Revista Justiça & Cidadania

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Edição 159 • Novembro 2013


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Justiรงa & Cidadania | Novembro 2013


S umário Foto: Luiz Antonio/SCO/STJ

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Capa – STJ comemora 25 anos do Tribunal da Cidadania

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Editorial – Bernardo Cabral: a alma da Constituição Federal

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O Poder Judiciário e a questão da internação compulsória dos usuários de “crack”

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Democracia e os 25 anos da Constituição Cidadã

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A Torah como fonte de legislação

Breves notas sobre o atual tratamento jurisprudencial dos delitos de contrabando e descaminho

23

Livros – “A Segunda Guerra Fria”

46

Em Foco – Cidadão Público x Cidadão Privado

24

OAB-RJ busca melhorias para os Juizados Especiais Cíveis

52

O impacto do marketing de venda na região limítrofe entre Barra da Tijuca e Jacarepaguá

28

Dom Quixote – “Vamos construir um mundo melhor”

55

Plebiscito para reforma política

58

Mídia ninja: um novo momento do jornalismo

62

A tutela coletiva do consumidor portador de necessidades especiais

31

O pecado do Diplomata Saboia

37

Inovar é preciso

Foto: Mariana Fróes

Foto: Fecomercio

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Decálogo do advogado

34 Centrais de relacionamento: uma solução

2013 Novembro | Justiça & Cidadania 3 para a judicialização?


Edição 159 • Novembro de 2013 • Capa: Luiz Antonio/SCO/STJ

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Ano II - nº 4 - Outubro 2007

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2013 Novembro | Justiรงa & Cidadania 5


E ditorial

Bernardo Cabral: a alma da Constituição Federal

V

alho-me dos prólogos dos eminentes ministros Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes, do economista e ex-ministro Ernane Galvêas, dos acadêmicos Arlindo Porto e Júlio Antonio Lopes, do empresário amazonense Gaitano Antonaccio e do cientista das águas, Jerson Kelman, para descrever a personalidade de Bernardo Cabral, exposto por essas personalidades em brilhantes panegíricos publicados na edição comemorativa dedicada em seu louvor, em abril de 2012, da revista Justiça & Cidadania. Obteve o bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas aos vinte e um anos – mais jovem na turma em que se graduou. Imediatamente, tornou-se advogado e, destacando-se no ofício, veio a ocupar, sucessi­ vamente, as funções de delegado, promotor de Justiça, chefe de Polícia e secretário de Segurança Pública, sempre no estado de origem. Aos vinte e sete, foi nomeado chefe da Casa Civil do Governo e, em seguida, procurador do Estado do Amazonas. Ainda moço, aos trinta anos, chegou a ter assento na Assembleia Legislativa do estado natal, na legislatura de 1962 a 1966. Se os prólogos já revelam uma existência em que caberiam muitas vidas, a partir daí, Bernardo Cabral assumiu papel de protagonista na vida política brasileira, passando a influenciar o futuro dos concidadãos. Nas eleições subsequentes, aos trinta e cinco anos, elegeu-se deputado federal. Infelizmente, permaneceu no cargo por apenas um ano, porque teve o mandato cassado 6

pelo Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968, em razão das opiniões emitidas, nos meios de comunicação, que causaram incômodo à ditadura então insurgente. A vocação para a liderança levou-o ao cargo de presidente da Ordem, no biênio 1981-1983. A contribuição inestimável para a República Federativa do Brasil veio no final de 1980. Com os direitos políticos restabelecidos, voltou a ser eleito deputado federal para exercer o mandato entre 1987 a 1991, compondo a Assembleia Nacional Constituinte. Era preciso, então, timoneiro à altura da desafiante empreitada de construir nova ordem constitucional, capaz de reunir em um só bornal conhecimento técnico, liderança e experiência; haveria de trazer consigo os brilhos da lucidez, e da acuidade intelectual, a marca do descortino, o pendor nato para a conciliação e o respeito irrestrito à alteridade. Em votação dramática, venceu a disputa para a relatoria da comissão de sistematização dos trabalhos realizados pelas subcomissões da Constituinte, aclamado pela bancada do Partido da Mobilização Democrática Brasileira. Conhecido pelo caráter conciliador e vivaz, capaz de dialogar com interlocutores de diversas vertentes políticas, logrou, com trabalho e paciência, desvencilhar-se de armadilhas oriundas de grupos de pressão, lobistas e políticos insatisfeitos. Entregou, ao fim, o documento democrático produzido pela política brasileira. Com o término da Constituinte e a promulgação da Carta, tornou-se árduo defensor da efetividade dos novos

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Foto: Sandra Fado

marcos político e social brasileiro. Essa tem sido a sua bandeira. O tempo fez compreender o laconismo das respostas que dava aos detratores da Constituinte: em meio a crises institucionais e ao reformismo crônico, a Lei Maior de 1988 sobreviveu, refletindo as esperanças de um futuro melhor para a República Federativa do Brasil. Se, em pouco mais de duas décadas, caminhamos do regime de exceção à supremacia da Constituição, parte desse fenômeno se deve ao idealismo e à luta política de Bernardo Cabral. À luz da trajetória coerente e corajosa de Cabral, compreende-se perfeitamente o documento progressista que, dois séculos depois da independência, injetou nas veias do país – de uma vez por todas – “o ar saudável das liberdades públicas e civis”, para usar as sempre apropriadas palavras do mais ilustre dos amazonenses. De fato, somente um democrata empedernido – no caso, por convicção e natureza – poderia conciliar com tanta lhaneza o que, à primeira vista, transparecia inegociável, tal o conflito de interesses a envolver, em um momento de transição da história política, temas tão díspares quanto anistia, reforma agrária, recursos minerais e divisão de competências e receitas tributárias. Ao fim, prevaleceu, felizmente, a moderação criteriosa que sobrepôs os interesses coletivos aos do Estado gigante e perdulário, que consagrou, como traço modernizador da Carta, a notória vertente antidiscriminatória dos cidadãos.

Vale lembrar palavras pronunciadas por Bernardo Cabral ao discursar no Superior Tribunal de Justiça na solenidade comemorativa dos 25 anos da criação do “Tribunal da Cidadania”, no final de sua palestra, ao revelar ter “a certeza de que relembrando os trabalhos desenvolvidos para a criação do STJ, eles me conferem o prazer de dizer que carrego comigo as cicatrizes orgulhosas do dever cumprido, como ensinou meu saudoso pai, e com elas posso afirmar que, se a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é a Carta da Democracia, este Superior Tribunal de Justiça é a Egrégia Corte da Cidadania.” As homenagens devidas e prestadas a Bernardo Cabral se perpetuarão gloriosamente como reconhecimento à sua brilhante participação na feitura e na grandeza da Constituição Federal, da qual é merecidamente o relator, fazendo-o portador do merecido cognome: Bernardo Cabral, a alma da Constituição Federal.

Orpheu Santos Salles Editor

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Decálogo do advogado Ives Gandra da Silva

Membro do Conselho Editorial Professor emérito das universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE

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Foto: Fecomercio

1. O Direito é a mais universal das aspirações humanas, pois sem ele não há organização social. O advogado é seu primeiro intérprete. Se não considerares a tua como a mais nobre profissão sobre a terra, abandona-a porque não és advogado; 2. O Direito abstrato apenas ganha vida quando praticado. E os momentos mais dramáticos de sua realização ocorrem no aconselhamento às dúvidas que suscita, ou no litígio dos problemas que provoca. O de princípios, e batalhador, sem tréguas, nem leviandade. Qualquer questão encerra-se apenas quando transitada em julgado e, até que isto ocorra, o constituinte espera de seu procurador dedicação sem limites e fronteiras; 3. Nenhum país é livre sem advogados livres. Considera tua liberdade de opinião e a independência de julgamento os maiores valores do exercício profissional, para que não te submetas à força dos poderosos e do poder ou desprezes os fracos e insuficientes. O advogado deve ter o espírito do legendário El Cid, capaz de humilhar reis e dar de beber a leprosos; 4. Sem o Poder Judiciário não há Justiça. Respeita teus julgadores como desejas que teus julgadores te respeitem. Só assim, em ambiente nobre e altaneiro, as disputas judiciais revelam, em seu instante conflitual, a grandeza do Direito; 5. Considera sempre teu colega adversário imbuído dos mesmos ideais de que te revestes. E trata-o com a dignidade que a profissão que exerces merece ser tratada; 6. O advogado não recebe salários, mas honorários, pois que os primeiros causídicos, que viveram exclusiva­ mente da profissão, eram de tal forma considerados, que o pagamento de seus serviços representava honra admirável. Sê justo na determinação do valor de teus serviços, justiça que poderá levar-te a nada pedires, se legítima a causa e sem recursos o lesado. É, todavia, teu direito receberes a justa paga por teu trabalho; 7. Quando os governos violentam o Direito, não tenhas receio de denunciá-los, mesmo que perseguições decor-

ram de tua postura e os pusilânimes te critiquem pela acusação. A história da humanidade lembra-se apenas dos corajosos que não tiveram medo de enfrentar os mais fortes, se justa a causa, esquecendo ou estigmatizando os covardes e os carreiristas; 8. Não percas a esperança quando o arbítrio prevalece. Sua vitória é temporária. Enquanto fores advogado e lutares para recompor o Direito e a Justiça, cumprirás teu papel e a posteridade será grata à legião de pequenos e grandes heróis, que não cederam às tentações do desânimo; 9. O ideal de Justiça é a própria razão de ser do Direito. Não há direito formal sem Justiça, mas apenas corrupção do Direito. Há direitos fundamentais inatos ao ser humano que não podem ser desrespeitados sem que sofra toda a sociedade. Que o ideal de Justiça seja a bússola permanente de tua ação, advogado. Para isto estuda sempre, todos os dias, a fim de que possas distinguir o que é justo do que apenas aparenta ser justo; 10. Tua paixão pela advocacia deve ser tanta que nunca admitas deixar de advogar. E se o fizeres, temporariamente, continua a aspirar o retorno à profissão. Só assim poderás, dizer, à hora da morte: “Cumpri minha tarefa na vida. Restei fiel à minha vocação. Fui advogado”. * Escrito para os alunos da Universidade Mackenzie na década de 80

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C apa, por Carlos Alberto Luppi

Foto: Stock © marilyn barbone Foto: Moreno/STJ/SCO

A

importância e a contribuição do Superior Tribunal de Justiça – STJ na construção da democracia e na consolidação da justiça social e da cidadania no Brasil constituíram-se na essência da solenidade que, no dia 16 de outubro, marcou, em Brasília, as comemorações dos 25 anos de criação daquele que é denominado e considerado, hoje, o Tribunal da Cidadania. Uma verdadeira referência nos campos da justiça e da inclusão social, “um tribunal pioneiro perpetuado através das ideias, com milhares de manifestações, memórias e estórias de pessoas humildes, um tribunal que deu sentido e corpo ao conceito de humanização, um maravilhoso amontoado de concreto em que o principal objetivo é a sociedade”, conforme declarou seu Presidente, o Ministro Felix Fischer, na ocasião. A data também foi comemorada com as inaugurações de uma exposição, de um livro e de um website, elaborados 10

pelo Instituto Justiça & Cidadania. Eles mostram a história do STJ e toda a sua trajetória, desde sua criação pela “Constituição Cidadã”, promulgada em 1988, contando, em detalhes, sua instalação inicial em Brasília – no prédio em que funcionava o Tribunal Federal de Recursos – e, ainda, os estudos arquitetônicos para construção de sua sede apresentados oficialmente por Oscar Niemeyer em 1989 e sua edificação, a partir de 1990, em um conjunto moderno e futurista de cinco prédios em área de 138 mil m2 – hoje um dos destaques da obra arquitetônica e urbanística de Niemeyer e Lúcio Costa, que transformou Brasília em “patrimônio mundial”, declarado pela UNESCO. A prévia da exposição STJ – 25 Anos do Tribunal da Cidadania foi montada no Salão de Recepções do STJ, reunindo 49 telas distribuídas em 14 painéis divididos em duas partes, detalhando fatos anteriores e posteriores à Constituição de 88, considerada o marco principal de

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Foto: Moreno/SCO/STJ

Tiago Salles, presidente do IJC, entregando o primeiro exemplar do livro ao presidente do STJ, ministro Felix Fischer

criação do STJ. A mostra, aberta ao público até abril de 2014, se preocupou em apresentar imagens que consolidam o STJ como Tribunal da Cidadania, além de telas que reforçam suas atividades educativas, as quais o aproximam, efetivamente, da sociedade. Foi ressaltado também o comportamento humanitário do Tribunal com a inclusão, entre seus funcionários, de pessoas com deficiência auditiva e portadores de Síndrome de Down. O livro, escrito pelo jornalista Ricardo Viveiros, além de registrar a história do Tribunal, resgata fatos de uma parte importante da trajetória do Poder Judiciário brasileiro nos últimos 25 anos e “se projeta às remotas origens da complexa formação de nosso país, em uma saga que valoriza as conquistas humanas e relembra a história da Justiça nacional mostrando como foram estruturadas as instituições atuais e a Constituição de 88 que ganha um merecido destaque, pois reformou o Poder Judiciário e criou o STJ”, segundo afirmou o presidente do Instituto, Tiago Salles, ao entregar o primeiro exemplar da obra, oficialmente, ao Presidente do STJ. Uma viagem no tempo “Muito mais do que o jubileu de prata do Tribunal, o evento marca o início de uma viagem simbólica no tempo, e, para nossa alegria, ela pode ser, facilmente, materializada através

das dezenas de milhares de decisões cidadãs já proferidas em um quarto de século. Trabalhamos pelo engrandecimento de nossa tarefa de bem servir ao jurisdicionado e, consequentemente, ao Brasil” destacou, ainda, o Ministro Felix Fischer em seu discurso de abertura da solenidade, ao parabenizar “todos aqueles que somaram na idealização do STJ”. Fischer reconheceu e elogiou o esforço “prioritaria­ mente das pessoas – ministros, servidores, operadores do Direito e colaboradores – que trabalham e trabalharam pelo engrandecimento do Tribunal e pelas inúmeras realizações ao longo do tempo”, e, emocionado, enfatizou: “Simbolizamos o fim de uma era e o início de outra. Jamais devemos esquecer que um sonho, sonhado em grupo, mais facilmente transforma-se em realidade, pois o ser humano movimenta histórias: a de um país, a de uma instituição e sua própria história. Ao recriar a história do STJ, o conjunto de eventos, que hoje iniciamos, comprova, justamente, nossa evolução.” A solenidade foi marcada ainda por muitos outros destaques, particularmente as palestras do jurista e ex-Ministro Bernardo Cabral, relator-geral da Assembleia Nacional Constituinte em 1987/1988, e do presidente da Comissão Especial de Obras no período de 1992 a 1995, Ministro Costa Leite – além do discurso de agradecimento do presidente do Instituto Justiça & Cidadania.

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Foto: Luiz Antonio/SCO/STJ

Ministro Felix Fischer, presidente do STJ, e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo

Cabral lembrou os tempos do poder militar no Brasil e a supressão das liberdades democráticas com a edição do Ato Institucional no 5, em 13 de dezembro de 1968, “que impunha a maior aberração contra o Poder Judiciário”. Citou o artigo 11, segundo o qual “excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus atos complementares, bem como os respectivos efeitos”. Além disso, rememorou parte de sua história pessoal como advogado e sua amizade com o então juiz federal Evandro Gueiros Leite, mais tarde ministro-presidente do Tribunal Federal de Recursos. Na mesma época, Cabral se tornou Relator da Comissão de Sistematização da Constituinte. Em junho de 1987, Evandro Gueiros criou a Comissão “encarregada de apresentar estudos, sugestões e acompanhar os trabalhos da Constituinte na parte atinente ao Poder Judiciário, em particular no tocante às alterações que dissessem respeito ao Tribunal Federal de Recursos e à Justiça Federal”. Posteriormente, durante os trabalhos da Constituinte, lembrou Cabral: “O deputado Egídio Ferreira, relator da Comissão de Organização dos Poderes e Sistema de Governo, sugeriu a criação do Superior Tribunal de Justiça, indicando que ele seria formado pelo aproveitamento dos ministros do Tribunal Federal de Recursos e pela nomeação de tantos ministros que fossem necessários para completar o número estabelecido na lei complementar na forma 12

determinada por esta Constituição, um texto que passou a ser o ‘texto base’ para a estrutura do Poder Judiciário, após receber o aperfeiçoamento necessário.” Bernardo Cabral também destacou o papel importante do ministro Antonio de Pádua Ribeiro: “Incansável na apresentação e na defesa de um imenso número de emendas ao longo dos trabalhos da Constituinte, das quais muitas disposições, que se encontram no texto da Constituição de 88, decorreram de sua aprovação”. No final de sua palestra, Cabral revelou “ter a certeza de que relembrando os trabalhos desenvolvidos para a criação do STJ, eles me conferem o prazer de dizer que carrego comigo as cicatrizes orgulhosas do dever cumprido, como ensinou meu saudoso pai, e com elas posso afirmar que, se a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é a Carta da Democracia, este Superior Tribunal de Justiça é a Egrégia Corte da Cidadania.” Já o Ministro Costa Leite – que presidiu a Comissão Especial de Obras do STJ no período de sua construção, entre 1992 e 1995, em Brasília –, contou detalhes do projeto de Niemeyer e as dificuldades inerentes a uma construção do porte do STJ. “Em maio de 1989, com exposição detalhada de Oscar Niemeyer, os estudos preliminares do projeto de arquitetura, incluindo a maquete do futuro conjunto arquitetônico, foram apresentados aos ministros do Tribunal, que, na ocasião, fizeram várias e importantes sugestões, que acaba­

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Foto: Moreno/SCO/STJ Foto: Moreno/SCO/STJ

Foto: Luiz Antonio/SCO/STJ

Ministro Paulo Costa Leite, presidente da Comissão Especial de Obras do STJ no período de sua construção

Foto: Divulgação

Foto: Moreno/SCO/STJ

Bernardo Cabral, relator da Assembleia Nacional Constituinte, ex-senador da República e ex-ministro da Justiça 2013 Novembro | Justiça & Cidadania 13


Uma razão para se orgulhar da justiça O presidente do Instituto Justiça & Cidadania, Tiago Salles, discursou em agradecimento, relembrando 14

Foto: Luiz Antonio/SCO/STJ

ram incorporadas ao projeto definitivo, e este foi um momento altamente significativo. Verificou-se, a partir daí, uma integração mais efetiva e um comprometimento maior do colegiado com a construção da futura sede”, destacou. O ministro afirmou ainda: “A sede do STJ é sim imp­o­­­ nente, com um grande volume de construção, de 138 mil metros m2 distribuídos pelos cinco prédios que a compõem, tem uma moderna e futurista arquitetura, mas daí a dizê-la suntuosa e luxuosa, como um dia se disse, só por má-fé ou ignorância. As obras de arte em número de quatro, longe de lhe conferirem suntuosidade, têm natureza complementar, como acentuou Niemeyer, e, com efeito, elas se integram aos grandes espaços, guardando perfeita harmonia e enriquecendo todo o conjunto, sendo todas igualmente importantes nesse cenário.” “Por algum tempo, uns poucos e, por todo o tempo, a grande maioria, somamos forças com vontade férrea, não esmorecemos nem mesmo nos momentos das crí­ ticas mais descabidas. Podemos orgulhosamente dizer que fizemos o melhor que podíamos ao dar o nosso contributo para o êxito dessa empreitada que fez surgir de um pedaço de chão do cerrado este, sob todos os títulos, magnífico conjunto arquitetônico que a genialidade do sau­­­doso e maior nome da arquitetura brasileira, Oscar Niemeyer, concebeu para sediar o Tribunal da Cidadania”, concluiu Costa Leite.

Orpheu Salles, que, em 1999, “imaginou uma publicação que pudesse fortalecer o mais importante poder da nação, ao criar a Revista Justiça & Cidadania. Em seguida, Orpheu percebeu que dentro de cada um dos membros desse poder existia um sonhador e perseguidor de ideais. Com uma inspiração ‘cervantina’, criou o troféu Dom Quixote para homenagear as ‘figuras’– como ele próprio as identifica – que lutam pela implementação de uma justiça ampla e eficaz.” Tiago Salles salientou que o livro sobre os 25 anos do STJ “faz parte de um projeto maior chamado Tribunais do Brasil, onde pretende-se registrar a história de todos os tribunais do país, pois é pelo Poder Judiciário que se registra os principais e mais importantes passos da consolidação do Estado Democrático de Direito brasileiro”. E destacou a obra do jornalista Ricardo Viveiros, publicada pelo Instituto que preside, como uma “saga que valoriza as conquistas humanas”, ressaltando a criação do STJ pela Constituição Cidadã de 1988 que deu origem ao Tribunal da Cidadania. “Este espaço onde se localiza o STJ é um marco arquitetônico brasileiro e, à parte os méritos deste conjunto de edifícios, ousamos ir além das paredes desta magnífica estrutura de concreto e tivemos o intuito maior de tornar transparente, para todos os brasileiros, a importância deste que é, inegavelmente, um dos mais relevantes organismos do Poder Judiciário brasileiro” – ressaltou o presidente do Instituto. Tiago Salles acrescentou, ainda, que “aqui está, também, para o povo brasileiro, uma razão para se orgulhar da justiça do Brasil”, ao se referir à excelência e aos valores do Tribunal da Cidadania, “e dos homens e mulheres, magistrados e servidores, que construíram ao longo do tempo com sua ética, inteligência, saber jurídico, cultura e obstinada dedicação, o STJ.” Em seguida, elogiou e agradeceu ao Ministério da Cultura que “entendeu que esse projeto de 25 anos de história do STJ – que inclui o livro, a exposição e o website produzidos pelo Instituto Justiça & Cidadania – vai além de um projeto institucional, tornando-se um instrumento de democratização da cultura e, principalmente, aproximando os cidadãos da história da justiça brasileira”. Tiago Salles agradeceu aos colaboradores que se envolveram ativamente no projeto e homenageou o ministro Ari Pargendler – que, quando ainda presidente do STJ, autorizou a realização do projeto – e a todos os ministros da Casa, por sua atenção e paciência. Por fim, dedicou um agradecimento “mais que especial” ao Ministro Felix Fischer, presidente do STJ, “que abraçou esse projeto e disponibilizou toda a estrutura desse Tribunal para sua conclusão; acompanhou todos os nossos passos, sempre disposto a ajudar, abrindo muitas vezes o gabinete da presidência para nossas pesquisas.” Justiça & Cidadania | Novembro 2013


Foto: Luiz Antonio/SCO/STJ

Ministros do STJ folheando o livro produzido pelo IJC, STJ – 25 Anos do Tribunal da Cidadania

Foto: Moreno/SCO/STJ

Abertura da exposição STJ – 25 Anos do Tribunal da Cidadania, instalada no Salão de Recepções do Plenário 2013 Novembro | Justiça & Cidadania 15


Democracia e os 25 anos da Constituição Cidadã Marcus Abraham

I

Desembargador Federal do TRF - 2a Região Professor adjunto de Direito Financeiro da UERJ

negável reconhecer o amadurecimento da democracia brasileira, com a inquestionável conscientização da população dos seus direitos de cidadania, decorrentes do texto e do espírito da nossa Carta Cidadã de 1988 que ora completa 25 anos, representando a consolidação da redemocratização do Estado brasileiro após vinte anos de ditadura militar, antecedido de alternâncias de regimes democráticos e autoritários ao longo do século XX. A Constituição brasileira de 1988, forjada no ferro dos direitos sociais e no fogo dos valores liberais, estabelece no seu art. 3o os objetivos da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária, desenvolver o país, acabar com a pobreza e a marginalização, e minimizar as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos; tais intentos têm como fundamentos consignados no art. 1o, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a valorização do trabalho e da livre iniciativa.1 Mas, diante de tantas pretensões, recursos financeiros se fazem mais do que imprescindíveis. Porém, não basta arrecadar o necessário, de forma justa, equitativa e equi­ librada. A administração de tais recursos deve ser feita de forma zelosa e eficiente, e a sua aplicação precisa ser realizada de maneira criteriosa e sábia para que se possa atender às necessidades públicas da maneira mais ampla e satisfatória possível. As manifestações populares ao longo de 2013 demonstram uma inequívoca consciência do povo brasileiro da incapacidade crônica dos governos, em todos os 16

níveis federativos, em atender a tais objetivos, seja no viés arrecadatório, seja no da destinação, especialmente pelo contingenciamento injustificado das dotações orçamentárias e pela inadequação das suas escolhas. Como bem destacou Ney Carvalho2, esses ciclos de vinte anos são representativos na história brasileira. Nas suas palavras: “Tais movimentos são repetitivos, desenrolam-se em ondas recorrentes”. Os movimentos populares de hoje se iniciaram a partir do reajuste dos preços das passagens de ônibus. Por sua vez, em 1992, assistimos aos “cara-pintadas” pedindo o impeachment do então Presidente Collor. Em 1984, um milhão e meio de pessoas foram às ruas bradar pelas “Diretas Já!”. Em 1968, tivemos a passeata dos cem mil na Cinelândia, organizada pelo movimento estudantil, contra a recém-implantada Ditadura Militar. Em 1942, a UNE foi às ruas liderando as manifestações antifascistas. Em 1925, a Coluna Prestes pelo descontentamento com a República Velha. Em 1904, a chamada Revolta da Vacina. Em 1880, foi a vez da Revolta do Vintém. E tantas outras no período pré-republicano. Por outro lado, as demandas sociais manifestadas nos recentes movimentos populares não levam em consideração uma premissa básica das finanças públicas: a de que tudo tem um custo, mesmo que não seja visível a olho nu. Aliás, como dizia o economista Milton Friedman, no título de uma de suas obras: “Não existe almoço grátis”. Assim, para atender a todas as demandas, o governo se deparará com o velho dilema do “cobertor curto”: de um lado, a pressão e o apelo social para o aumento dos gastos públicos, no que se convencionou chamar de “conta das ruas”; de outro, as

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Foto: Arquivo pessoal

limitações financeiras e a necessidade de se encontrarem fontes alternativas para custear as novas despesas. O fato é que, com duas décadas e meia da promulgação da Constituição Federal de 1988, já tivemos 74 Emendas Constitucionais, além de outras seis Emendas Revisionais. Ao todo, portanto, oitenta mudanças no texto constitucional. Mas, afinal, isso se justifica, pois o Direito está em constante mutação, evoluindo pari passu com a sociedade, a fim de atender às suas necessidades e realizar a sua função. E a base jurídica dessa evolução é a Constituição, que, por meio de suas emendas e revisões, adapta o seu texto a fim de oferecer instrumentos jurídicos, econômicos e financeiros aos anseios da coletividade e às pretensões dos governos, tudo por meio da legítima atividade do Poder Constituinte Derivado. Devemos reconhecer a necessidade de constantes ajus­ tes entre as normas constitucionais e a realidade fática e contemporânea, sob pena de eventual descompasso acarretar uma ruptura entre a ordem jurídica e a ordem social. Precisamos, também, aceitar que o texto constitucional não é provisório, mas sim um texto em contínuo desenvolvimento. Não se trata de um produto pronto e acabado, mas de um documento vivo e em constante evolução. A atividade estatal e a aplicação do Direito em cada nação dependem do modelo constitucional adotado e do ambiente jusfilosófico em que se inserem. Assim, nestes 25 anos, identificamos claramente um hibridismo em seu perfil e uma constante tensão entre os valores sociais (de natureza coletiva) e os liberais (de índole individual), que influenciam sobremaneira a figura de um Estado atuante como o brasileiro.

“Precisamos, também, aceitar que o texto constitucional não é provisório, mas sim um texto em contínuo desenvolvimento. Não se trata de um produto pronto e acabado, mas de um documento vivo e em constante evolução.”

Ao conceder maior efetividade aos valores e princípios constitucionalmente previstos, permite-se exercer sua função de maneira mais equilibrada, balanceando e ponderando seus conceitos e comandos de ordem social e liberal, absorvendo as demandas da coletividade com maior capacidade e podendo responder a elas. E, naturalmente, a atuação do Estado Contemporâneo brasileiro acompanha em paralelo essas mudanças paradigmáticas à medida que a consolidação do Estado Democrático de Direito traz consigo a reconstrução do relacionamento deste – e de suas instituições – com a própria coletividade. Após vinte anos de ditadura militar, a nossa sociedade encontrava-se sufocada pelo regime autoritário, acirrando-se os ânimos para urgentes mudanças, não apenas quanto ao regime político, mas também quanto ao sistema eleitoral. O ano de 1984 foi decisivo. Viram-se, em todas as grandes capitais, movimentos populares pela implantação do sistema de voto direto e pela eleição de um presidente civil. Entretanto, não havendo uma coesão política e idealística, a Emenda Constitucional (“Emenda Dante de Oliveira”) que deveria restabelecer o sistema eleitoral direto para a Presidência da República foi reprovada pelo Congresso em 25 de abril de 1984. O presidente eleito pelo voto indireto, a partir do colégio eleitoral, Tancredo Neves, veio a adoecer no dia de sua posse em 15 de março de 1985 e a falecer no mês seguinte, assumindo o governo em seu lugar o Vice-Presidente José Sarney. Naquele momento de comoção social e mobilização dos partidos políticos, podíamos identificar o início da transição do regime autoritário para o democrático.

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Naquela circunstância, era imperioso modificar as ordens política e jurídica do Estado brasileiro, ainda subjugadas pela Carta de 1967, modificada diversas vezes ao longo do período militar. As associações de classe e os partidos políticos progressistas demandavam a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte com representantes eleitos pelos cidadãos e com função exclusiva de elaborar a nova Constituição, já que, daquela maneira, haveria maiores legitimidade, representatividade e soberania nas deliberações. Todavia, mais uma vez frustrando-se os anseios dos movimentos democráticos, a maioria dos deputados decidiu pela convocação do Congresso Constituinte em 1986, formado por deputados federais e senadores eleitos em novembro daquele mesmo ano, que acumulavam ambas as funções: de congressistas e de constituintes. Como bem ressaltou, à época, Raymundo Faoro3, “o Poder Constituinte não pertence aos legisladores, ainda que dotados de poderes de emenda, sejam os atuais ou os futuros legisladores, mas ao povo em conjunto, e, em expressão diferente, embora aceitável, à nação”. E mais, em uma verdadeira lição de democracia, Faoro nos ensina que “as constituintes não são convocadas, ao contrário da tese insistentemente divulgada. As constituintes nascem no momento em que o poder constituinte renasce, muitas vezes à revelia do governo de fato que o sufoca.”4 De toda forma, a assim denominada Nova República se instaurava pela adoção de medidas relevantes, como o acesso dos analfabetos ao voto, a autonomia para a criação de partidos políticos e, sobretudo, a emenda constitucional que permitiu eleições diretas para a sucessão presidencial. Instalada em 1o de fevereiro de 1987 e presidida pelo Deputado Ulysses Guimarães, do PMDB (popularmente conhecido como “Senhor Diretas”), a Assembleia Nacional Constituinte foi composta por 559 membros. Diversos setores da sociedade foram instados a contribuir e influenciar as deliberações. Inúmeros conflitos de ordem ideológica surgiram, porém, avançou-se muito em questões como a dos direitos sociais e do trabalho, dos direitos humanos, da cidadania e de outros valores que redesenharam as ordens social, econômica e política brasileiras. Foram dezoito meses de trabalhos, e, em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a nova Constituição da República Federativa do Brasil. Recebeu ela, à época, inúmeras críticas, tais como a sua extensão (245 artigos e setenta disposições transitórias); o excesso de disposições que dependiam de regulamentação; a abordagem de temas específicos que não comportavam o foro constitucional, 18

em situações em que a Constituição deveria se limitar a estabelecer princípios gerais; e ambiguidades de ideais em detrimento de uma harmonia, demonstrando o embate das forças políticas da época. De uma maneira sucinta, podemos dizer que a Constituição Federal de 1988 ofereceu uma vasta gama de direitos fundamentais individuais e coletivos; aboliu a censura e outros cerceamentos das liberdades; reduziu sobremaneira o poder individual do Executivo e, inversamente, fortaleceu os Poderes Legislativo e Judiciário, dentro do jogo de equilíbrio democrático de poderes; manteve o regime presidencialista (submetido a plebiscito em 1993) e a república federativa; fortaleceu também os estados e municípios; e, finalmente, reconstituiu o sistema tributário nacional, com a redistribuição de tributos entre os entes federativos e a respectiva repartição de receitas financeiras, solidificando a autonomia dos estados e municípios, atenuando os desequilíbrios regionais e ampliando os direitos e as garantias dos contribuintes. Igualmente, impôs maiores limitações ao poder estatal de tributar, estendendo à seara fiscal os valores de segurança jurídica, de liberdade e de igualdade, necessários para a efetiva realização da almejada justiça social dentro de um Estado Democrático de Direito que, naquele momento, ressurgia. Com mais de 220 anos, a Constituição dos Estados Unidos sofreu apenas 27 emendas, enquanto a brasileira, nestes 25 anos que ora se completam, já passou por seis Emendas Constitucionais de Revisão e outras 74 Emendas Constitucionais. Se esse excesso é ou não pertinente, aqui não se pretende julgar. Mas não temos como deixar de reconhecer como válida a sua inexorável evolução. A propósito, relevantes são as palavras de Carlos Maximiliano5, para quem: “Não pode o Direito isolar-se do ambiente em que vigora, deixar de atender às outras manifestações da vida social e econômica. As mudanças econômicas e sociais constituem o fundo e a razão de toda a evolução jurídica; e o Direito é feito para traduzir em disposições positivas e imperativas toda a evolução social.” E, na mesma esteira, afirma Pinto Ferreira6 que “as constituições não são obras eternas e permanentes; têm, ao contrário, a necessidade de ajustamento e adaptação às novas condições sociais e históricas.” O que se percebe é um fluxo natural de influências e pressões de interesses originados nas necessidades dos governados e, principalmente, daqueles que governam, seja democraticamente ou não. Com sete Constituições, percebemos que não é ela própria – a Constituição – que transforma a sociedade, mas sim a sociedade e os detentores do poder em cada período é que transformam a Constituição, que somente vem a refletir os ideais das forças políticas que lhe dão vida.

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Referências bibliográficas

“Com sete Constituições, percebemos que não é ela própria – a Constituição – que transforma a sociedade, mas sim a sociedade e os detentores do poder em cada período é que transformam a Constituição, que somente vem a refletir os ideais das forças políticas que lhe dão vida.”

Daí reconhecermos a importância dos valores e anseios que nela se inserem, porque será com base nestes que a sociedade viverá – bem ou mal. A Constituição Cidadã, como foi assim conhecida na sua origem, foi fruto de um particular momento histórico e da mobilização da sociedade brasileira, desejosa de um novo Brasil. Devemos, contudo, reconhecer as suas imperfeições, buscar o seu aprimoramento e envidar máximos esforços para que a Carta Maior possa produzir os efeitos concretos originariamente pretendidos e oferecer um mundo melhor aos brasileiros. Se, para encontrar o ponto ideal de justiça social, o Brasil tiver de passar por outras dezenas de emendas constitucionais, que assim se faça, pois não há Constituição perfeita e tampouco existe um ordenamento jurídico que seja perene. Afinal, como bem leciona Michel Temer7, “as Constituições se pretendem eternas, mas não são imodificáveis”. E completa o eminente constitucionalista: “Fatores ideológicos, econômicos, o pensamento dominante da comunidade, enfim, é que acabam por determinar a atuação do constituinte.” Esses 25 anos da Constituição Federal de 1988 devem oferecer aos brasileiros e aos operadores do Direito motivos não apenas para celebrar a data, mas principalmente para reconhecer os efeitos positivos de ordem política, jurídica, econômica e, sobretudo, social que estas duas décadas e meia nos abonaram, com a consolidação da transição de um regime autoritário para o democrático, o amadurecimento das instituições, a inserção e a efetividade dos direitos humanos fundamentais, e a conscientização popular dos seus direitos e deveres cívicos, possibilitando a solidificação do Estado Democrático de Direito.

ABRAHAM, Marcus. As emendas constitucionais tributárias e os vinte anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Quartier Latin, 2009. __________________. Curso de direito financeiro brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. BARBOSA, Rui. Pensamento e ação de Rui Barbosa. Coleção Biblioteca Básica Brasileira. Organização e seleção de textos pela Fundação Casa de Rui Barbosa. Brasília: Senado Federal, 1999. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. BRITO, Edvaldo. Limites da revisão constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1987. FAORO, Raymundo. Assembleia Constituinte: a legitimidade recuperada. São Paulo: Brasiliense, 1981. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Belo Horizonte: Líder, 2003. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. PINTO FERREIRA, Luis. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. REALE, Miguel. Espaço – Tempo e Cultura. In: TORRES, Heleno Taveira (coord.). Direito e poder: nas instituições e nos valores do público e do privado contemporâneos. São Paulo: Manole, 2005. SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas notas sobre o poder de reforma da Constituição e os seus limites materiais no Brasil. In: TORRES, Heleno Taveira (coord.). Direito e poder: nas instituições e nos valores do público e do privado contemporâneos. São Paulo: Manole, 2005. SIEYÈS, Emmanuel-Joseph. A Constituinte burguesa: qu’est-que-ce le tiers état? 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

Notas ABRAHAM, Marcus. As emendas constitucionais tributárias e os vinte anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Quartier Latin, 2009. 2 Jornal O Globo, dia 1/7/2013, página 17. 3 FAORO, Raymundo. Assembleia Constituinte: a legitimidade recuperada. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 81. 4 Idem. p. 89. 5 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 157 e 159. 6 PINTO FERREIRA, Luis. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 30. 7 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 34. 1

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A Torah como fonte de legislação – sua influência até os dias de hoje no Direito brasileiro Mario Robert Mannheimer

Desembargador do TJERJ

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Foto: Mariana Fróes

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Bíblia integrada pelo Pentateuco (os cinco livros de Moisés, Torah, os livros dos Profetas e os livros dos Escritos, sobretudo o primeiro) pode ser lida e interpretada sob muitos aspectos – religioso, mitológico, moral, ético, histórico. Mas um dos aspectos que mais ressaltam o liame entre a época e as circunstâncias em que essa obra foi compilada e a sua interpretação nos dias de hoje é o jurídico. Desde que o homem passou a viver em grupo, tornou-se necessária a adoção de regras de convivência que subordinassem a vontade do indivíduo às da coletividade, as quais se desenvolveram de acordo com as peculiaridades da organização social e econômica de cada coletividade. Muitos povos antigos, além do de Israel, do qual se originou o Pentateuco, organizaram codificações escritas. Também todos ou quase todos os povos antigos consideravam suas leis, codificadas ou não, como emanadas ou inspiradas por força divina. Mas, como todos acreditavam em vários deuses diferentes, alguns competindo entre si, as leis deles emanadas eram por vezes contraditórias e antagônicas. O que até hoje constitui um enigma para os estudiosos é como essa pequena confederação de tribos, parte de um grupamento maior de nômades da mesma origem étnica, desenvolveu, ao contrário de todos os outros povos da época, o conceito de um Deus único, incorpóreo, portanto insuscetível de ser representado por imagens de qualquer espécie, não associado a nenhuma força da natureza como o Sol, a Lua, o Mar, a Terra, ou a atributos humanos como a força, a beleza, a fertilidade, mas criador de todo o Universo e, portanto, o único dominador das forças da

natureza, onipotente e onisciente, do qual emanam todas as normas de conduta impostas ao homem, não só as que dizem respeito ao culto, mas também as que regulam as relações dos indivíduos entre si e as organizações familiar e social do grupo, exigindo de cada indivíduo o fiel cumprimento de todas essas normas. As características peculiares do Deus judaico são a causa do caráter único de sua legislação, com princípios distintos dos adotados por todos os povos da época, os quais, graças à propagação das leis da Torah a muitos outros povos, pelo fato de servirem de base ao cristianismo e ao islã, foram, em muitos aspectos, adotados pela legislação contemporânea.

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As leis da Torah se aplicavam, desde o início, a todos, sem distinção, governantes e governados, aos escravos e aos estrangeiros que habitavam junto ao povo de Israel, ao contrário de outros povos nos quais os estrangeiros não gozavam de qualquer proteção legal e os escravos eram considerados não pessoas. Tais mandamentos são precursores do princípio da “igualdade de todos perante a lei”, inseridos nas declarações de direitos de todas as Constituições democráticas contemporâneas. Igualmente, a existência de um Deus único, a quem todos deviam a mesma obediência, impedia que os reis fossem divinizados ou considerados semideuses. A instituição da monarquia, que se fez necessária para possibilitar a unificação das tribos e a formação de um exército único capaz de fazer frente aos inimigos externos, é tratada com grande ambivalência no texto bíblico. É de grande beleza o trecho do livro de Samuel 1, capítulo 8, no qual o povo pede ao profeta Samuel que escolha um rei, e o profeta tenta demovê-lo da ideia dizendo que um rei tomará os filhos e as filhas do povo para seu serviço e cobrará impostos. Os reis estavam subordinados à Lei, como quaisquer outros, e eram admoestados pelos profetas e até mesmo depostos quando transgrediam os mandamentos. Destaque-se a passagem em que o profeta Natan repreende o rei David por ter planejado a morte de Urias, marido de Bat-Sheva, a quem o rei cobiçava (Samuel 2, capítulo 12). No livro Deuteronômio 17/14-20 são estabelecidas regras sobre a eleição e os deveres de um rei. Os versículos 18 e 19 mencionam a obrigação do rei de guardar consigo, durante toda a sua vida, um rolo da Lei “para que aprenda a temer o Senhor, seu Deus, e a guardar fielmente todos os seus ensinamentos e a observar estas leis”. Tal disposição revela uma clara limitação aos poderes dos reis e sua obrigação de respeitar as leis. Trata-se de uma autêntica norma de Direito Constitucional, precursora de outras que vieram posteriormente, limitando os poderes dos governantes. Não se encontra nas disposições legais contidas no Pentateuco a sistemática dos modernos códigos, não há uma sequência organizada, as normas de conduta se apresentam entremeadas com preceitos – religiosos, morais, éticos e ritualísticos – sem qualquer distinção hierárquica entre eles. Entretanto, examinando o seu texto, podem-se identificar facilmente princípios dos direitos Constitucional, Penal, Civil, Comercial, Trabalhista e Processual, muitos dos quais se incorporaram à legislação laica atual. Quase todos os Estados atuais possuem uma Constituição contendo, além de normas sobre a organização política do Estado, uma relação de direitos e garantias fundamentais, as chamadas “cláusulas pétreas”, que não podem ser modificadas por leis posteriores e, nem mesmo, por Emendas Constitucionais, mas somente por uma nova Constituição.

Isso ocorre na Torah com o Decálogo, os Dez Mandamentos (Êxodo, 20/2-17), segundo a tradição, inscritos nas duas Tábuas da Lei, entregues a Moisés no Monte Sinai, representando o pacto celebrado entre Deus e as 12 tribos de Israel. O Decálogo mescla princípios que hoje são puramente religiosos – o reconhecimento do Deus de Israel, que libertou o povo da escravidão egípcia, a proibição de adorar outros deuses e de fabricar imagens que possam ser objeto de adoração, e a proibição de utilizar o nome de Deus em vão –, contidos nos três primeiros mandamentos, com outros que constituem normas de ordem penal em todas as legislações – a proibição de matar, furtar e prestar falso testemunho –, contidos nos 6o, 8o e 9o mandamentos, e ainda outros que hoje têm força puramente moral – o de honrar pai e mãe (5o mandamento), o de não cometer adultério (7o mandamento), que, até pouco tempo, era considerado crime pela lei brasileira, e a proibição de cobiçar os bens alheios (10o mandamento). Destaque especial merece o 4o mandamento, o de guardar o shabat (sábado). Embora outros povos tivessem festivais religiosos nos quais não trabalhavam, ou feriados concedidos pelos governantes, a característica marcante do shabat judaico era seu caráter perpétuo e o fato de se estender também aos escravos, aos estrangeiros e até mesmo aos animais domésticos. A prática de um dia de descanso, não somente para permitir a recuperação do desgaste causado pelo trabalho, mas também para propiciar ao indivíduo uma oportunidade de oração e reflexão, foi adotada pelo cristianismo e pelo islã, e posteriormente pelas legislações laicas, incorporando-se ao Direito Constitucional e ao Trabalhista, sendo consi­ derado, na opinião do rabino W. Gunther Plaut (The Torah: A Modern Commentary), a contribuição mais original de Israel à lei do mundo. Ainda no campo do Direito Constitucional, a Torah dá um destaque especial à administração da Justiça, sobretudo no livro do Deuteronômio, cujo capítulo 16, versículo 20, traz a exortação: “A justiça, a justiça perseguirás, para que vivas e possuas a terra que te dará o Senhor teu Deus.” O versículo 18 do mesmo capítulo dispõe: “Juízes e oficiais porás em todas as tuas portas, que o Senhor teu Deus te der, entre tuas tribos, para que julguem o povo com a devida Justiça”. Os comentaristas da Torah entendem que esse dispositivo se dirige ao povo, no qual residia o atributo final de designar os juízes entre os anciões e sábios, encontrando-se aí o embrião da separação dos Poderes, embora ocasionalmente alguns reis também administrassem justiça, como Salomão. Nos demais povos da Antiguidade, e até mesmo posteriormente, o poder de nomear juízes pertencia exclusivamente aos monarcas. A preocupação com a Justiça é um ponto central da lei judaica. Várias são as recomendações dirigidas aos juízes:

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“Não serás parcial no julgamento; ouvirás assim o pequeno como o grande. Não temas homem algum porque o julgamento é de Deus” (Deuteronômio 1/17). “Não torcerás o juízo, não mostrarás parcialidade nem tomarás suborno, porque o suborno cega os olhos dos sábios e perverte as palavras dos justos” (Idem, 16/19). “Não farás injustiça no juízo, não favorecerás o pobre ou demonstrarás deferência ao rico; com justiça julgará o teu próximo” (Levítico, 19/16). Esse senso de justiça guarda um caráter nitidamente social, incomum naquela época. Nota-se um cuidado especial na proteção do estrangeiro do órfão e da viúva (Êxodo 22/21-22 e Deuteronômio 10/18-19), as sobras da colheita deveriam ser deixadas para o pobre, o estrangeiro, o órfão e a viúva (Levítico 19/9-10 e Deuteronômio 24/2021). Além disso, embora fosse mantida a escravidão, na época uma prática comum a todos os povos, a mesma era limitada a sete anos com relação ao escravo hebreu. A já mencionada preocupação com a Justiça leva à existência na Torah de princípios de Direito Processual. Em Deuteronômio 13/14, ressalta-se a necessidade de “investigar, interrogar, inquirir rigorosamente”, antes de se concluir que uma cidade praticara a idolatria, o que acarretava a condenação de seus habitantes à morte, e em 19/15, do mesmo livro, consta a previsão de que ninguém seja condenado por qualquer acusação com base em um só testemunho, exigindo-se dois ou se possível três. Verifica-se, assim, que, embora ainda predominasse o princípio “olho por olho, dente por dente, queimadura por queimadura, vida por vida” (a chamada Lei de Talião), e existissem numerosas ofensas punidas com a morte, o que era a regra em todas as legislações da época, existia na legislação judaica uma preocupação de se evitar uma condenação injusta. Ainda no campo do Direito Processual, verifica-se em Deuteronômio 24/6 a proibição de tomar em penhor pedras de moinho, utilizadas para a produção de farinha, produto necessário à subsistência, regra que ingressou no Código de Processo Civil brasileiro, no qual se veda a penhora dos instrumentos necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão. No campo do Direito Penal, consta em Deuteronômio 24/16 que “os pais não morrerão pelos filhos nem os filhos pelos pais”, isso em uma época em que era comum punir-se toda a família pelos atos de um de seus membros. Essa norma deu origem a uma das regras básicas do Direito Penal moderno, o de que a pena não passará da pessoa do criminoso. Ainda no Direito Penal, já encontramos na Torah a distinção entre o homicídio doloso, praticado voluntariamente, e o culposo, decorrente de negligência, imprudência ou imperícia, praticado sem a intenção deliberada de matar. Naquela época, era oficialmente sancionada a vingança privada, um parente da vítima, o vingador 22

do sangue, autorizado a matar o ofensor, mas se o homicídio fosse considerado como não intencional pelo Conselho de Anciões, o homicida tinha o direito de ser acolhido em uma das seis cidades de refúgio existentes, onde não poderia ser atingido pelo vingador do sangue e, após a morte do sumo-sacerdote, ficaria liberado para voltar à cidade onde antes residia (Números 35/10-34 e Deuteronômio 19/1-13). No Direito de Família, encontramos regras sobre impedimentos matrimoniais, sobretudo decorrentes de relações de parentesco, hoje adotadas com algumas modificações por praticamente todas as legislações modernas (Levítico 18/1-18). Encontramos, ainda, normas minuciosas de Direito das Sucessões em Números 27/811 e garantia de proteção do direito do primogênito, que não podia ser deserdado pelo motivo de não ser filho da esposa favorita do testador (Deuteronômio 21/15-17). Existem, ainda, normas de Responsabilidade Civil – previsão de indenização por danos causados à pessoa ou a bens de terceiros, inclusive responsabilidade do dono de animais por danos causados pelos mesmos (Êxodo, capítulos 21 e 22); regras sobre construção – obrigação de construir um parapeito sobre o telhado de uma casa nova para prevenir quedas (Deuteronômio 22/8); Direito das Coisas – proibição de remover marcos divisórios de propriedades vizinhas; Direito Comercial – proibição de fraudar pesos ou medidas (Levítico 19/35-36, Deuteronômio 25/13-15). Estão presentes, também, normas de Direito Interna­ cional Público, leis reguladoras da guerra, como a proibição de abater árvores frutíferas pertencentes a uma cidade inimiga que está sendo sitiada (Deuteronômio 20/19); e, ainda, de Direito do Trabalho por meio da instituição do dia de repouso conforme mencionado acima e da obrigação de pagar diariamente aos trabalhadores contratados: “A paga do trabalhador diarista não ficará contigo até a manhã” (Levítico 19/13 e ainda Deuteronômio 24/14-15). Com o passar do tempo, a legislação introduzida pela Torah enfrentou o mesmo dilema de todas as legislações de fundo religioso: como conciliar a necessidade de alteração diante da mudança nas condições sociais com o conceito de lei revelada por Deus, o qual pressupõe a sua imutabilidade? O estratagema encontrado pelos rabinos foi o de introduzir o conceito de que, além da lei escrita na Torah, existia uma lei oral (Torat she be al pe), igualmente revelada por Deus no Sinai, e, assim, sob o pretexto de fixar e comentar essa lei oral, os sábios que, durante várias gerações, compilaram o Talmude, e outros comentários posteriores, introduziram as modificações, os acréscimos e as inovações que se fizeram necessários para adaptar a lei às novas situações que surgiram, inclusive com a perda da independência política a partir dos exílios babilônico e romano.

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L ivros

“A Segunda Guerra Fria” Em sua nova obra, A Segunda Guerra Fria, Moniz Bandeira analisa a Primavera Árabe e os conflitos na África, onde o conflito na Síria ganha destaque nas reflexões sobre o Oriente Médio.

C

onsiderado o mais importante especialista bra­ sileiro em relações internacionais, o cientista político Moniz Bandeira avalia as causas, as consequências e, sobretudo, os interesses políticos em jogo nos conflitos no Oriente Médio e nos países do norte da África. Com base em farta documentação e informações de fontes seletas, nessa obra o autor mostra as guerras em curso, como na Síria, ou como as revoluções já ocorridas contra governos estabelecidos que atendem aos desejos do Ocidente, principalmente dos Estados Unidos. “O objetivo dos Estados Unidos sempre foi a derrubada do regime de Bashar al-Assad, de modo a eliminar a presença da Rússia no Mediterrâneo, fechando suas bases navais – Tartus e Latakia – instaladas na Síria, bem como conter o avanço da China no Oriente Médio e no Magreb, isolar o Irã e cortar seus vínculos com o Hizbollah, no Líbano, de acordo com os interesses de Israel”, diz Moniz Bandeira. A Segunda Guerra Fria – Geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos (Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio) é um livro de história, mas de história do presente. Este novo livro de Moniz Bandeira deslinda as raízes e lança um olhar sobre as perspectivas dos conflitos no Oriente Próximo e na Ásia Central, primeiros embates do que poderia ser uma futura (mas não tão distante e talvez já em curso) disputa pela hegemonia entre os Estados Unidos e a República Popular da China, ou, dito de outra forma, entre o Ocidente capitalista desenvolvido (porém estagnado) e o Oriente capitalista dinâmico, mas ainda subdesenvolvido.

* Com informações tiradas do material de divulgação e do prefácio do livro, assinado pelo Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães

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OAB-RJ busca melhorias para os Juizados Especiais Cíveis Da Redação

Trabalhando em conjunto com o TJ-RJ, a entidade realizou pesquisa com cerca de 1.800 advogados que atuam nos JECs para propor soluções capazes de otimizar o dia a dia dessas unidades judiciais

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presidente da Comissão dos Juizados Especiais Estaduais da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio de Janeiro (OAB-RJ), a advogada Kátia Junqueira, mostra-se confiante na melhoria das condições de trabalho dos advogados nos Juizados Especiais Cíveis do Rio de Janeiro. Responsável pela realização de uma pesquisa realizada com cerca de 1.800 advogados, ela dá sua visão sobre o assunto nesta entrevista à Justiça & Cidadania. O levantamento, que resultou em um relatório de avaliação com 22 propostas concretas para otimização dos JECs, permitiu identificar a origem dos principais problemas que afetam a todos – partes, advogados, juízes e serventuários. 24

Além de dar voz ativa ao advogado militante, a consulta realizada pela OAB-RJ tem a expectativa de, em conjunto com o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ), alcançar melhorias básicas e essenciais para os JECs de todo o Estado. A perspectiva é que tais propostas contribuam para entregar à sociedade um juizado mais ágil e eficiente, bem como ofereçam aos magistrados mais possibilidades de dedicação ao seu verdadeiro mister: prestar jurisdição. Justiça & Cidadania – Como a OAB avalia o resultado da pesquisa realizada? Kátia Junqueira – Bem, na realidade, há muito já se ouvia o clamor dos advogados no que concerne à necessidade de mudanças no funcionamento dos Juizados Especiais Cíveis. Nesse sentido, essa pesquisa serviu para comprovar, por meio de dados concretos e não mais empíricos, que os Juizados Cíveis não vêm funcionando dentro do conceito de agilidade com base no qual foram criados. Além disso, a pesquisa permitiu que identificássemos a origem dos principais problemas. É certo que todos os envolvidos dentro dessa atividade, como partes, advogados, juízes e serventuários, sofrem os efeitos dessa situação. Dessa forma, vemos como muito positivo o resultado da pesquisa, já que mais de 79% dos que a responderam afirmam utilizar frequentemente os serviços do JEC. Isso permitiu ao advogado militante ter voz ativa, o que é necessário e democrático.

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Foto: Mariana Fróes

JC – Quais foram os principais problemas identificados? Os pontos que tiveram pior avaliação na pesquisa foram os serviços cartorários e o trabalho dos juízes leigos. Nesse sentido, o tempo de juntada das petições e remessa à conclusão é um ponto crítico. No caso dos juízes leigos, as questões do tratamento dispensado ao advogado, da consignação em ata das solicitações das partes e do tempo das sentenças também foram mal avaliadas na pesquisa. Outros pontos mal avaliados foram o tempo médio da distribuição até a primeira audiência e outra questão importantíssima: a pontualidade das audiências. JC – E o que a OAB-RJ pretende fazer a partir de agora? KJ – O presidente Felipe Santa Cruz tem uma preocu­ pação muito grande de lutar por melhores condições de trabalho para os advogados e é nessa linha que estamos trabalhando. A Comissão dos Juizados Especiais Estaduais preparou um relatório de avaliação da pes­ quisa, que foi entregue a ele. Esse relatório aponta vinte e duas sugestões de melhoria. Estamos aguardando uma reunião para apresentação formal desse relatório à presidente do Tribunal de Justiça do Rio, desembargadora Leila Mariano, e à presidente da Comissão dos Juizados Especiais (Cojes), desembargadora Ana Maria Pereira de Oliveira. Temos certeza de que o Tribunal de Justiça se mostrará sensível às nossas ponderações e sugestões, afinal, se conseguirmos melhorias será por meio de um

trabalho conjunto, e haverá benefícios para todos os envolvidos nesse processo. JC – Quais são as sugestões de melhoria? KJ – Foram propostas diversas soluções para mitigação dos problemas constatados que, a nosso ver, apesar de não esgotarem o tema, podem nortear os próximos passos em busca de soluções (veja quadro). JC – Qual a sua expectativa em relação ao resultado vindouro desse trabalho? KJ – A expectativa é de que, em conjunto, a OAB-RJ e o Tribunal do Rio possam alcançar melhorias básicas e essenciais nos Juizados Cíveis de todo o Estado. Para os advogados é evidente que haverá benefício ao se estabelecer maior agilidade nessa esfera, na medida em que esses profissionais receberão mais rapidamente seus honorários, a imagem desse profissional será beneficiada perante seus clientes e seu tempo será otimizado. Para as partes, principalmente para os autores, essas melhorias se traduzem em que seus problemas sejam resolvidos mais rapidamente, incrementando o nível de satisfação com seus advogados e a Justiça. Espera-se, e também para o Poder Judiciário em geral, um Juizado mais ágil e eficiente, que permita benefícios como a melhoria de imagem da instituição, ademais de economia de recursos, bem como permitir aos magistrados maior possibilidade de dedicação ao seu verdadeiro mister: prestar jurisdição.

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As 22 propostas apontadas pela pesquisa da OAB-RJ 1. Criação de um grupo de trabalho permanente, com represen­ tantes indicados pelo Tribunal de Justiça do RJ e pela OAB-RJ, para debate e acompanhamento da implementação das ações sugeridas e outras que, ao longo das discussões de trabalho, se mostrem adequadas e relevantes; 2. Levantamento e padronização procedimental nos JECs (exemplo: alguns juizados se negam a fornecer certidões, outros fornecem, porém, apenas mediante o pagamento de GRERJ), buscando otimizar as práticas adotadas e dar-lhes agilidade; 3. Designação de magistrados exclusivos para as Varas dos Juizados Especiais Cíveis; 4. Levantamento de eventuais deficiências de infraestrutura no que tange a equipamentos, estrutura física e recursos humanos nos serviços cartorários, para solução dos mesmos; 5. Intensificação de treinamento dos serventuários e juízes leigos, buscando a melhoria do tratamento aos usuários dos serviços dos Juizados (advogados e partes); 6. Intensificação do treinamento de conciliadores, juízes e servidores, já que, segundo dados do Relatório IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), apenas 50,55% daqueles possuem cursos voltados para a prática da conciliação; 7. Participação de advogados indicados pela OAB-RJ nos treinamentos citados nos itens anteriores; 8. Estabelecimento de metas individuais para os serven­ tuários e alteração da política de gratificação desses, com a finalidade de que seja a mesma 100% calcada no alcance das metas de produtividade; 9. Mapeamento e classificação dos cartórios mais produtivos, com divulgação pública desse ranking e com identificação das melhores práticas adotadas e disseminação dessas práticas em outras serventias; 10. Aprofundamento da análise da situação dos cartórios avaliados com pior desempenho para identificação e correção dos problemas; 11. Avaliação da necessidade de realização de concursos para suprir eventual defasagem de juízes/serventuários/ juízes leigos1;

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12. Exigência de juízes leigos com formação em Direito nos concursos destinados ao exercício dessa função; 13. Remuneração dos juízes leigos com base nos acordos realizados e não com base nos projetos de sentença, uma vez que a pacificação de conflitos por meio de solução amigável é o objetivo maior dos Juizados; 14. Distribuição nos cartórios de formulários e urnas lacradas, para avaliação dos serviços cartorários e dos juízes leigos pelos advogados após a realização das audiências, bem como para que estes possam apresentar sugestões de melhoria, garantindo-se o anonimato do proponente e que essa avaliação seja considerada para efeito de remuneração/promoção dos avaliados; 15. Maior incentivo à Justiça Itinerante; 16. Publicação e disponibilização de todas as sentenças dos Juízes leigos no Diário Oficial em prazo máximo, a ser definido pelo Grupo de Trabalho OAB-RJ/TJ-RJ; 17. Afixação das pautas para que tenham fácil visibilidade e realização de pregões de forma audível; 18. Incremento do tempo médio previsto para duração das audiências nas pautas dos Cartórios, para que não haja tantos atrasos e, consequentemente, tantos prejuízos às partes e advogados; 19. Prioridade dos serviços cartorários na liberação de mandados de pagamento; 20. Continuidade e incremento da política de realização dos Mutirões de Conciliação, em linha com a visão contemporânea do Direito, no sentido de incentivar os meios alternativos de resolução de conflitos; 21. Estabelecimento de cronograma que preveja a redução gradativa de tempos máximos de atraso das audiências, até se chegar ao máximo de 30 minutos em agosto de 2015; 22. Estudos e preparação de cronograma para que todos os juizados obtenham a certificação ISO 9000 em prazo razoável.

Nota O mesmo relatório do IPEA conclui que, no Estado do Rio de Janeiro, no que se refere à Justiça Itinerante, a falta de recursos humanos prevalece sobre a falta de recursos físicos.

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D om Quixote, por Carlos Alberto Luppi

“Vamos construir um mundo melhor” Um DVD para crianças e escolas

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erpetuado na memória do mundo, o diplomata Sergio Vieira de Mello, agora, também se tornou inesquecível na memória de milhares de crianças de escolas públicas do Rio de Janeiro, sua cidade natal. Uma iniciativa da Prefeitura do Rio, através da Empresa Municipal de Multimeios RJ – ligada à Secretaria de Educação e em conjunto com o Centro de Informações das Nações Unidas no Brasil – UNIC Rio apresenta, em um DVD, toda a trajetória do diplomata com um resumo de suas ações humanitárias a serviço da ONU e de seu exemplo e compromisso com os valores e direitos humanos. A linguagem do documentário é simples e de fácil compreensão, contendo ilustrações variadas, trechos de seus discursos e depoimentos de personalidades enfatizando diversos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O DVD, com tiragem de 15 mil cópias, conta a história de Sergio a partir do atentado que o vitimou no Iraque, em agosto de 2003, com imagens originais do episódio, algumas dramáticas, narrado pela rede de televisão americana CNN. Por meio de diversas ilustrações animadas, as crianças são levadas a conhecer o Planeta Terra, a formação das nações, os princípios que unem todos os povos do mundo: valores humanos como honestidade, integridade, lealdade, responsabilidade, bondade, dignidade, altruísmo, justiça, ética, solidariedade, sinceridade, sabedoria, respeito, apre­ 28

sen­tados como “alicerces fundamentais da sociedade e todos eles integrados à vida e à atuação de Sergio Vieira de Mello”, resume o vídeo. Dentro desse contexto, o DVD mostra a criação da ONU em 1945, a importância da organização mundial e dá ênfase à promulgação – em dezembro de 1948, durante a realização da Assembleia-Geral da ONU, em Paris – da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela primeiradama americana Eleanor Roosevelt, como “Carta Magna Internacional”. Em imagens da época, Eleanor apresenta a ONU como “o lugar onde todos os problemas mundiais podem ser enfrentados através do diálogo para que sejam evitadas catástrofes mundiais como a última guerra que matou mais de 60 milhões de pessoas”, se referindo à Segunda Guerra Mundial. “Vivemos hoje – diz Eleanor Roosevelt em seu discurso histórico – um acontecimento grandioso na história das Nações Unidas e da existência humana. A Declaração Universal dos Direitos Humanos deverá se tornar a Carta Magna Internacional para todos os seres humanos em todos os lugares.” Com depoimentos de personalidades como o diretor do UNIC Rio, Giancarlo Summa, e da especialista em Direito Constitucional e Direitos Humanos, a advogada Flávia Bahia Martins, o DVD ressalta para o público infantil a necessidade de todos se empenharem na preservação dos valores fundamentais da vida, destacando

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Foto: cenarioestrategico.com

Embaixador Sergio Vieira de Mello

ainda o alto valor das ações humanitárias da ONU, que “reúnem organizações e projetos que levam assistência e ajuda sanitária, educação e alimentação a muitos povos em situações emergenciais”. Detalhes da história do diplomata Sergio Vieira de Mello, filho de Gilda dos Santos e Arnaldo Vieira de Mello, diplomata, posteriormente aposentado, compulsoriamente pelo regime militar de 64, também são mostrados. Sua infância no Rio, sua trajetória como estudante do colégio Franco-Brasileiro e como frequentador, quando jovem, da praia do Arpoador, assim como suas viagens pelo mundo, acompanhando sempre a atuação do pai. Sergio frequentou a Universidade de Paris, onde obteve doutorado em Filosofia e, depois, em Letras e Ciências Humanas. Em 1969, tornou-se funcionário da ONU, passando desde então a maior parte de sua vida trabalhando no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Tinha um grande sonho: fazer todo o esforço possível para tornar o mundo um lugar melhor para todos. Sua trajetória, apresentada no DVD, o fez viver de perto fatos e situações que reforçaram seu ideal, “em que os bons valores se tornam uma virtude”, com atuações decisivas entre 1970 e 2003 em causas humanitárias de extremo significado. “Oi, meu nome é Sergio Vieira de Mello. Sou brasileiro e Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos.

Entrei na Organização aos 21 anos, tive a sorte de atuar em Bangladesh, Chipre, América do Sul, Bósnia, Líbano, Camboja, Kosovo e Timor Leste. Esta Organização é a melhor oportunidade que se tem na vida para alcançar seus sonhos” – diz Sergio Vieira em um de seus discursos de boas-vindas aos novos funcionários da ONU, retirado, assim como outras cenas, imagens e declarações, do documentário “Sergio”, feito em 2009, nos Estados Unidos, pelo diretor Greg Barker, numa produção da HBO. “Nunca se esqueçam de que os verdadeiros desafios e recompensas de se servir à ONU e defender seus princípios humanitários estão no campo de ação, onde as pessoas estão sofrendo, onde elas precisam de vocês”, acrescenta ele em outra ocasião. O DVD apresenta um resumo da atuação do diplomata, em seus 34 anos de serviço, com a afirmação de que “a soma de Valores Humanos e Direitos Humanos é igual a um Mundo Melhor”, ou de que a soma de “Solidariedade e Estrutura Social” é a grande motivadora das ações humanitárias. Em destaque, ainda, o esforço de Sergio Vieira de Mello em ajudar a solucionar conflitos em diversas partes do mundo. Em Moçambique, em 1975, e no Camboja, em 1991, “onde chefiou a maior operação humanitária da história da ONU, conseguindo um feito notável de manter diálogo com o Khmer Vermelho, e firmar um acordo com este grupo radical que permitiu o retorno de milhares de refugiados às suas comunidades”. Depois, em 1999, no Timor Leste, onde “sua atuação foi a de um Chefe de Estado”, tendo conseguido fazer do país um membro da ONU, além de uma nação independente. Diversos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos são apresentados às crianças, ao longo do documentário, para explicar o pensamento de Sergio Vieira de Mello, a essência de sua atuação, o sentido de sua missão e os valores humanos que ele defendia, como o artigo 1o: “Todos os seres humanos nascem iguais em dignidade e direitos”, o artigo 3o: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” e, ainda, o artigo 21: “Todo ser humano tem direito a fazer parte do governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representação, livremente escolhida”. Um dos momentos mais dramáticos do DVD refere-se ao atentado que matou o diplomata, em agosto de 2003: “Pedi ao sr. Sergio Vieira de Mello que servisse e atuasse como meu representante especial no Iraque. Ele liderava nesse país o esforço da ONU na causa humanitária” diz o então Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan. A explosão do caminhão-bomba que matou Sergio Vieira de Mello tirou-o literalmente do meio do povo. Sergio, em Bagdá, dispensou carros oficiais, andava no meio do povo, percorria lugares de táxi e de ônibus e

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frequentava locais remotos, onde podia ouvir e entender o povo, seus problemas, suas angústias e seus anseios. “Eu passei os últimos meses viajando pelo país, encontrei uma grande diversidade de iraquianos, políticos, jornalistas, artistas, líderes sociais, advogados, líderes espirituais, ativistas de direitos. Eles querem de volta o controle sobre seu próprio país em primeiro lugar”, relata o diplomata. Esse foi seu último discurso, em 22 de julho de 2003, relatando à ONU a situação caótica do país em guerra e em estado geral de conflito. O documentário finaliza mostrando que o nome de Sergio Vieira de Mello simboliza a cultura da paz, a honestidade e a solidariedade e estimula as crianças a seguirem seus passos, a ter nele uma referência “para trilhar uma trajetória de valor. Os valores que ele defende

não morrem e seu legado fica”. O DVD apresenta ainda a Escola Municipal que leva seu nome em sua homenagem, no Rio de Janeiro, ressalta o dia 19 de agosto como o Dia Mundial da Ação Humanitária, instituído oficialmente pela ONU, e apresenta um grupo de crianças que, diante do monumento em sua homenagem, declama a frase: “O ser humano tem o direito de viver com dignidade, igualdade e segurança. Não pode haver segurança sem paz verdadeira e a paz precisa se construir da solidariedade, a base firme dos direitos humanos”. Sergio Vieira de Mello, o brasileiro que sonhava em melhorar o mundo, dedicou toda a sua vida a esse objetivo. Ganhou, postumamente, o Prêmio de Direitos Humanos da ONU, tornando-se um símbolo para as crianças e para todos os cidadãos de todas as idades em todo o mundo.

Na vida e na morte, a defesa dos direitos humanos O Embaixador Sergio Vieira de Mello consolidou, após sua morte no Iraque, a imagem que cultivou em vida: a de ser um dos maiores humanistas da história do Brasil. Sergio foi vitimado por um atentado contra o escritório da ONU que chefiava como Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos e como representante direto do então Secretário Geral da Organização das Nações Unidas, Kofi Annan. Carioca, ele dedicou sua vida à causa do ser humano, dialogando, em nome da ONU e seguindo suas firmes convicções, com pessoas, povos e líderes de países diversos, mediando situações de conflito, sempre sonhando em que seus atos pudessem, de fato, melhorar o mundo em quem vivemos. Sua história, suas ações em diferentes países do mundo, de 1969 a 2000, seu pensamento humanístico e sua atuação decisiva na mediação de muitos conflitos mundiais integram um DVD feito pela MultiRio, em conjunto com a UNIC (Centro de Informação das Nações Unidas), que será distribuído para todas as escolas públicas do Rio de Janeiro, a partir do dia 10 de dezembro destinado a milhares de crianças e jovens. O DVD conta, ainda, a história da ONU, sua criação e a importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promovendo a cultura da paz entre as pessoas e os países.

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Sergio Vieira de Mello foi mais que um exemplo de fé e coragem. O caráter humanista de sua formação, associado ao seu talento para a negociação e a defesa dos princípios democráticos e dos direitos humanos, mesmo em situações adversas, foram fatores-chave do sucesso de muitas de suas iniciativas. E a data para seu lançamento oficial não poderia ser melhor: 10 de dezembro. Data que em todo o mundo se comemora no aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a chamada “Carta Magna da Humanidade”. Uma Carta cujos princípios fundamentais tiveram em Sergio Vieira de Mello um dos seus maiores defensores. Tanto em sua vida, quanto em sua morte, vítima da extrema violência que representa o lado mais escuro do ser humano. O DVD “Vamos construir um mundo melhor”, é inédito, contém imagens exclusivas de Sergio Vieira de Mello em diversos momentos de sua vida e pode ser acessado na videoteca da MultiRio no link: http://bit.ly/1irFgdB

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O pecado do Diplomata Saboia Ana Flávia Velloso

o dar execução ao asilo concedido pelo governo brasileiro ao senador boliviano, retirando-o de seu país, o diplomata Eduardo Saboia não praticou ato ilícito à luz do Direito Internacional e, sobretudo, da Constituição brasileira. O governo concedera a Molina asilo diplomático. Deveria, portanto, exigir salvo-conduto para que ele pudesse ser conduzido ao exterior. O salvo-conduto não é autorização para que o asilado deixe o país, mas garantia de que sairá com segurança do território onde ocorre risco à sua integridade ou liberdade. A história registra episódios isolados de recusa do salvo-conduto. Foi o que ocorreu nos anos 1940, no caso Haya de La Torre, que Peru e Colômbia levaram à Corte Internacional de Justiça. A tese peruana era a de que a identificação dos pressupostos do asilo deveria ser feita mediante entendimento entre o Estado que concede o asilo e o Estado territorial. A decisão da Corte foi inexequível, não houve acordo entre os dois países e Haya de La Torre viveu por três anos na residência do embaixador da Colômbia, em Lima. Não houve, naquele caso, protelação indefinida, mas negativa explícita e confronto aberto de diferenças perante o tribunal internacional. Pouco depois, a Convenção de Caracas, de 1954, consolidou regra de direito costumeiro internacional segundo a qual cabe ao Estado que concede o asilo dizer se há ou não perseguição política e. se ocorrente a situação de urgência vivida pelo postulante, pressupostos essenciais do asilo político. A associação entre os casos de Molina e de Julian Assange, abrigado na Embaixada do Equador em Londres, não é adequada. É que as situações são diferentes sob o ponto de vista jurídico. O Reino Unido não se inclui entre os Estados que reconhecem o asilo diplomático como norma costumeira internacional, não se vinculando juridicamente ao instituto, como é o caso do Brasil e da Bolívia, signatários da Convenção de Caracas. Foi, aliás, na América Latina que o instituto se desenvolveu, sendo regionais as convenções que o disciplinam: Havana, 1928, Montevidéu, 1933, Caracas, 1954.

Foto: Arquivo pessoal

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Advogada Professora de Direito Internacional Público no Centro de Ensino Unificado de Brasília (CEUB)

Não sendo ilícita, segundo o direito das gentes, a conduta de Saboia, por que o ameaçam seus superiores hierárquicos? Se foi atípica a retirada do asilado, foi também anômala a situação em que ele se encontrava, confinado em uma sala durante um ano e meio. As críticas a Saboia falam de insubmissão à hierarquia funcional, importante, é certo, na carreira diplomática. Circunstâncias, entretanto, justificam o ato do diplomata, que optou pelo respeito à dignidade humana, aos direitos humanos e ao direito de asilo, princípios fundamentais da República (Constituição Federal, arts. 1o, III, e 4o, II e X). Em uma situação excepcional, ele deu cumprimento a esses princípios, conferindo efetividade à Constituição. Esse foi o “pecado” de Saboia. Esse foi também o “pecado” do embaixador Souza Dantas, que, na chefia da missão diplomática brasileira na França, ignorou normas do Itamarati e concedeu vistos a centena de judeus perseguidos pelo governo colaboracionista de Vichy. Dantas contrastou o governo brasileiro e salvou 800 pessoas da deportação. Da mesma forma, Guimarães Rosa, cônsul em Hamburgo, e a funcionária Araci de Carvalho, que veio a se tornar sua mulher e foi chamada “Anjo de Hamburgo”, superaram normas expedidas pelo governo e salvaram vidas. A história redimiu-os e consagrou-os. Que se faça justiça ao diplomata Saboia.

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Invista em Itaboraí

A capital dos bons negócios. Distante apenas 39km da capital do Rio de Janeiro, Itaboraí é hoje a grande oportunidade de excelentes negócios para empresas de diversos setores. Sede do Comperj - Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, e com uma Base Industrial e Tecnológica sendo implantada, o município terá em 10 anos, o seu PIB estimado em R$17 bilhões e sua população chegará a 1 milhão de habitantes nesse período. Esses empreendimentos estão atraindo empresas de diversos segmentos, pois hoje com a nova administração municipal, Itaboraí mostra um cenário de progresso e de modernização da cidade. Seu território faz divisa com Tanguá e Maricá, municípios que serão beneficiados pelo Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma via de escoamento que integrará uma importante região do estado que compreende de Itaguaí à Itaboraí, promovendo o desenvolvimento integrado de toda essa região.

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Itaboraí

Conheça Itaboraí, a cidade que será a segunda capital do estado e o melhor lugar para sua empresa.

www.itaborai.rj.gov.br

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Centrais de relacionamento: uma solução para a judicialização? Da Redação

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Em entrevista, o gerente jurídico da Fetranspor, Victor Farjalla, defende a adoção obrigatória da conciliação pré-processual e fala sobre os excelentes resultados alcançados pelos mecanismos de solução de conflitos de consumo adotados pela entidade.

Central de Relacionamento com o Cliente (CRC) da Federação das Empresas de Transpor­ tes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor) superou o índice de 90% de so­ luções de reclamações de usuários. A informação foi dada pelo gerente jurídico, Victor Farjalla, que informa que a entidade vem buscando ampliar seus mecanismos para soluções conciliatórias pré-processuais dos conflitos de consumo. Nesta entrevista à Revista Justiça & Cidadania, o gerente também critica a cultura do litígio que prevalece em nosso País, fazendo com que o Judiciário seja acionado para todo e qualquer conflito de interesses. Farjalla aponta, ainda, a falta de um modelo de conciliação pré-processual e a necessidade de ampliar o nível de eficiência dos serviços de atendimento a clientes e de alguns organismos oficiais que buscam solucionar os conflitos de consumo. Para ele, toda conciliação pré-processual regulamentada pelo Estado deveria ser uma tentativa obrigatória, como já ocorre em outros países. Justiça & Cidadania – Quantas reclamações rela­ cionadas a conflitos de consumo os sindicatos filiados à Fetranspor recebem, em média, por mês? Qual o percentual de êxito, ou seja, retorno efetivo ao consumidor reclamante, nesses casos? E quantos processos judiciais estão em trâmite atualmente na Justiça fluminense?

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Foto: Mariana Fróes

Victor Farjalla, gerente jurídico da Fetranspor

Victor Farjalla – Antes de começar a responder a essas perguntas, gostaria de deixar claro que estamos tratando da solução conciliatória pré-processual dos conflitos de consumo, ou seja, da retenção dos conflitos para tentativa de sua solução antes de chegarem ao Judiciário, em busca de celeridade e satisfação na prevenção de litígios, como instrumentos de diminuição do acervo judicial e de paz social. As opiniões estarão, portanto, todas, vinculadas à solução extrajudicial do conflito, não se estendendo à conciliação judicial. Quanto às reclamações dos usuários do setor de transportes da base de atuação da Fetranspor que encontram imediata resposta da Central de Relacionamento com o Cliente (CRC), são superiores a noventa por cento. JC – O senhor acredita que o grande número de processos judiciais que abarrotam atualmente o Judiciário, principalmente os decorrentes de relações de consumo, poderia ser reduzido com base na disseminação e da cultura da conciliação? VF – A cultura da conciliação ou o espírito conciliatório são os opostos da cultura do litígio que, lamentavelmente, fomenta no Brasil a busca do Judiciário para todo e qualquer conflito de interesses, independentemente de sua expressão jurídica ou econômica, muito embora se saiba que a solução conciliatória é a que, realmente, pacifica as partes litigantes.

JC – Como o senhor enxerga o atual modelo de conciliação pré-processual? VF – Não temos, na verdade, um modelo de conciliação pré-processual. O que existe são os serviços de atendi­ mento a clientes e alguns organismos oficiais que buscam solucionar os conflitos de consumo, sem, no entanto, um nível de eficiência desejável, provavelmente, por falta de treinamento adequado de mediadores e conciliadores, o que se pode constatar pelo constante aumento do acervo contencioso judicial. JC – A Justiça, por meio do Conselho Nacional de Justiça, a exemplo de sua resolução 125, editada em 2010, tem buscado cada vez mais implementar programas efetivos e permanentes de conciliação, os quais poderão ser implantados por meio de parcerias com entidades públicas e privadas. O que o senhor acha disso? VF – A iniciativa, como qualquer outra tendente a desafogar o Judiciário e propor maior e mais célere acesso à Justiça, compreendido esse acesso na sua concepção moderna de acesso a uma solução justa de um conflito e não, necessariamente, acesso ao Judiciário, é louvável, dependente, contudo, de sua efetivação pelos Tribunais. JC – No encontro de Conciliação e Mediação organi­ zado pela Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj), na última semana de outubro,

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o senhor apresentou proposta para implementação de programas de conciliação nas questões relativas ao transporte coletivo de passageiros. Fale-nos, resu­ midamente, sobre essa proposta. VF – Não foi uma proposta minha, mas da Fetranspor, que é uma entidade sindical atenta para o desempenho da pluralidade de papéis que a missão constitucional de defesa dos interesses individuais e coletivos da categoria econômica exige, nos termos do inciso III do artigo 8o da Constituição da República. Mais especificamente, as entidades sindicais patronais estão expressamente inseridas entre os agentes de composição de conflitos de consumo pelo artigo 107 do Código de Defesa do Consumidor. Daí a proposta de parceria com o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro para a extensão à rede de Sindicatos da base territorial da Fetranspor de centros de conciliação, inclusive, itinerantes por meio de ônibus devidamente guarnecidos da estrutura necessária, cabendo ao Judiciário indicar, tão somente, os conciliadores e homologar os acordos. JC – A tentativa de conciliação, no formato proposto, seria obrigatória? VF – O ideal seria que toda conciliação pré-processual regulamentada pelo Estado fosse de tentativa obrigatória, como o é em outros países. Uma espécie de condição especial para qualificar o interesse de agir judicialmente, na frustração da composição amigável do conflito. As Comissões de Conciliação Prévia para os conflitos trabalhistas surgiram com esse viés de obrigatoriedade que, no entanto e lamentavelmente, foi afastado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.160-5 do Distrito Federal, a pretexto de se dar interpre­ tação conforme à Constituição Federal ao artigo 625-D da Consolidação das Leis do Trabalho, para não se incidir em ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Digo, lamentavelmente, porque posiciono-me a favor do voto vencido do então ministro Cezar Peluso, ao considerar que a tentativa preliminar de conciliar e resolver pacificamente o conflito, com a vantagem de uma solução não ser imposta autoritariamente, não bloqueia, nem impede, nem exclui o recurso à universalidade da jurisdição. E o que se viu, como consequência da decisão suprema, foi o total esvaziamento das Comissões de Conciliação Prévia, em paradoxal prejuízo do acesso à Justiça e a inocuidade de uma ferramenta destinada a desafogar o Judiciário. JC – E, para sua efetividade, seria necessária a homo­ logação judicial? VF – Já sem a obrigatoriedade, a tentativa de solução pré-processual dos conflitos de consumo estaria fadada ao insucesso sem a homologação judicial do acordo que 36

“Posiciono-me a favor do voto vencido do então ministro Cezar Peluso, ao considerar que a tentativa preliminar de conciliar e resolver pacificamente o conflito, com a vantagem de uma solução não ser imposta autoritariamente, não bloqueia, nem impede, nem exclui o recurso à universalidade da jurisdição.”

viesse a ser celebrado. Isso se não quisermos ficar, apenas, no cumprimento de obrigações reconhecidas pelo devedor, mas, para alcançarmos o patamar dos acordos prévios por via de transação em que os litigantes cedem, cada qual, em parte seus interesses, ao encontro de uma solução que, ainda que não os satisfaça integralmente, ponha fim a um conflito cuja perpetuação não seja da vontade das partes. Sem a homologação judicial, não haveria a segurança de uma quitação plena e recíproca, judicialmente reconhecida, especialmente em se tratando de uma relação jurídica em que uma das partes recebe da lei tutela especial, como o consumidor. Assim sendo, sem a obrigatoriedade e sem a segurança jurídica de uma quitação plena homologada judicialmente, não haveria como se estimular as partes, especialmente, o fornecedor a transigir ou mesmo a comparecer perante o centro de conciliação. A designação do conciliador pelo Tribunal de Justiça asseguraria a necessária imparcialidade, possibilitando a homologação judicial posterior pelo juiz togado competente. JC – Como o senhor pensa em regulamentar a padro­ nização e a implantação definitiva de tal sistema? Seria por meio de legislação especial? VF – A proposta foi lançada, mas a necessidade de parceria com o Poder Judiciário e de regulamentação estatal transfere para uma segunda etapa, posterior à análise de eficácia do meio proposto, a definição de procedimentos e da fonte normativa.

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Carlos Araujo

Foto: Bruno Marins

Inovar é preciso Diretor do Instituto Prêmio Innovare

U

m núcleo de apoio criado por um juiz no inte­ rior de São Paulo, onde adolescentes infratores residem e recebem, durante o cumprimento da medida socioeducativa, apoio médico, odontológico e psicológico e ainda são encaminhados a escolas profissionalizantes. Uma iniciativa da defensoria Pública do Ceará que barateou a conta de luz de dezenas de casas de cidadãos carentes no interior do estado, permitindo que estruturas de home care fossem instaladas nessas residências, salvando vidas e desafogando redes hospitalares. Uma ação que permitiu a digitalização de todos os processos distribuídos ao STJ, facilitando a vida de milhares de operadores do direito e agilizando a prestação jurisdicional de outras centenas de milhares de cidadãos. A dotação por uma vara de justiça de Porto Alegre de um local específico e acompanhamento profissional próprio, para facilitar o depoimento de crianças vitimas de abuso sexual. A implementação pelo CNJ de um banco de dados de âmbito nacional que reúne empresas com propostas de trabalho e cursos de capacitação profissional para pessoas que saem do sistema correcional. Todas essas iniciativas, ou práticas, como chamamos, foram premiadas ou destacadas, por meio de menções honrosas, pelo Prêmio Innovare, uma iniciativa que em 2013 completa dez anos de uma caminhada vitoriosa no esforço de identificar, premiar e divulgar ações desenvolvidas em todo o Brasil por operadores do direito, sejam eles advogados, defensores, magistrados, promotores ou, até mesmo, tribunais. Criado na esteira das reformas trazidas pela Emenda Constitucional 45, o Innovare tem hoje um banco de dados que reúne milhares de iniciativas como as aqui mencionadas e que demonstram o vigor de uma agenda positiva da justiça brasileira. O Innovare não é uma ação oficial, mas a coordenação de esforços individuais ou coletivos, todos espontâneos e pro bono, que buscam tornar o acesso à justiça uma realidade. No decorrer de uma década, o Innovare, com o apoio da iniciativa privada, destacou e premiou importantes iniciativas, firmou convênios com tribunais e escolas de magistraturas e teve duas de suas práticas tornadas recomendações pelo CNJ. Neste ano, temos 355 práticas concorrendo ao prêmio nas cinco categorias existentes (magistratura, promotoria,

advocacia, defensoria e tribunal), lançamos um concurso de monografias aberto ao mundo acadêmico com o tema “A Justiça do Século XXI”, que contou com 109 inscrições, muitas delas, grata surpresa, da autoria de profissionais oriundos de outras áreas de atuação que não o direito, e ainda nos lançamos nas redes sociais com a criação de uma página no Facebook. Em novembro de 2013, o Innovare promove em Brasília um seminário para discutir propostas para a gestão do judiciário brasileiro. Com um júri e uma Comissão Difusora de Práticas composto por algumas das mais respeitadas figuras do mundo jurídico e acadêmico nacional, com um grupo de consultores dedicados a visitar e conhecer cada uma das práticas inscritas em todos os estados da federação, um banco de dados aberto à consulta pública, com mais de três mil práticas catalogadas, um Conselho Superior integrado pelas mais destacadas associações de classe da justiça brasileira e presidido pelo ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Min. Carlos Ayres Brito, o Innovare firma-se hoje, pela seriedade de seu trabalho, como uma referência no reconhecimento e validação de boas práticas no judiciário e como uma iniciativa de premiação que não encontra semelhança com nenhuma outra na justiça dos países do mundo democrático. Depois de dez edições nacionais e uma internacional, o Innovare deixa de ser aquela “revolução silenciosa de justiça”, a que se referia o professor Joaquim Falcão da FGV, quando de seu lançamento, para se tornar uma manifestação pública e ruidosa da soma de esforços comuns por uma justiça melhor para todos os brasileiros.

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O Poder Judiciário e a questão da internação compulsória dos usuários de “crack” Cherubin Helcias Schwartz Júnior

Desembargador do TJERJ Mestre pela FGV Direito/Rio

Ana Carolina Carvalho Gomes Schwartz

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Acadêmica do 10º Período do Curso de Direito IBMEC/Rio

1. Introdução oi minha filha Ana Carolina, coautora do presente artigo, na elaboração da sua monografia de conclusão do curso de Direito, quem alertou-me para a gravidade do problema relacionado à questão do “crack” e suas consequências, notadamente no que diz respeito ao aspecto da internação compulsória dos usuários dessa droga, questão que envolve o Poder Judiciário, em razão da disciplina estabelecida pela Lei no 10.216/01. A nosso sentir, o tema tem relevância não apenas pelo drama humano que envolve, já que o consumo do “crack” vitimiza de forma sobremodo grave o usuário e outros grupos que orbitam em torno da droga, mas também porque envolve o Poder Judiciário, embora não tenham sido criados mecanismos que o capacitem a agir adequadamente para fazer frente ao problema e sua larga dimensão. A judicialização da questão, sem que exista verdadeiramente uma política pública a respeito da mesma, bem como a inexistência de mecanismos de outorga ao Poder Judiciário de instrumentos adequados ao tratamento do tema, conduz a sérias dúvidas e a profunda insegurança jurídica na disciplina e no enfrentamento de tão grave problema. 38

2. O “crack” é uma droga singular Causas e consequências do consumo do “crack” compõem um círculo vicioso que o singulariza frente a outras drogas e que agrava os efeitos do seu uso, sendo possível enumerar algumas delas, como se vê: a) o “crack” é uma droga relativamente barata quando comparada a outras drogas, circunstância que “democratiza” o acesso à mesma, “universalizando” o seu uso. De fato, no mercado das drogas, existe também uma relação econômica que, em maior ou menor escala, concorre para a ampliação do universo de consumidores. Importante ressaltar que nesse campo, conforme tem sido indicado por pesquisas e por simples observação empírica, noticiada com frequência pela imprensa, estabelece-se uma rede circular, por meio da qual o usuário é também o transportador e distribuidor da droga, usuário e traficante; b) essa “universalização” do acesso ao “crack” leva à penetração da droga nas camadas da população menos favorecidas economicamente e, portanto, mais frequen­ temente alijadas da utilização de serviços presta­cionais como saúde, educação, previdência, dentre outros, razão pela qual os danos pessoais e sociais causados pelo uso da mesma potencializam-se.

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3. A judicialização do tema e a falta de instrumentos adequados conferidos ao Poder Judiciário O problema do “crack” tem sido enfrentado pelo Poder Público, notadamente a nível local (municipal), de forma dispersa, sem uma verdadeira política pública a seu respeito. No Município do Rio de Janeiro, não existe legislação específica sobre o tema, enquanto que, em São Paulo, o Governo do Estado editou o Decreto no 46.860 de 25 de junho de 2002, visando a fazer frente à questão. A competência para legislar sobre a matéria é concorrente da União, Estados e Distrito Federal, ex vi dos incs. XII e XV, do art. 24 da Constituição da República, ao passo que a competência para atuação material frente ao problema é de todas as entidades federadas (art. 23, inc. II, c/c art. 196, todos da Constituição da República). A Lei no 10.216/01, que tem servido de base para o enfrentamento da questão, em seu art. 6o, paragrafo único, inciso III, c/c art. 9o, inseriu o Poder Judiciário como protagonista no âmbito da conturbada relação entre o Estado e os usuários do “crack”. De fato, instituiu esta um controle judicial da internação compulsória, conferindo ao Poder Judiciário a função de decretá-la, quando envolva pessoas portadoras de transtornos mentais, inclusive usuários de “crack”, os quais, com frequência, tornam-se incapazes de gerir a si próprios.

Foto: Mariana Fróes

O “crack” é uma droga das ruas, demarcando o território da sua comunidade em verdadeiras “cracolândias”. Na cidade do Rio de Janeiro, a mais conhecida e maior “cracolândia” situa-se às margens da Avenida Brasil, uma das mais importantes vias da cidade, na localidade denominada Parque União, constituindo-se em verdadeira comunidade de usuários, com regras (ou falta delas) próprias; c) causa e ao mesmo tempo consequência do aumento do consumo do “crack” e da difusão de seus efeitos negativos é a circunstancia de que ela causa dependência mais rapidamente que outras drogas, inibindo, por consequência, o poder de resistência e reação do usuário. Essa característica farmacológica do “crack” tem-se mostrado fundamental ao potencial viciante da droga, e, por fim; d) o “crack” é uma droga mais “segura” que outras drogas e que a própria cocaína, pois, como o “crack” é fumado, não implica na repartição de seringas e outros equipamentos capazes de acarretar contaminação, por exemplo, pelo vírus da Aids. Essas são apenas algumas das circunstancias que acarretam o aumento do consumo e os efeitos negativos do uso do “crack”, diferenciando-o de outras drogas potencialmente menos lesivas.

Desembargador Cherubin Helcias Schwartz Júnior

Ocorre, entretanto, que, além de não existir propriamente uma política pública para enquadramento do problema, a qual deveria ser estabelecida em âmbito nacional, com programas, regras, fontes de custeio e controle claros, não existem mecanismos adequados para disciplinar a atuação judicial. O Judiciário foi convocado ao tema, sem a criação de instrumentos capazes de dar-lhe suporte no enfrentamento do mesmo. Efetivamente, algumas questões surgem naturalmente da letra dos artigos 6o, parágrafo único, III, e 9o, ambos da Lei no 10.216/01. Pensando no usuário, criança ou adolescente, é possível responder a questionamentos com base nas disposições do ECA. Uma criança ou adolescente usuário de droga poderá ser abrigado para sua proteção, sendo possível ainda decretar até sua internação quando houver a imputação de fato análogo a crime, nos termos do artigo 101, V e VII, c/c artigo 112, IV, V e VI, todos da Lei no 8.069/90, porém, e a rigor, nas duas hipóteses não se aplica a Lei no 10.216/01. O problema surge, porém, quando inaplicável o ECA, vez que falta regulamentação adequada aos dispositivos da

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Foto: Arquivo pessoal

Ana Carolina Carvalho Gomes Schwartz, estudante

Lei no 10.215/01 (art. 6o, parágrafo único, III, c/c art. 9o), na medida em que não é possível delimitar alguns pontos cruciais à compreensão do tema. Efetivamente, não se consegue identificar desde logo qual é o juiz competente mencionado pela Lei no 10.216/01 (art. 9o), ao qual caberá o controle da medida de caráter protetivo-restritivo, somando-se a esse problema a circunstância de que, a rigor, não há no sistema processual uma ação específica destinada à internação compulsória do usuário de “crack”. Anote-se que não se trata aqui de interdição do usuário, nos termos do artigo 1.767 e seguintes do CCB, o que pode até ocorrer em algumas circunstâncias, mas de uma demanda específica, vez que nem sempre será cabível a decretação da medida judicial que reconhece a incapacidade. A medida de internação compulsória, portanto, não pressupõe necessariamente a decretação da interdição, que implicará inclusive em outras providências, como a nomeação de curador ao interdito, indisponibilidade temporária do patrimônio do curatelado e tutela dos filhos menores do mesmo. O que se propõe aqui é algo diverso, uma inovação, a qual implica em verdadeira medida restritiva da 40

liberdade, consistente na internação compulsória do portador de transtornos mentais que, por força disso, encontre-se incapacitado de preservar a sua segurança e a de terceiros, situação que com frequência atinge os usuários de “crack”, em razão do elevado poder dessa droga em privar o seu consumidor da capacidade de controlar a si mesmo. O problema que se coloca para o Poder Judiciário, na quadra atual, reside na existência de questões que a Lei no 10.216/01 é absolutamente incapaz de responder. A lei não esclarece qual o tipo de ação ou requerimento que deve ser dirigido ao juiz para determinar a providência protetiva (?) de internação e, consequentemente, torna inviável a determinação de qual é o juiz competente. Igualmente, não esclarece quem ostenta legitimidade para requerer a medida, nem tampouco se é possível ao requerido, usuário da droga, impugnar o pedido de internação compulsória. Outras tantas dúvidas e questionamentos não são esclarecidos pela lei, como o prazo da internação e os requisitos para liberação do usuário do “crack”, concorrendo para um clima de incerteza e insegurança jurídica. Por outro lado, o Judiciário, colocado como protagonista dessas relações sociais complexas e conturbadas, não tem se furtado a discipliná-las, porém, para tanto, necessita de instrumentos e ferramentas que o habilitem a tal fim. Impõe-se, portanto, que conjuntamente à adoção de uma verdadeira política pública sobre a questão maior, o consumo de “crack” e o elevado poder de incapacitação dessa droga, sejam criadas ferramentas que possibilitem ao Judiciário agir na defesa e proteção daqueles desvalidos da sorte, que acabam presas fáceis de tão destrutiva droga, sob risco de não ser possível aos juízes, nesse caso, dar conta de tão dramática situação.

Referências bibliográficas BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 1. ed. Saraiva, 2009. Filhos do Crack: Famílias Destruídas pela Droga. O Globo, ed. 29/9/2013, p. 25. LIRIO DO VALLE, Vanice Regina. Políticas Públicas, Direitos Fundamentais e Controle Judicial. Forum, 2009. MENDONÇA, Luiz Octávio Martins. Crack, o Refúgio dos Desesperados, à Luz do Programa Nacional de Combate às Drogas. Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 17, no 29, dez. 2010. SAPORI, Luis Flávio. Crack – Juventude e Violência Urbana. Revista Jurídica Consulex, no 352, 15 set. 2011. Site oficial do Governo do Estado de São Paulo. Disponível em: <www.saopaulosp.gov.br>. Acesso em: 9 out. 2013. TARIM, Denise. A Aliança Entre o Ministério Público e a Sociedade Civil na Definição de Políticas Públicas. 1 ed. Ministério Público e Políticas Públicas. Coordenação Patrícia Villela. Lumen Juris, 2009.

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Breves notas sobre o atual tratamento jurisprudencial dos delitos de contrabando e descaminho Antonio Tovo Loureiro

Advogado

O

1. Introdução delito de contrabando ou descaminho1 passa por marchas e contramarchas na jurisprudência brasileira atual. Trata-se de uma prática histórica, fomentada, em parte, pelo complexo arcabouço tributário pátrio e pelos extensos limites fronteiriços. Não por acaso, o delito de contrabando ou desca­ minho mereceu estudos de reconhecidos autores, que delimitaram seus contornos típicos. Dentre os autores mais vetustos, elencam-se VIVEIROS DE CASTRO e PINTO DE ARAÚJO CORRÊA, os quais lecionaram sobre o tema em 1898 e 19072. Mais recentemente, por todos, vale citar Dometila LIMA de Carvalho, monografista da matéria, com Crimes de contrabando e descaminho, publicado no início da década de 803. Dentre os muitos eixos temáticos que esse delito possibilita, pretende-se pontuar dois, considerada a exígua extensão do presente articulado: (i) natureza fiscal do delito de descaminho/contrabando; e (ii) pluriofensividade do delito. 2. Natureza fiscal do delito de descaminho/contrabando No que tange à natureza fiscal da figura típica, a discussão pode ser sintetizada em dois questionamentos. O primeiro decorre da indagação: o delito em questão é 42

um crime tributário? O segundo núcleo, caso se responda afirmativamente à pergunta, é: em sendo conferido enquadramento de crime tributário ao contrabando/ descaminho, a ele devem ser atribuídas todas as possibili­ dades despenalizadoras que possui essa espécie de crimes? A propósito desse mote, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça já posicionou-se pelo caráter tributário da conduta delitiva em questão. O julgado foi assim ementado: PENAL – HABEAS CORPUS – DESCAMINHO – TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL – AUSÊNCIA DE PRÉVIA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO NA ESFERA ADMINISTRATIVA – NATUREZA TRIBUTÁRIA DO DELITO – ORDEM CONCEDIDA. 1. Consoante recente orientação jurisprudencial do egrégio Supremo Tribunal Federal, seguida por esta Corte, eventual crime contra a ordem tributária depende, para sua caracterização, do lançamento definitivo do tributo devido pela autoridade administrativa. 2. O crime de descaminho, por também possuir natureza tributária, eis que tutela, dentre outros bens jurídicos, o erário público, deve seguir a mesma orientação, já que pressupõe a existência de um tributo que o agente logrou êxito em reduzir ou suprimir (iludir). Precedente. 3. Ordem concedida para trancar a ação penal ajuizada contra os pacientes no que tange ao

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Foto: Arquivo pessoal

delito de descaminho, suspendendo-se, também, o curso do prazo prescricional. (Superior Tribunal de Justiça, 6a Turma, HC 109205, Rel. Min. Jane Silva, j. 2/10/2008)

Depreende-se do julgado a tendência de, ao entender que o delito de descaminho possui essência eminentemente tributária (em que pese constar no capítulo de crimes contra a administração pública do Código Penal), a ele devem ser aplicadas providências que já são imanentes aos crimes originalmente tributários. Tais consequências em muito defluíram do julgamento do conhecido habeas corpus 81.611 pelo Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence. O consectário mais difundido do referido precedente é de condicionar a persecução criminal ao esgotamento da esfera administrativa-fiscal. O leading case do HC 81.611 do STF levou à pacificação de outros entendimentos: suspensão da punibilidade pelo parcelamento de tributo, extinção da punibilidade pelo pagamento de tributo entre outros. Assim, embora não se referende a modalidade de solução jurídica dada pela Suprema Corte para os delitos tributários – leia-se o processo administrativo como condição de procedibilidade, não como instrumento a preencher circunstância elementar normativa do tipo –

deve-se reconhecer que o julgado promoveu significativo avanço na aplicação do Direito Penal no país4. Todavia, a extensão automática desses efeitos jurídicos para o delito de descaminho ou contrabando ocasiona problemas de adaptação. Tais problemas, avultados pelas peculiaridades do caso concreto, fazem parecer que órgãos julgadores dos mesmos Tribunais são segmentos da mesma orquestra tocando conforme diferentes partituras. É o que se dessume de recente julgado da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça: HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO OR­ DINÁRIO. WRIT NÃO CONHECIDO, POR SER ERRÔNEA A IMPETRAÇÃO ORIGINÁRIA EM SUBSTITUIÇÃO À VIA DE IMPUGNAÇÃO CABÍVEL, QUAL SEJA, O RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL. DESCAMINHO. CRIME FORMAL. DESNECESSIDADE DE CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE FLAGRANTE QUE, EVENTUALMENTE, ENSEJASSE A CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. Na esteira dos precedentes atuais deste Superior Tribunal de Justiça, o writ não pode ser conhecido, por se tratar de errônea impetração originária de habeas corpus em substituição à via de impugnação cabível, qual seja, o recurso ordinário constitucional. Contudo, em respeito ao fato de a

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impetração ter sido anterior à mudança do referido entendimento, é feita a análise da insurgência, a fim de verificar a eventual possibilidade de concessão da ordem de ofício. 2. O crime de descaminho se perfaz com o ato de iludir o pagamento de imposto devido pela entrada de mercadoria no país. Não é necessária, assim, a apuração administrativo-fiscal do montante que deixou de ser recolhido para a configuração do delito. Trata-se, portanto, de crime formal, e não material, razão pela qual o resultado da conduta delituosa relacionada ao quantum do imposto devido não integra o tipo legal. Precedente da Quinta Turma do STJ e do STF. 3. A norma penal do art. 334 do Código Penal – elencada sob o Título XI: “Dos Crimes Contra a Administração Pública” – visa proteger, em primeiro plano, a integridade do sistema de controle de entrada e saída de mercadorias do país, como importante instrumento de política econômica. O agente que ilude esse controle aduaneiro para importar mercadorias, sem o pagamento dos impostos devidos – estes fixados, afinal, para regular e equilibrar o sistema econômico-financeiro do país – comete o crime de descaminho, independentemente da apuração administrativo-fiscal do valor do imposto so­negado. 4. O bem jurídico protegido pela norma em tela é mais do que o mero valor do imposto. Engloba a própria estabilidade das atividades comerciais dentro do país, refletindo na balança comercial entre o Brasil e outros países. O produto inserido no mercado brasileiro, fruto de descaminho, além de lesar o fisco, enseja o comércio ilegal, concorrendo, de forma desleal, com os produzidos no país, gerando uma série de prejuízos para a atividade empresarial brasileira. 5. Em suma: a configuração do crime de descaminho, por ser formal, independe da apuração administrativo-fiscal do valor do imposto iludido, embora este possa orientar a aplicação do princípio da insignificância quando se tratar de conduta isolada. 6. Habeas corpus não conhecido. (Superior Tribunal de Justiça, Quinta Turma, HC 218.961, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 15/10/2013, grifo nosso)

Não obstante, discorda-se desse entendimento, endossando o escólio de ESTELLITA5. Embora o crime de descaminho e contrabando efetivamente seja de caráter formal, não há como descurar de seu resultado jurídico (supressão de tributo), embora possa prescindir de resultado naturalístico. Assim, não restaria afastada a Súmula Vinculante no 24 do STF, forjada a partir do HC 81.611. A hipótese deste trabalho é que o descompasso entre os julgados é movido pela dificuldade de tratar com a conduta objeto de exame; embora por momentos seja possível concluir que sua natureza é fiscal, e a ela podem ser aplicados os institutos de suspensão e extinção de punibilidade, assim como os critérios de insignificância utilizados pela autoridade fazendária para propositura de execução fiscal. Cumpre mencionar que não é possível 44

prover a mesma resposta para as duas diferentes rubricas açambarcadas pelo art. 334 do Código Penal. Este é o objeto do próximo tópico, da pluriofensividade do contrabando. 3. Pluriofensividade do contrabando A questão do bem jurídico é um divisor de águas entre as duas figuras típicas do art. 334 do Código Penal. Enquanto o descaminho pode ser considerado um crime meramente tributário, o mesmo raciocínio não pode ser lançado ao contrabando. A definição contida na própria norma penal de destinar-se o contrabando à repressão de introdução de produtos proibidos no território brasileiro demonstra que há mais em termo de objetividade jurídica do diploma incriminador que a singela tutela da ordem tributária. Em verdade, quando o legislador incrimina o ingresso do produto proibido no país, não pretende apenas proteger a arrecadação que seria afetada pelo internalização, mas também o thelos da vedação em si do produto. Aos poucos as Cortes pátrias vêm reconhecendo que o delito de contrabando afeta mais de um bem jurídico. Eis precedente que ilustra tal movimento: PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO. CIGARROS. CONTRABANDO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. CONCURSO DE AGENTES. FRACIONAMENTO DE TRIBUTOS PARA FINS DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. 1. O Supremo Tribunal Federal pelas suas duas Turmas, recentemente, manifestou-se no sentido de que se a mercadoria importada com tributos iludidos for cigarro estrangeiro ou brasileiro reintroduzido no território nacional, tem-se a figura do contrabando e não descaminho, pois a lesão perpetrada não se restringe ao erário público, mas atinge também outros interesses públicos como a saúde e as atividades econômicas. E, desta forma, é inaplicável o princípio da insignificância, uma vez que não se trata de mera tutela fiscal e a atividade enquadrada neste contexto, em tese, passa a ser típica para efeitos penais. 2. Em caso de delito cometido, em tese, em concurso de agentes, não há falar em fracionamento dos tributos iludidos para a finalidade de aplicação do princípio da bagatela, devendo ser utilizada, para fins de insignificância penal, a somatória dos tributos não recolhidos, nos termos da orientação desta Corte. (Tribunal Regional Federal da 4a Região, Sétima Turma, Apelação criminal no 50026011820104047105, Rel. Luiz Carlos Canalli, j. 29/10/2013, grifo nosso)

Dessume-se do aresto transcrito que, embora haja reconhecimento de outros interesses juridicamente rele­ vantes afetados pela prática delitiva, não há uma inclinação,

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ao menos expressa, para o enquadramento da hipótese fática em modalidades típicas diversas. Talvez, a partir do reconhecimento da afetação de mais de um bem jurídico pela prática do contrabando, fosse possível o reconhecimento do concurso de crimes, em razão da ofensa à, v.g., saúde pública, relações de consumo, livre concorrência, além de administração pública e ordem tributária. 4. Considerações finais Ao longo do tempo, consolidou-se uma jurisprudência obtusa, que não examina globalmente a problemática do contrabando ou descaminho para além dos delitos desenhados no Código Penal de 1940, o que não tem se mostrado suficiente para reprovação e prevenção da constante prática ilegal. Merece especial atenção o fato de que do processo de limitação jurisprudencial advém uma inequívoca consequência, a ausência de uma análise mais aprofundada das ameaças e/ou lesões a outros relevantes bens jurídicos de dignidade constitucional que, por sua vez, também receberam proteção na órbita penal. Disso decorrem os reducionismos contingenciais, que acabam mudando conforme os ventos do caso concreto. Propugna-se uma análise segmentada do delito de contrabando, com diversas peculiaridades em relação ao descaminho, ten-

do em vista a pluriofensividade da espécie, a qual aos poucos vem sendo reconhecida pelos Magistrados. Talvez assim possam ser realizadas investigações mais detalhadas que levem ao oferecimento de denúncias não apenas pela capitulação tradicional, mas também pelos delitos correlatos. Esse movimento pode provocar uma mudança na construção dos julgados das Cortes Federais, eventualmente suplantando o casuísmo que inquina as decisões da matéria atualmente.

Notas Prescreve o art. 334 do Código Penal: “Contrabando ou descaminho Art. 334 Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria: Pena - reclusão, de um a quatro anos.” 2 CORRÊA, Alfredo Pinto de Araujo. O contrabando e seu processo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907; Viveiros de Castro, A.O. O contrabando, Rio de Janeiro: Domingos de Magalhães, 1898. 3 Crimes de contrabando e descaminho, 2. ed., SP: RT, 1988. 4 Neste sentido, vide SCHMIDT, Andrei Zenkner. Exclusão da punibilidade em crimes de sonegação fiscal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 119. 5 ESTELLITA, Heloísa. Contrabando e descaminho. in: REALE JR. Direito penal: jurisprudência em debate. v. 4. Rio de Janeiro: GZ, 2013, p. 170. 1

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E m foco, Carlos Alberto Luppi

Cidadão Público x Cidadão Privado Biografias, eis a questão

Foto: Stock © Andrzej Tokarski

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os poucos, o tema foi se tornando público. Principalmente, a partir de 2005, e, em casos isolados, quando passou a ser discutido de forma circunstancial, nem sempre envolvendo com profundidade o que se pode chamar de debate jurídico-legal. Agora é diferente. Nos últimos dois meses, o assunto se tornou polêmico, motivando contínuos debates entre diversos setores da sociedade, com larga exposição nas mídias de rádio, televisão, jornais, revistas e provocando interpretações acaloradas, emocionais e críticas a torto e a direito. No centro do debate, a Justiça, as leis, a Constituição, o Código Civil. De um lado, o direito à livre expressão das atividades intelectual, artística, científica e de comunicação; do outro, o direito à privacidade. A questão das biografias autorizadas, não autorizadas, submetidas a censura prévia, controladas ou não, está na ordem do dia. E, no meio de tudo, a interpretação que se pode ter ou dar aos artigos do Código Civil e da Constituição Federal. Principalmente, depois que a Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL) entrou no Supremo Tribunal Federal com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) contestando os artigos do Código Civil, e sua prevalência, que têm servido de base jurídica para muitos biografados vetarem biografias não autorizadas, embora em nenhum momento o Código cite, expressamente, a palavra “biografia”. Iniciativa que interessa a diversos setores da sociedade, particularmente à Associação Brasileira de Imprensa, amicus curiae da ação, por considerar que o tema está intimamente ligado à liberdade de imprensa. Na outra ponta deste debate e contra a iniciativa da ANEL, estão artistas de grande expressão na história e na cultura brasileira. Eles se juntaram em um grupo – denominado Procure Saber – e passaram a defender, publicamente, que as biografias só poderiam ser publicadas com autorização do biografado, o que soou como censura prévia, e, ainda, que o biografado teria o direito de receber royalties sobre suas biografias comercializadas. Nos últimos dias, o grupo Procure Saber tentou dizer – em meio a uma controvérsia geral, críticas, mal-entendidos, desmentidos, artigos em jornais e discussões internas que provocaram até mesmo a saída de artistas renomados como o cantor Roberto Carlos – que, em sua opinião, não implica em supressão da liberdade de expressão, embora o direito à privacidade deva ser totalmente respeitado. O fato é que o Procure Saber tenta responder às críticas e se defender afirmando que seu

“O cidadão ‘não público’, aquele que tem uma vida corrente normal e que não aparece em manchetes de jornais, tem direito à privacidade assegurada pelos incisos X, XI e XII do artigo 5o da Lei Suprema. Não o ‘cidadão público’, que busca ou tem naturalmente publicidade, principalmente os políticos. Estes, à evidência, por se tornarem públicos, não têm direito à privacidade, que, aliás, a história não ofertou a nenhuma das pessoas que conformaram a evolução da humanidade. ” principal papel é prestar enorme contribuição para que o assunto esteja, hoje, nos debates público e jurídico. O tema continua controverso e vem despertando manifestações de toda parte, até apaixonadas. Muitos jornalistas e juristas colocam o direito à liberdade de expressão como princípio constitucional inegociável; outros atestam que a privacidade é um direito de todo cidadão, também inviolável – um confronto de opiniões que parece não ter fim. O assunto está em discussão no Supremo Tribunal Federal, onde uma audiência pública, liderada pela Ministra Carmen Lúcia, está sendo convocada e pre­ nuncia muita repercussão. Está também no Congresso Nacional, onde as opiniões são muitas e conflitantes. Chegou até ao Palácio do Planalto, onde a Presidente Dilma Rousseff recebeu parte da classe artística, liderada pelo cantor Roberto Carlos, e ouviu diversas reclamações com relação ao assunto. Está nos meios artístico, jurídico, jornalístico, intelectual, empresarial e cultural. Afinal, na democracia brasileira, jovem e que se pretende moderna, como conciliar os direitos de biografados e de biógrafos, de editores, de herdeiros de personalidades públicas? Como conciliar direitos de professores e especialistas em produzir teses e monografias acadêmicas que versem sobre personalidades e figuras

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Foto: Arquivo JC

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públicas? Como impedir que o direito à privacidade interfira na liberdade de imprensa? Afinal, as biografias, como gênero literário importante para a compreensão de toda e qualquer história, estão submetidas juridicamente a quais leis? E o direito à verdade? Pode uma personalidade pública alçada à condição de “mito” pela opinião pública e pela mídia, estar acima do direito das pessoas em ter conhecimento da verdade? Pode-se mesmo acreditar, como alguns advogados e juristas creem, que o Código Civil, tal como está redigido, atribui mais peso à privacidade e menos à liberdade de expressão? Na essência de toda a controvérsia, a questão maior seria, então, apenas de interpretação, pois os instrumentos legais para regular a questão já existem? Ou, na verdade, como defendem alguns, toda esta discussão é inócua em um mundo globalizado, cada vez mais dominado por redes sociais e facilidades de comunicação e onde tudo se publica sobre todo mundo, o que praticamente coloca em colapso o direito inviolável à privacidade? A verdade é que nada se ouviu ou se debateu sobre um aspecto essencial em toda esta controvérsia: a sensível diferença que existe entre o chamado “cidadão público” e o “cidadão privado” e a interpretação jurídico-legal que permeia seus direitos. Uma questão levantada pelo jurista, professor e acadêmico, Ives Gandra Martins, um dos juristas mais renomados do país, nesta entrevista exclusiva à Revista Justiça & Cidadania. Premiado como “Homem de Visão”, “Cidadão Consciência”, entre outros títulos, e agraciado com os prêmios Dom Quixote e Sancho Pança concedidos por esta revista, Ives Gandra Martins tem mais de 80 livros publicados, outros 289 em coautoria e mais de 3 mil estudos sobre Direito, Economia, Filosofia, Sociologia, Política, História e Literatura. Por suas opiniões, é um jurista respeitado internacionalmente. Indagado sobre o assunto “biografias”, ele foi taxativo em estabelecer diferença entre “cidadão privado” e “cidadão público” e considerou “totalmente desnecessário qualquer projeto de lei que modifique ou altere os artigos 20 e 21 do Código Civil”. Segundo revela, “os artigos não são aplicáveis para aqueles que renunciam à própria privacidade ao se tornarem pessoas públicas”. Afirma ainda que “a convivência entre a livre expressão do pensamento e liberdade de expressão e o direito à inviolabilidade da privacidade é perfeitamente possível”. Ademais, define claramente: “O cidadão não público, aquele que tem uma vida corrente, normal, tem direito à privacidade assegurada pelos incisos X, XI e XII do artigo 5o da Lei Suprema”. Ao contrário do “cidadão público que busca ou tem naturalmente publicidade. Este não tem direito à privacidade, exatamente por se tornar público”.

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O jurista defende o direito do biografado “de participar dos benefícios pecuniários da edição da biografia, pois suas ações é que ofertam a biografia e os resultados financeiros do autor”. E afirma que “não se importaria” que uma biografia fosse feita a seu respeito. “Se fosse verdadeira, não haveria o que esconder. Se falsa, eu ingressaria em juízo com ação de indenização, por danos morais” – conclui. Na íntegra, a seguir, a entrevista exclusiva. Justiça & Cidadania: Não há democracia sem livre expressão do pensamento e liberdade de expressão. E também não há democracia sem preservação dos direitos individuais, entre os quais está “o direito à inviolabilidade da privacidade”. Como conviver com isso no atual momento no Brasil, quando também a sociedade quer ter o direito à verdade? Ives Gandra Martins – A convivência é possível. O cidadão “não público”, aquele que tem uma vida corrente normal e que não aparece em manchetes de jornais, tem direito à privacidade assegurada pelos incisos X, XI e XII do artigo 5o da Lei Suprema. Não o “cidadão público”, que busca ou tem naturalmente publicidade, principalmente os políticos. Estes, à evidência, por se tornarem públicos, não têm direito à privacidade, que, aliás, a história não ofertou a nenhuma das pessoas que conformaram a evolução da humanidade. Nesses casos, a busca da verdade é necessária, podendo, se houver abusos, os descendentes ou a própria pessoa em vida acionar os biógrafos por danos morais, se os fatos narrados forem falsos. JC – No modelo atual, em que diversas biografias têm sido impedidas de serem publicadas ou mesmo de serem escritas – em razão dos artigos do Código Civil em vigor –, não haveria o perigo de censura geral a reportagens, artigos, textos e opiniões? Qualquer cidadão citado em algum texto jornalístico não poderia se sentir no direito de proibir o texto, uma vez que seu nome foi mencionado? E poderia alegar “invasão de sua privacidade”? IGM – O que seria do historiador se só pudesse investigar as biografias autorizadas? No momento que alguém se torna personalidade pública, já não é mais dona de sua imagem. JC – Alguns defensores da validade dos artigos do Código Civil nestes casos – e entre eles estão artistas renomados, que se juntaram em um grupo chamado Procure Saber – tentaram ponderar, em meio a toda a polêmica que o assunto despertou, que, além do direito de vetar a publicação, teriam também o direito, automático, de receber royalties e obter participação 2013 Novembro | Justiça & Cidadania 49


financeira dos autores e editoras nas vendas de suas biografias. O sr. concorda com isso? É mesmo, juridicamente, um direito do biografado? IGM – O direito à privacidade do Código Civil, que comentei em edição comemorativa dos primeiros anos de sua edição, é sempre destinado ao cidadão “privado”, e não àquele que conforma a história. Entendo que tenha o biografado o direito de participar dos benefícios pecuniários da edição, pois suas ações é que ofertam a biografia e os resultados financeiros do autor. Essa matéria deveria ser, portanto, regulamentada. JC – Um projeto em tramitação na Câmara Federal já aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e em análise pelo Senado, autoriza a divulgação de imagens, escritos e informações biográficas de pessoas públicas mesmo sem autorização do biografado ou de seus parentes. Ou seja, revoga os artigos 20 e 21 do Código

Civil, mas ressalta, em sua redação, que isso só pode acontecer em caso “de pessoas cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade”. O que isso, na realidade, significa? Não lhe parece subjetivo demais? Como caracterizar a chamada “dimensão pública”? IGM – A meu ver, não precisaria haver o projeto de lei. Pergunto: todos os fatores, os mais variados, publicados pela imprensa sobre cidadãos públicos precisam de autorização de seu autor? A biografia não é senão uma edição aumentada das notícias jornalísticas. A interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil que tenho é de que não são aplicáveis para aqueles que renunciaram à própria privacidade ao se tornarem personalidades públicas. JC – Nas discussões no Congresso, o deputado Marcos Rogério, de Roraima, já foi contra essa redação,

Será o mito o grande inimigo da verdade? Em 1995, as filhas do jogador Garrincha processaram o jornalista e escritor Ruy Castro, autor da biografia do pai famoso Estrela solitária. O livro foi proibido e depois liberado à venda. Foi preciso um acordo financeiro entre as partes. Em 2007, o cantor Roberto Carlos conseguiu, na Justiça, a sustação da distribuição de sua biografia não autorizada, Roberto Carlos em detalhes, escrita por Paulo César de Araújo, que pesquisou a vida do cantor e chegou a ouvir mais de 200 pessoas. Recentemente, Vilma Guimarães Rosa, filha do escritor João Guimarães Rosa entrou na Justiça buscando proibir a biografia Sinfonia Minas Gerais – A vida e a literatura de Guimarães Rosa, sobre seu pai, escrita por Alaor Barbosa. O juiz Maurício Magnus, ao analisar a questão, não concordou com a pretensão de Vilma e liberou a biografia, argumentando claramente que “é inadmissível que o patrimônio cultural tenha dono”. A viúva e as filhas de Paulo Leminski tentam impedir a republicação de Paulo Leminski, o bandido que sabia latim, biografia do poeta, de autoria do jornalista Toninho Vaz, por não concordarem com detalhes da vida do biografado acrescentados pelo autor a uma nova edição. Lira Neto, pesquisador e historiador, biógrafo de Getúlio Vargas declarou à revista Veja, em sua edição de 23 de outubro de 2003, em matéria assinada por Jerônimo Teixeira, Bruno Méier, Sergio

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Martins e Rinaldo Gama, que pensa em não mais escrever biografias “com receio de sofrer ações por parte de herdeiros de biografados”. Kitty Kelley, autora americana de sucesso com biografias decisivas e não autorizadas, sobre personalidade como a apresentadora Oprah Winfrey, a atriz Elizabeth Taylor, o cantor Frank Sinatra e a ex-primeira dama Jacqueline Bouvier Kennedy, é incisiva em dizer que “os familiares do biografado têm uma tendência natural de apagar o que é real, doloroso ou pouco lisonjeiro da vida dos biografados. Essas eliminações infelizmente privam a história de vida de uma personalidade de sua profundidade”. O autor inglês Jonathan Fenby que escreveu uma biografia sobre o general francês Charles De Gaulle, O General, alega que as sociedades “precisam e têm esse direito, de saber sobre seu passado e o seu presente e as biografias são parte disso”. Reunidos na Alemanha, em 2004, mais de quatro dezenas de autores, historiadores e jornalistas, ao discutir a importância da História na vida das pessoas e das sociedades, chegaram a uma clara conclusão: “é preciso trazer as pessoas de volta para a História, e a biografia é o gênero literário certo para investigar as questões”. Enfatizaram, na verdade, o valor essencial das biografias, o que o grego Plutarco já dizia há quase dois mil anos na biografia Vidas paralelas,

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apresentando recurso sob a argumentação de que o texto está mal elaborado e de que o conceito de “dimensão pública” é relativo. Apresentou também uma emenda, garantindo, segundo ele, que “se ficar caracterizada a invasão de privacidade será possível tirar a obra de circulação”. Isso também não caracterizaria estabelecer no projeto em tramitação no Congresso – que pretende revogar os artigos 20 e 21 do Código Civil – o direito de censurar baseado em um conceito subjetivo, ou seja, uma agressão à liberdade de expressão? IGM – A meu ver, a pessoa que renunciou à privacidade ao querer se tornar conhecida, principalmente artistas e políticos, não podem exercer a censura prévia, cabendolhes sempre o direito à ação de indenização por danos morais, se houver abuso, ou seja, se forem falsos os fatos narrados. Por isto, considero o projeto desnecessário e que nem haveria necessidade de revogação dos artigos

em que contava as aventuras e proezas do rei Alexandre da Macedônia: “Não me pus a escrever histórias, mas vidas somente. E as mais altas e gloriosas proezas nem sempre são aquelas que mostram melhor o vício e a virtude do homem. Ao contrário, muitas vezes uma ligeira coisa, uma palavra ou uma brincadeira põem com mais clareza em evidência o natural das pessoas”. No centro de toda a discussão que envolve a História e o direito das sociedades e indivíduos de terem total conhecimento desta, está sempre em evidência a Verdade. É esse valor essencial ao ser humano que está sujeito a interpretações variadas, de ordem jurídica ou não. Alguns, querem que ela seja mostrada de uma maneira mais próxima da mentira; outros, que ela nunca venha à tona. Há ainda aqueles que querem controlá-la de alguma forma. E ainda há aqueles que consideram que a vida pode muito bem ser levada sem que se precise dela. E que nem tudo precisa ser dito e muito menos revelado. E que os mitos são intocáveis, mesmo que tenham vida pública e suas histórias sejam de interesse geral da sociedade. “O grande inimigo da verdade muitas vezes não é a mentira, deliberada, artificial e desonesta, mas o mito. Este, sim, é persistente, persuasivo e irrealista”, disse, certa vez, um dos personagens mais biografados – sem censura ou autorização prévia – da história do mundo: John Kennedy.

20 e 21 do Código Civil, para mim não aplicáveis às personalidades públicas. A história e a liberdade de expressão seriam duramente atingidas se houvesse censura prévia. JC – Há quem diga, que nessa discussão toda estão “criando pressão como se tudo fosse relativo à liberdade de imprensa, como se o direito de veto à biografia fosse uma agressão à liberdade de imprensa”. Alegam que “essa discussão nada tem a ver com liberdade de imprensa”. Tomam como princípio básico “que não se pode publicar inverdade e, por causa disso, biografia só autorizada”. A imensa maioria da sociedade não tem o direito de conhecer a vida de pessoas que a ela estão ligadas em seu dia a dia ou no curso da história? Afinal, em sua opinião, esse assunto tem ou não a ver com liberdade de imprensa? IGM – A questão tem a ver com a liberdade de imprensa e a verdade histórica. Conhecer a vida de um político ou de um artista é fundamental, pois o primeiro representará o povo, e o segundo, por seu estilo de vida, pode não agradar a muitos, que só o admiraram por não o conhecerem. A verdade histórica, de um lado, e a liberdade de imprensa, de outro, não podem ofertar tal “endeusamento chapabranca” dos cidadãos que se tornaram protagonistas do momento. JC – Privacidade inviolável x liberdade de expressão – essa seria a síntese de toda esta discussão? Como em outros países o direito constitucional conseguiu, promover um necessário “equilíbrio jurídico-legal” em torno desse assunto? IGM – Através de pesadas indenizações todas as vezes em que o narrado não representa a verdade histórica. JC – Afinal, a liberdade de biografar quem quer que seja e a qualquer tempo, pessoa pública ou privada, deve ser tolhida pelo biografado e/ou seus parentes? IGM – A vida de um cidadão “não público” não pode ser narrada por qualquer um, pois a privacidade lhe garante tal direito. Nesse caso, há invasão. Não do “cidadão público”, pois este renunciou à privacidade. JC – O sr. é um jurista renomado, com uma importante história de vida e participação real na história do próprio país, e isso é de grande interesse para a sociedade. Se um escritor quisesse escrever sua biografia, o sr. aceitaria sem qualquer autorização prévia? IGM – Não me importaria. Se fosse verdadeira, não haveria o que esconder. Se falsa, eu ingressaria em juízo com ação de indenização por danos morais.

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O impacto do marketing de venda na região limítrofe entre Barra da Tijuca e Jacarepaguá

Jansen dos Santos Oliveira

Advogado

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Foto: Dani Prates/Fazendo Pose

E

nquanto membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB-RJ, Seccional da Barra da Tijuca, fui convidado para ser relator do presente trabalho, que tem como escopo analisar se há ou não prática abusiva no mercado imobiliário da Barra da Tijuca, notadamente em relação ao marketing de determinados empreendimentos na região da Avenida Abelardo Bueno e adjacências. A controvérsia instala-se na indefinição do bairro em que são erguidas as construções naquela região, pois, a princípio, o que se vê é que a maioria das promoções realizadas pelas construtoras, na forma de “marketing”, anuncia a venda desses empreendimentos como Barra da Tijuca em terrenos que são designados pela Prefeitura do Rio de Janeiro com endereço em outro bairro, por exemplo Jacarepaguá, Curicica. Para uma análise mais acurada sobre o tema, foi necessária a adoção de diligencias que pudessem ampliar nossa visão em relação a questão, abordando aspectos administrativos, fiscais e consumeristas. Para tanto, buscamos junto à Prefeitura do Rio de Janeiro explicações a fim de entendermos o que se passa naquela região. Efetivamente, o que colhemos é que de fato há vários empreendimentos na periferia da Avenida Abelardo Bueno e adjacências que têm a incidência do Imposto Territorial Urbano do Bairro

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de Jacarepaguá. Indagamos à Prefeitura a razão dessa discrepância, haja vista os anúncios publicados pelas construtoras, vendendo esses mesmos empreendimentos como se fossem na Barra da Tijuca. Recebemos uma resposta decisiva do Município, esclarecendo que tais empreendimentos estão compreendidos em Jacarepaguá, razão pela qual o IPTU é cobrado considerando essa região. A par disso, visualizamos um mapa da região da Barra da Tijuca demonstrando o alcance e as delimitações do bairro. Tomamos conhecimento de que o critério estabelecido pelo Município se esmera nas testadas dos terrenos existentes naquela região, explicando que aqueles com testada para Avenida Abelardo Bueno tem endereço na Barra da Tijuca sendo os demais em Jacarepaguá, como se pode aferir pela ilustração abaixo. Frisamos que Condomínio RIO 2, por exemplo, possui prédios (cuja testada dá para Avenida Abelardo Bueno) localizados, pela Prefeitura, na Barra da Tijuca e outros prédios (cuja testada não dá para Avenida Abelardo Bueno) deste mesmo condomínio, localizados em Jacarepaguá, recebendo, inclusive, IPTU correspondente ao Bairro. De posse dessas informações, nos preocupamos em ouvir algumas das principais construtoras que comercia-

lizam naquela região, notadamente a Carvalho Hosken S.A, RJZ Cyrela. Pelo relato das referidas representantes jurídicas, ouvimos a confirmação de que o marketing de tais empreendimentos está voltado para o bairro da Barra da Tijuca e que apesar de admitirem que a localização efetiva dos terrenos refere-se a Jacarepaguá, não veem prejuízo ao consumidor em razão da propaganda direcionar o imóvel para o Bairro da Tijuca. Diante dessas explicações, tanto por parte da Prefeitura, quanto pelas construtoras, passamos a abordar os aspectos jurídicos sobre o tema, ainda que de forma concisa. Quando examinamos a Lei 8.078 de 11.9.1990, nos deparamos logo em seu artigo 4o com a preocupação do legislador em proteger a dignidade do consumidor, cuidar da sua segurança nas relações comerciais e garantir “os seus interesses econômicos, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo”, pois é direito básico do consumidor “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou

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desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços”. Neste diapasão, forçamo-nos a analisar se a prática do mercado imobiliário em anunciar as vendas de seus empreendimentos na região da Avenida Abelardo Bueno e adjacências está em desacordo com o que prescreve o supracitado diploma legal. Claramente, buscamos esclarecer se ao anunciar um terreno existente em Jacarepaguá como localizado na Barra da Tijuca o consumidor sofre lesão ao seu direito de informação; se tal prática fere a sua dignidade e se a referida publicidade tem o cunho de enganar o consumidor. Mas, antes disso, antes mesmo de concluir tal enten­ dimento, pretendemos demonstrar que se tal prática não lesa o direito do consumidor de forma direta, fere de forma indireta, senão vejamos. Um dos argumentos apresentados pelas construtoras a favor da publicidade dos empreendimentos como Barra da Tijuca é que o consumidor ao adquirir mencionado imóvel, absorve status de morador da Barra da Tijuca, pagando IPTU pela alíquota de Jacarepaguá, que é bem menor que a alíquota da Barra da Tijuca. Acontece que, em sendo assim, admitindo-se que esse procedimento confere realmente um “benefício” ao consumidor, nos deparamos com uma situação preocupante sob o ponto de vista fiscal. É que percebemos uma fresta de irregularidade quando imóveis em regiões limítrofes têm arrecadação díspares enquanto são comercializados de formas diferentes, ainda que com localização idêntica. Nesse caso, o Município estaria arrecadando menos, de forma injustificada, pois se o imóvel é comercializado como Barra da Tijuca deve ter alíquota referente a esse bairro. Em última análise, o próprio consumidor estaria sendo lesado enquanto cidadão. Como efeito, retornando à questão consumerista, como dissemos, as construtoras sustentam que apesar de cientes de que a propaganda aponta para Barra da Tijuca imóveis que têm endereço em Jacarepaguá, não veem prejuízo algum ao consumidor. Argumentam, como já dito, que o fato do cliente-consumidor comprar um imóvel anunciado como da Barra da Tijuca, ainda que seja em Jacarepaguá, lhe traz status e benefício por pagar um IPTU relativo ao bairro residente e não aquele anunciado que teria uma alíquota bem maior. Aduzem, ainda, às construtoras que o valor da venda dos referidos imóveis não sofrem influência por serem anunciados como existentes na Barra da Tijuca, outro motivo que revela ausência de prejuízo ao cliente. Indagados se o fato do produto estar sendo vendido com a marca Barra da Tijuca, em vez de Jacarepaguá ou Curicica influenciaria na decisão de compra desse imóvel, as construtoras rechaçaram essa premissa, atestando que o consumidor 54

compra um produto por sua qualidade e não por estar agregado a um bairro nobre, como Barra da Tijuca. Esvaziam a polêmica demonstrando que o consumidor alvo tem o esclarecimento inerente ao “homem médio” e que o marketing usado não seduz de forma abusiva. Dessa forma, admitimos que o ser humano, em muitas ocasiões, consome em detrimento das suas necessidades básicas, para simplesmente exibir suas qualidades para o seu grupo ou para possíveis parceiros sexuais. É a teoria central, inclusive, do livro de Geofrrey Miller1, Darwin Vai às Compras, onde atesta que o ser humano consome para ostentar. Esse “pendor humano pelo consumo conspícuo alimenta o marketing”2 . Porém daí a admitir que, no caso em tela, o consumidor assume estar comprando um imóvel anunciado como Barra da Tijuca, enquanto é Jacarepaguá, tão somente para satisfazer esses prazeres inerentes à sua existência nos parece um tanto quanto enganoso. Ao contrário do que sustentam as construtoras, a violação ao direito do consumidor é patente. O consumidor merece obter informação clara sobre o produto e ponto. Não há subterfúgios para violar essa regra. Se não há prejuízo financeiro (admitamos), não se pode negar que há um direcionamento lógico, pelo marketing empregado, que induz a compra daquele imóvel anunciado como Barra da Tijuca, pois se assim não fosse ele seria anunciado como Jacarepaguá. Não concordamos com o argumento das construtoras de que o “homem médio” tem condições de discernir sobre os aspectos intrínsecos da propaganda, aferindo tratar-se de publicidade ilusória, enganosa. Há uma linha tênue em que o marketing deve ficar atento, para que em vez de seduzir não se engane. A violação ao direito do consumidor não é só patente, é patética. Afirmamos isso porque o Estado tem o dever de fiscalizar essas práticas que invadem nossas mentes semanalmente pelas páginas dos jornais, pelas mãos dos prepostos das construtoras e através da mídia televisiva. Destarte, de duas uma: ou se coíbe a prática enganosa que vem sendo largamente utilizada pelas construtoras; ou se exige que a Prefeitura reconheça a região como Barra da Tijuca, aplicando a alíquota correspondente ao Bairro.

Notas Geoffrey F. Miller (nascido em 1965, Cincinnati, Ohio ), Professor Associado de Psicologia na Universidade do Novo México , é um americano psicólogo evolucionista. 2 Hélio Schwartsman, na coluna da Folha de São Paulo de 21.3.2012, pag. A2. 1

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Plebiscito para reforma política: algumas reflexões A educação como pilar das reformas e o garantismo constitucional

Cármine Antônio Savino Filho

lebiscito é uma expressão antiga, do tempo dos romanos (plebiscitum), e, naquela época, referiase ao mecanismo utilizado quando se desejava conhecer o pensamento da “PLEBE” (povo), através de seus representantes (hoje: Congresso Nacional), eleitos pela escolha popular, objetivando estabelecer normas para a construção ou reconstrução de uma nação, ficando com a responsabilidade de redigir normas, para dar atendimento às minorias: era a democracia direta. A pretendida reforma política refere-se a uma reorganização da polis, in caso: NAÇÃO. Necessário se faz entender as forças vitais da sociedade, como, por exemplo, saúde, educação, trabalho, habitação, saneamento básico, ecologia social, seguranças pública e nacional, economia, sistemas carcerário, rodoviário, hidroviário, meio ambiente, entre outras. Como pretender tantas reformas, ouvindo diretamente o povo, sem que este conheça o tema a ser votado. Qual a pauta a ser preenchida na construção ou reestruturação social do país? Democracia é dar atendimento a cada um que habita uma nação. Democracia é o direito das minorias, tendo o indivíduo como centro: sustentabilidade para todos. Quem deseja estar à frente de uma administração pública terá de possuir a visão permanente a respeito da execução de ações, objetivando ser o indivíduo centro (visão-temporal) na constituição de missão (atemporal).

Foto: Arquivo pessoal

P

Desembargador aposentado do TJERJ

Na essência, o gestor, o administrador público, não é simplesmente uma pessoa com poder, mas sim uma personagem, um ator que exerce o poder do Estado na realização de suas políticas públicas. Aprendi, como estagiário da Escola Superior de Guerra, na ocasião sob o comando do General OSWALDO MUNIZ OLIVA, a distinção entre crescimento e desenvol­vimento.

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“As discussões sobre a educação no Brasil quase sempre seguem as veredas de seus problemas estruturais e perdem-se em tecnicismos, aliás importantes, mas não prioritários, tais como: a qualificação profissional dos educadores, a sua baixa remuneração, a ausência de recursos instrucionais modernos, o uso de processos didáticos e pedagógicos já ultrapassados.”

Há várias forças vitais em uma sociedade, como, por exemplo, a educação. Se as ações são direcionadas apenas para a educação, estaremos diante do crescimento de uma força e do não desenvolvimento de todas as forças. Para o desenvolvimento, é necessário cuidar, com relativa harmonia, de todas as forças vitais da sociedade. Dessa forma, crescimento é a ação de dar atenção à apenas uma força vital. DESENVOLVIMENTO é o enfrentamento direcionado para o crescimento de todas as forças vitais: para o todo, e não a parte. Para o desenvolvimento nacional, o fundamental é direcionar ações na construção das forças vitais da sociedade: saúde, educação, trabalho, habitação seguranças pública e nacional, saneamento básico, entre outras, essenciais para a sustentabilidade do país como um todo, assim como dos estados e dos municípios. O Administrador não pode ter uma visão específica, mas, sim, uma visão dialética, analítica, sistêmica de suas ações como um todo, e não como se fosse resolver apenas uma questão. O importante é o conjunto das ações. Não se pode administrar apenas para alguns grupos sociais, mas deve-se, ao contrário, direcionar projetos e ações para as minorias, tendo o indivíduo como centro destes. Disse um biólogo marinho que para identificar nosso planeta seria necessário conhecer todos os nossos mares e oceanos, ingressando nos mesmos apenas na dimensão de um palmo. O conhecimento necessita da compreensão do todo, e não de uma parte. 56

É evidente que a educação é o pilar do desenvolvimento. Entretanto, resta saber: qual educação queremos? A educação de sala de aula para preparar os alunos para provas e concursos? Aqui, o importante será refletir mais profundamente sobre a educação. Não! Educação para o social. As discussões sobre a educação no Brasil quase sempre seguem as veredas de seus problemas estruturais e perdemse em tecnicismos, aliás importantes, mas não prioritários, tais como: a qualificação profissional dos educadores, a sua baixa remuneração, a ausência de recursos instrucionais modernos, o uso de processos didáticos e pedagógicos já ultrapassados. Para nós, essas são questões menores, como também menores são as discussões sobre surradas dicotomias: ensino público X ensino privado, ensino religioso X ensino laico, prevalência do primeiro grau sobre o segundo. Mesmo o ensino universitário, para alguns de 3o grau, não consegue cumprir todas as etapas de seu clássico papel de ensino, de pesquisa e de extensão. Mas a discussão destas questões – meramente operacionais e, portanto, simples consequências de decisões mais amplas – faz lembrar a preocupação com as doenças e não com o doente. As doenças da Educação revelam algo mais sério, mostram um grande, um imenso doente – a nação. Educação é conduzir, guiar. Mas para onde? Foi Lewis Carrol, em um diálogo entre Alice e o Coelho no País das Maravilhas, que lembrou: “Quando não se sabe para onde ir, qualquer caminho serve”. A grande e perturbadora questão é que a Educação não sabe para onde ir, porque a própria nação, de resto, não sabe para onde se guiar. Falta-lhe um projeto de construção de si mesma e, por consequência, um projeto educacional adequado à sua formação. Ou seja, sem um claro projeto de construção nacional, qualquer caminho que a Educação venha a trilhar é igualmente bom e mau, aleatoriamente; levará a qualquer parte e, portanto, a parte nenhuma. É exatamente aí que a questão se torna complexa. Um projeto educacional pode ser o condutor do projeto de construção nacional. E que projeto é este? Que tipo de sociedade queremos construir? Quais os valores éticos sobre os quais estabeleceremos as raízes de nossa cidadania? Qual a simbiose e em que proporção cultuaremos as imposições do progresso e da tecnologia em face das aspirações humanísticas, da vocação da paz, do relacionamento do homem com a terra, da convivência com os povos, dos valores supranacionais? Afinal, aonde queremos chegar? A partir daí, saberemos que caminho tomar: as questões de política educacional e de sua operacionalidade (até mesmo as verbas orçamentárias e sua destinação) serão mera decorrência desta discussão maior.

Justiça & Cidadania | Novembro 2013


Segundo Gustavo Ioschpe, em seu livro O que o Brasil quer ser quando crescer: (...) Há uma crise profunda em nosso sistema educacional, tanto público quanto privado, e sua solução é indispensável para que o país desenvolva-se. A criação de políticas públicas para a resolução desses problemas precisa vir amparada pelo conhecimento formal; há décadas de pesquisas empíricas sobre o que funciona e o que é irrelevante, e a discussão que ignora esse conhecimento em favor de opiniões ou experiências pessoais já nasce seriamente comprometida. (...) Fui conhecer o sistema educacional da China, especialmente da província de Xangai, que acabara de ter o melhor desempenho educacional do mundo no Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), o mais respeitado teste de qualidade de educação. O que a China faz de mais admirável é engajar toda a sua população na busca pela excelência educacional. Os profissionais da educação chineses são muito comprometidos, mas não só eles: pais e alunos também sabem que precisam dar muito duro se quiserem ter sucesso em um país que almeja ser uma potência. A China fascina porque lá a educação é uma questão nacional – nem estatal nem das corporações, mas de todos os chineses. (...) O mais triste não é virmos em um caminho errado. É querermos aprofundar ainda mais o desacerto.

(...) Nos países em que a educação dá certo, o consenso social acerca de sua importância substitui a legislação. No Brasil, temos a ilusão de que a legislação substitui o consenso. As consequências estão aí. Enquanto não trocarmos o discurso de cifras e lei pelo de trabalho e resultados, estaremos apenas jogando mais e mais recursos em um sistema roto e incompetente, que vem produzindo ignorância, pobreza e atraso.

“A educação não é preparação para a vida. É a vida. A educação fenômeno social. Educação é um processo, não um resultado. A vida social se perpetua por intermédio da educação.” (John Dewey, Vida e educação). A atividade educativa não se processa no vácuo. Toda educação é social: nesta relação entre o indivíduo e a sociedade. Como fazer um plebiscito para ouvir o povo sobre questões tão complexas e fundamentais? Parece-me que o correto seria ter gestores que pensassem e executassem essas reformas, na reconstrução da nação. A razão é essencial na reflexão sobre as necessidades da “plebe”, quando as forças vitais da sociedade poderão evidenciar a democracia, onde o indivíduo seja o sujeito desse novo tempo, a possibilitar a sustentabilidade de todos que vivem em uma sociedade, evidenciando a garantia constitucional de todos.

Foto: ideiademarketing.com.br

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Mídia ninja: um novo momento do jornalismo “Na era da informação, as comunidades de representantes da sociedade civil têm seus ‘portavozes’ nos instrumentos da mídia que, amparada nos mais potentes recursos tecnológicos, transmite os sinais de expressão cultural e de opinião pública. A topologia definida por redes determina que a distância entre dois pontos (ou posições sociais) é menor se ambos os pontos forem nós de uma mesma rede.” [Manuel Castells, 2002].

Da Redação, por Ada Caperuto

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Mídia Ninja – sigla para Narrativas Indepen­ dentes, Jornalismo e Ação – pode ser considerada um fenômeno midiático por adotar um modelo de cobertura jornalística alternativo, em tempo real, sem cortes, sem censura e, principalmente, independente. Sua proposta é ser combativa, tal como os agentes secretos do Japão feudal, mas não exatamente igual, já que estes prestavam contas aos seus contratantes. A Mídia Ninja ganhou destaque a partir de junho deste ano, com a cobertura das manifestações populares que dominaram as cidades de todo o País, levando milhões de pessoas às ruas em busca de solução para as muitas mazelas sociais. Portando câmeras simples – muitas vezes de aparelhos smartphones –, notebooks e conexão 4G, os Ninjas, em geral uma equipe composta por fotógrafo, redator e cinegrafista, fazem a cobertura dos eventos e publicam em sua página na rede social Facebook, que registrava 213 mil seguidores em 30 de setembro último. Destemidos – e apoiados pela imensa maioria dos manifestantes – os Ninjas correm riscos, como ocorreu com Filipe Peçanha, o Carioca, que foi detido pela Polícia Militar em uma manifestação realizada em 22 de julho, enquanto cobria o protesto nos arredores do Palácio Guanabara. Embora tenha sido libertado horas mais tarde, o episódio foi marcante e nos coloca diante da perspectiva de que, talvez, estejamos vivendo o momento que citou o estudioso Phillip Meyer, autor do célebre “Os jornais podem desaparecer?”. 58

Disse ele, ainda em 2009: “A Internet criou um sistema de múltiplas etapas e o problema agora não é mais de fluxo, mas sim de credibilidade. A presença comunitária dos jornais, depois de ser menosprezada durante várias décadas, é hoje considerada uma questão estratégica e que de alguma forma ressuscita a proposta de jornalismo cívico”. Nesta entrevista, o fotógrafo paulista Rafael Vilella, 24 anos, ex-estudante de design gráfico e um dos criadores da Mídia Ninja, fala um pouco mais sobre as origens e propostas deste projeto que existe há menos de um ano, como parte do Coletivo Fora do Eixo (FdE), rede criada em 2006 para organizar circuitos de música e impulsionar artistas independentes longe do eixo Rio-São Paulo. Por trás da fundação do FdE está o produtor cultural Pablo Capilé, e o jornalista Bruno Torturra – os dois principais porta-vozes da iniciativa. De acordo com o perfil em sua página do Facebook, o FdE começou com uma parceria entre produtores das cidades de Cuiabá (MT), Rio Branco (AC), Uberlândia (MG) e Londrina (PR), que queriam estimular a circulação de bandas, o intercâmbio de tecnologia de produção e o escoamento de produtos nesta rota desde então batizada de «Circuito Fora do Eixo». Hoje, o FdE está presente em 25, das 27 unidades federativas do Brasil, em mais de 200 coletivos. Quanto à Mídia Ninja, sua origem está na cobertura ao vivo da Marcha da Liberdade, realizada em São Paulo, a 28 de maio de 2011. A experiência resultou no lançamento de um canal de transmissão de debates na internet chamado PósTV, mantido por integrantes do coletivo Fora do Eixo.

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Ilutração: Mídia Ninja / ©Andrzej Wilusz - Fotolia.com

Justiça & Cidadania – Qual é sua atuação dentro da Mídia Ninja? Rafael Vilella – Minha função dentro da Mídia Ninja está ligada à fotografia. Sou fotógrafo e estou no Fora do Eixo há três anos.

JC – Qual a principal proposta da Mídia Ninja? O objetivo é ser um canal independente da mídia oficial? RV – Com certeza, porém mais do que isso é ser um canal que tenha um sistema de financiamento que independa de qualquer organização política, que consiga não estar atrelado a nada, a não ter nenhuma amarra, que seja diferente dos grandes veículos. Essa independência tem muito mais um viés político e financeiro, em relação a grupos que poderiam influenciar ou delimitar um processo de comunicação. Isso não significa que a gente não acredite em algo, que não tenha organizações parceiras e movimentos que entendemos ter uma visão de mundo muito parecida com a nossa, e que nos ajudam a estruturar essa narrativa.

JC – Desde quando vocês atuam como mídia independente? RV – O Fora do Eixo tem sete anos, mas a Mídia Ninja começou este ano, como fruto de uma experiência de comunicação social que já tem uns dois anos. O Fora do Eixo foi como uma incubadora de iniciativas de novas redes e, a partir desse acúmulo que tem de tecnologias sociais e de estrutura física, consegue gerar novas ideias e alternativas. Eles já bebem muito nessa fonte, nessa nova forma de entender política e sustentabilidade em rede. Então, a Mídia Ninja é uma rede nova, mas se você pegar os núcleos mais bem estabelecidos, como o do Rio de Janeiro, você verá que há 30 pessoas trabalhando no Ninja e três no Fora do Eixo. É um processo de autonomia e empoderamento local mesmo.

JC – Quantos coletivos existem hoje no Brasil, onde estão localizados e quantos colaboradores atuam diretamente na Mídia Ninja? RV – Temos um escopo de avaliação muito amplo, porque a cada dia recebemos 200 ou 300 emails de pessoas querendo ser Mídia Ninja em seus locais. E isso, dentro de uma lógica de rede, aberta, onde qualquer um pode ser um Mídia Ninja, independentemente de qualquer tipo de autorização ou contrato, faz com que a gente estime algo em torno de duas mil pessoas conectadas, mas é um número que cresce. Na página, [do Facebook, até então a Mídia Ninja ainda não tinha concluído seu site na web] hoje são 200 mil seguindo. Esses números são difíceis de ser avaliados de uma maneira exata, porque estamos falando de um processo de rede, de colaboração. Agora,

Críticas existem a este novo modo de fazer jornalismo, como também aos modelos tradicionais. Cabe à sociedade analisar as propostas, erros, acertos, ganhos e perdas de cada um dos modelos para escolher qual deles deve prevalecer como seu porta-voz – ou mesmo se podem ser complementares, o que talvez seja o ideal. Sorte nossa! Poder escolher é exatamente a mágica que chegou com a moderna tecnologia, que torna tudo imediato, acessível e transparente.

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no núcleo durável da Mídia Ninja, são aproximadamente 50 pessoas nas redações, trabalhando 24 horas por dia com isso, em todas as regiões. JC – É correta a informação de que o FdE se mantém com recursos obtidos do apoio a projetos culturais, em editais públicos? Como se manter independente se há este vínculo? RV – Nenhum produtor cultural que passe em um edital público aberto e divulgado amplamente nos meios de comunicação perde sua autonomia de gestão e dissidência da manutenção desse dinheiro para aplicar em seus projetos. Então, defendemos publicamente que, cada vez mais, exista mais verba pública disponível para comunicação e cultura em termos claros, em editais abertos, dos quais todos possam participar. Em momento algum tivemos qualquer tipo de contrato de financiamentos com governos. Participamos de editais com projetos nossos, que por terem qualidade e terem sido mais bem avaliados que outros, permitiram que recebêssemos o financiamento para executá-los. Em momento algum estamos recebendo financiamento para existir ou para fazer algo que alguém nos pediu. É uma diferença muito clara. JC – Então como funciona a estrutura toda do FdE e da Mídia Ninja? O capital para operar a Mídia Ninja tem origem nessa verba de editais públicos? RV – Não. Temos outro sistema de financiamento. Em primeiro lugar, esses editais, em termos percentuais, são a menor parte dentro do financiamento todo que o FdE tem. Ou seja, ele não depende desses editais e a Mídia Ninja muito menos. O que financia de fato a rede FdE é a sistematização e a troca de serviços que estabelecemos a partir de um modelo de economia solidária. Temos moedas complementares, um sistema de economia muito amplo que está conectado a esses 200 coletivos, que gera a sustentabilidade a partir de arranjos produtivos locais, onde cada coletivo se conecta com um parceiro, tem suas fontes de renda próprias, os seus festivais que geram renda para a rede, que essa lógica do circuito cultural financia. Assim, o circuito cultural organizado financia um movimento como a Mídia Ninja. Não é a verba do governo que tem uma cota reservada para a Mídia Ninja, mesmo porque seria impossível. A verba que recebemos de editais deve ser aplicada em determinadas coisas. Para realizar os eventos temos um caixa coletivo, moramos em casas coletivas e somos muito econômicos. O dinheiro que receberíamos de salários, por exemplo, de um produtor cultural de um festival do FdE, vira caixa coletivo que serve para qualquer projeto que está incubado. 60

JC – Qual é, em sua opinião, o potencial das redes sociais, para abalar a estrutura e mudar paradigmas da produção e distribuição da informação? RV – Eu acho que já abalou a estrutura geral da mídia, não tenho dúvidas. Os acontecimentos de junho e, principalmente, a vinda do Papa [Papa Francisco chegou ao Brasil em 22 de julho para uma visita de seis dias], nos trouxeram episódios muito relevantes em relação à capacidade de influência das mídias independentes nos grandes veículos. Eu não acho que, em momento algum, a gente esteja aqui pregando o “novo jornalismo”, mas uma nova forma de fazer jornalismo, que, com certeza, vai pautar as formas tradicionais. JC – Em relação à cobertura das manifestações, o que você destacaria como mais relevante – aquilo que a mídia tradicional costuma chama de “furo de reportagem”? RV – Tivemos a questão do Bruno Teles, que já estava sendo incriminado pela grande mídia como responsável por jogar um coquetel molotov na polícia. Sem qualquer evidência, a Globo comprou a versão oficial do relatório da polícia no final do dia e colocou no Jornal Nacional. Até que os movimentos trouxeram as provas e os vídeos que foram gravados. Isso repercutiu na internet de uma maneira tão forte que eles [a Globo] tiveram que dar um passo atrás no dia seguinte. Usaram um vídeo da Mídia Ninja para conseguir se reconfigurar diante disso. Têm alguns casos isolados que ilustram essa necessidade [de mudança de postura da mídia]. A Globonews agora tem um Ninja em campo também, ela leva um cara com streaming em tempo real nos protestos. Mas a capacidade de a mídia se reconfigurar não é técnica. Eu acho que não é uma questão de metodologia de trabalho, e sim muito mais uma questão política. JC – Qual é, então, o questionamento que deve ser feito em relação aos meios de comunicação? RV – O grande questionamento que fazemos em relação à mídia [tradicional] é sobre o interesse de comunicação que ela tem, sobre a democratização dos meios, sobre a altíssima concentração de poder midiático de alguns grupos que são familiares. Enfim, estes são os debates que devem ser levantados em relação à democratização da imprensa no Brasil e essa suposta liberdade de imprensa. Quem é livre hoje para fazer imprensa? Acho que temos que questionar esses modelos mais do que qualquer coisa. JC – Quais têm sido os resultados do trabalho da Mídia Ninja? Você acredita que estão influenciando a mídia tradicional? RV – Eu não tenho dúvidas de que eles estão sendo pautados e estão tendo que mudar a sua forma de atuação em função dos movimentos sociais, porque eles correm

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sério risco. Existe um processo de queda nessa indústria do jornalismo comercial, que está ligada principalmente a duas leituras. A primeira é uma desestabilização econômica do modelo de negócios deles, que é insustentável para o que está colocado – porque hoje a gente tem a internet e a gente tem novas formas de distribuição e produção colaborativa que desmonetarizam grande parte desse processo – e eles ainda estão no modelo industrial de jornalismo. Você tem um produto jornalístico quase como um carro, você tem uma linha de produção e a venda desse produto. E a gente tem certeza que o jornalismo não pode ser uma indústria, ele tem que ser entendido como um processo cultural acima de tudo, de produção, de compartilhamento e debate de visões de mundo. Então, essa é a crise número um, que é a crise de modelo de negócios, de concepção do quê é o jornalismo. A segunda já é uma crise de credibilidade. Foram anos e anos falando o que quer para quem quer, e eles perderam totalmente a sua credibilidade com o público. Do anarcopunk ao “coxinha” que estavam nas ruas em julho, todo mundo tinha certeza que “Abaixo a Rede Globo” era um lema comum entre as pessoas. Então, temos um momento também de ganho de conscientização da sociedade brasileira em relação a incapacidade e ao interesse desses grande veículos de noticiar as coisas de acordo como elas são. Não estamos pregando uma visão única de como as coisas têm que ser, o que discutimos é essa questão do mosaico de multiparcialidades, na qual existe um maior número de pessoas fazendo comunicação. [Discutimos] que a formação da opinião pública se dê a partir dessas múltiplas fontes e não a partir de um único emissor que dialoga de modo totalitário e unilateral com milhões de pessoas sem nenhum tipo de interação. JC – Os coletivos têm uma determinada estrutura de funcionamento. Marcante é o fato de que ninguém pode/deve sobressair na rede – se entendi corretamente. Como lidar com a natural ambição humana para manter a rede no que ela tem de mais distante dos padrões “industriais” de produção de notícias? RV – Em momento algum o processo coletivo extingue ou diminui a capacidade individual de cada um se destacar ou de se posicionar de maneira autêntica – uma coisa não está contra outra. Há casos e casos de pessoas que estão na Mídia Ninja que viraram celebridades locais, como o Carioca, no Rio de Janeiro. Existem várias lideranças que surgem a partir desse processo, que não são, lógico, âncoras famosos, nem é esse o objetivo, mas que têm a sua legitimidade na construção de um processo de confiança legítimo. Têm muitas pessoas que aparecem em seus determinados meios, tem uma lógica de liderança. Temos que questionar essa lógica, esse mito da horizontalidade

“Pensando no futuro, acho que teremos um ano bem forte em 2014. (...) Acho que a eleição pode trazer um debate superdualístico novamente, mas teremos uma Copa, as pessoas vão estar nas ruas, o ano que vem será uma bomba.”

como ele é colocado às vezes. Precisamos entender a horizontalidade como um objetivo e não como um ponto de partida. Temos desigualdades, diferentes formas de lidar [com o processo de trabalhos], mas é no quanto o processo está interessado em ser aberto e democrático que importa. É nisso que trabalhamos para que aconteça, para que possamos empoderar o maior número de pessoas a fazer isso [produzir notícia]. Estamos nos preparando há muito tempo para o que aconteceu em junho. Não foi à toa que conseguimos estar presentes em pelo menos cem cidades, cobrindo os protestos em tempo real. A gente deu conta de fazer tudo isso porque estávamos nos preparando, então existe um processo de construção que não começou agora, mas que está interessadíssimo em formar o maior número de pessoas para fazer essa rede da maneira mais horizontal possível. JC – Até aonde vocês querem chegar com a rede? Qual a abrangência que ela deverá ter? O que ela deverá ser capaz de fazer? RV – Pensando no futuro, acho que teremos um ano bem forte em 2014. O Rio de Janeiro é a prova viva disso. O Rio não parou, ainda está num processo de ebulição social muito forte. Acho que esse é o paradigma que está aberto e acho que é superinteressante discutirmos isso a fundo, não de uma maneira simplista. Acho que a eleição pode trazer um debate superdualístico novamente, mas teremos uma Copa, as pessoas vão estar nas ruas, o ano que vem será uma bomba.

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A tutela coletiva do consumidor portador de necessidades especiais Claudia Valéria Bastos Fernandes Domingues de Mello

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igualdade entre todos os indivíduos, notadamente como um direito de primeira grandeza, surgiu como princípio jurídico imprescindível nos textos constitucionais imediatamente criados após as revoluções do final do século XVIII, sobretudo, a partir das experiências institucionais pioneiras dos EUA e da França, através das quais construiu-se o conceito de igualdade perante a lei, de forma que esta, genérica e abstrata, deve ser igual para todos, sem qualquer distinção ou privilégio, mas desde que em igualdade de condições. Por conseguinte, através dos tempos, o tema – POR­TADOR DE DEFICIÊNCIA – passou a ser objeto de discussão específica e de determinados questionamentos que o levaram a ser alvo de direitos e garantias constitucionais. No entanto, diariamente, ainda constata-se a absoluta ausência de fiscalização e, mais ainda, de punição para o frequente desrespeito às normas garantidoras dos direitos dos portadores de necessidades especiais, inclusive pelo poder público, sobretudo no que diz respeito à acessibilidade estrito senso, seja nas ruas, nos meios de transportes ou nos estacionamentos públicos e privados. Dessa forma, tomando-se por base um dos fundamentos da República, consubstanciado na dignidade da pessoa humana, bem como no princípio constitucional da isonomia, é que devemos assegurar aos portadores de necessidades especiais o exercício de todo e qualquer direito, porém, dispensando-lhes um tratamento diferenciado, mas jamais discriminatório. Destarte, nesse sentido, após a análise de alguns casos concretos, não há dúvidas de que torna-se cada vez mais necessária a utilização da tutela coletiva do consumidor para a proteção e o cumprimento das regras jurídicas 62

Juíza federal da 4a Vara Federal de São João de Meriti

destinadas aos portadores de deficiência, sobretudo diante da omissão do poder público e da negligência dos fornecedores de bens e serviços ao consumidor. 1. Introdução O presente artigo se propõe à analise da tutela coletiva do consumidor como instrumento jurídico adequado e necessário para a proteção dos direitos e o efetivo cumprimento das normas jurídicas destinadas aos portadores de necessidades especiais. O estudo torna-se relevante na medida em que será demonstrado que, ao mesmo tempo em que o Brasil pode ser considerado um dos países com o maior número de leis voltadas para os portadores de deficiência, continua a ser um país onde essas leis não são cumpridas, onde o desrespeito a essa classe de indivíduos ainda impera, inclusive, por parte do próprio poder público, que é omisso e negligente, sobretudo, no que diz respeito à observância das normas de acessibilidade, requisito essencial para a real e efetiva inclusão dessas pessoas na sociedade. A metodologia utilizada tem como base principal a Constituição Federal, a Lei no 7.853/1989 e o Código de Defesa do Consumidor, que passaram a dar respaldo à atuação do Ministério Público na defesa do direito dos portadores de deficiência, além da citação de casos concretos, notícias e jurisprudências relevantes sobre o tema, nas quais os julgadores foram de acordo com o corpo de texto ora apresentado. Por conseguinte, ter-se-á constatada a imprescindibilidade da tutela jurisdicional coletiva para fazer valer os direitos das pessoas portadoras de deficiência, sobretudo, na condição de consumidores de produtos e serviços.

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Foto: Arquivo Pessoal

2. Desenvolvimento 2.1 O conceito de portador de deficiência ou de necessidades especiais Diferentemente do que pensa a maioria, o portador de deficiência ou de necessidades especiais nada mais é do que uma pessoa que possui limitações, que podem ser de natureza motora e/ou sensorial e/ou cognitiva, por vezes até imperceptíveis e por outras bastante comprometedoras, sem que, no entanto, a desqualifique como um indivíduo, sujeito de direito, em toda e qualquer relação jurídica, por si ou através de representantes legais. Desde os tempos mais remotos, já existiam pessoas portadoras de deficiência. As Escrituras Sagradas, inclusive, relatam vários casos de portadores de deficiência, como, por exemplo, Moisés, que possuía deficiência da fala (Êxodo, 4:10) ou o apóstolo Paulo, que era deficiente físico e ficou cego (Coríntios, 12:7). Além de Ludwig van Beethoven, deficiente auditivo, e Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, deficiente físico. Contudo, por muitos e muitos anos, as pessoas portadoras de deficiência foram marginalizadas, subestimadas e subvalorizadas, e viveram à margem da sociedade que as discriminavam, por mero preconceito, devido à ignorância acerca da questão. Daí se dizer que o preconceito é o filho da ignorância, em virtude do próprio sentido semântico da palavra, já que o pré-conceito é um conceito formado antecipadamente em virtude do desconhecimento do assunto, isto é, da ignorância. Porém, diante das evoluções social e científica, e das ações da Organização das Nações Unidas, das quais o Brasil é signatário, as pessoas portadoras de necessidades especiais passaram a ser, cada vez mais, incluídas no contexto social e jurídico, senão vejamos. Em 9 de dezembro de 1975, a ONU elaborou a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, que diz em seu artigo 3o: “As pessoas deficientes têm o direito inerente de respeito por sua dignidade humana. As pessoas deficientes, qualquer que seja a origem, natureza e gravidade de suas deficiências, têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o que implica, antes de tudo, o direito de desfrutar uma vida decente, tão normal e plena quanto possível”; e em seu artigo 8o: “As pessoas deficientes têm o direito de ter suas necessidades especiais levadas em consideração em todos os estágios de planejamento econômico e social.” Ainda em 3 de dezembro de 1982, a ONU elaborou o Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência, que diz em seu parágrafo 12: “A igualdade de oportunidades é o processo mediante o qual o sistema geral da sociedade – o meio físico e cultural, a habitação, o transporte, os serviços sociais e de saúde, as oportunidades de educação e de trabalho, a vida cultural

e social, inclusive as instalações esportivas e de lazer – torna-se acessível a todos.” Destarte, é certo que sem inclusão é impossível haver igualdade, na medida em que uma sociedade igualitária é aquela em que todos os seres humanos possuem as mesmas possibilidades para desenvolver as suas potencialidades. 2.2 A Constituição Federal – direitos e garantias dos portadores de deficiência A Constituição da República Federativa do Brasil, de 19881, ao contrário das anteriores, foi por demais expressa e inequívoca sobre o tema em questão, não admitindo, em hipótese alguma, qualquer tipo de discriminação, principalmente em relação às pessoas portadoras de deficiências, sobretudo, levando-se em conta o princípio fundamental da isonomia, insculpido no caput do artigo 5o, que, em seu aspecto material, consiste em tratar desigualmente os desiguais, na medida das suas desigualdades. Tanto assim que, a fim de que não pairasse qualquer dúvida a respeito, também, na seara dos direitos sociais, ao dispor sobre os direitos do trabalhador, o artigo 7o da Constituição Federal, em seu inciso XXXI, veda, expressamente, qualquer discriminação ao trabalhador portador de deficiência, seja em relação à atividade que esteja apto a desempenhar, seja em relação ao salário pago pelo exercício de suas funções, bem como estipula a reserva de vagas para cargos públicos (art. 37, VIII). Da mesma forma, no que se refere à assistência social, posto que ressalta o artigo 203 da Carta da República, em seu inciso IV, que as pessoas portadoras de deficiência terão direito à habilitação, à reabilitação e à integração

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“No âmbito das relações de fornecimento de produtos e/ou serviços, somente após o advento do CDC é que a tutela coletiva para proteção dos direitos individuais homogêneos dos consumidores, dentre os quais, os dos portadores de deficiência, mereceu expressa atenção e destaque, como se verá adiante.” no meio social. E, ainda, em seu inciso V, que tais pessoas terão direito a um benefício equivalente a um salário-mínimo, nos termos da lei. Ainda quanto à educação, eis que exige o inciso III do artigo 208 da Constituição Federal o atendimento educacional especializado às pessoas portadoras de deficiências, preferencialmente na rede regular de ensino. Por fim, o artigo 227, em seu parágrafo 1o, inciso II, dispõe sobre a prevenção e o atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial e/ou mental, e, em seu parágrafo 2o, garante o acesso em logradouros e edificações públicas e a fabricação de transporte coletivo para toda e qualquer pessoa portadora de deficiência, leia-se adaptado, conforme expressamente dispõe o artigo 244 da Carta da Republica. 2.3 A Lei no 7.853/1989 Corolário das diversas disposições constitucionais, e visando assegurar o pleno exercício dos direitos individuais e sociais destinados às pessoas portadoras de necessidades especiais, foi editada a Lei no 7.853, de 24/10/19892, regulamentada pelo Decreto no 3.298, de 20/12/19993, que, além de instituir a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – Corde, também instituiu a tutela jurisdicional de interesses coletivos e difusos dessas pessoas, inclusive disciplinando a atuação do Ministério Público na defesa desses interesses. Como nos esclarece Cretela Jr. em seus Comentários à Constituição de 19884: (...) Como toda pessoa, o portador de deficiência (a) transita por logradouros, ruas, jardins, parques e praças, (b) penetra em edifícios, bens públicos de uso especial, como escolas e hospitais públicos e, por fim, (c) utiliza veículos de transporte coletivo como ônibus e metrô. A fim de facilitar o acesso aos mencionados logradouros, edifícios e meios de transportes, serão editadas normas a respeito sobre construção dos dois primeiros – logradouros e edifícios – e 64

de fabricação dos segundos – veículos de transporte – ou, então, determinarão as normas editadas sobre a adaptação do que já existe para o acesso dos deficientes (art. 244).

Portanto, nos termos da Lei no 7.853/89, vale dizer, anteriormente ao advento da Lei no 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor – CDC), já cabia ao Ministério Público o ajuizamento de ações civis públicas destinadas à proteção dos interesses coletivos e difusos das pessoas portadoras de deficiência, seja na área da educação, da saúde, da formação profissional e do trabalho, de recursos humanos ou, ainda, das edificações, garantindo-lhes, dessa forma, as plenas inclusão social e acessibilidade aos serviços públicos e privados. Entretanto, no âmbito das relações de fornecimento de produtos e/ou serviços, somente após o advento do CDC é que a tutela coletiva para proteção dos direitos individuais homogêneos dos consumidores, dentre os quais, os dos portadores de deficiência, mereceu expressa atenção e destaque, como se verá adiante. 2.4 O CDC e a tutela coletiva para defesa dos direitos do consumidor portador de necessidades especiais Devido a diversos fatores, como as evoluções social e tecnológica, os direitos passaram a ser classificados em novas categorias para tornar sistematizado o seu estudo e dar-lhes maior efetividade. Inicialmente, segundo a classificação clássica, os direitos foram ordenados em direitos de primeira, segunda, terceira, quarta e quinta gerações, os quais, entretanto, passaram a ser classificados como direitos de primeira, segunda, terceira, quarta e quinta dimensões, tendo em vista que o termo “geração” poderia sugerir uma ordem de substituição de uns pelos outros, ao contrário do termo “dimensão”. Nesse diapasão, são de primeira dimensão os direitos individuais vinculados à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, tais como o direito à vida e o direito à livre locomoção. Já os direitos de segunda dimensão decorrem do princípio da igualdade, sendo eles direitos positivos, com alcance social, econômico e cultural, como, por exemplo, o direito ao trabalho. Os de terceira dimensão, com fundamento na solidariedade, são os direitos difusos e coletivos, tais como o direito ao meio ambiente e o direito do consumidor. Por fim, os direitos de quarta dimensão são relativos à biotecnologia, à bioética e à regulação da engenharia genética, e os de quinta dimensão, decorrentes da tecnologia da informação, da internet, do ciberespaço e da realidade virtual. Atentos ao escopo do presente trabalho, fixar-nos-emos apenas nos direitos de terceira dimensão, no caso

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específico, os direitos do consumidor, que, diante das suas magnitude e importância, foi alvo de legislação especial. Assim, no que tange aos direitos do consumidor, com o advento da Lei no 8.078 de 1990 – CDC5, a tutela coletiva passou a ser especificamente regulamentada, passandose a admitir, inclusive, a tutela coletiva para a proteção dos direitos individuais homogêneos do consumidor, expressamente prevista no artigo 81 desse diploma legal. A partir de então, para solução dos conflitos inerentes aos consumidores portadores de necessidades especiais, houve a integração, ou a interpretação unitária, entre a legislação específica das relações de consumo, o CDC, e aquela destinada, especialmente, às pessoas portadoras de deficiência, no caso, a Lei no 7.853/89, ou seja, adotou-se o “diálogo das fontes” entre os dois diplomas legais, pois, segundo os ensinamentos da ilustre professora doutora Claudia Lima Marques6: “(...) a doutrina atualizada, porém, está a procura, hoje, mais da harmonia e da coordenação entre as normas do ordenamento jurídico (concebido como sistema) do que da exclusão.” Isto porque, por um lado, a Lei no 7.853/89 já admitia a utilização da ação civil pública para proteção dos direitos coletivos, lato senso, dos portadores de deficiência em algumas áreas, sem que, no entanto, houvesse previsão expressa no tocante às relações de consumo; e, de outro, a Lei no 8.078/90 (CDC) introduziu a tutela coletiva específica do consumidor em geral, dentre os quais encontra-se o consumidor portador de deficiência. Destarte, em havendo uma questão que envolva uma relação jurídica de consumo entre um estudante portador de deficiência e uma escola, por exemplo, que se nega a construir uma rampa para cadeira de rodas, a contenda poderá ser solucionada através de uma ação coletiva para a defesa, no caso, de um direito individual homogêneo, de forma que a tutela coletiva venha a beneficiar todo e qualquer aluno que esteja estudando ou venha a estudar naquela escola. No presente artigo, preferimos enfatizar a necessidade da tutela coletiva que diz respeito às relações de consumo havidas entre os fornecedores do serviço de transporte coletivo adaptado e os indivíduos portadores de deficiência, devido à sua grande importância. Entendemos que o serviço de transporte coletivo decorre do direito fundamental constitucional de ir e vir, do qual é corolário o direito dos portadores de necessidades especiais aos transportes coletivos adaptados, tanto quanto o acesso a logradouros e edificações públicas e também privadas adaptadas, sem os quais não é possível o exercício de outros direitos básicos, tais como o acesso à saúde, à educação, ao trabalho e ao lazer. Nesse sentido, ou seja, de que o direito a transportes coletivos, logradouros e edificações adaptados decorre do direito de ir e vir, a jurisprudência tem se manifestado

de forma progressista, como, por exemplo, o lúcido voto do juiz Renato Lima Charnaux Sertã, relator do recurso de apelação no 993518-4 da 1a Turma Recursal Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro7, de onde se exara a seguinte ementa: VOTO DO RELATOR: CONDOMÍNIO – DIREITO DE IR E VIR – OBRAS PARA PROVER O ACESSO À PESSOA COM DIFICULDADE DE LOCOMOÇÃO – OBRIGATORIEDADE – INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 3o E 10, INCISO IV DA LEI No 4.591/64 – INTERPRETAÇÃO CONSETÂNEA COM O ESPÍRITO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, EM SEUS ARTIGOS 5o, incisos I, XV E XXIII, 227, parágrafo 2o, E 244, caput – CRITÉRIO DA RAZOABILIDADE – RESGATE DA CIDADANIA – SENTENÇA QUE SE REFORMA – HONORÁRIOS DE 10% SOBRE O VALOR DA CAUSA, PELO RECORRENTE VENCIDO.

No entanto, a vida cotidiana e as máximas da experiência nos mostram que, principalmente, o fornecimento de transporte coletivo adaptado é absolutamente precário nos grandes centros urbanos e, praticamente, inexistente nas zonas rurais e no interior do país. Não há um sistema de transporte coletivo plenamente adaptado, seguro, eficaz e de qualidade para os portadores de deficiência, com profissionais capacitados e treinados para atendê-los, sendo certo que, em muitos locais, não há transporte coletivo adaptado algum. Através do conhecimento de casos concretos e/ou de matérias jornalísticas, exemplificamos, a seguir, alguns acontecimentos nos quais houve violação do direito de um consumidor portador de necessidade especiais por um fornecedor de serviços de transporte coletivo. Por exemplo, o caso de uma menina com tetraparesia (ausência de movimentos voluntários nos membros superiores e inferiores) cuja mãe, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, após tê-la retirado da cadeira de rodas e a carregado no colo, pondo-a sentada dentro de um ônibus, ao sair para pegar a cadeira, foi deixada na rua pelo motorista, que foi embora. Outro episódio, no distrito de Aparecida Pequena, próximo ao município de Sapucaia, no estado do Rio de Janeiro, onde uma menina não pode fazer fisioterapia porque não há transporte coletivo adaptado para levá-la a Sapucaia. Sem dúvida, tais episódios consistem em falha no fornecimento do serviço de transporte coletivo, seja pela precariedade do serviço, seja pela inexistência do serviço específico, que é obrigatório, os quais, objetivamente, causaram danos àqueles consumidores portador de deficiência aqui citados e continuarão causando, aos mesmos ou a outros, principalmente porque o Poder Executivo nada faz, seja para reprimir ou para punir tais infratores, seja na seara administrativa, seja na seara penal ou civil.

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E, por outro lado, a própria condição do portador de necessidades especiais que potencializa a vulnerabilidade e a hipossuficiência desse indivíduo, na qualidade de consumidor, dificilmente o levará a tomar alguma medida judicial contra tamanho desrespeito à dignidade da pessoa humana. Por tais razões, ao nosso ver, para solução do problema com o transporte coletivo adaptado, em todo o país, a utilização da tutela coletiva será muito mais contundente e eficaz, sobretudo, se intentada pelo Ministério Público. Primeiro, porque terá uma abrangência maior, já que, nos termos do artigo 103, inciso I do CDC, a coisa julgada será erga omnes. Segundo, porquanto o efeito coercitivo, inibitório e preventivo será infinitamente superior, pois, de fato, irá compelir as transportadoras a se adequarem à legislação sob pena de pagamento de multa de valor expressivo. Isto porque, diante da omissão do poder público, os fornecedores do serviço de transporte coletivo insistem em não observar as disposições constitucionais e legais destinadas aos portadores de deficiência, sem, no entanto, sofrerem qualquer tipo de reprimenda. Em assim sendo, devemos, como cidadãos, movermonos no sentido de denunciar aos legitimados elencados no artigo 82 do CDC, principalmente, ao Ministério Público, as condutas abusivas e ilegais praticadas pelos fornecedores de serviços em detrimento do consumidor portador de deficiência para que, mediante a utilização da tutela coletiva do consumidor, eles possam, de fato, fazer valer o direito dessa classe tão indefesa. 3. Considerações finais Procurou-se ao longo deste trabalho trazer o conceito de portador de deficiência e demonstrar a evolução das regras a eles destinadas, inclusive aquelas elaboradas pela Organização das Nações Unidas. Enfatizando o princípio constitucional que norteia o tema – a igualdade – e tomando-se por base a superioridade das normas constitucionais, optamos em sistematizar o trabalho e, inicialmente, enumerar as regras especificadas na Constituição Federal destinadas aos portadores de necessidades especiais e, posteriormente, as normas infraconstitucionais delas decorrentes, inclusive, citando doutrina e jurisprudência no sentido de que alguns direitos decorrem de direito individual fundamental da pessoa humana. Demonstrou-se, ainda, ao longo deste artigo que o próprio legislador infraconstitucional, desde então, preocupou-se, em princípio, em admitir a utilização da tutela coletiva para proteção dos direitos difusos e coletivos dos portadores de deficiência, e, posteriormente, dos direitos individuais homogêneos nas relações de consumo, inclusive, naquelas das quais são titulares os portadores de necessidades especiais. 66

Também foram citados casos concretos nos quais, flagrantemente, houve falha no fornecimento do serviço prestado ao consumidor portador de deficiência e que, devido à omissão do poder público e à maior vulnerabilidade e hipossuficiência dessa classe de consumidores, merecem ser amparados através da tutela coletiva, a qual, na verdade, deve possuir, também, um caráter inibitório e preventivo. Com o exposto, conclui-se, dessa forma, que, apesar de possuirmos uma legislação bastante rica sobre a matéria, ela não é eficaz. Em assim sendo, acreditamos que a utilização da tutela coletiva é necessária para que o Poder Judiciário seja mais rigoroso ao determinar o cumprimento das regras destinadas aos consumidores portadores de deficiência, fixando indenizações e multas severas, de fato capazes de servir como reprimenda de conteúdo inibitório e preventivo, para coibir os abusos dos prestadores de serviço de transporte coletivo e fazê-los tratar com dignidade e respeito essa classe de usuários, levando-se em conta o bem jurídico ofendido, as circunstâncias em que esses fatos ocorreram, bem como o perfil socioeconômico do fornecedor.

Referências bibliográficas Bíblia Sagrada Declaração da ONU das Pessoas Deficientes, 1975 Programa de Ação Mundial da ONU para Pessoas com Deficiência, 1982 Constituição Federal da República de 1988 Lei no 7.853/1989 Decreto no 3.298/1999 Lei no 8.078/90 – Código de Defesa e Proteção ao Consumidor BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. CRETELA JR., José. Comentários à Constituição de 1988. 2. ed. Volume VIII, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. ed. Revista dos Tribunais. BENJAMIM, Antonio Herman. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Notas BRASIL. Constituição Federal, 5 de outubro de 1988. Site eletrônico: http://planalto.gov.br. 2 BRASIL. Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989. Site eletrônico: http://planalto.gov.br. 3 BRASIL. Decreto no 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Site eletrônico: http://planalto.gov.br. 4 CRETELA JR., José. Comentários à Constituição de 1988. 2. ed., Volume VIII, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 4.546. 5 BRASIL. Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990. Site eletrônico: http://planalto.gov.br. 6 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. ed. Revista dos Tribunais. 7 BRASIL. TJRJ, Turma Recursal Cível, Apelação 993.518-4. Site eletrônico: http://tjrj.jus.br. 1

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Não residência fiscal – Momento da caracterização Marina Dias Barbosa Vianna

Advogada

O

desenvolvimento das empresas aliado à globalização da economia estreitou as relações mundiais e diminuiu as distâncias existentes entre os países e, consequentemente, entre as pessoas.A facilidade de mobilidade dentro de um grupo empresarial aliado à necessidade das multinacionais em uniformizar sua política empresarial, em promover rodízios de empregados, em repartir experiências, disseminar cultura e práticas, fez com que a mobilidade internacional de empregados dentro de um mesmo grupo econômico se tornasse algo cada vez mais comum e corriqueiro. Essa movimentação, também chamada de expatriação, vem ganhando cada vez mais espaço no cenário empresarial e passou a ser um ponto de atenção nas grandes corporações. O processo de expatriação, além de questões corporativas, também gera diversas consequências na vida do profissional, consequências essas: culturais, sociais, trabalhistas, previdenciárias, imigratórias, tributárias, dentre outras. A presente análise tem como foco as possíveis consequências tributárias advindas da expatriação de um residente fiscal brasileiro para o exterior, principalmente, no que tange a entrega da Declaração de Saída Definitiva. Necessidade de Planejamento de uma Expatriação É importante que o processo de expatriação seja precedido de um planejamento, cuja principal finalidade é identificar as possíveis consequências tributárias decorrentes da expatriação, seja no Brasil, seja no país de destino. Como o expatriado irá, em regra, exercer suas atividades no país de destino, além de estudar as consequências

tributárias de sua expatriação no Brasil, a pessoa física deverá se preocupar também, com as consequências tributárias no exterior. Por esse motivo, é imprescindível que a legislação tributária do país de destino seja estudada previamente, com o objetivo de delimitar as obrigações tributárias do expatriado no país onde será desenvolvida sua atividade.

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“OLHO.”

Em regra geral, a pessoa física residente e domiciliada no Brasil é considerada residente fiscal. A Lei autoriza outras formas de aquisição da residência fiscal no Brasil, como o ingresso em território nacional com o visto permanente2. Porém, a grande questão que se coloca é em relação ao tratamento dado a uma pessoa física brasileira até então residente e domiciliada no Brasil que se retire do país por um, dois, três, quatro, cinco anos. Ela será considerada residente ou não residente para fins fiscais brasileiros?

Da entrega da Declaração de Saída Definitiva do País O art. 16 do Decreto no 3.000/99 (Regulamento do Imposto de Renda – RIR) é a norma que regula a caracterização da não residência fiscal para fins brasileiros e estabelece duas regras: (i) os residentes ou domiciliados no Brasil que se Tendo em vista que a legislação tributária de cada retirem em caráter definitivo do território nacional no curso país possui suas peculiaridades, cada expatriação deve ser de um ano-calendário, além da declaração correspondente analisada de forma casuística. Ademais, a análise combinada aos rendimentos do ano-calendário anterior, ficam sujeitos das legislações tributárias brasileira e do país de destino à apresentação imediata da Declaração de Saída Definitiva permite que seja elaborado um planejamento com vistas a do País; e (ii) os residentes ou domiciliados no Brasil que se evitar que o expatriado seja surpreendido com incidências ausentarem do País sem requerer a Certidão Negativa para tributárias em duplicidade sobre o mesmo rendimento. Saída Definitiva do País terão seus rendimentos tributados Um dos principais critérios que influencia na tributação como residentes no Brasil, durante os primeiros doze meses da renda da pessoa física é a sua caracterização (ou não) de ausência, observado o disposto no §1o, e, a partir do como residente fiscal. décimo terceiro, na forma dos arts. 682 e 684 (ou seja, como não residente – tributação definitiva). Tributação no Brasil – Distinção: Não Residente Fiscal x A Instrução Normativa SRF no 208/2002, com as Residente Fiscal alterações da Instrução Normativa no 1.008/2010, regula­ No Brasil, a distinção entre pessoas residentes e não menta a matéria e estabelece, no art. 3ocombinado com o residentes no território nacional é de importância decisiva art. 2º, o conceito de não residente. Segundo essa Instrução para definir a extensão das respectivas obrigações tributárias. Normativa, a perda da residência fiscal pode ocorrer, Com efeito, enquanto os não residentes, sejam pessoas teoricamente, em dois momentos: (i) quando a pessoa física físicas ou jurídicas, estão apenas sujeitos ao imposto quanto residente no Brasil sair em caráter permanente com a entrega aos rendimentos provenientes de fontes situadas no Brasil, da Comunicação de Saída Definitiva e, posteriormente, estando, assim, sujeitos ao regime da tributação limitada da Declaração de Saída Definitiva; e (ii) quando a pessoa (com base na territorialidade), os residentes são tributáveis física que se ausente do Brasil em caráter temporário, a em função de seu rendimento mundial, quer se trate de partir do dia seguinte àquele em que complete doze meses pessoas físicas ou jurídicas – regime da tributação ilimitada consecutivos e completos de sua ausência. (com base na universalidade da renda – world-wideEm relação à saída em caráter permanente com as income)1. modificações advindas pela Instrução Normativa RFB De acordo com a legislação existente sobre o tema, os no 1.008/2010, a saída permanente restará configurada, residentes fiscais devem fazer a sua Declaração de Imposto com a apresentação da Comunicação de Saída Definitiva de Renda anualmente, sendo tributado de acordo com até fevereiro do ano-calendário subsequente ao ano da a tabela progressiva, cuja alíquota nominal máxima de saída permanente e com a apresentação da Declaração da tributação é de 27,5%, sendo admitidas deduções da base de Saída Definitiva até o último dia do mês de abril do anocálculo do Imposto de Renda. Além disso, os residentes são calendário subsequente ao da saída definitiva. tributados pelos seus rendimentos universais, ou seja, pela Já, caso a pessoa se retire do Brasil em caráter temporário sua renda mundial, quer seja auferida no Brasil, quer seja e permaneça no exterior por um período superior a 12 auferida no exterior. meses consecutivos, a mesma deverá, segundo a norma, Já os não residentes são tributados apenas em relação apresentar a Comunicação de Saída Definitiva a partir à renda oriunda de fonte brasileira (fonte de pagamento), da data da caracterização da condição de nãoresidente em regra geral2, a uma alíquota definitiva de 25%, sem e até o último dia do mês Justiça de fevereiro do ano-calendário possibilidade de qualquer dedução da base de cálculo. 72 & Cidadania | Novembro 2013


subsequente e apresentar a Declaração de Saída Definitiva e da Declaração de Saída Definitiva, e em contrapartida a do País relativa ao período em que tenha permanecido Receita Federal deverá restituir o Imposto de Renda pago na condição de residente no Brasil no ano-calendário da por essa pessoa corrigido, a partir do segundo ano de caracterização da condição de não residente, até o último ausência no Brasil. Logo, não há interesse das autoridades dia útil do mês de abril do ano-calendário subsequente ao fiscais brasileiras em não permitir que uma pessoa física da caracterização. domiciliada e com seu centro de interesses vitais no exterior Com a leitura do disposto acima, pode-se chegar à seja residente fiscal no Brasil. conclusão de que a pessoa física que se ausente do Brasil A primeira leitura da norma pode dar a impressão de em caráter temporário, após decorrido o prazo de 12 meses que a entrega da Declaração de Saída Definitiva é facultativa consecutivos e completos no exterior, será considerada não e de que, não havendo essa entrega, a pessoa física passa à residente no Brasil sem que haja necessidade da entrega da condição de não residente, automaticamente, passados os Comunicação e da Declaração de Saída Definitiva, sendo 12 meses de permanência ininterrupta no exterior, ficando assim, estará sujeita à tributação ordinária (alíquota 27,5 % sujeita nesse caso somente à multa que esse artigo estabelece sendo autorizadas deduções da base de cálculo, se cabíveis) em face do não cumprimento de obrigações acessórias nos primeiros 12 meses de ausência e, a partir do décimo (não entrega da Comunicação e da Declaração de Saída terceiro mês, será tributada como não residente (alíquota de Definitiva). 25% sem direito à deduções da base de cálculo). Todavia, não desposamos desse entendimento, primeiro Por outro lado, existe a possibilidade de a pessoa física porque não há interesse das autoridades fiscais em desconnão entregar a Comunicação e a Declaração de Saída siderarem a residência fiscal brasileira da pessoa física que Definitiva. Caso isso ocorra, de acordo com a Instrução é regida pelo princípio da universalidade e segundo porque o Normativa RFB n 208/2002, artigo 13, será aplicada uma entendemos que a entrega da Comunicação e da Declaramulta no valor de R$ 165,74 (cento e sessenta e cinco reais ção de Saída Definitiva é o momento em que o contribuinte e setenta e quatro centavos) em não havendo imposto manifesta sua intenção (animus) de ser considerado não redevido; caso haja imposto devido, a multa observará os sidente. Caso essa manifestação não ocorra, as autoridades limites mínimo de R$ 165,74 (cento e sessenta e cinco reais fiscais não serão informadas dessa intenção, não podendo e setenta e quatro centavos) e máximo de vinte por cento do de ofício modificar o status da residência fiscal da pessoa valor do imposto devido. física. Todavia, como relatamos anteriormente, o Brasil adota o princípio da universalidade para os residentes fiscais no País Conclusão Sendo assim, caso a pessoa física se retire do Brasil e o da territorialidade para os não residentes. Sendo assim, sem a entrega da Declaração de Saída Definitiva do País, caso uma pessoa física seja residente fiscal no Brasil será irá se sujeitar à tributação ordinária de seus rendimentos aqui tributada pela sua renda mundial incluindo qualquer (auferidos no Brasil e exterior), nos primeiros doze meses, renda recebida no exterior, e caso seja um não residente, à alíquota nominal máxima de 27,5% (admitidas deduções o Brasil só tem competência para tributar aquela renda da base de cálculo), como os demais residentes. A partir oriunda de uma fonte de pagamento no Brasil. do 13o mês, somente com a entrega da Declaração e da Assim, imaginemos que uma pessoa física seja Comunicação de Saída Definitiva, a pessoa física passa a expatriada por um período de 05 (cinco) anos, sem a entrega ser tributada como não residente (tributação definitiva, da Comunicação e da Declaração de Saída Definitiva após cuja alíquota nominal e efetiva é, regra geral, de 25% decorridos doze meses, e que a fonte de pagamento seja incidente sobre os rendimentos auferidos no Brasil), não transferida para o exterior. Imaginemos, ainda, que essa havendo tributação sobre os rendimentos auferidos no pessoa física, que passou cinco anos no exterior e não exterior. Todavia, para que seja adquirida a condição de entregou nem a Comunicação nem a Declaração de Saída não residente fiscal no Brasil, é necessário que o animus Definitiva, apresentou anualmente a sua Declaração de da pessoa física implemente essa condição, que só irá Imposto de Renda, contemplando todos os valores por ela ocorrer efetivamente com a entrega da Comunicação e da percebidos, e pagou o Imposto de Renda corretamente como Declaração de Saída Definitiva. residente no Brasil (renda universal). Qual seria o interesse das autoridades fiscais brasileiras em desconsiderarem a residência fiscal dessa pessoa física? Nota Ao que parece nenhum. Isso porque, considerando a 1 XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 6. ed. hipótese acima, a pessoa deverá pagar uma multa de R$ Rio de Janeiro: Forense,2003, p. 291. 2 165,74 (cento e sessenta e cinco reais e setenta e quatro Há alíquota diferenciada de 15% para ganho de capital e rendimento de aluguel auferidos por não residente fiscal. centavos) em razão da não apresentação da Comunicação 2013 Novembro | Justiça & Cidadania 73


Considerações sobre a eficácia probatória do protesto

Sérgio Shimura

A

Desembargador do TJSP Mestre, Doutor e Livre-Docente pela PUC/SP Professor nos programas de graduação e pós-graduação da PUC/SP e da Escola Paulista da Magistratura

1. Introdução jurisdição consiste na função estatal, exercida preponderantemente pelo Poder Judiciário, de declarar e realizar concretamente a vontade da lei diante de uma situação jurídica controvertida. De outro foco, a jurisdição é manifestação do poder estatal, pela qual o juiz ora conhece do litígio apresentado pela parte lesada, outorgando-lhe a solução prevista em lei (processo de conhecimento), ora dá concretude ao direito já acertado (processo de execução), ora, ainda, assegura preventivamente o direito das partes por meio do processo cautelar ou da antecipação de tutela. Em princípio, a jurisdição é exercício de atividade estatal sobre determinado caso concreto, diante de uma hipótese fática específica, por meio de um processo. Em outras palavras, o processo é instrumento de composição da lide, obtenível pelo exercício da jurisdição. Porém, essa atividade só se apresenta se e quando provocada pela parte interessada. Em regra, sem que a parte apresente expressamente o pedido de uma providência estatal, não se há cogitar de atividade jurisdicional de ofício. A expressão do chamado princípio da inércia. Na normalidade dos casos, o pedido deduzido em juízo deve ter por fundamento algum fato afirmado por aquele que postula a providência jurisdicional. E se o réu se opuser, negando o fato ou alegando outros, impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor, igualmente deve prová-los (art. 326, CPC). 74

Por isso, na peça processual que instaura o processo, o autor deve indicar quais os fatos que envolvem o litígio, bem como o respectivo pedido (art. 282, CPC). Mas não basta alegar. Tem de provar. Na análise do p ­ edido­, é possível separar idealmente dois aspectos: o direito e o fato. Por hipótese, em um pedido de indenização, o fato pode consistir em um acidente de veículo, no protesto de um título de crédito, no defeito de um produto de consumo. E o direito provém da norma legal, abstratamente prevista (art. 927, CC).1 Nessa linha de raciocínio, quando o juiz, na sentença, decide sobre o pedido formulado pela parte, silogiza da seguinte forma: analisa a premissa maior (norma jurídica), constata a premissa menor (fatos) e chega à conclusão (sentença).2 Infere-se, pois, que a atividade probatória versa sobre a situação fática da relação jurídica. Apenas excepcionalmente há necessidade de se provar o direito (conteúdo e vigência, cf. art. 337, CPC; art. 14, LICC).3 No processo trabalhista, interessa lembrar as convenções coletivas de trabalho (arts. 154, 227, § 2o, 444, 462, 611 e ss., Consolidação das Leis do Trabalho) ou convenção internacional (art. 651, § 2o, Consolidação das Leis do Trabalho), que, embora não sejam “leis” no sentido estrito, ostentam verdadeiramente conteúdo de norma jurídica. Prova é todo elemento que pode levar o conhecimento de um fato­a alguém. No processo, significa todo meio destinado a convencer o juízo a respeito da ocorrência de um fato.

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A sua finalidade é demonstrar uma situação fática dentro do processo, reunindo elementos para a convicção do órgão judiciário. Interessa ressaltar que a prova é feita para o processo e, assim, propiciar o convencimento do juízo sobre determinado fato. De conseguinte, ainda que o juiz (pessoa física) já esteja convencido sobre o fato, não pode lastrear a sua decisão em conhecimento próprio e impressão pessoal acerca dos fatos. Deve ensejar a produção da prova para que a mesma se perpetue no processo, inclusive para servir de suporte aos órgãos superiores na verificação do acerto ou do equívoco da sentença. Se o juiz ainda não está convicto sobre o direito afirmado pelo autor, é preciso que oportunize regular instrução probatória, sendo-lhe defeso julgar improcedente por ausência de provas. A exceção a essa regra fica por conta da chamada “máxima de experiência”, conforme dispõe o art. 335, CPC: “Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial”. 2. Objeto da prova A prova envolve fatos, relevantes e controvertidos. Na investigação dos fatos, caberá ao juiz perquirir a respeito do que, quando, onde, quem e como foram os acontecimentos

relevantes à causa. Bem por isso é que o art. 331, § 1o, CPC, determina que o juiz deve fixar os pontos controvertidos sobre os quais serão produzidas as provas. De igual modo, art. 852-D, CLT, dispõe que “O juiz dirigirá o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas, considerado o ônus probatório de cada litigante, podendo limitar ou excluir as que considerar excessivas, impertinentes ou protelatórias, bem como para apreciá-las e dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica” (g/n). Quanto ao fato ocorrido no exterior, o art. 13, Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, estabelece que “A prova dos fatos ocorridos em país estrangeiro rege-se pela lei que nele vigorar, quanto ao ônus e aos meios de produzir-se, não admitindo os tribunais brasileiros provas que a lei brasileira desconheça”. A questão sobre “fatos” e a “respectiva prova” ganha relevo quando se cogita do cabimento dos recursos extraordinários (especial, extraordinário e o de revista), situação que demanda a análise de dois aspectos. O primeiro refere-se à valoração da prova, à admissibilidade legal da prova. Diz respeito ao valor legal da prova, abstratamente considerado. Por hipótese, se a lei federal exige determinado meio de prova, abstratamente considerado, eventual decisão que considere o fato provado por outro meio ofende o Direito Federal, permitindo o recurso especial ao STJ (art. 105, III, CF) ou o de revista ao TST (art. 896, CLT).

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O segundo aspecto concerne à reapreciação da prova. Nesse particular, descabem recursos extraordinários para rediscutir o simples reexame de provas, na esteira das Súmulas 7-STJ (“A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”) e 270-STF (“Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”). Quer dizer, se a lei federal não dispuser sobre o valor probante, em abstrato, de certos meios de provas, não se pode asseverar que o julgado local, apreciando bem ou mal as provas, contraria ou ofende Direito federal. No reexame de provas, pode ocorrer ofensa ao direito subjetivo da parte, mas não contrariedade a Direito federal, abstratamente considerado. De conseguinte, nem o Superior Tribunal de Justiça nem o Tribunal Superior do Trabalho se prestam ao reexame de matéria fática ou reapreciação das provas, sob pena de a instância especial se convolar em ordinária, imiscuindo-se na livre convicção motivada do juiz. 3. Fatos que não dependem do prova Como dito, a prova refere-se a fatos controvertidos e relevantes para a solução da lide. Por consequência, existem fatos que não reclamam a respectiva demonstração. É a dicção do art. 334, CPC: “Não dependem de prova os fatos: I - notórios; II - afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária; III - admitidos, no processo, como incontroversos; IV - em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade”. 3.1. Fato notório É o fato que seja de conhecimento geral ou por determinado estrato social, em determinado local ou região, sobre os quais as partes não têm dúvida. Como ensina João Batista Lopes, mais adequado é afirmar que a notoriedade é um conceito relativo, que depende de circunstâncias de tempo e de lugar. Fatos notórios são, assim, aqueles cuja existência é conhecida geralmente pelos cidadãos de cultura média, no tempo e lugar em que a sentença é proferida.4 Por ilustração, é fato notório que na cidade de São Paulo, o trânsito em determinadas regiões e horários é caótico. Ainda: “é de se assentar que o prejuízo ao erário, na espécie (fracionamento de objeto licitado, com ilegalidade da dispensa de procedimento licitatório), que geraria a lesividade apta a ensejar a nulidade e o ressarcimento ao erário, é “in re ipsa”, na medida em que o Poder Público deixa de, por condutas de administradores, contratar a melhor proposta(no caso, em razão do fracionamento e consequente não-realização da licitação, houve verdadeiro direcionamento da contratação). Além disto, conforme o art. 334, incs. I e IV, CPC, independem de prova os fatos notórios. Ora, evidente que, segundo as regras ordinárias 76

de experiência (ainda mais levando em conta tratar-se, na espécie, de administradores públicos), o direcionamento de licitações, por meio de fracionamento do objeto e dispensa indevida de procedimento de seleção (conforme reconhecido pela origem), levará à contratação de propostas eventualmente superfaturadas (salvo nos casos em que não existem outras partes capazes de oferecerem os mesmos produtos e/ou serviços)”.5 3.2. Fato confessado É a admissão de um fato que prejudica uma parte e beneficia a outra (art. 348, CPC). A confissão exige capacidade da parte e disponibilidade do direito. Não produz efeitos como prova se provier de pessoa incapaz de dispor do direito a que se referem os fatos confessados (art. 213, Código Civil). E, sendo a confissão firmada por um representante, somente é eficaz nos limites em que este pode vincular o representado (parágrafo único do art. 213, CC). Em princípio, a confissão é irrevogável, podendo, todavia, ser anulada se decorrente de erro de fato ou de coação (art. 214, CC). Será caso de ação anulatória, se ainda estiver pendente o processo em que foi feita; e, será caso de ação rescisória, se já transitado em julgado a sentença, da qual constitui o único fundamento (art. 352, CPC). Além disso, a confissão não leva necessariamente à decisão desfavorável ao confitente. Por vezes, é preciso contextualizar a confissão com outros fatos ou elementos probatórios, como se infere da Súmula 342-STJ (“No procedimento para aplicação de medida sócio-educativa, é nula a desistência de outras provas em face da confissão do adolescente”); a confissão também não obsta a análise da situação pretérita, à luz da Súmula 286-STJ (“A renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores”). 3.3. Fato incontroverso É o fato não contrariado pela parte (não necessariamente confessado) e desde que a prova seja disponível (arts. 320, III, 366, CPC). Valem como ilustração os seguintes exemplos: o autor diz que o acidente de veículo se deu no dia 19/04/2012, às 14hs, e o réu simplesmente não contesta. Na esfera trabalhista, a incontrovérsia se mostra relevante em alguns aspectos, como a condenação em dobro (art. 467, CLT. Em caso de rescisão do contrato de trabalho, motivada pelo empregador ou pelo empregado, e havendo controvérsia sobre parte da importância dos salários, o primeiro é obrigado a pagar a este, à data do seu comparecimento ao tribunal do trabalho, a parte incontroversa dos mesmos salários, sob pena de ser, quanto a essa parte, condenado a pagá-la em dobro).

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No que concerne à revelia, existe a presunção (relativa) da incontrovérsia dos fatos. Aqui importa remarcar que revelia consiste na falta de defesa do réu, situação em que se presumem verdadeiros os fatos afirmados pelo autor. A revelia resulta de uma situação fática (ausência de defesa), que pode produzir ou não seus efeitos (presunção de veracidade dos fatos invocados pelo autor). Diz o art. 320, CPC, que a revelia não induz o efeito da presunção de veracidade: I - se, havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; II - se o litígio versar sobre direitos indisponíveis; III - se a petição inicial não estiver acompanhada do instrumento público, que a lei considere indispensável à prova do ato. Mas tal presunção é apenas relativa. O juiz pode, ao sentenciar, entender que há carência da ação, que o pedido improcede ou, ainda, mandar produzir provas, em face do princípio do livre convencimento motivado. A propósito, a Súmula 231-STF: “O revel, em processo cível, pode produzir provas, desde que compareça em tempo oportuno”. Por exemplo: “Trata-se de ação de revisão de contrato bancário ajuizada pelos agravantes em face do bancoagravado. Devidamente citado, o banco-agravado deixou transcorrer “in albis” o prazo para oferecer contestação,

restando configurada sua revelia. Ocorre que o Magistrado afastou a presunção de veracidade dos fatos alegados pelos agravantes e determinou a produção de perícia contábil a ser custeada por estes e, ainda, determinou a expedição de ofício ao banco agravado para apresentar quesitos. De acordo com a regra do art. 319, do CPC a ausência de contestação gera a presunção de veracidade dos fatos alegados na inicial. É certo que se trata de presunção “iuris tantum”, cabendo ao magistrado a análise criteriosa de todas as evidências dos autos, podendo inclusive determinar a produção de provas pelo autor. Assim, aplica-se a regra do art. 319 do CPC, que dispõe que a ausência de contestação constitui presunção “iuris tantum”, cabendo ao magistrado a análise criteriosa de todas as evidências dos autos, podendo inclusive determinar a produção de provas pelo autor. Por isso, a lide deve ser analisada levando em consideração que a relação estabelecida entre as partes caracteriza-se como de consumo, conforme entendimento sumulado pelo STJ (Súmula 297) e consolidado pelo STF no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade no 2591. “In casu”, os agravantes juntaram os contratos e extratos das operações impugnadas e indicaram minuciosamente todas as supostas abusividades praticadas pelo banco-agravado. O banco ao deixar de apresentar resposta e documentos que comprovassem a

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pactuação de tais encargos ensejou a presunção de veracidade dos fatos alegados, pois não há nenhum elemento nos autos que a afaste. De rigor, portanto, seja aplicada a presunção de veracidade dos fatos alegados pelos agravantes sendo absolutamente desnecessária a produção de perícia contábil e a intimação do banco para apresentação de quesitos”.6 Ainda: “Reintegração de posse - Imóveis integrantes de empreendimento com vícios de incorporação - Sentença que julgou procedente a ação em relação a 08 das 09 unidades mencionadas na inicial, com base unicamente nos efeitos da revelia - Inadmissibilidade ante a falta de citação de todos os réus, que sequer foram individualizados na inicial - Intempestividade da contestação afastada - Elementos dos autos, ademais, que comprovam haver intensa litigiosidade entre o autor e os compromissários compradores e ocupantes das unidades autônomas do empreendimento - Inépcia da inicial por não individualizar e nem indicar a forma como supostamente se deram as invasões - Extinção com fundamento no art. 267, VI, do CPC - Recurso provido”.7 Mesmo que a contestação seja apresentada a destempo, não é caso de desentranhamento nem da peça defensiva, nem de eventuais documentos juntados, especialmente a procuração outorgada ao advogado, exatamente pelo fato de o réu, ainda que revel, ter direito de participar e intervir em qualquer fase do processo (parágrafo único do art. 322 do CPC). Malgrado a revelia, nada impede que o réu junte documentos a qualquer momento, exigindo apenas a oitiva da parte adversa (art. 398, CPC). 3.4. Fato presumido Fato presumido é o resultado a que se chega sobre uma situação duvidosa a partir de um fato conhecido. É uma forma de raciocínio do juiz, pela qual, de um fato provado, conclui a existência de outro. A respeito, o art. 212, IV, Código Civil, reza que “O ato jurídico pode ser provado mediante presunção”. O art. 334, IV, Código de Processo Civil, edita que “Não dependem de prova os fatos em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade”. Tomamos a expressão “indício” e “presunção” como sinônimas. Ambos encerram um método racional pelo qual, de um fato conhecido e certo, se conclui a ocorrência, pela lógica da causa e efeito, de um outro, que é desconhecido. Em regra, a presunção é relativa (juris tantum), admitindo prova em sentido contrário. Excepcionalmente, a presunção é absoluta (presunção juris et de jure), não cabendo prova em contrário. Verificadas as premissas legais, a lei impõe ao juiz a aceitação do fato como verdadeiro (exemplos: é incapaz o menor de 18 anos, art. 5o, Código Civil; é nulo o negócio jurídico quando celebrado por pessoa absolutamente incapaz, art. 166, 78

Código Civil; o registro da penhora de imóvel no cartório imobiliário gera presunção absoluta de conhecimento por terceiros, art. 659, § 4o, Código de Processo Civil). Exemplificativamente, na jurisprudência, há julgados no sentido de que o uso de imagem sem autorização já leva à presunção de dano moral.8 No mesmo rumo: “Conquanto a relação da magis­ tra­ da dita suspeita e da parte ré em ação popular não seja legalmente definida como parentesco por afinidade (a excepta é cônjuge do tio da parte ré) - em razão do que dispõe o art. 1.595, § 1o, do novo Código Civil -, existe uma presunção inegável de que, em razão dessa condição, haja um relacionamento de amizade entre elas que é suficiente para atrair a aplicação do art. 135, inc. I, do CPC. Veja-se, em primeiro lugar, o que dispõe art. 334, inc. I, da Lei Adjetiva Civil, no sentido de ser dispensada a prova de fato notório. Não custa lembrar a larga divulgação dada pela mídia ao caso da cassação de Jackson Lago, no Maranhão. Nesta ocasião, apreciando exceção de impedimento/suspeição levantada junto ao Tribunal Regional Eleitoral daquele Estado-membro, que correu em paralelo com o processo de cassação do Governador eleito à época, a excepta declarou-se suspeita para apreciar a própria exceção levantada contra si por motivos de foro íntimo. Se era suspeita à época, evidentemente em razão das consequências da cassação (nomeação para o Chefe do Executivo estadual da sobrinha de seu marido) e da divulgação que a imprensa dava ao caso, permanece suspeita aqui, na medida em que a sobrinha de seu marido também será diretamente afetada pelo julgamento da ação popular no âmbito da qual foi oferecida a exceção. Esta conclusão não poderia ser refutada já antes, mas em especial atualmente, em contexto no qual ganha relevância a proteção da confiança legítima criada em face das partes e dos interessados com os atos realizados durante o processo. Ora, existe uma conduta clara por parte da magistrada excepta em determinado sentido e, sem mudança no contexto fático, uma repentina mudança, com adoção de sentido diametralmente oposto. A partir da exteriorização da primeira conduta citada em certo sentido, cria-se uma expectativa merecedora de efetiva proteção pelo direito (na espécie, pelo direito dos impedimentos e das suspeições processuais). Há, no caso, também, e em segundo lugar, a incidência do art. 334, inc. IV, do CPC, porque é despicienda a prova da amizade e permitido a esta Corte Superior valer-se de presunção, animada pelo conhecimento extraído da vida cotidiana, segundo a qual a relação familiar faz pressupor um vínculo de amizade - eis a regra, motivo pelo qual a exceção é que deve ser provada. Obviamente, trata-se de presunção relativa, pois é sabido que, em alguns casos, a relação familiar chega a fomentar a inimizade. Entretanto, esta presunção tem o condão

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de transferir para o magistrado que é por ela desfavorecido o ônus de provar que, no caso, o vínculo de amizade não compromete sua devida imparcialidade - ônus do qual não se livrou a magistrada no presente caso. Além disso, na seara pública, não se pode delimitar os institutos unicamente com base na legislação civil, uma vez que, aqui, o dever de imparcialidade dos magistrados sofre influxos dos princípios da impessoalidade, da moralidade e da eficiência - normas tão caras ao Estado Democrático de Direito. Certamente, embora (i) não esteja caracterizado legalmente um caso de parentesco por afinidade e (ii) exista uma grande controvérsia sobre o espectro de abrangência da impessoalidade, da moralidade e da eficiência, faz parte do núcleo central destes princípios, no âmbito processual, o dever de distanciamento subjetivo do magistrado da causa, que fica comprometido na presente ação. Nessa nova era do Processo Civil, marcada essencialmente pelo domínio das “provas técnicas”, muitas vezes até em detrimento da coisa julgada, não é possível esquecer o papel relevante das presunções no sistema probatório. Como ressaltam Luiz Guilherme Marinoni e Sergio Cruz Arenhart, “criase uma rica doutrina a respeito dessa ‘prova crítica’, capaz de facilitar - em situações particulares - os mecanismos de prova de que se serve a parte para trazer sua pretensão a juízo. É importante notar que as presunções assumem papel relevante nesse campo, prestando-se, por vezes, como uma espécie de ‘redução do módulo de prova’, aplicando técnica de diminuição das exigências legais e judiciais sobre a solidez das provas que seriam necessárias para aceitar um fato como verossímil. Em outras palavras: verificando o legislador ou o juiz que a prova de certo fato [como me parece a prova de amizade, um dilema até para os melhores da poesia e da prosa...] é muito difícil ou especialmente sacrificante, poderá servir-se da ideia de presunção para montar um raciocínio capaz de conduzi-lo à conclusão de sua ocorrência, ela verificação do contexto em que normalmente ele incidiria. Como se vê, esse poderoso instrumento é importante aliado do processo para a prova de fatos de difícil verificação” (A prova, 2009, p. 131/132 - comentários acrescentados). Note-se, por fim, que, conforme consignado pelo Ministério Público Federal em parecer, o adiantamento de razões de mérito da ação popular (pela improcedência do pedido) quando do julgamento da exceção de incompetência, além de frustrar a boa técnica processual, é fato que inegavelmente milita contra, ainda que indiciariamente, o já referido dever de distanciamento do magistrado da causa”.9 Nesse mesmo rumo, a Súmula 435-STJ: “Presumese dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente”.

Citem-se outros posicionamentos já consolidados pelos tribunais superiores acerca do fato presumido: “A simples devolução indevida de cheque caracteriza dano moral” (Súmula 388-STJ); “Caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado” (Súmula 370-STJ). “Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais” (Súmula 403-STJ). “Para a repetição de indébito, nos contratos de abertura de crédito em conta-corrente, não se exige a prova do erro” (Súmula 322-STJ). 3.3.1. Registro da penhora (súmula 375-STJ) Cabe destacar a Súmula 375-STJ, de 30/03/2009, vazada nos seguintes termos: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. Por tal enunciado, a regra é de que a ausência de registro da constrição no registro público ou da prova de má-fé, incide a presunção de boa-fé do adquirente, não se podendo cogitar de fraude à execução. Na esteira dessa súmula, a simples inexistência de qualquer apontamento da execução no registro público gera a presunção de boa-fé do terceiro adquirente. Todavia, é preciso delimitar o seu alcance e o conteúdo. Importa considerar determinadas situações peculiares que refogem à incidência de tal enunciado. Não se pode olvidar de que a prática de mercado e, pois, pelas máximas de experiência, não é normal nem crível que alguém que vá adquirir um imóvel se limite a verificar tão somente no registro público de imóveis se há penhora sobre o bem negociado, sem procurar investigar se há ações pendentes no distribuidor judicial do domicílio do alienante ou da localização do bem, ou ainda se há protestos por falta de pagamento. Aquele que deixa de tomar a mínima cautela de não tirar certidões do domicílio do alienante e da localização do bem viola o dever de diligência, pois a conduta omissiva ofende a boa-fé objetiva (art. 422, CC), que deve nortear todos aqueles que adquirem bens ou obtém garantias.10 Nesse caso, o ônus da prova da inocorrência da fraude será do terceiro adquirente, que está em melhores condições de produzi-la, pois tem a facilidade de verificar a documentação e constar se, eventualmente, há ou não ação pendente, ou ainda se o nome do alienante está ou não no rol dos inadimplentes; e tudo isso de maneira bastante simples, tirando certidão dos distribuidores forenses – cível, execuções fiscais, fazenda estadual e municipal, certidão dos distribuidores forenses, Justiça do Trabalho e Justiça Federal, na comarca ou sessão judiciária do domicílio do alienante e, caso o bem esteja em outra localidade, também na comarca onde o bem está registrado.11

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A praxe comercial moderna recomenda que qualquer adquirente de imóvel obtenha certidão negativa de ônus no registro imobiliário e certidão negativa ou positiva junto aos cartórios dos distribuidores cíveis estadual e federal da comarca em que se situa o bem alienado, onerado ou penhora, e também do domicílio do alienante. Além disso, a Lei no 7.433/85, regulamentada pelo Decreto federal 93.240, de 09/09/1986, exige a extração de certidões de feitos ajuizado para a aquisição de bens imóveis.12 Não se pode esquecer que o art. 593, II, CPC, ainda vige, destacando que “Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens: II - quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência”. O terceiro adquirente tem o ônus de provar que, com a alienação do imóvel, não ficou o devedor reduzido à insolvência, ou demonstrar qualquer outra causa passível de ilidir a presunção de fraude disposta no art. 593, II, do CPC, inclusive a impossibilidade de ter conhecimento da existência da demanda. 13 Outrossim, não se deve perder de vista que a fraude à execução pode ser proclamada, seja em função da má exclusiva do devedor, seja decorrente do conluio entre o devedor e terceiro. É o que sucede, por exemplo, na execução em que o devedor vende um imóvel a terceiro, após regular citação no processo de execução e indicação do bem à penhora, e o comprador não toma as mínimas cautelas na verificação se existem ações pendentes ou protestos no foro do domicílio do vendedor, atendo-se apenas à busca no Cartório de Imóveis. O art. 615-A, Código de Processo Civil, facilita a prova da fraude à execução, ao autorizar que o exequente obtenha certidão do ajuizamento da execução e a averbe no registro público (de imóveis, de veículos ou de outros bens penhoráveis). E pelo § 3o do art. 615-A, CPC, “Presumese em fraude à execução a alienação ou oneração de bens efetuada após a averbação”. Um outro exemplo para demonstrar que o beneficiário nem sempre tem consciência da fraude e da má-fé do devedor alienante se apresenta quando este transfere gratuitamente (doação) seu imóvel aos filhos menores, com o intuito de prejudicar o credor. “A falta de inscrição da penhora no Registro Imobiliário, que se presta para dar publicidade a terceiros, nesse caso, não constitui óbice à configuração da fraude à execução, pois não se tratou de transferência onerosa a terceiros, mas gratuita, aos próprios filhos dos devedores, que eram todos menores à época da doação, não fazendo diferença se conheciam ou não a existência da demanda em curso contra os doadores, seus pais, e da penhora já consumada quando do registro da doação, sendo certo, por outro lado, que os devedores agiram em flagrante desrespeito 80

à constrição. No caso em que o imóvel penhorado, ainda que sem o registro do gravame, foi doado aos filhos menores dos executados, reduzindo os devedores a estado de insolvência, não cabe a aplicação do verbete contido na súmula 375, STJ. É que, nessa hipótese, não há como perquirir-se sobre a ocorrência de má-fé dos adquirentes ou se estes tinham ciência da penhora. Nesse passo, reconhecese objetivamente a fraude à execução, porquanto a má-fé do doador, que se desfez de forma graciosa de imóvel, em detrimento de credores, é o bastante para configurar o ardil previsto no art. 593, II, do CPC”.14 Decretada a fraude à execução e o subsequente retorno do bem ao patrimônio do devedor, este deixa de ter a proteção da impenhorabilidade disposta na Lei n° 8.009/1990, sob pena de prestigiar-se a má-fé do executado em total detrimento do credor. 4. Protesto e finalidade Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida (art. 1o da Lei no 9.492/97). Os serviços relativos ao protesto são de competência exclusiva ao Tabelião de Protesto de Títulos e têm por substrato garantir a autenticidade, publicidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos (arts. 2o e 3o da Lei no 9.492/97). No âmbito do Estado de São Paulo, o protesto sujeitase ainda às Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça, pareceres e provimentos de suas Corregedorias (Geral e Permanente), como o Parecer 076/06 (Proc. CG 864/06). Não se há confundir o protesto extrajudicial, objeto do presente artigo e regulado pela Lei no 9.492/97, com o protesto judicial, regrado pelo art. 867, Código de Processo Civil (“Todo aquele que desejar prevenir responsabilidade, prover a conservação e ressalva de seus direitos ou manifestar qualquer intenção de modo formal, poderá fazer por escrito o seu protesto, em petição dirigida ao juiz, e requerer que do mesmo se intime a quem de direito”). Para a validade do protesto basta a entrega da notificação no estabelecimento do devedor e sua recepção por pessoa identificada (art. 14, Lei no 9.492/97; Súmula 52-TJSP). 5. Princípio da unitariedade Um dos princípios que regem a Lei no 9.492/97 é o da “unitariedade”, significando que há um único protesto – do título ou documento de dívida -, encerrando um único ato comprobatório da inadimplência daquele devedor originário constante no instrumento. Quer dizer, em sendo protestado o título por falta de pagamento, não se permite um “segundo” protesto,

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agora contra os coobrigados (endossantes, sacadores e avalistas), exceto se o primeiro contiver indicação errônea ou omissão de dados. 6. Protesto necessário e facultativo Em princípio, o protesto não é requisito para o ajuizamento de ação judicial, pois a sua finalidade é provar a impontualidade. Portanto, cabe execução independentemente do protesto do título executivo. Excepcionalmente, a lei exige o protesto (protesto necessário) como condição da ação ou como prova indispensável da mora. Nesses casos, o protesto é prova documental insubstituível, não valendo provas orais ou testemunhais. Por exemplo: para o pedido de falência (art. 94, § 3o, Lei no 11.101/2005), caso em que a notificação do protesto, para requerimento de falência da empresa devedora, exige a identificação da pessoa que a recebeu (Súmula 361-STJ). Porém, se tirado o protesto comum por falta de pagamento, não se exige um segundo protesto, específico para fins de falência. Quanto ao pedido de falência, no Tribunal de Justiça de São Paulo, editaram-se os seguintes enunciados: Súmula 41-TJSP: “O protesto comum dispensa o especial para o requerimento de falência”; Súmula 43-TJSP: “No pedido de falência fundado no inadimplemento de obrigação líquida materializada em título, basta a prova da impontualidade, feita mediante o protesto, não sendo exigível a demonstração da insolvência do devedor”; Súmula 50-TJSP: “No pedido de falência com fundamento na execução frustrada ou nos atos de falência não é necessário o protesto do título executivo”. Em relação à duplicata, mercantis ou de prestação de serviços, não se exige protesto para ser executada. Excepciona-se, todavia, a hipótese de duplicata “não aceita”, bem como a relativa ao direito de regresso. Quanto à duplicata não aceita, somente poderá ser protestada, mediante a apresentação de documento que demonstre a efetiva prestação do serviço ou a compra e venda mercantil, acompanhado do comprovante da entrega e recebimento da mercadoria que deu origem ao saque da duplicata. Neste caso, no que toca à duplicata mercantil, permitese que a apresentação dos documentos previstos neste item seja substituída por simples declaração escrita, do portador do título e apresentante, feita sob as penas da lei, assegurando que aqueles documentos originais, ou cópias devidamente autenticadas, que comprovem a causa do saque, a entrega e o recebimento da mercadoria correspondente, sejam mantidos em seu poder, com o compromisso de os exibir a qualquer momento, no lugar em que for determinado, especialmente no caso de sobrevir a sustação judicial do protesto.

Nessa linha, comprovada a prestação dos serviços, mesmo que não aceita, mas protestada, a duplicata é título hábil para instruir pedido de falência (Súmula 248-STJ). Ainda quanto à duplicata, cabe lembrar a questão do direito de regresso. Se o portador não tirar o protesto da duplicata, em forma regular e dentro do prazo da 30 (trinta) dias, contado da data de seu vencimento, perderá o direito de regresso contra os endossantes e respectivos avalistas (art. 13, Lei no 5.474/68). E a execução da duplicata prescreve em um ano quando proposta contra endossante e seus avalistas, contado da data do protesto (art. 18, Lei no 5.474/68). Contrariamente, quanto à cédula de crédito bancário, dispensa-se o protesto para garantia do direito de regresso. O art. 44 da Lei no 10.931/2004 expressa que se aplicam às cédulas de crédito bancário, no que não contrariar o disposto nesta Lei, a legislação cambial, dispensado o protesto para garantir o direito de cobrança contra endossantes, seus avalistas e terceiros garantidores. Também reclama protesto quando o título executivo for contrato de câmbio (art. 75 da Lei no 4.728/65). Nas vendas a crédito com reserva de domínio, a mora do comprador há de ser provada com o protesto do título (art. 1.071, Código de Processo Civil). De igual forma, no que concerne ao contrato de aliena­ ção fiduciária a comprovação da mora é imprescindível à busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, nos termos da Súmula 72-STJ. A prova da mora pode ser feita mediante notificação pelo Oficial de Registro de Títulos e Documentos ou pelo protesto do título (art. 2o, § 2o, Decretolei no 911/69); a notificação destinada a comprovar a mora nas dívidas garantidas por alienação fiduciária dispensa a indicação do valor do débito (Súmula 245-STJ). No que tange ao cheque, para a execução, basta a apresentação, independentemente do protesto. Quer dizer, o portador pode executar o emitente e seu avalista, bem como os endossantes e seus avalistas, se o cheque apresentado em tempo hábil e a recusa de pagamento for comprovada pelo protesto “ou” por declaração do sacado, escrita e datada sobre o cheque, com indicação do dia de apresentação, “ou, ainda”, por declaração escrita e datada por câmara de compensação (art. 47, Lei no 7.357/85). Extrai-se, dessa forma, que o seu protesto é facultativo. 7. Documentos protestáveis Podem ser levados a protesto os títulos e documentos de dívida. Em outras palavras, os documentos devem conter obrigação de pagar quantia líquida, certa e exigível. Dessa forma, são protestáveis os títulos executivos, judiciais ou extrajudiciais, previstos tanto no Código de Processo Civil (arts. 475-N, e 585), como em legislação extravagante.

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Alguns exemplos: termo da ajustamento de conduta (art. 5o, § 6o, Lei no 7.347/85), contrato de aluguel de bem imóvel (art. 585, V, CPC), contrato de participação em grupo de consórcio (art. 10, § 6o, Lei no 11.795/08), duplicata mercantil e de prestação de serviços (art. 13, Lei no 5.474/68), contrato de honorários advocatícios (art. 24, Lei no 8.906/1994), encargos Condominiais (Lei estadual paulista no 13.260/2008), cédula de crédito bancário (art. 28 da Lei no 10.931/2004 e Súmula 14-TJSP), decisão do tribunal de contas de que resulte imputação de débito ou multa (art. 71, § 3o, Constituição Federal), certidão da dívida ativa (art. 585, VII, CPC). Em se tratando de sentença ou decisão judicial que contemple obrigação de pagar quantia líquida, certa e exigível, exige-se trânsito em julgado da decisão, comprovável mediante certidão do juízo. Quando a lei alude a “documentos de dívida”, abre-se a possibilidade de protesto, seja de título executivo, seja de outro documento representativo de dívida líquida, certa e exigível, sem eficácia executiva. Basta pensar em documento particular, assinado apenas pelo devedor, sem a presença de duas testemunhas; ou mesmo o título de crédito atingido prescrição da pretensão executória, como se depreende da Súmula 17TJSP (“A prescrição ou perda de eficácia executiva do título não impede sua remessa a protesto, enquanto disponível a cobrança por outros meios”). Prescrita a via executiva, sobeja ao credor o direito de buscar a satisfação de seu crédito pelas vias ordinárias, por meio de ação de conhecimento, sujeitando-se a partir daí ao prazo prescricional de 5 anos previsto na lei civil (art. 206, § 5o, I, Código Civil). O protesto pode se referir ao não pagamento da integralidade da dívida ou de apenas parte. Quanto ao título de crédito, é possível o protesto de parte da dívida, como sucede, por exemplo, quando há quitação ou remissão parcial da obrigação. Neste caso, cabe ao credor indicar qual o montante que pretende ver protestado. O protesto é causa interruptiva da prescrição (art. 202, Código Civil). Mas, ainda que prescrita a pretensão executiva, é possível o protesto do documento. E o tabelião não tem atribuição para investigar a ocorrência da prescrição ou caducidade (art. 9o, Lei no 9.492/97), podendo, quando muito, analisar eventual irregularidade formal (por ex.: rasuras, ilegibilidade do documento, incompletude do título etc.); por consequência, não se pode cogitar de responsabilização do tabelião se age no estrito cumprimento de suas atribuições. O título ou documento de dívida expressa em moeda estrangeira igualmente são protestáveis, desde que acompanhados de tradução efetuada por tradutor público juramentado (art. 10, Lei no 9.492/97). 82

Pela Súmula 387-STF, a cambial emitida ou aceita com omissões, ou em branco, pode ser completada pelo credor de boa-fé antes da cobrança ou do protesto. Se ajuizada execução do título de crédito sem estar devidamente preenchida, cumpre perquirir se, em sendo extinta por irregularidade do título executivo, poderia o credor, após preencher os claros, repropor a mesma execução. Temos que sim, uma vez que o “mérito” da execução não restou devidamente apreciado, nem julgado; isto é, não houve pronunciamento a respeito da extinção da obrigação pelo pagamento. Porém, já se decidiu que não pode o credor, após o preenchimento dos claros, ajuizar nova execução, restando-lhe tão somente a via ordinária.15 No que tange à duplicata virtual, emitida por meio magnético ou de geração eletrônica, também pode ser protestada, por indicação (art. 13, Lei no 9.492/97), não se exigindo, para o ajuizamento da execução judicial, a exibição do título. Logo, se o boleto bancário que serviu de indicativo para o protesto retratar fielmente os elementos da duplicata virtual, estiver acompanhado do comprovante de entrega das mercadorias ou da prestação dos serviços e não tiver seu aceite justificadamente recusado pelo sacado, poderá suprir a ausência física do título cambiário eletrônico e, em princípio, constituir título executivo extrajudicial. 16 8. Efeitos Além de se constituir prova do inadimplemento, o protesto ainda tem o efeito de interromper a prescrição (art. 202, III, Código Civil), além de fixar o termo inicial da incidência de juros, taxas e atualizações monetárias sobre o valor da obrigação, se não houver prazo assinado (art. 40, Lei no 9.492/97). Sendo solicitada, o cartório de protesto deve fornecer aos órgãos de proteção do crédito, representativas da indústria e do comércio (por ex.: Serasa Experian), certidão diária, em forma de relação, dos protestos tirados e dos cancelamentos efetuados, com a nota de se cuidar de informação reservada, da qual não se poderá dar publicidade pela imprensa, nem mesmo parcialmente (art. 29, Lei no 9.492/97). 9. Protesto indevido Sendo indevido o protesto, cabe ação indenizatória contra o responsável, como sucede, por exemplo, quando o título já está quitado, duplicata sem qualquer lastro, rescisão do negócio, falsidade de assinatura etc. Nessas hipóteses, o dano é presumido (“in re ipsa”), decorrente da própria coisa ou situação fática. Se já há protesto legítimo anterior, discute-se se o segundo – indevido - ensejaria direito à indenização por dano moral. É certo que a Súmula 385-STJ estabelece que “Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando

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preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento”. Todavia, a discussão grassa tanto na doutrina como na jurisprudência, considerando que um único protesto legítimo tornaria todos os subsequentes (ilegítimos) imunes de responsabilização. Por vezes, é possível que a cambial seja levada a protesto por instituição financeira quando lhe é transferido um título de crédito. Aqui cabe distinguir a posição do banco. Se age como proprietário do título e do crédito, por força de endosso translatício, fica responsável pelo protesto indevido, sendo, pois, parte passiva legítima para figurar em eventual ação indenizatória. Por outro lado, quando detém o título de crédito apenas para cobrar a dívida - endosso mandato -, a mera situação de o banco ter recebido o título para cobrança não pode levá-lo à responsabilização por danos morais decorrentes do protesto indevido. No entanto, se houve abuso ou desídia por parte do banco, por exemplo, levando a protesto depois de avisado de que o título já se encontra quitado ou de que o negócio foi desfeito, incide na obrigação de indenizar.17 Igualmente, se o banco recebe o título de crédito como garantia de outra operação (endosso-caução), há de verificar a higidez da cambial e a sua causa; levando-o indevidamente a protesto, deve responder pelos danos. Assim, se a instituição financeira extrapola seus poderes de mandatária ou se descuida de seu dever de verificar a regularidade do título, passa a ser responsável pelo protesto ilegítimo. 10. Certidão Lavrado o protesto, é possível expedição de certidão, que deve abranger o período mínimo dos cinco anos anteriores, contados da data do pedido, salvo quando se referir a protesto específico (art. 27, Lei no 9.492/97). Portanto, diante da dicção legal, não é possível expedição de certidão constando período inferior a cinco anos. Na certidão, não se mencionam os protestos cancelados, exceto a pedido do próprio devedor ou por determinação judicial. 11. Cancelamento O cancelamento do protesto pode ser feito de forma administrativa ou judicial. No plano administrativo, o cancelamento do registro do protesto deve ser solicitado diretamente no Tabelionato de Protesto de Títulos, por qualquer interessado, mediante apresentação do documento protestado, cuja cópia ficará arquivada. Em princípio, cabe ao devedor ou qualquer interessado buscar o cancelamento do protesto, juntando o título ou o documento de dívida protestado. Não sendo possível a apresentação do original do título ou documento de dívida protestado, exige-se a declaração

de anuência, com identificação e firma reconhecida, daquele que figurou no registro de protesto como credor, originário ou por endosso translativo. E na hipótese de protesto em que tenha figurado apresentante por endossomandato, será suficiente a declaração de anuência passada pelo credor endossante (art. 26 e § 1o da Lei no 9.492/97). Sendo devido o protesto, decorrente do exercício regular do direito do credor, e uma vez quitada a dívida, cabe ao devedor dirigir-se ao respectivo tabelionato para efetuar o cancelamento definitivo do protesto lavrado em seu nome. Com efeito, a Lei no 9.492/97 não impõe nem estabelece a quem compete pleitear o cancelamento do protesto; pelo contrário, deixa expresso que tal registro poderá ser solicitado “por qualquer interessado”. De conseguinte, se o próprio devedor não toma a iniciativa de procurar o credor para que entregue o título ou carta de anuência, não se há falar em indenização. Em outro dizer, uma vez quitada a dívida, cabe ao credor fornecer o documento protestado ou a carta de anuência, para que o devedor proceda ao cancelamento. Demonstrada a não entrega de tais documentos, ou evidenciada a demora no seu fornecimento, ensejando a permanência indevida do protesto, então sim, exsurge o dever do credor em indenizar. No plano judicial, o cancelamento do registro do protesto se dá quando fundado em outro motivo que não no pagamento da obrigação. Assim, se o protestado demonstrar em juízo que o protesto foi indevido (por ex.: duplicata simulada, assinatura falsa, desfazimento do negócio etc.), o cancelamento é realizado mediante determinação judicial, pagos os emolumentos devidos ao tabelião. A lei exige o trânsito em julgado. Quando a extinção da obrigação decorrer de processo judicial, o cancelamento do registro do protesto poderá ser solicitado com a apresentação da certidão expedida pelo Juízo processante, com menção do trânsito em julgado, que substituirá o título ou o documento de dívida protestado (art. 26, § 4o, Lei no 9.492/97). Na praxe forense, tem-se formulado pedido de sustação do protesto ou “cancelamento do protesto”, especialmente em sede de cautelar ou antecipação de tutela. Em termos práticos, o “cancelamento” do protesto se revela como sustação da publicidade do protesto, pois, como se infere do texto legal, o efetivo cancelamento só é possível após o trânsito em julgado da decisão. Sendo reconhecido como indevido o protesto, e ordenado judicialmente o seu cancelamento, o prejudicado tem direito à respectiva indenização. Não se cancela o protesto com fundamento apenas na prescrição, uma vez que, como dito, a obrigação subsiste hígida, podendo ser cobrada pela via do processo do conhecimento.18

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Notas 1 . Art. 927, Código Civil. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

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2 Art. 458, CPC. São requisitos essenciais da sentença: I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes Ihe submeterem. 3 Exemplo de prova da vigência do direito. Na adoção internacional (art. 51, § 2o, Estatuto da Criança e Adolescente), “A autoridade judiciária, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá determinar a apresentação do texto pertinente à legislação estrangeira, acompanhado de prova da respectiva vigência”. 4 João Batista Lopes, A prova no direito processual civil, RT, 2000, p. 29, n. 4.2. 5 REsp. 1.280.321 – MG, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, j. 06/03/2012. 6 TJSP, AI 0030623-33.2012.8.26.0000, Rel. Des. J.B. Franco de Godoi, j. 28/03/2012. 7 TJSP, Ap. no 9231664-34.2008.8.26.0000, Rel. Des. Jovino de Sylos, j. 13/03/ 2012. 8 Trata-se de pedido de ação de indenização por danos morais proposta por goleiro que teve sua imagem (foto) vinculada em folder promocional de empresa (fábrica de bolas), utilizando sua imagem para fins comerciais sem sua autorização e ainda em situação depreciativa: “levando um gol”. O pedido foi julgado improcedente nas instâncias ordinárias, ao fundamento de ausência de prova do dano moral sofrido. Prosseguindo a renovação do julgamento em razão do empate, a Turma, por maioria, deu provimento pelo voto mérito da Min. Relatora, de acordo com a jurisprudência assente, segundo a qual a reparação dos danos morais independe da prova desses e considerou que a sociedade empresária que utiliza, sem autorização e para fins econômicos, a imagem de terceiro, como no caso, causa lesão ao direito de imagem da vítima, portanto deve ser compensado. Em voto-vista, o Min. Castro Filho lembrou que o direito à indenização pelo uso indevido da imagem é garantido constitucionalmente e a ofensa se materializa com o simples uso sem autorização, ainda que tal utilização não seja vexatória. Ressaltou-se que, nos autos, houve pedido de condenação em danos materiais, por isso só se apreciaram os danos morais (STJ. REsp. 426.070-CE, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 4/11/2004). 9 REsp. 916.476 – MA, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 11/10/2011. 10 É a lição de William Santos Ferreira, O ônus da prova na fraude à execução: a boa-fé objetiva e as premissas de uma sociedade justa e solidária – Panorama atual das tutelas individual e coletiva: estudos em homenagem ao professor Sérgio Shimura – Coordenação: Alberto Camiña Moreira, Anselmo Prieto Alvarez e Gilberto Gomes Bruschi. São Paulo, Saraiva, p. 756. 11 Gilberto Gomes Bruschi, Questões controvertidas sobre a fraude à execução. Revista Dialética de Direito Processual, n. 73, abril de 2009, p. 71. 12 José Eli Salamacha, Fraude à execução: proteção do credor e do adquirente de boa-fé – Execução Civil: estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro Junior, p. 45. 13 REsp. 655.000-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 23/08/2008. 14 REsp. 1.163.114-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 16/06/2011. 15 REsp. 870.704-SC, Rel. Min.Luis Felipe Salomão, j. 14/6/2011. 16 REsp. 1.024.691-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22/3/2011. 17 Resp. 602.280-RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 2/2/2010 18 REsp. 671.486, Rel. Min. Menezes Direito, j. 8.3.2005

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