. Mensalmente são arrecadadas, em média, 35 toneladas de alimentos. Tendo como área de abrangência a cidade de São Paulo e a região da grande São Paulo, a ONG atende a uma população de aproximadamente 22 mil pessoas, distribuídas pelas 43 instituições parceiras. São crianças, adolescentes, idosos, portadores de deficiências físicas e mentais, portadores de patologias, como AIDS, câncer e doenças cardiovasculares, além de moradores de rua – portanto, pessoas não economicamente ativas e sob risco alimentar.

Foto: Renato Stockler

Luciana Chinaglia Quintão, fundadora e presidente do Banco de Alimentos 2013 Agosto | Justiça & Cidadania 27


Fotos: Renato Stockler

Outro foco de atuação da ONG está na “promoção de ações educativas e profiláticas voltadas às comunidades atendidas”. De acordo com Isabel, para que as entidades atendidas aprendam a manipular, aproveitar integralmente os alimentos e a consumi-los adequadamente, a fim de ajudar a combater a desnutrição, subnutrição e outros desvios, a ONG ministra cursos, palestras, workshops e oficinas culinárias. São realizados encontros mensais, tendo como público um representante de cada instituição, cozinheiras, cuidadores ou auxiliares. “Com o objetivo de unir o mundo acadêmico ao das demandas sociais, mantemos parceria com o Centro Universitário São Camilo. Isso permite que alunos do último ano do curso de nutrição realizem estágio curricular, desenvolvendo trabalhos e pesquisas científicas, como avaliações antro­ pométricas da população atendida, a fim de traçar intervenções nutricionais para a melhoria do estado nutricional”, diz a gerente. Um terceiro pilar de atuação constitui-se em “expandir suas ações e conhecimentos para fora das áreas circunscritas onde existe o problema concreto da fome”. A proposta, com isso, é atingir a sociedade como um todo, no sentido de promover uma mudança de cultura permanente, incentivando a ação por meio da educação. O principal público-alvo são aqueles definidos como “cidadãos do amanhã”: crianças, adolescentes e jovens, para quem a ONG desenvolveu um projeto pedagógico. “Queremos despertar a responsabilidade de cada um na construção do mundo e de sua interligação com outras pessoas e o meio ambiente; o respeito à humanidade e à natureza; o fim do preconceito e a importância do desenvolvimento autossustentável, incentivando-os ao questionamento”, esclarece Isabel. Não ao desperdício O Banco de Alimentos deseja mudar radicalmente o binômio fome/desperdício. E está consciente de que, para isso, é necessário modificar atitudes e costumes que as pessoas cultivam em seus lares. Um dos mecanismos para atingir essa meta é a realização de oficinas culinárias, palestras em eventos, empresas, faculdades, entre outras organizações, para ensinar ao consumidor como aproveitar integralmente os alimentos, utilizando suas partes não convencionais para criar receitas saborosas, econômicas e nutritivas, além de oferecer dicas para compra consciente, como evitar sobras de preparações, bem como higiene e armazenamento adequado dos alimentos para aumentar sua vida útil. A iniciativa da ONG Banco de Alimentos representa a formação de um ciclo sustentável: ao passo que são arrecadados excedentes de produção e comercialização, diminui-se o acúmulo de lixo orgânico e o desperdício de alimentos próprios para consumo, que complementarão

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a alimentação de milhares de pessoas em situação de risco alimentar e social. Há também, dessa forma, um favorecimento à inclusão social desses indivíduos, resultante da melhoria da saúde e do estímulo ao desenvolvimento psicomotor. “Isso porque, além de visarmos uma ali­ mentação balanceada por meio de realização de ações profiláticas e educativas voltadas às comunidades atendidas, beneficiamos somente instituições que possuam em seu programa ações de inclusão social e conscientizamos a população em geral em relação à cultura do não desperdício, estimulando o abandono do preconceito em relação às partes não convencionais dos alimentos, como cascas, folhas, talos e sementes”, diz a gerente Isabel. Conjunto de ações De acordo com Luciana, as ações da ONG procuram tratar, em conjunto, o problema da fome, ou melhor, das várias fomes, na sua origem, isto é, na forma em que a nossa sociedade está organizada e no grau de consciência dos indivíduos que a compõem. “Se o consumidor muda, o fabricante muda. Se o eleitor muda, o político muda, e assim por diante. Acreditamos que todo ser humano é cocriador da realidade, e, portanto, cabe a nós promovermos a

mudança que queremos ver no mundo”, diz a presidente do Banco de Alimentos. A gerente Isabel reforça que não são apenas os políticos que devem dar sua parcela de contribuição para mudar o cenário no País. “Empresários e cidadãos também precisam fazer sua parte. De qualquer maneira, os seres humanos só fazem mudanças quando sentem que têm significado para eles mesmos. Espero que, cada vez mais, pessoas sintam ser significativa a solidariedade entre seres humanos assim como a vontade de criar modelos de sociedade baseadas em justiça e verdade onde o bem comum prevaleça”, declara. O trabalho da ONG converge para uma iniciativa única por praticar a sustentabilidade e envolver não só apenas questões nutricionais, como a responsabilidade social, econômica e até política, visando uma mudança efetiva de nível de desenvolvimento econômico e social. “Afinal, a sexta economia do mundo não pode mais ter 1/3 de seus cidadãos vivendo em insegurança alimentar, pode? E ser uma das últimas nações em educação e tratamento de águas, pode? A resposta para esta e para tantas outras discrepâncias como esta é: não! Que venha a consciência para acabarmos com tantas fomes!”, sentencia Luciana.

Arrecadação de alimentos 1999-2011(*)

Atendimentos 18

Casas de apoio

19

Associações de menores

9

Creches

3

Asilos

3

Albergues

2

Hospitais

Público atendido 5%

Idosos

39%

Crianças e adolescentes

56%

Adultos

Obs.: (*) em quilos / média mensal de 2011 = 33.296,48

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Foto: Bruno Gontijo

Judiciário do século XXI depende de gestão democrática Herbert Carneiro

J

Presidente da Amagis Desembargador do TJMG

á está refletido e maduro que o Judiciário e suas ações precisam, urgentemente, melhorar e se modernizar, especialmente em sua gestão e na prestação desse serviço público especializado e cidadão chamado Justiça. Ainda estamos distantes do Judiciário do século XXI que queremos e idealizamos e que a própria sociedade demanda. Muito há o que se fazer, e, sem democracia, não há como avançar. 30

Se os magistrados querem e descobriram a importância de fazer política associativa e institucional, não podem progredir sem vivenciar e praticar a democracia interna, seja nos fóruns, nos tribunais e com a própria sociedade. A melhoria e a modernização do Judiciário devem estar vinculadas às demandas da sociedade. Há muito, ficaram superadas a concepção e a prática do poder que distanciam e distinguem, ou afastam, o Judiciário do cidadão.

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Democracia se pratica por inteiro, razão pela qual a magistratura brasileira defende, historicamente, a proposta de eleições diretas para a direção dos tribunais de modo que todos os magistrados possam contribuir pelo aperfeiçoamento do Poder Judiciário. As eleições diretas representam um largo passo à frente pela possibilidade de transparência e de eficiência, e um avanço no modelo de gestão do Poder Judiciário. Os tribunais carecem de um planejamento estratégico, e o gestor maior precisa ter esse comprometimento e propostas, permitindo uma Justiça mais próxima do cidadão. Além da eficiência administrativa, outra razão que nos move é a participação dos juízes e das juízas na escolha da direção, do futuro e dos rumos do Judiciário. Afinal, são eles que estão na ponta do atendimento e, por essa mesma razão, sabem o que é melhor para o cidadão e o que fazer para tornar a Justiça mais útil e mais ágil. São eles, também, os responsáveis diretos pelas mais democráticas e mais ágeis eleições do mundo. Se são agentes políticos como os desembargadores, não há razão para serem excluídos do mesmo direito de seus colegas do segundo grau na hora de escolher a direção. Ainda hoje, 28 anos após a redemocratização do país e 25 da promulgação da Carta Magna, estranhamente só 7% da magistratura elegem o comando das Cortes. Coincidentemente ou não, é o mesmo período no qual defendemos a criação de um novo estatuto da magistratura à luz da Constituição cidadã e do aperfeiçoamento democrático. Neste momento em que o Congresso Nacional se debruça sobre o tema, é fundamental que o debate seja ampliado para todos os magistrados e, principalmente, para a sociedade. Tramitam, hoje, duas PECs no Congresso (no 187/2012, na Câmara, e no 15/2012, no Senado) dispondo sobre a participação de juízes no processo de escolha de seus representantes nos tribunais estaduais, regionais, federais e do Trabalho. A democracia deve permear também o Poder Judi­ ciário, conferindo-lhe aquilo que já existe nos Poderes Executivo e Legislativo, que é a escolha direta de seus representantes. A medida é um passo fundamental para legitimar outras reivindicações históricas do Judiciário e da sociedade, como a revisão da ultrapassada Lei Orgânica da Magistratura (Loman) e a conquista de sua plena autonomia financeira e orçamentária. São temas que afligem a magistratura e o Judiciário como um todo. A proposta se incorpora a outras que pretendem inovar dentro da Justiça brasileira, fazer com que ela seja mais célere, valorize os juízes e as comarcas longínquas, com condições de trabalho e recursos adequados, para que eles possam atender melhor ao cidadão.

“A magistratura já é, em si mesma, bastante politizada, e inexistem motivos para que fique de fora das principais decisões do Judiciário. Os juízes querem participação e transparência, pois sequer são consultados, na hora da definição do orçamento das comarcas em que atuam e as quais dirigem, da destinação dos recursos públicos.”

A magistratura já é, em si mesma, bastante politizada, e inexistem motivos para que fique de fora das principais decisões do Judiciário. Os juízes querem participação e transparência, pois sequer são consultados, na hora da definição do orçamento das comarcas em que atuam e as quais dirigem, da destinação dos recursos públicos – se é mais importante construir um prédio de luxo ou investir nos fóruns e na segurança deles. Já passou da hora de os juízes serem integrados ao tribunal do qual fazem parte, apesar de se submeterem ao mesmo presidente que os desembargadores. Trata-se de uma mudança mais ampla do que um mero desejo classista, corporativo ou associativo. Somente por meio de um projeto de gestão democrática é que o Poder Judiciário alcançará condições de melhorar sua capacidade de trabalho.

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Dez anos do Estatuto do Idoso Alexandre Gonçalves - Advogado Francini Rodrigues - Advogada

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Foto: Mariana Fróes

N

os últimos dias, presenciou-se um clamor social nacional por avanços de diversas ordens que ganharam a mídia e a atenção prioritária do Poder Executivo, sendo as reivindicações populares acolhidas em sua maioria. A sociedade, quando se reúne com objetivos concretos requerendo melhorias, almeja o alcance do Estado Democrático de Direito com o exercício pleno da cidadania. Para o advento do Estatuto do Idoso, não foi diferente. A Lei no 10.741/2003 foi fruto de impulsos sociais que tiveram o importante papel de ressaltar a fragilidade dos idosos e a necessidade de especial atenção quanto à criação de normas que tornassem concretos os seus direitos, fazendo agilizar a tramitação de projetos de lei que visavam acerca de sua proteção. Fato é que grupos sociais vulneráveis devem ter tratamento diferenciado de forma a equalizar a sua condição com a das maiorias. O Legislativo já havia amparado os direitos da criança e do adolescente, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente; os do consumidor, com a criação do Código de Defesa do Consumidor; sendo o Estatuto do Idoso um marco para o resgate do exercício da cidadania por quem tanto contribuiu com a sociedade. Com os números mundiais demonstrando que a população idosa se quadruplicará até 2050, a Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu a importância da inserção do envelhecimento no contexto das estratégias para a erradicação da pobreza, bem como dos esforços para conseguir a plena participação de todos os países em desenvolvimento na economia mundial. Para a ONU, o envelhecimento não deve ser simplesmente uma

Alexandre Gonçalves, advogado

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questão de segurança social, e sim deve antes ser visto no contexto mais geral das políticas de desenvolvimento e econômicas. O mundo está no centro de uma transição do processo demográfico única e irreversível, que irá resultar em populações mais velhas em todos os lugares. A proporção de pessoas com 60 anos ou mais deve duplicar entre 2007 e 2050, e seu número atual deve mais que triplicar, alcançando dois bilhões em 2050. Na maioria dos países, o número de pessoas acima dos 80 anos deve quadruplicar para quase 400 milhões até lá. As pessoas mais velhas têm, cada vez mais, sido vistas como contribuintes para o desenvolvimento, e suas habilidades para melhorar suas vidas e suas sociedades devem ser transformadas em políticas e programas em todos os níveis. Atualmente, 64% de todas as pessoas mais velhas vivem em regiões menos desenvolvidas – um número que deverá aproximar-se de 80% em 2050.1

Foto: Mariana Fróes

Francini Rodrigues, advogada

A Organização das Nações Unidas estabeleceu Princípios das Nações Unidas para as Pessoas Idosas, adotados pela Resolução no 46/91 da Assembleia Geral, evidenciando uma preocupação supranacional com a proteção aos mesmos. Não se pode deixar de registrar que a inovação do Código Civil em destinar o capítulo II especialmente à proteção dos direitos da personalidade2, estabelecendo inclusive sanções quando sofrer ameaça ou lesão, até quando o lesado já é morto3, também teve capital influência no Estatuto, que, em seu art. 8o, positivou que “o envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social”, criando mecanismos de fiscalização de entidades e infrações administrativas, estabelecendo ainda a possibilidade de apuração judicial com a facilitação do acesso ao idoso e a garantia de prioridade de tramitação de seus processos. Dessa forma, a responsabilidade pela garantia da dignidade, do respeito e da liberdade aos idosos é da sociedade, que pode sofrer punições em caso de infringência. O que se almeja da sociedade é que o cuidado com os idosos seja um ato natural, e não forçado pelo temor de punições. Ao longo destes dez anos de vigência do estatuto, pôde-se perceber claramente o impacto das normas protetivas aos idosos e a efetiva implementação de medidas sociais, tais como: (i) a tecnologia contribuiu de forma significativa para a organização do sistema de transporte coletivo no Brasil por meio da implementação da bilhetagem eletrônica, que facilitou o exercício da gratuidade nos transportes públicos e acabou com qualquer espécie de segregação que existia entre usuários pagantes e não pagantes; (ii) núcleos especializados para o atendimento a idosos são vistos em várias esferas, tais como Defensoria Pública, Ministério Público, entidades sem fins lucrativos; (iii) atendimentos prioritários em bancos, aeroportos, rodoviárias, estabelecimentos comerciais; (iv) prioridade de tramitação dos processos judiciais, entre outros. O presente artigo conferirá enfoque ao Estatuto do Idoso no que alude aos transportes públicos, desde a sua criação até os dias atuais, com os entendimentos dos tribunais e as interpretações que vêm sendo dadas aos dispositivos legais. Para tanto, não há como dar início à presente análise sem proceder à leitura da CRFB/88, que estabelece a temática atinente à gratuidade nos transportes, dispondo no § 2o do art. 230 que: “Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos.” O Estatuto do Idoso, que conta com status de lei nacional, cuidou de dispor acerca das garantias de transporte no capítulo X – arts. 39 a 42. No art. 39, resta “assegurada a gratuidade dos transportes coletivos públicos urbanos

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Art. 1o - As empresas permissionárias e concessionárias de transporte coletivo intermunicipal de passageiros são obrigadas a transportar gratuitamente as pessoas com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais, denominados idosos, em veículos que operam o serviço convencional. § 1o - Considera-se serviço convencional aquele operado por ônibus urbanos que admitem o transporte de passageiros em pé, ou por micro-ônibus quando incorporados às frotas de linhas de características urbanas (tarifa SA). § 2o - Caso o quadro de horários estabeleça intervalo entre as viagens superior a 3 (três) horas no serviço convencional, o idoso terá direito ao acesso gratuito no serviço seletivo ou especial.

Pela redação acima, a gratuidade nos serviços seletivos apenas ocorre em situações excepcionais. Não se trata de criar qualquer espécie de barreira ou de desrespeitar o estatuto, mas de observar a disposição constitucional que estabelece que, para cada benefício da seguridade social, deva existir a respectiva fonte de custeio a subsidiá-lo, o que inexiste para os serviços seletivos. 34

Foto: Kcris Ramos

e semiurbanos, exceto nos serviços seletivos e especiais, quando prestados paralelamente aos serviços regulares.” A primeira questão controvertida foi a da delimitação da abrangência da gratuidade ao idoso. Apesar de a letra da lei ser clara de que a gratuidade deve ser concedida apenas nos serviços urbanos/convencionais, a falta de divulgação dos preceitos do Estatuto do Idoso no que tange à gratuidade levaram inúmeras demandas ao Judiciário. No que atine aos itinerários interestaduais, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), na Resolução no 1.692/2006, dispôs acerca dos procedimentos a serem observados na aplicação do Estatuto do Idoso e estabeleceu o conceito geral de “serviço convencional” para a concessão do benefício, definindo-o como aquele prestado “com veículo de características básicas, com ou sem sanitários, em linhas regulares.”4 Fato é que as empresas prestadoras de serviço público devem cumprir um quadro de horários que exige um número mínimo de viagens a serem realizadas por veículos de serviço convencional, que são estabelecidas de acordo com a demanda pelo serviço e com os termos do contrato de prestação de serviços. Todas as informações são disponibilizadas aos usuários pela ANTT e pelas próprias empresas que exploram o serviço. Quanto aos transportes intermunicipais e municipais, compete a cada ente a regulamentação de seus procedimentos. No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, o Departamento de Transportes Rodoviários, por meio da Portaria no 811/07, também adotou o termo genérico de “serviço convencional” para a concessão da gratuidade e esclareceu:

No capítulo II da Constituição da República – Da seguridade social –, está o § 5o do art. 195, que condiciona a implantação de qualquer benefício à correspondente fonte de custeio. Assim, se infere: “Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total.” Os entes públicos no uso de sua competência, antes do Estatuto do Idoso, cuidaram de legislar sobre a gratuidade aos idosos sem, contudo, providenciar a devida fonte de custeio, o que acabou por ensejar a interposição de reclamações por inconstitucionalidade que tiveram provimento.5 Assim, antes do advento da Lei no 10.741/2003, muitos direitos eram previstos aos idosos, no entanto, não eram efetivos. Com o estatuto, pôde-se notar uma preocupação das empresas prestadoras de serviço público juntamente com os órgãos reguladores e as entidades de classe para que todas as benesses previstas em lei fossem devidamente observadas, de forma que as normas existissem, fossem válidas e gerassem os efeitos dela esperados.

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Muitos estados evoluíram tecnologicamente nos transportes, implementando o sistema de bilhetagem eletrônica com vistas a conferir maior comodidade, aos usuários pagantes e beneficiários de gratuidade, proporcionando total controle do Poder Concedente e gerando maior segurança aos prestadores de serviço público, já que teriam resguardada a fonte de custeio capaz de subsidiar as gratuidades. A necessidade de credenciamento dos idosos, com a apresentação perante os órgãos da administração pública de documentos a atestar a sua idade e a sua renda, como condição para a emissão do cartão magnético que permitiria o embarque, inicialmente gerou celeuma. De fato, o artigo 39 da Lei no 10.741/2003 dispôs que, para a utilização do benefício, bastaria a prova da idade, a ser feita mediante simples apresentação de documento pessoal, o que a princípio seria incompatível com o sistema de bilhetagem. Não se pode deixar de registrar que o Estatuto do Idoso – que conta com status de lei nacional, ou seja, que estabelece normas gerais cabendo a cada ente regulamentar as regras de operacionalização –, não poderia ter estabelecido procedimento que cabe a cada ente federativo legislar, sendo tal dispositivo já declarado constitucional, no entanto, sem ferir a competência dos entes em estabelecer procedimentos específicos para o exercício da gratuidade. A questão chegou à análise do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu a legalidade do credenciamento de idosos para o exercício da gratuidade6, pondo fim a quaisquer questionamentos a respeito. Em linhas gerais, o que se verifica no decênio do Estatuto do Idoso é um avanço na preservação de seus direitos nunca antes alcançados. O que se espera de uma norma quando de seu advento é que tenha condições de fazer valer os direitos a que se presta assegurar e resguardar o exercício. O Estatuto do Idoso é uma prova bem-sucedida de que a Lei no 10.741/03 está alcançando os objetivos que o legislador pretendeu abarcar, direitos estes basilares da República Federativa, de garantia da cidadania e da dignidade da pessoa humana.7 Não se pode encerrar este artigo sem fazer referência ao parágrafo único do art. 1o da CRFB/88, que dispõe que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, e, ainda, mencionar a orientação da ONU quando da realização da segunda Assembleia Mundial sobre o envelhecimento, ocorrida em Madri, em 2002, de que “uma sociedade para todas as idades possui metas para dar aos idosos a oportunidade de continuar contribuindo com a sociedade. Para trabalhar nesse sentido, é necessário remover tudo que representa exclusão e discriminação contra eles.”8

Que os direitos dos idosos sempre sejam preservados pela sociedade, e que o Estatuto do Idoso seja o precursor de muitas medidas protetivas dedicadas a quem se empenhou para a evolução do país e ainda se empenhará, haja vista que o envelhecimento chegará para as crianças e os jovens de hoje.

Notas ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. A ONU e as pessoas idosas. Disponível em: http://www.onu.org.br/a-onu-em-acao/a-onu-emacao/a-onu-e-as-pessoas-idosas/. Acesso em: 18 jul. 2013. 2 “Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.” 3 “Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta ou colateral até o quatro grau.” 4 “Art. 2o As empresas prestadoras do serviço deverão reservar aos idosos com renda igual ou inferior a dois salários-mínimos duas vagas gratuitas em cada veículo do serviço convencional de transporte rodoviário interestadual de passageiros. § 1o Considera-se empresa prestadora do serviço a que executa serviços de transporte rodoviário interestadual de passageiros em linhas regulares. § 2o Incluem-se na condição de serviço convencional de transporte rodoviário interestadual de passageiros os prestados com veículo de características básicas, com ou sem sanitários, em linhas regulares.” 5 No Estado do Rio de Janeiro, a Lei Estadual no 3.339, de 29 de dezembro de 1999, que regulamentou o disposto no art. 245 da Constituição Estadual e, dentre outras obrigações, assegurou aos maiores de 65 (sessenta e cinco) anos a gratuidade nos transportes coletivos urbanos intermunicipais no território do Estado do Rio de Janeiro, o idoso passou a ser contemplado com o referido benefício. Não obstante a exigência legal, o Legislativo deixou de indicar, materialmente, a fonte de custeio necessária ao benefício dessas gratuidades, consoante o preceito instituído no art. 112, § 2o, da Carta Estadual, vez que devidamente comprovado que as empresas não auferem qualquer lucro pela emissão e comercialização do vale-transporte – art. 4o da Lei no 3.339/99, não sendo esta uma fonte de custeio plausível de forma a subsidiar a gratuidade, afetando inegavelmente o equilíbrio econômico-financeiro da operação das transportadoras de um modo geral, razão pela qual, em julho de 2003, a referida lei veio a ser declarada inconstitucional, em decorrência da Representação por Inconstitucionalidade no 37/02 proposta pela Fetranspor perante o órgão especial. 6 “PEDIDO DE SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA. LESÃO À ORDEM E À ECONOMIA PÚBLICAS. Os idosos não pagam o transporte coletivo, mas estão sujeitos a cadastramento; a decisão que os libera dessa exigência dificulta o controle e a administração do município sobre o transporte público, causando lesão à ordem e à economia públicas. Agravo regimental não provido.” (AgRg na SLS 1.070/RJ, Rel. Ministro: Ari Pargendler, CORTE ESPECIAL, julgado em 6/10/2010, DJe 14/12/2010). 7 “Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituise em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.” 8 Plano de Ação Internacional sobre o Envelhecimento (parágrafo 19), Madri, 2002. 1

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Revisitando a teoria da separação dos poderes

Jessé Torres Pereira Junior

A

Desembargador do TJRJ Professor-coordenador da pós-graduação de Direito Administrativo da Emerj

separação de poderes, proposta por Montesquieu no século XVIII, ingressa no Novo Mundo quando se tornam independentes as colônias inglesas na América, no século XVIII. Palavras da Constituição da Virginia (20/6/1776): “Os poderes legislativo, executivo e judiciário de governo deverão ser sempre separados e distintos entre si” (“The legislative, executive and judicial powers of government ought to be forever separate and distinct from each other”). E da Constituição de Maryland (11/11/1776): idem, além de “nenhuma pessoa no exercício de funções em um desses poderes (“Departments”) assumirá ou se desincumbirá de deveres em qualquer dos outros”. Daí à fórmula dos artigos 2o e 60, § 4o, III, da Constituição brasileira de 1988 são passados 236 anos: “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”; “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) III – a separação dos Poderes.” A tripartição dos poderes continua sendo cláusula pétrea, ou seja, valor essencial, norteador e que não se pode suprimir da ordem político-jurídica constitucional. Mas em que termos? A divisão hermética retratada nos “departamentos” estanques norte-americanos é 36

obsoleta. “Onde quer que exista o sistema de freios e contrapesos não há, nem pode haver, separação absoluta”, pondera atualizada doutrina (Eoin Carolan, The New Separation of Powers, Oxford University Press, março de 2009). Haveria uma fórmula/doutrina institucional universal? O poder político governamental pode ser definido e se esgota na trindade dos poderes legislativo, executivo e judiciário? Não há divergência relevante entre os modernos compêndios quando sumariam a evolução da teoria da separação e lhes identificam sete objetivos históricos: 1o – evitar a tirania, assegurando que o poder não se concentrará em um só indivíduo ou órgão (raiz dos princípios da segregação e da especialização, com os quais se devem harmonizar, na modernidade, o planejamento estratégico e a interdependência da gestão); 2o – estabelecer equilíbrio entre os poderes de modo que cada qual supervisione as ações dos demais, mediante um sistema de freios e contrapesos (a ser contrastado com o direito fundamental à boa administração, que permeia todo o sistema estatal de gestão, embaçando as antigas linhas divisórias); 3o – assegurar que toda lei sirva ao interesse público, cuja definição deve emanar daquele equilíbrio entre os

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Foto: Arquivo pessoal

“O novo modelo da ‘separação de poderes’ busca extrair a unidade da divergência, visando obter resultados que a todos beneficiem, a partir de uma conjunção racional das finalidades de cada qual.”

poderes (nada obstante o reconhecimento da existência de diferentes perspectivas do que possa ser o interesse público, sob determinada coordenada de tempo e espaço); 4o – estimular a eficiência governamental mediante a atribuição de funções às instituições mais aptas para os respectivos desempenhos (sem embargo de maus resultados comprometerem o princípio da eficiência, a que sujeitos todos os poderes, em todas as esferas da federação, na dicção do art. 37 de nossa vigente Constituição); 5o – prevenir a prevalência da parcialidade e de interesses sectários por meio da separação das pessoas envolvidas no processo decisório do exercício do poder político (a depurar a legitimidade dos grupos de pressão e contrapressão); 6o – elevar o teor de objetividade e generalidade das leis por meio da separação das funções de elaborá-las e de aplicá-las (embora a lei, em seu sentido material estrito, cada vez mais deixe de constituir a única ou principal fonte legitimadora do direito justo); 7o – impor a prestação de contas a todos os agentes estatais, que respondem por seus atos uns perante os outros e todos à sociedade (a provocar tensão entre os espaços ocupados por suas respectivas funções típicas e atípicas). A complexa sociedade contemporânea vem percebendo

a insuficiência desses objetivos, embora bem articulados, para sustentar uma doutrina institucional universal, porque a teoria da tripartição de poderes: (a) hospeda uma vasta variedade de visões críticas sobre as funções e os papéis do Estado; e (b) não hierarquiza valores, nem fixa indicadores, com o fim de estabelecer prioridades em caso de conflito entre os objetivos e os poderes. A tripartição de poderes padece de ambiguidades quando aplicada aos casos concretos levados aos tribunais ou às situações que lei nova pretenda vir a tutelar: tanto pode ser invocada para negar quanto para justificar a intervenção judicial ou legislativa, dependendo do compromisso que se tenha com a natureza das respectivas funções e os objetivos da separação de poderes que se tenham como prioritários. Os tribunais e as casas legislativas tendem a fazer uso do modelo teórico como um valor ou fim em si mesmo, ao mesmo tempo em que dão suporte a concepções contrastantes do Estado e de suas estruturas, gerando contradições quando a teoria é posta em operação. O Estado do século XXI tende a ser “dirigista, discricionário e disperso”. Uma multiplicidade de dife­ rentes organizações e atores participa dos assuntos governamentais – “business of government” –, dentro e fora

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da estrutura administrativa estatal, mas dela recebendo repasses de recursos de toda ordem, inclusive financeiros – e vice-versa. Ou seja, organizações privadas assumem encargos de gestão de atividades ditas de interesse público. Os conflitos continuam sendo, basicamente, os que opõem o interesse coletivo ao interesse individual. Para precatá-los ou resolvê-los, a tripartição dos poderes de Montesquieu foi produto de uma época em que o poder era exercido de forma unilateral: o poder do soberano manifestado por meio de normas gerais, veiculadas por processo político “estatutário”, como se fosse, para fazer-se concessão ao contratualismo rousseauniano, um contrato de adesão irrecusável: o soberano estabelecia as cláusulas, e o povo a elas aderia incondicionalmente. O exercício do poder, agora entendido como exercício de “governabilidade”, é complexo e intrincado. Não se amolda ao figurino dos séculos XVII a XIX e boa parte do século XX. Do debate, que por toda parte hoje se desenvolve sobre a teoria da separação dos poderes, vêm resultando premissas e propostas ajustadas aos novos tempos, destacando-se: • o Estado é uma construção colaborativa, cuja utili­ dade é a de permitir avanços mais efetivos e universalistas dos interesses individuais e coletivos, em regime de mútuo respeito e consideração; • os cidadãos são sujeitos de direitos e obrigações políticas em face do Estado porque este deve prover um conjunto de bens que aqueles não seriam capazes de obter individualmente; • a separação de poderes deve conduzir à organização de instituições estatais que atuem para assegurar que as decisões governamentais levem em conta tanto os interesses coletivos quanto os individuais; não se trata de propor que a “separação de poderes” exprima uma soberania bipolar, dualista, quase esquizofrênica, porém de considerar que o interesse público encerra noção que, embora monolítica, deve admitir a coexistência real de perspectivas divergentes acerca de qualquer ação estatal, por isto que as instituições devem estar predispostas a sopesar essas divergências e a admitir que nenhum dos poderes tem o monopólio do que é, ou não, de interesse público; • o novo modelo da “separação de poderes” busca extrair a unidade da divergência, visando obter resultados que a todos beneficiem, a partir de uma conjunção racional das finalidades de cada qual; • o interesse público constitucionalizado nas políticas públicas exige administração responsiva às necessidades e aspirações coletivas e individuais, cujos efeitos decorrerão de uma cooperação institucional coordenada, apta a inibir ações unilaterais insuscetíveis de verificação e controle – verificação e controle que correspondem ao ideário republicano e democrático; 38

“Maioria e minoria têm direitos iguais na audiência das instituições estatais e que estas, todas, têm iguais responsabilidades, no âmbito de suas respectivas competências constitucionais, na identificação e na consecução do que se deva considerar como de interesse público.”

• o novo perfil da “separação de poderes” reclama um processo de coordenação participativa que os aproxime entre si, de forma transparente, organizada e permanente, afastadas rivalidades e disputas personalistas por lide­ ranças, carismáticas ou não, e vedados expedientes sigilosos de cooptação (sempre canais de desvios de recursos públicos para atender a projetos pessoais); • no Estado democrático, administrador do interesse público constitucionalizado, o exercício do poder político é um processo permanente, interminável, de colaboração coordenada ente as instituições, cujo núcleo deve ser a governabilidade comprometida com resultados que a sociedade e os cidadãos reconheçam como benéficos para todos; vale dizer que maioria e minoria têm direitos iguais na audiência das instituições estatais e que estas, todas, têm iguais responsabilidades, no âmbito de suas respectivas competências constitucionais, na identificação e na consecução do que se deva considerar como de interesse público. Vê-se que qualquer semelhança com as medidas e contramedidas protagonizadas por Legislativo e Judiciário, em aparente disputa pela primazia do poder, ultimamente veiculadas pelo noticiário brasileiro, não é mera coincidência e desafia, em escala planetária, estados e sociedades nas escolhas de seus destinos. Que as façam com sabedoria e prudência, esperam os cidadãos na dupla qualidade de eleitores e jurisdicionados.

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Decisões contraditórias do Supremo Tribunal Federal José de Anchieta da Mota e Silva

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Desembargador do TJMG

ste artigo reporta-se às Constituições de 1946 e 1967, à Emenda no 1 de 1969 e, ainda, às normas expressas na Constituição de 1988 e na Emenda 45/2004, estabelecendo uma pesquisa históricoconstitucional acerca da competência para o julgamento das ações que versam sobre acidentes de trabalho envolvendo empregador e empregado. Busca-se, ainda, evidenciar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal no que diz respeito à competência da Justiça do Trabalho e da Justiça dos Estados, concluindo pela incoerência dos julgados dessa Suprema Corte, em razão da norma constitucional de caráter impositivo, quando aquele tribunal decide pela 40

competência da Justiça dos Estados para apreciar e julgar ações contra o INSS, inclusive em Segunda Instância. 1. Causas envolvendo o INSS. Incompetência absoluta dos Tribunais de Justiça estaduais. Fundamento: arts. 108, II e 109, §§ 3o e 4o, 114, I, da CF/1988 na redação da EC 45/2004 1.1 As Constituições Federais de 1946 e 1967 e a Emenda no 1 à Constituição Federal de 1969 Inicialmente, é necessário fazer breve anotação histórica constitucional a respeito da matéria e voltar ao tempo da criação da Justiça do Trabalho, observando que foi criada pela Constituição Federal de 1946. Vejamos o

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Foto: SCO/STF

que constava das Constituições Federais de 1946 e 1967, e da Emenda no 1 à Constituição Federal de 1969. Art. 123 e do § 1o da Constituição Federal de 1946: Art. 123. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e as demais controvérsias oriundas do trabalho regidas por legislação especial. § 1o Os dissídios relativos a acidentes de trabalho são da competência da Justiça ordinária.

Art. 134 e § 2o da Constituição Federal de 1967: Art. 134. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e as demais controvérsias oriundas do trabalho regidas por legislação especial. § 2o Os dissídios relativos a acidentes de trabalho são da competência da Justiça ordinária.

Art. 142 e § 2o da Constituição de 1967, com a redação da Emenda Constitucional no 1, de 1969: Art. 142. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores e, mediante lei, outras controvérsias oriundas de relação de trabalho. § 2o Os litígios relativos a acidente de trabalho são da

competência da justiça ordinárias dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, salvo exceções estabelecidas na Lei Orgânica da Magistratura Nacional. (Grifo nosso)

A transcrição das normas das Constituições Federais de 1946 e 1967, desta última na redação da Emenda no 1 à Constituição de 1969, é para deixar bem claro que a lei fundamental estabelecia a competência da Justiça dos Estados para julgar as ações de acidente de trabalho, mas em momento algum atribuía competência para julgar ações decorrentes de pedidos de aposentadoria, auxílio-acidente, ou ações acidentárias, ou, se quiserem, ações previdenciárias. 2. Constituição Federal de 1988. Competência da Justiça estadual. Alteração Diante disso, impõe-se, também, para melhor compreensão, transcrever os arts. 108, II; 109, I e §§ 3o e 4o, da CF/1988, antes da EC 45/2004, que deu nova redação ao art. 114, mas, em momento algum, alterou o que estabelecem os art. 108, II, e 109, §§ 3o e 4o. Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais: (...) II – Julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição.

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Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I – As causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes, exceto as de falência, as de acidente de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho. (...) § 3o. Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual. § 4o. Na hipótese do parágrafo anterior, o recurso cabível será sempre para o Tribunal Regional Federal na área de jurisdição do juiz de primeiro grau. (Grifo nosso)

Como se vê, e não custa repetir, o que determinavam as Constituições de 1946, 1967 e 1969 sobre ser da competência da Justiça dos Estados apreciar e julgar acidentes de trabalho, a partir da Constituição de 1988, não mais foi atribuído à competência da Justiça dos Estados. Na verdade, não fosse a expressa determinação dos artigos das Constituições de 1946, 1967 e 1969, poder-se-ia interpretar que, com a frase “e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”, inserida em todas as Constituições, desde então as ações de acidentes de trabalho seriam da alçada da Justiça do Trabalho. 3. EC 45/2004 à CF/1988. Incompetência absoluta da justiça estadual para julgar ação de acidente de trabalho em ambas as instâncias. Competência absoluta dos TRF’s para julgar recursos em causas envolvendo o INSS ou, no dizer do Supremo, a Justiça do Trabalho, em decorrência do acessório seguir o principal “Assim, é absoluta a incompetência da Segunda Instância da Justiça dos Estados para apreciar e julgar recurso interposto de sentença proferida por juízes estaduais de Primeira Instância, seja a comarca sede de juízo estadual ou não, quando decidir causas que envolvam o INSS”. O fundamento dessa afirmação decorre do inciso II do art. 108 e do § 4o do art. 109 da CF/1988. Tudo o que foi escrito acima tem o objetivo de chamar a atenção, mais uma vez, como vimos desde o século passado e principalmente a partir de 1988 e 2005, para que os Tribunais de Justiça dos Estados não mais têm competência para julgar ações envolvendo o INSS. É o que passarei a demonstrar, se é que já não o fiz. Como se vê pela norma do § 3o do art. 109 da CF/1988, é da competência da primeira instância da Justiça estadual apreciar e julgar as causas que envolvam o segurado ou 42

beneficiário de um lado e a autarquia federal de outro, desde que não seja sede da Justiça Federal. Assim, de conformidade com o § 4o, do art. 109 da CF/1988, a competência recursal é indubitavelmente dos Tribunais Regionais Federais, sem sombra de dúvida alguma. Quer isso dizer que, em comarca do interior que não seja sede da Justiça Federal, a competência na primeira instância é do juízo estadual e, na segunda instância, é dos TRF’s. Ora, acontece que a comarca de Belo Horizonte é provida de juízes federais, e assim os magistrados de primeira instância da Justiça Estadual, em princípio, não têm competência para apreciar e decidir qualquer causa que envolva o INSS. No entanto, aqui deixo claro que não estou preocupado quanto à questão da competência ou não dos juízes estaduais da primeira instância da Justiça Estadual, dos juízes federais da Justiça Federal e dos juízes trabalhistas, todos de primeira instância. Aliás, é bom que se frise que a matéria tratada no citado art. 109, § 3o, da CF/1988, não dispõe sobre acidente de trabalho, mas sim sobre auxílio-doença, benefícios previdenciários, conversão de auxílio-acidente em invalidez e ações que visam a reajustes dos benefícios, etc. Diante disso, observa-se que, em verdade, o acidente em si e per se é noticiado pelo segurado ou pelos beneficiários com vista a que o juiz compreenda a razão do pedido. É dizer, o que se pretende com o pedido junto ao INSS é que ele, em sendo o caso, comece a pagar auxílio-doença, conceda aposentadoria, quer por invalidez, quer por tempo de serviço, que restaure o benefício que estava sendo pago e foi cortado, etc. Ora, a norma acima referida não faz qualquer distinção quanto aos assuntos discutidos na ação envolvendo a Previ­ dência Social e o segurado ou beneficiário. Repito: pouco interessa que o pedido seja de auxílio-doença, conversão de aposentadoria em outra, restauração de auxílio, aumento do benefício, etc., quando ajuizada a ação contra o Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS, o que, em verdade, corresponde a quase a totalidade das ações, sendo da primeira instância da Justiça comum dos Estados a competência para julgar tais ações. Por outro lado, à evidência, em razão da clara redação do § 4o do art. 109 da CF/1988, todo recurso deve ser julgado pelo TRF da cada Região, uma vez que, se assim não se entender, se estará negando vigência à Constituição Federal. 4. A jurisprudência equivocada do STF, do STJ e dos tribunais estaduais e regionais federais, com fundamento no art. 109, I, da CF/1988 Assim sendo, não há como aceitar a tese dos Tribunais Estaduais, Federais, do STF e do STJ que estão a decidir pela competência dos primeiros. O § 4o é por demais claro quando determina que, em toda decisão oriunda do contido no § 3o, o recurso será sempre para o TRF da jurisdição do juízo de primeiro grau.

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A norma tem sua razão de ser: enquanto na primeira instância o juiz estadual está presente em todo o território do país, o mesmo não se pode dizer da Justiça Federal, pois esta se encontra nas capitais e nas principais cidades do interior. Assim é que, no caso da segunda instância, a razão é a de que, de um lado, há um órgão que pertence à União, e, por isso mesmo, o legislador estabeleceu a competência dos TRFs em segunda instância para julgar o recurso. Diante disso, é incompreensível que o STJ esteja entendendo que é da competência da Justiça Estadual quando a discussão diz respeito a benefícios previdenciários, mas na origem decorrente de acidente de trabalho. Isto é, entende o STJ que, se o pedido de auxílio-doença, aposentadoria, etc. está amparado em acidente de trabalho, a competência será da Justiça Estadual. Ora, quando a lei não faz distinção, ao intérprete não o cabe fazer. Por fim, friso que o mesmo STJ reiteradamente decidia conforme o § 4o, do art. 109, da CF. Contudo, é preocupante o fato de os TRFs estarem a decidir que não têm competência para apreciar e julgar recursos de sentenças proferidas por juízes estaduais de primeira instância quando apreciam e julgam as causas envolvendo segurados ou beneficiários e o INSS, e o fazem com base no inciso I, do art. 109, da CF/1988, nas Súmulas 501 do STF e 15 do STJ. No entanto, há, aí, um claro equívoco. O inciso I, do art. 109, excluiu da competência dos juízes federais as ações de acidente de trabalho, tão somente, mas, em momento algum, trata da hipótese prevista nos §§ 3o e 4o do mesmo artigo. Além do mais, costumam citar julgados do STF e do STJ já ultrapassados, como é o caso da Súmula 501, esta editada à época da vigência da Constituição Federal de 1967 e sua EC 1/1969, e, quanto à Súmula 15 do STJ, esta trata especificamente de acidente de trabalho, mas não de direito previdenciário. Porém, tal entendimento não mais pode ser aceito, e isto porque sofreu alteração profunda com a recente alteração da Constituição de 1988, via EC 45/2004, a qual atribuiu à Justiça do Trabalho a competência para julgar as ações de acidente de trabalho. Ora, no caso do disposto no § 3o, do art. 109 da Constituição Federal vigente, não se cogita de acidente de trabalho, isto porque a ação não se dirige contra o empregador. É dizer, o acidente é narrado como justificativa para o pedido. Nada mais. Aliás, quando se ajuíza uma ação contra o INSS, anteriormente o INSS já teve ciência do acidente, via CAT, e chegou a conceder benefício ou negar administrativamente ao empregado. Essa é a razão da ação. A doutrina não diverge de nossa posição. Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci ensinam: Compete aos Tribunais Regionais Federais: (...) II – Julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal na área de sua jurisdição. 2013 Agosto | Justiça & Cidadania 43


E, por fim, no parágrafo terceiro, estabeleceu-se que, “sempre que a comarca não seja sede do juízo federal”, a lei poderá permitir que outras causas (além daquelas “que forem parte instituição de previdência social e segurado”) sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual (Constituição de 1988 e Processo – regramentos e garantias constitucionais do processo. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 199). (Grifo nosso.)

Os constitucionalistas José Afonso da Silva e Alexandre Morais entendem por demais clara a redação dos parágrafos do art. 109: o primeiro repete a redação, e o segundo cita sem qualquer comentário, evidente por desnecessário. Vejamos. Serão processadas e julgadas na Justiça Estadual, no foro do domicílio dos segurados e beneficiários, as causas em que forem parte, Instituição de Previdência Social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara de juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela Justiça do Estado. Nessa hipótese, o recurso cabível será sempre para o Tribunal Regional Federal na área de jurisdição do juiz de primeiro grau (art. 109, §§ 3o e 4o) (Curso de direito constitucional positivo. 6. ed. São Paulo: RT, 1990, p. 487488). (Grifo nosso.)

5. EC 45/2004 à CF/1988. Deslocamento das ações de acidentes de trabalho da Justiça Estadual para a do Trabalho Por outro lado, em razão da EC 45/2004 à CF/1988, inicialmente o STF, em março de 2005, entendeu que a competência era da Justiça dos Estados. Contudo, em junho do mesmo ano, por unanimidade, decidiu pela competência da Justiça do Trabalho para aquelas ações que dizem respeito aos danos moral e material decorrentes de acidentes de trabalho, e, mais, decidiu também que as ações contra o INSS seriam da competência da Justiça dos Estados em razão da acessoriedade. Aqui o equívoco. A contradição. Estaria tudo certo se não houvesse intensa contradição entre as decisões anteriores do STF datadas de 1993 e de 2002, e a recentíssima após a EC 45/2004. Naqueles anos, como demonstramos, o STF decidiu que, como era da competência da Justiça estadual julgar as ações de acidente de trabalho, dela seria também a competência para julgar o acessório. Isto é, as ações contra o INSS decorrentes de acidente de trabalho. Pois bem, como já dito, o STF, em 2002, no julgamento do RE 351.528-4/SP, rel. Min. Moreira Alves, assim decidiu: Competência. Reajuste de benefício oriundo de acidente de trabalho. Justiça comum. Ao julgar o RE 176.532, o Plenário desta Corte reafirmou o entendimento de ambas as Turmas (assim, no RE 169.632, 1a T., e no AgIn 154.938, 2a T.) no sentido de que a competência para julgar causa relativa a 44

reajuste de benefício oriundo de acidente de trabalho é da Justiça Comum, porquanto, se essa Justiça é competente para julgar as causas de acidente de trabalho por força do disposto na parte final do inc. I, do art. 109, da CF/1988, será ela igualmente competente para julgar o pedido de reajuste desse benefício que é objeto de causa que não deixa de ser relativa a acidente dessa natureza, até porque o acessório segue a sorte do principal. Dessa orientação divergiu o acórdão recorrido. Recurso extraordinário conhecido e provido (STF, RE 351.528-4/SP, 1a T., v.u., rel. Min. Moreira Alves, DJ 31/10/2002).

Da mesma forma, ao apreciar conflitos de competência em relação às ações em que se pleiteava a concessão ou o reajuste de benefício previdenciário decorrente de acidente do trabalho, o STF firmou o entendimento de que seria da Justiça comum estadual, dada a natureza acidentária da ação em que se pleiteia a concessão do benefício auxílio-acidente, bem como a acessoriedade da ação que pleiteia a revisão do benefício auxílio-acidente, a qual segue a sorte do principal. Como se vê, na conformidade dos julgamentos do STF, antes da EC 45/2004 à Constituição Federal, a sorte do acessório seguia a do principal. No entanto, como o STF, no julgamento de junho de 2005, deslocou a competência do principal – e somente das ações de acidentes de trabalho – para a Justiça do Trabalho, não há como permanecer a Justiça dos Estados com a competência para julgar o acessório. Assim, insisto e reafirmo que o STF em 2005 adotou entendimento diferente dos de 1998 e 2002. Contudo, com o advento da EC 45/2004, como já dito, em março de 2005, com dois votos contra, de autoria dos Ministros Marco Aurélio e Ayres Britto, o STF decidiu que a competência era da Justiça estadual. No entanto, em junho de 2005, voltando a apreciar a matéria, decidiu de modo completamente diferente. É dizer, repartiu a competência, isto é, sobre o principal, acidente de trabalho, foi declarada a competência da Justiça do Trabalho, mas o acessório, isto é, as ações contra o INSS, continuariam na Justiça estadual. Observo que o voto do Min. Ayres Britto, que foi acompanhado pelos demais ministros, fundamentou-se não só na EC 45/2004, mas também, e principalmente, na anterior decisão do STF de 1998. Ora, o STF para ser coerente com sua posição, e não só isso, por ser guardião da Constituição, jamais poderia ter decidido como decidiu, não só em 1993 como também em 2002 e 2005, no que toca às ações acidentárias atribuindo a competência à Justiça estadual. É dizer, basta uma simples leitura das duas decisões. Na de 1998 e na de 2005 há uma flagrante contradição. Dessa forma, não há como negar a contradição. Contradição e, também, violação à literal disposição do § 4o da CF/1988. É dizer, como o § 4o expressamente afirma que de qualquer decisão oriunda do § 3o o recurso será sempre

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para o TRF, não há como aceitar o entendimento de que a segunda instância da Justiça estadual seja a competente para apreciar e julgar os recursos oriundos de sentenças proferidas em ações acidentárias, por envolver matéria que, segundo o próprio STF, é acessória em relação ao acidente de trabalho. Aliás, atualmente, o STF aprovou a Súmula Vinculante 22. Essa Súmula tem como precedente o CComp 7.204/MG, em que se afirma a competência absoluta da Justiça do Trabalho para julgar as ações de acidente de trabalho envolvendo empregado e empregador. Nesse conflito, o rel. Min. Ayres Britto se reportou a anterior julgamento do próprio STF em 1998, quando havia decidido pela competência da Justiça do Estado para julgar acidentes de trabalho e bem assim o seu acessório, ou seja, as ações envolvendo o INSS. Dessa forma, não há como negar, que, quer em razão dos precedentes que deram origem à Súmula Vinculante 22, quer em razão da própria, não há como deixar de afirmar que a contradição existente leva à absoluta nulidade dos julgamentos pelos Tribunais de Justiça dos Estados ao conhecerem, apreciarem e julgarem os recursos que são interpostos a favor ou contra a autarquia federal, ou seja, o INSS, conforme entendimento atualmente predominante, mas inadmissível constitucionalmente e em flagrante desrespeito à norma constitucional. Diante disso, deve o STF voltar a se manifestar sobre a matéria e, como guardião da Constituição, decidir de uma ou de outra forma. É dizer, ou decide pela competência absoluta dos TRF’s como manda o § 4o do art. 109, da CF/1988, ou decide pela competência da segunda instância da Justiça do Trabalho, para ser coerente com seus próprios julgados. Pois bem, o STF, no julgamento do CComp 7.204/MG ocorrido em 29/6/2005, relator o Min. Carlos Ayres Britto, assim consignou: Remarque-se, então, que as causas de acidente de trabalho excepcionalmente excluídas da competência dos juízes federais só podem ser as chamadas ações acidentárias. Ações, como sabido, movidas pelo segurado contra o INSS, a fim de discutir questão atinente a benefício previdenciário. Logo, feitos em que se faz presente interesse de uma autarquia federal, é certo, mas que, por exceção, se deslocam para a competência da Justiça comum dos Estados. Por que não repetir? Tais ações, expressamente excluídas da competência dos juízes federais, passam a caber à Justiça comum dos Estados, segundo critério residual de distribuição de competência. Tudo conforme serena jurisprudência desta nossa Corte de Justiça, cristalizada no enunciado da Súmula 501.

Mais à frente, o ministro acentuou: Em resumo, a relação de trabalho é a invariável matriz das controvérsias entre trabalhadores e empregadores. Já a matéria genuinamente acidentária, voltada para o benefício

previdenciário correspondente, é de ser discutida com o INSS, perante a Justiça comum dos Estados, por aplicação da norma residual que se extrai do inc. I do art. 109 da Carta de outubro.

Aqui o equívoco do ministro. Como se viu, a parte transcrita do voto do Min. Carlos Ayres Britto, que foi acompanhado pelos demais ministros, deixa claro que houve um corte epistemológico. É dizer, como já frisei, nas decisões de 1998 e de 2002, o STF decidiu pela competência da Justiça comum dos Estados, quer a ação fosse de acidente de trabalho, quer fosse ação acidentária, uma vez que entendeu ser a acidentária uma ação acessória. Contudo, com o advento da EC 45/2004, com o devido respeito aos eminentes ministros da mais alta Corte de Justiça deste País, como também aos demais tribunais e juízes que entendem ser da competência da Justiça dos Estados, não mais cabe dar guarida ao entendimento sufragado anteriormente à EC 45/2004. Assim, afirmo uma vez mais, está em vigor o § 4o do art. 109, da Carta de 1988, que determina a competência recursal nas ações. Será que o que era acessório em 1993 e 2002 deixou de ser em 2005? Penso que não. É dizer, não há acidente de trabalho sem relação de emprego. Uma coisa está vinculada à outra. Isto é, para haver o primeiro, acidente de trabalho, antes é preciso que exista o contrato de trabalho, a relação de emprego. Assim sendo, da mesma forma, como só há acidente de trabalho se houver relação de emprego, da mesma forma só existirá pedido de auxilio-acidente, de aposentadoria, etc. se antes houver acidente de trabalho. Aliás, é evidente que não estou a tratar de pedido de aposentadoria por tempo de serviço, etc. Concluindo, compete à Justiça do Trabalho julgar as ações de acidente de trabalho e aos TRFs julgar os recursos nas ações a favor ou contra o INSS.

Referências Bibliográficas Moraes, Alexandre de. Direito constitucional. 24. ed. atual até EC 57/2008. São Paulo: Atlas, 2009. Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 6.ed. São Paulo: RT, 1990. Tucci, Rogério Lauria; Tucci, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e Processo – regramentos e garantias constitucionais do processo. São Paulo: Saraiva, 1989.

Pesquisas do Editorial Veja também Doutrina • Análise da jurisprudência do STF sobre a forma de incorporação dos documentos de direito internacional. Alterações com o advento da EC 45/2004, de Alexandre Walmott Borges, Luciana Campanelli Romeu e Altamirando Pereira da Rocha – RDBras 3/55. • Conflito de competência entre justiça federal e justiça estadual, de Teresa Arruda Alvim Wambier, Pareceres , organizada por Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo, Ed. RT, 2012, vol. 2, p. 63.

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Vida longa à República

Cezar Augusto Rodrigues Costa

E

Desembargador do TJRJ

mbora integremos uma República instituída em 1889, regimes políticos que ao longo do tempo a compuseram a enxovalharam de tal modo que a sua plenitude só se garantiu, verdadeiramente, com as Constituições de 1946 e a atual, de 1988. E a República é importante e fundamental, porque, nela, a coisa pública, no seu sentido mais amplo, deve ser respeitada, preservada e protegida, o que usualmente se faz dividindo a gestão estatal em funções primordiais, que se interpenetram e se submetem a controles, o que, em Direito Constitucional, se convencionou chamar de sistemas de freios e contrapesos. No nosso modelo de Estado, que repete tantos outros consolidados no mundo democrático, idealizado por Montesquieu em 1748, temos essas funções exercidas pelos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, de modo que, para uma convivência pacífica e organizada da sociedade, a subordinação legal dos cidadãos, de forma geral e impessoal, limita-se, como regra, ao que advém do trabalho do Poder Legislativo e da interpretação das leis pelo Poder Judiciário, notadamente quando são manejados mecanismos constitucionais que, excepcionalmente, admi­tem que determinadas decisões produzam efeito assemelhado ao das leis em sentido estrito, como ocorre, por exemplo, com as ações de controle de constitucionalidade e inconstitucionalidade. É certo que há hipóteses, também excepcionais, nas quais a Constituição republicana defere a outros entes públicos a edição de atos com efeitos gerais e abstra46

tos, exemplificando-se com as Medidas Provisórias, mas, insista-se, essas hipóteses são realmente excepcionais, daí porque não serão aqui levadas em conta. Com essas considerações iniciais, merece algum comentário a recente Resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça, na qual o referido órgão veda às autoridades competentes, e aqui só se pode ler os magistrados e delegatários de serviços extrajudiciais, a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo, matéria que não está legislada nem pacificada pelos tribunais. Destaque-se que nos considerandos do referido ato há menção à ADPF 132/RJ, na qual o Supremo Tribunal Federal, enfrentando tão somente o conteúdo do artigo 1.723 do Código Civil, decidiu, com efeito vinculante, afastar qualquer interpretação discriminatória da união estável entre parceiros do mesmo sexo, removendo o obstáculo da literalidade da norma legal para permitir a constituição familiar homoafetiva, não tratando de qualquer outra forma de família que não a decorrente da união estável e não reconhecendo o casamento homoa­ fetivo de forma automática. Há, ainda, na Resolução do CNJ, menção ao recurso especial 1.183378/RS, no qual o Superior Tribunal de Justiça entendeu pelo afastamento do óbice relativo à diversidade de sexos para determinar o prosseguimento do processo de habilitação de casamento. Todavia, o recurso especial produz efeito apenas entre as partes que participaram da ação judicial, não

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podendo sequer ser utilizado para legitimar ato dotado de generalidade e abstração. A resolução do CNJ, portanto, disse mais do que o decidido pelo STF, sendo conveniente apontar que a união estável se caracteriza, em regra, como uma relação informal, surgida de situação de fato, independente do elemento volitivo para sua caracterização, enquanto o casamento é negócio jurídico solene, dependente de inequívoca manifestação ou declaração da vontade para a celebração, embora tenham, ambos, o fim de formação de família. O STF tratou apenas de uma das controvérsias que o tema encerra, de modo que o ato do CNJ está, em verdade, criando norma de efeito abstrato e geral, o que não se inclui entre as suas funções, segundo se lê do artigo 103B da Constituição Federal. Não se discute aqui o mérito do ato, até porque, posso adiantar, sou inteiramente favorável ao conteúdo material do que ali se defende. A questão está na inobservância de princípios tão caros à República, como o da separação dos poderes, protegido pelo artigo 60 da Carta Política, que lhe dá status de cláusula pétrea. Não se discute, também, a importância do papel desempenhado pelo CNJ: todavia, a sua natureza de órgão administrativo é inegável e já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3.367/DF. Assim, a competência advinda de sua natureza precípua não o legitima a assumir o papel de legislador, regulamentando a orientação de cartórios em matéria que, por lei, se sujeita a processo de dúvida a ser solucionado

pelos magistrados, nem pode dar interpretação conforme a Constituição, por ser atribuição do Supremo Tribunal Federal. O poder regulamentar do CNJ, por conseguinte, restringe-se a interpretar as leis em sentido formal com o objetivo de aplicação administrativa, nunca intervindo na atividade legislativa ou jurisdicional. Sobre o tema principal aqui tratado, andou bem a Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ao editar o Provimento CGJ 25/2013 estabelecendo que se trata de matéria jurisdicional a apreciação de eventual impedimento legal para casamento homoafetivo, não podendo ato normativo interno do Tribunal sobreporse ao entendimento do juízo competente. Nunca é demais lembrar que o poder emana do povo, como dispõe o parágrafo único do artigo 1o da Constituição, e o seu exercício se dá por meio da divisão tripartite acima mencionada, na qual as atividades legislativas são exercidas primordialmente pelos parlamentares e as jurisdicionais pelos juízes. O tema de fundo está realmente a merecer um tratamento legislativo, e o Congresso já o vem discutindo por um longo tempo, mas a obediência republicana recomenda que aguardemos esse debate, que está se dando no foro próprio, ou, se a espera se alongar por muito tempo, que busquemos os mecanismos judiciais possíveis, assegurando assim a segurança jurídica, fundamental para a consolidação do Estado Democrático de Direito.

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Registro especial de fabricante de cigarros – constitucionalidade e jurisprudência dos tribunais Ana Tereza Basilio - Advogada Marcelo Ludolf - Advogado

A

jurisprudência dos tribunais sempre rechaçou a adoção de sanções políticas pelo Poder Público como instrumento de coerção capaz de compelir o contribuinte a pagar tributos. É reputada, pois, ilícita a restrição excessiva e desproporcional ao direito de livre exercício de atividade lícita, instituída com a intenção de pressionar o devedor de tributos a quitar seus débitos. O Supremo Tribunal Federal, inclusive, após reiteradas decisões nesse sentido, editou os vetustos verbetes nos 70, 323 e 5471, que integram a Súmula daquela Corte Constitucional. Segundo os referidos enunciados, é ilícita a utilização pelo Estado de meios coercitivos oblíquos com a finalidade meramente arrecadatória. É inegável, no entanto, que a construção de toda a jurisprudência acerca do conceito de sanções políticas, notadamente do Supremo Tribunal Federal, refere-se a restrições unilaterais impostas pelo Estado às atividades empresariais ordinárias. Instaurou-se, recentemente, em vários tribunais do País, a polêmica a respeito do caso específico da reiterada inadimplência no pagamento de tributos de empresas fabricantes de cigarros. A celeuma refere-se ao disposto no art. 2o do Decreto no 1.593/77, que prevê a possibilidade de cassação do registro especial de empresas tabagistas pela Receita Federal por, reiteradamente, não recolherem 48

os tributos devidos. Nesse contexto, instaurou-se debate judicial se essa previsão consubstanciaria ou não a denominada sanção política. Especificamente em relação à fabricação de cigarros, é relevante salientar que se trata de atividade tolerada pelo Estado, com a imposição de inúmeras restrições, já que o consumo dos produtos derivados do tabaco pode causar dano à saúde pública, impondo, como consequência, expressivo ônus ao Estado na área de saúde pública. Nesse contexto, a atividade de fabricação de cigarros é submetida a rigorosas regras de controle estatal, tais como: a necessidade de registro prévio de marcas na Anvisa com obrigatoriedade de informar os ingredientes que compõem o produto; a inclusão de imagens e advertências nas emba­ lagens dos produtos, as quais devem ser aprovadas pela agência; a restrição à publicidade fora dos pontos de venda; a proibição de uso de produtos fumígenos em ambientes coletivos; a elevada carga tributária de matizes extrafiscais, entro outras. No plano fiscal, as regras impostas à atividade de fabricação e comercialização de produtos derivados do fumo estão previstas no Decreto-Lei no 1.593/77, que impõe a obrigatoriedade de instalação, pela Receita Federal nos estabelecimentos industriais, de contadores de produção de cigarros (sistema denominado Scorpios)

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Foto: Arquivo JC

Ana Tereza Basilio

e a necessidade de autorização prévia da autoridade fazendária para a produção de cigarros, denominada registro especial2, que, dentre outros requisitos para sua concessão, exige a comprovação da regularidade fiscal. O Decreto-Lei no 1.593/77 prevê, ainda, a possibilidade de cancelamento do referido registro especial pela prática de reiterado descumprimento de obrigação tributária principal ou acessória; pela prática de conluio ou fraude (Lei no 4.502/64); pela prática de crime contra a ordem tributária (Lei no 8.137/90); pela prática de crime de falsificação de selos de controle tributário (Decreto-Lei no 2.848/40); e pela prática de infração, cuja tipificação decorra do descumprimento de normas reguladoras da produção, da importação e da comercialização de cigarros e outros derivados de tabaco, após decisão transitada em julgado3. A previsão de cancelamento do registro especial para produção de cigarros pela autoridade fazendária foi promulgada sob a égide da Constituição Federal de 1967 e recepcionada pela Constituição Federal 1988. Especificamente sobre o setor de cigarros, o Supremo Tribunal Federal somente havia proferido decisões no âmbito de tutelas de urgência, sempre no sentido da constitucionalidade da norma. Em sessão realizada em 22/3/2013, entretanto, a Suprema Corte, por meio de sua composição plenária, julgou o mérito do leading case

sobre a matéria (Recurso Extraordinário no 550.769), o qual teve a relatoria do Ministro Joaquim Barbosa e envolvia débitos superiores a 2 bilhões de reais da empresa American Virginia, a qual teve seu registro de fabricante de cigarros cancelado, pela última vez, em 2010. Por ocasião do referido julgamento, a Suprema Corte enfrentou diversos aspectos envolvidos no caso, como o fato de que o não pagamento reiterado de tributos não decorria de dificuldades financeiras momentâneas, mas sim de estratégia comercial deliberada, no sentido de não pagar tributos. Reconheceu, ainda, o caráter nitidamente extrafiscal da tributação de IPI incidente sobre a produção de cigarros, a lesão potencial à saúde pública e à seguridade social, diante dos malefícios do consumo do cigarro, bem como sopesou o fato de que o não pagamento reiterado de tributos implica em dano à concorrência nesse competitivo mercado, pela adoção de preços predatórios por aqueles que não cumprem com as suas obrigações tributárias, e, portanto, concluiu que a prática seria violadora da livre concorrência no setor. Por meio da ponderação dos valores constitucionais em discussão, o Supremo concluiu que a norma prevista no Decreto-Lei no 1.593/77 não caracteriza sanção política, porque, no caso peculiar da fabricação de cigarros, a regularidade fiscal é requisito essencial para o desempenho da atividade.

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Foto: Arquivo pessoal

“Conclui-se, pois, que, se à autoridade fazendária fosse vedado cancelar o registro especial de fabricantes de cigarros devedores contumazes de quantias vultuosas, perderiam a sociedade, as empresas concorrentes, obrigadas a competir com concorrentes que adotam práticas comerciais desleais, e a União Federal.”

Marcelo Ludolf

A decisão do Supremo Tribunal Federal no mencionado leading case corrobora a compreensão que já vinha sendo adotada pelas demais instâncias do Poder Judiciário sobre o setor de cigarros, no sentido da constitucionalidade da exigência de regularidade fiscal, bem como pela possibilidade de revogação do registro especial de fabricante de cigarros com o consequente fechamento do agente sonegador. De forma semelhante, a Corte Especial do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, em decisão proferida na sessão plenária do dia 20/6/2013, decidiu pela constitucionalidade da exigência e da possibilidade de cancelamento do registro especial da empresa Cia. Sulamericana de Tabacos. O acórdão da lavra da eminente Desembargadora Federal Selene Maria de Almeida é no seguinte sentido: AGRAVO REGIMENTAL EM SUSPENSÃO DE LIMINAR. GRAVE LESÃO À ORDEM TRIBUTÁRIA E À SAÚDE PÚBLICA. 1. Evidenciada a grave lesão à saúde pública quando, deixando de recolher o IPI, que é a parcela preponderante na composição do preço final do produto, o fabricante de cigarros tem condições de colocá-lo no mercado a um preço muito menor, o que faz aumentar o seu consumo e, consequentemente, os riscos à saúde da população. 50

2. Verificada, também, a grave lesão à economia pública: a uma, porque, ao não recolher o IPI, o Estado ficou sem parcela importante da arrecadação tributária, parcela esta que poderia ser utilizada, inclusive, para custear o tratamento das pessoas acometidas pelos malefícios causados pelo consumo de cigarros: a duas, porque, ao praticar preços mais baixos, a empresa alarga a sua fatia otite a concorrência e ganha poder de mercado, prejudicando a concorrência que, em tese, esteja recolhendo os tributos, e não poderia, por isso, com ela competir. (AGRSL no 0024266-42.2007.4.01.0000 / DF, Rel. Desembargador Federal Jirair Aram Meguerian, Corte Especial, e-DJF1 p.158 de 17/8/2009). 3. Agravo regimental da Fazenda Nacional provido.4

Conforme se extrai dos recentes julgados do STF e do TRF-1a Região, a ratio iuris do requisito de regularidade fiscal imposta para a atividade de produção de cigarros provém de norma inspirada não apenas pela finalidade de composição dos cofres públicos para fazer frente às políticas públicas e ao custeio do aparato estatal, mas, sobretudo, pelo caráter extrafiscal da tributação que visa a proteger e custear a saúde pública, já que o consumo do tabaco, em larga escala, pode implicar em custos sociais suportados pelo Estado e pela coletividade.

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Assim, a tributação dos produtos derivados do tabaco busca repassar esses custos sociais para as empresas que desempenham essa atividade econômica. Sem essa tribu­ tação, de cunho eminentemente extrafiscal, a sociedade como um todo suportaria esse ônus em benefício único do lucro da empresa tabagista inadimplente, que não cumpre com suas obrigações fiscais onerando a sociedade e praticando concorrência desleal. É relevante salientar que a carga tributária dos cigarros possui alíquotas elevadas, que representam aproximadamente 65% (sessenta e cinco por cento) do preço final do produto. Dessa forma, distorções na carga tributária, decorrentes do reiterado não pagamento de tributos, terminam por ocasionar vantagem indevida aos agentes sonegadores, gerando um desequilíbrio que prejudica as empresas demais de competir, de modo isonômico e leal, nesse competitivo segmento. E o descumprimento reiterado de obrigações fiscais por parte de empresas desse ramo provoca distorções no mercado, pois permite o comércio de produtos em patamares de preço predatórios, inferiores aos da concorrência e, até mesmo, como se verificava, inferiores ao preço de custo do mercado legal, ainda que não se considere qualquer margem de lucro5. Conclui-se, pois, que, se à autoridade fazendária fosse vedado cancelar o registro especial de fabricantes de cigarros devedores contumazes de quantias vultuosas, perderiam a sociedade, as empresas concorrentes, obrigadas a competir com concorrentes que adotam práticas comerciais desleais, e a União Federal, que tem a sua arrecadação diminuída e é onerada com altos custos relacionados ao sistema público de saúde e à Previdência Social. Na verdade, o Supremo Tribunal Federal não mitigou a aplicação dos verbetes de sua Súmula, que vedam a prática de sanção política, já que as hipóteses neles previstas não se aplicam às regras especiais, previstas no DecretoLei no 1.593/77. Esse fato, inclusive, foi salientado pelo eminente Ministro Ricardo Lewandowski, nos seguintes termos: “Não seriam aplicáveis à espécie, por aludirem a devedores inseridos no regime geral de atividades econômicas, o que difere da atividade específica de produção e comercialização de cigarros.” Não se trata, por conseguinte, de interpretação modificativa da consolidada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca da proibição de prática de sanções políticas pelo Estado, mas, tão somente, do reconhecimento das particularidades de setor dotado de inúmeras peculiaridades, até então não submetidas ao crivo daquela Corte. O entendimento consolidado na jurisprudência é, portanto, no sentido da legalidade e da constitucionalidade do

cancelamento de registro especial de produtores de cigarros devedores do fisco quando verificado descumprimento substancial, reiterado e injustificado de obrigação tributária principal ou acessória. E a hipótese não se enquadra no conceito jurisprudencial de sanção política. Em passado recente, praticamente metade das empre­ sas fabricantes de cigarro do País funcionavam à base de decisões judiciais, isentando ou suspendendo obrigações fiscais, para demandantes que adotavam a estratégia comercial de não pagar tributos para obtenção de lucros expressivos e para alavancar a sua participação nesse competitivo segmento da economia. Mas essas iniciativas ilícitas estão agora com os dias contados.

Notas Súmula 70 – É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo. Súmula 323 – É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos. Súmula 547 – Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais. 2 “Art. 1o A fabricação de cigarros classificados no código 2402.20.00 da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – TIPI, aprovada pelo Decreto no 2.092, de 10 de dezembro de 1996, será exercida exclusivamente pelas empresas que, dispondo de instalações industriais adequadas, mantiverem registro especial na Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda. § 1o As empresas fabricantes de cigarros estarão ainda obrigadas a constituir-se sob a forma de sociedade e com o capital mínimo estabelecido pelo Secretário da Receita Federal. § 2o A concessão do registro especial dar-se-á por estabelecimento industrial e estará, também, na hipótese de produção, condicionada à instalação de contadores automáticos da quantidade produzida e, nos termos e condições a serem estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, à comprovação da regularidade fiscal por parte: (…)” 3 Art. 2o O registro especial poderá ser cancelado, a qualquer tempo, pela autoridade concedente, se, após a sua concessão, ocorrer um dos seguintes fatos: I – desatendimento dos requisitos que condicionaram a concessão do registro; II – não cumprimento de obrigação tributária principal ou acessória, relativa a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal; III – prática de conluio ou fraude, como definidos na Lei no 4.502, de 30 de novembro de 1964, ou de crime contra a ordem tributária previsto na Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, ou de crime de falsificação de selos de controle tributário previsto no art. 293 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, ou de qualquer outra infração cuja tipificação decorra do descumprimento de normas reguladoras da produção, importação e comercialização de cigarros e outros derivados de tabaco, após decisão transitada em julgado.” 4 Tribunal Regional Federal da 1a Região, Agravo Regimental na Suspensão de Liminar no 0057014-54.2012.4.01.0000/DF, Rel. Des. Selene Maria de Almeida, j. 20/6/2013, DJ 28/6/2013. 5 A possibilidade de venda de produtos por preços inferiores ao custo, seja decorrentes de sonegação fiscal, seja decorrente de contrabando, motivou a mudança legislativa advinda através da Lei no 12.546/11, que estabeleceu preço mínimo para a venda de carteira de cigarro. 1

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Possibilidade jurídica de títulos de crédito virtuais ou escriturais Evangelina Castilho Duarte

Desembargadora do TJMG

O

I – Introdução presente trabalho tem a finalidade de discutir a possibilidade jurídica de emissão ou saque de títulos de crédito eletrônicos, virtuais ou escriturais, e sua validade como título executivo extrajudicial, à vista, principalmente, da edição da Lei no 11.076/04, que trata dos títulos do agronegócio. Para sistematização, é indispensável o exame daquele título cujo saque a legislação brasileira já vem sinalizando como eletrônico, ou seja, a duplicata, e daquele que a população já vem utilizando, sem questionamentos, que se trata de cheque virtual, ou seja, o uso de cartão magnético de crédito ou débito. Após esse exame, devem-se analisar a licitude e a possibilidade jurídica dos títulos escriturais do agronegócio como títulos de crédito e como títulos executivos extrajudiciais. Será feito exame da legislação aplicável: Lei no 10.406/02, Código Civil; Lei no 5.474/69, Lei das Duplicatas; Lei do Protesto, Lei no 9.492/97; Lei no 5.869/73, Código de Processo Civil; e Lei no11.076/04, Lei dos Títulos do Agronegócio. Para ilustrar, será feita análise de alguns julgados do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e do Superior Tribunal de Justiça. II – Título de crédito Título de crédito é o documento criado por lei para representar um determinado crédito, devendo conter certos requisitos que lhe dão idoneidade. Trata-se de 52

uma obrigação que nasce de uma declaração unilateral de vontade, conforme ensinamento de Arnaldo Rizzardo, in Títulos de Crédito, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2006, p. 6. É definição ditada pela doutrina de Vivante, ainda com fundamento nos conceitos existentes no século XIII, quando foram criados os títulos de crédito, e os meios de comunicação ainda eram precários, inseguros e violáveis. No mesmo sentido, o art. 887, Código Civil, também define o título de crédito como o documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido que somente produz efeitos quando preenche os requisitos da lei. Com fundamento nesse dispositivo legal, e na definição tradicional de título de crédito, tem-se como suas características a literalidade, a autonomia e a cartularidade. Literalidade decorre da existência disciplinada pelo seu exato conteúdo escrito, considerando-se aquilo que literalmente consta do documento. Autonomia decorre da circunstância que permite ao possuidor de boa-fé dispor de direito próprio, não afeto a substituição ou modificação que ocorram no negócio que lhe deu origem. Cartularidade decorre da materialização do conteúdo em um documento ou cártula. Assim, o Código Civil, em princípio, filia-se à teoria tradicional dos títulos de crédito, que considera indispensável para sua existência a configuração da literalidade, da autonomia e da cartularidade.

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Foto: Renata Caldeira Fotografia TJMG

A palavra cartularidade deriva de “cártula”, que significa pequeno papel, e que decorre da materialização do crédito em um papel ou documento. A teoria tradicional exige, para transferência do crédito, a necessária transferência do documento, considerando que não se pode falar em exigibilidade do crédito sem apresentação do documento no qual está materializado. A execução só seria viável com a apresentação do original do título executivo extrajudicial, que, na maior parte das vezes, é o título de crédito. A essa corrente filia-se, entre outros, Willie Duarte Costa, para quem não se admite título de crédito sem documento físico, nem é possível a assinatura digital, que lhe daria validade e existência. Porém, para que se averigue a possibilidade jurídica dos títulos de crédito eletrônicos, virtuais ou escriturais, é indispensável apurar sua viabilidade sem efetivação física em cártula ou instrumento que expresse e contenha o valor do crédito. Segundo Gustavo Henrique de Almeida, (in jus.com. br), impõe-se uma mudança nos paradigmas do Direito Cambiário e nos seus institutos, com a finalidade de se admitir a existência de títulos de crédito eletrônico, denominando-o de fenômeno da descartularização. Para isso, cita o conceito de documento ditado por Carnelutti, conforme ensinamento de Ana Paula Godinho Pessoa, segundo o qual o “documento no Novíssimo Digesto Italiano corresponde a uma coisa que faz conhecer um fato (allá cosa che fa conoscere um fatto), que tem a virtude de fazer conhecer.”

Assim, “a emissão do documento, seja sob a forma de cártula, seja por meio eletrônico, imposta em um ato que não é constitutivo do direito creditório, mas sim representativo dele através da declaração contida na cártula ou no meio eletrônico.” O Código Civil de 2002, entretanto, evoluiu da teoria tradicional dos títulos de crédito, materializados e cartularizados, admitindo sua emissão por meio eletrônico. Título de crédito eletrônico é aquele previsto no art. 880, § 3o, Código Civil. O título de crédito poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo. A evolução, especialmente dos meios de comunicação, levou ao atual estágio de comércio, que se passa, em grande parte, no meio virtual, servindo-se os contratantes de contatos pela internet, sem comparecimento presencial, com ajuste de cláusulas a distância, sem discussão. O art. 889, § 3o, Código Civil, mitigou, porém, aquela exigência de documento físico, permitindo a desmate­ rialização dos títulos de crédito, criando os títulos eletrônicos e admitindo sua emissão a partir de caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos estipulados pelo dispositivo legal para sua validade. Há uma mitigação da forma de emissão, exigida a observância dos requisitos de fundo, quais sejam, data de emissão, indicação precisa dos direitos que confere e assinatura do emitente.

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Daí se vê que há possibilidade legal de emissão de título de crédito eletrônico, tornando-se indispensável averiguar se o título eletrônico se equipara a título virtual ou escritural. III – Títulos de crédito eletrônico Impõe-se um exame da nomenclatura: títulos eletrô­ nicos, virtuais e escriturais, para se concluir se esses títulos se equivalem, ou não, e se a denominação pode ser usada de forma indiscriminada. O título escritural a que se está acostumado é o de participação de acionista em sociedade anônima, para cuja existência não se exige sua emissão física, bastando a escrituração contábil da titularidade com expedição de recibo de compra para o adquirente, que não é emitido pela empresa, mas por corretor de valores mobiliários. Porém, é necessário transplantar esse conceito para a utilização no moderno direito de títulos de crédito. Assim o fez a Lei no 11.076/04, ao criar títulos de crédito ligados ao agronegócio, permitindo sua emissão na forma cartular, escritural ou eletrônica. Vê-se, pois, que a Lei no 11.076/04 equipara títulos de crédito eletrônico a escritural. O título de crédito eletrônico é aquele emitido a partir de caracteres criados em computador, ou meio técnico equivalente, e que conste de escrituração do emitente. O comércio moderno não mais se dá por meio de transações presenciais, em que as partes contratantes discutem, de forma verbal e expressa, as condições ajustadas, os direitos e as obrigações assumidos. O chamado e-commerce foi incrementado a partir dos anos 90 do século XX, quando se incorporou, aos hábitos da população, o uso de computadores pessoais e da internet, primeiro, para pesquisas de assuntos diversos, e, depois, para a compra e a venda a distância, sem que se visualizasse a mercadoria adquirida, sem que se comparecesse a estabelecimento comercial e sem que os contratantes se vissem ou se falassem. As condições do comércio eletrônico estão impressas previamente na página (ou site) do vendedor, e, sendo aceitas sem discussão, a transação é aperfeiçoada com a aceitação pelo comprador, mediante simples click, e a indicação da forma de pagamento, quando fica estipulado o prazo para entrega. Para que a transação se aperfeiçoe, é indispensável a aceitação pelo comprador com a indicação da forma de pagamento, que pode ser mediante cartão de crédito ou débito ou por meio de boleto bancário a ser emitido, naquele mesmo momento, para pagamento em determinada data, quando começa a correr o prazo para entrega. Tem-se aí, pois, a celebração do contrato eletrônico de compra e venda, com emissão de cheque eletrônico para 54

pagamento, caso se faça a quitação com cartão de débito, que será acatado pelo banco sacado após a inserção da senha, que se equipara à assinatura eletrônica do sacador ou comprador. As condições do negócio jurídico de compra e venda foram estampadas no site, e os requisitos do cheque eletrônico (cartão de débito) foram expressas pelo comprador ao dar andamento à transação. A assinatura é eletrônica, mediante aposição da senha fornecida pelo banco ou criada pelo usuário. Sendo o pagamento ajustado por meio de boleto bancário, do mesmo modo, as condições do negócio estarão estampadas no site do vendedor e serão aceitas pelo comprador, mediante aposição de aceite e finalização da compra, permitindo a emissão do documento para pagamento. O boleto bancário, embora não se insira no rol de títulos de crédito admitidos pela legislação brasileira, nem tampouco como título executivo extrajudicial, admitido pela legislação processual, representa a transação firmada, indicando o valor a ser pago. No comércio eletrônico, porém, a entrega da mercadoria só se dará se houver pagamento, sendo inviável a hipótese de inadimplência, pois a quitação é requisito indispensável para o aperfeiçoamento do negócio. Impõe-se, nesse passo, observar que a transação pode ser presencial, para compra e venda ou prestação de serviços, dando ensejo à emissão de nota fiscal, que, sendo aceita, e contendo todos os requisitos indicativos do negócio jurídico, dará ao vendedor direito de saque de duplicata para cobrança do valor ajustado. A duplicata é título de crédito causal, que depende da existência de negócio subjacente, ou anterior, para lhe dar sustentação, só podendo ser sacada com base em nota fiscal de compra e venda de mercadorias ou de prestação de serviços. Daí decorre que, existindo nota fiscal de compra e venda de mercadoria ou de prestação de serviço, está o vendedor ou prestador de serviços autorizado a sacar a duplicata para cobrança, ou para negociá-la com instituição financeira, com a finalidade de obter recursos para incrementar sua atividade empresarial. Esse saque é que pode se ater ao disposto no art. 889, § 3o, Código Civil, ao ser feito pelo vendedor ou prestador de serviços, com base nos dados constantes da nota fiscal, sem materialização em documento formal ou sem cártula. Sacada a duplicata eletrônica, é viável sua negociação com instituição financeira, também por meio virtual, por meio de sistemas informatizados da credora e do banco, com o uso de chaves públicas e privadas, para lhe dar autenticação e lhe apor assinaturas em contrato de desconto.

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A Lei de Protestos, Lei no 9.492/97, admite, em seu art. 8o, parágrafo único, o protesto por indicação de duplicatas mercantis e de prestação de serviços, por meios magnéticos ou de gravação eletrônica de dados, com inteira responsabilidade do apresentante a respeito dos dados fornecidos. Vê-se, pois, que desde 1997, já se admite o protesto de duplicata eletrônica na modalidade de indicação. Quando se trata de título eletrônico, embora haja impropriedade na forma de protesto por indicação, posto que haja, na verdade e corriqueiramente, protesto por falta de pagamento, os dados dos títulos são indicados ao tabelião por meio eletrônico. O saque, como dito, é feito a partir dos dados da nota fiscal, para cuja validade se exige a entrega da mercadoria ou dos serviços, e apenas por meio eletrônico, sem materialização em documento. Para que se cumpra o indispensável aceite da duplicata eletrônica, é emitido um boleto de pagamento, que é remetido ao sacado, que, se não devolvido, será tido como acatado. A partir daí, e vencida a dívida e não paga, permite-se o protesto por falta de pagamento, com indicação eletrônica dos dados do título, repita-se, sem materialização. As Leis no 5.474/68 e no 9.492/97 autorizam a execução de duplicatas eletrônicas, com apoio em apresentação do boleto, quando, no processo, vierem apresentadas as notas fiscais, os comprovantes de entrega das mercadorias e os respectivos instrumentos de protesto por indicação. Assim tem decidido o egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO EMPRESARIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DUPLICATA MERCANTIL VIRTUAL. COMPROVAÇÃO DA ENTREGA DAS MERCADORIAS. PROTESTO POR INDICAÇÃO. EXISTÊNCIA DE LIQUIDEZ, CERTEZA E EXIGIBILIDADE DO TÍTULO. RECURSO PROVIDO. A duplicata mercantil virtual, acompanhada das notas fiscais, dos boletos bancários, dos comprovantes de entrega das mercadorias e dos comprovantes de protesto por indicação, se reveste de liquidez, certeza e exigibilidade, e, por isso, constitui documento hábil a embasar a execução ajuizada. (Apelação Cível no 1.0313.11.028872-4/001 – Relator: Des. Corrêa Camargo).

E mais:

APELAÇÃO CÍVEL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DUPLICATA. PROTESTO POR INDICAÇÃO. BOLETO BANCÁRIO ACOMPANHADO DO COMPROVANTE DE RECEBIMENTO DAS MERCADORIAS. DESNECESSIDADE DE EXIBIÇÃO JUDICIAL DO TÍTULO DE CRÉDITO ORIGINAL. SENTENÇA CASSADA. RECURSO PROVIDO.

I – Em consonância com recente jurisprudência do eg. STJ, o boleto bancário vinculado à duplicata, devidamente acompanhado do instrumento de protesto por indicação e do comprovante de entrega da mercadoria, supre a ausência física do título cambiário e constitui título executivo extrajudicial. (Apelação Cível no 1.0313.04.135870-3/001 – Relator: Des. Leite Praça).

Importa registrar que está retratada prática comercial corrente nos dias atuais, assim descrita por Fábio Ulhoa Coelho: Ao admitir o pagamento a prazo de uma venda, o empresário não precisa registrar em papel o crédito concedido; pode fazêlo exclusivamente na fita magnética de seu microcomputador. A constituição do crédito cambiário, por meio do saque da duplicata eletrônica, se reveste, assim, de plena juridicidade. Na verdade, o único instrumento que, pelas normas vigentes, deverá ser suportado em papel, nesse momento, é o Livro de Registro de Duplicatas. A sua falta, contudo, só traz maiores consequências jurídicas, caso decretada a falência do empresário. No cotidiano da empresa, portanto, não representa providência inadiável. O crédito registrado em meio eletrônico será descontado junto ao banco, muitas vezes em tempo real, também sem a necessidade de papelização. Pela internet, os dados são remetidos aos computadores da instituição financeira, que credita – abatidos os juros contratados – o seu valor na conta de depósito do empresário. Nesse momento, expede-se a guia de compensação bancária que, por correio, é remetida ao devedor da duplicata eletrônica. De posse desse boleto, o sacado procede ao pagamento da dívida em qualquer agência bancária de qualquer banco do país. Em alguns casos, quando o devedor tem seu microcomputador interligado ao sistema da instituição descontadora, já se dispensa a papelização da guia, realizando-se o pagamento por transferência bancária eletrônica. Se a obrigação não é cumprida no vencimento, os dados pertinentes à duplicata eletrônica seguem, em meio eletrônico, ao cartório de protesto (Lei no 9.492/97, art. 8o, parágrafo único). Trata-se do protesto por indicações, instituto típico do direito cambiário brasileiro, criado inicialmente para tutelar os interesses do sacador, na hipótese de retenção indevida da duplicata pelo sacado. (Curso de Direito Empresarial. v. 1. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 490).

E ainda nos tribunais: EMBARGOS DO DEVEDOR. EXECUÇÃO. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. PROTESTO POR INDICAÇÃO. NOTA FISCAL. COMPROVANTE DE RECEBIMENTO DA MERCADORIA. LEI No 5.474/68 (LEI DE DUPLICATA).

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A execução poderá ser promovida sem a apresentação da duplicata ou da triplicata, desde que a petição inicial venha acompanhada do comprovante do protesto e de documento hábil a comprovar a entrega e o recebimento da mercadoria, com fulcro no art. 15, § 2o, da Lei no 5.474/68. Recurso não provido. (Apelação Cível 1.0313.07.230871-8/001, Rel. Des. (a) Alvimar de Ávila, 12a Câmara Cível, julgamento em 25/1/2012, publicação da súmula em 6/2/2012). APELAÇÃO CÍVEL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICAL. BOLETO BANCÁRIO ACOMPANHADO DE NOTA FISCAL E ACEITE DO DEVEDOR. DESNECESSIDADE DE EXIBIÇÃO JUDICIAL DO TÍTULO DE CRÉDITO ORIGINAL. SENTENÇA CASSADA. As duplicatas virtuais – emitidas e recebidas por meio magnético ou de gravação eletrônica – podem ser protestadas por mera indicação, de modo que a exibição do título não é imprescindível para o ajuizamento da execução judicial. Lei no 9.492/97. Os boletos de cobrança bancária vinculados ao título virtual, devidamente acompanhados dos instrumentos de protesto por indicação e dos comprovantes de entrega da mercadoria ou da prestação dos serviços, suprem a ausência física do título cambiário eletrônico e constituem, em princípio, títulos executivos extrajudiciais. (Apelação Cível 1.0313.11.0316756/001, Rel. Des.(a) Antônio de Pádua, 14a Câmara Cível, julgamento em 23/8/2012, publicação da súmula em 6/9/2012). EXECUÇÃO. DUPLICATAS. AUSÊNCIA DE ACEITE. PROTESTO POR INDICAÇÃO - NOTA FISCAL. COMPROVANTE DE RECEBIMENTO DAS MERCADORIAS. DESNECESSIDADE DE JUNTADA DO ORIGINAL. TÍTULO HÁBIL. A duplicata sem aceite, além de protestada, deve estar acompanhada das respectivas notas fiscais e dos comprovantes de entrega da mercadoria para que configure título hábil a embasar execução. É desnecessária a apresentação da duplicata original quando a execução é instruída com as respectivas notas fiscais, nas quais consta o recebimento das mercadorias, mais os competentes instrumentos de protesto. (Apelação Cível 1.0702.09.573702-0/001, Rel. Des.(a) José Antônio Braga, 9a Câmara Cível, julgamento em 29/11/2011, publicação da súmula em 16/1/2012). Observa-se que as hipóteses tratadas nos arrestos transcritos fazem referência à possibilidade de protesto e de execução do título de crédito eletrônico, por falta de sua apresentação física nos autos, concluindo-se pela irrelevância da juntada, por haver permissão legal para saque da duplicata por esse meio. Os argumentos são, também, no sentido de que são possíveis o saque de duplicata eletrônica, seu protesto e sua execução. 56

Nesse sentido, já vem se manifestando o STJ: EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. DIVERGÊNCIA DEMONSTRADA. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DUPLICATA VIRTUAL. PROTESTO POR INDICAÇÃO. BOLETO BANCÁRIO ACOMPANHADO DO INSTRUMENTO DE PROTESTO, DAS NOTAS FISCAIS E DOS RESPECTIVOS COMPROVANTES DE ENTREGA DAS MERCADORIAS. EXECUTIVIDADE RECONHECIDA. 1. Os acórdãos confrontados, em face de mesma situação fática, apresentam solução jurídica diversa para a questão da exequibilidade da duplicata virtual, com base em boleto bancário, acompanhado do instrumento de protesto por indicação e das notas fiscais e dos respectivos comprovantes de entrega de mercadorias, o que enseja o conhecimento dos embargos de divergência. 2. Embora a norma do art. 13, § 1o, da Lei no 5.474/68 permita o protesto por indicação nas hipóteses em que houver a retenção da duplicata enviada para aceite, o alcance desse dispositivo deve ser ampliado para harmonizar-se também com o instituto da duplicata virtual, conforme previsão constante dos arts. 8o e 22 da Lei no 9.492/97. 3. A indicação a protesto das duplicatas mercantis por meio magnético ou de gravação eletrônica de dados encontra amparo no artigo 8o, parágrafo único, da Lei no 9.492/97. O art. 22 do mesmo Diploma Legal, a seu turno, dispensa a transcrição literal do título quando o Tabelião de Protesto mantém em arquivo gravação eletrônica da imagem, cópia reprográfica ou micrográfica do título ou documento da dívida. 4. Quanto à possibilidade de protesto por indicação da duplicata virtual, deve-se considerar que o que o art. 13, § 1o, da Lei no 5.474/68 admite, essencialmente, é o protesto da duplicata com dispensa de sua apresentação física, mediante simples indicação de seus elementos ao cartório de protesto. Daí, é possível chegar-se à conclusão de que é admissível não somente o protesto por indicação na hipótese de retenção do título pelo devedor, quando encaminhado para aceite, como expressamente previsto no referido artigo, mas também na de duplicata virtual amparada em documento suficiente. 5. Reforça o entendimento acima a norma do § 2o do art. 15 da Lei no 5.474/68, que cuida de executividade da duplicata não aceita e não devolvida pelo devedor, isto é, ausente o documento físico, autorizando sua cobrança judicial pelo processo executivo quando esta haja sido protestada mediante indicação do credor, esteja acompanhada de documento hábil comprobatório da entrega e recebimento da mercadoria, e o sacado não tenha recusado o aceite pelos motivos constantes dos arts. 7o e 8o da Lei. 6. No caso dos autos, foi efetuado o protesto por indicação, estando o instrumento acompanhado das notas

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fiscais referentes às mercadorias comercializadas e dos comprovantes de entrega e recebimento das mercadorias devidamente assinados, não havendo manifestação do devedor à vista do documento de cobrança, ficando atendidas, suficientemente, as exigências legais para se reconhecer a executividade das duplicatas protestadas por indicação. 7. O protesto de duplicata virtual por indicação apoiada em apresentação do boleto, das notas fiscais referentes às mercadorias comercializadas e dos comprovantes de entrega e recebimento das mercadorias devidamente assinados não descuida das garantias devidas ao sacado e ao sacador. 8. Embargos de divergência conhecidos e desprovidos. (EREsp 1024691/PR, Rel. Ministro Raul Araújo, 2a Seção, julgado em 22/8/2012, DJe 29/10/2012). EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DUPLICATA VIRTUAL. PROTESTO POR INDICAÇÃO. BOLETO BANCÁRIO ACOMPANHADO DO COMPROVANTE DE RECEBIMENTO DAS MERCADORIAS. DESNECESSIDADE DE EXIBIÇÃO JUDICIAL DO TÍTULO DE CRÉDITO ORIGINAL. 1. As duplicatas virtuais – emitidas e recebidas por meio magnético ou de gravação eletrônica – podem ser protestadas por mera indicação, de modo que a exibição do título não é imprescindível para o ajuizamento da execução judicial. Lei no 9.492/97. 2. Os boletos de cobrança bancária vinculados ao título virtual, devidamente acompanhados dos instrumentos de protesto por indicação e dos comprovantes de entrega da mercadoria ou da prestação dos serviços, suprem a ausência física do título cambiário eletrônico e constituem, em princípio, títulos executivos extrajudiciais. 3. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp 1024691/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3a Turma, julgado em 22/3/2011, DJe 12/4/2011).

Título eletrônico, pois, é aquele emitido ou sacado por meios eletrônicos, sem materialização, como permitido pelas Leis no 5.475/68 e no 9.492/98. Newton De Lucca, in Comentários ao Novo Código Civil, Dos Atos Unilaterais, Dos Títulos de Crédito, coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, arts. 854 a 926, vol. XII, Editora Forense, p. 140, embora equipare título eletrônico a título escritural, admite a validade da emissão da duplicata eletrônica, considerando-a, porém, como título atípico: Se se admite a existência da possibilidade, em nosso país, de livre criação de títulos à ordem, na linha de pensamento de Pontes de Miranda e de Carvalho de Mendonça, conforme já mencionado, razão inexistiria para não se

aceitar DEFM (duplicata-extrato em fita magnética) como título atípico.

E cita Fábio Ulhoa Coelho, in Curso de Direito Comercial, v. I, Editora Saraiva, São Paulo, 2002, p. 464: O direito em vigor dá sustentação, contudo, à execução da duplicata virtual porque não exige especificamente a sua exibição em papel, como requisito para liberar a prestação jurisdicional satisfativa. Institutos assentes no direito cambiário nacional, como são o aceite por presunção, o protesto por indicações e a execução de duplicata não assinada, permitem que o empresário, no Brasil, possa informatizar por completo a administração do crédito concedido.

Já o título escritural é aquele permitido pela Lei no 11.076/04 que não pode ser considerado idêntico ao título eletrônico, pois, para o primeiro, é indispensável a escrituração contábil da emissão ou do saque e dos dados do débito, enquanto, para o outro, é necessário que haja saque com fundamento em nota fiscal de prestação de serviços ou fornecimento de mercadorias, esta materializada. Identificam-se os dois pela desnecessidade de emissão ou saque por meio físico, bastando a existência de registros eletrônicos em poder do credor para sua validade. Como título virtual, por ora, apenas pode ser considerado o cheque, emitido com utilização de cartão magnético, e por meio de terminais do próprio banco sacado ou de equipamento eletrônico no estabelecimento beneficiário. A respeito desse título, ainda não se tem processos de execução, porquanto, uma vez emitido com utilização do cartão magnético e aposição de senha, que se equipara à assinatura digital, o débito é lançado de imediato na conta bancária do emitente, com crédito ao beneficiário por meio eletrônico, com pouca viabilidade de cancelamento posterior. No caso de utilização de cartão de crédito para pagamento futuro, é possível a contestação do débito lançado na fatura se houver discordância fundamentada, equiparando-se esse meio de quitação a cheque pósdatado. Logo, pode-se concluir que a legislação brasileira admite e permite a emissão ou o saque de títulos escriturais, eletrônicos ou virtuais, que não podem ser considerados idênticos, apenas aproximando-se por dispensarem a materialização do crédito em documento físico. Convém, ainda, observar que, para validade do título eletrônico ou virtual, é indispensável uma assinatura eletrônica para atender aos meios probatórios de um documento público, que se dá por meio de chaves públicas e privadas, que são identificações pessoais.

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Segundo Lais Andrade da Silva Santos, in Títulos de Crédito: uma análise sobre o princípio da cartularidade diante da desmaterialização dos títulos virtuais (jus.com. br) “assinatura digital é o resultado do emprego do sistema criptográfico de chaves públicas, gerando um conjunto de bits. Dependendo do sistema empregado, pode constituir um arquivo em separado ou ser integrante do próprio corpo do documento eletrônico, um inter-relacionado ao documento, se este sofrer qualquer alteração a assinatura será invalidada.” A chave privada é de uso pessoal e constitui a senha necessária para uso dos cartões magnéticos, e a chave pública é de conhecimento geral, necessária para decodificar os dados que antes foram codificados pela chave privada e só pode ser utilizada pelas autoridades certificadoras. A Medida Provisória no 2.200-2, de 2001, instituiu a infraestrutura de chaves públicas brasileira – ICP BRASIL, que garante a possibilidade de utilização da assinatura eletrônica por meio de criptografia assimétrica ou chave pública para ser estendida aos títulos de crédito, conforme seu art. 1o, de forma a dar credibilidade às transações realizadas sem materialização em documento físico. IV – Títulos de crédito do agronegócio Os títulos de crédito criados pela Lei no 11.076/04, chamados títulos de crédito do agronegócio, têm características próprias, pois visam a incrementar a atividade agropecuária e outras atividades a ela relacionadas. São eles o certificado de depósito agropecuário – CDA; o warrant agropecuário – WA; o certificado de direitos creditórios do agronegócio – CDCA; a letra de crédito do agronegócio – LCA; e o certificado de recebíveis do agronegócio – CRA, todos considerados pela lei como títulos de crédito. O certificado de depósito do agronegócio é título representativo de promessa de entrega de produtos agropecuários, seus derivados, subprodutos e resíduos de valor econômico, depositados em conformidade com a Lei no 9.973/00, nos termos do art. 1o, da Lei no 11.076/04, e está atrelado ao warrant agropecuário, que é título de crédito representativo de promessa de pagamento em dinheiro que confere direito de penhor sobre o CDA correspondente, assim como sobre o produto nele descrito. Vê-se, pois, que os dois títulos estão umbilicalmente relacionados, sendo o primeiro a promessa de entrega de produtos, e o segundo a promessa de pagamento em dinheiro, com penhor do próprio título anterior. Ambos podem ser cartulares ou escriturais ou eletrônicos, nos termos do art. 3o, da lei de regência, observando-se que há confusão terminológica ao se 58

permitir a emissão escritural ou eletrônica, pois, como visto, as duas formas não se confundem. Será escritural se constar apenas da escrituração contábil do emitente e do beneficiário, sem materialização em cártula, e será eletrônico se sua emissão se der a partir de caracteres criados em computador ou meio eletrônico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos do art. 889, Código Civil. O certificado de direitos creditórios do agronegócio – CDCA é título de crédito nominativo, representativo de promessa de pagamento em dinheiro, de emissão exclusiva de cooperativas de produtores rurais e de outras pessoas jurídicas que exerçam a atividade de comercialização, beneficiamento ou industrialização de produtos e insumos agropecuários e implementos utilizados na produção agropecuária. A letra de crédito do agronegócio – LCA é título de crédito nominativo, de livre negociação, representativo de promessa de pagamento em dinheiro, de emissão exclusiva de instituições financeiras públicas ou privadas. O certificado de recebíveis do agronegócio é título de crédito nominativo, de livre negociação, representativo de promessa de pagamento em dinheiro, de emissão exclusiva das companhias securitizadoras de direitos creditórios do agronegócio. Os três títulos só podem ser emitidos em forma escritural, nos termos dos artigos 35 e 37, § 1o, da Lei no 11.076/04, não havendo previsão de emissão cartular ou eletrônica, e devem ser registrados em sistema de registro e de liquidação financeira de ativos autorizados pelo Banco Central. A lei criou, pois, novos títulos de crédito, permitindo sua emissão escritural, sem materialização, ocorrendo o que a moderna doutrina chama de descartularização dos títulos. Como a Lei no 11.076/04 trata de novos títulos, com finalidades específicas e aplicação restrita ao universo do agronegócio, envolvendo os produtores, as cooperativas, as instituições financeiras e as companhias de securi­ tização em hipóteses restritas, é possível a emissão em forma escritural, porquanto os títulos destinam-se a fomentar a atividade agropecuária e, também, econômica, envolvendo atores que se relacionam nesse universo, de forma muito típica. Logo, conclui-se que são possíveis a emissão e a circulação de títulos escriturais à vista da criação legal e da previsão de mecanismos para suas negociação e cobrança. V – Execução de título desmaterializado O processo de execução tem a finalidade de satisfação do crédito estampado em um título executivo extrajudicial, desde que enumerado pelo art. 585, CPC, ou por lei.

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De conformidade com a lição de Arruda Alvim, Araken de Assis e Eduardo Arruda Alvim, in Comentários ao Código de Processo Civil, GZ Editora, 1a edição, 2012, p. 1005, “são títulos de crédito extrajudicial tão só aqueles documentos a que a lei, em sentido formal, outorga eficácia executiva. É irrelevante, portanto, a declaração em contrário das partes ou, inversamente, a cláusula executiva, convenção através da qual as partes, em alguns ordenamentos estrangeiros, atribuem eficácia executiva a certo documento. Aos particulares, no exercício do seu poder de disposição, se afigura lícito criar documento ao qual a lei outorga eficácia executiva, e não gerar semelhante eficácia em documento que a lei não contempla no rol do art. 585.” Adota-se o princípio da legalidade para criação do título executivo extrajudicial, sendo indispensável que uma lei, o Código de Processo Civil ou uma lei ordinária ou especial, confira executoriedade ao documento, não bastando a vontade dos contratantes. O art. 585, CPC, enumera quais são os títulos executivos extrajudiciais que dão suporte à execução, entre eles, a letra de câmbio, a nota promissória, a duplicata, a debênture e o cheque, conforme inciso I, e todos os demais títulos a que, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva, conforme inciso VIII. Conclui-se, pois, que sendo a duplicata e o cheque, títulos que interessam para esta análise, considerados como títulos executivos, e não tendo a lei processual restringido sua executoriedade à materialização em documento escrito, pode-se admitir a execução aparelhada com documento eletrônico ou virtual. Ora, a execução de duplicata eletrônica será aparelhada com cópia da nota fiscal de venda acompanhada do comprovante de entrega da mercadoria, com certidão do protesto por falta de pagamento ou de aceite, e com o boleto e o comprovante de sua remessa ao devedor sacado. Incumbirá ao devedor sacado produzir provas, em embargos, de que não celebrou contrato com o exequente, que não recebeu a mercadoria e que a assinatura aposta no comprovante de entrega não corresponde à de nenhum representante legal ou empregado do seu estabelecimento. Não se trata de produção de prova negativa, mas de produção de provas que afastem a exigibilidade do título. Pode-se, pois, concluir que há possibilidade jurídica da execução de duplicata eletrônica sem necessidade de sua cartularização. O cheque virtual, como já visto, é aquele emitido pela utilização de cartão magnético por meio de terminal do próprio banco sacado ou do comerciante com quem se celebra o contrato de compra e venda ou de prestação de serviços.

Para permitir a utilização do cartão magnético, a instituição financeira celebra com o usuário um contrato, e, emitido o cheque virtual, inexistindo fundos disponíveis, se acatada a ordem de pagamento, o banco poderá promover a execução com fundamento na utilização de crédito disponibilizado. Esse contrato, na atualidade, é materializado em cédula de crédito bancário, criada pela Lei no 10.931/04, que a considera como título executivo extrajudicial e que permite ao usuário a utilização de limite de crédito que lhe é garantido pela instituição financeira. Logo, o cheque virtual não será objeto direto de execução, viabilizando o procedimento com fundamento na cédula de crédito bancário emitida pelo usuário, aparelhada com extratos da utilização desse crédito. Por fim, os títulos escriturais do agronegócio, criados pela Lei n o 11.076/04, são títulos executivos extrajudiciais, por disposição expressa da norma criadora, permitindo, pois, o ajuizamento da ação de execução. VI – Conclusão A conclusão a que se chega, depois deste breve estudo, é que, parodiando o Desembargador Luis Carlos Gambogi, in Pós-modernidade, Estado de Minas, 8 de julho de 2013, para aceitar a existência dos títulos escriturais, eletrônicos e virtuais como títulos de crédito e como títulos executivos extrajudiciais, “é preciso substituir os óculos da época passada pelos do presente.” Assim, a lei brasileira admite, na atualidade, a existência e a exigibilidade dos títulos escriturais, eletrônicos e virtuais.

Referências Bibliográficas ALMEIDA, Gustavo Henrique. A suposta permissão do Código Civil para emissão eletrônica dos títulos de crédito à luz do princípio cambiário da cartularidade. Disponível em jus.com.br/revista/texto/18797. Acesso em: 18/7/2013. ALVIM, Arruda; ASSIS, Araken; ALVIM, Eduardo Arruda. Comentários ao Código de Processo Civil.1.ed. Rio de Janeiro: GZ, 2012. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. I. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2009. COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito. 4.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. DE LUCCA, Newton. Comentários ao Novo Código Civil, Dos Atos Unilaterais, Dos Títulos de Crédito, Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Arts. 854 a 926, Vol. XII, Editora Forense. GAMBOGI, Luis Carlos. Pós-modernidade. Estado de Minas – edição de 8 de julho de 2013. MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial brasileiro: títulos de crédito. v. 3. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2009. MATIELLO, Fabrício Zamprona. Código Civil comentado. São Paulo: Ltr, 2003. RIZZARDO, Arnaldo In Títulos de crédito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 6. SANTOS, Lais Andrade da Silva. (Títulos de crédito: uma análise sobre o princípio da cartularidade diante da desmaterialização dos títulos virtuais). Disponível em: jus.com.br/revista/texto/23073. Acesso em: 18/7/2013.

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Invista em Itaboraí

A capital dos bons negócios. Distante apenas 39km da capital do Rio de Janeiro, Itaboraí é hoje a grande oportunidade de excelentes negócios para empresas de diversos setores. Sede do Comperj - Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, e com uma Base Industrial e Tecnológica sendo implantada, o município terá em 10 anos, o seu PIB estimado em R$17 bilhões e sua população chegará a 1 milhão de habitantes nesse período. Esses empreendimentos estão atraindo empresas de diversos segmentos, pois hoje com a nova administração municipal, Itaboraí mostra um cenário de progresso e de modernização da cidade. Seu território faz divisa com Tanguá e Maricá, municípios que serão beneficiados pelo Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma via de escoamento que integrará uma importante região do estado que compreende de Itaguaí à Itaboraí, promovendo o desenvolvimento integrado de toda essa região.

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Itaboraí

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E m foco, por Ada Caperuto

“O aumento da participação on-line criou um caldo novo de cultura política” Entrevista com Pedro Abramovay, diretor de campanhas da Avaaz

N

esta entrevista exclusiva concedida à Revista Justiça & Cidadania, o advogado Pedro Vieira Abramovay, diretor de campanhas da organização não governamental interna­ cional Avaaz, fala sobre os resultados da atuação da entidade, as principais petições ativas em torno de temas nacionais e as mudanças ocasionadas pelo chamado “clicativismo” no mundo real e nas manifestações de rua. A Avaaz é hoje a maior e mais reconhecida comunidade on-line de mobilização do mundo, criada para convocar a população mundial a apoiar causas internacionais, a maior parte delas ligadas aos direitos humanos e ao combate à corrupção. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com mestrado em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília, Abramovay também é professor na FGV Direito Rio. Antes disso, ele foi secretário de assuntos legislativos do Ministério da Justiça (2007-2010) e ocupou a Secretaria Nacional de Justiça do governo federal (2010-2011). Entre os destaques de sua carreira está o fato de ter dado início ao primeiro processo de consulta pública colaborativa pela internet do governo, voltada para o marco civil da web, que deverá regular o uso da rede no Brasil e garantir os direitos dos usuários. Justiça & Cidadania – Como foi criada e qual a trajetória da Avaaz no Brasil? Pedro Vieira Abramovay – A Avaaz, que significa “voz” em várias línguas da Europa, do Oriente Médio e da Ásia, foi criada em 2007 por Ricken Patel, seu atual CEO. 62

Desde muito jovem, ele sonhava com a noção de “cidadão global”. A Avaaz tem a missão de mobilizar pessoas de todos os países para construir uma ponte entre o mundo em que vivemos e o mundo que a maioria das pessoas quer. Desde o início, o português foi uma das línguas oficiais da comunidade. A primeira campanha grande aqui no Brasil foi a da “Ficha Limpa”, em 2010, em que pressionamos pela votação do projeto no Congresso. JC – Qual é o número atual de membros, petições e assinaturas alcançado pela ONG no Brasil e no mundo? PVA – No mundo, são 24,5 milhões de membros, dos quais 4,7 milhões estão no Brasil. Desde 2007, 138 milhões de ações – assinaturas de petições e envio de mensagens aos tomadores de decisão, por exemplo – foram encaminhadas no mundo todo. São cerca de 900 campanhas até hoje. Desde que lançamos, em maio do ano passado, o site de petições da comunidade – no qual os membros podem iniciar suas próprias campanhas –, mais de 24 mil petições foram criadas no Brasil, e elas já angariaram quase sete milhões de assinaturas. JC – Quais são os temas de trabalho da Avaaz e de que maneira estes são selecionados para se transformarem nas causas defendidas pela ONG? PVA – As campanhas são definidas pelos membros da Avaaz. Todo ano, uma pesquisa é feita para definir temas prioritários (veja gráficos 1 e 2). As ideias de campanhas podem vir da própria equipe, a partir do que está presente nos noticiários nacional e internacionais, por exemplo, ou de sugestões enviadas por nossos membros. Pode ser,

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JC – A Avaaz atingiu milhões de membros em vários países. São diversas campanhas por mês. Qual a efetividade dessa mobilização? Como são mensurados os resultados alcançados? PVA – Vemos a internet como ferramenta para alcançar uma mobilização única, mas só isso não é suficiente: temos uma equipe capaz de, em dois dias, criar a campanha, preparar as estratégias, organizar atos em diferentes países, encontrar-se com líderes mundiais e influenciar o processo de tomada de decisão. Em nosso site na internet, listamos algumas das campanhas que mais se destacaram (veja quadro 1) – neste ano, conseguimos banir o uso de pesticidas que estavam matando as abelhas na União Europeia, por exemplo. Foram mais de dois anos de campanha. No Brasil, a “Ficha Limpa”, organizada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), foi uma das maiores campanhas das quais a Avaaz participou. Há, ainda, aquelas campanhas que dão um empurrão a mais ou ajudam a alcançar o resultado desejado – podemos mencionar, como exemplo, os vetos da Presidente Dilma ao texto do Código Florestal ou a PEC contra o trabalho escravo. Mesmo quando não alcançamos nosso objetivo, consideramos a campanha vitoriosa se ela fez com que as pessoas se sentissem mais conectadas ao processo democrático. Em nossa experiência, uma vez que as pessoas sentem o gostinho da participação, elas tendem a querer participar cada vez mais. Há tantas possibilidades diferentes de resultados que é difícil dizer quantas campanhas foram “vitoriosas”, mas fica claro para nós que as vozes dos nossos membros estão sendo ouvidas – o que consideramos um grande sucesso. JC – Quais são as maiores campanhas já realizadas pela Avaaz no Brasil e no mundo? PVA – A maior em termos mundiais, com mais de 3,5 milhões assinaturas, foi a campanha contra a “SOPA”, lei norte-americana que ameaçava a liberdade na internet. Após a mobilização de diversas organizações e indivíduos, o projeto foi engavetado. No Brasil, as maiores campanhas foram a “Fora Renan”, com mais de 1,6 milhão de assinaturas em questão de semanas, e a “Ficha Limpa”,

Foto: Conectas Direitos Humanos

também, que uma petição criada por um membro no site de petições da comunidade envolva um assunto de interesse nacional/internacional, e então a Avaaz pode apoiá-la e ajudar a amplificá-la. A partir disso, mandamos a campanha para uma amostra de dez mil membros, escolhidos aleatoriamente, e avaliamos a reação. Só mandamos para toda a lista se houver um nível alto de assinaturas nesse grupo amostral inicial. Se o retorno é baixo, é porque ou a campanha não é interessante, ou não mandamos o melhor texto, nesse caso, o reescrevemos.

Pedro Abramovay, diretor de campanhas da Avaaz

com mais de 2 milhões de assinaturas – somadas as dos 500 mil membros da Avaaz mais aquelas de pessoas que aderiram por meio da campanha do MCCE. A terceira maior foi contra a PEC 37 [o texto propunha a limitação do poder de investigação criminal às polícias federais e civis, retirando-o do Ministério Público, entre outras organizações], com mais de 840 mil assinaturas, e que saiu vitoriosa. JC – De que modo a ONG consegue atuar em tantas causas simultaneamente? Quantas pessoas trabalham nas equipes alocadas nos países-membros? PVA – A equipe remunerada da Avaaz tem menos de cem colaboradores, que trabalham em todos os continentes, com a ajuda de centenas de voluntários no mundo todo. Trabalhamos via internet, via videoconferência, como um “escritório virtual”. Não há uma divisão geográfica – cada um pode trabalhar na campanha em que tiver mais interesse. É uma equipe muito experiente, de gente que já trabalhou em governos, em grandes organizações da sociedade civil, universidades, e que está hoje dedicada à transformação social. JC – Como são estipuladas as metas de cada abaixoassinado? PVA – No caso das campanhas iniciadas pela Avaaz, as metas são estipuladas conforme o resultado que se

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quer alcançar e a quem ela é direcionada – o número de assinaturas para uma campanha nacional a ser entregue à Presidente da República é diferente de uma campanha municipal a ser entregue a vereadores, por exemplo. No caso das petições da comunidade, o membro define a meta que pretende atingir, também considerando esses fatores. No caso da petição pela saída de Renan Calheiros da presidência do Senado, o criador usou o critério da lei de iniciativa popular – 1% do eleitorado. JC – Atingidas as metas, de que modo os temas têm encaminhamento? PVA – Nem sempre o alvo da petição será alguém do governo. Ao elaborarmos uma campanha, pensamos em quem são as pessoas que podem efetivar a mudança que queremos, e elas serão nosso alvo – pode ser o CEO de uma grande empresa, por exemplo. A entrega é uma forma de mostrarmos ao responsável quantas pessoas se interessam por aquela questão específica. Quando fazemos a entrega, um integrante da equipe da Avaaz vai até o alvo da petição e conversa a respeito da questão, explica o motivo de as pessoas terem se mobilizado. No caso das petições criadas no site de petições da comunidade, o próprio autor pode fazer a entrega, inclusive imprimindo as assinaturas a partir da nossa plataforma. JC – A Avaaz é 100% financiada por doações feitas pelos membros. Quem são, no Brasil, os apoiadores da ONG? PVA – Qualquer um, desde que seja pessoa física, pode doar para a Avaaz. Não aceitamos doações de empresas nem de governos, e ninguém pode doar valor superior a cinco mil euros. JC – Qual o possível interesse de George Soros, homem de negócios e conhecido especulador em todo o mundo, em uma associação como a Avaaz? PVA – Em sua fundação, a Avaaz recebeu pequenas doações de cerca de US$ 5 mil de organizações parceiras, como a Res Publica, MoveOn e Open Society Foundation (fundada por George Soros). Esse dinheiro é mínimo considerando o orçamento da Avaaz hoje, e, desde 2010, a organização é 100% financiada apenas por doações de pessoas físicas. JC – Quais são as principais petições brasileiras que estão em andamento no site da Avaaz? PVA – Entre as campanhas nacionais que temos em andamento hoje, estão: “Voto Aberto Já”, contra o deputado Marco Feliciano na CDHM, contra Renan Calheiros na presidência do Senado e contra o plantio de cana-de-açúcar na Amazônia (veja quadro 2). 64

JC – Atualmente, o site da Avaaz abriga petição próimpeachment da Presidente Dilma Rousseff. Qual o seu entendimento dessa ação, uma vez que o senhor já ocupou cargos no governo federal? PVA – No site de petições da comunidade, qualquer pessoa pode usar nossa ferramenta para criar uma petição. É importante esclarecer que eu sou parte da equipe da Avaaz no Brasil. Nenhum membro da equipe pode decidir sozinho quais campanhas entram ou saem do site de petições da comunidade – todos precisam observar uma série de procedimentos, que eu explico a seguir. Em alguns casos, quando as petições vão claramente contra nossos termos de uso (como conteúdo racista, de ódio, etc.), nós as tiramos do ar imediatamente. Quando ela não viola frontalmente nossos termos de uso, mas gera controvérsia entre os nossos membros, fazemos uma pesquisa com uma amostra aleatória dos membros da comunidade e deixamos que eles decidam se devemos manter ou tirar a petição do ar. Foi o que aconteceu com a petição que pede o impeachment da presidente, e a pesquisa feita com os membros deu empate. Nessa situação, deixamos a petição no ar. Mesmo que, pessoalmente, eu discorde radicalmente da petição. Qualquer outra decisão não seria isonômica. JC – O chamado “clicativismo” é criticado como sendo “preguiçoso”. No entanto, assistimos, agora, às pessoas “saindo” das redes sociais e manifestando-se nas ruas. O “clicativismo” seria, então, um estopim para o ativismo na vida real? PVA – A internet tem alterado a forma como compramos, a forma como ouvimos música, o modo como nos informamos. Por que não alteraria a forma como nos manifestamos politicamente? Nada mais natural do que nesse ambiente no qual a pessoa se comunica diariamente ela vá também compartilhar suas visões políticas. Considerar que a política feita na internet é menos política desvaloriza essa parte importante da vida das pessoas. No meu ponto de vista, não existe essa divisão entre “clicativismo” e “ativismo da vida real” – ativismo é ativismo e pode ser feito de todas as formas que tivermos ao nosso alcance: manifestação na rua, na internet, por meio da arte... Dito isso, eu acredito que o aumento da participação on-line criou um caldo novo de cultura política. As pessoas passaram a ver o resultado das suas ações, passaram a querer participar cada vez mais. Isso, em um ambiente no qual a política tradicional está envelhecida e continua sendo feita do mesmo jeito há pelo menos vinte anos, ia explodir em algum momento – e explodiu, indo para as ruas.

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JC – A grande repercussão da Avaaz é, sem sombra de dúvida, um reflexo da “sociedade em rede”, o termo criado pelo sociólogo Manuel Castells. O senhor acredita que as recentes manifestações públicas no Brasil são também uma consequência da internet – algo tão somente permitido pela rede? PVA – Acho que a internet permite uma mobilização incrível – em questão de minutos, você está conectado com seus amigos, com os moradores da sua cidade, com gente do mundo todo, que pensa como você, tem as mesmas vontades e ideias. Com isso, foi peça-chave nas mobilizações não só no Brasil, mas também no Egito e na Turquia, por exemplo. Por meio da internet, a organização das manifestações ficou muito mais ágil, as informações sobre o que ocorria durante os protestos chegavam mais rapidamente, por meio de vídeos, atualizações instantâneas, relatos.

Campanhas que a Avaaz deve priorizar em 2013

Temas que a Avaaz deve priorizar em 2013

Combater à corrupção política em todo o mundo Combater o “tráfico de mulheres” Alcançar um tratado climático global forte Combater o desmatamento Combater a guerra global contra as mulheres Proteger nossos oceanos e a biodiversidade Ajudar a acabar com a pobreza Proteger a liberdade da internet Promover uma mudança cultural e maior Direitos Humanos Corrupção política Mudanças climáticas e meio ambiente Política econômica que beneficia o bem comum Pobreza e desenvolvimento Guerra e paz Biodiversidade e conservação

participação cívica Acabar com os subsídios fósseis Proteger uma mídia livre e combater a censura Promover paz entre Israel e Palestina Revitalizar instituições multilaterais como as Nações Unidas Desafiar as leis contra homossexuais

Movimentos democráticos Alimentos e saúde

Fonte: https://secure.avaaz.org/po/2013_global_survey_results/.

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Quadro 1 Principais resultados conquistados pela Avaaz nos últimos anos PETIÇÃO/TEMA

TOTAL APROXIMADO DE ASSINATURAS

Defesa da Amazônia: em parceria com o Greenpeace, o WWF e importantes organizações brasileiras, bem como com figuras públicas, os membros da Avaaz fizeram pressão para que a Presidente Dilma rejeitasse o projeto de lei que daria liberdade para derrubar grandes

2 milhões

áreas da Amazônia. Reconhecimento da Palestina como Estado: em 29 de novembro de 2012, a ONU reconheceu a Palestina como o 194o Estado do mundo em maioria esmagadora.

1,8 milhão

Programa de educação no Paquistão: aos 15 anos de idade, Malala Yousafzai foi baleada pelo Talibã porque lutava pela educação. A campanha conseguiu que o governo daquele

1 milhão

país oficializasse o programa de ajuda financeira educacional para 3 milhões de crianças. Combate ao tráfico sexual: pressionados, os hotéis Hilton concordaram em treinar todos os seus 180 mil funcionários internacionais a identificar e prevenir a indústria de

317 mil

exploração sexual. Área de proteção marinha ampliada: o Reino Unido anunciou seus planos de dobrar a área total de proteção dos oceanos com uma nova zona de conservação maior do que a Alemanha e a Itália juntas. No momento de consulta pública anterior à decisão, membros

221 mil

da Avaaz contribuíram com mais de 85% das respostas, pedindo apoio aos habitantes das ilhas e que fosse banida a pesca comercial. Liberdade aos trabalhadores imigrantes: a campanha obteve sucesso em liberar trabalhadores indianos que, iludidos por uma empresa de construção, ficaram presos

20 mil

no Bahrein. Fonte: http://www.avaaz.org/po/highlights.php.

Quadro 2 Principais petições brasileiras atualmente na Avaaz Tema da petição Impeachment do Presidente do Senado, Renan Calheiros. Imediata destituição do Pr. Marco Feliciano da presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal. Voto Aberto Já: pedido ao Senador Sérgio Souza, relator das propostas sobre o voto aberto no congresso, pelo fim do voto secreto nas votações mais importantes e pela abertura do processo para que todos possam ter conhecimento. Cana-de-açúcar na Amazônia: NÃO! O projeto de lei PLS 626/2011, que busca autorizar o plantio de cana-de-açúcar em áreas da Amazônia Legal, precisa ser questionado e rejeitado pelos senadores e senadoras.

Situação no final de julho de 2013 1.577,036 assinaturas Intenção de chegar a 10 milhões 550.718 assinaturas Intenção de chegar a 1 milhão 442.055 assinaram Intenção de chegar a 500 mil

127.317 assinaturas Intenção de chegar a 200 mil

Fonte: http://www.avaaz.org/po/petition/ 66

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