Revista Justiça & Cidadania

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Edição 165 • Maio 2014


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Justiรงa & Cidadania | Maio 2014


S umário

8 Combativa e atuante, há 15 anos 5

Carta ao leitor – 15 anos fazendo história

44

A farsa da democracia

6

Editorial – Anarquia, não! Basta!

46

7

15 anos de independência

A licitação de transporte público: um beco sem saída

16

A mulher na política

50

Logística reversa, reciclagem e resíduos pós-consumo

18

A legitimatio ad causam no Mandado de Segurança

54

Dom Quixote – Um brinde às boas práticas

60

Os novos “homens de preto”

62

A suspensão de segurança como instrumento agressor dos tratados internacionais

68

A liberdade de imprensa na visão do STF

23

Cento e onze dias à frente do maior Tribunal de Justiça

24

O constitucionalismo moderno e a sua influência sobre a economia

27

Mulheres, onde estamos?

28

Paternalismo constitucional

70

Sucessão trabalhista

31

Homenagem ao Superior Tribunal de Justiça

72

A modernização do STJ

34

A mobilidade urbana, as cidades e a qualidade de vida que oferecem

75

Ucrânia: a fronteira da fronteira Eurasiana

36

Terrorismo judiciário

78

Insegurança jurídica no campo

38

O nascituro órfão

80

A competência universal em retrocesso na Espanha

40

Em Foco – Violência contra jornalistas

82

Prateleira – Rompendo barreiras


Edição 165 • Maio de 2014 • Capa: Ilustração, Diogo Tomaz

Conselho Editorial Av. Rio Branco, 14 / 18o andar Rio de Janeiro – RJ CEP: 20090-000 Tel./Fax (21) 2240-0429 editorajc@editorajc.com.br www.editorajc.com.br

Bernardo Cabral Presidente

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ISSN 1807-779X

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Brasília Arnaldo Gomes SCN, Q.1 – Bl. E / Sl. 715 Edifício Central Park Brasília – DF CEP: 70711-903 Tel.: (61) 3327-1228/29 Ano II - nº 4 - Outubro 2007

Ives Gandra Martins

Manaus Julio Antonio Lopes Av. André Araújo, 1924-A – Aleixo Manaus – AM CEP: 69060-001 Tel.: (92) 3643-1200

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C arta ao leitor

15 anos fazendo história Orpheu Santos Salles Editor

Tiago Salles Editor-Executivo

Erika Branco Diretora de Redação

Quando publicamos, em maio de 1999, a primeira edição da Revista Justiça & Cidadania, tínhamos um sonho: tornar esse veículo abrangente e democrático, de modo que pudéssemos ecoar as ideias e as reflexões das diferentes vozes ligadas ao Judiciário, sempre em defesa e em prol do seu fortalecimento. Passados 15 anos desde o início da nossa jornada, nosso sentimento maior é de termos levado a cabo essa missão. Com o apoio dos nossos colaboradores e do nosso Conselho Editorial, pudemos, nesse período, contar e viver histórias marcantes. Caminhando com importantes defensores do Poder Judiciário e inspirados pela figura do cavaleiro andante Dom Quixote de La Mancha, personagem símbolo do Troféu anualmente concedido pela Revista, acompanhamos e enfrentamos diversas lutas, como a CPI do Judiciário, instituída em 1999, nosso primeiro ano de trabalho; a aprovação do novo Código Civil, em 2002; a Reforma do Poder Judiciário, com a aprovação da Emenda Constitucional no 45, em 2004; e a implantação do polêmico “controle externo”, com a criação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, em 2005. Atualmente, somos uma das principais publicações do universo jurídico em circulação no País, com tiragem mensal de quase 20 mil exemplares, distribuídos gratuitamente a praticamente todos os tribunais e órgãos com atuação junto ao Poder Judiciário brasileiro. Além disso, somos a única revista de perfil acadêmico e informativo no Brasil que reúne em seu Conselho Editorial tão importantes nomes do Direito e da Imprensa. O grupo, do qual verdadeiramente nos orgulhamos, é composto por 50 nomes, dentre ministros dos tribunais superiores, magistrados e membros do Ministério Público e da advocacia, assim como professores e juristas. Crescemos, expandimos nossos horizontes e engajamo-nos em diversos outros projetos, sempre voltados para a promoção da justiça e da cidadania. O momento, portanto, é de comemoração, com esta edição especial, mas também de planejamento para os próximos 15 anos. Ainda temos muito a fazer e, principalmente, a informar. Continuamos acreditando que é no Poder Judiciário que encontramos os mais preparados, competentes e comprometidos agentes públicos deste país, os que renunciam, amam, se dedicam e lutam por uma melhor qualidade de vida para todos nós brasileiros. Sendo assim, não podíamos deixar de agradecer a cada um dos nossos muitos leitores pelo interesse em nosso conteúdo e pelo incentivo ao nosso trabalho. É para vocês e por vocês que trabalhamos incansavelmente em busca da melhoria constante de nosso produto, com mais e melhor conteúdo, e da extensão do alcance de nossa publicação. Que venham mais 15 anos!!! Um abraço e boa leitura.

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E ditorial

Anarquia, não! Basta! “Hay que endurecerse sin perder jamás la ternura”

O

Che Guevara

s desmandados atos de violência e barbárie que estão espocando pelo Brasil afora, com a destruição de bens públicos e privados por uma horda de baderneiros que se aproveitam da arruaça para a prática criminosa e hedionda de ataques indiscriminados contra a ordem pública, sob o pretexto de uma inverossímil e presumida vingança, têm de ser combatidos com determinação, disciplina e respeito aos Direitos Humanos, mas com mando de ferro sob pena de vermos instalada e instituída no País a plenipotência do anarquismo desordenado. Os escancarados incêndios de dezenas de ônibus no estacionamento de uma empresa em São Paulo, acompanhado da queima de vários veículos de transporte no Rio de Janeiro e alhures, estão demonstrando de forma irrefutável o descalabro cometido pela desabrida bandidagem contra a sociedade que se queda atônita e impotente contra a desordem que se está instalando, sem que haja a devida e rigorosa repreensão das autoridades constituídas e responsáveis. A nação está assistindo o abuso escancarado de uma malta criminosa e difusa que se espalha pelo País, praticando uma delinquência coletiva contra a sociedade desassistida, desamparada, já aterrorizada e, infelizmente, também abandonada a sua própria sorte. Não bastasse a onda de corrupção que campeia infeliz e tristemente nos vários setores da República, com revide de poucos e escassos criminosos de colarinho branco cumprindo pena em regime fechado, ainda se assiste a mais esse desgraçado bando de arruaceiros destrambelhados agindo quase livremente na prática malsã de atos criminosos. É hora e tempo das autoridades públicas, federais e estaduais, responsáveis diretos pela manutenção da ordem pública e pela tranquilidade da população, assumirem a obrigação fundamental do modus republicano que o povo tem direito de vivenciar sob pena, em face do que está acontecendo no país, com o uso abusivo e pretexto do direito da liberdade, de desembarcarmos na plenitude da anarquia; ou o pior, correr o risco de voltarmos à ditadura. 6

Portanto, basta de leniência, basta de tolerância. O momento, em face ao que esta ocorrendo, é de ação e respeito à ordem. É tempo de, sem demora e com urgência revidar e reagir, antes que seja tarde demais. A população já demonstrou publicamente, no grandioso movimento cívico de junho de 2013, o inconformismo com a desconsideração do governo com os malfeitos que têm acontecido comumente. Na democracia republicana que está vigente no País, mesmo assegurando pretensos e ilusórios direitos de uma minoria desregrada, impõe-se ao governo a obrigação de não permitir que uns poucos – os arruaceiros e baderneiros que estão depredando bens públicos e privados, incendiando indiscriminadamente automóveis e ônibus – continuem abusando de um questionado direito de liberdade para afrontar e violentar a maioria absoluta da sociedade, constituída por cidadãos ordeiros e conscientes dos seus direitos, que não devem nem podem continuar assistindo as violências desmedidas e abusos criminosos de uma horda irresponsável, causadora da nefasta perturbação da ordem e do respeito público.

Orpheu Santos Salles Editor Justiça & Cidadania | Maio 2014


15 anos de independência J. Bernardo Cabral

sta Revista se orgulha de produzir, há 15 anos e 165 edições, textos em defesa da Imprensa e do Poder Judiciário, mormente por conhecê-los muito bem por dentro para se impressionar pelas críticas, tantas vezes injustas, que a eles fazem por fora. É que a independência demonstrada e comprovada da sua atuação tem como albergue a luta por uma imprensa livre, ainda que um profissional do ramo possa transformar casos em causos, levados pela paixão políticopartidária, religiosa ou empresarial, provocando equívocos e eventuais injustiças para com aqueles que possam ser, ou tenham sido, atingidos por uma verrina. No entanto, esses deslizes ocasionais, quando ocorrem, não podem ser invocados como instrumento de retaliação contra o arcabouço da imprensa brasileira por meio de modificações legais, colocando em risco o conceito da liberdade de expressão. Nenhum país será grande, nenhuma nação conseguirá se desenvolver, ou viver em harmonia com seus cidadãos, se não forem protegidos e estimulados por uma imprensa livre. É que uma imprensa controlada pelo Estado ou pelas elites dominantes pode permitir a eclosão de não apenas uma, mas duas ou mais ditaduras numa mesma região. Por motivos mais do que conhecidos, os detentores de poder – salvo raríssimas exceções – insistem em ver a imprensa como inimiga e não como aliada de seus programas administrativos. A grande verdade é que uma nação cuja imprensa é amordaçada nela o medo prevalece sobre a esperança, o ódio subjuga o amor e a vida perde o animo de ser vivida. Desse caminho de independência a Justiça e Cidadania jamais se arredará.

Foto: Ana Wander Bastos

E

Consultor da Presidência da CNC Presidente do Conselho Editorial

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C apa, da Redação

Combativa e atuante, há

15 anos Revista Justiça & Cidadania completa aniversário neste mês. Publicação deu origem a uma série de projetos: todos em defesa dos direitos fundamentais e da ética

B

rasil, 1999. Nesse ano, encontravam-se a pleno vapor, no cenário nacional, as discussões em torno da legalidade ou não da instalação, pelo Senado Federal, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar suspeitas de irregularidades no Judiciário. Concomitantemente às investigações, começavam também a ganhar força as propostas que visavam à reforma deste Poder – inclusive daquelas que reivindicavam o controle externo de todos os tribunais do País. Era um período de incertezas. 8

E foi justamente em meio a esse turbilhão de acontecimentos, há exatos 15 anos, que a Revista Justiça & Cidadania (RJC) foi idealizada e criada pelo jornalista Orpheu Salles. A publicação foi lançada com o selo da Editora JC em maio de 1999. De acordo com o fundador e editor, “para servir de fórum de debate e reflexão acerca dos rumos que estavam a tomar a sociedade e a Justiça brasileira”. A CPI visava à apuração de diversas denúncias, dentre as quais a do desvio de R$ 169 milhões nas obras do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. O episódio tinha como personagens centrais o juiz Nicolau dos Santos Neves, então presidente da Corte, e o senador Luiz Estevão (PMDB-DF), dono do Grupo OK, responsável pela construção do novo fórum da corte trabalhista. No decorrer das investigações, as suspeitas se mostraram verdadeiras. Em consequência, Estevão foi preso

e teve o mandato cassado no ano de 2000, e o juiz “Lalau” – como ficou conhecido Santos Neves – foi condenado à prisão domiciliar. A CPI serviu ao seu propósito. “A questão era que ninguém sabia de fato como aquilo acabaria”, explicou Orpheu Salles sobre alguns articulistas da primeira edição se mostrarem céticos com relação à comissão. No artigo “A CPI e a Credibilidade do Judiciário”, publicado na primeira edição da Revista, o então presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Ministro Antonio de Pádua Ribeiro, defendeu um Poder Judiciário transparente. Mas alertou: “A CPI atinge em cheio a credibilidade do Judiciário e coloca todos os magistrados sob suspeita perante a opinião pública, ficando no mesmo nível os honestos (a quase totalidade) e os desonestos (alguns poucos)”. No artigo, o ministro defendeu a apuração das denúncias, inclusive com a “remessa, para os órgãos competenJustiça & Cidadania | Maio 2014


tes, das provas que iriam instruir o requerimento da CPI”. O desembargador federal Alberto Nogueira também relatou sua preocupação com os acontecimentos na época em seu discurso de posse como presidente do Tribunal Regional Federal da 2a Região (TRF-2), em abril de 1999. A íntegra foi reproduzida na primeira edição da Revista JC. “Se fosse jocosidade, ao se fazer a menor menção de se investigar possíveis irregularidades ocorridas em setores da economia do País, logo viriam os temores anunciados de que isso poderia causar danos enormes no exterior, prejudicando a posição do nosso País no mercado financeiro internacional. Mas pergunto: E uma Justiça que se quer colocar no banco dos réus?”, indagou o magistrado.

Capas de algumas das 165 edições que marcaram os 15 anos da Revista JC

Pautas As avaliações acerca do futuro do Poder Judiciário sempre pautaram e continuam a pautar a linha editorial da Revista Justiça & Cidadania. E essas é uma das principais razões de a publicação congregar, em seu Conselho Editorial, importantes autoridades e especialistas dos mundos jurídico e político. Atualmente, o grupo é composto por 52 profissionais de renome e é presidido por Bernardo Cabral – importante jurista, que já ocupou diversos cargos públicos, dentre os quais o de relator-geral da Assembleia Constituinte, ministro da Justiça, deputado federal e senador. Com o apoio de seu Conselho, a Revista Justiça & Cidadania completa 15 anos de atividades com 165 edições publicadas e mais de 2.400 artigos veiculados, muito dos quais escritos por

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1999

2004

Maio Revista é lançada em meio à crise do Judiciário, com a criação de uma CPI pelo Senado

ministros dos tribunais superiores; por magistrados de tribunais estaduais, federais e trabalhistas; por membros do Ministério Público e das advocacias pública e privada; assim como por renomados professores de Direito e juristas de alto conceito e cultura jurídica. Com tiragem aproximada de 20 mil exemplares, a Revista Justiça & Cidadania é disponibilizada às instituições públicas de quase todo o País. Troféu Junto com a Revista, nasceram outras iniciativas. A principal e mais notável delas é o Troféu Dom Quixote de La Mancha, criado em 1999 para homenagear os então presidente e vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministros Carlos Velloso e Marcos Aurélio Mello, em uma evento promovido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ). A receptividade ao Troféu foi tão positiva na ocasião que Orpheu Sal-

Setembro Troféu Dom Quixote é entregue pela primeira vez em evento no TJRJ

les decidiu tornar a premiação definitiva. O Troféu passou então a ser conferido a personalidades públicas e da iniciativa privada com atuação reconhecida em defesa da ética, da moral e dos direitos da cidadania. Ao receber o prêmio, os homenageados passam a integrar a Confraria Dom Quixote, também presidida por Bernardo Cabral. A escolha de Dom Quixote como a figura símbolo da premiação não foi aleatória. De acordo com Orpheu Salles, o personagem criado pelo escritor Miguel de Cervantes, há mais de 400 anos, na obra “O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha”, reúne todos os princípios que embasam o prêmio. O livro, considerado um dos mais importantes da literatura universal, narra com detalhes as características de Dom Quixote: um ingênuo fidalgo que, depois de tanto ler romances de cavalaria, passou a acreditar nos feitos

Editora JC inicia produção de livros jurídicos e institucionais

heroicos dos cavaleiros medievais e, por essa razão, decidiu se tornar um deles. Com o intuito de combater as injustiças do mundo e homenagear sua amada Dulcinéia, Quixote saiu pelo mundo, andante, enfrentando situações perigosas. Sempre acompanhado de seu fiel escudeiro Sancho Pança. Esse segundo personagem, aliás, também inspirou uma nova premiação da Editora JC. Orpheu Salles explicou que concebeu o Troféu Sancho Pança para homenagear as personalidades que foram agraciadas com o Dom Quixote e se mantiveram fiéis à luta em defesa do direito e da cidadania. Até o momento, quase 400 pessoas receberam o prêmio. A última cerimônia de entrega do Troféu Dom Quixote ocorreu no dia 21 de maio de 2013, na sede do TJRJ. Aquela foi a 23a edição da premiação. Na entrega do Troféu, a presidente do TJRJ, desembargadora Leila Mariano, ressaltou que a premiação era

Entrega do XXII Troféu Dom Quixote, na sede do Supremo Tribunal Federal, em Brasília 10

Justiça & Cidadania | Maio 2014


2009 Instituto Justiça & Cidadania é criado para incentivar a cultura

2012

2013 Inaugurado o Passadiço Cultural, na Lapa (RJ)

Exposições sobre a Justiça inauguradas pelo Instituto

“A escolha de Dom Quixote como a figura símbolo da premiação não foi aleatória... o personagem de Miguel de Cervantes reúne todos os princípios que embasam o prêmio” Tiago Salles (à esq.) entrega o Troféu Dom Quixote aos ministros Marco Aurélio e Carlos Velloso (ambos à dir.), na primeira edição da premiação

“um momento alegre e oportuno para se fazer apologia à ética sob as figuras de Dom Quixote e Sancho Pança”. Na ocasião, ela foi agraciada com o Troféu Sancho Pança. Além do TJRJ, também já sediaram a cerimônia de premiação o Tribunal Regional Federal da 2a Região, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, a Seccional do Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Tribunal Regional Federal da 3a Região, o Tribunal Regional Federal da 5a Região, o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, o Tribunal de Justiça do Amazonas e o Supremo Tribunal Federal. O Troféu Dom Quixote de La Mancha também contou com duas edições especiais. Uma delas foi rea-

lizada em junho de 2004, no Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio, em comemoração aos 400 anos da obra de Miguel de Cervantes. Esta variação do prêmio ocorreu durante a conferência “Justiça e Dom Quixote – Uma lição de Otimismo”. O evento contou com a presença de diversas autoridades do mundo jurídico e foi aberto pelo então presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Edson Vidigal. A outra edição especial foi o I Prêmio Dom Quixote de Jornalismo, destinado a jornalistas com atuação e reportagens em defesa dos direitos humanos e da justiça no Brasil. O Prêmio foi entregue em uma cerimônia realizada no TJRJ, em dezembro de 2012. Na ocasião, foram

agraciados os jornalistas Bruno Thys, da Rádio Globo; Rodolfo Schneider, da Rádio Bandeirantes; Rodolfo Fernandes, de O Globo (in memoriam); Adriana Cruz, de O Dia; Maurício Dinepi, do Jornal do Commercio; Fernando Molica, de O Dia; Mauricio Lima, da Revista Veja; Maia Menezes, de O Globo; e o cineasta Breno Silveira. Na ocasião, o então presidente do TJRJ, desembargador Manoel Alberto Rebêlo dos Santos, destacou a importância para o País de uma imprensa atuante e livre. “Aproveito essa festa de lançamento do I Prêmio Dom Quixote de Jornalismo para agradecer o trabalho dos jornalistas que convivem com a gente no tribunal. Um País só e livre e grande

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com uma imprensa atuante e livre. Aproveito para dizer que toda a censura à liberdade de imprensa é uma afronta ao Estado Democrático de Direito. Como todos nós sabemos, a imprensa ainda é uma das poucas instituições respeitadas no Brasil, e nos alegramos com isso, porque o dia em que a imprensa se corromper estará tudo perdido. Precisamos dela íntegra para denunciar as mazelas de nossa sociedade, inclusive as nossas”, disse o magistrado, na ocasião.

A Editora JC se especializou no lançamento de livros, principalmente os institucionais e comemorativos à fundação dos tribunais

Editora Com o passar dos anos, a Editora JC cresceu e se consolidou em outras áreas, principalmente na de editora­ ção de obras jurídicas. Passou a produzir livros de literatura, didáticos e paradidáticos, além de muitos institucionais. Um exemplo do portfólio da Editora nesta área é a obra “TRF 3a Região: 20 Anos de Justiça, por você, por nós, pelo Brasil”. Primeiro livro institucional publicado pela Editora, o exemplar registra, por meio de uma narrativa linear, os fatos históricos que contextualizaram a trajetória da Corte. Com prefácio de Bernardo Cabral e apresentação da desembargadora Marli Marques Ferreira, então presidente do TRF-3, o livro faz ainda uma homenagem ao ministro Pedro Lessa e ao desembargador Jediael Galvão Miranda. Outros dois livros institucionais publicados são “TRT – 15a Região: Trajetória Histórica” e “TRT – 17a Região: 20 Anos de Trabalho”, ambos produzidos em homenagem às duas décadas das respectivas instituições. As obras trazem detalhes sobre as estruturas física e administrativa das cortes e relatam as práticas inovadoras e pioneiras que ambas estão empregando para promover a cidadania e a inclusão social. Os prefácios são assinados pelo senador José Sarney (PMDB/MA) e pelo ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Aloysio Corrêa da Veiga. A obra “TJBA: 400 Anos Fazendo História” também se destaca por mostrar a história da primeira capital do Brasil, berço do desenvolvimento socioeconômico do País e que abriga as origens do Poder Judiciário nacional. O livro, que contém 200 páginas e está dividido em cinco capítulos, resgata a história da Justiça no Brasil, com ênfase no Estado da Bahia, e apresenta alguns dos casos mais marcantes julgados pelos Judiciário baiano. O prefácio foi escrito pela então ministra do STJ, Eliana Calmon. A última produção da Editora JC no campo institu­ cional foi “STJ – 25 Anos do Tribunal da Cidadania”. A obra, produzida em homenagem as 25 anos da Corte, foi lançada na ocasião das comemorações do aniversário de criação do Tribunal, em outubro de 2013. A publicação resgata as realizações do Tribunal nesse um quarto de século e conduz o leitor por uma verdadeira viagem no tempo, desde as origens da complexa formação do Poder Judiciário brasileiro, com o descobrimento da Terra de Santa Cruz, 12

TRF 3a Região: 20 Anos de Justiça, por você, por nós, pelo Brasil

Trajetória Histórica – Tribunal Regional do Trabalho da 15a Região

400 Anos Fazendo História – Tribunal de Justiça do Estado da Bahia

20 Anos de Trabalho – Tribunal Regional do Trabalho da 17a Região

STJ – 25 Anos do Tribunal da Cidadania Justiça & Cidadania | Maio 2014


há mais de 500 anos, até os dias de hoje. Rica em imagens, o livro tem sido considerado uma importante referência para pesqui­sadores. Desde o ano passado, a Editora JC vem se dedicando também ao segmento self-publishing – ou seja, à publicação de livros a partir da impressão sob demanda. Por meio desse sistema, a Editora oferece a magistrados, advogados e demais profissionais e pensadores do Direito a oportunidade de lançar suas obras a um custo muito mais acessível. O objetivo é democratizar o acesso ao mercado editorial, principalmente pelos autores iniciantes.

Instituto Fomentar o estudo do Direito e o exercício da cidadania por meio da produção intelectual, seja com a publicação de artigos na Revista Justiça & Cidadania ou com a editoração de livros literários, didáticos ou paradidáticos sobre o universo jurídico e político passou a ser o objetivo da Editora JC. Porém, não é o único. Junto a esse trabalho, surgiram diversas iniciativas, principalmente no campo cultural. Para apoiar os projetos institucionais do Poder Judiciário, principalmente com relação a captação de recursos para executá-los, os representantes da Editora JC fundaram, em

2009, o Instituto Justiça & Cidadania – uma associação de direito privado, sem fins lucrativos e de natureza social e cultural. O Instituto é presidido pelo jornalista Tiago Salles, filho de Orpheu Salles. A vice-presidência está a cargo da advogada Erika Branco. Uma das realizações do Instituto foi a organização e montagem da exposição “STJ: 25 Anos do Tribunal da Cidadania”, paralelamente ao livro homônimo, lançado pela Editora JC, em outubro de 2013. Gratuita, a mostra foi inaugurada em Brasília, na sede do tribunal. A exposição contou com diversos painéis com fotos de época e textos

Lançamento do livro comemorativo e da exposição STJ – 25 Anos do Tribunal da Cidadania, em outubro do ano passado 2014 Maio | Justiça & Cidadania 13


extraídos da obra editorial. Quatro desses painéis apresentavam alguns dos fatos mais relevantes da história do Poder Judiciário brasileiro antes da promulgação da Constituição de 1988. Outros nove traziam informações sobre o STJ: como os projetos sociais desenvolvidos pela Corte, as obras de arte dispostas na sede em Brasília e dados sobre volume de processos que distribuiu e julgou. Passadiço Outra importante realização do Instituto é o Passadiço Cultural: um corredor cultural construído com o patrocínio da Petrobras, para interligar os fóruns trabalhistas da Rua do Lavradio e da Avenida Gomes Freire, ambos na Lapa, bairro do Centro do Rio. O espaço fica aberto à circulação do público das 7h30 às 17h. O Passadiço é resultado de uma parceria do Instituto Justiça & Cidadania com o Tribunal Regional do Trabalho da 1a Região (TRT1) e a Prefeitura do Rio. O Passadiço foi inaugurado em setembro de 2012, junto com a exposição “Uma História para Contar”. A mostra, produzida também pelo Ins-

tituto em parceria com o TRT1 e com o patrocínio da Petrobras, apresentava, por meio de uma linha do tempo composta por 11 painéis, a evolução das relações do trabalho e da Justiça trabalhista do Brasil, sobretudo na 1a Região, que abrange o Estado do Rio de Janeiro. Entre as mais de 20 imagens dispostas no corredor cultural, estavam a reprodução da Lei Áurea e as fotos de Getúlio Vargas durante o anúncio oficial da instalação da Justiça do Trabalho no Brasil, em 1941, no Estádio de São Januário. Em abril do ano passado, o Passadiço cedeu espaço para a mostra “CLT – 70 anos de Conquista Social”. Também produzida pelo Instituto Justiça & Cidadania e o TRT1, em parceria com a Federação das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), a exposição homenageava as sete décadas de vigência da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Neste mês de maio, a exposição sobre a CLT cederá lugar à mostra “Fórum Lavradio: 10 Anos de Justiça Social”. Essa exposição contará a história de um dos principais cen-

Antes e depois do espaço que hoje abriga o corredor cultural

14

tros de acesso à Justiça pelo trabalhador da 1a Região. A visitação será gratuita, assim como nas duas mostras anteriores. Legado A Revista Justiça & Cidadania é o legado do jornalista Orpheu Salles, que sente orgulho do trabalho que iniciou. “Lá se vão 15 anos de publicações mensais, tendo como princípio básico a pregação da defesa intransigente do Poder Judiciário e da magistratura, o que temos cumprido com coragem, ética e muito trabalho”, declarou. As perspectivas em relação ao futuro continuam sendo altas para o fundador da Revista Justiça & Cidadania. “É com a confiante esperança de manter indeléveis as mesmas intenções adotadas já há 15 anos que nos propomos a continuar na mesma trincheira, defendendo normas éticas, morais, dignas e exemplares como as sonhadas por Dom Quixote, defendendo a verdade e a aplicação do Direito a favor dos desassistidos e injustiçados”, ressaltou o jornalista.

Exposições em cartaz no Passadiço Cultural. Visitação é gratuita

Justiça & Cidadania | Maio 2014


As Empresas Ediouro Publicações parabenizam a Revista Justiça & Cidadania e sua equipe por seus 15 anos.

2014 Maio | Justiça & Cidadania 15


Marco Aurélio Mello

S

Ministro do STF Presidente do TSE Membro do Conselho Editorial

abe-se que a população brasileira é constituída em maior número pelas mulheres. Mas o que se verifica, em termos de participação feminina, na política? A minimização dessa participação. Levantamento revela que menos de 10% das prefeituras são dirigidas por mulheres. Nas câmaras de vereadores, apesar de um pouco mais alta, essa percentagem não ultrapassa 12%. Nas assembleias dos estados, o percentual fica em cerca de 10%. Nos governos estaduais, apenas dois estados encontram-se sob o comando de mulheres: Maranhão e Rio Grande do Norte. Ou seja, em torno de 7%. Na Câmara dos Deputados, de um total de 513 integrantes, há 46 deputadas federais, alcançado, em descompasso com o maior número, considerada a população brasileira, a percentagem de 8%. No Senado da República, o percentual é maior, 12%, já que são 10 senadoras entre os 81 membros. Vem, então, contraste estimulante: o cargo maior da República está ocupado, pela vez primeira, por uma mulher, a presidente Dilma Rousseff. Qual é a posição do Brasil no ranking mundial da participação feminina na política? O 156o lugar, numa lista de 188 países. Isso gera perplexidade e, digo mesmo, envergonha todos os brasileiros. Relembro minha origem como juiz: a Justiça do Trabalho. O que havia até o advento da Consolidação das Leis do Trabalho? A relação jurídica tomador/prestador de serviços era regida pelo Código Civil, prevalecendo as ideias napoleônicas sobre a liberdade de contratar. Essa liberdade acabava por submeter o prestador dos serviços – já que, na vida, precisamos optar e, geralmente, optamos pela fonte do próprio sustento – ao tomador dos serviços. 16

Foto: Agência Senado

A mulher na política

“Qual é a posição do Brasil no ranking mundial da participação feminina na política? O 156o lugar, numa lista de 188 países. Isso gera perplexidade e, digo mesmo, envergonha todos os brasileiros”

A única forma de caminhar para um equilíbrio, presentes as relações jurídicas, é ter o peso da lei, o peso de normas que não se mostrem simplesmente dispositivas, incidindo ao sabor da manifestação da vontade, mas imperativas. A Lei das Eleições, a Lei n­o 9.504, de 1997, previu sistema que posso rotular como o primeiro passo dado: o sistema de cota. Versou um piso – refiro-me aos dois gêneros, masculino e feminino – de 30%. De forma tímida, estabeleceu que a observância dessa percentagem mínima decorreria da vontade dos partidos políticos, consubstanciando o preceito mera faculdade. O Congresso avançou e substituiu, em 2009, essa faculdade pela obrigatoriedade. Lastimavelmente, a visão machista prevalece. Surge filtro que não é salutar, bem-vindo. É pernicioso. Repor-

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to-me às convenções dirigidas à escolha de candidatos. Apresenta-se, para não ser alcançado o quantitativo mínimo, justificativa inaceitável: a falta de candidatas. Quase sempre, afastada a sensibilidade dos partidos políticos, tem-se, salvo raras exceções, a escolha de candidatas formais que, em passo seguinte, recolhem-se, deixando de participar do certame. Há necessidade de conscientização maior. Há necessidade de perceber-se, até mesmo, que o Ministério Público Eleitoral estará atento a fraudes que venham a ser perpetradas quando da realização das convenções. Em síntese, o País do faz de conta deve transformar-se em um país realmente republicano, respeitando-se, acima de tudo, a ordem jurídica. Em 2013, sob o ângulo simplesmente pedagógico, o Congresso aprovou o projeto que resultou na Lei no

12.891. A chamada minirreforma eleitoral inseriu, na Lei no 9.504/97, preceito a sinalizar que o Tribunal Superior Eleitoral, no período compreendido entre 1o de março e 30 de junho dos anos eleitorais, implementará propaganda institucional, em rádio e televisão, destinada a incentivar a igualdade de gênero e a participação feminina na política. A lei foi editada no período crítico de um ano que antecede as eleições. Mas, nessa parte, a aplicação é imediata, porque a publicidade institucional decorre do próprio Texto Maior, da própria Constituição Federal, presente o tratamento igualitário. Conclamo todos: avancemos socialmente! Observemos a Lei das Leis, a que todos, indistintamente, submetem-se! Avancemos culturalmente! E clamo às mulheres: façam parte da política, façam parte da solução, esperança de um Brasil mais sensível, mais equilibrado, mais igual!

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Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF

A legitimatio ad causam no Mandado de Segurança Ministro do STF Membro do Conselho Editorial

Luiz Fux

A

1. Legitimidade das partes legitimidade das partes é, pois, condição aferida pelo juiz in abstracto visando verificar se a ação está sendo travada entre as pessoas pertinentes. A legitimação é, portanto, questão de dupla face, exigindo-se a legitimação quanto aos polos ativo e passivo da relação processual, apurando-se os reais destinatários da sentença de mérito. Essa coincidência somente perde importância na legitimação extraordinária, porque nesse caso o que marca o fenômeno é exatamente a não coincidência entre os sujeitos 18

da lide e os sujeitos do processo. A relação processual forma-se com pessoas outras que não os titulares da relação material como, v.g., ocorre com o acionista majoritário que em nome próprio pode demandar em favor da sociedade. Fenômeno moderno decorrente da nova sociedade de massa e do aparecimento dos novos direitos sociais pertencentes a toda a coletividade ou à determinada categoria de membros da sociedade é o da legitimação para os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos; matéria esta, de extrema relevância, que será mais adiante estudada no que couber ao mandamus coletivo.

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Destarte, no que tange especificamente ao mandando de segurança, o caput do art. 1o da nova lei, que dispõe sobre os legitimados – ativa e passivamente – para figurar na relação processual, não traz nenhuma mudança substancial. 1.1. Legitimidade ativa no Mandado de Segurança A regra geral em tema de legitimidade é a do art. 6o do CPC analisada a contrario sensu; vale dizer: é lícito pleitear-se em juízo, em nome próprio, direito próprio (legitimação ordinária). Da análise literal dos dispositivos aplicáveis ao Mandado de Segurança (art. 5o, LXIX, da CF/1988 e art. 1o da nova Lei no 12.016/2009), extrai-se que, em linhas gerais, é atribuída legitimidade ativa a alguém que sofra ou esteja na iminência de sofrer violação de direito seu em decorrência de ato abusivo ou ilegal de autoridade. Notese ainda que o constituinte brasileiro não restringiu o uso do Mandado de Segurança à pessoa humana (como fez com o habeas corpus). A nova redação do art. 1o conferida pela Lei no 12.016, no entanto, ao invés de se referir à concessão de mandando de segurança a “alguém”, prefere a expressão à “pessoa física ou jurídica”, que tenha sofrido ou esteja na iminência de sofrer lesão a seu direito líquido e certo. A alteração da expressão legislativa inaugura polêmica a respeito do sujeito legitimado para impetrar o mandamus. Anteriormente, sempre se concebeu que o Mandado de Segurança poderia ser utilizado não apenas por pessoas físicas e jurídicas, como também por órgãos públicos despersonalizados, mas dotados de capacidade processual (como as chefias do Executivo, as presidências das Mesas dos Legislativos, os fundos financeiros, as comissões autônomas e demais órgãos da Administração centralizada ou descentralizada que tenham direitos próprios a defender). O advento do novo texto fez exsurgir a indagação sobre se houve restrição quanto à pessoa que pode figurar como sujeito ativo do Mandado de Segurança. Respeitadas eventuais opiniões em contrário, enten­ demos que não houve limitação, posto a novel redação estar em consonância com o disposto no art. 5o, inc. LXIX da Constituição de 1988, no sentido de que todo e qualquer sujeito de direito, pode figurar no polo ativo da ação constitucional sub examine. A exegese de que o art. 1o da Lei no 12.016/2009, de fato intentou restringir a legitimidade ativa somente às pessoas físicas e jurídicas, não revela o melhor resultado hermenêutico, uma vez que qualquer limitação ao exercício dos direitos fundamentais deve ser excepcional. Essas categorias de direitos reclamam do intérprete ampla flexibilidade ideológico-vernacular apta a lhes conferir maior efetividade, consoante “o princípio da proibição

do retrocesso”, segundo o qual uma vez alcançado determinado grau de concretização de uma norma constitucional definidora de direito fundamental, fica o legislador proibido de suprimir ou reduzir essa concretização sem a criação de mecanismo outro que seja equivalente ou substituto. Desta sorte melhor se nos apresenta a posição doutrinária que advoga a manutenção do entendimento segundo o qual ostentam legitimidade ativa, para o Mandado de Segurança, não só a pessoa física ou jurídica, nacional ou estrangeira, residente no país ou não, como também os órgãos públicos despersonalizados, mas com capacidade processual (como as chefias dos Executivos e as presidências das Mesas dos Legislativos), os agentes públicos que detenham prerrogativas funcionais específicas do cargo ou do mandato (governadores, magistrados, parlamentares, membros do Ministério Público) e as universalidades reconhecidas em lei, tal qual, massas falidas, espólios e condomínios. O que efetivamente importa para caracterizar a legitimação ativa é, pois, a titularidade do direito subjetivo próprio atingido, seja o impetrante pessoa física, pessoa jurídica, órgão público ou universalidade legal. Excepcionalmente, consagra-se uma hipótese de substituição processual em sede de Mandado de Segurança, em que o titular de direito recorrente possui legitimidade extraordinária diante da inércia do titular do direito principal, qual seja aquela prevista no art. 3o da Lei no 12.016, segundo a qual “o titular de direito líquido e certo decorrente de direito, em condições idênticas, de terceiro poderá impetrar Mandado de Segurança a favor do direito originário, se o seu titular não o fizer no prazo de 30 (trinta) dias, quando notificado judicialmente”. O diploma anterior (art. 3o da Lei no 1.533/1951) previa esta substituição processual, todavia, sem a estipulação de um prazo de “provocação” do tertius. A lei atual legitima a atuação acaso o terceiro notificado não demandar em 30 dias da notificação, novidade erigida pela Lei no 12.016, por isso que a lei revogada mencionava apenas “prazo razoável” de inércia daquele sujeito. Outrossim, a Lei no 12.016, no § 3o do seu art. 1o, reitera a previsão, antes contida no art. 1o, § 2o, da Lei no 1.533/1951, de legitimidade concorrente na hipótese de comunhão de direitos. Assim, quando o direito ameaçado ou violado couber a várias pessoas, qualquer delas poderá requerer o Mandado de Segurança; com o que, consagrase a legitimidade de qualquer dos cotitulares de um direito para propor isoladamente o writ, não obstante a unitariedade da decisão. Erguem-se vozes no sentido de que, neste caso, haveria, em verdade, hipótese de substituição processual, sendo

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o colegitimado impetrante substituto processual dos demais, com a extensão dos efeitos da coisa julgada aos legitimados, substituídos. O § 3o do art. 1o da Lei no 12.016 em essência limita-se a afirmar que cada um dos cotitulares poderá, isoladamente, impetrar Mandado de Segurança para defender direito comum; não obstante, em nenhuma passagem preveja que a sua atuação vinculará aos demais, o que nos leva a concluir que não se trata de substituição processual tout court, mas, antes, legitimidade concorrente dos cotitulares. O que ocorre é que a concessão da ordem, retira o interesse processual na impetração pelos demais, sendo certo que a recíproca não é verdadeira, na hipótese de denegação. A vexata quaestio do tema, não enfrentada pela nova lei, refere-se à possibilidade de a impetração de Mandado de Segurança ser veiculada por pessoas de direito público. Embora o Mandado de Segurança tenha sido originalmente criado para a proteção do particular contra ato da administração pública, não há como negar que em algumas hipóteses a sua impetração pelos órgãos públicos impõe-se como a única forma de se evitar ilegalidades e abusos de poder praticados em conflitos envolvendo poderes da União, Estados e Municípios entre si. Ademais, direitos e garantias fundamentais não admitem interpretação restritiva; se a Constituição da República não fez restrições ao uso do Mandado de Segurança por pessoa jurídica de direito público, não cabe ao intérprete fazê-lo. Nesta linha de raciocínio, o remédio constitucional pode ser utilizado por um ente público contra ato de outro ente público, vedada a utilização do writ contra ato de particular despido de caráter publicizado. A regra da legitimação ativa no Mandado de Segurança pressupõe que o impetrante, pessoa natural ou jurídica, seja efetivamente o titular do direito subjetivo violado e não que tenha “mero interesse”. Em outras palavras, o impetrante, para ter legitimidade ativa, há de se atribuir direito individual ou coletivo, líquido e certo, para o qual pede proteção via Mandado de Segurança. 1.2. Legitimidade passiva no Mandado de Segurança O Mandado de Segurança pode ser impetrado contra atos praticados por qualquer agente do Estado, em qualquer nível (federal, estadual, municipal ou distrital) e por quem atue em seu nome, isto é, entidades estatais que não componham a administração direta, como autarquias (incluídas as agências reguladoras), fundações estatais, empresas públicas e sociedades de economia mista, prestadoras de serviço público ou exploradoras de atividades econômicas (art. 1o, caput e § 1o, da Lei no 12.016/2009). A questão das funções delegadas é solvida pelo entendimento pacífico de que o desempenho de funções 20

delegadas coloca o agente delegado como autoridade coatora dês que nessa qualidade pratique o ato impugnado, consoante o enunciado na Súmula no 510 do STF. Assim, se uma autoridade municipal aceitar delegações do Estadomembro ou da União, responderá por essas atribuições como autoridade estadual ou federal, perante os juízos privativos dessas entidades. Os particulares também poderão figurar no polo passivo do Mandado de Segurança, desde que o ato impugnado tenha sido praticado no exercício de função pública. Por essa razão, é que prevalece o entendimento na jurisprudência relativo à admissibilidade, no polo passivo do Mandado de Segurança, v.g., do diretor de escola particular ou de particulares prestadores de serviço público, porquanto, o que prevalece para efeitos de legitimidade passiva é que o ato tenha feição pública. Quanto à administração indireta, importa ressaltar que, em relação às sociedades de economia mista e às empresas públicas, prevalece o entendimento de que estas podem figurar no polo passivo do Mandado de Segurança – independentemente de sua condição como pessoa jurídica de direito privado, equiparando-se à autoridade pública – sempre e toda vez que, agindo em nome do Estado, no exercício de função pública, na forma dos art. 37, caput, II e XXI, da Constituição Federal, praticarem ato ilegal ou abusivo, e desde que o ato não encerre mera atividade de gestão comercial. Doutrina e jurisprudência divergem sobre quem efetivamente deve figurar no polo passivo da demanda; se a “autoridade coatora”, ou a pessoa jurídica, ou o órgão público a que esta pertence. Há diferentes entendimentos sobre quem de fato é o legitimado passivo no mandamus sintetizados em quatro correntes, a saber: a primeira sustenta que a legitimidade passiva é da pessoa jurídica a que pertence a autoridade coatora uma vez que o agente ocupante do cargo público é o responsável pelo ato que submete a pessoa jurídica à condição de ré; a segunda corrente argumenta que o próprio agente coator seria o legitimado passivo; a terceira corrente, por sua vez, entende que há um litisconsórcio passivo entre o agente coator e a pessoa jurídica a ele vinculada; e a quarta e última corrente sustenta que o agente coator é mero informador no processo. A primeira corrente tem como fundamento o art. 2o da Lei no 12.016/2009, porquanto referido dispositivo assenta expressamente que as consequências decorrentes da ilegalidade ou do abuso de poder serão suportadas pela pessoa jurídica e não pela pessoa física que exerce a função pública em seu nome. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu, encampando a referida tese no julgamento do RE no 233.319, de relatoria da Exma. Mina Ellen Gracie, publicado no DJU, 12.09.2003, p. 524.

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A segunda corrente, consoante destacado, sustenta que a parte legítima para figurar no polo passivo da ação é a pessoa física (própria autoridade coatora) que praticou o ato, e não a pessoa jurídica de direito público a que ela pertença. Isso porque, a notificação para prestar as informações, bem como as ordens de execução da segurança ou da própria liminar são sempre endereçadas à própria autoridade coatora, em que pese os efeitos patrimoniais serem suportados pela pessoa jurídica de direito público a ela vinculada. Essa tese, portanto, desconsidera que a autoridade seja apenas agente da pessoa jurídica responsável pelo desempenho da função pública, desprezando a teoria do órgão consagrada em nosso ordenamento jurídico. Os defensores da terceira corrente, por seu turno, entendem que há litisconsórcio passivo entre a autoridade coatora e a pessoa jurídica a ela vinculada, sendo, portanto, ambos réus no mandamus, à luz de alguns dispositivos da nova lei, em especial os seus arts. 6o, caput, 7o, incs. I e II, e 13, caput, que, de fato, sugerem ser esta a tese adotada no atual regime. Contudo, as críticas a esse posicionamento aparentemente vigente com a nova lei perpassam pelo inconveniente inaugurado pela interpretação literal da norma em análise, segundo a qual o Mandado de Segurança passaria a demandar, sem exceção, litisconsórcio passivo necessário, o que culminaria em inúmeros transtornos processuais ao impetrante, evidentemente incompatíveis com a sumariedade e celeridade, pressupostos imprescindíveis deste instrumento garantístico representado pela ação ora sub examine. O Superior Tribunal de Justiça

já havia consolidado entendimento de que não haveria litisconsórcio entre a autoridade coatora e o ente público legitimado, pois este último é a própria parte, da qual a primeira é mero órgão. A quarta e última corrente aproxima-se da primeira ao concluir que a parte ré é a pessoa jurídica, e não o agente coator, sendo este mero fornecedor de informações no curso do processo, razão pela qual se justifica a necessidade de citar a pessoa jurídica (e não apenas notificar a autoridade coatora), bem como fornecer a ela a oportunidade própria para contestar (e não somente exigir a prestação de informações pela autoridade coatora). Do exposto, parece-nos que a novel lei veio dissipar vetusta controvérsia consoante a jurisprudência predominante, bem como em consonância com os institutos processuais básicos. Assim, é sabido que a autoridade coatora, de regra, não detém capacidade processual nem personalidade judiciária. É apenas a responsável pelo ato que faz reclamar a impetração do writ. A pessoa jurídica a que pertence, por seu turno ostenta legitimatio ad causam e ad processum, ou seja, tem legitimação e capacidade de ser parte e de estar em juízo. Consequentemente, o que a lei explicitou é que a parte é a pessoa jurídica a que pertence a autoridade coatora, muito embora nos dispositivos já citados permita à mesma (autoridade coatora) praticar outros atos além da prestação de informações, reforçando a defesa da entidade pública ou de quem lhe faça as vezes. Evidentemente que, de acordo com os atos praticados por ambas, é que a segurança poderá ser concedida ou denegada.

Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF

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Assim, v.g., o art. 14, § 2o, prevê o direito de recorrer também extensivo à autoridade coatora. Na mesma linha de raciocínio, o art. 9o, segundo o qual: As autoridades administrativas, no prazo de 48 horas da notificação da medida liminar, remeterão ao Ministério ou órgão a que se acham subordinadas e ao AdvogadoGeral da União ou a quem tiver a representação judicial da União, do Estado, do Município ou da entidade apontada como coatora cópia autenticada do mandado notificatório, assim como indicações e elementos outros necessários às providências a serem tomadas para a eventual suspensão da medida e defesa do ato apontado como ilegal ou abusivo de poder.

O dispositivo retrotranscrito substitui o art. 3o da Lei n 4.348/1964 na parte em que este último previa que o órgão judicial deveria comunicar a liminar ao órgão de representação judicial da pessoa jurídica, estando o mesmo agora incorporado ao texto da nova lei do mandamus. Deveras, embora o ato contestado pelo Mandado de Segurança tenha sido praticado por autoridade, esta não será a parte processual, senão a própria pessoa jurídica que ocupa o polo passivo no processo e será esta quem suportará os efeitos da sentença. A indicação equivocada da autoridade coatora ainda gera controvérsia quanto às suas consequências; discutese se o processo deve ser extinto por carência de ação, ou se é possível a correção do vício da ilegitimidade viabilizando o seu prosseguimento em face da verdadeira autoridade coatora. A jurisprudência tem flexibilizado a possibilidade de correção em homenagem aos princípios da efetividade e da economia processual, tendo em vista a notória complexidade dos órgãos públicos, que muitas vezes dificulta a correta visualização jurídica do agente que, de fato, é o coator. Adotando-se o entendimento de que a definição de autoridade coatora não se relaciona à legitimidade passiva no Mandado de Segurança, o que implica grande relevância prática: eventual erro na indicação desta não acarretará a extinção do processo. A indicação da pessoa jurídica a que pertence a autoridade coatora torna indiferente o equívoco na indicação desta última, na maioria dos casos. O STF e o STJ vêm consolidando a jurisprudência no sentido de que a errônea indicação da autoridade coatora implica a extinção do processo por ilegitimidade passiva ad causam, quando altera a competência ratione personae não cabendo ao juiz ou tribunal determinar, de oficio, a substituição da parte impetrada (MS no 9.450-DF, rel. Luiz Fux, publicado no DJ, 06.09.2004). Entretanto, não havendo essa influência sobre a competência, a efetividade o

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dessa garantia constitucional conspira em favor do aproveitamento do writ com a correção do vício através de mecanismo semelhante à emenda da petição inicial. Destaque-se, contudo, que se a autoridade apontada como coatora prestar as informações, não questionando a sua ilegitimidade e defender a legalidade do ato impugnado, legítimo será o prosseguimento do mandamus por força da teoria da encampação, fundamentada pelo princípio da economia processual, ressalvada a vexata quaestio relativa à alteração da competência ratione personae. Retomando o tema central, fato é que os critérios para a definição da autoridade coatora, no entanto, não estavam veiculados por nenhuma regra da lei anterior. Com a nova norma, mais especificamente em seu art. 6o, § 3o, fica sedimentado o entendimento já antes acolhido pela doutrina e jurisprudência, segundo o qual a autoridade coatora é aquela que tenha praticado o ato impugnado ou da qual emane a ordem para a sua prática. A prática judiciária permite-nos concluir que é autoridade coatora: (i) quem ordena o ato, ainda que incompetente para a sua prática, ou omite a prática do ato impugnado e não o superior que recomenda, ou baixa normas para a sua execução; (ii) quem adota o comportamento coator por deliberação própria; (iii) o presidente da República, uma vez por ele consumado o processo administrativo; (iv) quem pratica o ato considerado lesivo ao direito do contribuinte no âmbito tributário, e não aquele que expediu resolução de caráter genérico e abstrato; (v) aquele que tem a responsabilidade funcional de defender o ato impugnado; (vi) aquele que comparece aos autos para, além de atribuir a legitimidade passiva ad causam a inferior hierárquico seu, defender o ato objeto da impetração, fato que torna aplicável a teoria da encampação; (vii) nos órgãos colegiados, o presidente que subscreve o ato e responde pela sua execução; (viii) tratando-se de atos complexos (aqueles cujo aperfeiçoamento só ocorre com a conjugação de vontades de duas ou mais autoridades), todos os órgãos participantes; (ix) nos atos compostos, aquele que pratica o ato principal; e (x) nos procedimentos administrativos, a autoridade que preside a sua realização. Cumpre ressaltar que, excluída a vexata questio da identificação da autoridade coatora do âmbito da legitimidade passiva, a mesma continua a ter importância quanto à definição do foro competente, bem como quanto à possível anulação de atos processuais praticados por juízo incompetente. A Lei no 12.016/2009, a nosso ver, de maneira acertada e condizente com a jurisprudência já consagrada, previu no seu art. 7o, inc. II, a obrigatoriedade da ciência do feito ao órgão de representação judicial da pessoa jurídica, ordenada pelo despacho do juiz.

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Cento e onze dias à frente do maior Tribunal de Justiça José Renato Nalini

ompleto 111 dias à frente do maior Tribunal de Justiça do mundo. À evidência, os desafios são enormes. Todos os anos, o Judiciário inicia seus trabalhos com déficit. Pois, a autonomia administrativa e financeira do terceiro Poder da República, afirmada no artigo 99 da Constituição da República e reiterada no artigo 55 da Constituição paulista, é mera proclamação retórica. Os pleitos do Tribunal são amputados pelos técnicos do planejamento, depois passam pelos técnicos da Secretaria da Fazenda e são aprovados pela Assembleia de acordo com as possibilidades. Sempre aquém das necessidades. Este ano é singularmente difícil. Em 2013, foram providos quase 5 mil cargos de escreventes, para reposição das naturais defecções. E foram criados dois benefícios para os servidores – a gratificação por atividade cartorária e o adicional por qualificação. Ambos a gerar impacto neste exercício. A primeira preocupação da nova gestão, perfeitamente afinada em ambos os colegiados que administram o maior Poder Judiciário da República, tanto o Conselho Superior da Magistratura como o Órgão Especial, foi deixar transparente a situação financeira. Sem prejuízo de procurar junto ao governo o suprimento do caixa, além de evidenciar a contribuição da administração da Corte, fazendo a contenção possível. Um passo importante foi chamar a sociedade a participar da administração da Justiça. Mediante a criação de um Conselho Interinstitucional, tão bem recebido que teve de ser revisto várias vezes, tanta a vontade de inclusão de organismos e de pessoas gradas. Também a APAMAGIS ganhou assento junto ao Órgão Especial, para atuar durante as sessões administrativas. Igual pretensão do funcionalismo também está sendo examinada. Enfim, são novos tempos a refletir uma efetiva atuação dos parceiros, próximos e mediatos, pois uma Democracia Participativa significa exatamente isso: abrir espaço para que todos – indistintamente, todos – discutam a gestão estatal de serviços custeados pelo povo.

Foto: TJSP

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Presidente do TJSP Membro do Conselho Editorial

Outros sinais de que esta administração é aberta foi a pacificação com o Ministério Público e com a advocacia. Não faz sentido dividir uma casa já vulnerável diante da excessiva lentidão na outorga da prestação jurisdicional. Ao contrário, unidos, somos mais fortes. Podemos provar à sociedade brasileira que a Justiça tem condições de ser otimizada, pois integrada por pessoas idealistas, vocacionadas e dispostas até ao sacrifício para resolver problemas da população. No mais, foram preservadas todas as iniciativas exitosas que tiveram seu curso mantido e intensificado. Assim a informatização, a multiplicação da cultura da conciliação, mediação e outras alternativas ao processo convencional, a ampliação dos canais de discussão pelas redes sociais, o estímulo ao funcionalismo para que seja cada vez mais parceiro da administração na condução do Judiciário. O compromisso desta gestão é o trabalho contínuo, a prestação constante das contas, a transparência e o chamamento à colaboração para que o Tribunal de Justiça de São Paulo, comprovadamente o maior de todo o planeta, se mantenha no propósito de ser um dia, para satisfação do povo paulista, o melhor que uma justiça humana possa vir a ser sobre a face da terra. Artigo enviado pelo autor para publicação no dia 23/4.

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O constitucionalismo moderno e a sua influência sobre a economia

Ives Gandra da Silva Martins

Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFM Membro do Conselho Editorial

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mbora Kant não tenha sido jurista, nem economista, nem político, mas apenas filósofo, algumas considerações que trago à reflexão dos leitores de Justiça & Cidadania, nos seus 15 anos de magnífica atuação editorial na área do Direito, demonstram que sua obra não deixa de ter notável impacto na forma de analisar os fatos e as leis jurídicas e econômicas nos séculos XIX, XX e XXI. As expressões o “uso público da razão” e o “uso privado da razão” têm, em Kant, o sentido inverso do que imaginamos, estando ligado à sua concepção de que o sublime e a paixão, na busca de horizontes políticos e da liberdade dos povos nas repúblicas – leia-se democracias –leva a uma consciência coletiva, pública dos ideais buscados. Por esta razão, entende que a autoridade pública deve ter “uso privado da razão”, pois deve atuar de acordo com princípios inerentes à sua maneira de ser para efeitos de atender os objetivos do povo para o qual está a serviço. Sua razão não é coletiva, mas é privada, na busca de atendimento da razão coletiva do povo. Por outro lado, a sociedade que busca, na representação, a realização de seus ideais e objetivos, faz “uso público da razão”, no sentido de uma busca permanente para a autoafirmação coletiva. Nesta perspectiva, é de se compreender o forte impacto que as duas Constituições (americana e francesa) criaram, na maneira de ser dos povos que as produziram e da 24

“É de se compreender o forte impacto que as duas Constituições (americana e francesa) criaram na maneira de ser dos povos que as produziram e da humanidade em geral, pois resultante desta consciência coletiva, manifestada por seus representantes, para a criação do Estado de Direito”

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Foto: Fecomercio

humanidade em geral, pois resultante desta consciência coletiva, manifestada por seus representantes, para a criação do Estado de Direito. Kant tinha a percepção de que os ideais da revolução francesa transcendiam, em muito, as pessoas de seus autores, mais preocupados na condução de um movimento cuja dimensão ignoravam e cujo controle perderam, todos eles. O certo, todavia, é que esta consciência coletiva, esta “razão pública” do povo francês e do povo americano, delineou o constitucionalismo moderno, aperfeiçoando a fantástica revolução dos barões ingleses, em 1215, a qual proporcionou o primeiro grande documento, tido por inúmeros constitucionalistas, como a Constituição dos ingleses, além das Declarações de Direitos, do século XVII, que completou o perfil do constitucionalismo inglês. O aparecimento das duas Constituições, a americana, com admirável estabilidade, pois em 218 anos sofreu apenas 27 emendas, e a francesa, bastante alterada nos anos conturbados da revolução, lançou, todavia, a grande discussão sobre a representação popular, sobre a participação do povo nos governos e a influência que estes deveriam ter na economia, a fim de não representarem apenas o Estado gendarme, coletor de tributos, mas sim instrumentos de desenvolvimento e de busca de justiça social. Assim é que a escravidão – já abolida nos países europeus – passou a ser combatida nos países americanos,

levando todas as nações, gradativamente, a abolirem-na, algumas de forma traumática, como nos Estados Unidos, com a Guerra de Secessão, e outras de forma mais lenta e gradativa, como no Brasil, em que só foi extinta no ano de 1889 (13 de Maio), pela regente princesa Isabel. Enquanto à luz de tais ideais que tomaram conta dos intelectuais da época, conforme o país, a escravidão foi combatida, uma outra escravidão, ou seja, a escravidão urbana, instalou-se nos países europeus industrializados, levando também a apaixonado debate e ao surgimento das grandes teses socialistas, que desembocaram nas encíclicas sociais. É de se lembrar que, se o debate social, na Europa, era levantado pelos socialistas, como Proudhom, SaintSimon, Marx e Engels, entre os mais destacados autores, no Brasil, durante o Império, a temática era outra: o abolicionismo, a república e o federalismo. Estas eram as grandes teses defendidas por intelectuais como Tobias Barreto, Ruy Barbosa, Campos Salles. De rigor, no que diz respeito ao abolicionismo defendido pelos pensadores nacionais, tinham eles a certeza de que representavam a consciência coletiva ao se alinharem contra a escravidão legal. Os autores europeus, todavia, pugnavam contra a escravidão urbana, pois os direitos dos operários não eram reconhecidos nem protegidos nas indústrias crescentes. O certo é que esta consciência coletiva, sempre exteriorizada pelos intelectuais que a interpretavam, terminou

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na estrutura pública, identificou-se com o poder e a reprepermitindo a evolução do modelo do constitucionalismo sentação se fez, não em função da sociedade, mas de seus francês e americano (de liberdade e representação popudetentores, que na luta por conquistas, objetivam detê-la, lar) para o constitucionalismo mexicano e alemão, que inna maioria das vezes, apenas para manutenção dos privitroduziram, nas leis superiores, a questão social de forma légios de comando e de obediência dos cidadãos sujeitos. abrangente e nova. De qualquer forma, o próprio crescimento econômico Com a crescente percepção de que a questão social esda sociedade e a revolta crescente da população injuriada, tava na essência da justiça e da verdadeira liberdade, duassim como a tendência, por outro lado, de domínio por rante o século XIX, as nações foram se preparando – prinparte dos mais ricos, levaram ao aparecimento, no fim do cipalmente na Europa e nos Estados Unidos – para uma século, nos Estados Unidos, da primeira lei de controle da maior intervenção do Estado, com o que, a título de uma concorrência e eliminação do abuso do poder econômico. participação alargada na condução da economia, começou E iniciou-se, por outro lado, no século XX, a valorização a crescer o nível da imposição tributária, a ponto de Adoldo direito do consumidor. Fortaleceram-se, pois, os dois fo Wagner, em fins do século XIX, ter lançado a teoria da pólos de uma economia de mercado (na parte da produirreversibilidade dos gastos públicos, à luz de que as desção, o controle da concorrência e do lucro abusivo; na parte pesas públicas tenderiam sempre a crescer, pois o poder do consumo, a valorização do tende sempre a gerar novas consumidor). As economias despesas a serem satisfeitas por passaram a ser tanto mais ágeis novos tributos. “O próprio crescimento econômico quanto menos havia interferênPrincipiou a haver, portanda sociedade e a revolta crescente cia do governo em suas regras to, uma tríplice preocupação, da população injuriada, assim como a empresariais e maior interfenos governos que se democrarência nas suas regras coletivas, tizavam, ou seja: tendência, por outro lado, de domínio assim como tanto mais eficien1) uma maior participação por parte dos mais ricos, levaram ao tes quanto menor o peso de nas atividades econômitributos relativamente a outras cas, para conduzi-las a aparecimento, no fim do século, nos nações e o custo dos financiarealizar alguma justiça Estados Unidos, da primeira lei de mentos para sua evolução. social; controle da concorrência e eliminação Nos países recém-liberta2) um crescimento de atividos, no século XIX, tal probledades e funções públido abuso do poder econômico. E mática foi mais aguda, à falta cas, com o alargamento iniciou-se, por outro lado, no século XX, de uma economia evoluída, da classe burocrática e pois quase reduzida a venda de política a ser sustentaa valorização do direito do consumidor. commodities e sem um procesda pelos cidadãos, com Fortaleceram-se, pois, os dois pólos de so consistente de industrialimultiplicação das desuma economia de mercado” zação, à semelhança dos Estapesas públicas; dos Unidos e da Europa. Nas 3) um crescente aumento nações desenvolvidas, todavia, de tributação, agora sisas bases da economia foram lançadas, assim como a sistetematizada, para atender as necessidades públicas matização dos regimes tributários, com imposições cresou privadas dos governantes, na sua capacidade ilicentes para atender as novas sinalizações do século XIX e mitada de multiplicação de gastos. princípios do século XX, onde a tecnologia começava a ser O próprio surgimento do Tribunal de Contas, no a grande vedete. fim do século XIX, como forma de controlar gastos e Na atualidade, as duas grandes crises econômicas a responsabilidade do Estado, em seus três modelos, de 2008/9, por incúria do setor privado dos países revelou-se insuficiente – como continua sendo até hoje desenvolvidos, e 2011/12, por incúria dos poderes públicos, – por motivos que dão razão a Carl Smith e Maquiavel, permitiram, com arcabouço constitucional e legal mais quando sustentavam que o poder se justifica pelo próprio adaptado depois da crise de 1929, que os países desenvolvidos poder e a sociedade não o controla. ultrapassassem o perigo imediato de um colapso global e os Nada obstante, o impacto que produziram na demopaíses emergentes e menos desenvolvidos crescessem, por cracia e na economia dos dois modelos constitucionais – terem mercado internacional inexplorado. O certo é que um mais voltado à pátria (americana), e outro mais voltado a humanidade evoluiu na sua conformação jurídica que ao cidadão (francês) – o certo é que o Estado, que deveria garantiu estabilidade internacional antes inexistente. servir ao povo, através do governo, seu mero representante 26

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Mulheres, onde estamos? Luciana Lóssio

m ano de eleições, é fundamental refletir sobre a participação de todos os grupos sociais no processo eleitoral e decisório do País. A questão de gênero não pode ficar de lado. No que diz respeito à participação feminina na política, o Brasil ocupa a 156a posição, entre 188 países, no ranking de representatividade em cargos eletivos no Poder Legislativo, elaborado pela União Interparlamentar (IPU). Quando o cenário são as Américas, estamos no 30o lugar, entre os 34 pesquisados. Nós, brasileiras, possuímos o direito ao voto desde 1932, ano de aprovação do Código Eleitoral, que, dentre outras conquistas, instituiu a Justiça Eleitoral. Integramos a sétima economia do mundo e a principal da América Latina. Vivenciamos uma democracia plena há duas décadas, mas a participação feminina na política ainda é escassa. No Poder Legislativo federal temos apenas 10 senadoras nas 81 cadeiras, o que corresponde a 12% de representação, e 45 deputadas federais, de um total de 513, ou seja, apenas 8,7% na Casa que representa o povo brasileiro. É o único dos Três Poderes da federação que ainda não foi presidido por uma mulher. A representatividade de mulheres eleitas deputadas federais passou de 1,5% em 1982, quando oito foram eleitas para o cargo, para 8,7% em 2010. Há um longo caminho a ser trilhado pelas mulheres, como eleitoras e candidatas, em busca da representatividade. A fragilidade da posição do Brasil nas esferas mundial e americana surpreende mais diante do fato de que 51,9% do eleitorado brasileiro é composto por mulheres. Precisamos de candidatas dispostas a abraçar a árdua disputa da política. As cotas de gênero para candidatos (30% e 70%), fixadas na Lei das Eleições, representam avanço legal expressivo que assegura a participação feminina entre os nomes submetidos à avaliação popular nas urnas, como política afirmativa durante uma fase de transição. Mas, na prática, elas não são cumpridas, seja pela ausência de candidatas, seja pela falta de condições de igualdade efetiva na disputa. Com o resultado das eleições de 2010, as mulheres passaram a ocupar 11% dos cargos de governador e 14% das cadeiras de deputados estaduais. Em 2012,

Foto: Arquivo TSE

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Ministra do TSE

as mulheres conquistaram 11% das prefeituras e 13% das cadeiras de vereadores. A pequena participação de mulheres na política dissocia-se da realidade vivida no Brasil na qual as mulheres exercem funções e cargos de alta responsabilidade há tempos. Há desinteresse das mulheres em participar do processo político ou ainda existem freios sociais e partidários à expansão do espaço feminino? Esse debate é imprescindível. No Tribunal Superior Eleitoral, faremos nossa parte. De acordo com a legislação, a Justiça Eleitoral pode promover, entre 1o de março e 30 de junho dos anos eleitorais, propaganda institucional destinada a incentivar a igualdade de gênero. A publicidade oficial irá incentivar a participação da mulher na política. Agora, cabe a cada cidadão entender que sua participação, além de seu voto, pode construir um novo futuro.

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Paternalismo constitucional Ney Prado

Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia Desembargador Federal do Trabalho aposentado Membro do Conselho Editorial

Na linguagem vulgar, paternalismo indica uma política social orientada ao bem-estar dos cidadãos e do povo, mas que exclui a sua direta participação: é uma política autoritária e benévola, uma atividade assistencial em favor do povo, exercida desde o alto, com métodos meramente administrativos. Para expressar tal política, nos referimos então, usando de uma analogia, à atitude benevolente do pai para com seus filhos ‘menores’”1. Do ponto de vista conceitual, o paternalismo é uma forma degenerada de protecionismo e um tipo de domínio social, econômico e político próprio dos estados totalitários ou que mais dele se aproximam. No Brasil, com o advento da Constituição de 1988, parecia que o perigo do Estado paternal tivesse sido eliminado. Mas infelizmente não souberam nossos legisladores como evitar o condicionamento cultural que temos neste País a tudo esperar do Estado, como se possuísse virtude própria, fosse uma entidade divorciada da nação, de existência concreta, onisciente e todo poderoso, um grande pai, que têm todos a seu cargo. Herdamos o estatismo de nossas origens, é certo, mas em vez de reconhecer e lutar paulatinamente contra essa distorção, a Constituição o exacerba, acabando por gerar uma imensa e desaconselhada dependência da sociedade como um todo. Os constituintes queriam, sinceramente, resolver todos os problemas do Brasil: deram detalhadas exemplificações programáticas, mas, no momento de atribuir a responsabilidade de encontrar os caminhos do progresso, do desenvolvimento da nação e o bem estar material e psicológico do brasileiro, preferiram confiar no Estado à confiar na sociedade. Para os nossos constituintes os brasileiros como indivíduos e a sociedade por seus numerosíssimos grupos secundários não tem confiabilidade e nem qualificação 28

para resolver os problemas que lhe dizem respeito. Alguém há de tutelá-lo, no caso o Estado, única entidade, a qual se pode confiar. Percebe-se claramente no Texto o preconceito contra o povo: há que cercá-lo, pensar por ele, decidir por ele, hoje e sempre, pelo tempo que durar a Constituição. No fundo está a descrença fundamental dos nossos constituintes, embora inconfessada, na capacidade do homem comum de discernir na prática constante da democracia, o que é bom para ele e para a nação. Como decorrência, o modelo de Estado desenhado pela Constituição, assumiu características nitidamente paternalistas. Ficou mais forte e demandado. Tornou-se administrador, justiceiro, patrão, e defensor dos fracos e oprimidos, além de produtor e provedor de recursos. De outro lado, a sociedade ficou mais dependente e mais inerme. Foi limitado o campo de opção do cidadão em questões importantes de sua vida (saúde, previdência, trabalho, educação e etc...). Reduziu-se, enfim, a capacidade de encontrar seus próprios caminhos e de se desenvolver pelas suas próprias decisões. O estatismo paternalista configurado no nosso atual modelo Constitucional resultou da teimosa postura racionalista dos constituintes, cujo traço mais destrutivo é a crença no poder das fórmulas escritas e a excessiva confiança na capacidade e na boa intenção da tecnoburocracia. Para os sonhadores de mentalidade paternalista: “por em letra de forma uma idéia é, de si mesmo, realizá-la. Escrever no papel uma Constituição é fazê-la, para logo, coisa viva e atuante: as palavras têm o poder mágico de dar realidade e corpo às idéias por ela representadas”. Os constituintes não atentaram para o fato, de que grandes reformas, as reformas profundas de caráter social, antes que legal, só sobrevêm, no exercício de um regime

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Foto: Acervo fotográfico do judiciário amazonense

democrático, como produto da vivência constitucional e não apenas da letra constitucional. (Oliveira Viana). De fato, gozar efetivamente de liberdades e garantias definidas na Constituição não é uma questão numérica, mas de eficácia. Em termos quantitativos, a de 1988 foi a mais generosa de toda a nossa história Constitucional. Na Carta anterior eram 36 os direitos e garantias fundamentais; hoje são 77. O constituinte de 88, na sua tentação filantropista e generosa, cristalizou promessas irrealizáveis e confundiu direitos com meras expectativas. Com isso, disseminou ilusões e exacerbou frustrações, porque uma boa parte deste interminável catálogo de direitos ou pseudo direitos, ainda permanece no papel. Mas além da crença no poder das fórmulas escritas, nossos constituintes paternalistas depositaram excessiva confiança na capacidade e vocação pública da tecnoburocracia. Como conseqüência, a Constituição propiciou o crescimento da burocracia oficial, pela absorção de outros poderes desenvolvidos pela sociedade. O equívoco dos nossos legisladores é evidente, num duplo sentido. A burocracia estatal não tem a competência que se lhe emprestou e muito menos a vocação de missionária. O que os constituintes deveriam ter feito, ao invés de fortalecer a burocracia, seria devolver ao homem e as entidades secundárias, econômicas e sociais, o seu legítimo espaço de liberdade de iniciativa. O estatismo com seu inafastável viés paternalista emascula as sociedades que dominam e reduz-lhes a capacidade de encontrar seus próprios caminhos e desenvolver suas próprias soluções. Desestimula o empreendedor, quando não o pune, e leva o homem a se acostumar a esperar resignadamente do Estado a solução de todos os problemas e a despejar-lhe a cornucópia de todas as benesses. Enfim, não cabe ao legislador constituinte resolver os problemas do cidadão, mas os da cidadania. Não lhe cabe igualmente resolver os problemas do governo, mas criar condições para a governabilidade. O paternalismo apresenta outra faceta, também censurável, o medo do exercício da liberdade de iniciativa e o receio da competitividade social. Há que se ter presente que livre iniciativa não significa apenas propriedade privada dos meios de produção. Sua dimensão maior é a liberdade nos seus múltiplos e variados aspectos; que ela não se esgota como sistema econômico, mas é inerente à democracia; que é possível ter-se uma economia relativamente livre com governos autoritários, mas nunca na história do homem se viu uma sociedade politicamente livre que não se baseasse num sistema econômico livre. Nunca. Não há exceções. Contra o Estado paternalista, opõe-se o conceito de sociedade competitiva. Empregos, favores e subsídios

“Os constituintes queriam, sinceramente, resolver todos os problemas do Brasil: deram detalhadas exemplificações programáticas, mas, no momento de atribuir a responsabilidade de encontrar os caminhos do progresso, do desenvolvimento da nação e do bem estar material e psicológico do brasileiro, preferiram confiar no Estado à confiar na sociedade”

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“O constituinte de 88, na sua tentação filantropista e generosa, cristalizou promessas irrealizáveis e confundiu direitos com meras expectativas. Com isso, disseminou ilusões e exacerbou frustrações, porque uma boa parte deste interminável catálogo de direitos ou pseudo direitos, ainda permanece no papel”

discriminatórios são excelentes para captar votos, mas péssimos para criar cidadãos produtivos. Só a competição pode fazer surgir uma geração preparada para o desafio, a nível nacional e global, e não uma geração acomodada e imbele, que se aninha sob as asas do Leviathan e depende de suas migalhas. A política serve para a gestão da coisa pública e não para a produção. Não cabe ao Estado dar, nem mesmo o essencial, mas propiciar que se produza e que os frutos do progresso sejam acessíveis a todos. Enfatize-se que é perfeitamente compreensível que, num país como o Brasil, ainda socialmente desigual, a tese do paternalismo jurídico tivesse dominado o espírito da maioria dos nossos constituintes. Nas estatísticas internacionais, somos o número oito em matéria de Produto Interno Bruto. Mas, no que concerne ao social, o Brasil está inserido entre os mais pobres do terceiro mundo. Nossos indicadores sociais são realmente vergonhosos. Mas levados pelo atrativo social do distributivismo, constituintes paternalistas não consideraram corretamente a quantidade e erraram na dosagem. Utilizou-se o direito como instrumento de distribuição de riquezas, com pouca ou nenhuma preocupação com os meios necessários à implementação das medidas abundantemente contempladas. Não fizeram a distinção entre a norma estimuladora do progresso e a norma que pretenda gerar um progresso independentemente dos processos reais da sociedade. Como nos adverte Hélio Jaguaribe: “a norma facilita ou dificulta o progresso, mas jamais materialmente o gera. A materialização do progresso pertence à ordem dos fatos, não à dos preceitos”. 30

A pergunta que se impõe é a seguinte: Seriam essas normas paternalistas, como imaginaram os constituintes, valiosos instrumentos para eliminar o nosso subdesenvolvimento, a promover o bem-estar geral e criar uma sociedade mais livre, justa e solidária ? É válido, em nossos dias, o modelo de Estado Paternalista? Como a norma legal existe para ser aplicada e não para ser admirada por suas qualidades formais, o teste da eficácia é crucial. Se aparentemente é boa, porque eticamente justificável, nem por isso será adequada. A adequação exige a comprovação empírica: se as normas dirimem os problemas sociais para a solução dos quais foi criada; se a sua aplicação contribui efetivamente para a valorização do trabalhador; se elas estimulam ou, pelo menos, não tolhem a razoável expansão do mercado de trabalho e se elas estão consentâneas com o estágio de desenvolvimento do País: esses são os testes concretos que podem indicar a sua adequação. O paradoxal é que a Constituição fez uma opção distributivista, “precisamente num momento em que o mundo anglo-saxão regressa a uma filosofia produtivista, verberando os exageros do Estado paternalista, as distorções do intervencionismo social e os abusos do poder sindical”. Valem, aqui, as sábias palavras de Hernando de Sotto: “Um direito formulado com fins exclusivamente distributivista não favorece nem aos ricos nem aos pobres, mas sim os que estão melhor organizados para aproximar-se do poder”.

Nota Dicionário de Política, Norbeto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, segunda edição, Editora Universidade de Brasília, verbete paternalismo, página 908

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Foto: Arquivo pessoal

Homenagem ao Superior Tribunal de Justiça Roberto Rosas

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Prof. Titular da Universidade de Brasília Membro do Conselho Editorial

este aniversário da Revista Justiça & Cidadania, nada melhor que homenagear o tribunal da cidadania por seus relevantes esforços e trabalhos nos últimos 25 anos, no número de processos julgados, nas inúmeras teses aprovadas e no aperfeiçoamento do direito brasileiro. A conclusão é assustadora: se o Superior Tribunal de Justiça não tivesse sido criado, o Supremo Tribunal Federal não estaria hoje em crise e sim arrasado. A Constituição de 1988 criou o Superior Tribunal de Justiça, que foi instalado no dia 7 de abril de 1989. Esse fato, realmente, foi determinante para a grande mudança na estrutura judicial, porque afastou-se do Supremo Tribunal Federal toda a matéria infraconstitucional, exceto a criminal, com a intenção de deixar à Corte Suprema precipuamente constitucional.

“O Superior Tribunal de Justiça, nesses 25 anos, tem sido provocado com grande intensidade, talvez como última oportunidade dos demandistas para a fuga dos padrões locais e até a revisão mais qualificada das decisões”

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O Superior Tribunal de Justiça, nesses 25 anos, tem sido provocado com grande intensidade, talvez como última oportunidade dos demandistas para a fuga dos padrões locais e até a revisão mais qualificada das decisões. Verificamos adiante as origens históricas dos problemas do STJ, o excesso de demandas, um panorama das soluções e, finalmente, o futuro da corte para que não sofra dos mesmos males sofridos pelo Supremo, que foram definidores para a necessidade de uma nova corte: o STJ. Na oportunidade dos 25 anos de existência do Superior Tribunal de Justiça impõe-se uma vista sobre a duplicidade de jurisdições, e até mais de duas, quanto ao papel de um tribunal da federação e a evolução, principalmente na República, do prestígio da lei federal. Nesse contexto, que se inicia no Império, passa pelo século XX e deve ser prospectivo com vistas ao século XXI, na dimensão federalista, e até de sua revisão ou ajuste como pregam alguns, está valendo uma visão do Superior Tribunal de Justiça nesse período, até no volume de causas julgadas (três milhões e quinhentos mil processos), no seu papel de corte federal, mas antes de tudo de tribunal nacional. Surgiu então o Supremo Tribunal Federal com nítida vocação para a matéria constitucional; no entanto, coarctada por falta de espaço ou visão políticos, a propiciar, como no nosso modelo americano, a excelência da suprema corte para as questões excepcionais, ou somente constitucionais, e então um tribunal nacional para as demais questões. O projeto do Governo Provisório (1890) admitiu a introdução do writ of error dos americanos no direito brasileiro, com o recurso para o Supremo Tribunal das decisões da justiça estadual contrárias às leis federais. Já o Decreto no 848 (1890) admitiu recurso para o Supremo Tribunal das decisões contrárias à aplicabilidade de lei do Congresso. A Constituição de 1891 acolheu esse recurso. Ora, o writ of error americano tinha como finalidade a correção de erros de direito de uma instância inferior. Chegou-se, portanto, àquele entendimento de Pedro Lessa – aplicação errônea da lei. O Decreto 848 delimitou o Judiciário brasileiro na fase republicana, porque impôs o modelo derivado do regime para a fixação da duplicidade de jurisdições. O Recurso Extraordinário foi criado, portanto, com a múltipla finalidade de por cobro às decisões contrárias à Constituição federal e a má aplicação da lei. Portanto, com duplo objetivo: preservar a Constituição e a lei federal. Como observou Epitácio Pessoa, em 1907, então ministro do Supremo Tribunal Federal, o Recurso Extraordinário era o ponto de maiores controvérsias no direito constitucional, porque destinava-se a atender à jovem federação e à preservação da lei federal, sem mutilar a autonomia estadual. Era a indagação de Alexander Hamilton sobre a jurisdi32

ção federal na Constituição americana e a conveniência de sua abrangência (O Federalista, no 80). A Constituição de 1891 foi alterada no capítulo do Recurso Extraordinário para reduzi-lo na sua importância. Substituição do seu cabimento sobre a aplicação da lei federal por vigência da lei federal (Reforma Constitucional de 1926). Ainda que Pontes de Miranda considere dispensável no regime federativo a unidade de justiça ao contrário é importante na integração da lei federal a uniformização dessa lei, na sua aplicação. Foi assim até o advento da Constituição de 1946, como proclamou Pontes de Miranda, mas a ampliação tem sido benéfica. Na esteira deste século, entramos em 1946, com a quarta Constituição republicana e com ela os problemas da jurisdição do Supremo Tribunal Federal, surgindo então, nessa década, longos trabalhos sobre a chamada crise do Supremo, então com cerca de 5000 processos distribuídos. Que fazer sobre o Supremo Tribunal? Mais especificamente sobre o Recurso Extraordinário? Para amenizar, essa crise, se comparada com o volume atual, era insignificante. Criou-se, então, o Tribunal Federal de Recursos (1947), com competência para os recursos nas causas da União e autarquias, então na competência do Supremo Tribunal Federal, aí tribunal de segundo grau (apelação). Estamos na década de cinquenta. Em 1956, o Supremo Tribunal distribuiu 6.379 processos e julgou 6.126, apenas empreendendo-se alterações procedimentais no Recurso Extraordinário, como o juízo de admissibilidade do presidente do tribunal a quo e da sua negação ao agravo de instrumento, aparente restrição, porque desde essa época, e muito mais hoje, os despachos denegatórios são impugnados mediante agravo. Em 1966, o Supremo Tribunal distribuiu 7.096 processos e julgou 9.175, isso antes da Constituição de 1967. Em 1969, distribuiu 8.023 processos e julgou 9.206. A aguda crise do Supremo reuniu juristas eminentes que preconizaram, em 1965, a criação de novo tribunal para exame do recurso extraordinário (rectius: especial) em matéria não constitucional. A Constituição de 1967 nitidamente restringiu o cabimento do recurso extraordinário com a introdução da expressão negativa de vigência, sobre a qual muito controverteu-se. A restrição não significou a distribuição dessa jurisdição, atribuindo a outro tribunal, nem ontologicamente queria restringir recursos. Foi a solução da restrição na cúpula, sem pensar no início ou no intermédio, isto é, na primeira e na segunda instâncias. A crise continuou, a Constituinte de 1987 debateu-a e enfim encontrou-se a solução com a duplicidade de jurisdições – o Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, com a criação do recurso especial.

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Foto: ASCOM/STJ

“Saudemos o STJ, mas fiquemos atentos para a crise dele, que sejam encontradas soluções sem desnaturar o tribunal da cidadania” O tempo encarregou-se da criação de um tribunal nacional na evolução do antigo Tribunal Federal de Recursos (e a transferência de competência do Supremo Tribunal Federal). Esse longo caminho histórico mostra uma verdade: o Supremo Tribunal Federal, principalmente na fase republicana, vocacionou-se para a matéria constitucional, aquilo que a Carta de 1988 chama de precipuamente constitucional. Somente agora houve a coragem para essa afirmação, sem tirar, desde 1890, de todos os juízes o exame constitucional. Chegou-se então a um tribunal nacional, que não pode ser o Supremo, a quem se reservam as altas culminâncias da proteção da Constituição. O destino exige esse tribunal, que é, no caso, o Superior Tribunal de Justiça. Cabe-lhe, então, a eminência infraconstitucional mais abrangente, ainda que a constitucional seja tópica. Cabe a especulação sobre os seus limites, sua competência. Não se lhe atribuam excessos, porque haverá a inviabilidade de atuação. De 1947 a 1987, 40 anos, verificou-se que o STF não saiu da crise, e o TFR entrou na crise. Novamente soluções e a mais contundente foi a criação do Superior Tribunal de Justiça para conciliar as crises do STF e do TFR. Não bastava a criação de um tribunal e sim lhe dar ossatura, feição própria e mensagem de otimismo aos militantes no Judiciário. Abriuse a grande oportunidade do acesso das demandas a Brasília, na conciliação do poder local, com o federalismo e a isenção de uma corte longe dos embates locais. O cidadão acredita na Justiça e quer acesso, mas também quer a saída no dilema entre a prestação jurisdicional – segura e rápida e isso não é resolvido nas eternas reformas do Judiciário, porque sem reforma estrutural da Justiça, a desburocratização processual e reforma do Judiciário com

objetividade, estaremos enganando a sociedade, os juízes, os advogados e os jurisdicionados. Sem reforma processual profunda e objetiva para a massa das demandas nada será feito. Processo para todas as camadas, e não processo complexo que não atinge as milhões de demandas em curso no Brasil, e não solução para os órgãos de cúpula do Judiciário, vítima das conseqüências de um intrincado sistema processual, vazio de soluções para resolver, somente na cidade de São Paulo, a mais de dois milhões de processos que lá circulam. Essa corte foi criada para ajudar no combate à crise. Tem lutado tenazmente para superá-la e atender ao cidadão, que respeita a Justiça, acredita no Judiciário, o mais respeitado, e acatado dos Poderes, aqui e no mundo. Necessita de meios e de fórmulas, mas o mundo jurídico agradece a esse Tribunal pelo que fez, e fará, mas nos unamos numa cruzada, para evitar uma chamada crise do Superior Tribunal de Justiça. Essas observações refletiram a preocupação dos 25 anos. Vejamos então, se as observações procediam na superação de uma futura crise do Superior Tribunal de Justiça. Muito esforço tem sido empreendido pelas administrações, e o profundo entendimento dos ministros no atingimento de metas ideais, numa corte, talvez a mais gigante do mundo, onde cada ministro recebe cerca de mil processos, mensalmente. Com a maior diligência, se o magistrado julgar trinta processos por dia (inclusive domingos e feriados), concluirá o mês com 900 processos findos, e na prateleira, para o mês seguinte, com 100 processos. Saudemos o STJ, mas fiquemos atentos para a crise dele, que sejam encontradas soluções sem desnaturar o tribunal da cidadania.

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A mobilidade urbana, as cidades e a qualidade de vida que oferecem Lélis Teixeira

Presidente Executivo da Fetranspor Membro do Conselho Editorial

Foto: Divulgação

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oportunidade de participar deste número especial de tão conceituada Revista muito nos honra e alegra. São 15 anos acompanhando a trajetória da publicação, percebendo, ao longo do tempo, a já excelente qualidade de seus textos, impressão e programação visual, sempre em aprimoramento constante. Fazer parte da edição comemorativa do 15o aniversário da Justiça & Cidadania é, pois, motivo de grande orgulho. O momento é de grandes mudanças em nossas cidades, e o Rio de Janeiro está entre aquelas que sofrem transformações radicais. Obras por toda a parte preparam a nossa região metropolitana para um novo modelo de transporte que certamente mudará a vida de cariocas e fluminenses, oferecendo mais integração entre os modais, corredores de BRT e linhas de Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). Em suma, oferecendo mais qualidade de vida. Quando falamos no legado que os eventos esportivos mundiais que aqui serão realizados deixarão para a população, falamos mais do que em transporte, mas em mobilidade e em tudo que ela implica. Há um esforço conjunto, do poder público e da iniciativa privada, no sentido de criar as bases para uma mobilidade urbana capaz de mudar para melhor a vida em nossas cidades. Para tal, investimentos estão sendo feitos na revitalização da zona portuária da cidade maravilhosa, em corredores exclusivos para ônibus, infraestrutura viária, mobiliário urbano etc. Ao se criar um projeto de mobilidade, mexe-se, na verdade, com o modelo de cidade e, consequentemente, com a vida dos seus habitantes. Deslocamentos feitos em segurança e em tempo razoável, melhor qualidade do ar, menores índices de ruído, espaços para os pedestres, ciclovias, facilidade de integração entre os modais tornam os espaços urbanos moldados às pessoas e não aos veículos.

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Transformam as cidades em locais mais agradáveis de se Ao todo, estão previstos 160 quilômetros de BRT, com viver, facilitam a vida dos cidadãos e os tornam mais felizes. uma frota com mais de 700 ônibus articulados, em beneAs mudanças se fazem provocando transtornos para o fício a mais de um milhão de passageiros. Essas melhorias trânsito e o transporte, e não há como evitá-los. Mas as implicam grandes investimentos por parte dos operadores, vantagens são inegáveis: a derrubada do elevado da Perinão apenas em frota, mas em comunicação, treinamenmetral, por exemplo, representa a opção pelo coletivo, em to de grande massa de trabalhadores, equipamentos etc. detrimento do individual. Ao ser construído, em 1950, foi Em seu quinto ano de atividade, a Universidade Corpoolhado como exemplo de progresso. Era a primeira via elerativa do Transporte (UCT) capacita rodoviários de todos vada do País e se destinava unicamente aos automóveis. A os níveis, inclusive com a utilização de simuladores, para partir daí, outras obras passaram a descaracterizar nossa os motoristas dos corredores exclusivos, em extenso proregião metropolitana, sempre privilegiando os usuários grama educacional, realizado por meio de parcerias com de automóveis – a minoria –, que vieram a ocupar mais e algumas das mais respeitáveis entidades de ensino e camais os espaços nas vias, enquanto o transporte público, pacitação profissional do País. Uma publicação bimestral em seus variados modais, foram relegados ao segundo plafoi criada como ferramenta de valorização dessa categoria no, sem investimentos significativos ou políticas públicas profissional (“Indo & Vindo – a revista do rodoviário”). voltados para eles. O resultado da adoção dessas medidas Sua tiragem é de mais de 100 mil exemplares, para asseequivocadas, todos conhecemos: cidades quase imobilizagurar que chegue a cada um dos integrantes do sistema. A das pelos constantes congestionamentos, ruas saturadas de iniciativa foi reconhecida, pela Aberje, no ano passado, em veículos, desperdício de compremiação regional abrangenbustível, aumento da poluição do os estados do Rio de Janeiro aérea, deterioração de espaços e Espírito Santo. comerciais e residenciais, mau Mas isso ainda não é tudo: “A derrubada do elevado da Perimetral uso do solo urbano. existem esforços para minorar representa a opção pelo coletivo, Por tudo isso, ao ser demoo impacto ambiental causado lido, tantas décadas depois, o pelo transporte, como a utiliem detrimento do individual. Ao ser elevado simboliza o fim de uma zação de ônibus híbridos e eléconstruído, em 1950, foi olhado como forma de planejar as cidades. tricos, a utilização de diesel de Os nossos governantes finalcana-de-açúcar, a participação exemplo de progresso. Era a primeira mente investem em urbes mais em programas como o Econovia elevada do País e se destinava justas, com deslocamentos mais mizAR – em que o empresariaunicamente aos automóveis” democráticos, que dão privilédo do Rio de Janeiro é pioneiro, gio às vias para a maioria que tendo feito os primeiros testes usa o transporte coletivo nas – e o Selo Verde. E a tecnolosuas viagens diárias entre casa gia, que não pode ser esquecida e trabalho, para cumprir compromissos sociais, tarefas die é utilizada para facilitar embarques, no caso dos cartões versas e lazer. A destinação de verbas públicas para obras de RioCard, ou para informar os clientes do sistema, como os mobilidade urbana; a Lei no 12.587/12, que obriga os munirecentes aplicativos que já permitem aos passageiros consultarem o melhor itinerário ou a localização do seu ônibus cípios a elaborarem seus planos de mobilidade; a colocação pelos seus smartphones. do tema nos debates políticos; e a implantação de alternatiA emulação para que se reflita sobre as questões da movas como o BRS, aqui no Rio de Janeiro e o BRT, o VLT e bilidade está presente em iniciativas como o Prêmio Mobioutras, demonstram a nova tomada de posição. lidade Urbana, que engloba cinco categorias: Jornalismo; Há muito o empresariado de transporte por ônibus Educação e Cultura; Responsabilidade Social e Meio Amdeste Estado, por meio da Fetranspor, defende soluções biente; Relacionamento com o Cliente e Planejamento de como implantação de corredores exclusivos, melhoria de Transporte e Tecnologia, e o Congresso sobre Transporte terminais rodoviários, racionalização das linhas urbanas, de Passageiros (Etransport) – o maior evento da categoria política tarifária justa, remanejamento de horários das na América Latina, cuja 16a edição ocorrerá nos dias 5 a 7 diversas categorias de trabalhadores, entre outras, como forma de melhorar a qualidade dos serviços prestados e de novembro, no Riocentro e para o qual convidamos os diminuir o tempo das viagens. As soluções que começam leitores da Justiça & Cidadania. A mobilidade inteligente, a ser adotadas incentivam o segmento a continuar a fazer tema do evento, é uma forma de garantirmos às próximas parte deste esforço em prol de cidades mais funcionais, gerações metrópoles funcionais e acolhedoras. É isso que com mobilidade urbana de melhor qualidade. buscamos, incessante e incansavelmente. 2014 Maio | Justiça & Cidadania 35


Terrorismo judiciário Siro Darlan

Desembargador do TJRJ Membro da Associação Juízes para a Democracia Membro do Conselho Editorial

Foto: TJRJ

E

m nome de Deus, muitas guerras “santas” fraticidas foram declaradas; e, em nome da Justiça, tenebrosas injustiças são praticadas. Assim como Deus é a Luz do Mundo, a Justiça deve ser o farol de segurança do respeito às regras de convivência humana traçadas pela Constituição que foi escrita para a sociedade como garantia do equilíbrio entre os desiguais e o respeito às diferenças. Precisamos estar atentos para os movimentos que estão se proliferando de perseguição a determinados magistrados, colegas de primeiro grau, em razão de seus posicionamentos judiciais, pessoais, filosóficos ou doutrinários. Na década de 80, quatro magistrados foram submetidos a julgamentos secretos e, após expedientes indignos da 36

Justiça, tiveram suprimidos os meios mínimos de defesa e acabaram condenados à perda do cargo pelo simples fato de haver contrariado interesses economicamente poderosos. Posteriormente, as cortes superiores corrigiram essa aberração persecutória, mas aí as forças do mal já haviam atingido seus objetivos. A independência do juiz é de natureza jurídicoadministrativa, fazendo parte da relação do juiz com o Estado. Assim como as demais garantias da magistratura, está inserida num amplo contexto, que corresponde à independência do Poder Judiciário e à imparcialidade do magistrado. Eduardo Couture afirma que “da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e em um momento determinado, o que valham os juízes como homens. No dia em que os juízes têm medo, nenhum cidadão pode dormir tranquilo”. A independência do juiz, primeiro, é uma garantia do próprio Estado de Direito, pelo qual se deu ao Poder Judiciário a atribuição de dizer o direito, direito este que será fixado por normas jurídicas elaboradas pelo Poder Legislativo, com inserção, ao longo dos anos, de valores sociais e humanos, incorporados ao direito pela noção de princípios jurídicos. A independência do juiz, para dizer o direito, é estabelecida pela própria ordem jurídica como forma de garantir ao cidadão que o Estado de Direito será respeitado e usado como defesa contra todo o tipo de usurpação. Neste sentido, a independência do juiz é, igualmente, garantia do regime democrático. Importante, ademais, destacar que a questão da independência dos juízes tratou-se mesmo de uma conquista da cidadania, pois nem sempre foi a independência um atributo do ato de julgar. Ora, não há dúvida que essa garantia vem sendo solapada por campanhas de desvalorização dos profissionais

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“Precisamos estar atentos para os movimentos que estão se proliferando de perseguição a determinados magistrados, colegas de primeiro grau, em razão de seus posicionamentos judiciais, pessoais, filosóficos ou doutrinários”

da justiça, através de parcela de uma mídia comprometida na prestação de serviços a setores poderosos e de políticos interessados na impunidade e no enfraquecimento do judiciário. Campanhas com essa finalidade acabam gerando juízes medrosos, covardes e acanhados, com medo de um necessário ativismo judicial, onde através de decisões corajosas e independentes reflitam a verdadeira independência do Poder Judiciário e não uma subserviência aos mais poderosos midiática e economicamente. Mas quando essa pressão ocorre dentro da própria casa de Justiça, o fato é de uma gravidade ainda maior porque é necessário identificar a que interesses essa ação deletéria está a servir, além de se estar dando um tiro no pé e armando os adversários com argumentos insuperáveis. É preciso que a sociedade esteja atenta e acompanhe de perto e com interesse na proteção da magistratura como um todo. Desmandos administrativos, comportamentos não éticos ou condutas negligentes com os deveres constitucionais e funcionais devem sempre ser corrigidos, seja no âmbito do controle interno, seja através do próprio controle social; mas a perseguição sub-reptícia, a ameaça de procedimentos punitivos, ou a própria instauração de processos, tão somente em razão de decisões proferidas no âmbito do processo judicial ou em razão de opiniões acadêmicas, refogem inteiramente dos próprios princípios republicanos que fundamentam a Constituição da República. A independência do juiz é condição basilar para a garantia dos direitos fundamentais e não podemos deixar que esta ou aquela administração se valha de seu mandato temporário e fugaz para solapar, através de um terrorismo administrativo, os próprios pilares do Estado Democrático de Direito. 2014 Maio | Justiça & Cidadania 37


Foto: Assis Lima/TJPE

O nascituro órfão Jones Figueirêdo Alves

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Desembargador do TJPE Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)

esigna-se como nascituro aquele que, concebido, há de nascer e que, em vida-intra-uterina, tem sua existência já tutelada (a exemplo dos alimentos gravídicos), bem como os seus direitos postos a salvo, desde a concepção; tudo conforme a leitura concepcionista do artigo 2o do Código Civil, embora sua personalidade civil comece do nascimento com vida. Significa, assim, o ser já concebido e gestado, aguardando no ventre materno o evento maior, o de exsurgir para a vida terrestre com sua vida como pessoa. Aquele que ainda não nasceu e haverá, por certo, de nascer com vida. 38

Há quem sustente que o nascituro também será o ente concebido e ainda não gestado, ou mais precisamente o que está em vida extra-uterina, conceituado como embrião pré-implantatório, resultado de técnicas de reprodução medicamente assistida, ou seja, aquele de concepção “in vitro” e crioconservado em nitrogênio líquido. Significa, assim, que nascituro será também o embrião, como tem sustentado, modernamente, juristas do elevado porte de Silmara Juny Chinelato (autora da clássica obra “Tutela Civil do Nascituro”, 1999) e Flávio Tartuce (2007). De tal ordem, presente a figura do artigo 1.597, inciso IV, do Código Civil, ou seja, a do embrião excedentário, havido a qualquer tempo.

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Pois bem: nessa ordem de ideias, dominante na doutrina moderna, a teoria concepcionista, tendo o nascituro seus direitos reconhecidos desde a concepção, pontua-se, para o propósito do tema, a figura do nascituro órfão, certo que essa situação insere-se em três realidades assentadas por fatos da ciência ou da própria vida: (i) o havido por concepção artificial homóloga “post mortem”, por técnicas de inseminação do sêmen (artigo 1.597, III, Código Civil); (ii) o havido por ulterior implantação, como embrião excedentário, quando já falecido o genitor (artigo 1.597, III, Código Civil); (iii) o nascituro, que durante a gestação, tem a perda superveniente do genitor (por causas diversas), não o conhecendo ao nascer. O tema tem sido enfrentado pela doutrina, designadamente quanto às duas primeiras hipóteses, quando induvidosa e admitida a paternidade póstuma, a teor dos reportados incisos do artigo 1.597 do Código Civil. A Resolução no 1.957, de 6 de janeiro de 2011, do Conselho Federal de Medicina, dispõe a respeito, ao dizer não constituir ilícito ético a reprodução assistida “post mortem”, “desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente”. A fecundação “post mortem” tem tratamentos diferen­ ciado nas diversas legislações, bastando referir que a proíbem as leis da Suécia (1985) da Alemanha (1990) e de Portugal (Lei 32, de 26 de junho de 2006, art. 22, 1 e 2), certo ainda que (i) a lei portuguesa admite, porém, lícita a transferência “post mortem” de embrião, diante de projeto parental definido por escrito antes da morte do pai (idem, art. 22, 3) e (ii) a lei da Espanha, embora admita, impõe prazo máximo da inseminação “post mortem”, de doze meses após a morte do marido (Lei no 35/1988, art. 9o). Afinal, a inseminação “post mortem” tem dois paradigmas emblemáticos: (i) O mitológico – quando encontra Isis reconstituindo os restos mortais de Osíris, para fecundar a si mesma e; (ii) o humanista – quando, por exemplo, do esforço afetivo de uma mulher enlutada, na corrida contra o tempo, para recolher, em no máximo trinta e seis horas, o sêmen de seu noivo Johhny Quintana, morto por ataque cardíaco. Ela, Gisela Marrero, obteve da corte do Bronx (NY, EUA) a autorização para a coleta. Desde quando Corine Parplalaix reivindicou junto à corte de Creteil (França) o sêmen de seu marido falecido, Alain, e por ela autorizada à inseminação (8/1984), iniciaram-se, nos âmbitos ético e jurídico, as inquietantes peculiaridades dos seus efeitos, com debates a respeito. O principal deles, sem dúvida, é o da criança ser gerada em situação de orfandade.

Na terceira hipótese, a orfandade, mais das vezes, porém, é situação imposta em decorrência de culpa de terceiro, quando por acidentes de trabalho ou por atos de uma criminalidade não controlada adequadamente pelo Estado. Essa orfandade é a mais cruel e dramática, porquanto as anteriores decorrem, como observado, de projetos parentais que, via de consequência, asseguram a vida a quem poderia não ter vindo ao mundo. No ponto, assinala-se que “maior a agonia de perder um pai, é a angústia de jamais ter podido conhecê-lo, de nunca ter recebido um gesto de carinho, enfim, de ser privado de qualquer lembrança ou contato, por mais remoto que seja, com aquele que lhe proporcionou a vida” (STJ – REsp. no 931556, j. em 17.6.2008). Nessa toada, tem sido de há muito admitido, pelos tribunais nacionais, que o nascituro tem direitos a danos morais, pela morte do pai – consagrando-se a teoria concepcionista – e sem distinção de valor indenizatório em relação aos filhos já nascidos. Agora, na mesma latitude, em acórdão de 03 de abril corrente, a 2a Seção do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal acaba por findar séria controvérsia jurisprudencial ao reconhecer que uma criança, hoje com sete anos, deva receber uma indenização de 20 mil euros por danos morais e mais 45 mil euros pela perda de alimentos, causados pela morte do pai que nunca chegou a conhecer. O julgado reformou decisão do Tribunal de Relação do Porto. “Repugna ao mais elementar sentido de justiça – e viola o direito constitucional da igualdade – que dois irmãos, que sofrem a perda do mesmo progenitor, tenham tratamento jurídico diferenciado pela circunstância de um deles já ter nascido à data do falecimento do pai (tendo 16 meses de idade) e o outro ter nascido apenas 18 dias depois de tal acontecimento fatídico, reconhecendo-se a um e negando-se a outro, respectivamente, a compensação por danos não patrimoniais próprios decorrentes da morte do seu pai”, subscreve o Relator Álvaro Rodrigues (Proc. 436/07.6TBVRI.P1S1). A decisão invocou o art. 26o da Constituição Portuguesa, para dar uma interpretação não limitativa ou discriminativa ao art. 496o do Código Civil, superando, destarte, o art. 66o, II, do mesmo estatuto civil. (Web: http://www.stj.pt/jurisprudencia/basedados). Diante de indicadores sociais de mulheres grávidas que perderam os seus maridos por mortes provocadas pela insegurança pública do Estado, impotente em preservar a vida do cidadão comum, segue-se, então, considerar, que os nascituros órfãos serão havidos filhos do Estado. Com essa condição, merecedores de indenização civil pela perda do pai e ao direito a uma vida digna, como a vida deve ser em sua dignidade existencial, indistintamente, a cada um.

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E m foco, Giselle Souza

Violência contra jornalistas Em meio ao aumento do número de agressões a profissionais, evento promovido pelo STF e pela ONU ressalta os desafios do Poder Judiciário para assegurar a liberdade de expressão e de imprensa no Brasil

O

Brasil amargou a segunda posição no ranking mundial dos jornalistas assassinados em razão da profissão, foi o que revelou uma pesquisa da organização internacional de defesa da liberdade de imprensa Press Emblem Campaing (PEC), divulgada em meio às comemorações do Dia do Jornalista, dia 7 de abril. Infelizmente, esse não foi o único estudo publicado na data a reafirmar o aumento de agressões contra os profissionais da imprensa. O fato chamou a atenção e acabou sendo um dos pontos nevrais do seminário “A Liberdade de Expressão e o Poder Judiciário”, promovido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em parceria com as Relatorias Especiais de Liberdade de Expressão das Nações Unidas (ONU), a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), na sede do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), nos últimos dias 7 e 8 de abril. O ministro Joaquim Barbosa, presidente do STF e do CNJ, participou da abertura do seminário e em seu pronunciamento, ao ser questionado sobre os ataques cada vez mais frequente a jornalistas, se solidarizou com os profissionais que participavam do evento ao afirmar que “no Brasil, o número (de agressões) é expressivo”. Dados apresentados por representantes do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, reforçam a constatação do ministro. Segundo um levantamento feito pelo órgão, o número de agressões contra profissionais da imprensa cresceu 232% em 2013. 40

Manifestações De acordo com o relatório produzido pelo Conselho, os casos de violência saltaram de 41 em 2012 para 136 no ano passado. A maior parte deles ocorreu nas manifestações populares que tomaram contas das ruas a partir de junho de 2013. Uma contagem feita pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) também confirmou o aumento da violência com o início dos protestos. De 10 de maio do ano passado até o fechamento desta edição, a entidade registrava agressões a 169 jornalistas. A maioria ocorreu durante as coberturas das manifestações e partiu de autoridades policiais. Com relação ao número de jornalistas assassinados, a pesquisa citada no início da reportagem mostrou que o Brasil vem logo depois do Iraque, que ocupa o primeiro lugar no ranking. Segundo o estudo, dos 27 profissionais executados nos três primeiros meses deste ano no mundo todo, quatro eram brasileiros. Os iraquianos somavam cinco. Segundo constatou o relatório da organização internacional PEC, o número de mortes no Brasil foi superior ao verificado na Síria, país que se encontra em guerra civil e registrou o assassinato de dois jornalistas no trimestre; e o Afeganistão, que contabilizou três mortes no período. O Brasil tem sido apontado por entidades ligadas à defesa da liberdade de expressão como um dos países mais perigosos do mundo para exercer o jornalismo. Também em 2013, o País foi considerado o mais fatal para a profissão em todo o continente, com um total de cinco assassinatos, segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras. No seminário sobre a liberdade de expressão realizado no TJRJ, o presidente do STF e do CNJ analisou o contexto das agressões contra os jornalistas no Brasil. Segundo Joaquim Barbosa, antes dos protestos que ganharam as ruas, a grande maioria dos casos se dava nos rincões do País “nas periferias e nas áreas onde os apóstolos dessa violência contra os comunicadores vivem com conforto”. O aumento da violência contra jornalistas também tem preocupado os organismos internacionais. Catalina

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Foto: Rosane Naylor/TJRJ

Presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa (centro), defende a criação de um marco legal para a imprensa. “Temos que ter balizas”, disse.

Botero, relatora especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ressaltou na abertura do seminário, que a liberdade é imprescindível aos países democráticos. “Não temos direitos políticos quando não temos liberdade de expressão”, destacou. Frank la Rue, relator especial das Nações Unidas para a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e de expressão, explicou que esse direito se caracteriza pela garantia que a sociedade tem de obter e disseminar informações. Ele lembrou que essa liberdade sempre é a primeira a ser atacada pelos governos autoritários. “Creio que uma Justiça forte e a liberdade de se expressar são fundamentais a uma democracia. Devemos defender a participação, assim também como são as limitações legítimas desse direito, para que não sejam convertidas em censura”, destacou. Guilherme Canela, assessor regional da UNESCO para Comunicação e Informação no Mercosul e Chile, frisou que a liberdade de expressão não é somente um direito de jornalistas. “É central para a governança das instituições públicas. E em relação a esse tema, há velhos e novos desafios sobre a mesa e sobre os quais o Poder Judiciário pode desempenhar um papel fundamental”, afirmou. Punição Em mensagem pronunciada no ano passado, em saudação ao Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, comemorado em 3 de maio, o secretário-geral da ONU,

Ban Ki-moon, e a diretora-geral da Unesco, Irina Bokova, alertaram que 90% dos casos de violência contra jornalistas ficam sem punição. No que se refere ao Brasil, o presidente do STF e do CNJ afirmou que o Poder Judiciário precisa intensificar a atuação nesses casos. “Lamentavelmente, o Brasil tem testemunhado atos de violência contra comunicadores e jornalistas. Isso deve ser combatido de forma prioritária”, frisou. Garantir a punição nos casos de agressões ou mesmo de assassinatos de jornalistas constitui-se um importante lado da atuação cobrada por Joaquim Barbosa dos tribunais no campo da liberdade de expressão, mas não é o único. O ministro destacou a necessidade do Judiciário dar maior atenção a essa temática. O ministro lembrou que a liberdade de expressão é um direito de primeira geração, que se encontra presente em mais de 90% das Constituições do mundo. “Trata-se de um direito fundamental para a construção de uma sociedade democrática. É o melhor antídoto para desmandos e para que a sociedade forme sua própria opinião”, ressaltou. Um dos problemas do Judiciário brasileiro para efetivar esse direito, porém, está na falta de preparo. A presidente do TJRJ, desembargadora Leila Mariano, lembrou que nem todos os magistrados viram, na faculdade de Direito, disciplinas específicas sobre liberdade de expressão e de imprensa. “O Poder Judiciário do Rio tem tradição na análise de questões ligadas à liberdade de expressão. Nossa jurisprudência se alarga dia a dia. Também no dia a dia,

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Foto: Rosane Naylor/TJRJ

buscamos complementar a formação dos magistrados. Muitos sequer tiveram contato com essas matérias nos bancos das faculdades”. Joaquim Barbosa confirmou essa realidade. Segundo afirmou, ele mesmo só veio a estudar esses temas com mais profundidade na pós-graduação. “Eu tive a felicidade de vê-los, mas somente na pós-graduação. Por aí, verificamos a gravidade: o magistrado sequer é educado para apreciar essas questões”, lamentou. Na avaliação do ministro, esse quadro vem mudando substancialmente nos últimos anos com a atualização da grade curricular dos cursos de Direito por muitas universidades. No entanto, a falta de leis específicas para regular os diversos aspectos que abrangem o direito à liberdade de expressão e de imprensa acabam por colaborar com um certo caos nesse campo. A principal norma sobre a comunicação no Brasil continua a ser o Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962. Na época em que a legislação foi editada, o País não contava com telefonia fixa nem internet tão disseminadas entre a população. Joaquim Barbosa defendeu um marco legal para a imprensa brasileira. “Na vida social, temos necessidade de estabelecer balizas. E isso é importante porque ajuda o magistrado que está para resolver os conflitos. Sem um marco legal, o juiz, na maior parte das situações, não vai saber o que fazer”, destacou. O Ministro citou como exemplo uma série de questões contraditórias que podem chegar ao Poder Judiciário. Uma delas diz respeito à prevalência do direito à liberdade de expressão e à informação. Ele reforçou que nenhum dos dois são absolutos. Portanto, embora estejam assegurados na Constituição, estes não podem se sobrepor a outros direitos também constitucionais, como os direitos à intimidade e à vida privada. À discussão acerca da prevalência dos direitos, o Ministro somou outras que também podem gerar polêmicas nos tribunais. Ele citou como exemplo o “boom do jornalismo via internet”, ressaltando que “ao mesmo tempo em que fortalece o pluralismo de opiniões, a internet pode permitir também a circulação de informações produzidas com baixa qualidade e precariedade”. O marco legal da rede ainda se encontra em apreciação no Congresso Nacional. Segundo o Ministro, a falta de normas específicas é um desafio para o Judiciário. “O grande desafio do Poder Judiciário residirá nas circunstâncias em que determinadas decisões podem ou não ser aplicadas. É grande a contribuição de eventos como esses. É por meio da análise e de diálogos sobre a liberdade de expressão e a atividade de jornalismo no Brasil que poderemos refletir sobre a liberdade de imprensa”, disse. E destacou: “Falta de norma só serve ao mais forte, a quem detém o poder e a quem

“O Brasil tem sido apontado por entidades ligadas à defesa da liberdade de expressão como um dos países mais perigosos do mundo para exercer o jornalismo… o País foi considerado o mais fatal para a profissão em todo o continente, com um total de cinco assassinatos, segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras”

tem dinheiro. Não estou defendendo a censura, mas a vida social é feita de constantes choques e embates de direitos de pessoas e grupos. Sem balizamento, seja do Estado ou mesmo dos próprios integrantes de um determinado sistema produtivo, aquele que tem a competência para resolver os conflitos que surgirem entre essas pessoas ou grupos, tem dificuldade para fazê-lo. Daí a necessidade de sempre termos um mínimo de balizamento. Não pode haver um vazio, pois isso vai favorecer justamente o mais forte”, acrescentou. Democratização Sobre os desafios para a imprensa brasileira, e para o Poder Judiciário no caso de ser chamado a intervir a fim de garanti-los, Joaquim Barbosa destacou a democratização dos meios de comunicação. “Falta diversidade que expresse todo o espectro complexo da sociedade brasileira, em especial na diversidade racial, que não se encontra espelhada no panorama audiovisual brasileiro. Há também ausência de minorias em liderança e controle da maior parte dos meios de comunicação desse País”, alertou. O seminário abordou diferentes aspectos da liberdade de expressão ao promover um debate acerca de temas tais como a violência contra jornalistas e a obrigação do Estado de proteger e investigar os crimes cometidos, o acesso à informação e internet e o Poder Judiciário, assim como o Direito Penal e liberdade de expressão. O evento, que contou com a moderação de jornalistas de veículos nacionais, se propôs a reforçar a importância da liberdade de expressão para a construção de uma democracia plena e a realçar o papel da Justiça para a preservação e o fortalecimento desta liberdade.

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A farsa da democracia

Antonio Carlos Martins Soares

A

Procurador Regional da República na 2ª Região Membro do Conselho Editorial

democracia tal como é hoje praticada nos países ocidentais e imposta ao resto do mundo como modelo de regime político se apresenta como um verdadeiro embuste. A começar pelo acesso aos mandatos eletivos, passando pelo espaço nos veículos de comunicação, a disputa entre candidatos se mostra inteiramente desigual. Por outro lado, a defesa intransigente da democracia pela maioria dos veículos de comunicação se deve mais a interesses próprios do que por convicção ideológica. É que o acesso e a manutenção do poder nas democracias ocidentais depende decisivamente do desempenho da mídia nos períodos eleitorais. Dessa interação espúria entre eleitos e a imprensa audiovisual nasce uma relação de cumplicidade, tornando ambos parceiros inseparáveis do jogo político. A opinião pública é um fenômeno social, pelo qual a maioria dos membros de um grupo ou de uma comunidade adota como verdadeira determinada orientação a respeito de qualquer assunto. E o domínio da técnica para formá-la e orientá-la tornou-se, por assim dizer, uma das maiores invenções do século XX, pela sua força de persuasão: a propaganda. No começo, a liberdade de imprensa era a manifestação da liberdade individual de expressão e opinião. No entendimento liberal clássico, assevera Vital Moreira (O direito de resposta na comunicação social, editora Coimbra, pag. 9/10 ), a liberdade de criação de jornais 44

e a competição entre eles asseguravam a verdade e o pluralismo da informação e proporcionavam aos veículos de expressão, por via da imprensa, a todas as correntes de opinião. Mas a seguir, prossegue, se revelou que a imprensa era também um poder social, que podia afetar os direitos dos particulares quanto ao seu bom nome, reputação, imagem etc. Por outro lado, a liberdade de imprensa tornou-se cada vez menos uma faculdade individual de todos, passando a ser cada vez mais um poder de poucos. Hoje em dia, como é notório, os meios de comunicação de massa deixaram de ser a expressão de liberdade e autonomia individual dos cidadãos, antes revelam os interesses comerciais e ideológicos de grandes organizações empresariais, institucionais ou de grupos de interesses. Daí porque o acesso aos veículos de comunicação de massa passou a ser determinante na disputa entre candidatos em qualquer eleição. Nesse aspecto, a legislação eleitoral favorece demasiadamente os partidos com longa permanência no poder, em detrimento da indispensável renovação dos quadros, tanto no Legislativo, quanto no Executivo. A lei no 9.504/97, ao disciplinar a matéria, conferia a cada partido ou coligação que tenham candidato e representação na Câmara dos Deputados, assim distribuído: 1/3 igualitariamente; 2/3, proporcionalmente ao número de representantes na Câmara dos Deputados, considerado, no caso de coligação, o resultado da soma do número de representantes de todos os partidos que a integram ( art. 47, inciso VI, § 2a, da Lei no 9.504/97).

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Foto: Arquivo JC

Essa fórmula se justificaria, segundo os partidos majoritários, porque o acesso e o tempo de exposição na mídia deve ser proporcional em cada pleito eleitoral ao número de representantes no parlamento, verificado na última eleição. Ora, se assim devesse ser, cada eleição deveria ser um prolongamento da anterior, para justificar essa flagrante e injusta desigualdade. Ao contrario, a cada quatro anos, em cada eleição, todos os candidatos devem partir em rigorosa igualdade de condições a fim de que todos tenham as mesmas oportunidades para exporem os seus programas de governo, exercerem o seu direito de crítica e, por fim, permitirem ao eleitorado exercer o seu direito de escolha. A recente mudança na legislação eleitoral (Lei no 12.875/13, que deu nova redação ao art.47, § 2a, incisos I e II, da Lei no 9.504/97) ao reduzir o acesso aos palanques eletrônicos em até 67% das denominadas legendas nanicas, agravou ainda mais esse desequilíbrio. A nova regra determina que apenas 11% do tempo destinado a propaganda eleitoral nos veículos de comunicação será reservado aos partidos nanicos, em vez dos 33% anteriormente concedidos. Essas regras, a toda evidencia, afrontam o postulado da igualdade de oportunidades que deve orientar todo regime que se pretenda democrático. A melhor maneira de se escolher um candidato é facilitar a sua exposição na mídia: quanto maior a sua inépcia ou a sua eficiência, isso vai depender dele próprio.

“Hoje em dia, como é notório, os meios de comunicação de massa deixaram de ser a expressão de liberdade e autonomia individual dos cidadãos, antes revelam os interesses comerciais e ideológicos de grandes organizações empresariais, institucionais ou de grupos de interesses”

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A licitação de transporte público: um beco sem saída

Darci Norte Rebelo

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Advogado Membro do Conselho Editorial

Lei no 8.666/93 foi concebida por engenheiros para obras de engenharia e não para compras de bens e serviços de consumo usual pela administração e muito menos para delegação de serviços públicos em que a administração nada despende. A primeira carência foi suprida pela Lei do Pregão; a segunda, para obras da Copa do Mundo, Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, infraestrutura de aeroportos e outras, pela lei do Regime Diferenciado de Contratações. Mas para a terceira, delegação de serviços públicos, a única solução é adaptar a roupagem da Lei no 8.666 e fazêla entrar, apertada ou frouxa, conforme o caso, no corpo estranho das concessões e permissões de serviços públicos. A Lei no 8.987/95, pelo menos, criou algumas regras específicas mas também não fez vestimenta completa, sob medida, para os serviços públicos. No entanto, ainda assim, seria possível encontrar respostas, mesmo que não plenamente satisfatórias, para dar solução a diversas perguntas que essa deficiência da legislação de licitações e concessões apresenta para o caso de delegação de serviços públicos e o destino dos trabalhadores e das empresas com a cessação da atividade destas. Mas as soluções esbarram (a) na própria administração que, nos editais de licitação, não estabelece, podendo fazê-lo, condições para resolver essas questões; (b) no Ministério Público que, de Norte a Sul, pressiona a 46

administração com a propositura de ações civis públicas com objetivo licitatório; (c) no Poder Judiciário, a partir do STJ, que alimenta a irresponsabilidade do poder público, abonando condutas danosas por este praticadas sob fundamento de que a inexistência de licitação priva as empresas de qualquer direito como a indenização de prejuízos por tarifas políticas e violação da regra básica da delegação, a regra do equilíbrio. Ressalva feita ao STF que ignorou corretamente tais pressupostos nos casos Transbrasil e Varig. Nenhuma delas passou por essa pia batismal da licitação. De resto, também as mais recentes: Tam, Gol, Azul e outras. O Distrito Federal tentou, por conta própria, dar uma resposta, ainda que parcial, à situação dos trabalhadores das empresas afastadas no processo licitatório. O Ministério Público do Trabalho, sensível ao problema, celebrou um TAC com os diversos atores em que se estabelecia que os vencedores re-empregariam os empregados despedidos sem que isso caracterizasse sucessão trabalhista e o Governo do DF, por sua vez, assumiria o compromisso de indenizar os trabalhadores do transporte público. Para cumprir a sua parte, o DF obteve aprovação da Lei no 5.409/2013, que abria crédito orçamentário para pagamento de indenizações, importando a despesa a cerca de R$ 120 milhões. Entre outros, o fundamento legal do TAC era o do art. 486 da CLT, o chamado “fato do príncipe”,

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Foto: Arquivo pessoal

“O edital, portanto, é a única oportunidade que o administrador público tem para regular as regras de saída dos trabalhadores e das empresas alijadas pela licitação. A verdade, porém, é que o poder público nada faz, quer na órbita interestadual, quer na estadual ou distrital, quer na municipal”

segundo o qual “no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.” Ocorreu, então, que o Ministério Público Estadual e a OAB/DF ajuizaram ação de inconstitucionalidade contra essa lei e o Conselho Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal concedeu liminar suspendendo-a. Um dos fundamentos é o de que a regra do art. 71 e seu § 1o da Lei de Licitações, estabelece que o contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, “resultantes da execução do contrato” (sic), não podendo serem eles transferidos para a administração pública (§ 1o). Os encargos em discussão, porém, não são encargos de execução, mas encargos de extinção do contrato. O fato gerador é outro e outras são as regras a serem observadas. A extinção dos contratos unilateralmente rescindidos é regida pela Lei no 8.666/93, no art. 58, II; 78, XII a XVII e 79, § 2o , inc. III, e, além do direito a ressarcimento de prejuízos regularmente comprovados, o permissionário ou concessionário tem direito “ao pagamento do custo de desmobilização” (art. 79, § 2o, inc. III), entre os quais se incluem as indenizações por rescisão dos contratos de trabalho para os trabalhadores, e, para as empresas, indenizações típicas de serviço público delegado, como

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a de bens reversíveis, investimentos não amortizados ou depreciados efetuados em razão do serviço e até mesmo perdas provocadas por condutas ilegais da adminis­ tração pública. Como sintetiza Marçal Justen, “isso não significa indenização restrita a danos emergentes. Também os lucros cessantes devem ser indenizados”..., além do custo de desmobilização que inclui a liberação do passivo trabalhista” (CF. Lei no 8.666/93, art. 79, § 2o e inc. III) [Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, p. 787]. A Lei das Concessões também estabelece algumas regras para a hipótese de extinção dos contratos. O poder concedente, extinta a concessão, deve proceder aos levantamentos, avaliações e liquidações necessários (Lei no 8.987, art. 35, § 2o). Nos casos de advento do termo ou de encampação, os levantamentos se destinam a indenizar o concessionário (Lei 8.987, art. 35, § 4o). Mas somente no caso de encampação a lei é clara ao exigir lei autorizativa e prévio pagamento da indenização (Lei no 8.987, art. 37) que deve incluir parcelas dos investimentos vinculados a bens reversíveis, ainda não amortizados ou depreciados, que tenham sido realizados com o objetivo de garantir a continuidade e atualidade do serviço concedido” (Lei no 8.987, art. 36). Nenhuma palavra, porém, sobre a desmobilização das pessoas. Nova redação dada ao art. 42 da Lei no 8.987 pelo art. 58 da Lei no 11.445/2007, também omite a existência de pessoas nas relações a serem extintas. Não há nenhuma palavra sobre as indenizações trabalhistas, embora seja evidente que o Estado, pelo “fato do príncipe”, que provocou a extinção da delegação, deva ser responsável (CF, art. 37, § 6o) por essas obrigações conforme determina a CLT, no mencionado art. 486. O edital, portanto, é a única oportunidade que o administrador público tem para regular as regras de saída dos trabalhadores e das empresas alijadas pela licitação. A verdade, porém, é que o poder público nada faz (fez) quer na órbita interestadual, quer na estadual ou distrital quer na municipal. Como péssimos exemplos, aí estão os recentes editais da ANTT (70.000 trabalhadores); os do Distrito Federal (12.000), acima referido, e o de Porto Alegre (8.000), também omisso quanto ao destino dos trabalhadores do setor e ao de uma dúzia de tradicionais e boas empresas locais, referências nacionais de bons serviços prestados. Estima-se que são necessários R$ 80 milhões somente para as rescisórias trabalhistas. Essa verba simplesmente não existe porque as planilhas, de onde emergem as tarifas, jamais contemplaram provisão para a hipótese de despedida em massa e nem poderiam fazê-lo em nome da regra da modicidade (Lei no 8.987, art. 6o, § 1o). Como o serviço é essencial e da titularidade do município (CF, art. 30, inc. V), compreende-se que ou ele próprio indeniza ou transfere o ônus, via licitação, 48

para o vencedor desta, assim como pode transferir as demais obrigações resultantes da cessação das relações de delegação relativamente às empresas afastadas. Como o edital é omisso a tudo isso, na ausência de qualquer regra, resta o socorro ao direito constitucional à jurisdição (CF, art. 5o, XXXV). Aqui, porém, entra o (pre)conceito: a leitura de vários despachos judiciais mostra que os juízes, sinceramente, pensam que a crítica das empresas é apenas uma forma de ganhar tempo e perpetuar-se nos serviços. Não acreditam na malícia das entrelinhas dos éditos e em suas impropriedades. No caso de Porto Alegre, o modelo de transporte não está concluído (em fase de construção a infraestrutura dos BRTs – sistema de ônibus rápidos – e a proximidade do metrô no curso da concessão), mas despacho do Tribunal de Justiça determinou que se fizesse a licitação de qualquer maneira. Resultado: a aceleração do parto pode produzir a morte do feto, sem condições de viabilidade (vida-hábil). Com a pressa, o edital foi lançado com falhas gritantes, exigências de garantias milionárias, bom negócio para bancos e seguradoras, multas de um milhão e meio para meras desobediências à fiscalização, manutenção da empresa de economia mista, controlada pelo Município e alimentada por generosos subsídios anuais, consumidos pelos prejuízos constantes. Uma ofensa à isonomia com ofensas desproporcionais ao objeto licitado. O Poder Executivo, por sua vez, não recorreu da decisão judicial e não defendeu o direito constitucional básico da separação de poderes, violado quando o Judiciário se transformou em administrador. De resto, o poder público está paralisado pela ação do Ministério Público, do Tribunal de Contas, dos black blocs, dos estudantes, da opinião pública. Em “O fim do Poder”, o jornalista venezuelano Moisés Naim mostra como o exercício desses micropoderes pode provocar a paralisia da administração pública. Michel Foucault, anteriormente, em a “Microfísica do Poder”, já demonstrara que existem formas de exercício de poder diferentes da do Estado, poderes periféricos, capazes de influir no subconsciente das decisões das autoridades. Lênio Streck, severo crítico do ativismo judicial, adverte que, para precaver-se, o intérprete tem de aproximar-se da realidade. A hermenêutica é a hermenêutica da faticidade e “toda interpretação jurídica exige aproximação com o caso concreto” (Verdade e Consenso, p. 322). Sintetiza ele: “não interpretamos para compreender, mas, sim, compreendemos para interpretar” (Verdade e Consenso, 285, 404 e 446). Enquanto o Judiciário não compreender a realidade dos transportes públicos e despir-se dos (pré)conceitos com que o trata, trabalhadores e seus empregadores – se saírem perdedores na licitação – estarão num beco sem saída. Sem regras de saída.

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Logística reversa, reciclagem e resíduos pós-consumo Uma abordagem sob a ótica da Lei 12.305

Renato Monte Alto

evolução do pensamento ecológico da sociedade brasileira, após um longo período de maturação, vem, enfim, tomando contornos mais definidos e começando a surtir os efeitos positivos que foram inicialmente imaginados. A introdução de disciplinas escolares focadas na conscientização ambiental de nossas crianças, que encontra amparo no artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei no 9.394/96), já faz parte da realidade educacional dos grandes centros urbanos. Medidas de cunho educativo, idealizadas em diferentes formatos (artigo 2o, X, da Lei no 6.938/81), vem difundindo os conceitos ambientais para uma expressiva parcela da população que não se encontra mais em idade escolar e, em muitos casos, tem apresentado resultados práticos até mais eficazes do que alguns dos mecanismos de controle ambiental implementados pelo poder público. A crescente participação da sociedade em programas de reciclagem e as inovações tecnológicas que vem permitindo, cada vez mais, tornar os processos de reaproveitamento dos resíduos pós-consumo viáveis sob o ponto de vista econômico-financeiro, também se amoldam aos princípios que orientam nossa Política Nacional de Meio Ambiente. De toda sorte, em que pesem tais considerações, não resta dúvida de que ainda há muito a ser feito em prol da formação de uma consciência ambiental crítica e realmente esclarecida em boa parte da população brasileira. 50

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Advogado

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Aquele modelo inicial que buscou levar ao conhecimento da sociedade as preocupações básicas relacionadas à questão ambiental precisa ser paulatinamente repensado e substituído por uma sistemática mais moderna, onde os princípios que norteiam a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei no 6.938/81) e a recente Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei no 12.305/10) possam ser absorvidos de uma forma mais efetiva pelos cidadãos. A tábua axiológica que serve de alicerce para todas as normas que integram a ordem jurídica nacional ainda precisa ser compreendida, com a profundidade necessária, por uma significativa parcela da sociedade, viabilizando, assim, uma leitura correta do atual estágio de desenvolvimento de nosso sistema de proteção do meio ambiente e garantindo uma contribuição mais concreta da população nos mecanismos de controle implementados pelo Poder Público. Como exemplo, podemos citar o próprio conceito de desenvolvimento sustentável (artigo 4o, I, da Lei no 6.938/81), que precisa ser difundido e introduzido de modo mais coerente no pensamento ecológico do cidadão, enquanto tenta compatibilizar o desenvolvimento econômico-social do País com o equilíbrio do meio ambiente, utilizando as inovações tecnológicas disponíveis e os programas de controle ambiental economicamente viáveis como suas principais ferramentas. Artigo 4o – A Política Nacional do Meio Ambiente visará: I - à compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico;

As linhas gerais desse princípio foram delineadas inicialmente em 1983, no Relatório Brundtland da Assembleia das Nações Unidas, tendo sido ainda bem sintetizadas na recente Conferência Rio+20 como “o modelo que prevê a integração entre economia, sociedade e meio ambiente. Em outras palavras, a noção de que o crescimento econômico deve levar sempre em consideração a inclusão social e a proteção do meio ambiente.” É o desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades, significa possibilitar que as pessoas, agora e no futuro, atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico e de realização humana e cultural, fazendo, ao mesmo tempo, um uso razoável dos recursos da terra e preservando as espécies e os habitats naturais. (Relatório Brundtland – Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento da Assembleia das Nações Unidas – 1983).

Na mesma linha, urge a necessidade de se promover uma conscientização de toda a sociedade no que diz respeito à dicotomia existente entre a destinação adequada que deve ser dada ao simples resíduo urbano, isto é, ao “lixo” produzido todos os dias em nossas casas e na varrição das vias públicas, e ao resíduo pós-consumo que pode ser objeto de um processo economicamente viável de reciclagem ou reaproveitamento. Mais do que isso, faz-se necessário conscientizar as pessoas que não é todo o resíduo resultante das atividades humanas em sociedade que será objeto de um processo de reaproveitamento, cabendo a realização de estudos prévios de viabilidade técnica e econômica com o objetivo de se apurar o benefício ambiental que poderia ser eventualmente alcançado ao final de cada mecanismo implantado. Artigo 3o – Para os efeitos desta Lei, entende-se por: ... XV - rejeitos: resíduos sólidos que, depois de esgotadas todas as possibilidades de tratamento e recuperação por processos tecnológicos disponíveis e economicamente viáveis, não apresentem outra possibilidade que não a disposição final ambientalmente adequada;

De nada adiantaria gastar milhões e milhões de reais na implantação de uma estrutura de coleta diferenciada, ou de reciclagem de determinado resíduo, se o atual estado de nosso desenvolvimento tecnológico e industrial ainda não dispõe de nenhum método que seja economicamente viável para reaproveitá-lo. O dispêndio financeiro, o consumo energético e as emissões de gases causadores do efeito estufa durante o processo de reciclagem, aliados aos custos de obtenção da matéria prima e de deposição do produto, ocasionariam certamente um impacto ambiental muito maior do que sua disposição final adequada no meio ambiente. Esse exemplo poderia ser dado apenas como ilustração, para uma série de resíduos urbanos em relação aos quais as tecnologias até aqui desenvolvidas ainda são apenas experimentais, incipientes ou não permitem um método ecoeficiente e economicamente viável de reciclagem em larga escala (fraldas descartáveis usadas, restos de cerâmica, gomas de mascar, bitucas de cigarro, papéis parafinados, entre muitos outros). Em decorrência disso, revela-se de fundamental importância a conscientização do próprio consumidor acerca do papel preponderante que desempenha ao promover o descarte adequado desses rejeitos, cooperando e viabilizando que os serviços públicos de limpeza urbana possam promover sua posterior coleta, transporte e disposição final, prevenindo, desta forma, qualquer possível impacto adverso ao meio ambiente.

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Fato é que, em muitos casos, o impacto ambiental visando a reciclagem ou reaproveitamento do resíduo pós-consumo é maior do que aquele oriundo de eventual destinação final ambientalmente adequada. Nesse sentido, fica claro que a participação ativa e a conscientização da população exercem um papel fundamental na busca de soluções ambientais viáveis e profícuas. Como se vê, para que o ente titular dos serviços públicos de limpeza urbana e manejo de resíduos possa dar cumprimento à obrigação prevista no artigo 36, VI, da Lei no 12.305/10, a adoção de medidas socioeducativas que sejam aptas a promover uma efetiva conscientização da sociedade sobre a real importância que o correto descarte desses rejeitos desempenha revela-se essencial para o funcionamento do sistema de responsabilidade compartilhada estatuído pela Política Nacional de Resíduos Sólidos. Artigo 3o – Para os efeitos desta Lei, entende-se por: ... XVII – responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos: conjunto de atribuições individualizadas e encadeadas dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, para minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como para reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos, nos termos desta Lei;

Recentemente, a municipalidade carioca deu um grande passo nessa direção, divulgando as diretrizes do Programa Lixo Zero, que visa conscientizar a população sobre a importância de não jogar qualquer tipo de lixo nas vias públicas, contribuindo para a melhoria da qualidade dos serviços de limpeza urbana na cidade, bem como para o regular funcionamento do sistema de responsabilidade compartilhada previsto em nossa legislação. Na esfera ambiental, tais medidas educacionais, impõe-se repisar, possuem um aspecto valorativo ainda mais profundo, eis que, além de servirem como um eficiente difusor dos conceitos básicos de proteção ao meio ambiente, também tem apresentado, em muitos casos, resultados práticos mais fulgentes do que certos mecanismos de controle implementados pelo Poder Público. Tão relevante quanto os assuntos acima abordados, a necessidade da formação de uma consciência crítica que consiga compreender, de forma precisa, os acertos e os limites da atuação do poder público na esfera ambiental em face da incidência dos princípios da prevenção, do desenvolvimento sustentável, da ecoeficiência e da proporcionalidade, também se aparenta premente. 52

Nesse horizonte, destaca-se o princípio da proporcio­ nalidade, pois caso não fique demonstrada uma adequação razoável entre os motivos suscitados pelo poder público, a viabilidade técnico-econômica da metodologia proposta e, por fim, o benefício que tal medida poderia trazer de modo efetivo ao meio ambiente, o mecanismo de controle ambiental a ser implementado não se mostra adequado ao nosso sistema legal. Em sua ideia central, o princípio da proporcionalidade traz ínsito que a autoridade administrativa, em seu poder discricionário, não deve limitar-se apenas ao aspecto formal da lei, impondo-se uma análise sistemática de todas as variáveis envolvidas, devidamente integrada pelos conceitos e valores que também compõe a ordem jurídica e, por tal motivo, precisam ser ponderados em conjunto, dentro de um critério de razoabilidade, para encontrar a melhor solução para o interesse público vislumbrado. Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello vemos que “as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade proporcionais ao que seja realmente demandado para o cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atreladas. Segue-se que os atos cujos conteúdos ultrapassem o necessário para alcançar o objetivo que justifica o uso da competência ficam maculados de ilegitimidade, porquanto desbordam do âmbito da competência, ou seja, superam os limites que naqueles caso lhes corresponderiam”. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, não destoa, lecionando que a atividade discricionária será ilegítima quando não guardar “uma proporção adequada entre os meios que emprega e o fim que a lei deseja alcançar, ou seja, que se trate de uma medida desproporcionada, excessiva em relação ao que se deseja alcançar”. Ademais, faz-se necessário frisar que, ainda que se proceda com uma análise fria da legislação pertinente, diversos são os requisitos a serem atendidos para que se estabeleça eventual sistema de coleta diferenciada para um resíduo específico. O art. 33 da PNRS possui um rol taxativo, sendo que eventual acréscimo – que deveria se dar mediante lei federal – deve atender a uma séria de exigências fundamentais. Nesse contexto, resta evidente que a implementação de qualquer programa de coleta diferenciada ou mecanismo de controle ambiental que não tenha sido precedida dos estudos técnicos necessários e não atente para uma visão sistemática da ordem legislativa em vigor não se mostra congruente com os princípios que servem de norte para a Política Nacional de Resíduos Sólidos (artigo 6o da Lei no 12.305/10). O presente artigo, por óbvio, não tem a intenção de esgotar os debates sobre tão controvertida matéria, mas

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apenas de ressaltar aos leitores que a formação de uma consciência ambiental crítica e realmente esclarecida, hoje, é uma questão que se impõe. Não devemos mais nos concentrar, portanto, apenas naqueles conceitos elementares, já há muito difundidos e absorvidos por grande parte do povo brasileiro, mas sim nos valores e princípios que servem de base para nossa Política Nacional de Meio Ambiente; em uma conscientização efetiva da sociedade acerca do papel preponderante que desempenha no funcionamento adequado dos serviços públicos de limpeza urbana e manejo de resíduos; e, por fim, no desenvolvimento de um senso crítico (artigo 5o, III da Lei no 9.795/99) sobre quais são as medidas de controle ambiental e social propostas que se revelam, de fato, razoáveis e atendem as finalidades de nossa ordem constitucional. O progresso do pensamento ecológico de nossa sociedade é evidente e, qualquer retrocesso, hoje, seria impensável. Mesmo assim, ainda há muito a ser feito na busca da formação de uma consciência ambiental realmente esclarecida por parte da grande maioria da população brasileira, o que, sem receio de dúvida, já desponta como o nosso próximo desafio.

Em suma, podemos afirmar: 1) Há casos nos quais o impacto ambiental de eventual processo de reciclagem é mais nocivo do que eventual destinação final considerada ambientalmente adequada; 2) O artigo 33 da PNRS possui um rol taxativo, sendo que qualquer alteração deve observar os ditames legais e ambientais aplicáveis; 3) Mesmo aos itens listados no referido artigo é necessário um estudo prévio de viabilidade – não só financeira, mas também ambiental; 4) Nem todo item pós-consumo pode ser considerado resíduo. Existem itens que assumem a qualidade de rejeito, não sendo passíveis de reciclagem no atual estado da arte.

Base legislativa e referências bibliográficas Política Nacional do Meio Ambiente (Lei no 6.938/81); Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei no 12.305/10); Política Nacional da Educação Ambiental (Lei no 9.795/99); Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei no 9.394/96); Meirelles, Hely Lopes de. Direito Administrativo Brasileiro. Ed. Malheiros. 33a Edição (2007); Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Editora Atlas. 24a Edição (2008).

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D om Quixote, Giselle Souza Fotos:Alternativa Marco Zaoboni Foto: amunam

Da esq. para a dir.: Luís Adams, advogado-geral da União; Gilmar Mendes, ministro do STF; Felix Fischer, presidente do STJ; Eduardo Cardozo, ministro da Justiça; Carlos Ayres Britto, ministro aposentado do STF; e Marcus Vinicius Furtado Coêlho, presidente da OAB nacional

Um brinde às boas práticas Prêmio Innovare é lançado. Os interessados têm até 31 de maio para se inscrever. A premiação será realizada em dezembro

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rofissionais que desenvolvem projetos voltados para a promoção da cidadania e da justiça precisam se apressar. Termina no próximo dia 31 de maio o prazo de inscrições do Premio Innovare, um dos mais respeitados reconhecimentos das boas práticas realizadas no âmbito do Poder Judiciário. Podem se inscrever magistrados, advogados e membros do Ministério Público e da Defensoria Pública. Há também uma categoria destinada a bacharéis em qualquer área de conhecimento. 54

Esta será a 11a edição da premiação, que será realizada em dezembro, em data ainda a ser definida. Sérgio Renault, presidente do Instituto Innovare, contou à Revista Justiça & Cidadania ser grande a expectativa do Instituto com relação ao prêmio. “Nossa expectativa é que tenhamos um número significativo de práticas inscritas, como vimos ocorrer em todos os outros anos”, disse. Renault conta que, apesar do fim da premiação em dinheiro no ano passado, em atendimento a uma resolução do Conselho Nacional de Justiça, o Instituto Innovare registrou a inscrição de 464 trabalhos. O número foi 12% maior que na edição anterior. “O Innovare está consolidado como um prêmio que escolhe trabalhos que efetivamente representam opções de modernização e aumento da eficiência da Justiça. Quem se inscreve no Innovare está mais interessado em divulgar

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e promover estes trabalhos do que em receber prêmio em dinheiro”, afirmou Renault. Apesar da expectativa com relação aos trabalhos inscritos, principalmente nos dias que antecederem ao fim do prazo, Renault destacou que mais importante que o número de inscrições é a qualidade das práticas que forem indicadas. “Em todos esses anos, o Innovare tem recebido inscrições de práticas que realmente trazem melhorias significativas para o funcionamento da Justiça”, ressaltou. Tema livre Assim como em edições anteriores, o tema desta 11a edição do Innovare será livre para as categorias Juiz, Tribunal, Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia. “Em várias outras edições, o tema foi livre como forma de estimular o maior número de pessoas a apresentarem suas inscrições”, afirmou Renault. De acordo com ele, o tema livre não traz grandes implicações às escolhas da banca examinadora. “Os critérios a serem adotados pelo corpo de jurados do Innovare são os mesmos desde a primeira edição e estão definidos no regulamento do Prêmio”, explicou. Na categoria Especial, por sua vez, o tema será “Sistema Penitenciário Justo e Eficaz”. Assim como na edição do ano anterior, poderão concorrer a esse prêmio profissionais

graduados em qualquer área de conhecimento. Na 10a edição, o Prêmio Especial foi concedido ao mestre em Ciência da Computação William Guimarães, servidor do Ministério Público de Goiás. O profissional apresentou uma monografia em que sugeria a criação de uma nuvem comunitária entre o Judiciário e o Ministério Público para hospedar o Processo Judicial Eletrônico, desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça e em fase de implantação nos tribunais do País. A medida visa a aumentar a eficiência do sistema. Nessa edição, porém, a prática inscrita para a categoria especial já deverá estar em desenvolvimento. Renault afirmou que a intenção da organização do Innovare, ao eleger o sistema carcerário como tema, é contribuir para a solução de alguns dos problemas verificados atualmente. “Esse é um tema de inegável atualidade. O sistema penitenciário brasileiro é algo que envergonha a todos e precisa ser modificado para garantir segurança à sociedade e tratamento digno aos presos. Acreditamos que o Innovare pode contribuir, identificando práticas já testadas na realidade dos presídios e que tenham resultados positivos”, ressaltou. É que o princípio da iniciativa é justamente reconhecer práticas inspiradoras. “O Innovare procura privilegiar práticas que, além de inovadoras e – se possível – inéditas,

Lançamento da 11a edição do Prêmio Innovare, na sede do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília

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Fotos: Marco Zaoboni

Eduardo Cardozo: “A transformação depende de ideias e é nesta perspectiva que o Prêmio Innovare ataca com brilho”

“Lançado em 2004, o prêmio já recebeu inscrições de todas as regiões do País e contou com uma edição internacional, em 2010. Ao todo, 138 trabalhos foram premiados. Segundo uma pesquisa, mais de 90% dessas iniciativas continuam sendo desenvolvidas pelos autores e/ou foram replicadas em outras regiões”

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tragam benefícios concretos para o cidadão. Outro critério importante é a possibilidade de a prática ser replicada: isto é, poder ser implantada em outra localidade”, frisou. De acordo com Renault, o Innovare hoje é um projeto consolidado e que goza de credibilidade e respeitabilidade no meio jurídico do País. Daí a importância da iniciativa. “As práticas premiadas se tornam conhecidas e valorizadas e, na maior parte das vezes, acabam sendo replicadas. O Innovare é, sem dúvida, um importante instrumento de divulgação e disseminação de projetos que tornam o judiciário mais eficiente, acessível e justo”, acrescentou. Lançamento Neste ano, o Prêmio Innovare foi lançado em duas cerimônias, realizadas nos dias 2 e 8 de abril, respectivamente nas sedes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). O primeiro contou com a participação de diversas autoridades do mundo jurídico, dentre as quais o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que chamou a atenção para o tema eleito para a categoria Prêmio Especial. Cardozo disse que o sistema penitenciário brasileiro precisa urgentemente de mudanças. “Temos muitas situações de impunidade e de má execução da pena. A paralisia neste

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Gilmar Mendes destacou a importância do sistema penitenciário como tema do Prêmio Especial: “Esse é um campo com poucas ações efetivas”

setor se prende à falta de projetos. A transformação depende de ideias e é nesta perspectiva que o Prêmio Innovare ataca com brilho, ao permitir aos profissionais da área do direito que as apresente para a classe jurídica. Ideias de inovação, de modificação, que podem gerar energia capaz de superar desavenças corporativas”, destacou na ocasião. O presidente do Conselho Superior do Instituto Innovare, o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto, acrescentou que o cárcere brasileiro tem corroborado para o aumento da criminalidade. “O sistema penitenciário brasileiro tem sido um acelerador de criminalidade. E isso é inadmissível e intolerável. Nas penitenciárias, os seres humanos se desumanizam. Precisamos sair dessa inércia. E é nesse sentido que o Innovare está vindo colaborar”, afirmou. O ministro Gilmar Mendes, do STF, também destacou a importância do tema escolhido. “Esse é um campo com poucas ações efetivas. O quadro é preocupante. Nossa taxa de reincidência hoje é umas piores do mundo, chega a 70%”, afirmou. Inscrições Os interessados em participar da 11a edição do Prêmio Innovare devem se cadastrar no site www.premioinnovare.

com.br. No portal, estão disponíveis o regulamento da premiação e o passo a passo para efetuar a inscrição. A seleção dos trabalhos envolverá a visita de consultores do Innovare para avaliar a eficácia, abrangência e a capacidade de multiplicação da prática em outras áreas do País. As impressões serão consolidadas em relatórios que serão apreciados pela comissão julgadora. O resultado do prêmio será divulgado em novembro. Lançado em 2004, o prêmio já recebeu inscrições de todas as regiões do País e contou com uma edição internacional, em 2010. Ao todo, 138 trabalhos foram premiados. Segundo uma pesquisa, mais de 90% dessas iniciativas continuam sendo desenvolvidas pelos autores e/ou foram replicadas em outras regiões. O Prêmio Innovare é realizado pelo Instituto Innovare, com o apoio da Secretaria de Reforma do Judiciário, da Associação de Magistrados Brasileiros, da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, da Associação Nacional dos Defensores Públicos, da Associação dos Juízes Federais do Brasil, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Associação Nacional dos Procuradores da República, da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho e das Organizações Globo.

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Invista em Itaboraí

A capital dos bons negócios. Distante apenas 39km da capital do Rio de Janeiro, Itaboraí é hoje a grande oportunidade de excelentes negócios para empresas de diversos setores. Sede do Comperj - Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, e com uma Base Industrial e Tecnológica sendo implantada, o município terá em 10 anos, o seu PIB estimado em R$17 bilhões e sua população chegará a 1 milhão de habitantes nesse período. Esses empreendimentos estão atraindo empresas de diversos segmentos, pois hoje com a nova administração municipal, Itaboraí mostra um cenário de progresso e de modernização da cidade. Seu território faz divisa com Tanguá e Maricá, municípios que serão beneficiados pelo Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma via de escoamento que integrará uma importante região do estado que compreende de Itaguaí à Itaboraí, promovendo o desenvolvimento integrado de toda essa região.

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Itaboraí

Conheça Itaboraí, a cidade que será a segunda capital do estado e o melhor lugar para sua empresa.

www.itaborai.rj.gov.br

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Os novos “homens de preto” Sylvio Capanema de Souza

Desembargador aposentado do TJRJ Membro do Conselho Editorial

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á muitos anos passados, as ruas das principais cidades brasileiras conheceram um novo e estranho personagem: homens trajando um berrante uniforme vermelho, encimado por um boné onde se lia “cobrador”, apresentavam-se nas portas das casas, lojas e apartamentos, para receber uma dívida não paga pelo morador e ali permaneciam por horas, ou regressavam nos dias subsequentes, até que lograssem receber o crédito, ou, pelo menos, até que todos na vizinhança passassem a saber que ali vivia um devedor inadimplente, com o qual era preciso ter cuidado. É evidente que o “método de cobrança”, ainda que em muitos casos se mostrasse eficiente, foi logo proibido e hoje seria inimaginável, após o advento do CDC e do princípio maior da preservação da dignidade humana. Mas a recente pesquisa divulgada pelo CNJ, a revelar que das 92 milhões de ações judiciais em curso no Brasil, mais de 30 milhões se referem a execuções fiscais, especialmente para cobrança de IPTU e taxas municipais, nos leva a uma dolorosa conclusão. Os antigos “homens de vermelho” hoje vestem o preto das togas, convertidos os juízes em meros cobradores de tributos, como os antigos e execrados coletores medievais; e ficam à serviço de autoridades municipais, preguiçosas e/ou incompetentes, que atiram sobre o Judiciário a tarefa incômoda de cobrar seus créditos fiscais. A judicialização absoluta da cobrança de impostos, solução cômoda para a União, Estados e Municípios, é hoje uma das principais responsáveis pelo desgaste da imagem do Judiciário. Retornando à análise dos números apocalípticos da pesquisa do CNJ, constatamos que só na 12a Vara da Fazenda Pública da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, acumulam-se hoje 810 mil execuções fiscais. Mas não é só! Há muito mais! Cidades pequenas, do interior do Estado, ostentam números inacreditáveis quando se trata de execuções fiscais, ou ações em curso. 60

A bucólica São Pedro d’Aldeia, dormitando placidamente às margens da Lagoa de Araruama, suporta um estoque de 81 mil processos, e sua população não deve ser muito maior do que isto. No Estado de São Paulo, as execuções fiscais municipais já atingiram o patamar de 1 milhão e 600 mil ações. Quando exercíamos a 1a Vice Presidência do TJRJ, recebemos, ao final de um dia, a ligação de um procurador-geral de um dos menores municípios fluminenses, desculpando-

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-se e avisando que chegariam ao 2o grau, na semana seguinte, cerca de 19.500 recursos de apelação interpostos contra sentenças que reconheceram a prescrição de igual número de execuções de IPTU, por ele ajuizadas. Assim procedendo, como Pôncio Pilatos a lavar as suas mãos, os municípios se livram do incômodo acervo, e ainda das sanções impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Não abrem mão de receitas, não anistiam, mas também não cobram, com um mínimo de eficiência. Certamente se dirá que os maiores culpados e vilões são os contribuintes, que não cumprem suas obrigações tributárias e que o brasileiro desenvolveu a cultura do não pagamento de impostos. Isto, em parte, é verdadeiro. Mas a crescente inadimplência também não traduzirá o desalento e a indignação dos contribuintes que sangram suas economias para pagar o IPTU e as taxas e quase nada recebem em troca, traduzido pela implantação com melhoria de serviços básicos, capazes de mitigar as agruras de suas sacrificadas vidas? Não haverá, quem sabe, até mesmo uma inconsciente resistência contra a corrupção endêmica que corrói todos os poderes da República? Será que, após os números do CNJ, continuaremos inertes e silentes, avestruzes com as cabeças enterradas na areia, para não ver o perigo que se aproxima? Será preciso nascer um outro Cícero para clamar contra Catilina: “até quando abusarás da nossa paciência”? Quando crescem os estoques de impostos não pagos e se aproxima a prescrição, que lhes acarretará sanções legais e políticas, a maioria dos prefeitos convoca suas procuradorias e comanda: chamem os homens de preto! Pena é que os nossos homens de preto não persigam apenas extraterrestres, o que seria bem mais fácil. O resultado desta política é a transferência do caos para os abarrotados cartórios e salas de audiência: milhares e milhares de contribuintes e imóveis nem sequer são encontrados, para que se proceda a citação; em muitas das ações, a pretensão já está prescrita, mas tem que ser proclamada por sentença; em outras tantas, o autor nem sabe bem qual é o crédito exato, e o Judiciário que o calcule! E o que é ainda mais perverso: quando o município consegue, quase por milagre, receber o crédito, nem se dá ao trabalho de comunicar ao juízo, que prossegue inutilmente na cobrança. Descritos os sintomas da insidiosa doença, perguntarão os leitores, se é que tiverem chegado até aqui: O que, então, sugere o autor, para curar tão grave patologia social? É claro que nos estreitos limites de um artigo, para ser publicado em edição especial e comemorativa, não haverá espaço para prescrever e ministrar os remédios adequados.

Nossa intenção foi a de atuar como um agente provocador, até porque as possíveis soluções demandarão enorme esforço de toda a sociedade, incluindo o Legislativo. Mas não será preciso ser um gênio político para perceber que é imperioso desjudicializar o mais possível a cobrança dos créditos fiscais, alforriando os juízes de seu jugo e criando mecanismos administrativos mais eficientes de mediação e de cobrança, além de medidas extrajudiciais, de coerção indireta, como a imediata inscrição dos contribuintes inadimplentes nos cadastros de proteção ao crédito, como SPC e Serasa. Será preciso flexibilizar a Lei de Responsabilidade Fiscal, para autorizar o arquivamento, nas prefeituras, de cobrança de valores muitas vezes menores que o custo operacional das ações judiciais. Estas medidas nem sequer representam grandes novidades. A portaria MF no 75, de 22 de março de 2013, que dispõe sobre a inscrição de débitos, na Dívida Ativa da União, determina “o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00”. Também se autoriza o cancelamento de débitos inscritos quando o valor remanescente é igual ou inferior a R$ 100,00. A Lei no 10.512/2002, que dispõe sobre o Cadastro Informativo de Créditos não quitados, em seu artigo 20, também determina o arquivamento, ainda que sem baixa na distribuição, dos autos das execuções fiscais de débitos inferiores a R$ 10.000,00. No âmbito estadual, louve-se a corajosa iniciativa do Pará, que, pela Lei no 7.772/13, dispensa a cobrança judicial de créditos tributários iguais ou inferiores a 2000 UPF/PA. Outra sugestão fácil de se implantar, nos municípios, é a criação de câmaras especiais de mediação, convocandose os contribuintes inadimplentes para que a elas compareçam para expor sua situação, visando a adoção de soluções factíveis para o pagamento, inclusive com o oferecimento de outras garantias, pessoais ou reais. Estas câmaras poderiam ser compostas por um procurador do município, um advogado, indicado pela OAB local, um defensor público, se houver, e um representante da comunidade, a ser escolhido. Finalmente, poder-se-ão editar leis autorizando, no âmbito municipal, o não ajuizamento de execuções fiscais cujo crédito seja igual ou inferior a um valor a ser fixado, de acordo com as peculiaridades de cada município. Mas ainda há muito a se fazer, bastando a vontade política de romper a preguiça que nos embala. E deixemos, finalmente, que nossos sacrificados “homens de preto” possam se dedicar a tarefas bem mais relevantes, para assegurar a paz social.

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A suspensão de segurança como instrumento agressor dos tratados internacionais Antônio Souza Prudente

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Desembargador Federal do TRF da 1ª Região Membro do Conselho Editorial

a conjuntura atual de uma globalização econômica cada vez mais insensível em seus projetos de acumulação de riqueza material em poder dos mais fortes e dominadores, numa ação gananciosa e aniquiladora dos valores fundamentais da pessoa humana e dos bens da natureza, há de se exigir, por imperativos de ordem pública, na instrumentalidade do processo civil, atualizado aos reclamos dos novos tempos, uma ação diligente e corajosa de um Judiciário republicano e independente, na defesa de uma ordem jurídica justa para todos, no exercício de uma tutela jurisdicional oportuna e efetiva, visivelmente comprometida com a defesa dos direitos e garantias tutelados pela Constituição da República Federativa do Brasil, na dimensão dos tratados e convenções internacionais. Com a edição da Medida Provisória no 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, revigorando os cadáveres normativos do regime de exceção, para assegurar a política governamental das privatizações de empresas estatais, e agora também, o programa energético do Governo Federal, devastador das florestas brasileiras e, sobretudo, do bioma amazônico, bem assim, de seu patrimônio sócio-cultural, instalou-se no ordenamento processual do Brasil o terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança, no perfil arrogante da ideologia capitalista neoliberal, em permanente agressão ao princípio da proibição do retrocesso no Estado Democrático de Direito, com respaldo, na contraditória Emenda Constitucional no 32, de 2001, publicada no Diário Oficial de 12 de setembro 2001, 62

que, embora visando conter o abuso na edição dessas medidas provisórias, com proibição expressa para tratar de matéria de direito processual civil, dentre outras ali elencadas, permitiu expressamente que as medidas provisórias editadas em data anterior à publicação dessa Emenda continuassem em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional (art. 2o da EC no 32/2001). A infeliz Medida Provisória no 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, corrompeu visceralmente o ordenamento jurídico-processual brasileiro, com a blindagem protetiva de caráter permanente, que obtivera logo após sua abusiva edição, ante o comando contraditório e inconstitucional do prefalado art. 2o da Emenda Constitucional no 32, de 11 de setembro de 2001, em manifesta agressão à cláusula pétrea de proteção dos direitos e garantias individuais, coletivos e difusos, constitucionalmente protegidos (CF, art. 60, § 4o, IV c/c os §§ 1o e 2o do art. 5o da mesma Carta Política Federal), afrontando expressamente as garantias fundamentais do pleno acesso à justiça (CF, art. 5o, XXXV), da segurança jurídica, que resulta da proteção constitucional do ato jurídico sentencial perfeito e da coisa julgada formal (CF, art. 5o, XXXVI), da proibição expressa do retrocesso ao juízo de exceção (CF, art. 5o, XXXVII), do devido processo legal (CF, art. 5o, LIV), das tutelas de segurança e de urgência dos mandados de segurança individual e coletivo, nos marcos regulatórios de suas hipóteses de incidência constitucional (CF, art. 5o, LXIX e LXX, a e b), da razoável

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Foto: Arquivo pessoal

duração do processo e dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação (CF, art. 5o, LXXVIII) e da eficácia plena e imediata dos direitos e garantias fundamentais, expressos em nossa Carta Magna e de outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (CF, art. 5o, §§ 1o e 2o). O rol de agressões ao texto constitucional republicano, que resulta do terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança no contexto normativo da malsinada Medida Provisória no 2.180-35/2001 em manifesta afronta ao princípio da proibição do retrocesso no Estado Democrático de Direito, expressa-se no aditamento abusivo ao texto historicamente agressor da Lei no 8.437, de 30 de junho de 1992, que passou a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 4o (...) – § 3o – Do despacho que conceder ou negar a suspensão caberá agravo, no prazo de cinco dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte à sua interposição. § 4o – Se do julgamento do agravo de que trata o § 3o resultar a manutenção ou o restabelecimento da decisão que se pretende suspender, caberá novo pedido de suspensão ao presidente do tribunal competente para conhecer de eventual recurso especial ou extraordinário. § 5o – É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o § 4o, quando negado provimento a agravo de instrumento interposto contra a liminar a que se refere este artigo. § 6o – A interposição do agravo de instrumento contra liminar concedida nas ações movidas contra o Poder Público e seus agentes não prejudica nem condiciona o julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo. § 7o – O presidente do tribunal poderá conferir ao pedido efeito suspensivo liminar, se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e a urgência na concessão da medida. § 8o – As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, podendo o presidente do tribunal estender os efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original. § 9o – A suspensão deferida pelo presidente do tribunal vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal.” De ver-se, assim, que o texto normativo em referência estrangula, com requintes de crueldade, a garantia constitucional do devido processo legal e da segurança jurídica, em tons de violência autoritária, próprios dos regimes ditatoriais, anulando-se o juízo natural das instâncias judiciais singulares e colegiadas (CPC, art. 512)1, com o propósito indisfarçável de enfraquecer e intimidar os magistrados do Brasil, ao restabelecer o império do juízo de exceção na suspensão de segurança, no âmbito monocrático das decisões presidenciais de nossos tribunais, que só tardiamente se manifestam em sessão de julgamento colegiado sobres essas suspensões, quando já se tornam irreversíveis e com danos irreparáveis

ao interesse público, ante situações de fato consolidadas pelo decurso do tempo no processo. Aniquila, ainda, a segurança jurídica que resulta das decisões colegiadas dos tribunais de apelação, que não mantenham essas odiosas suspensões, anulando-se o fenômeno preclusivo das referidas decisões, a permitir, qual “fênix malignamente renascida”, a reedição da mesma pretensão de segurança perante a presidência dos Tribunais Superiores (STJ e STF). Busca, também, nesse propósito, anular, por ato político ditatorial da suspensão de segurança, o exercício da jurisdição colegiada dos tribunais de apelação no Brasil e a eficácia imediata de suas decisões, a permitir a instauração do pleito de suspensão da decisão judicial impugnada, quando já confirmada ou a se confirmar pelo juízo natural do órgão jurisdicional competente do próprio tribunal (CPC, art. 512), contrariando, assim, sábia orientação jurisprudencial do colendo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que “em havendo superposição de controle judicial, um político (suspensão de tutela pelo presidente do tribunal) e outro jurídico (agravo de instrumento) há prevalência da decisão judicial” (REsp. 47469/RJ. Segunda Turma, julgado em 20/03/2003. DJ de 12/05/2003, p. 297),

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a não se permitir qualquer relação de prejudicialidade do agravo de instrumento, em virtude de decisão proferida pela presidência do tribunal, em sede de suspensão de segurança, posto que se afigura juridicamente impossível o ajuizamento de pedido de suspensão de segurança perante a presidência do tribunal de apelação, para cassar os efeitos da decisão judicial de qualquer dos órgãos fracionários do próprio tribunal, a negar vigência ao postulado normativo do mencionado artigo 512 do CPC. Nessa visão hermenêutica, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que “as contracautelas extraordinárias estão disponíveis apenas ao Poder Público, que não as pode utilizar como sucedâneo recursal nem como imunização à observância de decisões judiciais proferidas segundo o devido processo judicial regular” (SL 712/MG –DJ-e de 28/08/2013). Contrariando essa inteligência jurisprudencial da Suprema Corte, a referida Medida Provisória no 2.18035/2001 atinge o grau máximo desse terror jurídicoditatorial na suspensão de segurança, quando determina que “a suspensão deferida pelo presidente do tribunal vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal”, nulificando, assim, em sua aplicação literal, a eficácia imediata das decisões judiciais impugnadas e dos direitos e garantias fundamentais por elas tutelados, abrindo, dessa forma, espaço odioso às intermináveis protelações recursais do poder público e de seus agentes 64

Foto: Depositphotos

“A Carta Política Federal, que preordena a República Federativa do Brasil em suas relações internacionais a respeitar, dentre outros relevantes princípios, o da prevalência dos direitos humanos... passou a exigir um novo perfil de juiz, com postura republicana, legitimado pela soberania popular no grau de sua coragem e indeclinável independência, na determinação das tutelas de urgência, em defesa dos direitos humanos fundamentais e do desenvolvimento sustentável, como garantia maior das presentes e futuras gerações”

sem escrúpulos, na busca irrefreada da consolidação de situações de fato pelo decurso do tempo no curso do processo, sobretudo naqueles feitos judiciais que envolvem interesses coletivos e difusos, contrariados e agredidos por mal intencionadas políticas governamentais de natureza fiscal-tributária, econômica e ambiental. Observe-se, por último, que a Lei no 12.016, de 7 de agosto de 2009, ao disciplinar o mandado de segurança individual e coletivo, desgarrou-se de seu perfil constitucional, pois fora contaminada, também, pelo vírus letal da suspensão de segurança, nos parâmetros agressivos da aludida medida provisória no 2.180-35/2001, como se vê nas letras do art. 15 e respectivos §§ 1o a 5o do referido texto legal. A todo modo, não há como se admitir a inteligência adotada, no âmbito de suspensão de segurança, pela presidência do tribunal de apelação, pretendendo que sua decisão política deva prevalecer até o trânsito em julgado da decisão final, no processo jurisdicional, sem observância dos marcos regulatórios da competência funcional absoluta, posto que, se assim o for, estaria a presidência do tribunal de apelação já cassando, por antecipação, a eficácia de possíveis decisões jurisdicionais dos Tribunais Superiores, confirmatórias dessa decisão judicial, agredida pelo ato abusivo da contracautela de suspensão, em manifesta agressão à competência funcional e absoluta do Superior Tribunal de Justiça (guardião maior do direito federal) e do

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próprio Supremo Tribunal Federal (máximo guardião da Carta Política Federal). Não se pode olvidar, nesse contexto, que, uma vez submetida a decisão do juízo singular, quer em nível de decisão liminar ou de mérito, ao crivo jurisdicional da corte revisora do tribunal, a referida decisão é integralmente substituída, no âmbito do recurso processual, pela decisão colegiada do órgão fracionário competente, nos termos do art. 512 do CPC, a não se permitir a pretensiosa ultraatividade de uma decisão monocrática de natureza política da presidência do tribunal, no sentido de esvaziar a eficácia plena dessa decisão colegiada de cunho jurisdicional, submetida, apenas, ao controle revisor de possíveis decisões judiciais a serem tomadas pelas cortes superiores. O entendimento contrário da presidência dos tribunais de apelação, em grau de suspensão de segurança, agride, frontalmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, que, assim, dispõe: “Toda pessoa tem o direito de receber dos tribunais nacionais competentes recurso efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais, que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei” (Artigo VIII). E nesse contexto, o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3, aprovado aqui no Brasil pelo Decreto no 7.037, de 21 de dezembro de 2009, estabelece em sua Diretriz 6 “promover e proteger os direitos ambientais como Direitos Humanos, incluindo as gerações futuras como sujeitos de direitos”. Nessa linha de compreensão, a suspensão de segurança, como vem sendo praticada abusivamente aqui no Brasil, também, agride o “Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos”, aprovado através do Decreto no 592, de 6 de julho de 1992, e que, no mesmo tom, determina: “Os Estados partes comprometem-se a: a) garantir que toda pessoa, cujos direitos e liberdades reconhecidos no presente Pacto hajam sido violados, possa dispor de um recurso efetivo, mesmo que a violência tenha sido perpetuada por pessoas que agiam no exercício de funções oficiais; b) garantir que toda pessoa que interpuser tal recurso terá seu direito determinado pela competente autoridade judicial, administrativa ou legislativa ou por qualquer outra autoridade competente prevista no ordenamento jurídico do Estado em questão e a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; c) garantir o cumprimento, pelas autoridades competentes, de qualquer decisão que julgar procedente tal recurso” (art. 2o, § 3o, 1,2,3). (...) – “Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado – parte no presente Pacto em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau” (artigo 5o, § 2o).

O instrumento da suspensão de segurança, na dimensão abusiva da Medida Provisória no 2.180-35, de 24 de agosto de 2001 e da Lei no 12.016, de 7 de agosto de 2009, agride ainda a Cláusula de Proteção Judicial da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, promulgada no Brasil pelo Decreto no 678, de 6 de novembro de 1992, nos termos seguintes: Artigo 25 – 1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais. 2. Os Estados-partes comprometem-se: a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso; b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso”. Há de se considerar, finalmente, que a proliferação abusiva dos incidentes procedimentais de suspensão de segurança, como instrumento fóssil dos tempos do regime de exceção, a cassar, reiteradamente, as oportunas e precautivas decisões tomadas em varas ambientais, neste país, em defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações, atenta contra os princípios regentes da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei no 6.938/1981), prestigiada internacionalmente pelo Projeto Redd Plus (Protocolo de Kyoto, COPs 15 e 16 – Copenhague e Cancún) e a garantia fundamental do progresso ecológico e do desenvolvimento sustentável, agredindo, ainda, os acordos internacionais, de que o Brasil é signatário, num esforço mundialmente concentrado para o combate às causas determinantes do desequilíbrio climático e do processo crescente e ameaçador da vida planetária pelo fenômeno trágico do aquecimento global. Nessa linha de práticas abusivas da suspensão de segurança nos tribunais do Brasil, restam agredidos, também, os princípios dirigentes da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e as normas da Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre povos indígenas e tribais, promulgada pelo Brasil, através do Decreto no 5.051, de 19 de abril de 2004, sobretudo, quando determina que “os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento eco-

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nômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão 5o, §§ 1o, 2o e 3o), sob a orientação autorizada de Gomes participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos Canotilho e Jorge Miranda, nestas letras: “Aplicação direta e programas de desenvolvimento nacional e regional susnão significa apenas que os direitos, liberdades e garantias cetíveis de afetá-los diretamente” (Artigo 7o, 1). (...) “os se aplicam independentemente da intervenção legislativa. governos deverão adotar medidas em cooperação com os Significa também que eles valem directamente contra a lei, povos interessados para proteger e preservar o meio amquando esta estabelece restrições em desconformidade com biente dos territórios que eles habitam” (Artigo 7o, 4); (...) a Constituição” (Canotilho – Direito Constitucional, p.186). “os direitos dos povos interessados aos recursos naturais E “o sentido essencial da norma não pode, pois, deixar de ser existentes nas suas terras deverão ser especialmente proeste: a) salientar o caráter preceptivo, e não programático, tegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a das normas sobre direitos, liberdades e garantias; b) afirmar participarem da utilização, administração e conservação que estes direitos se fundam na Constituição e não na lei; dos recursos mencionados. Em caso de pertencer ao Esc) sublinhar (na expressão bem conhecida da doutrina tado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subalemã) que não são os direitos fundamentais que se movem solo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes na no âmbito da lei, mas a lei que deve mover-se no âmbito terras, os governos deverão dos direitos fundamentais” estabelecer ou manter proce(Jorge Miranda – Manual de “O entendimento contrário da presidência dimentos com vistas a conDireito Constitucional, v.4, p. sultar os povos interessados, 282-283). dos tribunais de apelação, em grau a fim de se determinar se os Afigura-se, assim, inade suspensão de segurança, agride, interesses desses povos seceitável a postura incoerente frontalmente, a Declaração Universal dos riam prejudicados, e em que e abusivamente autoritária medida, antes de se emprede presidentes de tribunais Direitos Humanos... que, assim, dispõe: ender ou autorizar qualquer que cassam, reiteradamenToda pessoa tem o direito de receber dos programa de prospecção te, em nível de suspensão de ou exploração dos recursos segurança, com argumentos tribunais nacionais competentes recurso existentes nas suas terras. Os surrados e sem razoável base efetivo para os atos que violem os direitos povos interessados deverão jurídica, contrariando a sufundamentais, que lhe sejam reconhecidos premacia do interesse públiparticipar sempre que for co ambiental, as bem fundapossível dos benefícios que pela Constituição ou pela lei” mentadas decisões de juízes essas atividades produzam, e lotados e desestimulados nas receber indenização equitativaras ambientais, por aquelas mesmas contraditórias preva por qualquer dano que possam sofrer como resultado sidências, pois a Carta Política Federal, que preordena a dessas atividades” (Artigo 15, 1 e 2), em cumprimento República Federativa do Brasil em suas relações internaao princípio 22 da Conferência das Nações Unidas sobre cionais a respeitar, dentre outros relevantes princípios, o Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro, em junho de da prevalência dos direitos humanos (CF, art. 4o, II), eri1992, com a declaração de que “as populações indígenas e suas comunidades, bem como outras comunidades logindo os tratados e convenções internacionais sobre direicais, têm papel fundamental na gestão do meio ambiente tos humanos a nível constitucional (CF, art. 5o, § 3o) e dese no desenvolvimento, em virtude de seus conhecimentos tacou o meio ambiente, em sua norma – matriz (CF, art. e práticas tradicionais. Os Estados devem reconhecer e 225, caput), como direito humano difuso e fundamental, apoiar de forma apropriada a identidade, cultura e interesessencial à sadia qualidade de vida de todos os seres vivos, ses dessas populações e comunidades, bem como habilitápassou a exigir um novo perfil de juiz, com postura repu-las a participar efetivamente da promoção do desenvolviblicana, legitimado pela soberania popular, no grau de sua mento sustentável.” coragem e indeclinável independência, na determinação Há de se observar, na dimensão do princípio da das tutelas de urgência, em defesa dos direitos humanos prevalência dos direitos humanos, que a República fundamentais e do desenvolvimento sustentável, como gaFederativa do Brasil deve assegurar, no território nacional rantia maior das presentes e futuras gerações. e nas suas relações internacionais, a aplicação imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, Nota expressos em sua Carta Política Federal e nos Tratados e Convenções internacionais sobre Direitos Humanos, 1 CPC, art. 512: O julgamento proferido pelo Tribunal substituirá a equivalentes às emendas constitucionais (CF, art. 4o, II e sentença ou a decisão recorrida no que tiver sido objeto de recurso. 66

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A liberdade de imprensa na visão do STF

Júlio Antonio Lopes

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Membro da Academia Amazonense de Letras Diretor Jurídico do jornal A Crítica, de Manaus Membro do Conselho Editorial

fato: muita gente ainda não se debruçou sobre a decisão proferida pelo STF nos autos da ADPF no 130/09, que retirou do ordenamento jurídico pátrio a Lei no 5.250/67. Digo isto porque, na prática, na condição de advogado de jornalistas e de órgãos de comunicação, percebo que os julgadores, em bom número, ainda definem algumas questões, sobretudo as de danos morais, com base em conceitos doutrinários ou jurisprudenciais superados pelo entendimento da Corte Maior do País. E o que é mais intrigante, partindo da premissa falsa de que os direitos de expressão do pensamento e de comunicação, quando em confronto com os direitos à honra, imagem, intimidade e privacidade, a estes devem ceder. O discurso contido em algumas sentenças e acórdãos tenta disfarçar esta, digamos assim, inclinação, mas a verdade é que, mesmo invocando a técnica de hermenêutica apropriada, a ponderação, acabam por identificar abusos e fantasmas em quase tudo o que a imprensa veicula, como se, em seu seio, os profissionais estivessem sempre engendrando fórmulas para denegrir o protagonista da informação. A Lei no 5.250/67 era um dos mecanismos daquilo que se convencionou chamar de “entulho autoritário”, eis que concebida em plena a ditadura militar instalada no Brasil a partir de 1964 para servir, mesmo, de elemento de tutela e de coerção à liberdade de expressão do pensamento e de 68

comunicação. Ela atendia aos interesses e ao contexto de um regime de força, sendo incrível que sobrevivesse por 42 longos anos, 21 anos ainda depois do retorno do País ao Estado Democrático de Direito, com a promulgação da Constituição Cidadã! Não há dúvidas, portanto, de que o constituinte de 1988, refletindo os anseios da sociedade, quis devolver-lhe, de forma plena, aquilo que lhe fora roubado: a liberdade de pensar, de expressar seu pensamento, de comunicar-se, de informar-se e de ser informado, enfim, por qualquer meio ou veículo, sem receio de censuras ou quaisquer outras punições. Daí porque a Constituição de 1988 tornou-se a portadora de um grande bloco normativo, inserido tanto no capítulo dos Direitos e Garantias Individuais e Coletivas quanto no capítulo da Comunicação Social, a revelar-lhe, com eloquência, a primazia em nosso ordenamento jurídico. O STF, nos autos da ADPF 130/09, deu a última palavra a respeito do assunto, fixando os parâmetros a serem observados, a partir de então, dentre os quais destaco: a) não é possível haver censura prévia aos meios de comunicação. Qualquer controle judicial se deve dar a posteriori e, em apenas uma hipótese, pode-se restringir o noticiário: quando decretado o Estado de Sítio; b) há um bloqueio normativo para a existência de uma “nova lei de imprensa”, que venha a cuidar

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Foto: Mário Oliveira

“Não há dúvidas de que o constituinte de 1988, refletindo os anseios da sociedade, quis devolver-lhe, de forma plena, aquilo que lhe fora roubado: a liberdade de pensar, de expressar seu pensamento, de comunicar-se, de informar-se e de ser informado, enfim, por qualquer meio ou veículo, sem receio de censuras ou quaisquer outras punições”

de suas coordenadas de tempo e de conteúdo. De igual sorte, não pode haver legislação criminal diferenciada para jornalistas; c) os veículos de comunicação se devem autorregular, vedado o disciplinamento através de órgãos estatais. “É a imprensa que controla o Estado; não o Estado que controla a imprensa”, diz em inspirado trecho, o relator Ayres Britto; d) no caso concreto, deve o intérprete, em primeiro lugar, garantir o gozo dos sobredireitos de expressão do pensamento, de informação e de comunicação, para, somente depois, a ocorrência de eventuais abusos aos demais direitos da personalidade (honra, imagem, privacidade e intimidade). A isto se chama calibração cronológica de princípios; e) o homem público está sob permanente vigília dos cidadãos e, em especial, da imprensa. A proteção de sua honra deve ser mais débil que a do homem comum. Isto se dá porque o servidor público trata de assuntos e interesses da coletividade, a quem precisa prestar contas. Está, portanto, sujeito às críticas mais acerbas e duras possíveis. É o que o STF chama de “valor social da visibilidade”; f) a imprensa não é a Casa da Moeda. O eventual quantum indenizatório deve ser morigerado; não pode ser motivo de enriquecimento ilícito,

sem causa. Deve atender, além dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, à necessária cláusula de modicidade, não podendo ter qualquer influência na definição de valores o fato de o suposto dano ter ocorrido por meio da imprensa; g) a expressão do pensamento e a informação veiculados por meio da rede mundial de computadores, por meio digital, enfim, gozam das mesmas prerrogativas constitucionais deferidas à imprensa pelo texto constitucional de 1988. E, em época de eleições, quando mais se robustece a democracia, nas palavras do STF, é que a imprensa deve ter maior liberdade de atuação, para que o eleitor possa conhecer em profundidade àqueles que pretendem representá-los; h) a decisão tem efeito erga omnes e imediato. Em seu eventual descumprimento, cabe reclamação à corte. Não há vácuo. Aplica-se a legislação federal existente. Falta, agora, que juízes, tribunais e operadores do direito em geral revisitem com maior frequência esta decisão, a fim de que possam “trabalhar” as questões que lhes chegam às mãos, de maneira alinhada, na medida dos fatos sob exame, ao que pacificou a nossa Suprema Corte, para quem, não tenho dúvidas, os direitos de expressão do pensamento, da informação e da comunicação possuem um caráter preferencial.

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Sucessão trabalhista José Geraldo da Fonseca

Desembargador Federal do TRT da 1a Região Membro do Conselho Editorial

O que o Direito entende por “ponto” “Ponto”, para o direito comercial, é o lugar onde o empresário estabelece a sua empresa. Empresa é a atividade do empresário (CLT, art.2o). Empregado é toda pessoa física que, pessoalmente, presta serviço subordinado e oneroso ao empregador (CLT, art.3o). Se o empregador é a empresa, e empresa é a atividade do empresário, o empregado presta serviços a essa atividade, e não ao empresário mesmo. É só por isso que os arts. 10 e 448 da CLT dizem que a modificação na estrutura 70

Foto: Arquivo pessoal

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uem milita na Justiça do Trabalho conhece este calvário: o empregado é dispensado e nada recebe da empresa. Move ação, ganha, mas na hora de receber, o antigo patrão já não está mais no endereço onde foi citado. Feita a diligência, o oficial de justiça certifica que no lugar da empresa A está a empresa B. Ouvido, o empregado diz que a empresa B é sucessora da empresa A, e o juiz do trabalho autoriza a execução contra os bens da empresa B apenas porque está instalada no lugar onde antes estava a empresa A. A empresa B embarga a execução dizendo que nunca contratou aquele empregado nem tem nenhuma ligação com a empresa A. O CNPJ é outro, o objeto social é outro, os sócios são outros. O juiz despreza suas razões e diz que a empresa B é sucessora de A porque está no mesmo endereço. Quando decidem assim, os juízes demonizam o ponto, isto é, espargem sobre o ponto comercial uma espécie de maldição, como se todos os futuros empresários que ali se estabelecerem devessem pagar todos os débitos deixados pelos antigos empresários, ainda que não haja entre eles nenhuma ligação jurídica ou contratual nem tenham em tempo algum contratado os empregados que agora reclamam seus direitos.

jurídica da empresa não afeta o contrato de trabalho nem os direitos dos empregados. Quando há sucessão no Direito do Trabalho Para que haja sucessão no Direito do Trabalho dois requisitos são imprescindíveis: a atividade de uma empresa tem de passar das mãos de um para as de outro empresário, e os contratos de trabalho dos empregados da antiga empresa têm de continuar com a nova empresa, sem qualquer interrupção.

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Quando não há sucessão no Direito do Trabalho Dissemos que, para haver sucessão, é preciso que a atividade de uma empresa passe para outra empresa e que os contratos de trabalho da antiga empresa sejam mantidos pela nova. Se a atividade de uma empresa é transferida para outra, no todo ou em parte, mas os empregados da empresa antiga não continuam trabalhando para a nova, não há sucessão. Esses empregados têm de buscar seus créditos junto à antiga empresa ou junto a seus sócios. Por outro lado, se a atividade da antiga empresa não foi transferida para a nova empresa, pouco importa se os empregados da antiga empresa continuaram ou não trabalhando para a nova. Não haverá sucessão, mas novos contratos de trabalho celebrados com o novo empregador.

novo empresário, embora a atividade da empresa (motel) tenha sido a mesma. Esses empregados nada poderão reclamar dos sócios do novo motel, mas apenas dos sócios do motel antigo. Nesse exemplo hipotético, somente haverá sucessão trabalhista se, no mesmo ponto comercial, um motel (atividade) for sucedido por outro motel, e se os empregados do antigo motel tiverem passado a trabalhar para o novo motel sem qualquer interrupção. Se a atividade da nova empresa é outra ou se os empregados da antiga empresa não passaram a trabalhar para a nova, pouco faz quem ocupe o ponto ou aproveite o maquinário e a clientela. Não haverá sucessão. A maioria dos juízes do trabalho, contudo, não pensa assim.

Pondo os pingos nos “is” Um exemplo talvez ajude. Dissemos que ponto é o lugar onde o empresário se estabelece para exercer sua atividade econômica. Imaginem que, nesse ponto, o empresário tenha se estabelecido com um motel. A atividade empresária é um motel. Depois de certo tempo, esse empresário decide deixar o ponto e vende o prédio para um pastor evangélico, que monta ali uma igreja para professar a sua fé. A atividade empresária desse novo negócio é uma igreja. Nunca haverá ali sucessão trabalhista entre a antiga empresa (motel) e a nova (igreja) porque a empresa(isto é, a atividade do empresário) de um (o motel) é inteiramente distinta da outra (a igreja). Onde antes havia um motel há agora uma igreja. Duas atividades inteiramente distintas, portanto. Mesmo que os empregados do antigo motel tenham passado a trabalhar para a igreja não haverá sucessão porque a atividade não é a mesma. Os empregados do antigo motel devem reclamar seus direitos dos sócios do motel e não dos pastores evangélicos. Para os empregados do antigo motel, que passarem a trabalhar na igreja como empregados, haverá um novo contrato de trabalho porque os antigos contratos de trabalho se encerraram com o fechamento do motel. Continuemos no exemplo. Digamos que os donos daquele antigo motel tenham vendido o ponto para uns sujeitos e esses novos empresários tenham decidido aproveitar a estrutura do negócio e o fundo de comércio e montar ali um outro motel. Nesse caso, a atividade dos antigos empresários (motel) continuou a mesma. Se os empregados do antigo motel continuarem trabalhando para o novo motel haverá sucessão porque a atividade (motel) passou de um para outro empresário e os contratos de trabalho dos empregados do antigo motel não foram interrompidos com o novo motel. Mas, se os empregados do antigo motel não passarem a trabalhar para o novo motel não haverá sucessão trabalhista porque os contratos de trabalho não continuaram com o

Cortando na carne O juiz do trabalho somente vai se dar conta da atecnia da sua decisão quando se puser no lugar do empresário. Do ponto de vista ético, juiz não pode ser dono de cursinho, mas o art. 36, I, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, não o proíbe de ser sócio, acionista ou quotista de qualquer empreendimento comercial, desde que não exerça cargo de administração. Imaginemos, então, que esse nosso juiz seja sócio de um cursinho preparatório para concursos públicos. Lá, um dia, com o sucesso dos negócios, ele e seus sócios decidem ampliar a empresa e comprar um amplo edifício abandonado, onde antes funcionara uma academia de ginástica. A academia cerrou as portas e os donos sumiram, deixando sem pagamento a recepcionista, o limpador de piscinas, o faxineiro, a telefonista, os professores de musculação, a professora de dança de salão, a moça da cantina e o vigia da noite. Assim que o cursinho preparatório desse nosso juiz hipotético se instalar ali, é quase certo que os advogados dos ex-empregados da academia ajuizarão dezenas de ações trabalhistas afirmando que o cursinho preparatório é sucessor da academia de ginástica porque está estabelecido no mesmo endereço. Um juiz dirá, citando talvez o precedente do próprio colega, que o raciocínio dos ex-empregados da academia é rigorosamente exato. O cursinho, obviamente, nunca contratou nenhum dos empregados da academia. Os sócios são outros, o CNPJ é outro, o objeto social é outro. Por má fortuna, o cursinho foi se estabelecer no mesmo endereço onde antes estava a academia de ginástica. Como será que esse nosso juiz se comportaria no processo? Invocaria, em defesa de seu patrimônio, as mesmas razões das empresas que ele tantas vezes desprezou e condenou a pagar débitos que não contraíra? Ou pagaria todo o passivo trabalhista, previdenciário e fiscal deixado pela academia de ginástica porque é isso o que ele fez com os outros empresários a vida inteira?

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A modernização do STJ: Criação da Constituição de 1988

Sidnei Beneti

Ministro do STJ Membro do Conselho Editorial

Foto: STJ

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Superior Tribunal de Justiça foi criado pela Constituição Federal de 1988, destinado à interpretação do Direito Federal Infraconstitucional. Na Sessão Solene do Senado Federal do dia 8 de abril de 2014, em que se celebraram os 25 anos do Tribunal, o Presidente Felix Fischer noticiou a assombrosa produção de julgamento de quase quatro milhões de processos. Imagine-se se não houvesse o Superior Tribunal de Justiça! O Tribunal franqueou acesso efetivo à justiça recursal de caráter nacional, outrora inacessível ao Supremo Tribunal Federal. Liberou via de conhecimento da ampla variedade de litígios fundados nas milhares de leis infraconstitucionais, de interesse para o dia a dia civil e criminal das pessoas físicas e jurídicas do país. Assumindo o ingente lavor do exame e julgamento da carga imensa de recursos relativos a todos os ramos do Direito, o Superior Tribunal de Justiça enseja que o Supremo Tribunal Federal reserve forças à definição de temas constitucionais, reservado o multifário da ordem jurídica ao Superior Tribunal de Justiça. Comparado com os congêneres europeus – especial­ mente a Cour de Cassation francesa, a Corte di Cassazione italiana e o Bundesgerichtshof alemão, o Superior Tribunal de Justiça julga em dobro, pois não só julga o tema jurídico, mantendo ou reformando a tese submetida, mas, ainda, revê o caso concreto, em dupla tarefa. Bem mais simples seria a tarefa de apenas julgar a tese e devolver a complexidade da justiça do caso concreto ao tribunal de origem, algo à moda de simplesmente anular, genericamente, grande quantidade de processos sem examinar os detalhes concretos em que se

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controvertem as partes, obrigadas a prosseguir no litígio na origem! Para atender às necessidades do seu gigantesco campo jurisdicional, o Superior Tribunal de Justiça vê-se constantemente às voltas com a alteração do instrumental operacional, que são as leis processuais a ele pertinentes e os recursos materiais e humanos necessários à movimentação do maquinismo de prestação da Justiça. Quem repete o fácil refrão falso do imobilismo do aparelhamento judiciário não terá tido olhos para ver o que se passa no Superior Tribunal de Justiça. Tribunal modelar, bem instalado, com servidores de alto nível profissional e humano, em imensa maioria vencedores dos pesados concursos públicos de Brasília. O problema é a astronômica quantidade de recursos, gerada por sistema processual fragmentário, que transforma cada decisão mínima em cada um dos milhões de processos do país em recurso para os tribunais, com direito a obter dose dupla, via embargos de declaração e grande quantidade de recursos internos, para julgar de novo o já antes muitas vezes julgado! Para ficar nos números do ano passado, 2013, o Superior Tribunal de Justiça recebeu 366.488 recursos novos e julgou mais que esse número, ou seja, 384.182 recursos. Inimaginável proibir recursos, garantia de acesso à Justiça, mas, sim, de racionalizar o sistema processual, para evitar múltiplas decisões em um mesmo processo, que provocam verdadeira tautologia recursal e decisória, a qual, por sua vez, leva à opacidade da compreensão do processo, fazendo perder de vista a razão de ser da vinda a juízo, mediante a transformação do litígio em sibilino exercício de incidentes e ciladas, como se o processo, e não o direito das partes, estivesse em julgamento. O Tribunal Superior de Justiça, modelar na organização administrativa, já aprofunda úteis experiências visando à redução da massa recursal sem recorrer à ilusória tentativa de cancelamento de hipóteses de processos ou à criação de obstáculos miúdos, que geram mais hipóteses recursais. Profissionais experientes e independentes no observar, certamente poderão detectar consequências da mudança em marcha. Por ora, nas aperturas deste escrito, produzido em breve tempo retirado do dever de julgar, destaquemse três instrumentos, já implantados e a produzir bons frutos, quais sejam: a) a informatização; b) o recurso representativo de controvérsias e c) o núcleo de recursos repetitivos – NURER. a) Informatização – A informatização dos processos representa revolução judiciária única no mundo. Seria inacreditável, não fosse a evidência dos fatos, mas os processos são já informatizados. Em programa pioneiro implantado sob a presidência do Ministro Cesar Rocha,

“Para atender às necessidades do seu gigantesco campo jurisdicional, o Superior Tribunal de Justiça vê-se constantemente às voltas com a alteração do instrumental operacional, que são as leis processuais a ele pertinentes e os recursos materiais e humanos necessários à movimentação do maquinismo de prestação da Justiça”

definitivizado pelas gestões dos Ministros Ari Pargendler e Felix Fischer, digitalizaram-se de início, um a um, folha a folha, mais de 350.000 processos existentes, seguindose a digitalização de cada processo novo, em experiência justamente vencedora do Prêmio Innovare – e, ressaltese por Justiça, trabalho realizado mediante inserção social de admirável equipe de funcionários deficientes auditivos, aos quais o Tribunal e todo o meio jurídico nunca encontrarão suficientes palavras para agradecer e homenagear. O produto positivo principal da informatização no núcleo do serviço judiciário assombra. Permite ela a consulta a qualquer tempo, elimina o deslocamento de autos, petições e atos cartorários, afasta o risco de extravio de peças, permitindo a disponibilização de relatórios e projetos de votos a todos os julgadores, de modo a aprimorar a qualidade da análise colegiada, com redução de pedidos de vista, fornecimento de cópias integrais magnéticas a advogados. Permite a comunicação imediata aos tribunais e juízos, inclusive para aceleração de desfecho de conflitos de competência, reclamações e liminares, praticamente aniquilando a praga dos tempos mortos do aguardo das intimações judiciais, que tantos males já causou à efetividade da Justiça – e segue-se imensa gama de consequências que seria impossível exaurientemente pormenorizar. O produto acessório da informatização, atingindo a capilaridade do sistema judiciário, é imenso. Extraordinárias e inimagináveis as consequências positivas, próximas e remotas, da informatização. Recuperação de informações, objetivização de dados da correcionali-

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repetitivos foi a criação, pela Presidência do Tribunal, dade ante a deixa de vestígios de cada ato, inserção de do NURER – Núcleo de Repercussão Geral e Recursos pesquisas de bibliotecas e acervos informatizados, busca Repetitivos (Resolução STJ n. 11/2013, do Presidente de informações complementares ao julgamento nos “siMin. Félix Fischer, aprofundando organização anteriortes” de tribunais envolvidos e de mananciais legislativos, mente implantada – Resolução STJ n. 2/2013, e Resoludoutrinários, jurisprudenciais ou informativos de setores ção STJ n. 3/2008, do Presidente Humberto Gomes de da administração, das corporações, de valores e negócios Barros), forte no exemplo dos Tribunais estrangeiros, envolvidos – e vai daí em diante, o caráter benfazejo da que desenvolveram o conceito de irrecebilidade recurinformatização. sal, como consequência da permissão para recorrer (“leb) Recursos Repetitivos – O enfrentamento dos ave to appeal”, “permission pour appeller”, “zulässigkeit” temas repetitivos, dado o procedimento de recursos etc), para recursos sobre temas já pacificados ou recurrepresentativos de controvérsia (CPC, art. 543-C, com a sos mal-formados que, por defectivos, não devem ser redação da Lei 11.672, de 8.5.2008) abriu a esperança de conhecidos, para que não venha a, com base em contraque o Tribunal venha progressivamente a transformarditório inepto, formar-se jurisprudência que impeça o se naquilo a que a Constituição Federal o destinou, isto conhecimento de aprofundado debate futuro, com funé, um Tribunal definidor da interpretação das grandes damento em contraditório de fôlego, tão necessário aos teses infraconstitucionais para toda a sociedade brasileira, Tribunais Superiores. forrando-se ao reexame por milhares, e, na sua história, Ainda há muito que fazer, milhões de vezes, da mesma tese para alcançar a desejada celerisurgida em diferentes processos dade, com qualidade, na presta– restando o desafio do que fazer “O Superior Tribunal de Justiça, ção jurisdicional a cargo do Sucom os processos suspensos na modelar na organização perior Tribunal de Justiça. Será origem para o enfrentamento, preciso, por exemplo, enfrentar no terrível “day after” da administrativa, já aprofunda alguns desafios organizacionais experiência nacional no trato úteis experiências visando à da Corte, para a mais célere e dos processos repetitivos, o redução da massa recursal sem segura formação de jurispruque será assunto para outra dência nacional – estabelecendo oportunidade, se houver! recorrer à ilusória tentativa de a função de cada engrenagem Os processos individuais, cancelamento de hipóteses no grande maquinismo de julmuitas vezes tornam-se, no gamento que é o Tribunal. fundo, simples, é certo, pelo de processos ou à criação de Mas há renovação e, conrepetir-se dos temas, mas são obstáculos miúdos, que geram sequentemente, esperança. Em igualmente avassaladores, pormais hipóteses recursais” escrito que homenageia o Emique obrigam, sempre, a exame nente Relator da Constituição de processo a processo, incluFederal de 1988, BERNARDO sive para identificação de tese CABRAL, Ex-Presidente do eventualmente idêntica – com a Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, dificuldade especial do processo brasileiro, que sempre pareceu interessante ressaltar algo do que vem sendo feiajunta mais de um capítulo por julgar, nem que seja o to pelo Superior Tribunal de Justiça. Deve-se incentivar referente a honorários advocatícios, que são autônomos e a renovação e deve-se manter a esperança na solução dos de delicada avaliação. problemas existentes. É o que se faz ao iniciar a busca da O instrumento recursal representativo de controvérsia solução de um mal, por maior que seja. Afinal, é como permitirá exterminar essa verdadeira chaga nacional, que há séculos Ésquilo fez Prometeu responder à angustiané o número tsunâmico de processos, que tanto mal faz à te pergunta do coro, representante, sempre, do povo no qualidade da prestação jurisdicional brasileira, levando, teatro grego: não raro, à dispersão de precedentes, incompreensível em Coro – Que remédio encontraste para esse mal? um Tribunal Superior nacional, e impediente da detecção Prometeu – Concedi-lhes imensa esperança no futuro” da tese firme, pelos juízos de instâncias inferiores e, mais, (“Ésquilo, Prometeu Acorrentado”). do claro aconselhamento dos advogados a seus clientes e, por fim, do agir seguro dos cidadãos e entidades na prática dos atos jurídicos da vida extrajudicial. c) O Núcleo de Recursos Repetitivos – Relevante Escrito para a Revista Justiça & Cidadania, volume em homenagem a contribuição à efetividade do julgamento dos recursos BERNARDO CABRAL, Eminente Relator da Constituição de 1988. 74

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Ucrânia: a fronteira da fronteira Eurasiana Aurélio Wander Bastos

Lier Pires Ferreira

Professor Titular do Iuperj e da Unirio Membro do Conselho Editorial

Professor do Iuperj, do IBMEC e do CP2

Foto: Ana Wander Bastos

Aurélio Wander Bastos

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m Borderland: a journey through the history of Ukraine, a jornalista Anna Reid conta que dentre as hordas cossacas que outrora ocuparam a Ucrânia as mais selvagens habitavam a ilha de Zaporozhian Sich, no rio Dnieper. Esses grupos fortemente armados reuniam-se na Rada (atual denominação do Parlamento da Ucrânia), uma assembléia popular onde todos tinham direito de voz e as decisões eram tomadas por aclamação. Sem uma liderança política formalmente constituída os cossacos de Sich viviam em bandos de aproximadamente 100 guerreiros denominados Sotnias, cada qual liderado por um Sotni. Em 1648, Khmelnitsky, um desses Sotnis, comandou o levante contra os poloneses, considerado o primeiro movimento independentista da Ucrânia. Reid assevera que a derrocada cossaca, entre os séculos XVII e XVIII, não os alijou do imaginário ucraniano. Ao contrário! Vistos como guerreiros nacionalistas, violentos, de hábitos simples eles são as referências dos atuais rebeldes ucranianos. Para Reid, os cossacos estão para o inconsciente popular da Ucrânia ou, nas dimensões históricas de cada povo, observando como na Vianna Neoog, os bandeirantes e pioneiros estão para a expansão e conquista territorial do Brasil. Até bem pouco tempo ausente do interesse brasileiro, a Ucrânia é hoje parte de nosso debate midático. Mas que país é esse? Com 603.628 Km2 e aproximadamente 45 milhões de habitantes, a Ucrânia está situada entre Rússia; Bielorrúsia; Polônia, que dominam o seu norte/ nordeste; Austria; Eslováquia; Hungria; Bulgária; Romênia e Moldávia, pelo sudoeste; e, no leste remoto, a Alemanha. Aberta a sul e a sudeste para o Mar de Azov e para as

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Foto: José Geraldo da Fonseca

águas quentes do Mar Negro, está em sua maior dimensão situada na Europa, mas sobre ela desponta o leste russo, base de origem e formação de seu povo, língua e religião. A importância geopolítica da Ucrânia para a Europa é ressaltada pela alta fertilidade de suas terras (que motivou o Lebenshaum nazista), forte potencial nuclear (energético e militar), elevada capacidade científica e tecnológica (mantendo inclusive uma parceria espacial com o Brasil). Este país tem uma grande malha gasífera, em cujos gasodutos vão da Rússia para o sul europeu, sendo ela própria dependente deste gás (60%) Europeu. Sua capital, Kiev, está localizada no centro-norte do país, onde vivem, especialmente, ucranianos étnicos, russos, bielorrussos e romenos, há apenas 100 kilômetros de onde ocorreu o desastre de Chernobil. A geopolítica ucraniana é um dos pilares de sua relevância histórica; todavia, a base do seu drama atual, como o fora no passado recente, com reflexos no seu atual quadro político. Isso ocorre tanto em função da antiga influência da Rússia, país que cobre toda região norte e o entorno nordeste da Ucrânia, quanto pelo cerco político e econômico que impede que o seu próprio oeste, de religião russo-ortodoxa, domine as riquezas comerciais e marítimas que transpassam o Mar Mediterrâneo e, cruzando os estreitos de Bósforo e Dardanelos, espraiam-se para o sul da Europa e para as conexões árabes e africanas. Assim, cumpre sublinhar desde já que o “mundo das riquezas” (econômicas e estratégicas) da Ucrânia não está no oeste pró-europeu, mas no leste, onde estão os olhos, as ambições e a dependência européia, em particular na península da Crimeia, entregue aos ucranianos como reservatório de riquezas. Este território foi destinado em 1954 pelo dirigente soviético ucraniano (como o fora também Liev Trotsky), Nikita Khrushchov, que recentemente retornou a integrar o território russo com plebiscito em votação quase unânime. Por isso, em sua própria formação política, econômica e social a Ucrânia é um país cindido entre o (seu) oeste, mais pobre e de maioria étnica ucraniana, mais suscetível à influência européia, e o leste, mais próspero, de maioria étnica russa, como não poderia deixar de ser, suscetível à influência Russa, inclusive de suas remanescentes tradições soviéticas. Este é o dilema ucraniano: o que interessa a Europa é o seu oeste de influência russa, o que interessa à Ucrânia é a Europa alemã, mas o que interessa à Rússia é o mesmo que à Europa (o oeste ucraniano). Este é o foco da crise e, também, o risco separatista, pois o seu leste já fora o celeiro europeu do trigo e do milho, e não o é necessariamente da Rússia. Todavia, a complexa estrutura geopolítica ucraniana desautoriza qualquer interpretação intempestiva sobre a crise do país, dividido entre o mercado comum europeu, que se abastece com o gás e o petróleo de domínio russo e do seu próprio celeiro agrícola e a “nova” Eurásia, de onde

Lier Pires Ferreira

vem as suas próprias condições de sobrevivência. Por isto mesmo, mas dominada pela liderança histórica, alguns analistas tem caracterizado lideranças rebeldes pró-Europa provisoriamente no poder como de influência neonazistas e os governistas como membros do aparato oligárquico pró-Rússia (oprichnick), em tese neocomunistas. É certo que tais grupos estão presentes no cernário político ucraniano, mas o reducionismo não ajuda a compreender a luta nacional em curso. Então, por onde começar? As motivações da crise na Ucrânia vêm por certo de fora. Se assim não fosse o levante social, teria iniciado nos anos de 1990, como ocorreu na Yugoslávia e na Tchecoslováquia, mas não se pode desprezar a sua volumosa dívida, cujos socorros vem sucessivamente da Rússia. Assim, cumpre asseverar que o conflito provém do Ocidente, fomentado por Bruxelas e Washington, que procuram atrelar a Ucrânia ao Eurogovernment. Mas, por outro lado, não se pode esquecer de suas diferenças endógenas e, também, dos velhos ideais europeus da jovem Ucrânia, principalmente que a jovem nação sobreviveu cindida durante a 2a Guerra dominada pelo Governo Geral Alemão (até sua incorporação pela URSS após a guerra). Essa dissensão entre as expectativas européias e do oeste ucraniano, cujo indicador recente foi a suspensão pelo antigo PresidenteYanukovitch (eleito em 2010 com 50% dos votos) das negociações que levaram a uma aproximação com a União Européia, não apenas pode empurrar a Ucrânia para uma guerra civil, com riscos de intervenção internacional, como também para o

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separatismo, sobrevivendo a (seu) oeste uma pequena Ucrânia, e a leste um amplo protetorado russo. Os interesses do bloco ocidental são nítidos neste conflito. Bruxelas busca expandir sua influência captando no leste mercados e fatores de produção (mão-de-obra barata e qualificada, matérias primas, etc.) necessários para a retomada econômica europeia. Os EUA (sem prejuízo das questões econômicas) procuram atrair a Ucrânia para a OTAN, o que lhes permitiria fixar bases militares na fronteira com a Rússia (necessárias para a futura desestabilização russa), como já vem ocorrendo nos países do Báltico e na Polônia. Neste contexto, sem que atue diretamente na Ucrânia (como fez no Iraque e no Afeganistão) os EUA agem através de sua principal agência de inteligência, a CIA, e por meio de ONGs que procuram alimentar o sentimento anti-Moscou no oeste do país onde está visível a influência Russa entre os “milicianos”. Os EUA tem evitado qualquer posição interventiva direta e, como um enxadrista experiente, deixa a arrumação do conflito para os “peões” da Europa, muito especialmente a Alemanha, que no passado sonhou com a Ucrânia do governo geral (alemão). Por outro lado, a Rússia evita o conflito direto, mas conta com o adesismo da população ao projeto anexeonista, com forte expectativa de crimeialização do leste ucraniano. Não se deve esquecer, todavia, que a Criméia depende (70%) da energia elétrica ucraniana, o que aumenta os laços de interdependência interna. Os rebeldes da Ucrânia, genericamente abrigados sob a identidade Euromaidan, eles são predominantemente ucranianos étnicos que hoje se organizam sobre bases independentistas e populares, pretensamente imunes aos interesses das elites. Seus confrontos com as tropas leais ao presidente deposto Víktor Yanukóvytch deixaram um rastro de ódio e morte na Praça da Independência, em Kiev, e permitiram o assalto ao poder na forma do clássico coup de main, de Mussoline. Ultranacionalistas, eles refutam as velhas estruturas organizacionais do Exército Vermelho, tido como imperialista, e dos movimentos nacionalistas da primeira metade do século XX, muitos dos quais lutaram alternadamente ao lado de nazistas e soviéticos. Em busca de referências, eles se voltam para o Rus de Kiev e para as sotnias cossacas, antigas estruturas organizacionais dessa etnia mítica da Ucrânia e, paradoxalmente, da própria Rússia. Considerando que os partidários de Yanukóvytch, em grande parte de origem russa, desejam estreitar laços com Moscou, está configurado o impasse. Qual a solução, sabendo-se que Yanukóvytch buscou guarida exatamente na fronteira leste (Karkiv). Num país polarizado, o caminho mais evidente é a secessão, lastreada no princípio da autodeterminação dos povos, cuja evidência está na declaração do Parlamento da Criméia que deliberou pela anexação da região à Federação Russa, ato legitimado por

um referendo popular (como observamos) e acatado por Moscou. Todavia, nada é tão simples. O retorno da Crimeia à Rússia possui vários obstáculos. Em nível externo, além de EUA e Europa, a ONU condenou a secessão por meio de uma resolução aprovada no final de março por 100 votos a favor, 11 contra e 58 abstenções, dentre as quais o Brasil. No âmbito interno a Rada também rejeitou a separação. Agora, o governo provisório busca reconstruir o tecido político atraindo oligarcas da economia como Sergei Taruta (empresário da mineração e fundição) para sua esfera de influência. Nesse contexto, a alternativa da sobrevivência da Crimeia, província autônoma, regida desde 1999 por uma Constituição própria, como continuidade territorial, poderia influir sobre todo o cenário Ucraniano como vem ocorrendo com a Transnístria na Moldávia, área de grande disputa territorial durante a 2a Guerra, juntamente com a Bucovinia, no Sudoeste da Ucrânia, que tem seu próprio Estado desde 1992, onde também se destaca a República Popular de Donetsk, sendo que sua população considera ilegítimo (74%) o governo provisório presidido por O. Turchinov e a cidade de Druzhkivka, e tantas outras na fronteira Russa. Fato é, todavia, que a Ucrânia sem a Crimeia é pouco significativa no concerto das nações e a sua própria sobrevivência fica limitada. Por outro lado, ocorre, todavia, que, também, a Rússia precisa da “sua” Criméia como porto de abertura para Mediterrâneo, que mais representa nas suas ligações ocidentais que o seu próprio oeste, nas fronteiras bálticas e com a Polônia. Nesse arranjo, no qual os interesses euroamericanos e russos estão com incógnitas armas, lutando visivelmente desequilibrados, a Ucrânia deixaria de ser um estado unitário para formar uma federação descentralizada ou mesmo uma confederação de Estados, para não se aventar no curto prazo a uma hipotética anexação à Federação Russa, pelo menos o seu leste, o que viabilizaria uma desinteressante Ucrânia oeste europeia. De toda sorte, a solução não virá (apenas) do povo ucraniano, mas das diversas etnias ucranianas com suas opções de interesse. Em que pesem os “novos cossacos”, ela será determinada pelo triângulo imperfeito formado por Washington, Bruxelas e Moscou. É neste ambiente político imperfeito que a Rússia, União Européia, Estados Unidos da América e Ucrânia procuram se reunir para encontrar uma saída para a crise, possivelmente às luzes do acordo de Genebra. Finalmente, no quadro desta perspectiva, cumpre destacar que, na esteira de outros tantos conflitos pelo mundo, muito especialmente no leste mediterrâneo, a crise na Ucrânia revela que os tempos de relativa harmonia entre EUA e Rússia parecem estar chegando ao fim. Paira no ar uma “nova guerra fria”, ou pode-se antever, como falava Carl Schimitt, uma nova “guerra quente”. Alea jacta est!,

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Insegurança jurídica no campo Fabio de Salles Meirelles

Presidente do Sistema FAESP/SENAR-AR/SP Membro do Conselho Editorial

Concorrencial – Concentração econômica É compreensível que as empresas busquem a eficiência de sua produção, que almejem resultados positivos nos seus balanços, a redução de custos, a expansão de suas áreas, etc. Porém, em muitos segmentos têm-se notado uma alta concentração do poder econômico, com práticas anticoncorrenciais que impactam diretamente na área rural e indiretamente em toda a sociedade brasileira. A ausência de concorrência nos segmentos e a criação de oligopsônios e oligopólios, são fatores que prejudicam as cadeias produtivas. A ocorrência de concentração vertical e horizontal é extremamente danosa ao setor, pois, diante da desproporção do poder econômico, muitos produtores rurais estão sendo expulsos de suas atividades agrícolas. 78

Fotos: Arquivo Faesp

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Brasil é um país com vocação natural para seu universo agropastoril devido às suas características e diversidades, principalmente, encontradas no clima favorável, no solo, na água, no relevo e na luminosidade. Com seus 8,5 milhões de km, o Brasil é o país mais extenso da América do Sul e o quinto do mundo com potencial de expansão de sua capacidade agrícola sem necessidade de agredir o meio ambiente. O agronegócio representa aproximadamente 25% do PIB brasileiro, além do que é um dos maiores responsáveis pelo superávit da balança comercial. Suas atividades geram 37% de todos os empregos, contribuindo para a melhor distribuição de renda no País. Anualmente, são investidos milhões de reais em pesquisas para melhorar a produtividade e a qualidade dos nossos produtos; portanto, produzimos mais, em menor área e com melhor qualidade, e ainda podemos melhorar. Contudo, existem algumas preocupações do setor agropecuário que concernem à interpretação e à aplicação de muitos dispositivos legais, razão pela qual tecemos algumas considerações, haja visto o impacto nas atividades agrícolas.

É necessário que as autoridades constituídas e os órgãos de controle estejam conscientes da ocorrência do fenômeno do êxodo dos produtores em suas atividades em razão da enorme verticalização que está ocorrendo nos mais variados segmentos das atividades agrícolas. É preciso inibir práticas anticoncorrenciais e punir os crimes contra a ordem econômica cometidos por grupos empresariais que visam somente a obtenção do lucro de suas empresas. Meio ambiente Foram amplas e exaustivas as discussões sobre as alterações na legislação federal que versaram sobre meio ambiente, especialmente o Código Florestal, aprovado com a inclusão de novos conceitos, como o estabelecimento de distinções entre as propriedades em razão do tamanho de suas áreas, e com a estrutura basicamente composta por um cadastro ambiental, a ser feito pelos produtores rurais, e um programa de regularização baseado nas obrigações comuns a todos os produtores, responsáveis pelas áreas de preservação ambiental (APP) e de reserva legal (RL).

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Um dos pontos mais debatidos foi o marco inicial de aplicação do Código Florestal, 22 de julho de 2008, sendo esta data que determinará o conceito de áreas consolidadas, isto é, áreas consideradas com uso anterior a essa data. Atualmente, estão surgindo interpretações que diferenciam a aplicação da lei em uma ou outra região, os conceitos de área utilizada, locais possíveis e proibidos de utilização, o processo de cadastramento do imóvel, identificação das áreas de preservação permanente e reserva legal, remanescente de vegetação nativa e outros. Tal fato pode levar ao absurdo de verificarmos áreas situadas em biomas idênticos, desmatadas na mesma época, em mesma proporção, mas que apenas uma delas possa se regularizar e a outra ter de reconstituir a área desmatada. Essa dubiedade na interpretação de dispositivos legais deve ser sanada pelas autoridades competentes com a maior brevidade possível. É necessária a uniformização do real entendimento sobre o alcance dos artigos para que não cause maiores prejuízos aos valorosos homens do campo. Trabalhista É bem verdade que grande parte da legislação trabalhista foi desenvolvida para atender ao dinamismo das relações sociais entre empregadores e empregados. Na área rural muitas relações cotidianas foram trazidas à formalidade e incorporadas na legislação, assim como o contrato por pequeno prazo de natureza temporária, consórcios de empregadores rurais, entre outros. A terceirização, no que se refere à área rural, disposta no PL 4.330/04, é favorável ao setor, pois entendemos que contribui para eliminar a figura do intermediário, o conhecido “gato”. Ela formaliza a relação entre empregador e terceiro, desde que sejam respeitados todos os direitos dos empregados. Outro tema que causa enorme preocupação na área rural é a ausência de uma definição clara e precisa do conceito de condição análoga a de escravo. Temos constatado casos de autuação por parte das autoridades públicas em que a simples ausência do registro em carteira de trabalho, por ferir a dignidade do trabalhador, configura a referida condição, ou mesmo a longa distância do local de trabalho, pois se trataria de isolamento geográfico do trabalhador. É imperativo definir conscientemente o conceito de condição análoga a de escravo com critérios objetivos de enquadramento no dispositivo, para que se possa conceder a tranquilidade na área rural. Fundiário Quanto à demarcação de terras indígenas, é certo dizer que terras indígenas no Brasil são aquelas existentes e ocupadas até o dia 5 de outubro de 1988, data de

promulgação da Constituição Federal, tendo restado estipulado o prazo de cinco anos a partir desta data para sua identificação. Contudo, nos 25 anos de Constituição, o número de terras indígenas aumentou mais de 500%. Sendo que, atualmente, temos 13% do nosso território ocupado por terras indígenas. O início do conflito ocorreu após a CF/88, que passou a considerar propriedade da União as terras identificadas como indígenas e nulos os títulos de propriedade já existentes sobre elas. A nova Carta também designou o Poder Executivo como responsável pela identificação das terras indígenas. Por meio de decretos, foi instituído um processo administrativo de identificação dessas áreas delegado exclusivamente à Funai. Assim, a Funai passou a realizar as demarcações de territórios indígenas em detrimento da existência de títulos legítimos de terra dos produtores, que, apesar de remeterem ao século XIX, são postos em xeque por diferentes políticas confusas, que, além de questionáveis, eliminam qualquer tendência de razoabilidade. Recentemente, o governo enviou para discussão com o setor proposta de portaria regulamentando o funcionamento de um grupo de trabalho que ficará responsável pela gestão das demarcações. Assim, a Funai deixaria de ser a única autoridade a definir critérios para a criação ou a ampliação de áreas indígenas, passando a dividir essa responsabilidade com o Ministério da Justiça e com outros órgãos correlatos. Não há dúvida de que a competência para demarcação de áreas indígenas deve ser ampliada para que a sociedade civil participe. Outros órgãos devem dar a transparência e a lisura necessárias nesse procedimento tão devastador ao expropriado de suas terras. Novamente manifestamos nossa preocupação para adoção de critérios objetivos para realização de demarcações. Não bastassem as enormes variáveis existentes para o exercício das atividades agrícolas – como intempéries climáticas, investimento em insumos, emprego de tecnologia, mão-de-obra especializada –, deixar os produtores rurais desprotegidos de suas garantias constitucionais, a mercê de diferentes interpretações jurídicas para o mesmo fato, com ausência de definições claras de conceitos, e sem a permissão de se defender de atos administrativos que o atinjam diretamente, agravam consideravelmente o quadro de insegurança jurídica no campo. Essas são as variáveis e reais preocupações que transmitimos em prol da agropecuária, pois queremos e precisamos continuar produzindo no campo com paz e tranquilidade. Afinal de contas, daqui a cinco anos passaremos a marca de 200 milhões de habitantes em nosso País e temos a enorme responsabilidade de prover esse abastecimento!

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A competência universal em retrocesso na Espanha Paula Wojcikiewicz Almeida

David Schechtman

Professora de Direito Internacional da FGV Direito Rio

Graduando do curso de Direito da FGV Rio

Foto: Divulgação FGV Direito Rio

Paula Wojcikiewicz Almeida 80

N

a última terça-feira, causando uma avalanche de notícias e comentários, foi aprovado um projeto de lei pelo Congreso de los Diputados da Espanha que limita a competência universal dos juízes espanhóis. A competência universal pode ser definida como um dever do Estado em perseguir os autores de certos crimes considerados da mais alta gravidade, qualquer que seja o local onde o crime foi cometido ou a nacionalidade do autor ou da vítima. O princípio encontra fundamento na necessidade de proteger um valor de caráter universal, expresso pela máxima aut dedere aut judicare. Está previsto em Convenções internacionais como as Convenções de Genebra de 1949; a Convenção europeia para a repressão do terrorismo de 1977; e a Convenção contra a tortura e outras penas e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes de 1984. Significa que os Estados que ratificaram as referidas convenções, e não apenas estes, assumem a obrigação de extraditar ou de julgar os responsáveis pelos crimes previstos. O que não pode ocorrer, aos olhos do direito internacional, é deixar impune o autor de um crime cuja gravidade viola os padrões aceitos pela comunidade internacional. A Espanha ratificou as referidas convenções que prevêem a competência universal e assumiu, desta forma, a responsabilidade de extraditar ou julgar crimes independentemente de qualquer relação de territorialidade ou nacionalidade das vítimas. A legislação espanhola previa essa possibilidade e o país sempre foi bastante atuante na proteção dos direitos humanos e na persecução de crimes via competência universal. O caso Pinochet e a figura do juiz Baltazar Garzon ganharam notoriedade internacio-

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Foto: Arquivo pessoal

David Schechtman

nal. Entretanto, apesar de haver previsão em convenções internacionais, o exercício da competência universal pode ser obstado por questões de oportunidade política, pois os Estados que adotam tal prática acabam por expor crimes internacionais que muitas vezes não seriam julgados no país onde foram cometidos ou por vítimas de sua nacionalidade. O recente imbróglio espanhol reflete essa tensão política, que compromete o exercício da competência universal. Uma proposta de lei de 24 de Janeiro deste ano foi votada e aprovada pelo Congreso de los Diputados com uma maioria de 179 sobre 163 votos em 12 de Fevereiro. A proposta foi apresentada e votada pelo Partido Popular (PP), atualmente no governo espanhol, com o objetivo de alterar a legislação do país de forma a limitar o exercício da competência universal. É possivelmente fruto da pressão da China, um parceiro comercial de crescente importância para a Espanha. A origem da tensão pode ser traçada à expedição de mandados de prisão para o ex-presidente chinês Jiang Zemin e mais quatro altos oficiais chineses em novembro de 2013. Os mandados são baseados em acusações de

genocídio, tortura e crimes contra a humanidade no Tibete. Mas o debate não é recente, pois já houve proposta similar apresentada pelo mesmo partido em 2009 (Ley Orgánica 6/1985)1. A nova proposta restringe ainda mais a competência universal, alterando o artigo 23 da lei orgânica do Poder Judiciário referente à extensão da jurisdição espanhola. Dentre outras mudanças, foram criados critérios adicionais para que cada um dos crimes antes previstos possam ser julgados, como a exigência de que a vítima do delito seja um espanhol ou que possuísse a nacionalidade espanhola ao tempo do crime. Deste modo, o mecanismo anteriormente abrangente foi convertido em um sistema que limita sua proteção a espanhóis. É possível identificar dois potenciais efeitos decorrentes da proposta: o primeiro deles é o arquivamento dos processos já abertos com base na competência universal; o segundo é a impossibilidade dos juízes espanhóis assumirem novos casos com base nesse mesmo mecanismo, devendo permanecer inertes frente a violações graves que demandariam uma atuação da comunidade internacional. Ora, além das denúncias de genocídio no Tibete, há uma série de outros casos atualmente em tramitação na justiça espanhola que foram iniciados com base na competência universal: os casos de Guantánamo, Ruanda e Guatemala. As consequências da possível alteração legislativa não devem ser minimizadas. No campo político, a aparente influência que a China exerce sobre o governo de Mariano Rajoy preocupa a oposição espanhola e começa a gerar preocupações sobre as prioridades do governo. A reação dos partidos de oposição foi forte e acusaram o partido no poder de se submeter ao poder chinês. Além disso, a iniciativa representa evidente retrocesso do país no que tange ao respeito dos direitos humanos, além de representar violação das obrigações internacionais assumidas em virtude de convenções ratificadas. Independentemente de previsão em tratados, a repressão de crimes de alta gravidade constitui costume internacional que se impõe a todos os Estados. Dessa forma, o desrespeito de tais obrigações não somente prejudica a imagem da Espanha no cenário global como também expõe o país a uma possível responsabilização perante instâncias internacionais.

Nota A reforma de 2009 havia restringido o sistema de jurisdição universal nos seguintes termos: desde que não disposto em contrário em algum tratado ratificado pela Espanha, o delito deve observar algumas condições – o suposto responsável deve estar na Espanha, ou o crime deve ter vítimas espanholas ou com conexão relevante com a Espanha. Assim, desde 2009, a legislação espanhola já impunha condicionantes ao pleno exercício da competência universal. 1

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P rateleira, Giselle Souza

Rompendo barreiras Joaquim Falcão, diretor da Escola de Direito da FGV, recomenda três obras que o ajudaram a pensar o Direito a partir de outras óticas

Foto: Américo Vermelho

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m 1928, final do julgamento de Antonio Gramsci pelo tribunal italiano, o procurador de Mussolini pede a pena de prisão perpétua, justificando: ‘Precisamos impedir este cérebro de funcionar’. Gramsci, um líder operário e intelectual marxista, vai para a prisão. Paradoxalmente, ali escreve seu maior livro: Cartas do Cárcere. A obra foi uma das muitas a inspirar Joaquim Falcão, diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, estreante da coluna Prateleira. O jurista destaca a importância da publicação por, entre outras razões, “romper com o mecanismo marxista, que advogava a prevalência da infraestrutura econômica como definidora da vida social e do próprio comportamento dos indivíduos”. “Gramsci valorizou a cultura, a política, criou conceitos até hoje importantes como o de hegemonia, intelectual orgânico. Foi um pioneiro do moderno pensamento social”, afirma Falcão. 82

Outra obra de linha semelhante, também considerada muito importante para o jurista, é Casa Grande e Senzala, do sociólogo e antropólogo Gilberto Freire. De acordo com Falcão, o autor de Casa Grande e Senzala defende na obra uma tese muito simples: O Brasil precisa pensar o Brasil a partir do Brasil. “O direito brasileiro precisa pensar o direito e a justiça brasileira com os pés encharcados em nossa realidade. Ainda somos uns importadores de ideais, instituições e processos sub germânicos, sub saxões e sub latinos. Precisamos dialogar com todos eles, é verdade. Mas devemos deixar de ser subs. O universal não é igual”, afirma. Por fim, Falcão indica a leitura de A Marcha da Insensatez: De Tróia ao Vietnã, de Barbara Tuchman, grande historiadora norte americana, já falecida. O jurista é só elogios à obra. E explica por quê. “Ela (a autora) faz uma pergunta básica: Por que quem já deteve o poder total, como Tróia contra os gregos, como a Inglaterra contra os americanos, a Igreja Católica contra Lutero, como os Estados Unidos contra o Vietnã, perde o poder total? Faz uma análise histórica decisiva sobre a importância do acesso à comunicação, aos centros de decisões do poder. Imperdível para os dias de hoje, de comunicação interglobal e interpessoal”, relata Falcão.

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