Edição 157 • Setembro 2013
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Justiรงa & Cidadania | Setembro 2013
S umário Foto: Estudio Casa 8
Capa – O desafio de
8 aplicar a jurisprudência 6
Editorial – Liberdade, sim! Bandidagem, não!
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Vitaliciedade é garantia da própria cidadania
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Considerações sobre o federalismo brasileiro
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O Judiciário e o interesse social na recuperação das áreas de risco
Limitação temporal dos efeitos penais e os maus antecedentes
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O STF e a violação aos princípios constitucionais
Algumas questões acerca do inventário negativo de bens no Direito brasileiro
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A boa-fé e a tutela da confiança
Jurisdição constitucional como fundamento para o efetivo acesso à Justiça
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A cada um, o seu
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Destituição do poder familiar
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Segurança jurídica no mercado de energia elétrica
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Dom Quixote – Agência de Redes para Juventude
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Os tribunais do século XXI
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Plebiscito seria a solução?
Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF
Foto: Fecomercio
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Reformas constitucionais e a crise do governo
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Reflexões sobre a Ação Penal 470
Edição 157 • Setembro de 2013 • Capa: Estudio Casa 8
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E ditorial
Liberdade, sim! Bandidagem, não!
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“A praça é do povo, como o céu é do condor” Castro Alves
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primado da liberdade, cantado em verso e prosa em todos os tempos pelo mundo afora, vem sendo enxovalhado nos últimos meses por corjas de baderneiros que se desmerecem pelo desmedido abuso das criminosas ações que praticam sob a égide da liberdade, abusando desse incontestável privilégio que constitui para a raça humana um dos mais preciosos dogmas. Repugna pela hediondez os nefastos e bárbaros atos de vandalismo, com depredações de fachadas de agencias bancárias, de lojas e concessionárias de automóveis, lojas de grifes, shopping centers, sedes de governo e tudo mais que encontram na sua caminhada de barbárie e de desordens inomináveis. Esse movimento arruaceiro e fascista, denominado Black Bloc, que surgiu, inopinadamente, aproveitandose das grandes passeatas de protestos ocorridos a partir de junho último, nos quais se infiltraram com objetivos e diretivas que ainda se desconhecem, tem conseguido, com os diversos atos praticados, provocar a repressão policial e criar um clima de baderna contra a ordem pública. Os integrantes, que usam máscaras para não serem identificados e acionados judicialmente por seus atos de vandalismo, visam – em uma hipótese dedutiva – provocar um clima para desmoralizar tudo o que simboliza o
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Foto: Sandra Fado
sistema capitalista, em uma estratégia para enfraquecer os sistemas político e econômico objetivando vantagens anárquicas ou fascistas. Diante dos fatos que ocorrem, torna-se estranhável a leniência e a omissão das autoridades de segurança pública ao não agirem com a devida prudência e destreza, além de não conseguirem, até agora, qualificar e distinguir no “ronco das ruas” os protestos legítimos dos inconformados e as indignações procedentes de atos inconsequentes de terrorismo. Os inadmissíveis atos de bandidagem protagonizados acintosamente por mascarados, como vistos constan temente na televisão e em fotos nos jornais, refletem essa inaceitável omissão das autoridades policiais, incompatível com a obrigação do Estado de Direito que se caracteriza pela primazia da lei e da segurança jurídica, e cujas obrigações não abrigam qualquer argumento político ou ideológico que justifique a impunidade de qualquer que ameace fisicamente, agrida moralmente, incendeie, destrua e propague a insegurança, o medo e o terror, como, lamentavelmente, vem ocorrendo. Diante do que vem acontecendo, o momento é propício para a tomada de atitudes rigorosas e soluções urgentes. A condescendência torna-se criminosa e atenta contra a ordem pública. Os absurdos fatos ocorridos e divulgados na imprensa e na televisão, como a imagem
de um bandido mascarado de pé na tribuna do Plenário, ameaçando publicamente a autoridade do presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, obrigando a suspensão da sessão legislativa, constitui um vergonhoso, inconcebível e inqualificável opróbio que desmoraliza, de forma infamante, a Casa Legislativa do Rio de Janeiro. Neste momento, em que a Nação se defronta com essas corjas de criminosos e agentes da confusão – sejam eles fascistas, anarquistas ou o que forem –, na tentativa infame de se contraporem ao Estado Democrático de Direito que o Brasil vivencia, a tolerância é zero e todos os meios de reação do poder público deverão ser dispostos para reprimir as hordas bárbaras que afrontarem o País. O preço da liberdade, conquistada com a queda da ditadura militar, foi alto e demasiado sacrificante para a sociedade. Por isso, não podemos, em absoluto, permitir que venhamos a retroceder. Basta de leniência e omissão !
Orpheu Santos Salles Editor
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C apa, por Ada Caperuto
O desafio de aplicar a jurisprudência Este é principal ponto apontado em entrevista por Paulo Dias de Moura quando questionado sobre como será sua missão como novo ministro do STJ. Ele acaba de tomar posse no cargo, ao lado de Regina Helena Costa e Rogério Schietti Cruz. Confira o que ele tem a dizer sobre esse e outros temas.
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m 28 de agosto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) oficializou a posse de três novos ministros. São eles: o desembargador Paulo Dias de Moura, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo; a juíza Regina Helena Costa, do Tribunal Regional Federal da 3a Região, e o procurador Rogério Schietti Machado Cruz, do Ministério Público do Distrito Federal. A nomeação, feita pela Presidenta Dilma Rousseff, foi publicada no Diário Oficial da União em 30 de julho. Regina Helena Costa possui mestrado e doutorado em Direito do Estado, com concentração na área de Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui experiência nas áreas de Direito Tributário e Direito Administrativo. Por concurso, tornou-se magistrada federal em 1991 e, em 2003, passou a integrar o TRF da 3a Região, sediado em São Paulo. Por sua vez, Rogério Schietti Machado Cruz, do Distrito Federal, é bacharel em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília, mestre e doutor em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo. Atuou como advogado de 1985 a 1987 e foi promotor de Justiça no Ministério Público do Distrito Federal, até tomar posse como procurador, cargo que ocupou de 2003 até a data de sua posse no STJ. 8
“O principal desafio é manter o objetivo que gerou a nomeação para o Superior Tribunal de Justiça, que é a aplicação da jurisprudência, e isso implica, naturalmente, em maior celeridade dos processos, na maior segurança das questões jurídicas, o que, em última análise, significa dizer que nós estamos adimplindo a dignidade humana, atendendo à necessidade do jurisdicionado, daquele que está procurando a solução da sua demanda.”
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Foto: Estudio Casa 8
Paulo Dias de Moura, ministro do STJ
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Foto: SCO/STJ
Nesta edição, a revista Justiça & Cidadania destaca a entrevista com o Ministro Paulo Moura, natural do município de Santos, no litoral sul paulista, com 60 anos recém-completados. Nossa reportagem conversou com o Ministro enquanto ele se preparava para a mudança para a Capital Federal, exatamente após sua despedida do TJSP, onde atuava desde 1983, quando, aos 30 anos, ingressou por meio de concurso na magistratura. Ocupando a vaga destinada a desembargadores da Justiça estadual, aberta com a aposentadoria do Ministro Massami Uyeda, Paulo Moura é graduado pela Faculdade Católica de Direito de Santos, possui especialização pela Universidade de Guarulhos, mestrado e doutorado em Direito pela PUC-SP. Foi com “uma alegria imensa no coração” que o novo ministro do STJ disse ter recebido a notícia de sua indicação, embora afirme que o cargo no Tribunal Superior não era exatamente um objetivo de vida. “Nunca pensei que seria indicado, mas também não deixei de considerar que isso um dia pudesse vir a acontecer, mesmo não sendo um objetivo de vida”, contou. Questionado sobre os principais desafios que deverá enfrentar como ministro do STJ, Paulo Moura sintetiza: “O principal desafio é manter o objetivo que gerou a nomeação para o Superior Tribunal de Justiça, que é a aplicação da jurisprudência, e isso implica, naturalmente, em maior celeridade dos processos, na maior segurança das questões jurídicas, o que, em última análise, significa dizer que nós estamos adimplindo a dignidade humana, atendendo à necessidade do jurisdicionado, daquele que está procurando a solução da sua demanda”, declara. O Magistrado também se manifestou sobre uma das questões mais debatidas pela mídia na atualidade: a busca de soluções, pelo Poder Judiciário, para os potenciais problemas que desaguam na lentidão da Justiça. Paulo Moura prefere não se pronunciar sobre o tema de uma maneira genérica, apontando esta ou aquela questão estrutural ou de gestão no Judiciário brasileiro. Ao contrário, prefere, de modo coerente, falar sobre a realidade que conhece e que vivenciou nos últimos 30 anos. “Eu respondo pela minha instituição e acho que o anteprojeto do Código do Processo Civil está trazendo um viés novo de celeridade processual, que são as hipóteses de conciliação e mediação, de soluções alternativas ao litígio. Isso vem ao encontro da resolução no 125 do Conselho Nacional de Justiça, de 2010. Ou seja, buscar a alternativa pacífica da lide, e não mais a solução da sentença. O caminho pela conversa, pelo diálogo. Acho que aí nós temos um grande caminho a percorrer”, afirma. Para o Ministro, essa seria a melhor resposta à complexa problemática que envolve as soluções mais
ágeis para, por exemplo, reduzir os volumes de processos que, ano após ano, chegam aos tribunais. “Não se deseja mais a solução adjudicada. Nós sabemos que todo caso tem um drama dentro dele, outras questões que precisam ser solucionadas. E é pela conciliação ou pela mediação que você tem essa amplitude da solução da lide, o que resolve muito mais do que simplesmente o caso posto. De outro lado, a gente também não vê descumprimento de acordo – são raríssimas as hipóteses nesse sentido. Ou seja, as pessoas se satisfazem com as soluções que elas mesmas deram para o caso”, avalia Paulo Moura. Ele também opinou sobre as reformas de seis Códigos legais brasileiros que tramitam no Congresso – o Comercial, o Penal, o de Processo Penal, o de Processo Civil, o de Direito do Consumidor e o Eleitoral. Questionado sobre a avaliação pessoal acerca da necessidade de mudanças nesses códigos e qual deles destacaria como o de maior urgência de atualização, o Ministro respondeu que é difícil apontar prioridades: “Todas são urgentes; toda legislação moderna que vem para ajudar, para melhorar a vida do cidadão, para que ele possa exercer com amplitude a sua cidadania, é urgente. Tudo deveria ser para ontem. Talvez o legislador saiba o momento certo de cada uma, mas eu não sei responder”. No viés específico da reforma eleitoral, ele também prefere transferir a responsabilidade para o Legislativo,
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nesse caso quando a pergunta se refere ao financiamento público de campanhas. “Vou dizer exatamente o que respondi na sabatina: algo precisa ser feito, mas nós não temos o poder de dizer o quê tem de ser feito. Nós podemos influenciar, mas o foro competente para dizer sobre isso, o único que existe, é o Legislativo – ele é quem tem de decidir essa questão”, sintetiza. Ainda nesse âmbito do conflito entre Judiciário e Legislativo, recentemente o ministro do Supremo Tribunal Federal Luis Roberto Barroso afirmou que a “intervenção do Judiciário no Legislativo deve ser exceção, e não regra”. Para Paulo Moura, a afirmação do colega do STF é algo que os representantes do Poder Judiciário vêm repetindo desde, pelo menos, Aristóteles – o filósofo grego que viveu por volta de 380 a.C.. “Nós não queremos intervenção, e, sim, a tripartição dos poderes na sua mais pura exegese, na sua mais pura interpretação. Não queremos nenhuma interferência. Eles só se sobrepõem quando alguma coisa desborda da legalidade, e aí é a hora da atuação do Judiciário. Fora disso, não”, disse ele, citando exemplos corriqueiros desse “desborde” nas muitas e muitas questões tributárias e previdenciárias que estão no dia a dia das decisões do Judiciário. Vale mencionar que na sabatina na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, realizada em 25 de junho, com a participação de 16 senadores, o
novo ministro do STJ também falou sobre temas como a PEC 37 – derrubada no Congresso naquela mesma noite – e a redução da maioridade penal, sobre o que se posicionou contrariamente, afirmando que isso “poderia criar novos problemas”. O magistrado também respondeu questionamentos sobre a reforma política e as manifestações populares, então em seu auge: “São legítimas e fazem parte do regime democrático. O problema são os atos de vandalismo. Isso, nenhum de nós quer.” Advogado militante de 1977 a 1983, Paulo Moura foi juiz substituto nos municípios paulistas de Franca, Teodoro Sampaio, Fernandópolis e Santo André até se tornar juiz titular na Capital. Foi promovido ao cargo de desembargador do TJSP em 2005, com assento na 11a Câmara de Direito Privado. Ele também atuou na docência, como professor da Faculdade de Direito da Universidade Ibirapuera, da Faculdade de Direito do Instituto Grande ABC de Educação e Ensino, da Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus, da Fundação Armando Álvares Penteado, do Centro Universitário Padre Anchieta, da Universidade de Guarulhos e da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É, ainda, autor dos livros Inconstitucionalidades da Lei do Divórcio (Julex, 1982) e Compromisso de compra e venda (Juarez de Oliveira, 2002).
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Reformas constitucionais e a crise do governo Membro do Conselho Editorial
Ives Gandra da Silva Martins Professor emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE
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á cinco reformas necessárias para diminuir o custo do Brasil e voltar o país a ter competitividade, a saber: a política, a administrativa, a trabalhista, a previdenciária e a do Judiciário. Todas as manifestações dos últimos tempos, em que as pessoas sabem o que não querem, mas não sabem o que querem, e o que pensam querer, não sabem como fazer, são a prova inequívoca de que há algo que não vai bem, no governo e no país. A maioria do povo que vai às ruas pede transparência, honestidade no trato da coisa pública e reformas. Abstraio os vândalos, que deveriam ser detidos, de imediato, sendolhes aplicada a lei penal vigente. Tanto o governo, como o Congresso, não perceberam a mensagem ou fingiram não perceber. A Presidente propôs um plebiscito que o povo não pediu. O Congresso criou uma Comissão de Reforma Política sem consultar a sociedade. O resultado esperado foi, nas pesquisas posteriores a essas iniciativas, o repúdio da opinião pública, com idênticos índices de repulsa, antes e após a realização das mesmas. Haveria necessidade de uma reforma administrativa para reduzir o peso da adiposa e esclerosada máquina pú blica, a começar no âmbito federal. Uma reforma tributária para eliminar a guerra fiscal de estados e municípios e para simplificar o sistema tributário também seria imprescin dível. A Comissão do Senado de que participei – eram 13 especialistas – propôs 12 anteprojetos de emendas constitu cionais, leis complementares, ordinárias e resoluções do Senado que jazem, em berço esplêndido, nos armários do Congresso. E, ainda, de rigor uma reforma trabalhista para nivelar o país às economias mais competitivas do planeta, assim como a reforma previdenciária – já em andamento –, 12
para equalizar os cidadãos de primeira categoria (aposen tadorias integrais – servidores públicos) e de segunda categoria (cidadãos comuns – dez salários-mínimos no máximo), em patamar que não viesse a implodir o sistema. A reforma do Judiciário é outra medida que se impõe, a começar pela exigência de que todos os assessores de ministros, que auxiliam na elaboração dos votos, sejam concursados para essa função, de preferência juízes. Não deveriam ser escolhidos livremente, algumas vezes sem a qualificação necessária ou sem independência, por pertencerem à Procuradoria da Fazenda Nacional e às procuradorias das Fazendas Estaduais, o que compromete a imparcialidade, quando União ou estados são partes nos processos. Quanto à reforma política, na Comissão da OAB-São Paulo que presido e que é constituída pelos seguintes juristas: Alberto Rollo, Alexandre de Moraes, Almino Affonso, André Ramos Tavares, Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, Cláudio Lembo, Dalmo Dallari, Dirceo Torrecillas, José Afonso da Silva, Maria Garcia, Ney Prado, Paulo de Barros Carvalho e Samantha Meyer Pflug, estamos estudando, a curto prazo, questões como o voto distrital, o financiamento de campanha, a reeleição, o número de partidos, as coligações e o plebiscito ou referendo. E, a longo prazo, bicameralismo ou unica meralismo, parlamentarismo ou presidencialismo. Todas essas matérias exigem reflexão de especialistas e de governantes, e, à evidência, por sua complexidade, não podem ser objeto de plebiscito, no máximo podendo aceitar-se um referendo. O certo, todavia, é que, mais do que as reformas, há necessidade de mudanças na política econômica do país. Ninguém discute se a Presidente Dilma é uma mulher honesta e trabalhadora. Todavia, seu estilo autoritário de
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Foto: Arquivo pessoal
conduzir o país torna seu ministério não um conselho, mas um grupo de ouvintes de suas ordens. Sem nomes de expressão, como nos ministérios do passado, são seus colaboradores comportados executores, que jamais contrariam as determinações da comandante. Talvez, o fato de ter, no passado, participado da luta armada, em movimento que, algumas vezes, assumiu facetas terroristas – com assassinato de inocentes em atentados a bomba, em shoppings e supermercados –, tenha incutido, no seu estilo de liderança, essa característica temperamental, detalhista e impositiva. Creio que possivelmente, por esse seu passado, é que a Presidente se sinta tão atraída pelas posturas de seus colegas bolivarianos: o falecido Chavez, Maduro, Morales, Corrêa e Cristina, todos aprendizes de ditadores. Tanto é assim, que permitiu a entrada da Venezuela no Mercosul – apesar de esse país não ter aceito, à época, a totalidade do acervo normativo do Tratado – e excluiu o Paraguai, que, na deposição do Presidente Lugo, apenas cumpriu o que determinava o artigo 225 de sua Constituição – ou seja, o afastamento por mau desempenho, em processo límpido, claro, com apoio popular e sem qualquer uso de força, permitindo, inclusive, que o deposto, logo em seguida, concorresse ao Senado. O governo desse país democrático não sofreu, nas ruas de suas principais cidades, grandes contestações por parte da sociedade, nem queda de popularidade, como a Presidente Dilma tem experimentado no Brasil. No Paraguai, não se controla o Judiciário como na Venezuela, que não permite sequer recontagem de votos, em uma eleição em que a ínfima diferença de votos a favor do candidato bolivariano eleito, justificaria que fosse feita, como ocorre nas verdadeiras democracias.
O certo é que a Presidente Dilma, em virtude de suas simpatias bolivarianas, passou a seguir a política de seus colegas, tornando-se acólita de Cristina, Maduro, Morales e Corrêa. E começa a colher os mesmos frutos, ou seja, baixo PIB, alta inflação, descontrole cambial, protestos populares e perda de competitividade internacional por força da má condução da economia, amarrada pelo Mercosul, impedida de fazer acordos internacionais, aceitando todos os desaforos econômicos de seus parceiros, violadores permanentes das regras do Tratado de Assunção. No seu estilo autoritário, investiu no consumo, e não no desenvolvimento empresarial, gerando inflação de demanda, no momento em que estimulou a baixa de juros. Quando Irving Fischer definiu que a teoria do juro é determinada pela oportunidade de investir contra a impaciência de gastar, quis mostrar que, quando se baixam os juros e estimula-se o consumo, a inflação é decorrência. E o mero consumo, sem investimentos em tecnologia e na indústria, tem vida curta. Não sem razão, o retrocesso econômico do Brasil, nestes dois anos e meio do governo Dilma, foi notório, com a agravante de, prisioneira de seus colegas bolivarianos, ter feito o Brasil perder a autonomia e a liberdade na celebração de acordos bilaterais, que lhe permitiriam melhorar não só a performance da balança comercial, como, pelo menos, reduzir o dantesco “déficit” do balanço de pagamentos. No modelo bolivariano, a máquina governamental cresce e sufoca o segmento privado, gerando pressão inflacionária que, segundo Steven Webb, foi o principal fator da hiperinflação da República de Weimar. Ora, a única forma de combater a inflação com redução de juros seria reduzir as despesas de custeio da máquina administrativa, algo que, no modelo bolivariano, é impossível e, no governo Dilma, inaceitável. Tanto que tem 39 ministérios... Nesse quadro em que o PIB decresce, a inflação cresce, o câmbio se descontrola, a máquina administrativa desperdiça, a balança comercial gera déficits e as contas externas se descompassam, causa espécie que a Presidente pretenda manter-se fiel aos ideais dos regimes bolivarianos e continue a não perceber que está levando o país a um fantástico retrocesso, sendo mais conduzida por seus parceiros do Mercosul do que pelos interesses do Brasil. Como cidadão que considera a Presidente Dilma uma mulher honesta e trabalhadora, gostaria que tivesse humildade de raciocinar e, analisando o fracasso de sua política econômica, decidisse, definitivamente, liberá-la das amarras ideológicas e passasse a cuidar dos verdadeiros interesses nacionais, que não são, necessaria mente, aqueles acalentados pelos seus amigos, aprendizes de ditadores. E que, para o bem do Brasil, mudasse o rumo de seu governo.
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Considerações sobre o federalismo brasileiro Enrique Ricardo Lewandowski
E
Membro do Conselho Editorial Ministro do Supremo Tribunal Federal
xistem basicamente duas formas de Estado, do ponto de vista estrutural: os Estados unitários e os Estados compostos. Os primeiros apresentam um único centro de impulsão política e governamental, ou seja, não possuem divisões internas. As circunscrições territoriais em que se dividem são, no máximo, dotadas de autonomia administrativa, como na França, por exemplo. Nesse tipo de Estado, os cidadãos submetem-se a um só governo e a uma só lei. Essa estrutura, em geral, é adotada em Estados de pequenas dimensões – seja do ponto de vista demográfico, seja do territorial – e, ainda, naqueles que apresentam uma relativa homogeneidade étnica ou cultural. Já os Estados compostos – e aqui serão examinados apenas os federais – subdividem-se em unidades política e administrativamente autônomas. Eles resultam, como regra, da união de dois ou mais Estados, ou, excepcionalmente, do desmembramento de Estados unitários, como ocorreu no caso brasileiro. A federação é um fenômeno novo historicamente. Surgiu da união provisória das treze ex-colônias britânicas na América do Norte, que se transformaram em Estados soberanos depois de 1776. Após se libertarem do jugo colonial, elas se associaram definitivamente, mediante a adição de uma constituição comum, em 1787, momento em que surgiu um novo Estado, a partir da fusão dos entes políticos que a subscreveram. Não se confunde com uma confederação, que é uma união precária de Estados, para fins econômicos 14
ou militares, e que tem como base jurídica um tratado de direito internacional. Uma federação (termo que vem do latim foedus, foederisi) consiste em uma união permanente e indissolúvel de entes políticos (estados, províncias, Länder, cantões, etc.), não admite a secessão, e tem como elo uma constituição comum. Trata-se de uma forma de Estado que assegura a seus membros as vantagens da unidade, preservando os benefícios da diversidade. Tendo em conta tais características, depois da experiência norte-americana, vários países adotaram a fórmula federativa. Em geral, países de grande expressão territorial e demográfica ou aqueles dotados de considerável diversidade étnica, cultural, religiosa, etc. Inicialmente, a estrutura federal foi escolhida como fórmula para melhor administrar a diversidade, dentro da unidade. Mas, depois, ela passou a ser adotada como um instrumento para o aperfeiçoamento da democracia, ensejando não só a desconcentração do poder político, como também uma maior proximidade do povo com os governantes. Apesar das múltiplas diferenças entre os vários Estados federais, todos eles asseguram aos entes políticos que os integram pelo menos quatro prerrogativas básicas: (i) autonomia política e administrativa; (ii) uma esfera de competências privativa; (iii) um conjunto de rendas próprias; e (iv) a participação nas decisões da União (comumente por meio do Senado). É importante sublinhar, aqui, que as autonomias política e administrativa
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Foto: Nelson Jr./SCO/STF
e o exercício de competências próprias – na realidade, encargos – nada significam sem a atribuição de rendas suficientes. O Brasil, como já se disse acima, adotou a estrutura federal na Constituição de 1891, quando se substituiu a monarquia pela república, inspirando-se os seus elaboradores no modelo desenvolvido nos Estados Unidos da América. A federação brasileira, porém, segundo os especialistas, padece de um “pecado original”: em vez de ter nascido, como nos EUA, de uma união de Estados soberanos, surgiu a partir do desmembramento de um Estado unitário. Com efeito, os atuais estados – na verdade, antigas províncias imperiais, despidas de poder político e de autonomia – tiveram de contentar-se, em 1891, com as competências e as rendas que lhes foram então atribuídas.
Mas é interessante notar que a federação brasileira, historicamente, passou por um “movimento pendular”. Passou por momentos de enorme concentração de competências e rendas ao nível da União e outros de grande desconcentração de poderes em favor dos estados e municípios. De fato, quando se adotou tal modelo em nossa primeira Constituição republicana, o federalismo brasileiro apresentou tamanho grau de desconcentração que alguns políticos e intelectuais temeram o esfacelamento do país. Alguns estados autodenominavam-se “soberanos”, legislavam sobre comércio interestadual, celebravam tratados internacionais, mantinham legações diplomáticas, contraíam dívidas externas sem autorização do Congresso Nacional, etc. Com a Reforma Constitucional de 1926, no entanto, o pêndulo federativo oscilou no sentido da centralização,
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Foto: Nelson Jr./SCO/STF
ampliando-se os poderes de intervenção da União nos estados, para colocar termo aos abusos neles verifi cados. E, com a Revolução Modernizadora de 1930, o federalismo brasileiro aprofundou esse movimento centrípeto, pois o governo central concentrou todos os poderes em suas mãos, passando a governar os estados por meio de interventores federais. Por força, sobretudo, da Revolução Constitucionalista de 1932, que eclodiu em São Paulo, promulgou-se a Constituição de 1934, que retornou, em linhas gerais, ao regime anterior à 1930 no que tange à autonomia dos estados. Mas ela subsistiu por apenas três anos, revogada que foi pela Carta imposta ao povo por Getúlio Vargas em 1937. Essa Carta instituiu o denominado “Estado Novo”, inspirado no fascismo europeu, permitindo que Vargas governasse mediante decretos e por intermédio de interventores nomeados para os estados. Esse regime autoritário durou até 1946, quando se promulgou quiçá a mais democrática das constituições brasileiras. Ela não apenas restaurou a autonomia dos entes federados, como também restabeleceu o equilíbrio entre os poderes e promoveu a eleição direta para todos os cargos da república. 16
Com o golpe político-militar de 1964, o pêndulo do federalismo voltou a oscilar no sentido da centralização. A Carta de 1967 e a EC no 1/69 levaram a uma extraordinária centralização, concentrando, na prática, todos os poderes nas mãos da União. Atribuiu-se a ela a competência para legislar sobre quase todo o direito material e adjetivo, inclusive por meio de decretos-leis. Ademais, governadores, senadores “biônicos”, prefeitos das capitais, de estâncias turísticas e de municípios considerados de “segurança nacional” eram indicados indiretamente, por processos espúrios. E, da renda nacional, apenas algumas migalhas eram destinadas aos estados e municípios, que foram reduzidos à penúria extrema. Com o processo de redemocratização do país, que culminou com a adoção da Constituição de 1988, o movimento pendular moveu-se novamente no sentido da descentralização. Entre as mudanças mais significativas por ela introduzidas, figura a ampliação da competência concorrente dos estados e do Distrito Federal. Outra foi a elevação do município à categoria de ente federativo (art. 1o da CF), conferindo-lhe a faculdade para elaborar a própria Lei Orgânica. Além disso, redistribuiu-se o “bolo tributário” nacional, incrementando-se as receitas dos entes federados, quer pela atribuição de novos impostos, quer pelo aumento de sua fatia nos “fundos de participação” destinados à partilha de tributos. A partir do governo Fernando Henrique Cardoso, contudo, verificou-se um novo movimento de centra lização em favor da União, sobretudo com as reformas previdenciária e administrativa, que retiraram a capa cidade dos estados de legislar sobre tais matérias. O processo continuou no governo Lula, com a reforma do Judiciário, que criou, entre outras novidades, o Conselho Nacional da Justiça e as súmulas vinculantes, e reduziu as competências dos Judiciários estaduais. Além disso, ampliou-se a competência da União de criar “contribuições sociais”, cuja receita não é partilhada pelos entes federados. O que fazer diante disso? É claro que ninguém vai imaginar que se possa voltar ao “federalismo dual” que vigorava no século XVIII, nos Estados Unidos, caracterizado pela existência de duas esferas estanques de competências e rendas – uma federal e outra estadual. É que não se pode ignorar que se instaurou, em todos os estados federais, o chamado “federalismo cooperativo” ou de “integração”. Neste, não obstante sejam as competências e rendas compartilhadas em certa medida entre a União, os estados e os municípios, o planejamento, sobretudo no campo da economia e das finanças, opera a partir do centro, refletindo o crescente intervencionismo governamental nos mais diversos setores da vida social,
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imprescindível, hoje, para enfrentar os desafios de um mundo globalizado e plural. Mas é evidente que alguma coisa precisa ser feita para não nos transformarmos em um Estado unitário de fato. Ou, na melhor das hipóteses, em um Estado Regional – à semelhança da Itália e da Espanha – no qual se concede às distintas regiões, subordinadas ao governo central, uma modestíssima autonomia. Daí os movimentos separatistas que se registram no norte italiano, cuja população, economicamente afluente, deseja trilhar caminhos próprios, e os que se desenvolvem entre os bascos e catalães, na península ibérica, os quais, ciosos de suas tradições multisseculares, pretendem alçar voos independentes. Vale lembrar que uma das chaves do sucesso da União Europeia, que caminha, segundo alguns, para um Estado Federal – não obstante a momentânea crise econômica por que passa atualmente –, resulta da adoção de dois princípios fundamentais: o da subsidiariedade e o da proporcionalidade. Consoante o primeiro, o ente político maior deve deixar para o menor tudo aquilo que este puder fazer com maior economia e eficácia. De acordo com o segundo, é preciso, sempre, respeitar uma rigorosa adequação entre meios e fins. Entre nós, o resgate do princípio federativo passa pela valorização da chamada “competência residual” dos estados, consagrada no artigo 25, § 1o, da Constituição Federal: “São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição”. Essa competência nos vem da tradição norte-americana segundo a qual as treze ex-colônias britânicas, transformadas em Estados, ao se unirem, entregaram à União apenas algumas das rendas e competências que possuíam originalmente, mantendo as demais. Não se ignora que o rol de competências enumeradas à União (arts. 21 e 22 da CF) é muito vasto, mas é preciso descobrir novas searas normativas que possam ser trilhadas pelos estados. Depois, cumpre explorar ao máximo as “competências concorrentes” previstas no art. 24 da Constituição vigente, impedindo que a União ocupe todos os espaços legislativos, usurpando a competência dos estados e do Distrito Federal nesse setor. Afinal, o § 1o do art. 24 estabelece, com todas as letras, que, “no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limita-se a estabelecer normas gerais”. E mais: o § 3o consigna que, “inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender às suas peculiaridades”. No Supremo Tribunal Federal, considerada a sua atual composição, já há uma visível tendência no sentido do fortalecimento do federalismo, prestigiando-se a autonomia dos estados e dos municípios, a partir de
“A tarefa de fortalecer o federalismo brasileiro, todavia, não é, evidentemente, uma tarefa restrita à Suprema Corte. Ela diz respeito, também, aos Judiciários Estaduais, às Assembleias Legislativas e às Câmaras Municipais, bem assim à sociedade em geral, que devem resgatar o espaço perdido nesse campo.”
inúmeras decisões, especialmente nas áreas da saúde, do meio ambiente e do consumidor. A tarefa de fortalecer o federalismo brasileiro, todavia, não é, evidentemente, uma tarefa restrita à Suprema Corte. Ela diz respeito, também, aos Judiciários Estaduais, às Assembleias Legislativas e às Câmaras Municipais, bem assim à sociedade em geral, que devem resgatar o espaço perdido nesse campo. Enfim, para recuperar as competências e rendas dos entes federados, em outras palavras, para resgatar o prestígio e o poder dos estados e municípios, é preciso uma grande dose de vontade política e, sobretudo, de audácia. Sim, porque, como dizia o imortal Goethe: “Existe gênio, poder e mágica na audácia”.
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Reflexões sobre a Ação Penal 470 “Sem reforma política tudo continuará como sempre”
Luís Roberto Barroso
Membro do Conselho Editorial Ministro do Supremo Tribunal Federal
Introdução ao voto do ministro Luis Roberto Barroso na Ação Penal 470 Nota do Editor O pensamento esposado pelo ministro Luís Roberto Barroso neste seu didático e bem formulado artigo, demonstra em síntese as aprimoradas reflexões, sobre a necessidade premente de urgentes modificações que terão de surgir para o fortalecimento cívico da sociedade e das instituições republicanas. As cotidianas transgressões imorais, anti-éticas e criminosas praticadas, a miúdo, por políticos desprovidos de compostura e desavisados da irres ponsabilidade com que conduzem sua vida pública, produzem essa fauna nauseabunda que, no caso, derivou para o crime do “Mensalão”. As palavras de incentivo à moralidade e aos bons costumes esculpidas no artigo do recém e benfazejo ministro do STF, refletem os anseios de todos quantos se preocupam com um futuro melhor para a Nação, consentâneo com a aspiração, o desejo e a necessidade que temos de encontrar homens e mulheres que, no exercício de cargos públicos, possam transmitir para a sociedade exemplos de abnegação, civismo, honestidade e bons propósitos. Oxalá que os resultados punitivos da Ação Penal 470 sirvam de exemplo aos que descuram das obrigações e se aproveitam do múnus público para enriquecer, como profetizou com contundente e pejorativa prédica, o ministro Ayres Britto, quando do julgamento da corrupção que condenou o governador de Brasília: “tem gente que sobe na vida para cometer baixaria”. 18
I Introdução 1. Por se tratar da minha primeira intervenção no julgamento da Ação Penal 470, sinto-me no dever de declinar algumas das minha pré-compreensões sobre o tema. A interpretação e a aplicação do Direito não é uma atividade mecânica nem comporta precisão matemática. Como consequência, o ponto de observação do intérprete e sua visão de mundo fazem diferença na construção dos seus argumentos e nas escolhas que, com frequência, precisam ser feitas. Por essa razão, considero um dever de honestidade intelectual explicitar os fatores que influenciam o meu modo de ver e pensar o caso em julgamento. E faço, portanto, algumas breves reflexões institucionais. Parte I – Algumas reflexões institucionais sobre a Ação Penal 470 II A Ação Penal 470 e a necessidade de reforma política 2. A sociedade brasileira está exausta do modo como se faz política no país. A catarse representada pelo julgamento da Ação Penal 470 é um dos muitos sinais visíveis dessa fadiga institucional. Sintonizado com esse sentimento, o julgamento dessa ação pelo Supremo Tribunal Federal, mais do que a condenação de pessoas, significou a condenação de um modelo político, aí incluídos o sistema eleitoral e o sistema partidário. A inquietação social pela qual tem passado o Brasil nos últimos meses se deve, em parte relevante, à incapacidade da política institucional de vocalizar os anseios da sociedade.
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3. As principais características negativas do modelo político brasileiro são: (i) o papel central do dinheiro, como consequência do custo astronômico das campanhas; (ii) a irrelevância programática dos partidos, que funcionam como rótulos vazios para candidaturas, bem como para a obtenção de recursos do fundo partidário e uso do tempo de televisão; e (iii) um sistema eleitoral e partidário que dificulta a formação de maiorias políticas estáveis, impondo negociações caso a caso a cada votação importante no Congresso Nacional. (Nada do que estou dizendo é novidade ou desconhecido. Por ocasião da minha sabatina, tive oportunidade de conversar com as principais lideranças do Congresso, quando pude constatar que essa percepção é geral, transpartidária). 4. Tome-se um exemplo emblemático. Uma campanha para Deputado Federal em alguns estados custa, em avaliação modesta, quatro milhões de reais. O limite máximo de remuneração no serviço público é um pouco inferior a vinte mil reais líquidos. De modo que, em quatro anos de mandato (48 meses), o máximo que um Deputado pode ganhar é inferior a um milhão de reais. Basta fazer a conta para descobrir onde está o
problema. Com esses números, não há como a política viver, estritamente, sob o signo do interesse público. Ela se transforma em um negócio, uma busca voraz por recursos públicos e privados. Nesse ambiente, proliferam as mazelas do financiamento eleitoral não contabilizado, as emendas orçamentárias para fins privados, a venda de facilidades legislativas. Vale dizer: o modelo político brasileiro produz uma ampla e quase inexorável criminalização da política. 5. A conclusão a que se chega, inevitavelmente, é que a imensa energia jurisdicional dispendida no julgamento da AP 470 terá sido em vão se não forem tomadas providências urgentes de reforma do modelo político, tanto do sistema eleitoral quanto do sistema partidário. Após o início do inquérito que resultou na AP 470 – com toda a sua divulgação, cobertura e cobrança –, já tornaram a ocorrer incontáveis casos de criminalidade associada à maldição do financiamento eleitoral, à farra das legendas de aluguel e às negociações para formação de maiorias políticas que assegurem a governabilidade. 6. O país precisa, com urgência desesperada, de uma reforma política. Não importa se feita pelo Congresso
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“Minha primeira reflexão: sem reforma política, tudo continuará como sempre foi. A distinção será apenas entre os que foram pegos e outros tantos que não foram.”
Nacional ou se, por deliberação dele, mediante participação popular direta. Mas é preciso fazê-la, com os propósitos enunciados: barateamento das eleições, autenticidade partidária e formação de maiorias políticas consistentes. Ninguém deve supor que os costumes políticos serão regenerados com direito penal, repressão e prisões. É preciso mudar o modelo político, com energia criativa, visão de futuro e compromissos com o país e sua gente. 7. Minha primeira reflexão: sem reforma política, tudo continuará como sempre foi. A distinção será apenas entre os que foram pegos e outros tantos que não foram. III A Ação Penal 470 e outros casos de corrupção 8. A Ação Penal 470 apurou fatos que teriam custado ao país, em termos de dinheiro público, cerca de 150 milhões de reais. De parte o custo pecuniário, não se deve descurar do custo moral e institucional representado por dinheiros não contabilizados, compra de apoio político e malfeitos diversos. É impossível exagerar a gravidade e o caráter pernicioso de tudo o que aconteceu. Porém, a bem da verdade, é no mínimo questionável a afirmação de se tratar do maior escândalo político da história do país. Talvez o que se possa afirmar, sem margem de erro, é que foi o mais investigado de todos, seja pelo Ministério Público, pelo Polícia Federal ou pela imprensa. Assim como foi, também, o que teve a resposta mais contundente do Poder Judiciário. 9. Deve-se celebrar a resposta institucional dada ao episódio, como uma reação à aceitação social e à impunidade de condutas contrárias à ética e à legislação. Mas não se devem fechar os olhos ao fato de que o chamado “Mensalão” não constituiu um evento isolado na vida nacional, quer do ponto de vista quantitativo (isto é, dos valores envolvidos), quer do ponto de vista qualitativo (da posição hierárquica das pessoas envolvidas). Justamente ao contrário, ele se insere em uma tradição lamentável, que vem de longe. Nos últimos tempos, com o despertar da cidadania e pela bênção 20
que são a liberdade de imprensa e a de expressão, tais fatos passaram a se tornar conhecidos e repudiados pela sociedade. E começam a ser punidos. 10. Em ligeiro esforço de memória, remontando aos últimos vinte anos, é possível desfiar um rosário de escândalos que custaram caro ao país. Também aqui, custos pecuniário e moral. Em 1993, veio a público, para espanto geral, o escândalo dos “Anões do Orçamento”, que envolveu o desvio bilionário de recursos públicos via emendas parlamentares à lei orçamentária. Em 1997, o escândalo dos Títulos Públicos ou dos Precatórios revelou um esquema que importou em perdas de alguns bilhões para a Fazenda Pública. O escândalo da construção do prédio do TRT em São Paulo, que veio à tona em 1999, implicou em desvio de muitas dezenas de milhões. O escândalo do Banestado, investigado em 2003, relacionou-se com a remessa fraudulenta para o exterior de mais de dois bilhões de reais. A lista é longa e pouco edificante. 11. Uma segunda reflexão: não existe corrupção do PT, do PSDB ou do PMDB. Existe corrupção. Não há corrupção melhor ou pior. Dos “nossos” ou dos “deles”. Não há corrupção do bem. A corrupção é um mal em si e não deve ser politizada. IV A Ação Penal 470 e a necessidade de mudanças de atitudes privadas 12. Faço uma observação final: a sociedade brasileira tem cobrado um choque de decência em muitas áreas da vida pública. É preciso mesmo. Seria bom, por igual, aproveitar essa energia cívica para a superação de inúmeras práticas privadas que inibem o avanço civilizatório. Das pequenas às grandes coisas. Por exemplo: acabar com a cultura de cobrar preço distinto com nota ou sem nota; não levar o cachorro para fazer necessidades na praia, sabendo que pouco depois uma criança irá brincar na mesma areia; não estacionar o carro na calçada e obrigar o pedestre a caminhar pela rua ou ultrapassar pelo acostamento, criando riscos e obtendo vantagem indevida. Nas licitações, não fazer combinações ilegítimas com outros participantes ou fazer oferta de preço abaixo de custo para, em seguida, exigir adicionais logo após obter o contrato. Para não mencionar as obviedades: não dirigir embriagado, não jogar lixo na rua e respeitar a fila. As instituições públicas são um reflexo da sociedade. Não adianta achar que o problema está sempre no outro e não viver o que se prega. 13. Uma terceira e última reflexão: cada um deveria aproveitar este momento, visto como um ponto de inflexão, e fazer a sua autocrítica, a sua própria reflexão pessoal, e ver se não é o caso de promover em si a transformação que deseja para o país e para o mundo.
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O Judiciário e o interesse social na recuperação das áreas de risco Helda Lima Meireles
N
Desembargadora do TJRJ
a defesa de interesses coletivos, existem diversas ações em curso relativas à recuperação das encostas situadas nas regiões que põem em perigo centenas de pessoas em áreas com risco geológico muito alto, segundo diversos inquéritos civis instaurados e estudos perpetrados pelos órgãos competentes. Os diversos pedidos quanto a essa problemática, a contrario sensu, não possuem dimensão amplíssima, como se quer crer, e também não menos uma feição complexa e
genérica, mas, sim, demonstram a necessidade premente da implementação de medidas reparatórias nas 120 ações em tramitação e que estão bem delimitadas nos pedidos até então apresentados pelo Ministério Público. Aliás, nesses casos, a implantação dos recursos públicos deve ser perpetrada de forma completa, efetiva, e não ao bel-prazer dos governantes e governos que, em omissão desarrazoada, prestigiam as obras de visualização internacional, em detrimento daquelas que confeririam aos seus cidadãos o mínimo de dignidade.
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Ora, efetivar plano de medidas de engenharia, geotecnia e intervenção urbanística, nas áreas classificadas sob ameaça de escorregamentos e deslizamentos, a fim de reduzir a classificação de risco até o nível baixo; determinar a obrigação de fazer, consistente na recuperação de toda a extensão da área desmatada por meio da implementação de programa de plantio de espécies nativas; determinar que estado e município cumpram a sua obrigação de implantar uma rede de saneamento básico nas comunidades, inclusive evitando novas ocupações irregulares e desmatamento, são medidas razoáveis, proporcionais e legais, e, sobretudo, constitucionais. Não se trata de substituir-se o Judiciário ao administrador na eleição de prioridades, métodos e prazos para o atingimento dos objetivos públicos, e, sim, fazer cumprir determinações legais (leis que afinal advêm do Poder Legislativo, que detém a legitimidade para representar os titulares do Poder – o povo). Compete ao poder público instituir política de desenvolvimento urbano, voltada à garantia do bem-estar dos seus habitantes, e não tratar com negligência relevante problema social, qual seja, o abandono das regiões de baixa renda. Portanto, não pode servir de justificativa a gestão temerária da máquina pública para desamparar direitos basilares do cidadão. A Constituição de 1988 foi, de todas as Constituições brasileiras, aquela que mais procurou inovar tecnicamente em matéria de proteção aos direitos fundamentais e o fez com um propósito definido, que se infere do conteúdo de seus princípios e fundamentos, qual seja, a verdadeira busca em termos definitivos de uma compatibilidade do Estado social com o Estado de Direito, mediante a introdução de novas garantias constitucionais, tanto do campo objetivo como do subjetivo. De fato, surge para os magistrados o dever de tomar decisões que implementem políticas públicas, visando garantir o mínimo existencial, quando o Executivo se queda inerte diante de sua função imposta no Estado Democrático de Direito. Expoente no assunto relativo a políticas públicas e direitos sociais, Gustavo Binenbojm ensina importante lição quanto à necessidade de ser abandonada pela cultura jurídica a dicotomia entre atos administrativos vinculados e discricionários, até mesmo porque atos discricionários não podem importar em perpétua inércia do poder público na implementação de políticas preventivas e repressivas, de molde a assegurar a concretização de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos garantidos pela Constituição Federal: A discricionaridade deixa de ser um espaço de livre escolha do administrador para se convolar em um resíduo de legitimidade, a ser preenchido por procedimentos técnicos e jurídicos prescritos pela Constituição e pela lei com vistas à otimização do grau de legitimidade da decisão 22
administrativa. Com o incremento da incidência direta dos princípios constitucionais sobre a atividade administrativa e a entrada no Brasil da teoria dos conceitos jurídicos indeterminados, abandona-se a tradicional dicotomia entre ato vinculado e ato discricionário, passando-se a um sistema de graus de vinculação à juridicidade; (…) Assim, não há espaço decisório da Administração que seja externo ao direito, nem tampouco nenhuma margem decisória totalmente imune à incidência dos princípios constitucionais (...) (BINENBOJM, Gustavo. A constitucionalização do Direito Administrativo no Brasil: um inventário de avanços e retrocessos. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, no 13, mar./abr./maio, 2008. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/RERE13-MAR%C7O-2007-GUSTAVO-BINENBOJM.PDF>. Acesso em: 14 out. 2011).
O Judiciário não deve mais eximir-se do controle de tais atos discricionários. Não se trata apenas de averiguar formalmente aspectos de legalidade, pois todos os ramos de direito, inclusive a seara administrativa, devem se amoldar aos ditames constitucionais. É exatamente nessa perspectiva que se aborda o princípio da juridicidade em uma definição muito mais ampla e adequada do que o conceito de ato administrativo discricionário nele inserido. Sem dúvidas, o papel do Judiciário no tema não é simples até para fins de determinar os limites dessa sindicabilidade judicial em relação à atuação dos demais poderes da República. Os casos dessas áreas em situação de risco são apurados por não poucos laudos produzidos, e todos eles por órgãos públicos de natureza técnica: GEO-RIO, Defesa Civil, Empresa Estadual de Obras Públicas, etc. Não é possível ao administrador público eleger outra providência que não agir para prevenir novas ocorrências similares às que assistimos com grande pesar, diante do risco de renovação de tragédias climáticas. Na ausência de plano de atuação do poder público, é forçoso o acolhimento das pretensões de toda uma comunidade implorando pela solução de questões várias, com respaldo em diversos pareceres técnicos. Tanto o estado como o município tentam por meio da realização de aerolevantamento, implantação de sistemas de alarme e radar meteorológico, resolver problema de tal magnitude. Não. Isso é pouco. Muito pouco. O escopo é maior: obter uma efetiva e direta medida do poder público perante o direito mais básico do cidadão: a vida. A omissão do Executivo na condução das obras mínimas necessárias ao rebaixamento do elevado risco de escorregamento de terras, comprometendo centenas de vidas humanas, autoriza a incursão do Poder Judiciário
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como única possibilidade de salvaguarda da ordem jurídica, nos seus mais relevantes vértices axiológicos. Ademais, as intervenções não devem ser de caráter genérico em todas as áreas de risco do município, mas, sim, em uma atitude de prudência, elegendo aquelas em que maiores são as probabilidades de deslizamento de terras. O aforamento de diversas demandas precedeu-se, ainda, de reuniões e audiências com as autoridades públicas, sobretudo as da alçada municipal, o que ainda mais afasta o caráter de intromissão no juízo discricionário do administrador público. Ocorre que a municipalidade, mesmo depois de se comprometer a tomar medidas, permaneceu inerte, só procedendo ao mínimo dos mínimos após a interposição de diversas ações. Necessário que se relembre que foram liberados para o Estado do Rio e municípios milhões de reais pelo Ministério da Integração Nacional para a solução dos problemas apresentados, a fim de que o poder público local pudesse enfrentar as situações de emergência. Nessas ações judiciais, normalmente, as alegações são de que seria necessário dar primazia ao chamado “princípio da reserva do possível”, porém, os entes públicos não logram, em nenhum momento do curso processual, demonstrar a insuficiência orçamentária alegada, inobservando, assim, a súmula no 241 desta eg. Corte. Há de se ter em mente que se trata de uma República Federativa, em que vigora o Federalismo Cooperativo efetivo entre os entes. O artigo 23, incisos I, VI, IX e parágrafo único da CR, igualmente não afasta a obrigação estatal. A missão, de fato, é constitucional. Até mesmo em sede infraconstitucional, a Lei no 12.340/10 prevê expressamente o dever do ente público estatal de promover as obras de contenção necessárias ao apoio dos cidadãos (art. 3o-A, § 2o, III e § 3o, e art. 3o-B). E, mais recentemente, a Lei no 12.608/12, em seus artigos 2o, 3o e 4o, e seus incisos. A mitigação dos riscos não é favor que é prestado pelo poder público. É dever institucional imposto pela mais alta norma do nosso país: a Constituição da República. Há muito que o C. Supremo Tribunal Federal vem ressaltando que: O Poder Público – quando se abstém de cumprir total ou parcialmente o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional – transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1484-DF, Rel. Min. Celso de Mello (...) A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É
“De fato, surge para os magistrados o dever de tomar decisões que implementem políticas públicas, visando garantir o mínimo existencial, quando o Executivo se queda inerte diante de sua função imposta no Estado Democrático de Direito.” que nada se revela mais nocivo, perigoso, e ilegítimo do que elaborar uma Constituição sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. (ARE 639.337 AgR/SP, STF).
E, atualmente, outra não tem sido a interpretação dada pelo órgão máximo de nosso Judiciário, intérprete da Constituição da República, como se observa, por exemplo, dos seguintes julgados: AI 835956-AgR, RE 700227-ED, RE 563144-AgR-DF. A urgência é premente e não pode ser relevada, sob pena de continuarmos colocando em risco diversas vidas humanas, como já dito. A fixação e o valor das astreintes em caso de descumprimento são de extrema necessidade, claro que sem excessos, com a determinação de um prazo razoável para o seu cumprimento. Não podemos olvidar a visita tão abençoada do Papa Francisco ao Rio de Janeiro e, em especial, à comunidade de Varginha, no Complexo de Manguinhos, na qual ele pediu que as autoridades públicas ficassem mais comprometidas com a justiça social. As ruas por onde o Papa passou foram asfaltadas, deixando o restante da comunidade esquecida. Não adianta “maquiar” a cidade para eventos como a Copa e as Olimpíadas se o povo clama pelo atendimento de suas necessidades básicas. Ninguém pode permanecer insensível às desigualdades que ainda existem no mundo – repetindo as palavras do Sumo Pontífice. O Poder Judiciário não pode fechar os olhos ao apelo da sociedade, que busca, na realidade, o direito mais fundamental do cidadão – a dignidade –, até porque todos os magistrados devem estar comprometidos com o seu relevante papel – a busca da mais lídima Justiça e da igualdade social.
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O STF e a violação aos princípios constitucionais Ophir Cavalcante Junior
Advogado
U
ma das matérias mais tormentosas à advocacia é fazer chegar ao Supremo Tribunal Federal recursos extraordinários em que se debate a existência de violação aos princípios da legalidade, da ampla defesa, do devido processo legal, do contraditório, dos limites da coisa julgada, da motivação dos atos decisórios e da prestação jurisdicional por configurarem, via de regra, violações indiretas ou reflexas.1 Com efeito, em que pese reconhecer a dificuldade da Suprema Corte em processar as centenas de recursos extraordinários em que os recorrentes alegam a violação de princípios e, até mesmo, de certo modo, reconhecer que essa jurisprudência defensiva é correta na maioria dos casos, creio que não se pode deixar de analisar cada caso concreto sob pena de se negar a missão do próprio Tribunal. Realmente, há questões que apresentam relevância sob o ponto de vista jurídico, com especial repercussão no patrimônio daqueles que batem às portas da Corte, onde se debatem situações que implicam em inequívocas violações à norma constitucional, dentre as quais se podem destacar os princípios da legalidade, do devido processo legal e da segurança jurídica. Detendo-nos um pouco mais, por exemplo, sobre a “segurança jurídica”, é imperioso buscar em Gilmar Mendes a exata dimensão da sua importância para o próprio Estado de Direito: Em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria ideia de justiça material.2
De igual modo, Luís Roberto Barroso, festejado jurista e agora ministro da Suprema Corte, igualmente defende 24
a importância da segurança jurídica para se alcançar a justiça material ao estabelecer que o desenvolvimento, doutrinário e jurisprudencial, da expressão “segurança jurídica” passou a designar um conjunto abrangente de ideias e conteúdos, que incluem: 1. a existência de instituições estatais dotadas de poder e garantias, assim como sujeitas ao princípio da legalidade; 2. a confiança nos atos do Poder Público, que se deverão reger pela boa-fé e pela razoabilidade; 3. a estabilidade das relações jurídicas, manifestada na durabilidade das normas, na anterioridade das leis em relação aos fatos sobre os quais incidem e na conservação de direitos em face da lei nova; 4. a previsibilidade dos comportamentos, tanto os que devem ser seguidos como os que devem ser suportados; 5. a igualdade na lei e perante a lei, inclusive com soluções isonômicas para situações idênticas ou próximas.3
E não para por aí: Os atos praticados a cada dia pelo Poder Público, e entre estes os atos jurisdicionais, além dos efeitos específicos que se destinam a produzir, formam o que é percebido como o padrão de conduta das autoridades estatais. Procurando adequar-se a esse padrão, os particulares praticam atos que repercutem sobre suas esferas de direitos e obrigações, fiados na legítima expectativa de que o Estado se comportará, no presente e no futuro, de forma coerente com sua postura no passado. Note-se, portanto, que o dever de boa-fé é um limite jurídico à ação discricionária do poder estatal, que não pode simplesmente adotar qualquer comportamento, encontrando-se vinculado a agir de maneira uniforme diante de situações idênticas, não surpreendendo o particular injustificadamente, em desrespeito à segurança jurídica. (Grifo nosso.)
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O padrão de conduta do Poder Público gera nos particulares uma expectativa legítima de que a atuação estatal não irá surpreendê-los, sendo certo que essa expectativa não deve ser frustrada pelo Estado. Reconhecendo a existência de situações específicas em que não se pode aplicar essa jurisprudência defensiva, a Suprema Corte vem admitindo o debate em torno da violação ao artigo 5o, e seus incisos, da Constituição Federal.4 Das decisões citadas, cabe destacar a ementa do RE 398.407, da Relatoria do Ministro Marco Aurélio, que bem sintetiza a mitigação que há de ser feita em cada caso concreto: Não se coaduna com a missão precípua do Supremo Tribunal Federal, de guardião maior da Carta Política da República, alçar a dogma a assertiva segundo a qual a violência à Lei Básica, suficiente a impulsionar o extraordinário, há de ser frontal e direta. Dois princípios dos mais caros na sociedade democráticas e, por isso mesmo, contemplados pela Carta de 1988, afastam esse enfoque, no que remetem, sempre, ao exame do caso concreto, considerada a legislação ordinária – os princípio da legalidade e do devido processo legal. (RE 398.407, DJ 12/12/2004, Rel. Min. Marco Aurélio).
Como bem sintetiza Teresa Arruda Alvim Wambier, “há casos em que o excesso de regras em torno da admissibilidade desses recursos (excepcionais) leva a contrassensos. Exemplo disso é a regra no sentido de que só cabe conhecer de ‘ofensa direta’ à Constituição Federal.” E justifica: Esta regra, em nosso entendimento, leva a um paradoxo: a Constituição consagra certo princípio e se, pela sua relevância, a lei ordinária o repete, por isso, o Tribunal, cuja função é a de zelar pelo respeito à Constituição Federal, abdica de examinar a questão.5
Bruno Dantas, doutor em Direito e ex-conselheiro do CNJ, reconhece que: (...) a aplicação da doutrina da ofensa direta não pode ser automática e cega. Antes, o STF deve verificar, caso a caso, se a gravidade da violação não é tal que acaba por infirmar o próprio texto constitucional. Nessa linha de raciocínio, o ponto fulcral, segundo pensamos, deveria residir na intensidade da ofensa reflexa, inadmitindo-se aqueles recursos em que se verificasse um baixo grau de intensidade.6
O critério do “grau de intensidade”, proposto por Bruno Dantas, parece-me extremamente interessante como standard básico para balizar a análise da violação a princípios constitucionais, pois se trata de fazer respeitar postulados essenciais ao Estado de Direito, como a segurança jurídica, a legalidade e o devido processo legal, que, quando negados, acabam por infirmar o próprio texto constitucional, ou seja, se mantiver de forma cega a jurisprudência defensiva da Corte, todas as vezes em que for violado um princípio constitucional pela lei ou por uma decisão judicial, o Supremo Tribunal Federal não poderá proceder a correção dessa decisão, ficando atado, como bem referiu o Min. Marco Aurélio no RE 236.233/ DF, a um “dogma sacrossanto dissonante da Constituição e colocando em plano secundário a violência intermediada pelo desrespeito a normas estritamente legais.”
Notas 1 “EMENTAS: 1. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Alegação de ofensa ao art. 5o, XXXV e LV, da Constituição da República. Ofensa constitucional indireta. Decisão mantida. Agravo regimental não provido. As alegações de desrespeito aos postulados da legalidade, do devido processo legal, do contraditório, dos limites da coisa julgada e da prestação jurisdicional, se dependentes de reexame prévio de normas inferiores, podem configurar, quando muito, situações de ofensa meramente reflexa ao texto da Constituição. 2. RECURSO. Agravo. Regimental. Jurisprudência assentada sobre a matéria. Caráter meramente abusivo. Litigância de má-fé. Imposição de multa. Aplicação do art. 557, § 2o, c.c. arts. 14, II e III, e 17, VII, do CPC. Quando abusiva a interposição de agravo, manifestamente inadmissível ou infundado, deve o Tribunal condenar a agravante a pagar multa ao agravado.” (AI-AgR 548172 PE, Relator: Ministro Cezar Peluso. Julgamento: 27/11/2007). No mesmo sentido: AI-AgR 643463 AM, Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Julgamento: 2/10/2007; AgR-RE-245.580/PR, Relator: Ministro Carlos Velloso, 2a Turma, in DJ de 8/3/2002). 2 MENDES, Gilmar. Direitos fundamentais e controle de constitucio nalidade. Estudos de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 212. 3 BARROSO, Luís Roberto. Revista Eletrônica de Direito Processual. vol. III. p. 2-17. Disponível em: <http://www.redp.com.br>. 4 RE 158.215-4/RS, 154.159/PR, 198.016-8/RJ, 398.407, 231.452/PR, RE 163.301/AM. 5 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controles das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e ação rescisória. São Paulo: RT, 2001, p. 169-171. 6 DANTAS, Bruno. Repercussão geral. 3. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 183.
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A boa-fé e a tutela da confiança
José Geraldo Antonio
Desembargador do TJRJ
Princípios da boa-fé objetiva e tutela da confiança na formação dos contratos – Interpretação dos atos jurídicos sob a ótica do Código Civil vigente – A cláusula geral do artigo 422 do Código Civil – Deveres anexos – Preceito de ordem pública partir da vigência do novo Código Civil, restaram superadas todas as discussões sobre a imprescindibilidade da observância dos princípios éticos e morais (consubstanciados na boa-fé objetiva e na confiança) na formação, na execução e na conclusão dos negócios jurídicos. Em conjugação aos limites à liberdade de contratar estabelecidos no artigo 421 do Código Civil, condicionando-os à função social do contrato, o artigo 422 do mesmo código erige os princípios da boa-fé objetiva em preceito de ordem pública: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boafé.” Diante desse novo regramento principiológico do direito obrigacional e dos contratos, todas as lições doutrinárias até então ministradas e aceitas passaram a exigir nova leitura.
A
Os princípios da função social e da boa-fé objetiva, insculpidos nos artigos 421 e 422 do Código Civil, serão os dois inexpugnáveis pilares de sustentação da teoria 26
geral dos contratos, traduzindo necessário temperamento dos valores clássicos da autonomia da vontade e da força obrigatória. (SOUZA, Sylvio Capanema de. Comentários ao novo Código Civil. v. VIII. São Paulo: Forense, 2004, p. XII).
A aplicação da cláusula geral inserida no artigo 422 do Código Civil, consoante entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência, impõe ao juiz, na interpretação das relações obrigacionais, a observância dos princípios da boa-fé objetiva, cujos pilares compreendem a lealdade e a confiança entre os contratantes. Essa função interpretativa dos contratos é fixada no art. 113 do C. Civil, enquanto a função limitadora que a boa-fé impõe ao exercício de um direito encontra abrigo no artigo 187 do mesmo código. A terceira função exercida pela boa-fé objetiva, segundo consagrado na doutrina, cuida dos denominados deveres anexos, ínsitos a qualquer negócio jurídico e que devem ser observados desde a fase pré-contratual e se estendem à pós-contratual. Os deveres anexos, por serem inerentes a todo negócio jurídico, não necessitam previsão no instrumento negocial e se relacionam à lealdade e à confiança entre os contratantes. Tanto nas tratativas como na execução, bem como na fase posterior de rescaldo do contrato já cumprido (responsabilidade pós-obrigacional ou pós-contratual), a boa-fé objetiva é fator basilar de interpretação.
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Foto: Flávia Rodrigues/Amaerj
Dessa forma, avalia-se sob a boa-fé objetiva tanto a responsabilidade pré-contratual, como a responsabilidade contratual e a pós-contratual. Em todas essas situações, sobreleva-se a atividade do juiz na aplicação do Direito ao caso concreto.” (VENOSA, Silvio de Salvo. Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 368-370). Ao principio da boa-fé empresta-se, ainda, outro significado. Para traduzir o interesse social de segurança das relações jurídicas, diz-se, como está expresso no Código Civil alemão, que as partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas. Numa palavra, devem proceder com boa-fé. (...) Além dos deveres principais, que constituem o núcleo da relação contratual, há deveres não expressos cuja finalidade é assegurar o perfeito cumprimento da prestação e a plena satisfação dos interesses envolvidos no contrato. (...) A boa-fé, enquanto fonte geradora de deveres, encontrase presente no artigo 422 do Código Civil. Não obstante o dispositivo mencionar apenas a conclusão e a execução do contrato, é certo que a boa-fé cria deveres anexos também na fase pré-contratual.” (GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.43-45).
No prisma da confiança, sua quebra caracteriza o venire contra factum proprium que, segundo a doutrina
(Professor Cristiano Sobral. Princípio da boa-fé objetiva, p.2), tem como requisitos: • a existência de uma conduta anterior, relevante e eficaz; • o exercício de um direito subjetivo pelo mesmo sujeito que criou a situação litigiosa devido à contradição existente entre as duas condutas; • a identidade de sujeitos que se vinculam em ambas as condutas; • um dano ou, no mínimo, um potencial de dano a partir da contradição. O direito moderno não compactua com o venire contra factum proprium, que se traduz como exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente (MENEZES CORDEIRO, Da Boa-fé no Direito Civil, 11/742). Havendo real contradição entre dois comportamentos, significando o segundo quebra injustificada da confiança gerada pela prática do primeiro, em prejuízo da contraparte, não é admissível dar eficácia à conduta posterior. (Resp. n. 95539-SP Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar). A boa-fé nos negócios jurídicos impõe a aplicação da ideia de confiança e responsabilidade, pelas quais, se uma das partes com sua manifestação de vontade suscitou na outra
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parte uma confiança, no sentido objetivamente atribuível à dita declaração, esta parte não pode impugnar este sentido e pretender que o negócio jurídico tenha outro sentido, diverso daquele esperado razoavelmente pelo destinatário da declaração. Isso quer dizer que as declarações de vontade devem ser interpretadas conforme a confiança que hajam suscitado de acordo com a boa-fé. (OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes de. Novo Código Civil anotado – arts. 1o a 232. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 217-218).
Extrai-se dessas considerações legais, doutrinárias e jurisprudencial que ao julgador se impõe, na interpretação de qualquer negócio jurídico, a observância dos princípios da boa-fé objetiva, neles acoplada a tutela de confiança. Assim, não pode o julgador, na avaliação da relação jurídica que lhe é submetida, descaracterizar a natureza contratual do instrumento a ela correspondente, sem observar aqueles princípios que alcançam, na função dos deveres anexos, inclusive, a fase pré-contratual. Na abordagem do prof. Arnaldo Wald sobre a matéria na Revista Forense, vol. 386 – “Doutrina” –, o insigne catedrático da Uerj comenta o princípio da confiança: 8. Na realidade, a boa-fé já era referida no Código Civil de 1916, mas significava tão somente a ausência de má-fé, ou seja, de dolo, da intenção de prejudicar. Atualmente, na acepção que lhe dão o Código de 2002 e a jurisprudência, constitui um dever de cooperação, de realização de obrigações secundárias implícitas e, no fundo, de atendimento à confiança depositada por um contratante no outro, à expectativa gerada, pelo contrato, para as partes que o firmaram, ou mesmo independentemente da existência de convenção. 9. Verifica-se, assim, que ao dever de atuar de boa-fé que se impõe a cada pessoa corresponde o direito de outrem de ver realizada a sua expectativa, ou seja, de não ser frustrada a confiança que depositou no co-contratante ou em terceiro. 10. A inclusão da confiança entre os valores jurídicos legalmente protegidos é fato relativamente novo, sendo relevante especialmente no direito comercial e no direito administrativo. 12. No Superior Tribunal de Justiça, a matéria foi tratada várias vezes, em importantes acórdãos, especialmente a partir de 1990, invocando-se tanto o respeito ao princípio da confiança quanto ao devido processo legal substantivo, ou, ainda, a vedação de “venire contra factum proprium” como princípio geral do direito. Todos os casos tratam, na realidade, do que se poderia denominar, com o prof. Atílio Alterini, de “responsabilidade objetiva derivada da geração de confiança”. 35. Pode-se afirmar assim que “a confiança exprime a situação em que uma pessoa adere, em termos de atividade 28
ou de crença, a certas representações passadas, presentes ou futuras, que tenha por efetivas”. A confiança contém, evidentemente, um elemento ético da maior relevância, podendo até afirmar-se que a recente jurisprudência incorporou ao direito um valor que anteriormente era simplesmente moral e não jurídico. Tanto assim que se conclui que a confiança é protegida quando, da sua preterição, resulte atentado ao dever de atuar de boa-fé ou se concretize um abuso de direito. 36. A confiança legítima é também considerada criadora de um direito subjetivo, fazendo prevalecer, em determinados casos, a vontade declarada sobre a vontade real. 37. O que pode parecer estranho na responsabilidade decorrente da frustração da confiança depositada numa pessoa é que, em determinados casos, ela não pretendeu obrigar-se, nem cometeu alguma falta, não tendo necessariamente agido com culpa ou dolo, mas, não obstante, tornou-se devedora ou responsável perante a quem nela confiou. Há, todavia, uma condição básica e que consiste no fato de ter o prejuízo decorrido da confiança que inspirou o responsável, criando-se uma expectativa em favor de outrem, que assim se torna credor no momento da frustração que passa a sofrer. 38. É com base na confiança depositada em outrem que, em certos casos, se valoriza a declaração unilateral de vontade, que se justificam os efeitos do mandato aparente e que se admite a revisão do contrato. 39. Na realidade, desloca-se, com essa nova fonte das obrigações, o foco que o direito tinha em relação à própria responsabilidade, vinculando-a tradicionalmente ao comportamento do responsável, ou seja, do devedor. Já, no caso de aplicação do princípio da confiança, enfatiza-se o direito do credor à segurança, ou seja, ao cumprimento das promessas por ele deduzidas do comportamento alheio em virtude da relação de confiança. 40. Como bem afirma Jean Calais-Auloy, a proteção do devedor não é esquecida, mas, no caso, passa após a do credor. É aliás uma das tendências da evolução mais recente da responsabilidade civil, a que nela vislumbra um dever de garantir a segurança de pessoas ou bens. 41. Assim, ainda em meados do século passado, Georges Ripert caracterizava a evolução da responsabilidade civil como tendo ocorrido mediante uma mudança de prisma. No capítulo intitulado “A distribuição dos riscos” do seu livro sobre o regime democrático e o direito civil, examinava a evolução que tinha ocorrido, partindo do conceito de responsabilidade para chegar ao de reparação e afirmando que: O direito contemporâneo, por todas essas razões, olha o lado da vítima e não o do autor. É a razão pela qual o nosso direito atual tende a substituir a ideia de responsabilidade pela reparação do dano.
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Essas preleções sintetizam o pensamento doutrinário moderno sobre a boa-fé e a tutela da confiança nas relações obrigacionais. E diferente não é o entendimento pretoriano sobre a questão aqui abordada, como o demonstram os Enunciados do Centro de Estudos Jurídicos do Conselho Nacional de Justiça: – Enunciado 24: “Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa.” – Enunciado 25: “O art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual.” – Enunciado 26: “A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes.” – Enunciado 27: “Na interpretação da cláusula geral da boa-fé, deve-se levar em conta o sistema do Código Civil e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos.” – Enunciado 363: “Os princípios da probidade e da
confiança são de ordem pública, estando a parte lesada somente obrigada a demonstrar a existência da violação.”
Conclusão A nova ordem jurídica implantada com o vigente Código Civil inseriu no direito das obrigações a eticidade comportamental, estabelecendo os princípios da boa-fé objetiva e da confiança como preceito de ordem pública, vinculando-os ao poder de interpretação do julgador. Tem-se, pois, mitigada a autonomia da vontade na formação dos contratos e, via de consequência, a cláusula pacta sunt servanda perde sua amplitude, por força da limitação da liberdade de contratar submetida à função social estatuída no artigo 421 e dos princípios éticos e morais consagrados no artigo 422, ambos do vigente Código Civil brasileiro. Destarte, à luz da nova ordem jurídica, tornou-se pacífico na doutrina e na jurisprudência que a boa-fé objetiva deve estar presente em todos os negócios jurídicos, e o comportamento de lealdade e confiança exigido das partes alcança a fase pré-contratual e se estende à pós-contratual. De consequência, a violação desses princípios, insculpidos no artigo 422 do Código Civil, obriga a parte inadimplente a reparar patrimonialmente a parte prejudicada.
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A cada um, o seu
José Geraldo da Fonseca
ontrato de trabalho é um acordo tácito ou escrito que corresponde à relação de emprego e une o empregado (pessoa física) ao patrão (pessoa física ou jurídica) em uma única relação jurídica. Relação de emprego é uma relação de fato no qual uma das partes (o patrão) está na posição jurídica de poder exigir, e a outra (o empregado), na situação jurídica de ter de obedecer. Esse contrato não tem conteúdo específico e resume uma obrigação de fazer: prestar trabalho a outrem sob subordinação e mediante salário. Como todos os demais tipos de contrato, o contrato de trabalho contém um feixe de atribuições ligadas diretamente à atividade principal para a qual o empregado é contratado e outro feixe de atividades correlatas que complementam essa obrigação principal. A doutrina costuma dizer que essas obrigações principais constituem o “núcleo do contrato”; as correlatas ou acessórias compõem as suas “obrigações periféricas”. Em princípio — e porque o contrato de trabalho não tem conteúdo específico —, o empregado se obriga a prestar em favor do patrão as obrigações principais, que estão no núcleo do seu contrato, e as correlatas, que estão ao seu alcance e o completam1. Nem o empregado pode se recusar a cumpri-las nem o patrão pode exigir dele o cumprimento de funções que não estejam no rol de atividades complementares ou acessórias das obrigações principais. Se, por exemplo, uma pessoa é contratada para trabalhar em uma casa de família como babá, no núcleo 30
Foto: Rafaela Fnseca
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Membro do Conselho Editorial Desembargador do TRT-1ª Região
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do seu contrato de trabalho está a obrigação de zelar pela criança, mas está também no rol de suas ocupações correlatas ou acessórias arrumar o quarto do bebê, dar-lhe refeições ou remédios, ou arrumar os brinquedos no lugar próprio enquanto o bebê dorme. Deve ocupar-se de todas as demais tarefas que complementem a principal, que é cuidar do bem-estar da criança, mas não tem nenhuma obrigação de preparar a comida dos viventes da casa, lavar ou passar o enxoval da família, ou cuidar da piscina, por exemplo. Essas atividades domésticas não são correlatas às de babá e não complementam a obrigação principal que constitui o núcleo desse contrato de trabalho doméstico. Integram um novo núcleo de atividades que seriam próprias de um outro tipo de trabalho doméstico que não pode ser executado na mesma jornada de trabalho da babá. Dou outro exemplo: não constitui infração ao contrato de trabalho o fato de uma empresa de ônibus exigir dos seus motoristas que abasteçam o veículo e calibrem os pneus antes de sair, ou que controlem a lotação dos veículos e efetuem a cobrança dos bilhetes de viagem dos passageiros que embarcam fora do ponto inicial. Todas essas atividades são periféricas àquela que constitui o núcleo da obrigação do motorista – a direção do veículo. Tanto no caso da doméstica quanto no do motorista, não há fundamento legal para que se obrigue o patrão a pagar aos empregados dois salários, isto é, o de babá e de arrumadeira para o caso da doméstica, ou de motorista e de cobrador para o caso dos motoristas de ônibus. A lei não proíbe que patrões e empregados domésticos combinem pagamento extra para uma ou outra função que não esteja no núcleo do contrato doméstico, assim como não veda que empresas de ônibus e motoristas ajustem pagamento de comissão sobre o total das passagens vendidas no percurso ou salário acima do piso normativo para compensar o trabalho extra. Mas, se as tarefas são correlatas à obrigação que está no núcleo do contrato de trabalho, e devem ser cumpridas na mesma jornada de trabalho, somente haverá direito a dois salários quando houver previsão expressa nas normas coletivas da categoria ou nos regulamentos da empresa, ou resultar de costume ou de acordo escrito ou tácito entre os empregados e os patrões. A lei trabalhista é omissa2.
Notas 1 2
CLT, art. 456. E. no 129/TST.
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Invista em Itaboraí
A capital dos bons negócios. Distante apenas 39km da capital do Rio de Janeiro, Itaboraí é hoje a grande oportunidade de excelentes negócios para empresas de diversos setores. Sede do Comperj - Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, e com uma Base Industrial e Tecnológica sendo implantada, o município terá em 10 anos, o seu PIB estimado em R$17 bilhões e sua população chegará a 1 milhão de habitantes nesse período. Esses empreendimentos estão atraindo empresas de diversos segmentos, pois hoje com a nova administração municipal, Itaboraí mostra um cenário de progresso e de modernização da cidade. Seu território faz divisa com Tanguá e Maricá, municípios que serão beneficiados pelo Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma via de escoamento que integrará uma importante região do estado que compreende de Itaguaí à Itaboraí, promovendo o desenvolvimento integrado de toda essa região.
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Segurança jurídica no mercado de energia elétrica Rogério Medeiros Garcia de Lima
Desembargador do TJMG
P
Setor Elétrico articipei, com enorme proveito, do 2º Curso sobre o Setor Elétrico Brasileiro para a Magistratura, promovido pela Escola Nacional da MagistraturaENM e Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE (Brasília-DF, 22 a 24 de maio de 2013). A regulação no setor elétrico é conhecida por poucos e precisa ser difundida (Fábio Amorim da Rocha, Temas relevantes no direito da energia elétrica, Rio de Janeiro, Synergia, 2012, apresentação). Com efeito, “o direito da energia é um processo de construção de um conhecimento jurídico pragmático: um ‘knowledge building’, diriam alguns. Uma obra ainda e sempre aberta” (ob. cit., prefácio de Joaquim Falcão). A importância da participação no curso sobre setor elétrico – sobretudo para um magistrado estadual, pouco afeito às questões jurídicas atinentes a esse importante campo da infraestrutura nacional – reside em apreender as características do novo modelo de comercialização de energia no Brasil, adotado a partir da edição da Lei Federal no 10.848, de 15.3.2004.
consumidor, confiabilidade do suprimento, universalização do serviço, redução dos custos de transação durante a fase de implantação do NMSE e gradualismo na implementação das medidas requeridas”. Durante o curso, foi destacada a imprescindível estabilidade do marco institucional do setor. Conforme Julião Coelho, diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, o órgão regulador deve criar ambiente propício para investimentos, com estabilidade do marco regulatório. Antonio Claudio Macedo da Silva, juiz titular da 8a Vara Federal da Justiça Federal, em Brasília, assinalou a impropriedade da interferência do Poder Judiciário em políticas públicas. Só pode intervir de modo pontual, para corrigir eventuais distorções. Em regra, o Judiciário não deverá interferir na discricionariedade do agente regulador. Recordei a sempre festejada doutrina de Marçal Justen Filho (Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2005, pp. 464-467):
Marco regulatório O marco regulatório do Novo Modelo do Sistema Elétrico (NMSE) foi proposto logo após a crise de racionamento de energia, no Brasil, em 2001. O texto legal foi aprovado com os seguintes pilares (Maurício T. Tolmasquim: o marco regulatório do novo modelo do sistema elétrico: um balanço positivo, in Temas relevantes no Direito da Energia Llétrica. cit., pp. 2-3): “Respeito aos contratos existentes, minimização de pressões tarifárias adicionais para o
A adoção de um modelo regulatório de Estado conduz à fragmentação das competências normativas e decisórias estatais. Surgem entidades administrativas encarregadas da gestão setorial. Alguns afirmam que se produz o surgimento de um Estado “policêntrico”, cuja configuração pode ser mais bem representada como uma “rede governativa”. Substitui-se, assim, o modelo piramidal, de influência napoleônica (confira-se em “L’État post-moderne”, Paris: LGDJ, 2004, P. 76-7). Nesse cenário, uma instituição fundamental consiste na agência reguladora. (...)
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Foto: Arquivo pessoal
Agência reguladora independente é uma autarquia especial, sujeita a regime jurídico que assegure sua autonomia em face da Administração direta e investida de competência para a regulação setorial. (...) A agência reguladora independente é titular da competência regulatória setorial. Isso significa o poder de editar normas abstratas infralegais, adotar decisões discricionárias e compor conflitos num setor econômico. Esse setor pode abranger serviços públicos e (ou) atividades econômicas propriamente ditas. E as decisões adotadas são vinculantes para os diversos setores estatais e não estatais, ressalvada a revisão jurisdicional.
A propósito, abalizada jurisprudência consagra a autonomia técnica das agências reguladoras: ADMINISTRATIVO. INFRAÇÕES À ORDEM ECONÔ MICA. FORMAÇÃO DE CARTEL E DUMPING. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CADE. PEDIDO FORMULADO NO SENTIDO DE QUE ESTA AUTARQUIA, DIANTE DA HIPÓTESE FÁTICA, EXERCESSE SEU MISTER INSTITUCIONAL. (...) Violaria a autonomia técnica do Conselho, como entidade reguladora da concorrência e da ordem econômica, forçá-lo a atuar administrativamente (lembre-se, o pedido inicial busca forçar o Cade a cumprir seu mister institucional) quando, de início, não vislumbra
“Não há falar em ilegalidade na cobrança da taxa de abertura de crédito, pois esta visa exatamente a remunerar a instituição financeira pelo serviço prestado na concessão do crédito, podendo ser cobrada desde que contratualmente prevista.”
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ele próprio competência nem motivos para tanto, afinal o próprio Cade pode entender, por exemplo, que a conduta narrada pelo MPF é legal. (...) Pacífico nesta Corte Superior que a revisão dos requisitos ensejadores do deferimento da tutela antecipada esbarra no óbice de sua Súmula n. 7. Além disso, importa salientar que a distância desta Corte Superior dos fatos e das provas impede a correta valoração do fumus boni iuris e do periculum in mora. 14. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, não provido. (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial no 650.892-PR, min. Mauro Campbell Marques, DJe 13.11.2009, grifos nossos).
Contratos e segurança jurídica. Segundo Arnoldo Wald, os contratos possuem grande relevância no mundo contemporâneo (in Vera Helena de Mello Franco, Teoria Geral do Contrato: Confronto com o Direito Europeu Futuro, São Paulo, Editora RT, 2011, p. 9): Não há assunto mais atual e relevante do que o contrato que, paradoxalmente, se torna cada dia mais importante e de maior utilidade, ao mesmo tempo que sofre, em certo sentido, uma perda de densidade. Efetivamente, reconhecese que o seu conceito clássico está superado. Já se afirmou até que o contrato se tornou “mais ou menos obrigatório, mais ou menos oponível a terceiros, mais ou menos sinalagmático, ou mais ou menos aleatório, conforme o caso, a sua nulidade ou resolução pode ser mais ou menos extensa”. Em compensação, o contrato adquiriu uma flexibilidade extraordinária e um dinamismo que lhe permite resistir às modificações das circunstâncias. Seu campo de ação deixou de ser exclusivamente o direito privado para abranger parte do direito administrativo e do direito internacional. (...) O respeito dos contratos, além de ser determinação constitucional, em nosso país, tornou-se um imperativo do Estado de Direito e um valor cultural e ético em todo o mundo ocidental. Chegou-se a afirmar que uma sociedade que não respeita os contratos se caracteriza pela deslealdade e é desmoralizada. Nem mesmo democracia pode haver nos países nos quais não é possível exigir e obter o cumprimento dos contratos.
Aqui, pois, urge destacar a segurança jurídica, com a prestigiada pena de Eros Roberto Grau, no ensaio Princípios, a (in)segurança jurídica e o magistrado (revista Amagis Jurídica, Belo Horizonte, Associação dos Magistrados Mineiros, no 7, jan-jun 2012, p. 1): Max Weber ensinou-nos que as exigências de calculabilidade e confiança no funcionamento da ordem jurídica e na administração constituem uma exigência vital do capitalismo racional; o capitalismo industrial depende da possibilidade de previsões seguras – deve 36
poder contar com estabilidade, segurança e objetividade no funcionamento da ordem jurídica e no caráter racional e em princípio previsível das leis e da administração. O cumprimento dos contratos não podia ser assegurado sob a equidade, incompatível com a calculabilidade, requisito do direito moderno. Era necessário transformarse a equidade em um sistema rígido de normas, a fim de que fosse assegurada a calculabilidade exigida pelas transações econômicas. (grifos no original).
Boa-fé objetiva. Ainda em matéria contratual, exaltase o princípio da boa-fé objetiva: Na linha do Código Civil alemão (BGB, §157) o nosso Código Civil de 2002 acatou na sua norma do art. 113 o princípio da boa-fé objetiva, ordenando que os contratos sejam interpretados de acordo com o princípio da boa-fé e os usos locais usuais naquela prática de negócio. (...) Entende-se por boa-fé objetiva a recíproca lealdade das partes, afastada a ignorância de certas situações como forma de macular esta lealdade e este princípio exerce função dominante no campo da interpretação dos contratos, constituindo o ponto de união entre os dois momentos lógicos da interpretação (interpretação subjeitva e objetiva). (...) Sua aplicação exige que o juiz pressuponha, no caso concreto, que as partes tenham observado o princípio durante a preparação e a conclusão do contrato, atuando, igualmente, conforme por ele determinado. De qualquer forma, o princípio não pode ser aplicado de modo a modificar a determinação da intenção comum ou atribuir-lhe um significado diverso daquele que resulte da declaração do proponente. (Vera Helena de Mello Franco, ob. cit, pp. 201-202).
Para o saudoso Miguel Reale, a boa-fé o “artigochave” do Novo Código Civil (Estudos Preliminares do Código Civil, São Paulo, Editora RT, 2003, pp. 75 e 77): Em todo ordenamento jurídico há artigos-chave, isto é, normas fundantes que dão sentido às demais, sintetizando diretrizes válidas “para todo o sistema”. Nessa ordem de ideias, nenhum dos artigos do novo Código Civil me parece tão rico de consequência como o art. 113, segundo o qual “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.” (...) Boa-fé é, assim, uma das condições essenciais da atividade ética, nela incluída a jurídica, caracterizando-se pela sinceridade e probidade dos que dela participam, em virtude do que se pode esperar que será cumprido e pactuado sem distorções ou tergiversações, máxime se dolosas, tendo-se sempre em vista o adimplemento do fim visado ou declarado como tal pelas partes .
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
Impacto macroeconômico das decisões judiciais. O eg. Tribunal de Justiça de Minas Gerais, reportando-se ao impacto macroeconômico das decisões judiciais no mundo globalizado, assentou: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REVISÃO DE CLÁU SULAS CONTRATUAIS – JUROS – NÃO LIMITAÇÃO – ENUNCIADO DA SÚMULA 596 DO STF - CAPITALIZAÇÃO MENSAL – POSSIBILIDADE – CUMULAÇÃO DA COMISSÃO DE PERMANÊNCIA COM A MULTA MORATÓRIA – IMPOSSIBILIDADE – COBRANÇA DA TAXA DE ABERTURA DE CRÉDITO – LEGALIDADE – TAXA DE SERVIÇOS DE TERCEIRO – ABUSIVIDADE – DEVOLUÇÃO EM DOBRO INDEVIDA. A legislação pertinente ao Sistema Financeiro Nacional não sujeita as instituições, que o integram, às limitações da Lei de Usura, a teor do que vem assentando a jurisprudência pátria. “As disposições do Dec. 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o sistema financeiro nacional” (enunciado da súmula no 596 do Supremo Tribunal Federal). Em contratos celebrados a partir de 30 de março de 2000, vale o artigo 5o da Medida Provisória no 2.170-36/2001, a qual afasta a imposição do limite anual à capitalização de juros. É ilegal a cobrança da comissão de permanência com a multa moratória, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Não há falar em ilegalidade na cobrança da taxa de abertura de crédito, pois esta visa exatamente a remunerar a instituição financeira pelo serviço prestado na concessão do crédito, podendo ser cobrada desde que contratualmente prevista. É abusiva a cobrança da taxa de serviços de terceiros porque o custo de tais serviços é inerente à atividade exercida pela instituição financeira (art. 51 , IV, do Código de Defesa do Consumidor), não sendo possível o repasse ao consumidor por onerá-lo demasiadamente e por infringir o disposto no artigo 6o, III do CDC. A restituição em dobro de quantia cobrada indevidamente só é admitida quando pressupõe a ocorrência de pagamento efetuado por erro decorrente de dolo ou culpa do credor, sendo este o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência, de forma que incabível in casu. O julgador não pode desprezar o impacto macroeconômico das suas decisões. Em tempos de globalização econômica, aos agentes de poder é incumbida a tarefa de recriar, em nível global, as tradicionais garantias de segurança jurídica própria do direito privado nacional (Edoardo Greblo, Globalización, Democracia, Derechos). Historicamente, dividem-se os ordenamentos jurídicos de tradição romanística (nações latinas e germânicas) e de tradição anglo-americana (common law). Contudo, essas expressões culturais diversas passaram a se influenciar
“O juiz não deve julgar contrariamente ao que, em lides semelhantes, decide o Supremo Tribunal Federal, porque criaria esperanças infundadas para as partes.”
reciprocamente. Enquanto as normas legais ganham cada vez mais importância no regime do common law, por sua vez, os precedentes judiciais desempenham papel sempre mais relevante no Direito de tradição romanística. A influência recíproca tende a se intensificar na esteira do fenômeno globalização. O juiz não deve julgar contrariamente ao que, em lides semelhantes, decide o Supremo Tribunal Federal, porque criaria esperanças infundadas para as partes.” (Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Apelação Cível no 1.0090.10.002579-1/002, des. Rogério Medeiros, julg. 5.7.2012, grifos nossos).
Decisões judiciais e segurança jurídica no setor elétrico. Solange David, gerente jurídica da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, lembrou que os agentes aderentes ao sistema assinam um “termo de conhecimento”, onde declaram expressamente ter ciência prévia de todas as regras de operação do setor. É contrato de risco a longo prazo. A CCEE, previamente à abertura dos leilões, realiza detalhados estudos para avaliar custos, preços, margens de lucros etc. Nesse contexto, os agentes aderentes, enquanto lucram, estão saciados. No entanto, quando, por alguma vicissitude (v.g., falta de chuvas, alta de preços de combustíveis etc.), começam a ter prejuízos, “judicializam” os contratos. Pedem sua revisão, à luz da teoria da imprevi são (cláusula rebus sic stantibus). Também costumam questionar os “encargos de segurança” (v.g., investimentos em segurança na transmissão de energia). Todavia, no momento em que apresentaram sua proposta de preços nos leilões, sabiam de antemão os custos dos referidos encargos. Solange David citou algumas decisões de tribunais brasileiros, exemplificativamente: a) denegação de liminar a agente contratante, pois a liquidação mensal de créditos/ débitos é matéria complexa, não pode ser examinada sem o crivo dos princípios processuais do devido processo
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legal, contraditório e ampla defesa; b) a comercialização de energia elétrica opera-se dentro de um sistema, o qual não pode ser desestabilizado; e c) havendo débito, é legítima a inclusão do nome do agente em cadastros de devedores inadimplentes. Fábio Medina Osório, discorrendo sobre sanções administrativas, em situação análoga a aqui versada, apontou o despreparo dos magistrados para lidar com questões técnicas de alta complexidade (Direito Administrativo Sancionador, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2000, pp. 50-51): Talvez um exemplo da insuficiência do Direito Administrativo se perceba no controle das privatizações em cenários terceiro-mundistas, em que as instituições jurídicas são chamadas a decidir praticamente todo o complexo pleito, com todas suas repercussões econômicas, sociais, seus reflexos no bem-estar da coletividade, em um juízo liminar. (...) Nenhum juiz parece estar preparado para controlar litígios que envolvem temas multidisciplinares, v.g., economia, sociologia, moral, em prazo fixado em semanas ou, no máximo, meses. Esses controles judiciários têm se revelado claramente insuficientes, incapazes de inibir abusos que implicam o atropelamento de fórmulas legais ou mesmo constitucionais.
Nesse quadro, exige-se redobrada cautela dos julgadores para examinar pedidos de antecipação de tutela ou liminares, em medidas cautelares, decorrentes de contratos de comercialização de energia elétrica. Vêm a talho decisões de nossos tribunais: AGRAVO DE INSTRUMENTO. POÇO ARTESIANO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. DILAÇÃO PROBATÓRIA. A concessão da tutela antecipada exige a prova inequívoca da verossimilhança da alegação e do fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Hipótese em que os Agravantes não lograram comprovar, liminarmente, quaisquer dos requisitos para o deferimento da medida. Negado seguimento ao recurso por ato do Relator. Art. 557 do Código de Processo Civil. (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Agravo de Instrumento no 70023189517, Desª Maria Isabel de Azevedo Souza, julg. 21.2.2008). As medidas cautelares devem ser utilizadas como instru mento para obviar lesão irreversível, não é lícita sua utilização para causar dano à parte contrária. (Superior Tribunal de Justiça, Medida Cautelar no 594-SP, min. Humberto Gomes de Barros, DJU 29.6.1998). O processo cautelar não se presta para obter a pretensão definitiva objeto do processo principal. (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial no 130.880-CE, min. Felix Fischer, DJU 3.8.1998). 38
MEDIDA CAUTELAR. REQUISITOS. PRESENÇA. LIMINAR. CONCESSÃO. ADENTRAMENTO NO MÉRITO DO PEDIDO PRINCIPAL. DESCABIMENTO. Em sede de medida cautelar não cabe ao Juiz adentrar no mérito do pedido principal, competindo a ele, ao conceder a liminar, verificar se estão presentes os requisitos autorizativos, quais sejam: o fumus boni juris e o periculum in mora. (Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Agravo de Instrumento no 62.279/5, Des. Isalino Lisbôa, Diário do Judiciário-MG, 28.10.1997).
Conclusão. À guisa de conclusão, deve-se salientar que, no mundo globalizado contemporâneo cabe aos magistrados analisar cada caso e suas circunstâncias peculiares. Não podem desprezar o impacto macroeco nômico das suas decisões. O economista Armando Castelar, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), sustenta que abalam o mercado de crédito a ineficiência do Poder Judiciário e as decisões judiciais causadoras de insegurança jurídica (Folha de São Paulo, 19.2.2003). Igualmente, argumentou Fábio Ulhoa Coelho (Os Valores do Direito Comercial e a Autonomia do Judiciário, Brasília, Revista da Escola Nacional da Magistratura, no 2, outubro de 2006, p. 86): A instabilidade do marco institucional manifesta-se por vários modos. Um deles é a jurisprudência desconforme ao texto legal. Se a lei diz “x”, mas sua aplicação pelo Judiciário implica “não-x”, os investimentos se retraem. O investidor busca outros lugares para empregar seu dinheiro; lugares em que ele tem certeza das regras do jogo e pode calcular o tamanho do risco (que sempre existe em qualquer empreitada econômica). Numa economia globalizada, ele os encontra com facilidade. Tanto o investidor estrangeiro começa a evitar o país com marco institucional instável, como o nacional passa a considerar outros países como alternativa melhor para seus investimentos.
A magistratura brasileira tem se confrontado com a tensão entre a justiça e a segurança jurídica ou a estabilidade econômica. O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, refletiu (Impacto das Decisões Judiciais na Concessão de Transportes, Brasília, Revista da Escola Nacional da Magistratura, no 5, maio de 2008, p. 12): Se nós oferecemos uma justiça caridosa, se nós oferecemos uma justiça paternalista, se nós oferecemos uma justiça surpreendente que se contrapõe à segurança jurídica prometida pela Constituição Federal, evidentemente que isso afasta o capital estrangeiro, como afasta o capital das grandes corporações. É o que sucede com o não-cumprimento de tratados, o não-cumprimento de laudos arbitrais convencionados previamente... Isso, segundo a Corte Especial, aumenta o que se denomina “Risco Brasil”.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
Os tribunais do século XXI Reis Friede
Desembargador do TRF - 2a Região
Foto: Arquivo pessoal
C
ontinuamos a discutir, com notável persistência – e agora sob a égide da eminente aprovação de Projeto de Lei que amplia a composição dos cinco Tribunais Regionais Federais (TRFs) em mais 137 juízes (mais do que dobrando, portanto, o quantitativo nacional de julgadores), além da recente aprovação de um PEC que cria mais quatro TRFs com o consequente aumento (inclusive redundante) de juízes –, a premente questão relativa à notória ineficiência da Justiça Federal sem, no entanto, mais uma vez, data maxima venia, adentrar nas verdadeiras razões da inconteste morosidade da prestação jurisdicional, apontando, como causa fundamental, em evidente e persistente equívoco, o excessivo número de processos em tramitação vis-à-vis com a presumível carência de magistrados. Não há, todavia, em efetiva contrariedade à irrefletida tese reinante, um quantitativo verdadeiramente exagerado de processos em tramitação. Muito pelo contrário, o número de temas julgados é relativamente pequeno em comparação com a agigantada dimensão da estrutura da Justiça Federal, sendo certo que o que há, em última análise, é um absurdo e inconcebível número de processos absolutamente idênticos que, por mais espantoso que pareça, têm de ser julgados, por imperativo legal, caso a caso. À guisa de exemplo, deve ser consignado que a Justiça Federal julgou, nos últimos dez anos, mais de três milhões de ações, versando sobre FGTS, exatamente iguais, o que obrigou a um dispêndio de recursos humanos e materiais de enorme monta para, após pacificada a questão no âmbito do egrégio Supremo Tribunal Federal e do colendo
Superior Tribunal de Justiça, estabelecer, finalmente, uma uniformidade decisória que – apesar de tudo – ainda é, por mais inacreditável que pareça, contestada, em parte, não só pelos jurisdicionados, mas também por alguns juízes que insistem em julgar as mesmas questões já pacificadas de forma diversa. Portanto, ampliar constantemente o quantitativo de juízes de 1o grau (como vem sendo feito, sistematicamente, sem qualquer resultado prático há mais de vinte anos) – ou mesmo de desembargadores federais – não irá certamente resolver o problema, pois acaba por atacar os seus efeitos, e não propriamente as causas motivacionais da morosidade da prestação jurisdicional que somente pode ser combatida, neste especial, por meio de novos instrumentos processuais que impeçam, de forma sinérgica, o constante rejulgamento de questões idênticas. No que concerne, em particular, à ampliação do quanti tativo de tribunais, a proposta, não obstante aprovada, desconsidera, por absurdo, que os tribunais do século XXI não se constituem mais de simples instalações físicas, posto que as novas tecnologias (processo eletrônico, videoconferência, etc.) tornam completamente ultrapassados os antigos (e repetidos) argumentos geográficos e dimensionais em favor da construção de novos, suntuosos e caríssimos prédios (e, consequentemente, a ampliação da estrutura de juízes e funcionários) para prover a reclamada eficiência da prestação jurisdicional. Muito pelo contrário, os tribunais do novo século, vale consignar, caracterizam-se muito mais pela eficiência operacional por meio, sobretudo, da virtualidade instrumental, ou, em outras palavras, pela absoluta ausência de volumosos processos de papel (que, desta feita, dispensa o correspondente espaço de construção civil), bem como dispensam a presença física das partes e dos advogados, substituída por modernas tecnologias de imagem de alta definição em tempo real. Por efeito consequente, precisamos, com a máxima urgência, estabelecer uma necessária e profunda reflexão, buscando, em última análise, uma solução derradeira que resolva definitivamente a ineficiência da Justiça Federal, atacando as causas da morosidade da prestação jurisdicional, e não apenas seus visíveis e condenáveis efeitos.
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Vitaliciedade é garantia da própria cidadania
Nelson Missias de Morais
O
Desembargador do TJMG
s movimentos sociais têm alcance importante para o revigoramento das instituições e do próprio Estado de Direito, pois é nessa hora que se confirmam as forças da democracia e da participação popular, para a correção de rumos, quando algo está fora do eixo. Nas recentes manifestações, que se iniciaram em razão das majorações de passagens de ônibus em São Paulo, percebidas em outras partes do Brasil, houve uma mobilização popular, convocada pelas redes sociais, com uma velocidade como nunca se viu. Foi um movimento sem liderança que não foi conduzido a uma pauta mínima, que pudesse repor no eixo o que eventualmente estivesse fora e até mesmo para dar sequência às reivindicações. De uma hora para outra, o que se viu foi o Governo central produzindo uma agenda de ocasião, que passou a ser denominada de “positiva”, com trapalhadas de toda natureza, pois não conseguiu atingir o foco nem sensibilizar ninguém, chegando ao disparate de propor uma assembleia constituinte para tratar de um tema específico, ou seja, a reforma política – como se viu, fulminada de inconstitucionalidade. O eco das ruas não estava nessa direção, embora relevante para a democracia e merecedora de uma discussão mais aprofundada e com seriedade, sem o 40
ranço da resposta imediata para fenecer o incômodo que provoca uma mobilização popular. A partir daí, o Congresso Nacional também passou a produzir a chamada “agenda positiva” legislativa. Não se pode olvidar que toda legislação casuística – para dar resposta imediatista à sociedade – traz, em si, o perigo de atingir direitos caros à cidadania e à sociedade, conquistados por gerações, com prejuízo à liberdade e à própria vida de muitos. É lamentável, mas, no apagar das luzes do semestre legislativo do Congresso Nacional, o predicamento da vitaliciedade do magistrado brasileiro quase foi extinto. A sociedade não percebeu nem foi informada do alcance da medida, que seria um prejuízo irreparável para a cidadania. Juízes independentes, livres de pressão de poder político, econômico ou de qualquer outra natureza, são necessários aos cidadãos na busca de um direito ou na reparação de um que lhe foi subtraído. As causas que aportam no Judiciário, muitas vezes por aqueles menos aquinhoados, como as do cidadão, já fragilizado, quando busca um medicamento não fornecido pelo governo ou um atendimento médico de emergência através da via judicial, precisam de resposta rápida e sem interferência dos poderosos. O magistrado livre das amarras do poder político, econômico ou de criminosos, no qual o fraco e o forte
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
Foto: Ascom/amagispg
se equivalem, foi uma conquista da cidadania e a ela se destina. O predicamento da vitaliciedade é a dimensão necessária do juiz independente, sem assombros na carreira em razão das suas decisões. O que não está bem explicado é que o juiz pode perder o cargo, sim, através de sentença condenatória com o trânsito em julgado. Seria um caos social e traria insegurança jurídica para a sociedade a possibilidade de o juiz, com base em decisões políticas ou por retaliação em razão do exercício da sua função judicante, ser demitido ou afastado. Os juízes, no exercício da sua função, têm peculiaridades que os diferenciam e impedem a perda do cargo por decisão administrativa. São agentes políticos – processam e julgam causas de interesses políticos, econômicos e criminosos vultosos. As PECs 53 e 505 – a primeira, no Senado Federal, e, a segunda, na Câmara dos Deputados – relativizam a vitaliciedade do juiz brasileiro, facilitando sua remoção, seu afastamento das funções e sua demissão, por mera decisão administrativa, o que o torna vulnerável em sua independência para o enfrentamento das pressões a que está sujeito no exercício das funções. Esse é um grave prenúncio. Aliás, as garantias da magistratura, insculpidas na Constituição cidadã, art. 95, incisos I, II e III, devem
passar indenes ao poder constituinte derivado por se encontrarem no âmbito das chamadas limitações materiais implícitas a ele, com status de cláusula pétrea. No ordenamento jurídico pátrio, existem normas que garantem a perda do cargo do juiz que o ocupa com indignidade, sem se resvalar, contudo, na garantia constitucional da vitaliciedade. Esse desvario legislativo para atingir garantias de independência do juiz brasileiro só pode ser creditado à necessidade de se desviar a atenção da sociedade, que está focada em temas que exigem a mudança de comportamento de governantes e legisladores. A sociedade e a mídia têm um papel relevante na compreensão do alcance da garantia da vitaliciedade do juiz. As Associações de Juízes, que são o braço político da magistratura, têm proeminência para a manutenção dessa garantia da sociedade e até aqui se fizeram ouvir. Nesse sentido, a Associação dos Magistrados Mineiros, através de seu presidente, Herbert Carneiro, a quem tive o privilégio de acompanhar em Brasília, em contato com os parlamentares, contribuiu significativamente para evitar esse retrocesso. Acreditar que essa é uma defesa corporativista é a mais forte expressão da incompreensão dos valores que devem pautar o Estado de Direito.
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Limitação temporal dos efeitos penais e os maus antecedentes Doorgal Andrada
Desembargador do TJMG
Foto: Arquivo pessoal
P
or imperativo constitucional, a Carta Magna veda expressamente penas de caráter perpétuo, conforme disposto no art. 5o, XLVII, “b”. Essa garantia constitucional é basilar na atual sistemática do Estado Democrático de Direito. Nessa acepção, tratando-se de garantia constitucional de caráter fundamental, em uma interpretação extensiva visando tutelar direitos humanos, extrai-se desta norma que, por consequência lógica, os efeitos e decorrências das sanções penais não podem prevalecer sem limites no tempo. Ora, seria absolutamente sem razoabilidade se, embora não perpétuas, as penas gerassem repercussões
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perenes na vida do indivíduo, assumindo um caráter sancionatório eterno (inconstitucional), o que é vedado à própria pena principal assumir. Assim, tem-se que Constituição Federal, no já citado art. 5o, XLVII, alínea “b”, veda terminantemente a pena de caráter perpétuo, donde decorre que se a pena principal não pode ter perpetuidade, muito menos os efeitos da condenação que a originou podem perdurar eternamente (maus antecedentes). Desse modo, valendo-se de uma condenação antiga não se pode valorar negativamente de modo eterno e permanente a circunstância judicial da má-antecedência, dando perpetuidade aos efeitos de uma condenação (art. 59 do CP) mesmo após cinco anos decorridos da extinção da punibilidade, o que fere evidentemente os direitos e garantias fundamentais conferidas ao cidadão, preconizadas na Carta Magna do país, sustentáculo de uma nação guiada por preceitos acauteladores dos Direitos Humanos. Coaduna com esse entendimento o aclamado doutri nador argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, juntamente com o não menos renomado José Henrique Pierangeli: A exclusão da pena perpétua de prisão importa que, como lógica consequência, não haja delitos que possam ter penas ou consequências penais perpétuas. Se a pena de prisão não pode ser perpétua, é lógico que tampouco pode ser ela a consequência mais branda do delito.1
Nessa esteira, em consonância com a norma constitucional em análise, há no art. 64, I, do Código Penal, expressa limitação do tempo em que advirão consequências em função da reincidência, evitando, por conseguinte, repercussões intermináveis em função de fatos passados há vários anos.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
No entanto, o mesmo não se vislumbra, na prática, em relação aos maus antecedentes, que, através de uma duvidosa interpretação sistemática, conduz ao absurdo de estigmatizar o réu ad eternum. Tal contexto se revela de gravidade extrema e intenso vilipêndio aos Direitos Fundamentais, haja vista que acarreta situações demasiadamente desfavoráveis aos réus, já que se torna possível a elevação da pena base de novo delito cometido, durante toda a vida do réu, em razão até de um crime perpetrado há décadas, em outro tempo da vida do indivíduo. Cria-se uma consequência penal perpétua, que é contrária à Constituição Federal. Noutro giro, a eternização de consequências jurídicas propiciada por construção jurisprudencial fere de morte a Dignidade Humana, já que atribui uma estigmatização insuperável à pessoa submetida a uma sentença penal condenatória. Destarte, vive-se num contexto no qual produziríamos empiricamente “marginais perpétuos” em série, já que além de contarmos com uma das maiores populações carcerárias do mundo, atribuímos aos milhares e irrevogavelmente a subqualificação de marginal (criminoso), impedindo-os de superar os danos oriundos de uma conduta típica passada (distante) e de se restabelecer enquanto cidadão pleno. Impõe-se uma delimitação temporal para a vigência de consequências oriundas dos antecedentes criminais do sujeito, sob pena de mantença de um instituto claramente inconstitucional e desumano. Em uma análise sistemática da ordem jurídica, denotase que é possível estipular um prazo razoável, utilizandose de analogia em relação ao único lapso fixado para um dispositivo semelhante aos antecedentes, qual seja, a reincidência. Sugere-se, por conseguinte, que, por interpretação analógica in bonam partem, utilize-se o prazo de 5 (cinco) anos previsto no art. 64, inciso I, do Código Penal, para a limitação temporal de resultados provenientes dos maus antecedentes. Nesse sentido, também é o entendimento de Saulo de Carvalho: Note-se que os antecedentes, além de fornecer uma graduação à pena decorrente do histórico de vida do acusado, representam um gravame penalógico eternizado, em total afronta aos princípios constitucionais referidos (princípio da racionalidade e da humanidade das penas). Assim, cremos urgente instituir sua temporalidade, fixando um prazo determinado para a produção dos efeitos impostos pela lei penal. O recurso à analogia permite-nos limitar o prazo de incidência dos antecedentes no marco dos cinco anos – delimitação temporal da reincidência –, visto ser a única orientação permitida pela sistemática do Código Penal.2
Os julgados que adotam entendimento contrário, ou seja, que se posicionaram a favor da consideração perene dos antecedentes, se mostram insuficientes num contexto em que as garantias constitucionais devem ser tomadas como diretrizes precípuas de aplicação normativa, além de não apresentarem fundamentação teórica suficiente. Senão vejamos excerto do RHC 106.814/MS: Guilherme de Souza Nucci1, ao discorrer sobre a definição de maus antecedentes anota que a corrente mais acertada, à qual me filio, é a de que devem ser consideradas como antecedentes, para fins de fixação da pena, “apenas as condenações com trânsito em julgado que não são aptas a gerar reincidência”.
Nessa esteira, o que se vê é que, mediante sustentação doutrinária, adotou-se uma argumentação extremamente expansiva que desconsidera as limitações que devem incidir sobre o Direito Penal. Ora, considerar como maus antecedentes tudo o que não é mais abarcado pela reincidência, de maneira abrangente, é fugir às estreitas fronteiras traçadas pela Carta Magna, ressaltando-se que a interpretação em relação à punibilidade deve ser sempre restritiva. Ademais, a hermenêutica da aplicação dos antecedentes de forma ilimitada não apresenta um mínimo de razoabilidade, já que esta deve ser realizada se atentando valores constitucionais vigentes, sobretudo àquele já citado, de que as penas não devem ter caráter perpétuo. Se a própria reincidência que se baseia em condenações transitadas em julgado antes da perpetração do delito, portanto, dotadas de segurança jurídica, apresenta limitações temporárias expressas, não se vislumbra o porquê de se conceder jurisprudencialmente tamanhas irrestrições aos antecedentes. Data venia, no Brasil, as consequências primárias e secundárias da pena não podem ter efeitos perpétuos, tendo em vista determinação e análise ampla do art. 5o, XLVII, alínea “b”, da Constituição Federal. Ademais, o direito penal brasileiro sempre prestigiou os institutos de limitação no tempo, como a decadência, a prescrição, a reabilitação, a perempção, a conciliação civil nos Juizados Especiais, a improrrogabilidade dos prazos, etc., além de valorizar, a cada dia, todas as formas de ressociabilização e recuperação do condenado.
Notas ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral / José Henrique Pierangeli. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 673. 2 CARVALHO, Amilton Bueno de, Carvalho, Saulo de. Aplicação da Pena e Garantismo. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 52. 1
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Algumas questões acerca do inventário negativo de bens no Direito brasileiro Júlio César Ballerini Silva
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Juiz de Direito do TJSP
omo cediço, o Direito brasileiro se revela avesso à ideia de um patrimônio (entendido pela generalidade dos autores, a partir de postulados ponteanos, como um conjunto de posições jurídicas ativas e passivas, suscetíveis de avaliação econômica e consequente expressão monetária) sem um titular determinado, o que, em se tratando de pessoas existentes (naturais ou jurídicas), resolve-se em termos de tradição e transcrição enquanto meios de aquisição da propriedade inter vivos. Mas, desde há muitos, encontra-se superada a ideia dos romanos, que, com seu singular pragmatismo, asseveravam no sentido de que mors omnia solvit, ou seja, em tradução literal, uma ideia de que a morte tudo resolve, de sorte tal que, ao menos hipoteticamente, com o falecimento do de cujus sucessiones agitur, os problemas estariam acabados, tudo estaria resolvido (não obstante os romanos acolhessem a ideia de morte em uma acepção mais ampla que a do Direito atual – aceitava-se, por exemplo, o conceito de morte civil1). Isso porque no Direito romano bastaria que se morresse com um herdeiro homem, que seria responsável pelo culto dos antepassados (deuses lares – vindo daí a expressão “lar” para significar o local do fogo sagrado dentro de uma casa – simbolizando os parentes mortos), para que se impedisse que os mortos de dada estirpe familiar passassem por necessidades no mundo espiritual, com libações anuais nas sepulturas desses entes queridos falecidos (acreditava-se que a vida seguia no túmulo, geralmente localizado nas casas ou nos lares)2. Aí, diga-se en passant, pode-se perceber a gênese dos rituais que empregamos atualmente no dia dos mortos, quando são levadas flores aos jazigos dos entes queridos falecidos. 44
E, da mesma forma, verifica-se a gênese da proteção ao imóvel de família (no Direito romano, a propriedade tinha esse caráter sagrado e não era alienada nem para o pagamento de dívidas do pater familias, que seria vendido como escravo se a dívida não fosse paga para que os demais membros da família conservassem o local sagrado)3. No entanto, como sabido, as coisas nem sempre se dão desse modo, eis que, com a morte do indivíduo, um sem número de problemas pode ser destacado, tendo o legislador criado tantas situações polêmicas (basta ver, por exemplo, discussões acerca da concorrência, ou não, do cônjuge com descendentes nos vários regimes matrimoniais ou as dificuldades da sucessão do companheiro com filiação híbrida), que hoje não se tem como incomum encontrar-se autores que defendam a necessidade de um verdadeiro planejamento sucessório prévio enquanto conjunto de medidas para a preservação patrimonial e da autonomia da vontade4. Poder-se-ia ter a falsa ideia de que esses problemas surgiriam apenas quando houvesse um patrimônio a ser herdado, ou seja, enquanto o referido conjunto de posições jurídicas do falecido titular tivesse que ser passado a algum herdeiro ou conjunto de herdeiros, ou mesmo legatários. Assim, sempre se pensa no inventário positivo de bens necessário à liquidação patrimonial do extinto para que se afira o quanto cada herdeiro receberia (como ainda se aplica no Direito pátrio o princípio da saisine, com a própria abertura de sucessão, o patrimônio já passaria ao domínio – não mais posse, como estabelecia o CC/1916 – dos herdeiros – nesse sentido é a disposição contida no artigo 1.784 do Código Civil vigente). Realmente, pode ser que o extinto não estivesse na posse direta dos bens no momento do falecimento,
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
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impedindo a imediata transmissão da posse aos herdeiros por força desse princípio de saisine.5 Por força dessa saisine, com essa ideia de transmissão automática do domínio, seria de se questionar a respeito da efetiva necessidade de um processo de inventário de bens, eis que, em um primeiro momento, sob a perspectiva da lógica, parece não haver necessidade de um procedimento judicial que se destine a garantir essa transmissão. E, de fato, essa não seria a justificativa para a ação de inventário de bens. Nesse sentido, a clássica definição de De Plácido e Silva: (...) derivado do latim inventarium, de invenire (agenciar, diligenciar, promover), em sentido amplo, quer significar o processo, ou a série de atos praticados com o objetivo de ser apurada a situação econômica de uma pessoa ou de uma instituição, pelo relacionamento de todos os seus bens e direitos, ao lado de um rol de todas as suas obrigações e encargos (...).6
De modo mais sucinto, aponta Roberto Senise Lisboa no sentido de que “inventário é o procedimento por meio do qual são oficialmente relacionados os bens encontrados em nome do de cujus”.7 Observa-se nesse tipo de definição uma correlação necessária entre inventário e bens do extinto. Por essa perspectiva, antes de se falar em transmissão propriamente dita, pela referida incidência da saisine, sob o
prisma lógico, mister se faz aferir se existe algo a ser transmitido e em que medida (será a oportunidade, por exemplo, de se separar eventual meação que é direito de terceiro e não se confunde com herança – artigo 1.023 do CPC). E essa será, justamente, a justificativa existencial da ação de inventário. E não se esqueça de que, muitas vezes, no inventário serão disciplinados direitos de natureza indisponível, como se dá em relação aos bens dos incapazes, havendo relevância na previsão de um procedimento especial judicial para regular tais verificações, além da existência de questões fiscais a serem resolvidas.8 Mas nada impede, no entanto, que essas questões fiscais sejam resolvidas em procedimentos não judiciais, como se autoriza no inventário extrajudicial, disciplinado pelo advento da Lei no 11.441/07, cabendo essa função ao tabelião respectivo, devendo haver obtenção da documentação fiscal pertinente, o que, no caso do Estado de São Paulo, se encontra disciplinado nos termos da Portaria CAT-9/2007 da Secretaria de Estado da Fazenda. Do mesmo modo, impende ponderar no sentido de que não serão tratadas no processo de inventário questões referentes a direitos que surjam em decorrência da morte do extinto, mas que não integraram seu patrimônio. Seria o caso de se exemplificar pela situação da indenização securitária pela morte do de cujus que irá para o beneficiário apontado em contrato e não integra seu patrimônio pessoal, eis que somente será paga após sua morte (assim, em sede de planejamento sucessório, nada impediria que se deixasse esse tipo de indenização para um(a) concubino(a), resolvendo-se tormentosa questão a esse respeito, ou como disciplina do que modernamente se vem chamando família paralela ou uniões pluriafetivas – nas quais, não obstante exista afeto, o preconceito impeça o reconhecimento de alguns direitos). O próprio artigo 794 do Código Civil já assevera que o capital estipulado não se considera herança, para os fins de direito, no contrato de seguro. Isso (indenização securitária), obviamente, não se transmite aos herdeiros pela saisine. O mesmo se daria mutatis mutandi em relação ao advento do direito de perceber pensão por morte, o que se admite em sede de exemplificação acerca do tema. Sobre a questão da indenização securitária, pertinente à referência ao seguinte aresto do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: Agravo de Instrumento. Inventário negativo. Pleito dos agravantes quanto à obtenção de informações referentes à eventual contratação de seguro de vida pelo de cujus. Inviabilidade. Artigo 794 do Código Civil. Decisão mantida. Recurso desprovido. Agravo de Instrumento no 005831082.2012.8.26.0000, da Comarca de São José do Rio Preto, Rel. Cesar Ciampolini.
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E se direitos que nascem da morte não devem figurar em inventário, o mesmo pode ser dito em relação a deveres que morrem com o devedor. Nesse sentido, oriundo do Tribunal de Justiça de São Paulo, impenderia destacar: Locação de Imóvel, despejo por falta de pagamento c/c cobrança. Segundo previsão do artigo 836 do Código Civil, a responsabilidade da fiança se limita ao tempo decorrido até a morte do fiador. Se o débito é posterior ao óbito, a responsabilidade não se transfere ao espólio nem aos herdeiros.
De igual sorte impende ponderar no sentido de que nem sempre a existência de bens a serem partilhados conduzirá, necessariamente, à situação de propositura de uma ação de inventário em uma acepção técnica (rito mais complexo e extenso que, de todo modo, não admite discussão de matérias de alta indagação – nos termos do artigo 984 do Código de Processo Civil –, o que às vezes leva à necessidade de propositura de outras ações para a discussão de questões prejudiciais ao inventário). Tal se dá na medida em que, por vezes, nos termos do advento das normas contidas nos artigos 1.031 e 1.036 e seus consectários do Código de Processo Civil, em casos de bens de pequena monta ou adjudicação de bens a um único herdeiro, restará autorizada a propositura de ação de ritos mais simplificados, qual seja, o arrolamento de bens (refere-se a ritos simplificados eis que se tem o arrolamento comum e o arrolamento sumário). Ainda mais seria de se observar que existem casos em que sequer se cogitaria de inventário ou arrolamento, mesmo havendo bens a partilhar. Referida situação se encontra disciplinada no advento das normas contidas nos artigos 1.037 CPC, 2o da Lei no 6.858/80, e 112 da Lei no 8.213/91. São os casos de propositura de simples pedido de alvará (hipóteses de levantamento de valores não recebidos em vida pelo finado no que se refere a saldos salariais ou de benefícios previdenciários, ou ainda valores de FGTS, PIS/ Pasep, desde que inexistentes outros bens a inventariar). Quanto ao FGTS, inclusive, não se pode esquecer das orientações contidas nas Súmulas 82 e 161 do Superior Tribunal de Justiça que permitem a conclusão no sentido de que, não obstante a natureza institucional do fundo gestor desses recursos, os pedidos de alvará que possam ser caracterizados como causa mortis serão processados e julgados pela Justiça Estadual (competente para as ações de inventário), e não pela Justiça Federal. Aclarada a questão, nesses termos, seria de se afastar outra ideia enganosa (além daquela no sentido de que inventário exista para transmissão de bens), qual seja, a de que exista associação direta e necessária entre inventário e existência de bens a serem partilhados. 46
Isso porque, sob o prisma prático, muitas vezes surge a necessidade de disciplina dessas relações entre de cujus sucessiones agitur e seus herdeiros, mesmo não havendo patrimônio a ser partilhado, não podendo o Direito permanecer alheio a tais situações, ainda mais porque o advento da norma contida no artigo 5o, inciso XXXV da Constituição Federal, permite a qualquer pessoa residente ou domiciliada no território nacional demandar, em casos de lesão ou ameaça de lesão, seus direitos. Não se nega que a grande maioria das situações vivenciadas no dia a dia recomende o inventário para situações em que exista a necessidade de se aferir a extensão de um patrimônio efetivamente existente. Mas podem surgir situações em que exista um peculiar interesse jurídico no reconhecimento da situação jurídica da inexistência de bens, autorizando, sob tal perspectiva, o manejo de uma ação declaratória negativa que doutrina e jurisprudência convencionaram denominar inventário negativo de bens. Nesse sentido, a ideia de que inventário negativo seja “o procedimento por meio do qual se pretende demonstrar que não há herança a ser atribuída em favor dos herdeiros do de cujus (...) tem como objetivo principal demonstrar a inexistência da confusão patrimonial.”9 Nesse sentido, é de se apontar o quanto vem sendo decidido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo acerca da questão: Inventário Negativo. Ausência de transmissão de bens impossibilita a responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas – art. 1.792 do CC. Decisão reformada. Agravo de instrumento provido. Agravo de Instrumento no 0023512-95.2012.8.26.0000. Rel. Piva Rodrigues.
No mesmo sentido, do mesmo areópago (TJSP), o quanto asseverado no sentido de que o herdeiro deve demonstrar a inexistência da herança para não se responsabilizar pelo quinhão do preço devido pelo de cujus em dado negócio jurídico. Orientação firmada no julgamento da AC 9183425-33.2007.8.26.0000, Rel. Mello Pinto, ou ainda, na AC 9199220-45.2008.8.26.0000, Rel. João Camilo de Almeida Prado Costa. Com igual teor, entendendo, no entanto, cuidar-se de providência necessária, ainda do mesmo Tribunal (TJSP), de se pedir vênia para destacar: Alegação de que o pai não deixou bens. Cabiam aos herdeiros provar o excesso, através do modo judicial do inventário negativo, para dar maior robustez para neutralizar a responsabilidade dos sucessores pelo cumprimento das obrigações do primitivo devedor. Como assim não fizeram, respondem com seus quinhões até o limite da fiança. Recurso desprovido. Apelação n° 992.06.067592-5, da Comarca de Sorocaba, Rel. Júlio Vidal.
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Impende ponderar no sentido de que, nesse caso em especial, existe referência a quinhões de herdeiros, o que, sob tal perspectiva, pressupõe, do ponto de vista lógico, que houve ativo patrimonial, ideia que implicaria na inviabilidade da propositura de inventário negativo de bens. Igualmente adequada a referência ao seguinte aresto do mesmo TJSP a disciplinar as hipóteses de cabimento do inventário negativo: AGRAVO DE INSTRUMENTO. Inventário. Decisão que determinou a apresentação do esboço de partilha antes da alienação de qualquer bem do espólio. Alegação de desnecessidade do esboço de partilha, por se tratar de inventário negativo. Descabimento. Hipótese em que o plano deverá demonstrar que todos os bens serão consumidos pelas dívidas deixadas pelo de cujus e que nenhum quinhão hereditário será transmitido. Aplicação do artigo 1.023 do CPC. Necessidade de apresentação também para proteção da menor herdeira. Esboço que, se apresentado, não causará nenhum dano às partes. Recurso não provido. Agravo de Instrumento nº 0177343-66.2012.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, Rel. Walter Barone.
Nesses termos, sem um interesse de agir efetivamente demonstrado, a justificar a movimentação da máquina judiciária estatal, não se tem admitido sucesso nesse tipo de demanda. Ainda pedindo licença para transcrições, seria de se destacar do mesmo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a seguinte orientação jurisprudencial: INVENTÁRIO NEGATIVO. Autora não demonstrou o interesse processual no ajuizamento do inventário negativo. Herdeiros podem pleitear a habilitação na demanda trabalhista. SENTENÇA DE EXTINÇÃO, com fulcro no artigo 267, inciso VI (falta de interesse processual), do Código de Processo Civil. RECURSO DA AUTORA IMPROVIDO. Apelação no 0035588-17.2012.8.26.0562, da Comarca de Santos. Rel. Flavio Abramovici.
Neste caso em especial, seria de se apontar sutil diferença, eis que se cuidava de situação em que o de cujus sucessiones agitur já havia intentado a ação trabalhista, de modo que, nessas condições, a situação seria de simples sucessão no polo (malgrado a má redação do artigo 43 CPC, com equivocada menção à substituição). Realmente, com ação já em curso, ocorrendo o fale cimento, já prevê a legislação processual outros tipos de providência diversos do inventário negativo (a suspensão – art. 265 CPC – até habilitação do primeiro pelo espólio ou, já estando este encerrado, pelos herdeiros). Diversa, no entanto, seria a solução acaso a reclamação trabalhista ainda não houvesse sido intentada quando da morte do extinto.
Aí, haveria situação de falta de capacidade de exercício para mover a demanda (com a morte, extinguiu-se a capacidade do finado, conforme é cediço). De tal sorte, seria o caso de se formalizar pedido pelo seu espólio, representado pelo inventariante (art. 12 e seus consectários do Código de Processo Civil). Contudo, se o morto não deixou bens a inventariar, não haveria tecnicamente um espólio (o crédito trabalhista ainda não foi reconhecido, havendo a necessidade de propositura da reclamação respectiva), de sorte tal que, nessas condições, seria o caso de se intentar ação de inventário negativo, possibilitando a indicação de inventariante que teria capacidade de representação dos interesses do falecido no juízo trabalhista. Reconhecendo que em tal situação o inventário negativo se prestaria a esclarecer fatos e a dar certeza e segurança jurídica a certas situações, devendo-se no caso de ausência de patrimônio aceitar como necessária a nomeação de viúva como inventariante para promover reclamação trabalhista, interessante precedente também do tribunal bandeirante, no julgamento da AC 000150911.2011.8.26.0606, Rel. Jesus Lofrano. O critério diferencial será, portanto, a existência de necessidade ou utilidade no processamento do inventário negativo. Sobre o tema, também do tribunal paulista: INVENTÁRIO NEGATIVO. Ausência de bens a inventariar. Situação excepcional que visa esclarecer situação pessoal ou patrimonial do viúvo ou de terceiro. Autores que insistem na necessidade da certidão de nomeação de inventariante para darem baixa na CTPS do falecido junto à empresa em que trabalhava. Obrigação da empregadora de fazer constar, no Termo de Rescisão de Contrato de Trabalho – TRCT o motivo “falecimento”. Obrigatória a indicação do código de movimentação do FGTS no referido Termo, que será firmado pelo beneficiário do falecido. Hipótese, todavia, em que os herdeiros lograram levantar o FGTS, demonstrando que as providências já foram tomadas pela empresa. Regularidade junto à previdência. Falta de interesse de agir. Extinção mantida. Recurso improvido. Apelação no 0345766- 91.2009.8.26.0000, da Comarca de Atibaia, Luiz Ambra.
Ainda em pertinência com tudo quanto asseverado nas linhas acima, o seguinte julgado, versando sobre nova situação fática (erro na certidão de óbito a autorizar o reconhecimento de interesse de agir para o inventário negativo): AGRAVO DE INSTRUMENTO. Decisão que determinou aos agravantes emendarem a inicial para converter pedido de alvará em inventário negativo. Crédito trabalhista não recebido em vida pelo seu titular. Hipótese em que, a despeito da norma prevista no art. 1o da Lei no 6.858/80, é necessário o inventário negativo, porquanto consta da certidão de óbito do de cujus que ele deixou bens a inventariar e a dispensa do processamento do inventário somente se aplica quando o falecido não
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possuir outros bens. Recurso desprovido. Agravo de Instrumento no 0265187-54.2012.8.26.0000, Rel. Milton Carvalho.
Ainda sobre a necessidade de inventário negativo para corrigir situações quanto a erros verificados na certidão de óbito acerca da existência de bens, de se destacar do mesmo TJSP: Inventário negativo. Possibilidade. Existência de credo res. Assento de óbito do qual constou a existência de bens. Interesse de agir caracterizado. Extinção afastada. Sentença anulada. Recurso provido. Apelação no 000399135.2009.8.26.0077, da Comarca de Birigui, Claudio Godoy.
Mas, dentro do escopo preconizado por meio do presente artigo, o que se pondera é no sentido de que ainda haveria diversas hipóteses práticas da necessidade de propositura de inventários negativos (e ao se referir à necessidade, pelo óbvio, se está referindo à existência concreta do interesse de agir para tanto, enquanto condição do exercício do direito de ação). Ora, o escopo visado, nesses casos, para justificar a movimentação da máquina judiciária estatal será, justamente, a obtenção de uma declaração de que o extinto não deixou patrimônio a ser transmitido a qualquer herdeiro. Ou seja, satisfaz-se o requisito de reconhecimento de uma tutela meramente declaratória, qual seja tutela que não possui senão o elemento declaração10. Basta, portanto, que se demonstre a necessidade e a utilidade de se obter essa declaração negativa para que o inventário negativo se consubstancie na tutela adequada para tal finalidade. As hipóteses, portanto, não seriam de interpretação em numerus clausus (restritivas), mas, ao revés, seriam de interpretação em numerus apertus. Veja-se a seguinte orientação no sentido de reconhecerse inventário negativo de bens como modo de se evitar a caracterização de situação de herança jacente, formada no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em precedente muito interessante, em cujos trechos principais pede-se vênia para continuar a transcrever neste singelo artigo: DIREITO PROCESSUAL CIVIL – Inventário – Imóveis prometidos à venda – Prova da quitação do preço, ausência de outros bens a serem inventariados, configuração de inventário negativo e não herança jacente, alvarás podem ser outorgados aos adquirentes. Recurso provido. (...) 2 imóveis que foram objeto de compromisso de compra e venda firmado e quitado anteriormente à morte da de cujus. Portanto, presente caso é simplesmente de deferimento de expedição de alvarás judiciais para cumprimento de obrigação assumida em vida pela falecida. Agravo de Instrumento no 0032903-74.2012.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, Rel. Moreira Viegas. 48
Não menos importante é a situação referente ao reconhecimento da possibilidade de propositura de inventário negativo de bens para efeitos de caracterização dos requisitos necessários à configuração da usucapião constitucional urbano (como sabido, para a sua caracterização mister se fará a inexistência de outros bens pelo possuidor). E isso veio a ser reconhecido pelo tribunal paulista no julgamento da AC 994.09.287247-1, Comarca de Socorro, Rel. Ênio Santarelli Zuliani.
Referências Bibliográficas CARVALHO NETO, Inácio. Direito das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2008. COLANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Ediouro, 1988. DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. 5. v. São Paulo: Saraiva, 2009. LOPES, João Batista. Ação declaratória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. MARKY, Thomas. Curso elementar de Direito romano. São Paulo: Saraiva, 1987. OPITZ, Silvia C. B.; OPITZ, Oswaldo. Curso completo de Direito Agrário. São Paulo: Saraiva, 2013. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 2. v. Rio de Janeiro: Forense, 1991. WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de Processo Civil. 3.v. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
Notas 1 Nesse sentido, interessantes ponderações históricas apontadas por Thomas Marky em célebre obra acerca de Direito romano, mencionada nas referências do presente texto, às páginas 35 e seguintes. 2 Fustel de Colanges. A cidade antiga, como mencionado nas referências ao final deste texto. 3 Com narrativa acerca desta correlação entre propriedade e o seu caráter sagrado no Direito romano e seu reflexo nos dias atuais, em obra mencionada nas referências deste texto, o entendimento de Silvia C. B. Opitz e Oswaldo Opitz, à fl. 65. 4 À guisa de exemplificação, nesse sentido, destaca-se a opinião de Maria Berenice Dias em obra mencionada nas referências deste texto, p. 367. 5 Nesse sentido, Inácio de Carvalho Neto, em obra mencionada nas referências bibliográficas deste texto à página 38. 6 No seu famoso Vocabulário jurídico, como destacado nas referências bibliográficas deste texto, p. 515. 7 Obra mencionada nas referências da presente análise, à p. 422. 8 Quanto a isso, remete-se o leitor ao conceituado Curso avançado de Processo Civil, de Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini, às páginas 312-313, em detalhes nas referências bibliográficas do presente estudo. 9 Com propriedade, essa é a opinião de Roberto Senise Lisboa, em conhecido manual, p. 434, devidamente identificado nas referências bibliográficas deste texto. 10 Na feliz acepção de João Batista Lopes em conhecida obra mencionada nas referências do presente texto, à página 38.
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Jurisdição constitucional como fundamento para o efetivo acesso à Justiça Márcia Michele Garcia Duarte
Coordenadora do NPIC Professora das Faculdades São José e da Ucam
T Relatório
rata-se de situação concreta em que determinado candidato ao cargo de Professor no Magistério Superior Federal submeteu-se a concurso público de provas e títulos. O candidato foi o único a ter inscrição deferida para participar do certame que ofertava duas vagas, sendo aprovado com excelente nota na prova de conteúdo, de cunho eliminatório, obteve êxito na prova didática e recebeu notas baixas na prova de títulos. Considerando a extração da média ponderada, o candidato foi reprovado, embora não fossem eliminatórias as etapas seguintes à prova de conhecimento. Não obstante o caráter eliminatório indevidamente conferido à fase de prova de títulos, a Banca Examinadora composta por cinco membros, conferiu notas heterogêneas ao mesmo lote de títulos apresentados e, sendo assim, constataram-se valorações subjetivas e individuais feitas por cada um dos examinadores, uma vez que não havia tabela (barema) única e previamente divulgada a orientar a distribuição das notas aos títulos. Este artigo traz como ponto nodal a aplicação das decisões paradigmas prolatadas no AI 194188 e no MS 31176 MC / DF, ambas do Supremo Tribunal Federal. Fundamentação Jurídica: A situação narrada é de alta indagação jurídica e de grande complexidade, visto que presentes violações aos preceitos constitucionais e infraconstitucionais com efeitos extremante nocivos ao administrado e ao interesse público. 50
O caso permite a intervenção do Poder Judiciário como forma de correção do desvio ocorrido na realização do certame de modo a torná-lo válido em sua integralidade com base na Constituição Federal, notadamente em seu art. 37, II, a respectiva orientação doutrinária reiterada e pacífica interpretação desse dispositivo pelo STF. No curso de nossa pesquisa encontramos que a discussão acerca do caráter meramente classificatório da prova de títulos em concurso público fora levada ao Supremo Tribunal Federal e decidida em 1997 (AI 194188), oportunidade em que brilhantemente o Ministro Marco Aurélio entendeu que se coaduna com o princípio da razoabilidade constitucional que a pontuação na prova de títulos sirva apenas à classificação dos candidatos e “JAMAIS definindo aprovação ou reprovação”. Entendeu ainda que constituiria verdadeiro paradoxo o fato de candidato ser aprovado em provas escritas e orais, mas declarado reprovado como consequência das notas atribuídas na prova de títulos. A Egrégia Corte renovou o sólido posicionamento ao julgar o Agravo Reg. em Agravo de Instrumento n. 1994.188-8-RS e, em decisão recente, o Excelentíssimo Ministro Luiz Fux, asseverou que esse permanece sendo o entendimento do Pretório Excelsior, destacando o currículo expresso em caráter meramente presumido a habilitação e o conhecimento do candidato, posto que esses não são testados, e que, portanto, essa seria a razão para não existir concurso de títulos, e, sim, concurso de provas ou provas e títulos.
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Nesse contexto, lembremos que o edital é a lei do concurso público, vinculando administrador e adminis trado. Outrossim, temos que a administração deve agir em virtude de lei, concluindo-se que somente poderá fazer aquilo que estiver descrito na ferramenta editalícia. O particular, por outro turno, encontra guarida no próprio texto constituinte para que se exima daquilo que não se encontra previsto em lei, na forma do art. 5o, II, que estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. O certame deve observar os princípios da vinculação do instrumento convocatório e do julgamento objetivo nas situações paralelas nos atos convocatórios, impedindose a ocorrência do desvio de finalidade, a inobservância da teoria dos motivos determinantes e a violação aos princípios da administração previstos no caput do art. 37 da Carta Maior, sob pena de os atos da administração restarem maculados. Na hipótese narrada, faltou autorização legal no edital e na Resolução para que as etapas de prova didática ou prova de títulos tivessem caráter eliminatório. Assim, não pode imperar a vontade e a suposta discricionariedade do administrador sob pena de infringir neste e noutros elementos que igualmente devem nortear os atos da Administração Pública, tais como os princípios da moralidade e da impessoalidade, e consequentemente, o princípio da probidade administrativa. Do mesmo modo, o princípio da vinculação evita que brechas sejam oportunidades para a violação dos deveres
do administrador de probidade e impessoalidade. Tal princípio é tão essencial que a sua inobservância pode gerar a nulidade do ato, devendo, pois, ser cumpridas as normas e condições estritamente vinculadas pelo edital. Além disso, a falta de barema prévio e público comprometeu a lisura e transparência do certame, posto que viabilizou que critérios subjetivos orientassem a distribuição de pontos. Isso restou evidente pelas notas heterogêneas atribuídas ao mesmo lote de documentos apresentados pelo candidato na prova de títulos. Ante tantos vícios apontados, não resta outra possibilidade de correção do desvio senão pela via do Poder Judiciário no uso da Jurisdição Constitucional. Para Lenio Streck: “O Direito que imediatamente conhecemos e aplicamos, posto pelo Estado, dele dizemos ser ‘posto’ pelo Estado não apenas porque são escritos pelo Legislativo, mas também porque suas normas são produzidas pelo Judiciário”1 O Estado é detentor do monopólio de “dizer o direito”, o que se realiza pelos diversos campos de atuação que vão desde a concepção da norma até a sua applicatio concreta, sempre à luz da Constituição. Para HansGeorg Gadamer2 a tarefa de interpretação consiste na concretização da lei em cada caso concreto, e para Paulo Bonavides, a interpretação conforme a Constituição é “um princípio da interpretação da lei ordinária de acordo com a Constituição”.3 Sabemos que o Poder Judiciário não deve intervir na esfera do mérito administrativo, mas destacamos a
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evidência de que o Estado é um Poder Uníssono com tarefas desempenhadas pelos Três Poderes sem que isso implique em isolamento e imunidade absoluta entre um e os outros. Quem corrige a desvirtuação de um ato da administração não é o Judiciário em sentido estrito, mas sim o Estado analisando-o conforme a legalidade imposta pelo próprio Estado. A tarefa de dizer o Direito é do Estado que estabeleceu o contrato social, interpretando e aplicando a jurisdição frente a cada desafio posto em juízo. O ordenamento jurídico contemporâneo deve dizer o direito interpretando as normas e aplicando-as caso a caso, sempre pautado no texto constituinte e no anseio de melhor interesse social. A função do Direito é transformadora na condução da guarda da materialidade dos textos constitucionais, despindo-se de formalidades que bloqueiem a análise concreta e segura do caso concreto. Vivemos num novo cenário de intensa potencialidade das normas à luz do princípio democrático, e o ativismo judicial aclara bem a nova postura que superou a jurisprudência mecânica e bouche de la loi paralisados por um sistema limitador da atividade judicante, ante aos interesses sociais e políticos daquela época. Na nova dimensão imposta ao Direito, as minorias não mais são massacradas e não se sujeitam ao despotismo e arbitrariedade do Governo. Ainda assim convivemos com algumas “regalias” mantidas para o Poder Público em Juízo e outros privilégios gerais inerentes à atividade administrativa, mas isso não é um permissivo a que elementos como discricionariedade sejam utilizados como ferramenta lícita, mas para fim moralmente inadmitido. Frente aos riscos que os administrados ainda se encontram, a tarefa do sistema jurídico é corrigir qualquer irregularidade voluntária ou não de atos que violem direitos e garantias fundamentais dos administrados. No concurso público o mesmo deve imperar. Por isso, dissemos que há um novo paradigma de legitimidade do direito constitucional a ser utilizado sumariamente quando da ocorrência de qualquer violação por meio de conduta abusiva de entes públicos. Para Lenio Streck4 existe especial relevância da jurisdição constitucional a partir da positivação dos direitos sociaisfundamentais, e o Poder Judiciário passou a ter um papel primoroso na garantia da realização desses. Isso é parte das “promessas da modernidade incumpridas”, afirma. Critérios discriminatórios violam o princípio da isonomia. No ingresso em concurso público o seletor é a própria administração, que tem dever moral e ético de observar as regras da sociedade contemporânea, exercendo, inclusive, a autotutela como forma de corrigir erros que tenha praticado. Existe, claro, o minimalismo constitucional, estampado pelo formalismo que deve caracterizar as decisões dos 52
Tribunais, mas, explica Cláudio Pereira de Souza Neto5, a atividade judicial construtiva será atingida por meio da hermenêutica constitucional pautada no enraizamento em razões de cunho filosófico-político e que, a partir disso, o movimento contemporâneo de ideias tenderia a reinserir a razão prática da metodologia jurídica gerando “a possibilidade de se validar essas razões como argumento de fundamentação das decisões judiciais”. Sendo assim, por outro lado, a máxima efetividade da Constituição Federal permite uma postura ativista do Poder Judiciário como decorrência dos princípios do Estado Democrático de Direito, explica Cláudio Pereira, e o Poder Judiciário aplicando a fundamentalidade material da Constituição Federal é indispensável à efetividade da norma. A Concepção do Estado Democrático de Direito pressupõe que a jurisdição exerça a tarefa de guardiã dos valores materiais positivados na Constituição, explica Lenio Streck.6 Havemos de destacar que o mérito administrativo é blindado à interferência do Poder Judiciário, salvo quando se tratar de violação ao princípio da legalidade, violação à teoria dos motivos determinantes, o desvio de finalidade e violação aos princípios da administração em sentido amplo. Retomando a análise do concurso público, esse tem por escopo escolher os melhores candidatos para ocupar os cargos e empregos públicos, e devem ser realizados em consonância com os princípios da impessoalidade, legalidade, eficiência e moralidade. De certo, o Poder Judiciário não tem ingerência sobre esses aspectos peculiares de cada concurso público que melhor será examinado por seus organizadores sempre orientados pelos princípios e necessidades especificadas de cada cargo ou emprego público. Daí a impossibilidade de o Poder Judiciário se imiscuir no mérito administrativo, o que é razoável. Igualmente não compete ao Poder Judiciário substituir-se à Banca Examinadora, como já é pacífico na jurisprudência, limitando-se à análise da legalidade do certame e cumprimento dos dispositivos constitucionais. Por outro lado, o preceito constitucional esculpido no art. 5o, XXXV, informa que não será afastada da apreciação pelo Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça à direito, bem como violação da ordem justa deve ser corrigida de pronto pelo Estado-Juiz sob pena de se infringir o Estado Democrático enquanto ordem social contemporânea. Esses elementos dão subsídio suficiente à intervenção do Judiciário na esfera da Administração Pública sem que isso implique em violação à separação de Poderes ou intromissão no mérito administrativo, sob pena de o concurso público incorrer em forma de escolha livre de pessoal simpático à Banca Examinadora e que não cumpra com os elementos mínimos ao ingresso na carreira pública.
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“A observância do princípio da impessoalidade é o instrumento hábil a impedir que o administrador público, de alguma, forma favoreça ou persiga administrados ao conferir-lhes tratamento desigual. A atuação pública deve se pautar segundo a lei, ou haverá desvio ou abuso de poder.”
O controle jurisdicional se justifica não para ingressar no mérito administrativo, mas como forma de adequar o certame aos preceitos constitucionais e à ordem jurídica, bem como sanar os vícios do ato praticado, isso porque: “Por outro lado, ao Judiciário cabe manifestar-se sobre os aspectos de legalidade e verificar se a administração não ultrapassou os limites da discricionariedade, cometendo arbitrariedade”7. No caso em análise, não só a ilegalidade e consequente inconstitucionalidade da reprovação na prova de títulos é questionada, mas também a própria ausência da valoração prévia dos títulos, que deveria ter sido apresentada no edital e assim ter atendido ao princípio da motivação dos atos administrativos ao vincular publicamente os termos da análise do curriculum vitae. A observância do princípio da impessoalidade é o instrumento hábil a impedir que o administrador público de alguma forma favoreça ou persiga administrados ao conferir-lhes tratamento desigual. A atuação pública deve se pautar segundo a lei ou haverá desvio ou abuso de poder. Somente quando observados os deveres restritivos da administração: “o administrado estará imune a atos administrativos que não possuam motivação ou que sejam baixados com falsa motivação”.8 A moralidade é indispensável à validade do ato administrativo que deve obedecer à lei jurídica e à lei ética e moral que impõem ao agente público o dever de condutas interna e externas que sirvam ao bem comum. Em perfeita sintonia devem ser observados os princípios da finalidade e da impessoalidade para que o administrador público pratique atos observando sua finalidade legal, ou seja, aquela que o Direito indica como o objetivo do ato. Por fim, temos que o reconhecimento de invalidade de ato administrativo que importou em “ofensa ao direito” é corrigível em sede de Jurisdição Constitucional pela via da “supressão de um ato administrativo ou da relação jurídica dele nascida, por haverem sido produzidos em
desconformidade com a ordem jurídica”, ensina Bandeira de Mello.9 Também entende dessa forma Diógenes Gaspariri ao observar que o que motiva a invalidade do ato administrativo é a sua “imprestabilidade jurídica”. Quanto ao seu conteúdo, o “desfazimento do ato inválido” deve ser imposto e cabe ao Poder Judiciário valer-se da sua própria razão de ser e dizer o direito em cada caso concreto.10 No que toca ao concurso público em especial, os agentes devem se orientar pela transparência e publicidade, como formas de se possibilitar a averiguação quanto à presença dos critérios de eficácia e lisura, sob pena de se mutilar a essência do certame. Reiteramos que, embora seja vedado ao Poder Judiciário substituir o papel das Bancas Examinadoras, na tarefa de controle jurisdicional do ato administrativo, pode, sim, se imiscuir na esfera da Administração Pública de modo a prover o atendimento aos preceitos legais axiológicos que devem nortear os atos dos órgãos integrantes dessa última. No caso em exame, verifica-se a insurgência de elementos teratológicos nas leis do certame e no ato que gerou a reprovação do candidato na prova de títulos, o que justifica a intervenção da atividade jurisdicional como forma de correção de irregularidades do ato a fim de atender ao melhor interesse público. Conclusão Concluímos que as regras editalícias decorrem do uso da discricionariedade da Administração Pública o que não isenta ou imuniza a apreciação ou qualquer intervenção perpetrada pelo Poder Judiciário que tem o papel de socorrer os administrados em caso de ilegalidade e consequente inconstitucionalidade ofuscados pelo dito uso de oportunidade e conveniência. Para corrigir erro evidente entendemos que o Poder Judiciário poderá intervir de modo a reconhecer e declarar
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a invalidade do ato da administração e anular a inabilitação do candidato reprovado em concurso público na fase de prova de títulos sem que isso implique em interferência no mérito administrativo. Ademais, estamos diante de necessária jurisdição constitucional a fim de ser aplicada em absoluto a interpretação uníssona que o STF conferiu ao inciso II do art. 37 da CF/88, segundo a qual a prova de títulos em concurso público tem caráter meramente classificatório e “jamais” eliminatório, conforme precedentes recentes invocados como decisões paradigmas. Na sequência, entendemos que o Poder Judiciário poderá reconhecer e declarar a habilitação do candidato no certame,
uma vez que esse obteve êxito na prova de conhecimento (eliminatória) e cumpriu todas as formalidades das etapas seguintes, no tempo e modo exigidos nas regras editalícias (prova didática, habilitatória; prova de título, classificatória), bem como determinar que a Administração proceda com os meios necessários à investidura do particular no cargo de Professor de Ensino Superior. A nosso ver, somente pela via da jurisdição constitucional e do ativismo judicial o candidato que teve seu direito violado encontrará em sua plenitude o legítimo e efetivo acesso à Justiça, que se realizará por meio do processo justo e da prestação jurisdicional que entregue a tutela tempestiva e gravada pela mais lídima expressão da Justiça.
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Notas “Hermenêutica e Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil”. In A Constitucionalização do Direito: A Constituição como Lócus da Hermenêutica Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 04. 2 GADAMER, Hans-Georg Verdad y Método. Vol. I. Tradujeron Ana Agud Aparicio y Rafael de Agapito. 11a. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2005, p. 489. 3 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 432. 4 E mais: “Dito de outro modo, descumprir os dispositivos que consubstanciam o núcleo básico da Constituição, isto é, aqueles que estabelecem os fins do Estado (o que implica trabalhar com a noção de “meios” aptos para a consecução dos fins), representa solapar o próprio contrato social (do qual a Constituição é o elo conteudístico que liga o político e o jurídico da sociedade). O texto constitucional, fruto desse processo de repactuação social, não pode ser transformado em um latifúndio improdutivo. Não pode, pois, ser deslegitimado”. (Itálico original. Grifos nossos). “Hermenêutica e Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil”. In A Constitucionalização do Direito: A Constituição como Lócus da Hermenêutica Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, pp. 03-41. 5 “Fundamentação e Normatividade dos Direitos Fundamentais: Uma reconstrução Teórica à Luz do Princípio Democrático” In A Nova Interpretação Constitucional. BARROSO, Luís Roberto (org). Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 299. 6 “Hermenêutica e Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil”. In A Constitucionalização do Direito: A Constituição como Lócus da Hermenêutica Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, pp. 03-41. 7 TRF 2. Apelação Cível. - Processo: 200651020011817. Sexta Turma Especializada. 8 ALMEIDA FILHO, Agostinho Teixeira de; PEDRAS JÚNIOR, Gabriel Luiz Junqueira; LOYOLA, Bernardo Guimarães; VIANNA, Roberto Vieira. “O Princípio Constitucional da Impessoalidade”. In A Constitucionalização do Direito: A Constituição como Locus da Hermenêutica Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, pp. 81-94. 9 Curso de Direito Administrativo. 27ª ed, rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010, pp. 462/4. 10 Direito Administrativo. 15ª ed. atualizada por Fabrício Motta. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 165/6. 1
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Destituição do poder familiar Relevantes aspectos jurídicos a serem considerados
Alexandre Guimarães Gavião Pinto
S
Juiz de Direito do TJRJ
abe-se que os genitores devem, por ditame legal, lutar pelo bem-estar de sua prole, zelando pela saúde e pelas integridades física e mental de seus filhos, e que os direitos das crianças e dos adolescentes desafiam uma proteção especial, visando o pleno desenvolvimento dos aludidos menores, que possuem a prerrogativa inafastável de evoluir em paz e segurança. Tal afirmação implica na inevitável dedução, de que não deve o poder público admitir que menores permaneçam em inadequadas condições sociais, sujeitos a situações calamitosas, fome, qualquer tipo de exploração ou opressão, condenados ao analfabetismo ou mesmo ao abandono daqueles a quem, por força de lei, incumbe a responsabilidade de criá-los e suprir-lhes as latentes necessidades, o que abrange, principalmente, os pais. Nessa linha de raciocínio, forçoso convir que não pode, qualquer dos genitores, agir em descompasso com o poder familiar que exerce em favor de seus filhos menores, negligenciando cuidados básicos ou atuando de forma omissa, de maneira reprovável e imoral. Necessário se faz, a fim de garantir os direitos constitucionais dos menores, que o Poder Público, em especial o Judiciário, na seara jurisdicional, combata, com firmeza, não só ações reprováveis, como omissões dos pais na nobre tarefa de proteger os filhos e de zelar pelo seu bem-estar físico e mental, o que enseja o acolhimento de eventuais pretensões de destituição do poder familiar, na hipótese de comprovada ocorrência de graves fatos configuradores do descaso dos genitores com o exercício do poder familiar. 56
Tais situações de negligência, desde que demonstradas, à saciedade, nos autos, por meio de elementos probatórios seguros e idôneos, devem ser imediatamente cessadas, afastando-se, destarte, o menor de qualquer situação de risco. Vale lembrar que, de acordo com o artigo 1.634 do Código Civil, compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores, dirigir-lhes a criação e a educação, e têlos em suas companhia e educação, sendo certo que, na forma do artigo 1637, do mesmo diploma legal, se o pai ou a mãe abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao magistrado, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar todas as medidas que lhe pareçam reclamadas pela segurança do menor e de seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha. Ressalte-se que o artigo 1.638 do Código Civil determina que perderá, por ato judicial, o poder familiar, o pai ou a mãe que castigar imoderadamente o filho, deixar o filho em abandono, praticar atos contrários à moral e aos bons costumes ou incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente. A Lei no 8.069/90 dispõe, em seu artigo 22, que, aos pais, incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes, ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais, salientando-se que o artigo 33 prescreve que a guarda obriga à prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou ao adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive os próprios pais.
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Foto: Arquivo pessoal
Vê-se, assim, que os direitos fundamentais dos menores, lastreados na dignidade e no valor da pessoa humana, exigem que se estabeleça, urgentemente, em favor dos mesmos, que podem eventualmente estar em situações de risco, melhores condições de vida, tendo a infância o direito a uma assistência e a um auxílio mais intenso e eficaz. A ação de destituição do poder familiar almeja justamente comprovar a violação efetiva, por parte de qualquer dos genitores, ou mesmo de ambos, das regras atinentes ao poder familiar, o que, desde que demonstrado de forma segura, autoriza a incidência das sanções previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código Civil. A família é um elemento fundamental da sociedade, constituindo um meio natural para o crescimento e o bem-estar de todos os seus membros, o que atinge, particularmente, as crianças e os adolescentes, que devem, por isso, receber a proteção e a assistência necessárias para desempenhar relevantes papéis no seio social. Ora, se a prova dos autos revelar que um dos pais ou ambos não ostentam condições de proteger o filho menor e de desempenhar o poder familiar de forma responsável, por deixar de garantir à criança ou ao adolescente um desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência, a destituição do poder familiar é medida que se impõe, sendo perfeitamente possível, e até mesmo recomendável, o deferimento de liminar para
a suspensão do seu exercício, o que pode viabilizar a inclusão do menor na lista de crianças disponíveis para a adoção. Em reiterados julgados de nossos tribunais pátrios, depreende-se que, se os genitores não apresentam as mínimas condições psicológicas, emocionais, sociais e econômicas de amparar os filhos, outra alternativa, muitas vezes, não resta a não ser a procedência do pedido formulado na inicial da ação de destituição do poder familiar, que, comumente, é ajuizada pelo próprio Ministério Público no intuito precípuo de defender os interesses violados dos menores, que carecem de peculiar proteção. Em razão de falta de maturidade física e intelectual, os menores precisam de cuidados especiais, além de proteção jurídica adequada, sem discriminação alguma, devendo ser adotadas todas as medidas oportunas para garantirlhes o bem-estar, tendo em conta os deveres dos pais, que devem assegurar aos filhos, de maneira compatível com o desenvolvimento de suas plenas capacidades, a orientação e os conselhos próprios ao exercício dos direitos que lhes são reconhecidos pela Constituição da República e pelas leis infraconstitucionais. Possuem os pais a obrigação de conferir aos filhos condições indispensáveis para permitir os seus desenvolvimento físicos, mental, espiritual, moral e social, legitimamente esperados.
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O que é preciso se ter em mente é que a grave violação dos deveres do poder familiar desprestigia flagrantemente os interesses dos menores, que não podem ficar sujeitos a nenhuma situação de abandono, negligência ou risco, até mesmo pelo fato de que os filhos, para o harmonioso desenvolvimento de suas personalidades e potencialidades, devem crescer em um ambiente familiar saudável e honesto, em clima de amor, tolerância, liberdade e solidariedade, o que, em última análise, contribui para se alcançar a felicidade tão almejada por qualquer ser humano. A procedência da pretensão de destituição do poder familiar exige, contudo, que as circunstâncias dos autos evidenciem, indubitavelmente, a absoluta inaptidão dos pais em zelar pela guarda, pela educação e pelos cuidados mínimos exigidos por uma criança, bem como a demonstração da existência de riscos manifestos às suas saúde e integridades física e mental, o que implica no reconhecimento de que a decretação da perda do poder familiar se mostra como medida de proteção, socorrendo aos superiores interesses do menor, por possibilitar o seu pleno e saudável desenvolvimento, o que pode vir a ocorrer até em família substituta, diante da inaptidão da família natural para o cumprimento de tal mister.
O abandono dos pais aos filhos também autoriza o drástico, porém necessário, acolhimento do pleito de destituição, eis que o referido abandono possui inegável relevância jurídica, tanto na esfera cível como na penal. Na realidade, o abandono tratado pela lei não é tão somente o ato de deixar o filho sem assistência material, fora do lar, mas também a indiferença intencional pelas suas educação, criação e moralidade. Com efeito, vislumbra-se, no abandono do filho, ato reprovável que implica no não atendimento direto do dever de guarda, vigilância, criação e educação, a revelar a inequívoca falta de aptidão para o exercício do poder familiar, o que justifica plenamente a privação. Releva notar que situações de desídia colocam os menores em grave perigo, seja quanto à segurança e à integridade pessoal, seja quanto à saúde e à moralidade, afrontando um dos direitos mais relevantes dos filhos, que é justamente o de estar sob os adequados cuidados e a vigilância de seus pais, em estado de segurança. A hipótese de abandono traduz-se na falta de cuidado e atenção, e autoriza a perda do poder familiar, já que não se permite que qualquer dos pais deixe o filho à mercê da própria sorte.
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O direito dos filhos está intimamente ligado aos deveres dos pais, salientando-se que o posicionamento vigente é o da proteção integral da criança e do adolescente, com a afirmação de todos os direitos inerentes, que devem ser respeitados, rotineiramente, pela família, pela sociedade e pelo próprio Estado. Entre os direitos fundamentais dos menores, explicita dos, não apenas no Estatuto da Criança e do Adolescente, mas também – e principalmente – na Constituição da República, encontra-se a necessidade de se garantir o desenvolvimento sadio e harmonioso dos mesmos, que devem ser criados e educados em ambiente favorável à sua formação moral, o que indica que o interesse dos filhos menores deve prevalecer em eventuais situações de conflito e, em todos os casos, deve se sobrepor a qualquer outro bem ou interesse juridicamente albergado, levando-se em conta não só o fato de ser a Lei no 8.069/90 uma lei de função social, com normas de ordem pública, nitidamente prioritárias, que possuem assento constitucional, sendo inafastáveis pela vontade das partes, mas também o fato de que deve ser respeitada a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em pleno e permanente desenvolvimento. As funções paterna e materna são essenciais e se complementam, possuindo impressionante impacto no sadio desenvolvimento da descendência. Tal assertiva revela que, entre as incontáveis obrigações decorrentes do poder familiar, se identifica a necessidade de que os pais tenham a companhia de seus filhos, dando-lhes direção, criação e educação, o que mostra que a educação não abrange somente a escolaridade, mas também a convivência familiar permanente, o afeto, o amor e o carinho, indispensáveis para o pleno estabelecimento das condições de desenvolvimento da criança, em perfeita segurança.
“O direito de criar um filho se relaciona principalmente com a necessidade de que seja assegurado ao mesmo todos os direitos fundamentais à pessoa humana, garantindo-lhe o bem-estar físico e mental, o que alcança, tanto o sustento alimentar, como o zelo com a saúde e a higiene, e todas as outras medidas pertinentes para a sobrevivência digna e a justa evolução da prole.”
O direito de criar um filho se relaciona principalmente com a necessidade de que seja assegurado ao mesmo todos os direitos fundamentais à pessoa humana, garantindo-lhe o bem-estar físico e mental, o que alcança tanto o sustento alimentar, como o zelo com a saúde e a higiene, e todas as outras medidas pertinentes para a sobrevivência digna e a justa evolução da prole. Ter o filho em companhia dos pais é, na realidade, função essencial ao poder familiar, não significando apenas residir junto, mas também instaurar uma convivência contínua e permanente, tatuada, de maneira indelével, pela constante troca de sadias e proveitosas experiências, por aconselhamentos oportunos e orientações probas, o que contribui para o desenvolvimento sólido da personalidade do infante. Os menores não devem ser separados de seus pais contra a vontade destes, em regra, salvo se, em uma ação judicial regularmente instaurada, com o respeito ao contraditório e à ampla defesa, for demonstrado que tal separação é realmente necessária no interesse superior da criança ou do adolescente. O poder familiar constitui função típica dos pais, que perdura por toda a menoridade, sendo certo que, sempre que for constatada a existência de um fato grave e reprovável, incompatível com o justo exercício do poder familiar, materializa-se a possibilidade não só de suspensão, como, até mesmo, de perda do poder familiar, indevida e inconvenientemente exercido pelos pais. Não se pode perder de vista, entretanto, que a perda do poder familiar é realmente uma medida marcantemente excepcional. Pode e deve ser decretada judicialmente, em procedimento contraditório, em prol dos inafastáveis interesses do menor, quando ficarem demonstradas, desde que suficientemente, situações graves, que configurem, na forma do artigo 1.638, do Código Civil, falta aos deveres dos pais para com os filhos. A adoção da doutrina da proteção integral pela Lei Menorista e pela jurisprudência vigilante de nossos tribunais fortaleceu consideravelmente o princípio do melhor interesse da criança, que deve ser observado em quaisquer circunstâncias, inclusive nas relações familiares, e nos casos relacionados à filiação. A medida drástica, porém muitas vezes imprescindível, de destituição do poder familiar objetiva assegurar os superiores interesses do menor, que não pode permanecer em situação de flagrante abandono, seja por ação ou omissão de seus genitores, sob pena de se violarem as prerrogativas constitucionais desses importantes seres em desenvolvimento, bem como os mais comezinhos cuidados necessários à prole, sendo profundamente injusto e inaceitável pretender que continue vivendo em situação irregular, de total insegurança jurídica, na mera expectativa de vir um dia a estar bem-assistido pelos próprios pais.
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Foto: Renato Stockler
D om Quixote, por Ada Caperuto
Agência de Redes para Juventude Desenvolvida pelo cineasta e escritor Marcus Faustini, a iniciativa é um modelo inovador de ação sociocultural, que promove a formação e incentiva a mobilização cidadã de jovens moradores de comunidades pacificadas. Patrocinada pela Petrobras, a Agência também premia os melhores projetos elaborados em benefício dos moradores das localidades onde ocorrem as oficinas.
Lançamento do projeto “Com Estilo”
Fotos: Agência Redes para Juventude
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C
riada em 2011 pelo escritor e cineasta Marcus Vinícius Faustini, a Agência de Redes para Juventude está mudando a realidade de centenas de pessoas que vivem nas comu nidades pacifi cadas da capital do Rio de Janeiro. No momento, a iniciativa de cunho sociocultural funciona em sete centros de apoio, localizados na Rocinha, no Borel, no Batan, na Cidade de Deus, no Cantagalo, na Providência e na Lapa, sendo o último um “ponto de encontro” para outras comunidades ocupadas, que não tenham um núcleo em sua região. A iniciativa, que une a arte às ações de responsabilidade social, oferece aos jovens dessas localidades as conexões e as ferramentas para que eles possam ir além de seu cotidiano, ampliando horizontes sem sair da própria comunidade, seu próprio território. Patrocinada pela Petrobras, a Agência de Redes para Juventude atende jovens de 15 a 29 anos, contando com o apoio de parcerias estabelecidas com ONGs e grupos locais, que cedem o espaço para as aulas. Os alunos recebem bolsa-auxílio mensal, material didático
“A ideia é oferecer repertórios para o jovem criar seu próprio caminho de conexões para sua vida na cidade. Ao mesmo tempo, ele é encorajado a pensar o seu próprio território como lugar de criação.”
Festa nordestina no lançamento do jornal Fala Roça, o primeiro periódico impresso sobre a cultura do nordeste na Rocinha 2013 Setembro | Justiça & Cidadania 61
Fotos: Agência Redes para Juventude
Páscoa no Chapéu Mangueira, um evento da Maneh Produções, projeto premiado. As crianças passaram a tarde se divertindo e se deliciando com a distribuição de chocolates
Inauguração do projeto Estação Rociclagem, na Rocinha 62
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e almoço, para que possam participar das oficinas. As aulas abrangem artes plásticas, vídeo de comunicação, formação em cultura digital, cidadania e mobilização. Ao final de dez meses, todos os participantes recebem certificados de especialização da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O que sobressai no modelo da Agência é o fato de que os alunos também desenvolvem projetos de uma atividade, ação cultural ou produto que beneficie a sua comunidade. Todos eles são apresentados em um evento realizado em cada território, ao final das jornadas. Além disso, os cinco melhores projetos de cada comunidade recebem, cada um, uma determinada quantia em dinheiro para serem desenvolvidos e implantados. “A ideia é oferecer repertórios para o jovem criar seu próprio caminho de conexões para sua vida na cidade. Ao mesmo tempo, ele é encorajado a pensar o seu próprio território como lugar de criação”, diz Faustini. A Agência de Redes para Juventude também conta com um portal, no qual os jovens podem postar detalhes sobre seus projetos em diferentes blogs. O portal é um espaço de troca entre os jovens e profissionais – designers, jornalistas, artistas, professores –, que poderão comentar as postagens e recomendar caminhos para a execução dos projetos. No endereço eletrônico, os jovens também podem mapear o espaço físico da comunidade e iniciar um processo de demarcação do território, com a criação de um novo mapa. Metodologia premiada, projetos idem Até hoje, já foram realizados sessenta projetos e outros 41 estão em andamento. Somados os três ciclos de oficinas que já ocorreram, a Agência reuniu um total de 710 jovens que participaram das ações, mas o número de inscritos já ultrapassa dois mil. Os números impressionam e o trabalho foi merecedor de um impor tante prêmio. Em 2012, o programa foi premiado e escolhido pela Fundação Calouste Gulbenkian para ser implantado em Londres e Manchester, na Inglaterra, em parceria com People’s Palace Project (PPP), Battersea Art Centre (BAC) e Contact Theatre. Já entre os projetos das comunidades que se destacaram estão os seguintes: Borel – Reci-Criando (cria instrumentos musicais a partir de material reciclável) e Nós Com Todos (oficinas de música e dança); Providência – Providenciando a Favor da Vida (assistência a mães de primeira viagem) e Clube da Luta (academia de artes marciais); Batan – Oi, Galera! Oficina de Cultura, Arte e Som (oficina de instrumentos musicais) e CAB – Conscientização Arte Batan (oficinas de arte, reciclagem e conscientização); Chapéu/Babilônia – Coletivo Fitando Arte (oficina de moda e decoração para mulheres)
e Maneh Produções (produtora de eventos locais); Cantagalo – Boca de Lixeira (conscientização sobre reciclagem com criação de coleta seletiva) e Workshop de Dança (aulas teóricas e praticas de hip-hop); Cidade de Deus – CDD na Tela (montagem de um site audiovisual) e Conexão Vivarte (evento “mistureba” composto por artistas da CDD). Uma pesquisa recente mostrou que 90% dos projetos contemplados das duas últimas edições continuam em pleno funcionamento. Um saldo comemorado por Faustini: “Esse número confirma que basta uma oportunidade para que esses jovens mostrem seu potencial de criação e realização”.
Faustini, no Batan, durante o 1o Ciclo da Agência de Redes para Juventude
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Plebiscito seria a solução?
Luiz Gonzaga Bertelli
Presidente Executivo do Ciee
A
presidente Dilma tem reiterado à Nação o seu obstinado intuito de convocar um plebiscito popular, estimado em meio bilhão de reais, com a finalidade de analisar a possibilidade de uma reforma política. Segundo ela, seria “imprescindível” para responder aos anseios da população. Os legisladores da base governamental e da oposição do Executivo já haviam descartado a iniciativa de fazer um plebiscito. Reforma política feita por meio de um plebiscito é temerária e de difícil consecução, sentenciam jurisconsultos famosos, entre eles Miguel Reale e Meirelles Teixeira. Em 1963, eleitores votaram no plebiscito. Onze milhões sufragaram de um eleitorado de dezoito milhões. O resultado determinou a volta do presidencialismo. No ano de 1993, o governo indagou da população brasileira se desejava uma monarquia ou uma república e sobre o sistema de governo: presidencialismo versus parlamentarismo. As decisões eram dicotômicas. Houve o pouco interesse da população e o baixo nível de mobilização no que concerne à consulta. Em decorrência, perto de 50% do eleitorado absteve-se de votar. Desta feita, o questionamento é de difícil entendimento para a maioria da população brasileira, constituída, tristemente, de analfabetos puros ou funcionais. Daí, a imprescindibilidade, preliminarmente, de longo e didático esclarecimento ao povo a fim de resultar em efetivos benefícios. A informação poderá ser obscura, e há dúvidas de que os eleitores a consigam distinguir, como afirma um 64
“Na legislação maior brasileira, o termo plebiscito foi introduzido na Constituição de 1937, o que confirma a inspiração autoritária do instituto. A constituição de 1946, igualmente, contemplou a consulta plebiscitária, e a Emenda Constitucional no 4, de 1961, instituiu o regime parlamentarista de governo.”
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Foto: Arquivo CIEE
ministro do STF. Haverá um catálogo de questões de difícil escolha. Existe vasta literatura sobre o plebiscito e diversos livros de cunho jornalístico. Consultar a população por plebiscito significa ouvir a opinião do povo, por “sim” ou “não”, sobre a proposta que lhe seja formulada. À época que se estudava Direito romano nas escolas jurídicas do país, aprendemos com o professor Alexandre Correia que o plebiscito constitui uma das modalidades das leges rogatae, ou leis votadas pelo povo reunido em comício por proposta de magistrados, que se tornam obrigatórias para todos após a ratificação pelo senado. Modernamente, o plebiscito é instituto presente na consulta ao povo acerca de uma decisão a ser tomada. No plano do Direito internacional, o plebiscito é empregado a fim de obter a manifestação de uma comunidade a propósito da independência nacional ou de sua vinculação a este ou àquele Estado. A partir dos tratados que juridicamente puseram termo à I Guerra Mundial, sua utilização tem sido frequente. Para os constitucionalistas mais conceituados, o emprego do plebiscito enseja séria controvérsia e tem sido utilizado, em diversas ocasiões, de forma distorcida, a fim de reforçar predominantemente o poder de
autocratas. Daí, a assertiva de Louise Michel, em 1905: “Todo plebiscito, graças à intimidação, à ignorância, dá sempre a maioria contra o Direito, quer dizer ao governo que o invoca.” Não obstante, alguns o consideram um instrumento útil para trazer à democracia a intervenção direta do povo. Corresponderia a um remédio capaz de impedir que a soberania popular não se degenere em mera soberania dos parlamentares, conforme a advertência de Rousseau. Entre outros insignes mestres do Direito públi co, Manoel Gonçalves Ferreira Filho esclarece a imprescin dibilidade de distinguir o plebiscito do referendum. O segundo, sim, mereceria acolhida como um instituto que atenuaria o caráter indireto da democracia represen tativa. Mas as duas instituições têm de comum o chamar os interessados, os cidadãos, a se pronunciarem sobre assuntos da política. É certo que essa distinção é antes de caráter político que jurídico. E nem sempre é possível discernir, nos casos concretos, entre as consultas a que importa e a que não importa em uma manifestação de confiança em um homem. Por outro lado, em muitos Estados, como na Suíça, consideram-se sinônimos os termos referendum e plebiscito. Portanto, este se trata de
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colher a vontade a priori sobre um determinado assunto, enquanto o referendum normalmente ocorre para aprovar ou rejeitar uma lei, uma Constituição ou, até mesmo, um ato normativo. Contudo, são diferenças que não resistem a uma análise absoluta; é sempre possível encontrar exemplos históricos da palavra “referendo” significando plebiscito, e vice-versa. Quanto ao plebiscito, serviria, apenas, para disfarçar o poder de um dirigente. Não passaria de um mero instrumento do cesarismo, na sustentação de Duverger. O referendum é procedimento usual dentro da estrutura do poder constituído, enquanto o plebiscito é um procedimento excepcional, destinado a produzir modificações profundas de diversas naturezas: política, social, territorial, etc. Na doutrina moderna, o termo referendum significa a consulta legítima ao povo, e o plebiscito, a consulta abusiva, usando-a para vestir de democracia um poder autocrático. É muito difícil, talvez mesmo impossível, fixar de maneira rigorosa as diferenças entre um e outro. O plebiscito, no ensinamento do saudoso Celso Bastos, volta-se mais para a consulta ao povo antes que haja um ato já praticado, enquanto o referendum, normalmente, ocorre para aprovar ou rejeitar uma lei, uma constituição ou, até mesmo, um ato normativo. Trata-se de instituto cujas raízes se encontram na concepção de que o povo é a fonte do poder, cabendo-lhe, por isso mesmo, decidir diretamente sobre as normas reguladoras da vida da coletividade. Nesse sentido, e segundo Rousseau (17121778), “toda lei que o povo diretamente não ratificou é nula; não é lei”. Historicamente, Bonaparte usou do plebiscito para alcançar o consulado vitalício, em 1802 e, em 1804, a dignidade imperial. O seu sobrinho, Luís Napoleão, em 1851, realizou o plebiscito com o escopo de obter a aprovação popular de consulta, que lhe concedeu o poder imperial. Os suíços e os americanos do norte construíram diversas modalidades de referendos com sucesso. A experiência mostra que, na maior parte das vezes, o povo responde afirmativamente à consulta que lhe é feita. Daí a possibilidade de utilizá-la para vestir de democracia um poder autocrático. Na legislação maior brasileira, o termo plebiscito foi introduzido na Constituição de 1937, o que confirma a inspiração autoritária do instituto. A constituição de 1946, igualmente, contemplou a consulta plebiscitária, e a Emenda Constitucional no 4, de 1961, instituiu o regime parlamentarista de governo. Em 1962, o general de Gaulle, na França, convocou o plebiscito para aprovar a eleição direta do presidente da República. Apesar dos protestos, ganhou com ampla maioria. No ano de 1968, sentiu-se novamente 66
pressionado e propôs novo plebiscito sobre a reforma constitucional, mas foi derrotado. Em janeiro de 1963, o parlamentarismo foi repelido no Brasil, com o retorno do presidencialismo. Alguns eminentes historiadores asseveram que a consulta plebiscitária referia-se muito mais à aprovação ou à repulsa da figura de João Goulart do que à opinião sobre os benefícios ou o repúdio ao parlamentarismo. A Constituição de 1967, bem como a emenda no 1, de 1969, não manteve a obrigatoriedade do plebiscito para a subdivisão, a anexação ou o desmembramento dos Estados. Contudo, previu a consulta prévia às populações para a criação de municípios na forma de um plebiscito. A Constituição brasileira de 1988 prevê a utilização do plebiscito como forma de consulta prévia às populações diretamente interessadas, de estados-membros da federação, com vistas à incorporação entre si, à subdivisão e ao desmembramento. A oposição governamental repudia a proposta da Presidente Dilma, classificando-a como divisionista. No ver dos partidos, o melhor seria a adoção de uma ampla consulta popular, mas não sob a forma plebiscitaria do “sim” ou do “não”. A legislação complexa, como a da desejada reforma política brasileira, ensejaria maior discernimento, o que só um referendum poderia proporcionar, proclamam. Entretanto, caberá exclusivamente ao Congresso Nacional convocar o pretendido plebiscito ou referendum em 2014. O órgão legislativo ao qual se apresentará o pretendido é a Câmara dos Deputados. O plebiscito sempre contou com as preferências dos ditadores, especialmente os modernos, por lhes permitir obter a unção popular de seu poder. Partindo do princípio de que “todo poder emana povo”, a democracia plebiscitária se vê amparada em sólida base dogmática. Não faltam meios à propaganda enganosa para viabilizar esse dogma, ao preparar a “vontade geral” favorável a um homem forte, cujo surgimento e prestígio se devem, em grande parte, a generalizado horror à anarquia gerada quase sempre pelo facciosismo, pela paixão partidária. Nos regimes totalitários, é frequente o recurso ao plebiscito. Em face da complexidade das manifestações de rua, toda a sociedade civil e os setores que têm responsabilidade social teriam que ser ouvidos. A juventude deixou claro que não aceita mais a sua representação pelos atuais governantes e políticos. O momento é histórico e devemos, dessa forma, aproveitar a oportunidade a fim de enfrentar com isenção, severidade e urgência, desmandos, corrupção, privilégios e poderes encastelados.
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