Revista Justiça & Cidadania

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Edição 174 • Fevereiro 2015


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Justiรงa & Cidadania | Fevereiro 2015


S umário Foto: Mariana Fróes

– “Não existe democracia sem Judiciário forte, 8 Capa que não seja arrogante e dialogue com todos”

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Em nome de Deus

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“A importância da ‘carreira’ na magistratura”

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O Conselho de Justiça competente para o processo e o julgamento de oficial da reserva não remunerada

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O incidente da conversão da ação individual em coletiva

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Educação Ambiental como instrumento jurídico nas empresas

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Em Foco – Guarda compartilhada

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Penhora de dinheiro e impenhorabilidades de salário e poupança

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A reserva de vagas para negros em concursos públicos e a Lei no 12.990/2014

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A evolução da judicialização no Brasil e o papel dos departamentos jurídicos na sua prevenção

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Nossa maior tragédia

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Da TR como índice de correção monetária na Justiça do Trabalho

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Titularidade das funções de interesse comum nas regiões metropolitanas e nos entes territoriais assemelhados

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Anistia, paz social

Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Editorial – Basta de impunidade!

Foto: Nelson Jr./SCO/STF

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Edição 174 • Fevereiro de 2015 • Capa: Mariana Fróes

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E ditorial

Basta de impunidade!

A

desbragada corrupção que grassa atualmente no Brasil como uma epidemia avilta a ação e traumatiza a população que se queda atônita, incrédula e descrente da lei, que permite a ladrões condenados cumprirem as penas em suas ricas residências, como acontece com os delinquentes do Mensalão. O tumor canceroso que corrói as entranhas da administração da Petrobras felizmente está sendo extirpado pela mão benfazeja do juiz federal SÉRGIO MORO, com o destino carcerário e o indiciamento criminal que tem dado aos delinquentes já comprovadamente envolvidos na corrupção instalada na Petrobras. A presidenta Dilma, por sua vez, reafirmou em suas declarações republicanas o compromisso inegociável com a garantia plena das liberdades individuais, da imprensa e de opinião, complementadas veementemente com a defesa intransigente da dignidade e da moralidade pública: “Serei rígida na defesa do interesse público. Não haverá compromisso com o erro e o malfeito. A corrupção será combatida permanentemente, e os órgãos de controle de investigação terão todo o meu respaldo para atuarem com autonomia”. O seu passado de lutas e sacrifícios, os percalços sofridos, o enfrentamento ideológico contra as forças da ditadura, as sofridas prisões e as violências e torturas por que passou enrijeceram e formataram o seu caráter, abonando a sua conduta e dando crédito e segurança para declarar e afirmar os princípios que está implantando no governo, como demonstrado em todas as ocasiões em que tem oportunidade. Os firmes propósitos de combate à corrupção declarados pela presidenta Dilma Rousseff foram reafirmados em seu discurso após a reeleição para a Presidência da República: “Terei um compromisso rigoroso com o combate à corrupção e com o propósito de mudanças na legislação atual para acabar com a impunidade, que é a protetora da corrupção. Ao longo da campanha, anunciei medidas que serão importantes para a sociedade e para o País enfrentar a corrupção e acabar com a impunidade”. 6

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Entretanto, e infelizmente, o brado patriótico da presidenta Dilma, proclamado com a confiança que nos merece, está sendo ouvido no deserto e até recebido com desdém pelos políticos da bandidagem, que continuam usufruindo das benesses propiciadas nos cargos públicos que desfrutam, e mesmo até por aqueles que foram julgados e condenados, mas surpreendentemente cumprem as beneficiadas penas refestelados nas faustosas residências e mansões que adquiriram com o produto da corrupção. Chegam a ser escandalosas as declarações difundidas pela imprensa escrita e na televisão sobre a absurda figura da delação premiada, que concede regalias e premia os ladrões dos dinheiros públicos que deveriam ser aplicados em benefício da população de oito milhões e quinhentos mil irmãos miseráveis, carentes, com fome, sede e doentes, que pervagam por esse imenso Brasil afora, completamente desassistidos e abandonados à própria sorte, em busca dos direitos que a Constituição lhes garante, mas que triste e lamentavelmente não lhes concede. Enquanto isso, bilhões de reais foram e continuam sendo roubados por uma corja de bandidos – como vem sendo denunciado com provas irrefutáveis nos inquéritos que transitam na Justiça Federal, graças à pertinaz atuação da Polícia Federal e do Ministério Público contra políticos, empreiteiros e apaniguados em sinecuras de cargos públicos, além de outros delinquentes denunciados em todos os tribunais do País –, constituída por prefeitos, vereadores e maus políticos que envergonham e desmoralizam a administração pública e a Nação. No passado, o Brasil sofreu com epidemias de febre amarela, tifo, malária, esquistossomose e outras misérias e desgraças, como a fome que ainda hoje castiga mais de oito milhões de brasileiros. No presente, essas epidemias praticamente inexistem em face do uso de medidas profiláticas decorrentes do saneamento, embora o problema da fome infelizmente ainda persista; entretanto, surgiu uma questão mais grave e calamitosa que corrompe e desmoraliza a administração, deixando um rastro de indignidade e vergonha para a Nação: a impunidade.

Os benefícios da delação premiada, que estão sendo concedidos aos grandes corruptos, apropriadores dos dinheiros públicos e bens da Petrobras, constituem aberração e despropósito e inominável imoralidade que envergonha a Nação, além da grande indignação que está sendo perpassada para a população, que se queda atônita e abismada com essa torpe e absurda regalia, como se constata pela revolta expressa na seção de leitores dos grandes jornais. Torna-se extremamente necessário no presente momento que os órgãos da Polícia Federal redobrem, com a devida urgência e energia, as ações investigatórias dos envolvidos nos vultosos desvios e locupletação criminosa já apurados, com o encaminhamento urgente ao Ministério Público, para a remessa à Justiça Federal, cuja pronta atuação, demonstrada com as corretivas prisões efetuadas, tem trazido e motivado o reconhecimento público. Os propósitos de mudança da legislação atual, com destinação à reformulação e ao rigoroso combate à corrupção, como recomendado pela Presidenta Dilma, na tentativa de acabar com a impunidade, certamente tem servido de estímulo às autoridades responsáveis que estão comprometidas de ofício em levar essa corja de delinquentes à merecida residência prisional. Está na hora e no tempo de as entidades de classe, Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Clube Militar e organizações populares comprometidas com a moralidade pública participarem e prestigiarem efetivamente, com ânimo, coragem e determinação, a luta e o combate contra a corrupção que infelizmente lavra à solta no País envergonhando a Nação, em detrimento da população carente que pena e sofre com esse desprezível cancro que dá mau exemplo além de corroer a moral e a dignidade da Pátria. BASTA DE IMPUNIDADE!

Orpheu Santos Salles Editor

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C apa, por Ada Caperuto e Marcus Losanoff

Desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, presidente do TJRJ

“Não existe democracia sem Judiciário forte, que não seja arrogante e dialogue com todos” Desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, novo presidente do TJRJ 8

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Foto: Mariana Fróes

E Foto: Isaac Amorim/ACS/MJ

leito em dezembro passado, o novo presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, toma posse em fevereiro para o biênio 2015-2016. Ele terá a seu lado as desembargadoras Maria Inês da Penha Gaspar, como vice-presidente, e Maria Augusta Vaz, como corregedora-geral da Justiça. A Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) será dirigida pelo desembargador Caetano Ernesto da Fonseca.

Aos 67 anos de idade, desembargador do TJRJ há 15, o desembargador Luiz Fernando comenta nesta entrevista alguns pontos de sua campanha à presidência do Tribunal, que tem como principal compromisso a valorização do Judiciário e da Magistratura. Uma de suas metas na gestão da Corte é investir no diálogo permanente com a sociedade civil e com o Executivo e o Legislativo do estado para dar mais autonomia e eficiência ao Judiciário. Revista Justiça & Cidadania – Como o senhor avalia a última gestão do TJRJ e o que considera como destaques da administração da desembargadora Leila Mariano Carrilo? Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho – É sempre difícil avaliar a gestão anterior àquela que se inicia, mas ela teve, indiscutivelmente, pontos positivos, principalmente na esfera administrativa. A desembargadora Leila Mariano Carrilo, a primeira mulher a presidir nossa Corte em 250 anos de existência do TJRJ, “arrumou a casa”, no que se refere a uma série de situações que estavam pendentes, precisando ser reformuladas. Ela é uma pessoa extremamente dedicada ao trabalho, organizada naquilo que faz, mas faço o que considero uma crítica construtiva à reformulação do Regimento Interno do Tribunal e do Código de Organização Judiciária. Devido ao sistema de votação, em tópicos de múltipla escolha, nem sempre o texto final reflete a vontade do eleitor que escolheu entre esta ou aquela determinada opção. Não que não pudesse haver questionário, mas teria de se seguir depois disso uma consolidação em texto final e ser novamente submetido a um Tribunal Pleno, aí sim, para aprovação.

JC – Um de seus compromissos de campanha foi a “valorização do Judiciário e da Magistratura”. De que maneira o senhor pretende colocar em prática essa meta? Quais serão as principais bandeiras? LFRC – O Judiciário e a Magistratura têm papel fundamental no Estado Democrático de Direito. E a grande questão é que, em alguns momentos, isso é negligenciado, ou por elos com outros poderes, ou por uma questão de timidez, ou falha de percepção. O que se pretende é um Judiciário que seja construído com autonomia, independência, altivez, embora sem arrogância, e que possa fazer valer as suas garantias perante os demais poderes, com tratamento harmonioso com o Executivo e o Legislativo, mas que não deixe escapar um milímetro sequer a autonomia e a independência do Poder Judiciário. E muitos pensam que essa autonomia pertence ao Poder Judiciário, quando não é verdade. Só posso abrir mão daquilo que me pertence. Se o Judiciário abre mão de sua autonomia e independência, quem perde é o cidadão comum. O Judiciário, como tem a guarda da Constituição e dos Direitos Fundamentais da Cidadania, não tem disponibilidade daquilo que não é dele. E por que os direitos fundamentais foram colocados nas mãos deste poder? Porque enquanto o Legislativo e o Executivo são poderes assentados na maioria, o Judiciário não. Para que haja equilíbrio da Constituição, alguns poderes, no caso o Executivo e o Legislativo, se baseiam na vontade da maioria. O Judiciário tem como norte os Direitos Fundamentais postos na Carta Magna, um guardião da Constituição, ou seja, ele não se baseiaNacional em maioria ou Caetano minoria. Secretário Flavio Crocce Ele, na verdade, é um contrapoder,

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representa a garantia do cidadão comum contra os poderes baseados na maioria. Se houver um cidadão expressando a sua vontade perante o Judiciário usando o direito constitucional de ação contra 20 milhões do outro lado, se a razão estiver com ele, mesmo isolado, é essa a vontade que o Judiciário deve prevalecer. É um contra poder de maioria. A Constituição vale mais que a vontade da maioria. A vontade da maioria é mutável. As maiorias parlamentares e governamentais são mutantes, enquanto que a Constituição muda de vez em quando, mas possui pontos fundamentais, sensíveis, cláusulas pétreas, imodificáveis. O poder de emenda encontra limitações nas cláusulas pétreas. Não pode haver, por exemplo, emenda acabando com a Federação, com a República, com a separação dos poderes, ou instituindo o trabalho escravo. Antigamente o conceito era diferente. Quando não se tinha do Judiciário a conceituação de um Poder, deveria se esperar ser votado o projeto de emenda constitucional ou projeto de lei, para depois analisar a sua constitucionalidade. E isso mudou. Por exemplo, nos Estados Unidos da América, no famoso caso Marbury versus Madison, quando a suprema corte norte-americana pela primeira vez declarou inconstitucional um projeto de lei. Até então predominava a concepção dura lex, sed lex, dura é a lei, mas é a lei. E esta tinha de ser obedecida pelos súditos de qualquer maneira. Hoje, não somos súditos, mas cidadãos. Mauro Cappelletti (19272004), o grande professor da Universidade de Florença, dizia que a maior transformação da contemporaneidade foi exatamente a dos súditos em cidadãos. Antes, o governante era absolutista, agora não. Hoje, o cidadão pode se recusar a cumprir uma lei inconstitucional. Assim, quando se diz “valorização do Judiciário e da Magistratura” é no sentido de 10

guardiões desse conjunto de valores expressos na Constituição; ele tem de ser respeitado, acatando-se o sistema de freios e contra freios. O valor pertence à cidadania, mas a garantia de que esse valor permaneça pertence ao Poder Judiciário. É uma questão conceitual de Estado. E não de qualquer Estado, mas do Estado Democrático de Direito. JC – O senhor também pretende dar atenção contínua ao diálogo entre o Judiciário e a sociedade civil, assim como o poder Executivo e o Legislativo do estado. Em linhas objetivas, qual a relevância desse diálogo como garantia da autonomia e da eficiência do Judiciário? Um exemplo prático. LFRC – É fundamental, porque se o Judiciário tem um distanciamento da sociedade civil, ele se enclausura, fica encapsulado. Na verdade, o Judiciário da segunda metade do século XX e início do século XXI precisa interagir com a sociedade civil, e não para falar apenas nos autos, como antigamente se dizia: “o que não está nos autos, não está no mundo”. Isso é uma alienação completa, um despojamento da pessoa de sua própria realidade. Seja com a sociedade civil ou com os demais poderes, o Judiciário precisa ter essa interação ativa que represente a realidade de um Poder do Estado. A concepção do Judiciário até a primeira metade do século XIX era mais ou menos a de um departamento do Estado. Na França, o Judiciário não é considerado um poder até hoje. Lá o juiz tem a sua autoridade garantida pelo primeiro ministro. Hoje em dia, no Brasil, temos uma das Constituições mais avançadas do mundo nos direitos das garantias fundamentais, seja contra o poder político ou econômico. Há países onde a Constituição, embora exista normalmente, consagra o arbítrio. Nós temos o direito de defesa, direito à moradia,

à saúde e à educação, que o Estado tem de realizar, ou se abster de desrespeitar, como o direito à liberdade de imprensa. Porque na base dela está o direito de informação do cidadão. A liberdade não é um valor em si, assim como a autonomia do Judiciário. Ambos são valores instrumentais para garantir o Estado Democrático de Direito, a liberdade dos cidadãos. Um governo que não tenha imprensa livre tenderá sempre a ser um governo despótico. JC – E o senhor vê no Brasil algum risco de ameaça à liberdade de imprensa em médio ou curto prazo? LFRC – Não vejo, felizmente, risco algum de que isso aconteça. Nós tivemos um longo período em que isso aconteceu – a ditadura militar brasileira, de 1964 a 1985 – e estamos vendo o resultado disso agora na Comissão da Verdade, tentando curar aquelas feridas e traumas. Qualquer regime despótico, seja muçulmano, católico, militar, civil, é contra a essência da perseguição do Homem do seu direito à liberdade. O Homem nasceu para ser livre. O que o impede de se ser livre é o despotismo, o arbítrio, a exploração econômica dos mais fracos, o desemprego. Nós não podemos dizer que há um homem completo, na acepção da palavra, se este se encontra desprovido de trabalho. JC – Aprimorar o diálogo com a sociedade implica, naturalmente, a aproximação com a população. Nesse sentido, o que será feito para ampliar o acesso à Justiça na 1a instância? LFRC – Nós temos de reequipar a 1a instância, que anda muito carente. O Judiciário cresceu tanto que, em 1988, quando da promulgação da Constituição, tramitaram no Brasil 350 mil processos. Hoje, tramitam 100 milhões; e só no Rio de Janeiro são quase 10 milhões, 10% da demanda nacional. Precisamos diversificar os Justiça & Cidadania | Fevereiro 2015


meios de combate a esse gigantismo da demanda processual, além de termos um processo mais rápido, mais célere, mais efetivo, e, para isso, vem o novo Código de Processo Civil ser sancionado em breve. Temos de usar meios alternativos, como a conciliação, a mediação e a arbitragem; temos de usar um processo coletivo que seja digno desse nome, que produza resultados em até 100 mil processos, ou seja, você julga um, evitando que 100 mil entrem. Pretendemos incrementar, fomentar isso, e encontrar parceiros envolvidos, como Defensoria Pública, o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), clubes de serviço, entidades mediadoras que já existem, para que o TJ possa, pela sua condição e autoridade moral, se constituir em uma espécie de articulador de todo esse esforço coletivo, exercendo papel de coordenação, para que todos esses mecanismos sejam usados, diminuindo a demanda, senão o cidadão não se aproximará do Judiciário. E quando o fizer, ou será com medo ou com descrença, muitas vezes saindo daqui pior do que entrou. Não podemos conceber que um processo dure 10, 20, 30 anos. Que uma execução de sentença dure igual tempo. A demanda, como já

Foto: Divulgação

“A liberdade não é um valor em si, assim como a autonomia do Judiciário. Ambos são valores instrumentais para garantir o Estado Democrático de Direito, a liberdade dos cidadãos. Um governo que não tenha imprensa livre tenderá sempre a ser um governo despótico.”

Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho

disse, se agigantou e diante disso devemos ser criativos e empenhados em um esforço absoluto pela reversão. JC – Aumentar o número de juízes seria uma opção? LFRC – Não adianta, no quadro atual, aumentar o número de juízes. Um País com carências de educação, saúde, moradia e trabalho como o Brasil não conseguirá aumentar o número de juízes ao nível de que precisa. É só fazer aquele cálculo dos 350 mil processos de 1988 para 100 milhões que temos hoje. Isso porque tínhamos mais ou menos seis mil juízes naquela época. Em vez dos 15 mil, 16 mil juízes de hoje, teríamos

o quê, 200 mil ou 500 mil juízes? Seria como, em linguagem vulgar, o cachorro correr atrás do próprio rabo. Aumentando o número de juízes, aumenta-se também a demanda. Essa não é a solução do problema. As ações aumentam em progressão geométrica. E os meios humanos de resolução das demandas aumentam em progressão sequer aritmética. Ainda há a crise do Estado brasileiro, e a questão do petróleo no nosso estado, a redução da arrecadação do ICMS – à metade do valor anterior –, o problema dos royalties do petróleo, que a União não tem repassado; algo que, por lei, o Rio de Janeiro e o Espírito Santo têm direito. O que

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a União tem repassado, com atraso, é um valor menor do que é de direito do estado. Portanto, as principais fontes de receita do estado, ICMS e royalties do petróleo, estão comprometidas neste momento. O TJRJ pretende realizar um seminário com a participação de todos os interessados, chamar o Executivo, o Legislativo, a OAB, a Defensoria Pública, a imprensa, a sociedade civil, além de entidades empresariais. Pretendemos sediar, então, grande seminário sobre as alternativas para a saída da crise econômica em que vivemos. Temos de ver o que cada um pode fazer na sua área de atuação. E temos certeza de que todos juntos saíremos mais rápido dessa crise. A crise não é invencível, mas há descrença na capacidade de se sair dela é. JC – Outro ponto de sua campanha foi a meta de ampliar os projetos sociais do TJRJ. Quais deles receberão mais atenção? Existe intenção do Judiciário fluminense colocar em prática algum projeto nesse âmbito? LFRC – Eles já existem, o Tribunal tem investido bastante neles nos últimos anos. Eu poderia citar o Justiça Itinerante, que são ônibus que vão aos lugares onde não há fóruns, porque a população de certas comunidades menores não justifica a construção de um fórum; seria uma despesa grande para o contribuinte. Mas essa população, por ser minoritária, não pode ficar sem Justiça. Então o Tribunal conta hoje com cerca de 15 a 20 ônibus, que se deslocam até esses locais, com um juiz, um promotor, um defensor, um serventuário da Justiça. E ali se realizam acordos, divórcios consensuais, registros de nascimento e outros procedimentos. Outro projeto é o Justiça Cidadã, do qual participam lideranças comunitárias dos bairros da periferia do Rio de Janeiro, subúrbios, cidades da Baixada Fluminense. Essas lideranças vêm aqui e passam três meses recebendo 12

aulas em um curso que inclui Direito Constitucional, Civil, do Consumidor, de Família, Penal, Empresarial, ou seja, de todas as naturezas. No final, há uma formatura e esses líderes comunitários, que são também formadores de opinião, voltam para a sua comunidade e tornam-se multiplicadores do conhecimento que adquiriram. Isso é um exercício democrático de conhecimento jurídico; e o conhecimento jurídico não pode ser monopólio do jurista, que deve contribuir para a sua disseminação.

“Na verdade, o Judiciário da segunda metade do século XX e início do século XXI precisa interagir com a sociedade civil, e não para falar apenas nos autos, como antigamente se dizia: ‘o que não está nos autos, não está no mundo’. Isso é uma alienação completa, um despojamento da pessoa de sua própria realidade.”

O TJRJ realizou recentemente dois mil casamentos comunitários no Maracanãzinho. Fizemos também 160 casamentos homoafetivos. Essa é uma demonstração de que a Justiça vem se despindo de uma visão preconceituosa da sociedade. A função do Judiciário é a pacificação social. E fazer um casamento, levar uma justiça itinerante a qualquer lugar, varas de violência doméstica contra a mulher, tudo isso é realizar a pacificação social. O processo judicial é um meio

de fazer justiça, mas não é o único. As conciliações, as mediações, são formas de fazer justiça mais amplas que o processo, que é um meio utilizado quando tudo falhou, mas não é dono do monopólio de se buscar justiça e fazer justiça. JC – Qual o objetivo e como funcionará a Central de Atendimento aos Magistrados, outro dos pontos de sua campanha? LFRC – Na verdade, o nome agora é Departamento de Atendimento aos Magistrados (Damag). Seu objetivo é liberar o tempo do magistrado para realizar as suas atividades próprias. Porque hoje o juiz tem problemas que todos nós temos, como um ar-condicionado quebrado, o conserto de uma torneira, do carro, do próprio computador. Ele tem de ligar para vários departamentos do Tribunal até localizar quem fará o serviço, e a previsão para realizá-lo. Ou seja, perdiam um tempo que deveriam estar dedicando à atividade jurisdicional. A ideia é a criação de um departamento, de número único, 0800, com quatro pessoas: dois desembargadores, um juiz e um servidor. A pessoa que atender o telefonema do juiz fará o percurso que ele faria e dará a resposta para solucionar o problema. Porque nós precisamos que o juiz tenha todo o tempo possível liberado para a sua atividade funcional. Ele não deve perder tempo com detalhes que alguém, com atribuição administrativa, pode fazer. Ao contrário dos processos que julga, algo que ninguém pode fazer por ele. É lógico que isso é melhor para o juiz, mas há também uma utilidade social. Porque assim que o juiz se libera disso e cuida de seus processos, é a sociedade a maior beneficiária. JC – Quais são hoje os principais problemas que enfrenta o TJRJ e quais são as propostas de sua gestão para lidar com eles? Justiça & Cidadania | Fevereiro 2015


LFRC – Um dos principais problemas está na primeira instância, relegada por muito tempo a uma situação quase de abandono, sem receber atenção diante do gigantismo de sua demanda, mesmo sendo ela a vitrine do Judiciário. O cidadão comum chega primeiro ao juiz e não aos desembargadores. E quando ela ficou relegada? Houve muitas obras aqui, mas a maioria destinada à segunda instância. Tivemos de mudar 50 varas para a Praça Onze, porque aqui (Avenida Erasmo Braga, 115, Castelo) havia risco de incêndio, instalações hidráulicas e elétricas superadas. Há 50 anos, quando foi inaugurado, o fórum recebia certa quantidade de pessoas, entre testemunhas, peritos, juízes, servidores, advogados, promotores. Hoje, esse número é muito maior. A desembargadora Leila Mariano precisou, literalmente, correr para locar um prédio na Praça Onze, transferir varas cíveis, de família, para liberar as daqui e fazer obras necessárias para colocar esta instalação de acordo com a demanda atual. E a presidente verificou riscos concretos de incêndio. Imagine uma circulação de, talvez, 70 mil pessoas por dia no edifício. Nós não podemos arriscar nada nesse sentido, vamos tomar todas as precauções. A obra é tão séria que a previsão inicial de conclusão é de 30 meses, ou seja, eu tomo posse em fevereiro, saio em dois anos e ela não estará pronta. Isso se não houver a necessidade de prorrogação de prazo. Nós precisamos resgatar a autoestima principalmente dos juízes de primeira instância e dos servidores. Porque os desembargadores que formam a segunda instância estão hoje com instalações razoáveis – até porque a Justiça não foi feita para abrigar luxo –, mas que estimulam o trabalho. É necessária a valorização dos servidores. Antigamente, um servidor da Justiça Federal deixava-a para trabalhar aqui. Hoje, acontece o contrário, porque se ganha o

dobro, ou o triplo lá. Mas por que a diferença de salários para exercer o mesmo cargo, o mesmo trabalho? Se é da União vale mais do que fosse do estado? Não. Precisamos dar condições de capacitação e também recursos financeiros, melhoria de remuneração. Outra prioridade, como já disse, são os métodos alternativos à Jurisdição: a conciliação, a mediação e a arbitragem. Isso porque cada vez que você resolve um conflito é um processo que deixa de entrar. E estamos em uma situação tão grave do ponto de vista do gigantismo da demanda que é preciso não só resolver os processos, mas também evitar que eles surjam. Outra questão prioritária para nós é a comunicação social do Judiciário, que não tem sido ainda – embora tenha melhorado bastante – plenamente satisfatória. Em primeiro lugar, é necessária uma política de comunicação social. A desembargadora Leila Mariano, durante sua gestão, começou a elaborar um plano de política de comunicação social no Judiciário. Eu pretendo incrementar e dar todo o estímulo a esse projeto. Em segundo lugar, a operacionalidade disso. Não adianta um plano espetacular, sem estrutura para operar, com jornalistas, em um departamento de comunicação social do Tribunal. E que essa comunicação social atinja o público externo, evidentemente: a sociedade civil, que é destinatária do nosso trabalho; e a mídia impressa e eletrônica, pois se não atingimos a mídia, falhamos também com a sociedade civil. Finalmente, a questão da comunicação interna, em que, surpreendentemente, somos muito fracos; às vezes, nós aqui dentro somos os últimos a saber das coisas. Em reunião recente com a presidência discutimos isso mesmo: assuntos cujos leitores da revista Justiça & Cidadania tomam conhecimento – os ônibus da Justiça Itinerante, os casamentos comunitários etc. –, a maioria do nosso público in-

terno desconhece que exista. Porque não há um endomarketing, não há um trabalho de comunicação interna sistemático. JC – Considerando os problemas que enfrenta o Judiciário, alguns já citados aqui – a morosidade, excesso de demandas –, há expectativa de mudanças positivas nesse cenário? LFRC – Totalmente. Quando a gente se conforma com as dificuldades, com os revezes, é evidente que se espalha uma atitude de desalento, de desânimo. Mas o que estamos procurando demonstrar é que o contrário também é verdadeiro. A gente pode demonstrar uma atitude de resgate da autoestima, de que o Judiciário tem um imenso papel social a desempenhar, fundamental para a democracia, tanto quanto dos demais poderes – e, em alguns momentos, até mais. Tudo isso precisa ser visto de uma forma entusiasmada, em que cada servidor, cada juiz, cada magistrado de qualquer instância deve ter a consciência de que o seu trabalho depende não só da solução de um processo, mas também da construção de uma democracia sólida, consistente, que não pede favor a ninguém para existir. E isso é muito importante, porque não existe democracia sem Judiciário forte, autônomo, altivo, que não seja arrogante e que dialogue com todos. E o Judiciário, quando foi construído no Brasil, com a chegada da Família Real – junto aos primeiros Tribunais de Apelação da Bahia, de São Paulo, entre outros –, a mentalidade era escravocrata, de subserviência, de subalternidade, ou seja, de acordo com a mentalidade daquela época. A sociedade não sendo democrática, o Judiciário não será democrático. Agora, quando há um Estado de Direito Democrático, o Judiciário não só deve sê-lo, como deve ter a noção do dever de ser um poder democrático.

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Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Titularidade das funções de interesse comum nas regiões metropolitanas e nos entes territoriais assemelhados Ricardo Lewandowski

O

Presidente do Supremo Tribunal Federal Membro do Conselho Editorial

1. Discussão do tema no STF Supremo Tribunal Federal (STF) pronunciou-se, em 6/3/2013, de forma definitiva, sobre um tormentoso tema, qual seja, a titularidade das funções de interesse comum nas regiões 14

metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) no 1.842/RJ, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT, em que este buscava, com fundamento no art. 102, I, “a” e “p”, da Constituição Federal, a de-

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claração de inconstitucionalidade dos arts. 1o a 11 da Lei Complementar (LC) no 87/1997 e arts. 8o a 21 da Lei no 2.869/1997, ambas editadas pelo Estado do Rio de Janeiro. A LC no 87/1997 cuida da instituição, composição, organização e gestão da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e da Microrregião dos Lagos, além de estabelecer as funções e os serviços públicos de interesse comum. Por sua vez, a Lei no 2.869/1997 dispõe sobre o regime do transporte ferroviário e metroviário de passageiros, bem assim acerca do saneamento básico no referido Estado. Naquela mesma ocasião foram julgadas, conjuntamente, as ADIns nos 1.826/RJ, 1.843/RJ e 1.906/RJ, por tratarem de questões semelhantes. Nesta última, questionava-se, ainda, a constitucionalidade do Decreto no 24.631/1998, que dispõe sobre a outorga da concessão do saneamento básico na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e também da alienação das ações da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae). Os requerentes sustentaram, em suma, que as normas impugnadas afrontavam: (i) o princípio federativo (arts. 1o; 23, I, e 60, § 4o, I, da Constituição Federal); (ii) a autonomia municipal (arts. 18 e 29 da CF); (iii) o exercício das competências municipais privativas (arts. 30, I, V e VIII, e 182, § 1o, da CF) e comuns dos entes federados (arts. 23, VI, e 225, da CF); e (iv) o princípio da não-intervenção dos Estados nos Municípios (art. 35 da CF). Alegaram, mais, que as normas contestadas extravasavam o disposto no art. 25, § 3o, da Constituição Federal, uma vez que não cuidavam apenas da organização, do planejamento e da execução de funções públicas de interesse comum, mas acabavam por transferir a titularidade destas para o Estado do Rio de Janeiro, muito embora ela pertencesse, por força do que dispõe a referida Carta Política, aos Municípios que integram a Região Metropolitana e a Microrregião em tela. 2. Resumo dos principais votos O Relator original do feito, Ministro Maurício Corrêa – depois redistribuído ao Ministro Luiz Fux –, rejeitou a preliminar de inépcia da inicial e entendeu que as ADIns estariam prejudicadas quanto ao Decreto no 24.631/1998 e aos arts. 1o, 2o, 4o e 11 da LC no 87/1997, em face das alterações legislativas supervenientes que mudaram as respectivas redações. No que tange aos demais dispositivos impugnados, o Relator julgou improcedente a ação, assentando, em suma, o seguinte: [...] Não é razoável pretender-se que, instituídos esses organismos, os Municípios que os compõem continuem a exercer isoladamente as competências que lhes foram cometidas em princípio, uma vez que nessas circunstâncias estabelece-se uma comunhão superior de interesses,

daí porque a autonomia a eles reservada sofre naturais limitações oriundas do próprio destino dos conglomerados de que façam parte. [...] Verificado o interesse regional predominante [...] resta claro competir ao Estado-membro, com prioridade sobre o Município, legislar acerca da política tarifária aplicável ao serviço público de interesse comum”.

Os Ministros Joaquim Barbosa e Nelson Jobim iniciaram a divergência, manifestando-se contrariamente ao voto proferido pelo Relator. Ambos, em síntese, assentaram que a criação de uma entidade regional não pode resultar na transferência de competências constitucionalmente estabelecidas em favor dos Municípios para o Estado. Os dois Ministros, no entanto, discordaram entre si no que concerne à titularidade das funções públicas de interesse comum. O primeiro entendeu que ela deveria ser exercida por um órgão próprio ou um ente – público ou privado – mediante autorização ou concessão dos Municípios. Já o segundo, sustentou que a titularidade delas passaria para a nova entidade político-territorialadministrativa resultante da criação do ente regional. O Ministro Gilmar Mendes, por sua vez, ao votar, à semelhança do Ministro Joaquim Barbosa, asseverou que nem o Estado, nem os Municípios ostentariam a condição de únicos titulares das funções públicas de interesse comum, devendo sua gestão ser compartilhada entre os membros os integrantes dos dois níveis político-administrativos da Federação que compõem a entidade regional. Em outras palavras, para tais Ministros a titularidade haveria de pertencer aos Municípios e o Estado, simultaneamente, os quais decidiriam, em conjunto, acerca da organização, do planejamento e da execução das funções públicas em questão. O Ministro Gilmar Mendes acrescentou, ainda, que tal gestão compartilhada não demandaria, necessariamente, uma representação paritária dos distintos integrantes da entidade regional. Para garantir a constitucionalidade desse arranjo, bastaria evitar a prevalência unilateral da vontade quer dos Municípios, quer do Estado. Em outras palavras, a titularidade seria exercida por uma pessoa jurídica, de natureza complexa, organizada de tal sorte que a vontade isolada de qualquer um deles não pudesse prevalecer sobre a dos demais. 3. Pedido de vista diante da divergência Após os pronunciamentos divergentes acima explicitados, pedi vista dos autos para melhor exame da questão. Ao devolvê-los, acompanhei os votos que me precederam para afastar a inépcia da inicial, pois, a meu ver, ela preenchia os requisitos necessários à propositura da ação direta de inconstitucionalidade.

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Também julguei prejudicada a ação quanto aos arts. 1o, caput, e § 1o, 2o, caput, 4o, caput, e incs. I a VII, 11, caput, e incs. I a VI, da LC no 87/1997, porquanto esses dispositivos foram alterados, de forma superveniente, pelas LCs nos 89/1998, 97/2001 e 105/2002, todas do Estado do Rio de Janeiro. Mergulhei, então, na questão básica que se discutia no julgamento, que era, precisamente, a de definir a qual dos entes federados deveria ser atribuída a titularidade das funções públicas de interesse comum nas regiões metropolitanas e em outras figuras territoriais de natureza assemelhada. Havia três possíveis alternativas para resolver tal questão: (i) conferi-la integralmente ao Estado instituidor da entidade territorial; (ii) deferi-la, de modo exclusivo, aos Municípios que as integram; ou (iii) permitir o seu compartilhamento entre o Estado e os Municípios. 4. Conceito de funções públicas de interesse comum A Constituição Federal, em seu art. 25, § 3o, dispõe o seguinte sobre o assunto: Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de Municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.

Diante desse dispositivo, cabia a pergunta: teria o constituinte criado um quarto nível político-administrativo na Federação brasileira, ao lado da União, dos Estados e dos Municípios, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum? Se a resposta fosse negativa, como parecia ser a opinião unânime dos especialistas, a qual dos entes federados caberia tal tarefa? Antes de aprofundar o exame da temática sub judice, busquei estabelecer o conceito de função pública de interesse comum. Segundo a mais abalizada doutrina, em especial aquela desenvolvida por Alaor Caffé Alves, as funções públicas de interesse comum, inconfundíveis com aquelas de interesse exclusivamente local, correspondem a um conjunto de atividades estatais, de caráter interdependente, levadas a efeito no espaço físico de uma entidade territorial, criada por lei complementar estadual, que une Municípios limítrofes relacionados por vínculos de comunhão recíproca. 5. Município como ente federado Sublinhei, na sequência, que o âmbito de competências que o constituinte originário outorgou aos Municípios, nos arts. 29, 30 e 31 da Lei Maior, não encontra paralelo na história político-institucional do País, a começar 16

pelo disposto no caput do primeiro dos dispositivos mencionados, que autoriza as comunas a elaborarem as próprias leis orgânicas, as quais, a rigor, configuram verdadeiras constituições locais. Tal prerrogativa, aliás, lembrei eu, encontra fundamento no art. 1o da Carta Magna, segundo o qual os Municípios integram, hoje, de pleno direito, o concerto federativo. Com efeito, os Municípios, desde os tempos coloniais, especialmente em razão das enormes distâncias que os separavam, bem como em virtude da crônica precariedade das vias de comunicação – a qual acentuava o seu isolamento em um país de dimensões continentais –, sempre gozaram de grande autonomia no plano fático, embora jamais dela tivessem desfrutado plenamente no âmbito jurídico, o que só veio a ocorrer com a promulgação da atual Carta Política. 6. Transferência da titularidade das funções públicas de interesse comum Diante dessa nova realidade, deparei-me, desde logo, com a seguinte indagação: seria constitucional a transferência da titularidade das funções públicas de interesse comum para o Estado instituidor das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões? Somente o Relator, Ministro Maurício Corrêa, entendeu que a sua transferência integral para tal ente federado estaria em consonância com o Texto Magno. Como visto, os Ministros Nelson Jobim, Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes votaram no sentido da inconstitucionalidade da entrega total da titularidade daquelas funções ao Estado. Nesse ponto, meu voto-vista contribuiu para que se formasse uma maioria, ao final do julgamento, coincidente em linhas gerais com a divergência iniciada pelo Ministro Gilmar Mendes, que levou em conta, tal como eu, o novo status institucional desfrutado pelos Municípios sob a Constituição de 1988. É que a transferência integral, ao Estado, da titularidade das funções públicas de interesse comum, continentes das funções de competência local, significaria, conforme salientamos, neutralizar um dos aspectos mais peculiares do modelo federal adotado pela Constituição vigente, qual seja, a consagração das comunas como um terceiro nível político-administrativo de nossa estrutura estatal. A titularidade das funções públicas de interesse comum, segundo conclui, não poderia ser totalmente atribuída ao Estado que institui a entidade regional, sob pena de afrontar-se a ampla autonomia garantida aos Municípios pelo constituinte originário. Superada tal questão, restava saber se seria lícito transferir integralmente essa titularidade para os Municípios que compõem a nova entidade ou se ela deveria ser compartilhada com o Estado. Antes disso, cumpria definir a natureza jurídica dessas novas figuras.

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7. Natureza jurídica das novas entidades regionais Com efeito, antes de definir a titularidade das funções públicas de interesse comum era preciso conceituar a natureza das regiões metropolitanas e das demais figuras assemelhadas. Assentei, ao proferir meu voto, que tais entidades, quando formalmente constituídas, identificam um conceito jurídico que institucionaliza um fenômeno empírico, a saber, a existência de núcleos urbanos contíguos, com interesses comuns. Identifica, em síntese, a uma autarquia territorial, intergovernamental e plurifuncional, sem, todavia, ostentar personalidade política, tornando-se, então, necessário compreendê-la a partir de noções que superassem a visão que tradicionalmente se tinha da própria Federação. De fato, desde a sua concepção inicial, surgida na Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, até os dias atuais, a Federação, forma sui generis de estruturação estatal, sofreu significativas transformações. Aqui e alhures, ela, de há muito, perdeu o caráter dual que originalmente ostentava, a saber: uma estrutura estatal integrada por duas esferas de competências e rendas. Hoje, evoluiu para o chamado federalismo de cooperação ou de integração, no qual as competências e rendas passaram a ser partilhadas entre os distintos níveis político-administrativos. 8. Integração compulsória dos Municípios Outro aspecto que precisava ser considerado na discussão era que, após a promulgação da nova Constituição, a integração dos Municípios às entidades regionais passou a ser compulsória. Quer dizer, as comunas vinculam-se elas, de imediato, sem que possam oferecer qualquer resistência ou abandoná-las por iniciativa própria, tão logo editada a lei complementar estadual que as institui. Tal questão foi, inclusive, examinada pelo Supremo Tribunal Federal nas ADIns no 796/ES, Rel. Min. Néri da Silveira, e no 1.841/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, nas quais se confirmou a natureza compulsória da associação dos Municípios às entidades regionais, desde que regularmente constituídas. O acórdão proferido nessa última ação ostenta a seguinte ementa: CONSTITUCIONAL. REGIÕES METROPOLITANAS, AGLOMERAÇÕES URBANAS, MICRORREGIÃO. CF, art. 25, § 3o. Constituição do Estado do Rio de Janeiro, art. 357, parágrafo único. I. - A instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, depende, apenas, de lei complementar estadual. II. - Inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 357 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. III. - ADIn julgada procedente (grifos meus).

A integração compulsória dos Municípios às entidades regionais, regularmente criadas, não significa, contudo,

que eles renunciem à participação na gestão delas, notadamente no que respeita às funções públicas de interesse comum. Diferentemente do modelo que vigorava antes do advento da Constituição em vigor, ou seja, aquele estabelecido nas Cartas de 1967 e 1969, no qual os Municípios – despidos do caráter de entes federados – eram apenas consultados, de forma não vinculante, sobre a prestação de serviços metropolitanos, no novo desenho institucional, eles têm, na qualidade de titulares originários de uma parcela das funções públicas de interesse comum, o inarredável direito de participar do processo decisório no plano intergovernamental. 9. Gestão compartilhada Tendo em conta tais reflexões, em especial o advento do novo federalismo de cooperação ou, segundo alguns, um mais avançado ainda, qual seja, de integração, não vi como afastar a conclusão segundo a qual a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum – ainda que de modo direto ou delegado – teriam de ser, necessariamente, levados a efeito de forma conjunta pelo Estado e os Municípios que integram determinada entidade regional. Assim, considerei que, embora seja certo que a autonomia assegurada aos Municípios pela Lei Maior não pode ser esvaziada em consequência da instituição, pelo Estado, de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões, tal garantia também não poderia atuar como um bloqueio, por parte das comunas, à concretização de outros valores constitucionais atinentes ao federalismo contemporâneo, hoje cooperativo, em especial à prestação tempestiva e eficaz das funções públicas de interesse comum. Pareceu-me, portanto, que a gestão compartilhada, entre os Municípios e o Estado, das novas entidades previstas no art. 25, § 3o, da Constituição Federal, é a solução que melhor se harmoniza com a preservação da autonomia local e a imprescindível atuação do ente instituidor delas na qualidade de coordenador das ações que envolvam o interesse comum de todos os seus integrantes. Uma visão mais ortodoxa ou formalista da autonomia municipal, matizada por uma ótica predominantemente local, inviabilizaria a administração dessas novas entidades regionais, em prejuízo das populações que nelas vivem, sobretudo porque levaria a uma indesejável fragmentação do processo de tomada de decisões, em detrimento dos interesses comuns. A forma como se organiza a União Europeia corres­ ponde a um interessante exemplo de como a gestão compartilhada tem sido adotada pelos modelos políticoinstitucionais mais avançados. Conforme assentei em obra

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acadêmica sobre o tema (Globalização, Regionalização e Soberania), os Estados independentes que ingressaram na UE não renunciaram à sua soberania nem mesmo a parcelas dela em favor do todo, mas simplesmente passaram a atuar de modo conjunto em determinadas áreas de interesse comum. Entendi, destarte, que a mesma lógica poderia valer para as novas entidades regionais, considerada a autonomia local. Ao afirmar isso, asseverei que era preciso fazer uma distinção clara, porém nem sempre adequadamente evidenciada, entre as expressões partilhar e compartilhar. Do ponto de vista semântico, partilhar encerra a ideia de uma divisão de poderes ou de competências, tal como ocorre nas federações clássicas, ao passo que compartilhar significa exercê-los conjuntamente, conforme ocorre nas confederações, ou no moderno federalismo cooperativo, que alguns preferem chamar, como observado, de federa­ lismo de integração. A partir disso conclui que o legislador constituinte, ao prever essas novas entidades regionais no art. 25, § 3o, da Lei Maior, ou seja, no título que trata da própria organização do Estado brasileiro, alvitrou que o poder decisório relativamente às funções públicas de interesse comum fosse compartilhado entre os diversos entes federativos que as compõem, notadamente quanto à titularidade das funções públicas de interesse comum. 10. Divisão do poder de decisão A gestão regional compartilhada não significa, como observou o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, mencionando os Kreise alemães, que o poder decisório tenha de ser, necessariamente, dividido de forma igualitária entre os Municípios, o Município-pólo e o Estado instituidor, verbis: (...) a participação dos entes nessa decisão colegiada não necessita ser paritária, desde que apta a prevenir a concentração do poder decisório no âmbito de um ente único. A participação de cada município e do Estado deve ser estipulada em cada região metropolitana de acordo com suas particularidades, sem que um ente tenha o predomínio absoluto.

Isso ocorre, verbi gratia, lembrei eu, no Conselho da União Europeia, que constitui a principal instância decisória dessa associação de Estados soberanos, cujos representantes se reúnem regularmente para decidir sobre assuntos de interesse comum. Os diferentes governos são representados no Conselho pelos ministros nacionais relevantes para o assunto em discussão. Na votação, por maioria qualificada, os distintos Estados têm pesos diferentes, calculados com base em sua importância política e expressão demográfica. Um voto da Alemanha ou da França, por exemplo, hoje, tem um peso 18

“O final do século XX e o século XXI certamente entrarão para a História como épocas em que o indivíduo se eclipsa, surgindo em seu lugar as associações, protegidas constitucionalmente, que se multiplicam nas chamadas organizações não governamentais.”

de 29 em um total de 345, ao passo que um voto do Chipre ou da Letónia expressam, cada qual, quatro votos. Voltando ao tema sob exame, para a efetivação dos valores constitucionais em jogo, segundo assentei, basta que nenhum dos integrantes do ente regional seja excluído dos processos decisórios que nele ocorrem, ou possa, sozinho, definir os rumos de sua gestão. Também não me pareceu aceitável, do ponto de vista constitucional, como já anotei acima, que a vontade do conjunto dos Municípios prevalecesse sobre a do Estado instituidor da entidade regional ou vice-versa. Em resumo, entendi, na mesma linha dos votos proferidos pelos Ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes, que a constitucionalidade dos modelos de gestão das entidades regionais, previstas no art. 25, § 3o, da CF, estaria condicionada ao compartilhamento do poder decisório entre o Estado instituidor e os Municípios que as integram, sem que se exija uma participação paritária relativamente a qualquer um deles. 11. O modelo paulista Recordei que o arranjo institucional supra descrito já encontrava expressão no plano normativo, ao menos na Constituição Estado de São Paulo. Com efeito, um dos modelos de gestão regional que se mostrava, a meu sentir, mais compatível com os ditames constitucionais, no tocante ao assunto em foco, era a Carta Política bandeirante, promulgada em 1989. A Carta Magna paulista estabeleceu uma gestão compartilhada entre o Estado e os Municípios, em conselhos dotados de caráter deliberativo, prevendo neles, ainda, a consulta popular, em respeito à nova democracia participativa inaugurada pela Constituição Federal de 1988. O centro nevrálgico do modelo bandeirante de gestão regional é o caráter normativo e deliberativo da atuação do Conselho, relativamente ao qual se previu não apenas a gestão conjunta dos diferentes entes federativos que

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compõem a entidade territorial, como também se garantiu a participação da sociedade civil no processo de tomada de decisões. 12. Participação popular A integração da sociedade civil no planejamento das funções públicas de interesse comum, dentre as quais está um dos objetos da controvérsia, o saneamento básico – que envolve também a corresponsabilidade da União, nos termos do art. 23, IX, da CF –, configura, com efeito, a concretização de alguns dos valores mais caros ao ordenamento constitucional vigente. Com efeito, atualmente, a participação popular não ocorre mais apenas a partir do indivíduo, do cidadão isolado, ente privilegiado e até endeusado pelas instituições político-jurídicas do liberalismo. O final do século XX e o século XXI certamente entrarão para a História como épocas em que o indivíduo se eclipsa, surgindo em seu lugar as associações, protegidas constitucionalmente, que se multiplicam nas chamadas organizações não governamentais. Esse fenômeno, aliado às deficiências da representação política tradicional, deu origem a alguns institutos, que diminuem a distância entre os cidadãos e o poder, com destaque para o plebiscito, o referendo, a iniciativa legislativa, o veto popular e o recall, dos quais os três primeiros foram incorporados à nossa Constituição (art. 14, I, II e III). Aliás, soaria estranho, assinalei eu, que a Constituição houvesse garantido, às associações representativas de munícipes a faculdade de intervir no planejamento local, no art. 29, XII, para retirar-lhes tal direito, caso as comunas vierem a integrar um ente regional, nos termos do art. 25, § 3o, do mesmo Texto Magno. 13. Denominador comum mínimo Entendi importante ressaltar que não se pretendia no julgamento do tema estabelecer um padrão único e homogêneo de gestão das novas entidades regionais, porquanto existiam especificidades regionais que deveriam ser respeitadas na organização, planejamento, regulação, execução e fiscalização das funções públicas de interesse comum que neles se desenvolvem. Não se poderia olvidar, contudo, ponderei na ocasião, que há um mínimo denominador comum, derivado dos princípios e das regras constitucionais que regem a matéria, que condicionaria e legitimaria o relacionamento dos diferentes entes da federação entre si. No caso das entidades regionais, o mínimo denominador comum, para o seu adequado funcionamento, consistiria no compartilhamento das decisões relativas às funções públicas de interesse comum, inclusive quanto ao poder de concessão dos respectivos serviços, de tal modo que não haja concentração dessa competência na esfera de

um único ente, seja ele o Estado instituidor, o Município-polo ou qualquer dos demais Municípios, e desde que não se dê a preponderância da vontade de determinado ente federado sobre os outros no processo decisório. 14. Autarquia territorial, intergovernamental e plurifuncional Nessa linha, pareceu-me razoável, além de revestirse do necessário pragmatismo, a solução alvitrada pelo Ministro Joaquim Barbosa, acima lembrada, segundo a qual “a titularidade do exercício das funções públicas de interesse comum passa para a nova entidade políticoterritorial-administrativa, de caráter intergovernamental”. De fato, entendi não haver nenhum problema em delegar a execução das funções públicas de interesse comum a essa autarquia territorial, intergovernamental e plurifuncional, desde que a lei complementar instituidora da entidade regional lhe confira personalidade jurídica própria, bem como o poder concedente quanto aos serviços de interesse comum, nos termos do art. 25, § 3o, combinado com os arts. 37, XIX, e 175 da Carta Magna. Em resumo, no meu entender, a própria lei complementar que vier a instituir a entidade regional poderia conferir-lhe personalidade jurídica – que teria natureza territorial-autárquica –, transferindo àquela a titularidade dos serviços públicos reputados de interesse comum, exercendo-a por delegação dos entes federados que detêm a titularidade originária. 15. Conclusões Tomados os votos, o STF, por maioria, decidiu julgar prejudicada a Ação Direta de Inconstitucionalidade quanto ao Decreto no 24.631/1998 do Estado do Rio de Janeiro e aos artigos 1o, caput e § 1o, 2o, caput , 4o, caput e incisos I a VII, 11, caput , e incisos I a VI, da Lei Complementar fluminense no 87/1997. No mérito, julgou parcialmente procedente a ação, para declarar a inconstitucionalidade da expressão “a ser submetido à Assembleia Legislativa” do inciso I do art. 5o, além do parágrafo 2o do art. 4o, do parágrafo único do art. 5o, dos incisos I, II, IV e V do art. 6o, do art. 7o, do art. 10, e do parágrafo 2o do art. 11, da Lei Complementar no 87/1997 do Estado do Rio de Janeiro, bem como dos arts. 11 a 21 da Lei fluminense no 2.869/1997, modulando os efeitos da decisão para que só tivesse eficácia a partir de vinte e quatro meses após a conclusão do julgamento. Tal significa que os argumentos do Ministro Gilmar Mendes e aqueles explicitados em meu voto-vista, acompanhados e implementados pela maioria dos integrantes da Suprema Corte, foram os que afinal prevaleceram, tendo sido o primeiro designado para redigir o acórdão resultante das instigantes discussões travadas em Plenário.

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Anistia, paz social

Marco Aurélio Mello

Ministro do Supremo Tribunal Federal Membro do Conselho Editorial

“Tantas decepções não podem minar o otimismo. Reafirmemos a profissão de fé nas virtudes dos brasileiros, no brio de homens e mulheres que ousarão levantarse contra o torpor em que está mergulhado o país, arregaçando as mangas e cobrando as transformações necessárias.”

A

história, com os acontecimentos e circunstâncias vivenciados, conduz à reflexão, à formação de ideias, à prática de atos na vida em sociedade. É comum dizer que o passado serve de alerta, de luz, visando à correção de rumos, ao fortalecimento da unidade nacional. 20

Conhecer os erros, os equívocos, os procedimentos conflitantes com a postura que se aguarda do homem médio com a ordem jurídica, com o direito posto, é da maior valia para que não se repitam, norteando a arte de atuar das gerações. Em 1979, os olhos da nação direcionaram-se ao restabelecimento da paz social. O momento era de abandono de toda sorte de paixão extremada, de busca da abertura sociopolítica, do entendimento, consideradas as diversas correntes ideológicas. A mudança de contexto, pouco importando o enquadramento que se dê hoje, veio a ser viabilizada, surgindo uma lei aprovada pelos representantes do povo. Acionou-se o que se pode denominar como justiça de transição. A anistia retratou, de forma linear, bilateral, os sentimentos reinantes. Bendita Lei da Anistia, cuja eficácia constitucional foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal. Alterar esse quadro por meio de revisão judicial, revisitando-se o conteúdo, a extensão da anistia, implica desprezo à escolha legislativa, à segurança jurídica, renegando-se o avanço cultural alcançado. O Brasil pode e deve aprender com o passado, mas há de ter os olhos no presente, planejando o futuro. Entre punições de toda ordem e reconciliação, a opção recaiu sobre a segunda, que se revelou certa e eficiente à pacificação. Perdão em sentido maior, reconstrução da democracia e afirmação do Estado de Direito foram escolhas associadas à época. O abandono desse enfoque gera preocupação.

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Foto: Nelson Jr./SCO/STF

O pronunciamento do Supremo, em 2010, a partir do voto sábio do ministro Eros Grau, calcado em insuplantável equidistância, homenageou o que decidido em termos de normatividade, afastando de vez surpresas, sobressaltos, de consequências imprevisíveis e indesejáveis. Incluamo-nos, sim, entre os que se embalam pelo idealismo e dele retiram a força para construir uma realidade transformadora. Mais e mais indignados com os acontecimentos que assolam a nação, devemos manter o desejo de testemunhar o dia em que se terão abolido obtusas mentalidades e viciadas práticas, que deságuam na perniciosa junção do privado e do público, usando-se o segundo como meio de fazer crescer o primeiro, quando deveria ocorrer justamente o contrário: cada um dar o melhor de si em proveito da sociedade, jamais pretendendo beneficiar-se, privativa e ilicitamente, da coisa pública, dos bens que a todos pertencem. Continuemos a almejar um Brasil livre da corrupção, dos desmandos, do uso desregrado da máquina administrativa. Essa visão não é utópica. É possível e viável. Para tanto, mostra-se suficiente que ao menos a maioria esteja decidida a seguir o caminho por vezes mais difícil e tortuoso, evitando os atalhos falaciosos que conduzem ao

abismo da imoralidade, ilegalidade e abuso de poder. Já passou, e muito, da hora de dar um basta aos escândalos, aos roubos, aos desvios de dinheiro, ao aparelhamento do Estado, ao desgoverno. Nossa tão rica nação é hoje mal vista no exterior, sendo objeto de investigação por entidades internacionais, desmoralizada naquilo que deveria ser nosso orgulho e pelo qual se deveria zelar: a ética, sinônimo da arte de bem proceder na vida social. Cabe o grito de protesto pela desfaçatez com que se rouba às instituições nacionais, o inconformismo com a apatia demonstrada por quem tem a obrigação de coibir procedimentos infames e, às vezes, acaba seduzido pela vantagem política, pelo lucro fácil advindo de dinheiro sujo. Clamemos por mudanças profundas na mentalidade dos detentores do poder. Tantas decepções não podem minar o otimismo. Reafirmemos a profissão de fé nas virtudes dos brasileiros, no brio de homens e mulheres que ousarão levantar-se contra o torpor em que está mergulhado o país, arregaçando as mangas e cobrando as transformações necessárias. Entre passado, presente e futuro, a escolha é única, visando dias melhores nesta sofrida República.

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Em nome de Deus José Geraldo da Fonseca

Desembargador do TRT 1ª Região Membro do Conselho Editorial

O

mundo ocidental assiste, atônito, à crescente onda de fanatismo religioso cujo estopim, ou pretexto, é a publicação de caricaturas de gosto duvidoso sobre o profeta Maomé. Enquanto as sociedades civis envolvidas se aniquilam nas ruas, nas casas e nas mesquitas, os doutores dividem-se entre duas questões bizantinas e tão inoportunas quanto estéreis: saber se satirizar um ícone de uma religião qualquer é um direito dos povos cultos em uma sociedade moderna, onde se cultua a “liberdade de expressão”, e se a ofensa a esse dogma dá ao ofendido o direito de explodir pessoas indefesas nas escolas, no transporte público e nos mercados municipais. Não vim discutir essas questões nem tomar partido. Vim alertar para a evidência de que a religião é uma parcela do patrimônio imaterial do homem, e, como tal, deve merecer a preocupação e a proteção do direito. São constantes nos tribunais do País ações relacionadas a proibições religiosas de transfusão de sangue; de trabalho às sextas-feiras; de aborto de fetos anencefálicos; de fecundação in vitro; de eutanásia; de clonagem e utilização de embriões descartáveis; de eugenia positiva; de propriedade de sêmen armazenado em bancos especializados; de casamento ou adoção homossexuais; de pluriamorismo; de barriga de aluguel; de transplantes de células-tronco e fecundação pós-morte, entre outros. Todas essas questões, antes restritas aos compêndios da ciência médica ou ao universo doméstico das pessoas envolvidas, estão sendo, de pouco em pouco, judicializadas, e é urgente pensar as suas consequências. Não vai por muito, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) teve de enfrentar uma dessas questões em que a 22

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crença religiosa se confundiu com as regras laicas de uma simples relação de trabalho. O Ministério Público do Trabalho do Paraná questionou, por meio de uma ação civil pública, a legalidade da terceirização do serviço de abate de frangos pelo método islâmico halal. No direito do trabalho brasileiro, de modo geral, uma sociedade empresária somente pode terceirizar sua produção se a tarefa entregue ao terceiro (daí, terceirizar) estiver ligada à sua atividade-meio. Atividades-meio são todas aquelas que, embora inseridas na cadeia produtiva do negócio, não são essenciais ao produto final. Da matéria-prima ao produto acabado há um sem número de pequenas tarefas que, embora úteis ou necessárias, podem ser suprimidas sem que o produto final seja eficazmente comprometido. Se a tarefa ou a etapa da produção está ligada à sua atividade-fim, o empresário deve realizá-las por meio de empregados próprios, contratados diretamente. Se houver fraude nesse tipo de terceirização, os tribunais trabalhistas costumam declarar vínculo de emprego diretamente com o tomador do serviço, ou cliente; se não for caso de terceirização irregular, mas de simples inadimplemento de pagamento, declaram a responsabilidade direta da empresa prestadora dos serviços, mas indireta, ou subsidiária, do tomador, ou cliente. No caso a que me refiro, o parquet entendia que a Sadia S/A não poderia terceirizar o abate de frangos para exportação ao mercado islâmico porque abate de frangos é sua atividade-fim. Para o Ministério Público, independentemente do conteúdo simbólico e religioso do abate, o processo deveria ser feito por meio de trabalhadores contratados diretamente pela Sadia, e não por terceirizados. A Sadia, por seu turno, sustentou a legalidade do abate por meio de terceirização de mão de obra alegando que o método halal é especializado, exige todo um comprometimento ético e religioso que o trabalhador comum ou laico não tem obrigação de saber ou observar. Disse, ainda, que a proibição de que a atividade industrial continuasse sendo feita pela terceirização poderia implicar suspensão de contratos de exportação para o mercado árabe, com sérios prejuízos econômicos e sociais. Segundo especialistas, o segmento de alimentos halal cresce a uma taxa média de 10% ao ano. Dos 12 milhões de aves abatidas no País, cerca de 4 milhões destinam-se aos mercados muçulmanos. O Brasil é um dos maiores exportadores de carne bovina e de frango para os países árabes, mas os que professam a fé islâmica somente consomem essas carnes se estiverem seguros de que os animais foram abatidos pelo método halal. O método muçulmano halal prega a ideia de que o animal sofre menos ao morrer, e, por isso, a sua carne pode ser consumida porque está livre da dor e do suplício. No versículo 3o da 5a surata do Alcorão está escrito: Estão-vos vedados: a carniça, o sangue, a carne de suíno e

tudo o que tenha sido sacrificado com a invocação de outro nome que não seja o de Alá.

“Halal” significa, em árabe, “permitido”, “autorizado”, “lícito”. No Islão (ou Islam), a expressão “halal” refere-se ao comportamento dos muçulmanos, às formas de vestir e falar e aos alimentos que se pode consumir. Nos países ocidentais, halal identifica os alimentos produzidos de acordo com a xariá, ou lei islâmica. Os alimentos autorizados estão descritos no Alcorão, nas tradições do profeta (hadith) e nas prescrições dos juristas. Proíbe-se a ingestão de qualquer bebida alcoólica como a cerveja e o vinho porque alteram o estado de consciência do homem. O islão proíbe o consumo de carne de porco, de javali, de lobo, do abutre e das aves de rapina, do cão, da serpente e do macaco, assim como animais com garras como leões e ursos, e repulsivos, como baratas, moscas etc. Todo tipo de peixe é permitido. O método halal de abate é quase um ritual islâmico. O sangrador deve ser muçulmano praticante, mentalmente sadio e ter atingido a puberdade. Deve ter absoluto domínio da técnica de abate. O animal a ser sacrificado deve ser sadio, estar sem sede, 100% consciente e apartado dos demais. No momento do abate, deve estar com a cabeça voltada para Meca, cidade onde nasceu o profeta Maomé. Meca fica na direção da nascente do Sol. A degola deve ser feita de modo rápido e com facas especiais, extremamente afiadas e higienizadas. Com um talho rápido e profundo, em forma de meia-lua, o degolador deve cortar a traqueia, o esôfago e as jugulares do animal, logo abaixo do pomo-de-adão, sem lhe seccionar a cabeça. O golpe mata o animal rapidamente e, segundo o conceito do halal, sem sofrimento. No caso dos bovinos, depois de degolado o animal é dependurado por uma das patas traseiras até que todo ou quase todo o sangue escoe das veias. De nenhum modo o sangue deve ser consumido. Só depois disso pode ser esquartejado e acondicionado em frigoríficos próprios. Todo o processo – do abate à remessa da carne ao frigorífico – deve ser acompanhado por um muçulmano praticante. No momento do abate, o degolador deve pronunciar as palavras “Bismiallah Allah Akbar”, ou seja, “Em nome de Deus, por determinação de Deus”. O TST entendeu que a terceirização dessa atividadefim da sociedade empresária era possível porque, segundo a técnica de ponderação de princípios, assegurar a continuidade da produção por meio dessa terceirização atendia aos interesses sociais dos trabalhadores e da sociedade empresária, além de representar uma forma de assegurar a boa-fé dos contratos comerciais. Mas a questão, aqui como no mundo, está longe do consenso.

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“A importância da ‘carreira’ na magistratura” Marcus Faver

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Desembargador aposentado Membro do Conselho Editorial

arece fora de dúvida de que um dos maiores, senão o maior, dos problemas do Judiciário é a escolha dos magistrados. A investidura e sua formação gradativa e permanente são fundamentais, pois serão eles os Juízes, na verdade, os responsáveis pelo cumprimento da prestação jurisdicional que se quer técnica, rápida, eficaz, transparente, ética, justa. É importante que um país tenha, na sua estrutura políticajurídica, boas leis, mas é imprescindível que tenha bons juízes, na composição de seu Judiciário. Já se disse, com inteira propriedade, que “O direito valerá em um país e num determinado momento histórico, o que valham os Juízes como homens” “As sentenças valerão o que valham os homens que as profiram “(Eduardo J. Conture). Disse Bergeret :“ Não temo as leis más, se aplicadas por bons juízes”. A investidura. Um dos maiores problemas, em todo o mundo contemporâne o, é descobrir a forma adequada e correta para a investidura de um juiz. Como afirmou o Min. Luiz Felipe Salomão “diversos países debatem sobre a maneira de melhor recrutar o corpo de magistrados encarregados da prestação estatal da jurisdição, de maneira a atender às exigências da sociedade moderna” (Estudos de Direito Constitucional – A Constituição Federal e a prestação / formação do juiz brasileiro – Ed. JC – 2014). Descobrir a forma correta e adequada não é tarefa fácil. Uns adotam a forma eletiva, entre pessoas selecionadas; outros, concursos para ingressarem em escolas especializadas; ainda aqueloutros, por ingresso em escolas de magistratura para posterior realização do concurso etc. O 24

Brasil, como a maioria dos países, adotou o ingresso na magistratura de carreira, por concurso público de provas e títulos, exigindo-se do candidato um mínimo de três anos de prévia atividade jurídica. Há, todavia, em todas essas formas de escolha alguns pontos consensuais: 1) não basta, por exemplo, que o candidato domine pura e simplesmente a ciência jurídica, ou diversos ramos da ciência jurídica, exige-se hoje do candidato uma multidisciplinaridade; 2) a necessidade de que haja na carreira uma avaliação permanente e contínua do magistrado, a estimular a percepção e a sua evolução sobre os problemas jurídicos, sociais, familiares, econômicos, etc, aprofundando e complementando o seu conhecimento acerca da realidade social e elevando a sua estatura ética. O Brasil, reconhecendo a importância e a relevância dessa questão, elevou a investidura e a formação do magistrado a nível constitucional, estabelecendo não só requisitos mínimos para o ingresso na magistratura como critérios e exigências permanentes no desenvolvimento da “carreira”. Observe-se que a atual Constituição da República Federativa do Brasil, seguindo regras semelhantes das anteriores, e da Lei Orgânica da Magistratura, ainda vigente, estabeleceu que a magistratura brasileira seria organizada em carreira, obedecendo-se na sua composição os seguintes princípios básicos: a) ingresso, por concurso público de provas e títulos, no cargo inicial de juiz substituto (art. 93, I); b) promoção de entrância para entrância, alternadamente, por antiguidade e merecimento (art.93, II); c) exigência de que a promoção por merecimento só

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Foto: Arquivo Pessoal

possa ser feita após dois anos de exercício na respectiva entrância e integre o juiz a primeira quinta parte da lista de antiguidade (art. 93, II, letra B); d) aferição do merecimento conforme o desempenho e por critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição, e ainda pela frequência e aproveitamento em cursos oficiais (art. 93, II, letra C); e) a proibição de ser promovido o juiz que, injustificadamente, retenha autos em seu poder além do prazo legal (art. 93, II, letra E); f) o estabelecimento de cursos oficiais de preparação aperfeicionamento e promoção de magistrados sendo etapa obrigatória no processo de vitaliciamento (art. 93, IV) A formação. A carreira. Além das exigências e permanentes avaliações durante o importantíssimo processo de vitaliciamento, só alcançado após 2 anos (art. 95, I) verifica-se, sem qualquer esforço, que a Constituição de 1988 em seu texto original e, especificamente, através da Emenda Constitucional no 45, de 8 de dezembro de 2004, na chamada “reforma do judiciário”, além de dispor sobre a “ carreira da magistratura” estabeleceu que a ascensão funcional devia sempre se subordinar a critérios de antiguidade e merecimento, para conciliar experiência profissional com e devoção, dedicação, empenho vocação e espírito público essenciais à causa da Justiça. Fez inserir na estrutura da carreira a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (art. 105, parágrafo único, I) obrigando a realização de cursos oficiais para o ingresso e para a promoção na carreira .

Exigiu também que, na aferição do merecimento, fosse analisada, especificamente, a “presteza no exercício da jurisdição” (art. 93, II, letra C), pois a morosidade na prestação jurisdicional é um outro enorme problema do Judiciário. Por seu turno, o Conselho Nacional de Justiça, procurando aprimorar a avaliação e a aferição do merecimento para efeito de promoção do magistrado, editou diversas Resoluções (Resolução no 6/205; Resolução no 75/2009; Resolução no 159/2012). É essa a estrutura constitucional da magistratura, brasileira. Com o devido respeito, a ideia da extinção das entrâncias, suprimindo os degraus e as avaliações ínsitas nas promoções, para igualar, funcionalmente, todos os magistrados, simplesmente afrontaria todas as regras e princípios constitucionais acima expostos, sendo, portanto, insustentável. Seria verdadeira teratologia jurídica. Seria uma espécie de fraude ou “rasteira” constitucional, a impedir que toda a concepção elaborada ao longo dos anos para a “carreira”, com seus sucessivos degraus promocionais fossem desprezados. Os magistrados não seriam mais avaliados em sua vida funcional. Não existiria mais “carreira”. A promoção seria automática. Ainda que se pudesse afastar o evidente vício de inconstitucionalidade, apenas por amor ao debate, verificaríamos que, a uma, iríamos cair no mesmo e lamentável equívoco da Emenda Constitucional no 19/98, que estabeleceu os vencimentos da magistratura em forma de subsídios. “Esqueceu-se” o legislador da existência constitucional de uma “carreira”, e que, tal forma de remuneração só seria cabível para cargo isolado e não para cargos organizados em carrei-

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ra, pois, na prática, iguala um juiz iniciante a um outro magistrado que conte com três, cinco ou dez anos de exercício na carreira. A ideia de extinção das entrâncias, na verdade, equipara-se à Emenda no 19/98, pois acaba com a carreira. Seria, tal qual a Emenda 19/98, um enorme despropósito, a gerar insatisfações e permanentes reclamos funcionais em razão do grave erro praticado. A duas, a extinção da “carreira” e, consequentemente, a extinção das promoções, acarretaria um dos maiores males para uma administração que se quer eficiente, séria, moderna, seja pública ou privada, qual seja, o desestímulo funcional. O magistrado não teria mais qualquer motiva­ ção ou ambição legítima, na ascensão ou promoção em sua carreira. Igualaria todos, bons e maus, eficientes ou ineficientes, dedicados ou acomodados, o presto e o lerdo, o operoso e o irresponsável numa única entrância sem qualquer análise de merecimento. A meritocracia e o princípio da eficiência, previstos constitucionalmente, estariam extintos. Em termos de filosofia administrativa seria uma tragédia. Por seu turno, em termos éticos, a proposta é uma lástima, pois coloca interesses corporativos acima dos interesses sociais. A tal respeito, anote-se que, a rigor, toda e qualquer modificação nas estruturas administrativas do Judiciário deve levar em consideração, em caráter prioritário, os interesses da prestação jurisdicional. Isso todavia, a nosso ver, não ocorre na sugestão. Não se vislumbra qualquer benefício social com a eventual proposta. Por outro lado, não é de ser desprezada a longa e frutífera experiência ocorrente em, praticamente, todos os Estados da federação, no sentido de que o exercício da magistratura de carreira se inicie numa comarca pequena, passe para a média e depois para a maior até chegar à especial, em geral, a capital do estado. Essa evolução natural, correspondente a diversas entrâncias na carreira, propicia um acúmulo de expe­ riências e vivências profissionais administrativas, sociais, culturais, econômicas, comportamentais, etc. importantíssimas na formação do magistrado. A sedimentação profissional demanda tempo de experiências e maturação (por certo também alguns cabelos brancos) e a simples extinção dos degraus da carreira evidencia, com todas as vênias, assodadas ambições pessoais, de caráter nitidamente corporativista, sem qualquer reflexo na melhoria da prestação jurisdicional. Com todo respeito, a eventual proposta parece-nos totalmente desaconselhável. Por relevante à questão, observe-se que o Código de Ética da Magistratura, implantado pela Resolução no 60/2008 do CNJ em seu segundo considerando, traduz o compromisso institucional com a excelência na prestação do serviço público de distribuir Justiça e, assim, instituir 26

mecanismos para fortalecer a legitimidade do Poder Judiciário. Na verdade, “não existe poder que aja mais direta e habitualmente sobre os cidadãos do que o Poder Judiciário. Seus depositários devem ser pois, aqueles sobre cuja escolha a nação tem o interesse em velar”. (Ihouret ) Daí a pertinente observação do Des. José Renato Nalini, Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, sobre o referido considerando. Extrai-se de tal enfoque um avanço na concepção de Poder Judiciário, a partir do quadro humano que o integra. Uma visão arcaica prevaleceu durante muito tempo a considerar essa função estatal como nicho reservado às primícias da erudição pátria e contribuiu para preservar conotação eminentemente personalista do poder. Todas as atenções do sistema interno eram voltadas à satisfação das aspirações do juiz, única pessoa considerada essencial à missão de concretizar o justo. Essa vertente relegava os demais atores – funcionalismo, principalmente – a uma posição ancilar. O único fautor da justiça era o juiz. Este não era cobrado a prestar contas, nem de se justificar perante a sociedade. Era suficiente a aprovação em concurso público e a fundamentação técnica de suas decisões. Fruto da anacrônica formação jurídica, treinado a ser um perito na subsunção e habilitado a implementar a estratégia do silogismo, o juiz menos sensível tendia a se distanciar de sua responsabilidade social. Não raro atingiuse o paroxismo de se considerar o Judiciário uma porção restrita de um habitat destinado a satisfazer os juízes. Sensação que poderia acometer alguns jurisdicionados, diante do hermetismo e da insensibilidade de alguns julgadores. Avançou-se, portanto, na consideração de que a Justiça é um serviço público e o juiz é servidor. Verdade que um servidor qualificado, diferenciado, recrutado mediante um esquema rígido de seleção dos mais capazes. Mas subordinado a prestar um serviço estatal efetivo, oportuno e caracterizado pela excelência. Ou seja: oferecido no mais elevado grau de qualidade. O resultado da prestação jurisdicional deve ser o fruto de um compromisso institucional e provindo de apurado preparo intensificado por aprimoramento constante. Principalmente, o trabalho final do juiz deve ser subtraído a qualquer propensão de preponderância de um voluntarismo desvinculado de uma verdadeira vocação judicial. Para finalizar, a construção de um Brasil demo­crático, como disse Nalini: “está condicionada à arquitetura de instituições autenticamente republicanas. Libertas do patrimonialismo rançoso que confunde o interesse público e o privado e, qual verdadeiro tumor, corrompe as entranhas da nacionalidade com a corrupção, o favoritismo, o nepotismo e outras máculas morais”.

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O Conselho de Justiça competente para o processo e o julgamento de oficial da reserva não remunerada Fernando Sérgio Galvão

A

Ministro do STM

1. Considerações iniciais Justiça Militar da União (JMU) integra o Poder Judiciário desde a Constituição Federal de 1934, sendo composta pelo Superior Tribunal Militar (STM) (receptor dos recursos de apelação) e, na primeira instância, pela Auditoria de Correição, pelos Conselhos de Justiça (sob a forma de escabinato), pelos Juízes Auditores e pelos Juízes Auditores Substitutos. O Conselho Especial de Justiça (CEJ) é constituído pelo Juiz-Auditor e por quatro Juízes militares, sob a presidência, entre estes, de um oficial-general ou oficial superior, de posto mais elevado que o dos demais juízes, ou de maior antiguidade, no caso de igualdade. O Conselho Permanente de Justiça (CPJ) é constituído pelo Juiz-Auditor, por um oficial superior, que será o presidente, e três oficiais de posto até capitão-tenente ou capitão, portanto tenentes estão incluídos na sua composição. Respeitáveis operadores do direito consideraram que, para definir se o acusado – Oficial da Reserva não Remunerada – deveria ser processado e julgado pelo CPJ ou CEJ, primeiro, como questão de ordem, necessitaria ser esclarecida a sua condição – militar ou civil. Nesse intuito, faz-se, geralmente, remissão a diversos diplomas legais. Como a maioria dos juristas considera relevante, e seguindo essa lógica prevalente, vou inicialmente concluir sobre a situação do agente Oficial da Reserva não Remunerada (militar ou civil), mas sabendo que em nada interfere na referida competência.

É de suma importância definir com exatidão qual o Conselho competente para o processo e o julgamento do Oficial da Reserva não Remunerada, tendo em vista que há consequência direta à hierarquia e à disciplina nos quartéis. Nesse ângulo, destaco que o presente assunto trata da questão do juiz natural, podendo conduzir a sérias nulidades, pois é princípio básico constitucional. Abordarei o tema, também, sob dois vetores: o legal e o moral, este, a meu ver, de extrema importância à coesão das Forças Armadas. 2. Aspectos do campo legal Vejamos o campo legal, a demonstrar que o Oficial da Reserva não Remunerada, embora seja civil, é simultaneamente Oficial. Nesse passo, o importante será detectar que tal condição (civil) não afasta, por qualquer ângulo que se observe, o CEJ como seu juiz natural, quando for processado e julgado por crimes militares. Passa-se a examinar alguns dispositivos que confirmam a condição de civil do Oficial da Reserva não Remunerada, mas se detectará a inexistência de qualquer reflexo disso no tocante ao Conselho competente. Os arts. 3o, 4o e 14, todos do Estatuto dos Militares (Lei o n 6.880/1980), deixam claro que o Oficial da Reserva não Remunerada é civil. Conforme as normas castrenses, há os Oficiais de carreira, os temporários na ativa e os da Reserva Remunerada (R-1), todos militares.

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OK

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enquanto esteve na ativa de sua Força Armada, mantidas até eventual declaração em contrário, pela via judicial. Há importante questão atinente à proporcionalidade. Se a Constituição Federal confiou ao STM o julgamento da indignidade e da incompatibilidade do Oficial, seja este militar ou civil, na primeira instância seria competente o CPJ para submetê-lo a judice? A resposta é negativa, pois, considerando-se o investimento realizado no Oficial e a sua importância em eventual mobilização ou convocação, o seu juiz natural é o CEJ. Seria flagrantemente desproporcional admitir que o STM, última instância da JMU, seja competente para declarar a indignidade/incompatibilidade de Oficial da Reserva Remunerada (militar) e da não Remunerada (civil), enquanto, na primeira instância, esse mister estaria constitucionalmente destinado ao CPJ, composto por juízes militares menos experientes e de postos hierarquicamente muitas vezes mais baixos (tenentes) que o do acusado. Não é demais lembrar que a CF/1988 e a Carta Patente do acusado lhe garantem o gozo das vantagens, das prerrogativas e dos deveres inerentes ao posto, nos termos da lei, nisso incluído o mais básico e elementar, ou seja, o respeito ao seu juiz natural. Alinho-me à mesma conclusão e mediante idênticos dispositivos legais, ou seja, sem a menor dúvida o Oficial da Reserva não Remunerada é civil (não é militar). Embora o Oficial R-2 seja civil, porquanto não está no serviço ativo de sua Força Armada, ainda lhe é assegurado o posto constante de sua Carta Patente.

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Também há os Oficiais de carreira demitidos (a pedido ou ex-officio), os Oficiais excluídos e os Oficiais temporários licenciados (R-2 ou RM3 – Reserva não Remunerada), sendo todos, por não estarem na ativa, civis. Os Decretos no 4.780, de 15/7/2003 (Aprova o Regu­ lamento da Reserva da Marinha); no 4.502, de 9/12/2002 (Exército); e no 6.854, de 25/5/2009 (Aeronáutica), lite­ ral­ mente estabelecem que o Oficial da Reserva não Remunerada é civil e também, simultaneamente, Oficial. Ou seja, para ser Oficial da Reserva não Remunerada a pessoa necessariamente foi e poderá ser novamente militar (convocação, mobilização, reintegração judicial ou administrativa etc.), mas, enquanto nessa condição, indubitavelmente é Oficial e é civil. Para afastar qualquer dúvida, a redação das cartas patentes (Decreto no 2.144, de 7/2/1997) ordena que o seu portador, além de ser civil, simultaneamente “é Oficial da 2a Classe da Reserva” ou “da Reserva de 2a Classe”, entenda-se da Reserva não Remunerada, confirmando o gozo das vantagens, prerrogativas e deveres inerentes ao posto, nos termos da lei. Há casamento perfeito entre a Carta Patente e o art. 142, inciso I, da Constituição Federal (CF)/1988, não se podendo instaurar a desvalia desse imperial comando, estritamente ligado à perpetuidade das Forças Armadas. Destaco que a Carta Patente atesta que o cidadão “é Oficial”, não estando nela escrito “foi Oficial” acerca daqueles que ingressaram na Reserva não Remunerada. Portanto, não é cassada ou perdida a sua validade quando o Oficial da Reserva não Remunerada deixa o serviço ativo. Isso só ocorre com o devido processo legal de Representação para Declaração de Indignidade ou de Incompatibilidade para com o Oficialato perante o Pleno do STM. Coerentemente às cartas patentes emanadas segundo a Constituição Federal, o STM tem declarado a indignidade para o oficialato de civis que as detêm. Deveras, de fato, o Oficial da Reserva não Remunerada, embora civil, tem a sua condição de Oficial submetida ao julgamento do Pleno do STM. Nesses termos, o art. 142, inciso I, da CF/1988, pautou pelo gênero (Oficial da Reserva) sem especificar se da Remunerada ou não. Há precedentes de processos de indignidade para o Oficialato, nos quais os Oficiais representados, na situação de licenciado, excluído e demitido, eram da Reserva não Remunerada, ou seja, civis. Nesses julgamentos, os representados foram considerados indignos para o Oficialato por unanimidade de votos (Declarações de Indignidade no 20-2/DF, no 33-4/DF e no 12-46.2008.7.00.0000 - 2008.01.000060-1/DF). Logo, no Pleno do STM inexiste dúvida de que o Oficial da Reserva não Remunerada (R-2) é civil, sendo-lhe asseguradas as prerrogativas do respectivo posto conquistado

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3. Aspectos do campo moral Alguns operadores do direito entendem como indissociáveis a condição de Oficial e a de militar, mas, como se viu e continuaremos a dissecar, esse raciocínio é inválido e conduz a erros que acometem o sistema castrense. Repise-se, vários pensamentos sobre o tema, pouco aprofundados, primeiro concluem que o Oficial da Reserva não Remunerada é civil para, considerando essa condição/situação como essencial, e apenas por esse motivo, submetê-lo ao CPJ. Contudo, não tenho a menor dúvida de que seja civil, tampouco de o CEJ ser o juiz natural para o caso de crime de natureza militar. A competência do CPJ não é para processar e julgar “praças e civis”, mas sim, na verdade, “não oficiais”. Isso define e amplia o alcance da referida competência, se comparada à forma equivocada daqueles pensamentos superficiais. A Lei de Organização Judiciária Militar (LOJM no 8.457, de 4/9/1992), além de ser posterior ao Estatuto dos Militares, em nada o contraria, pelo contrário, solidifica a missão de respeitar os postos, as graduações, a hierarquia e a disciplina. A LOJM reflete com exatidão os comandos imperiais emanados no art. 142, incisos VII e VIII, da CF/1988. Além disso, a LOJM é norma especial, ou seja, deve ser estritamente observada no que se refere ao CPJ e ao CEJ. Portanto, a LOJM, no tocante à competência do CEJ e do CPJ – juiz natural – impõe: Art. 27. Compete aos conselhos: I – Especial de Justiça, processar e julgar oficiais, exceto oficiais-generais, nos delitos previstos na legislação penal militar, II – Permanente de Justiça, processar e julgar acusados que não sejam oficiais, nos delitos de que trata o inciso anterior, excetuado o disposto no art. 6o, inciso I, alínea b, desta lei. (grifei)

Repare-se que o legislador não estabeleceu a competência do CEJ para processar e julgar oficiais de carreira ou temporários, tampouco estritamente os da ativa, mas apenas “oficiais”, ou seja, pautou, sob a total razão dos princípios relativos à caserna, pelo gênero – idêntica forma e ordem do art. 142, inciso I, da CF/1988. Da mesma forma, no CPJ, não determinou o processo e o julgamento de praças e de civis, mas sim de “não oficiais”, também no gênero, lacrando de lógica a referida norma. Fosse o contrário, então o CEJ seria competente para processar e julgar os “oficiais da ativa, reformados ou da Reserva Remunerada”, isso para excluir os oficiais da Reserva não Remunerada. E o CPJ seria competente para processar e julgar “praças e civis”. Se fosse assim, e somente nesse caso, poderia se dizer que os Oficiais da Reserva não Remunerada estariam abarcados pelo CPJ, pois eles são civis. Mas não é isso que o art. 27 da LOJM determina.

No tocante ao art. 27 da LOJM, nenhuma das hipóteses, acima conjecturadas, foi elencada. E por qual motivo o legislador fez isso? Porque, além da literalidade da norma, há um “Niágara” de valores a ser pressentido pelo leitor, principalmente quando integrante das Forças Armadas. Esse aspecto, por mim intitulado de “moral”, tomado no sentido técnico naturalmente, será, mediante exemplos, adiante aprofundado. O legislador que editou a redação do art. 27 da LOJM demonstrou grande zelo no sentido de lacrar, proteger ao máximo as relações entre superiores e subordinados. Buscou, assim, evitar conflitos mal solucionados, com o potencial de afetar a coesão das Forças Armadas. Para tal, as normas são redigidas de forma sistêmica, evitando-se que a fragilização de uma, como no nosso caso a aplicação de um Conselho de forma inadequada, não atinja sem perceber outra, em efeito cascata. Atritos entre os militares ocorrem, podendo redundar em crimes, mas o Estado jamais poderá agir como fomentador desses eventos maléficos à perenidade da ultima ratio da sociedade. 4. Estudo de casos Verificam-se, em estudos sobre o assunto, basicamente duas vertentes. A tese que denominarei de “1”, a qual sustento, no sentido de que o Oficial da Reserva não Remunerada deve ser processado e julgado pelo CEJ, e a “2”, na qual outros operadores do direito sustentam a submissão da causa ao CPJ. O caso requer alguns exemplos, a demonstrar que efeitos indesejados podem ocorrer se admitida a tese 2. O STM, para firmar a sua existência e respeitabilidade, deve ser o primeiro a detectar os reflexos deletérios na seara castrense de suas decisões. CASO 1 Por exemplo, um excelente Coronel de Intendência da Aeronáutica, que tomou posse em cargo público após o devido concurso, será R-2, ou seja, da Reserva não Remunerada. Suponha-se que se envolva, acidentalmente, em um caso de crime militar e esteja, durante o processo, já na nova condição de civil – Oficial R-2. Aceita a tese 2, esse Coronel R-2, embora possuidor desse posto e de Carta Patente, com texto fiel ao Decreto no 2.144, de 7/2/1997, seria processado e julgado pelo CPJ. Assim, tenentes na sua composição poderiam processá-lo, absolvê-lo (por maioria ou não) e até mesmo condená-lo. No entanto, comprovada a sua inocência e absolvido, mais tarde ou logo após, se esse excelente Coronel fosse mobilizado como intendente, ele poderia ser designado para fornecer peças para a aeronave do tenente aviador que o julgou ou mesmo o condenou (decisão absolutória por maioria). Eis o fomento de conflitos que o Estado, se aceitasse a tese 2, jamais poderia alimentar.

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CASO 2 Embora possível, mas pouco provável, até mesmo um General-de-Brigada da Reserva Remunerada (R-1) e Advogado poderia tomar posse, mediante a indicação da OAB, como Desembargador de um Tribunal de Justiça ou mesmo em qualquer outro cargo público por concurso, vindo a ser um Oficial R-2. Naturalmente que, a depender do cargo ocupado, dever-se-ia observar os foros por prerrogativa de função que estão previstos na CF/1988. Envolvido em crime militar, admitiríamos que o CPJ o processasse e o julgasse, tendo tenentes na sua composição? Para os defensores da tese 2, sendo o referido General R-2 civil, não mais militar, o CPJ seria o competente. Sustento que, se um eventual General R-2 praticasse ou apenas estivesse envolvido em crime militar, não havendo foro por prerrogativa de função previsto na CF/1988, competente seria o STM para processá-lo e julgá-lo, embora civil e não mais militar. Como dito, o art. 27 da LOJM generalizou, atribuindo o processo e o julgamento de “Oficiais” ao CEJ e os “não Oficiais” ao CPJ. Logo, os Oficiais-Generais, sejam da Reserva Remunerada ou não, o correto, no exemplo, seria submetê-los ao STM. Observe-se a crise que pode ser criada ao se aderir à tese 2. Pelo fato de esse General não ser mais militar (é da Reserva não Remunerada), e, sim, civil, o STM não poderia processá-lo, nem julgá-lo. Seria, então, julgado e processado por tenentes? Note-se que, tanto no exemplo do Coronel R-2, como no do General R-2, grande afronta ao sistema militar estaria ocorrendo. Esses Oficiais, após inúmeras realizações e atos administrativos, estariam sendo julgados por militares que outrora foram os próprios elogiados ou punidos pelas referidas autoridades, ou até amigos ou desafetos desses. Os companheiros desse Coronel R-2 ou General R-2, ainda na ativa, talvez até envolvidos de forma inocente ou não nas decisões que ensejaram o processo penal militar, embora constrangidos pela ofensa à hierarquia e à disciplina, nada poderiam fazer diante das consequências da errônea sujeição desses réus ao CPJ. CASO 3 Suponha-se um Coronel da Reserva não Remunerada (R-2), que tomou posse em cargo público, sendo processado por crime de desvio de verba pública perante a JMU, por ato emanado quando ainda estava na ativa e no comando de OM. O legislador, mediante o art. 27 da LOJM, submete-o ao CEJ, também porque tenentes ainda não adquiriram os conhecimentos suficientes sobre essas funções gerenciais. O comando de OM de maior envergadura e as finanças nelas envolvidas ainda não fazem parte da experiência profissional da grande 30

maioria dos tenentes. Some-se, entre todos os outros motivos já explanados, mais um para não submeter o julgamento desse Coronel R-2 aos inexperientes tenentes, os quais poderiam, em tese, impor pena revanchista ou mesmo leviana. O acusado – Coronel R-2 – poderia ser compelido, embora de posto mais elevado do que os juízes militares, ao processo relativo à Declaração de Indignidade perante o STM. Retome-se que, para a indignidade, o STM é competente. Logo não é proporcional, nem legal, que na primeira instância o inexperiente CPJ processasse e julgasse esse Coronel R-2. 5. Da mobilização e da defesa nacional O legislador, nesse contexto, quis preservar eventual convocação ou mobilização. Tratar a mobilização como algo remoto, a ponto de ser desprezado nesse mosaico da Defesa Nacional, é desmerecer o motivo mais importante para a existência das Forças Armadas. É na mobilização que as Forças Armadas atingem o ápice de seu mister constitucional. Ninguém pode prever quando a mobilização ocorrerá. Se hoje, amanhã ou daqui a pouco ou muito tempo. O importante é o preparo e a mentalidade convergente para esse magnânimo evento de Defesa Nacional. Logo, se hoje o tenente, compondo o CPJ, condena um Capitão, Major, Tenente-Coronel, Coronel ou General R-2, quando da mobilização ou da convocação haverá grande trauma a ser resolvido no âmbito da hierarquia e da disciplina. Verdadeiro conflito entre círculos, e pior, fomentado pelo Estado que equivocadamente designou o Conselho inadequado à solução da ação penal militar. A hierarquia e a disciplina devem ser preservadas em todas as oportunidades. Mas, se tivéssemos de escolher entre atentar mais para tais cânones, em período de normalidade ou de mobilização, certamente a resposta seria neste último. A mobilização é o momento em que toda a nação conclama as Forças Armadas para arrostar o perigo, aciona a sua ultima ratio para resolver crise de alta relevância. Nesse momento drástico, toda ofensa aos citados princípios deve ser repelida com rigor. Como, então, considerar a mobilização algo remoto ou na qual poderiam ser enfraquecidos tão caros valores? Ademais, tudo que está sendo dito vale não apenas para a mobilização, mas também para os exercícios de convocação, efetivados com notável frequência em todos os escalões militares. Logo, se ontem um OficialGeneral, Superior, Intermediário ou Subalterno R-2 for condenado por tenentes do CPJ, amanhã poderá o próprio acusado ser convocado para manobras e participar de operações nas quais comandará os seus julgadores e respectivos contemporâneos de formação acadêmica,

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além de outros militares e praças. Todos estariam cientes da desmoralização do Oficial R-2 convocado, devido à sua condenação ou ao simples julgamento realizado por tenentes. Embora na mobilização possa não se priorizar a convocação de militares que foram acusados em processos penais, a depender da dimensão da crise nacional vivenciada, poderá ser imperioso conclamá-los em reforço à Defesa Nacional. Atente-se que os processos geralmente tratam de Tenentes R-2, situação já a merecer toda a fundamentação ora apresentada. Prevalecendo a decisão de submetê-los ao CPJ, valerá para todos os postos de Oficiais na Reserva não Remunerada. Ainda que não seja comum haver generais R-2, nada impede que assumam um cargo público desejado e integrem a Reserva não Remunerada. Portanto, em tese, até mesmo um general poderia ser alcançado pelo equívoco, sendo muito provável incidir em relação aos demais postos. Em respeito aos caros princípios e valores, sempre a imperar aos militares, destaca-se que, mesmo quando não for mais mobilizável ou convocável determinado Oficial R-2 (civil, é claro), a sua história, enquanto na ativa, deve ser respeitada. Uma forma de manifestar esse cuidado é a escolha do adequado Conselho. O sistema militar é norteado pelo apreço à honra, ao pundonor e ao decoro da classe. Assim, embora o Oficial R-2 e acusado no processo não fosse mais mobilizável, seria inadmissível que os seus subordinados no passado, e ainda em postos inferiores no presente, julguem-no. 6. Conclusão Assim, a decisão de submeter o Oficial da Reserva não Remunerada ao CPJ porque é civil, e não militar, gera graves consequências à estrutura castrense, afetando a mentalidade, em todos os postos e graduações, no tocante ao real alcance do que seja o respeito à hierarquia e à disciplina. Decisões desse tipo não são agasalhadas pelo bloco em que os valores de profissão tão peculiar foram intencionalmente blindados desde épocas remotas, fruto da obra do zeloso e sistêmico legislador de outrora e da LOJM atual. Sendo a ultima ratio do Estado, este, em nenhuma situação, poderá admitir a quebra ou a flexibilidade dos mais básicos princípios que embasam a regularidade e a permanência das Forças Armadas – art. 142 da CF/1988 –, nisso incluído o desvirtuamento do Conselho adequado à causa. Quando se afirma que os princípios da hierarquia e da disciplina devem estar na “massa do sangue” de cada praça ou oficial, para tal há a necessidade de segurança jurídica, assegurada pela JMU, garantindo os reflexos que conduzem à manutenção indelével das Forças Armadas e, por pura lógica, à preservação do Sistema Castrense.

Essa gama de valores que orbita as Forças Armadas não vigora para o privilégio de nenhum militar. Pelo contrário, vetores são necessários para o êxito das operações militares deflagradas em defesa da população, que mantém todo o aparato bélico. Ninguém arrostará o perigo se, também, não vigorar, em especial nesta Corte, a proteção mais ampla e sistêmica das normas militares, inclusive o adequado CEJ para processar e julgar o Oficial da Reserva não Remunerada, com base, frisa-se, no art. 27 da LOJM. Independentemente de os Oficiais R-2, quando acusados em processo penal militar, serem absolvidos ou condenados, jamais se poderia admitir que a hierarquia e a disciplina fossem, mesmo circunstancialmente, desprezadas. Nunca se poderia ignorar o posto e as prerrogativas que as cartas patentes lhes garantem, não no interesse da pessoa, mas primordialmente no do Estado. O Estado, em vez de desestabilizar o plano constitucional em que estão moldadas as instituições castrenses, deve sim fomentar a confiança e a tutela à hierarquia e à disciplina. Durante eventual convocação ou mobilização, momentos cruciais que deflagram o emprego e justificam a existência das Forças Armadas, a confiança e a solidez das relações, entre superiores e subordinados, deverão estar qualificadamente preservadas. Nesse prisma, a declaração do juiz natural competente para a causa tem peculiar consequência. Por ocasião do julgamento do HC no 47-93.2014.7.00.0000, em 28/5/2014, o Exmo. Sr. Min Ten Brig Ar Cleonilson Nicácio Silva, demonstrando a pertinência do tema para o equilíbrio das relações militares, assim se manifestou em Plenário: As Forças Armadas só existem e só subsistem, em combate principalmente, pela confiança mútua. Se eu não confiar no meu sargento que encheu o pneu do avião, se eu não confiar no mecânico que abriu o motor e viu que o óleo estava lá dentro, quebra-se essa relação de confiança e acabam todas as Forças Armadas [...]

Repare-se que o escopo em se definir o Conselho adequado não é do agente. Por ser Oficial, formado em escolas de alto custo e de valores morais elevados, a causa exige o processo e o julgamento por juízes mais antigos do que o acusado e de maior experiência profissional. Nesses termos, o interesse é, antes de qualquer outro, eminentemente público. Em respeito à Marinha e à Aeronáutica, esclareço que todas as referências aos postos de tenente, capitão, major, tenente- coronel, coronel e de general, seguiram o previsto para o Exército. Entretanto, a presente abordagem é válida para os postos correspondentes na Marinha e na Aeronáutica, conforme o Quadro Anexo a que se refere o art. 16 do Estatuto dos Militares – Lei no 6.880/1980 (Círculos e Escala Hierárquica nas Forças Armadas).

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O incidente da conversão da ação individual em coletiva Luiz Roberto Ayoub

Juiz do TJRJ

Vanderson Maçullo Braga Filho

Pesquisador da FGV Direito Rio

À

parte a melhor conceituação do instituto da coisa julgada, é certo que o direito está em busca da pacificação social, minimizando as tensões decorrentes das relações humanas. Na perspectiva da diminuição do excesso de litigiosidade, o novo Código de Processo Civil, durante sua tramitação na Câmara dos Deputados, criou a figura do incidente de conversão de ação individual em coletiva, que aqui pretendo chamar de coletivização das ações individuais. Disposto no artigo 334, e seus parágrafos, do Projeto de Reforma do Código de Processo Civil, inicialmente a novidade não despertou o interesse da Comissão responsável pela condução do projeto no Senado, que o suprimiu ao argumento de que o incidente de resolução de demandas repetitivas, outra novidade proposta, bastaria para enfrentar o problema crônico decorrente do que o presidente da referida Comissão, Ministro Luiz Fux, denomina de “litigiosidade desenfreada”, a par de referido incidente ser de duvidosa constitucionalidade, fatos que lhe justificariam a retirada do Projeto. Diz o texto normativo, na versão entregue pela Câmara por meio da Comissão Especial, de iniciativa do Deputado Paulo Teixeira, e retirado por Emenda do Senador Ricardo Ferraço: Art. 334 – Atendidos os pressupostos da relevância social e da dificuldade da formação do litisconsórcio, o juiz, a requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública, ouvido o autor, poderá converter em coletiva a ação individual que veicule pedido que: I) tenha alcance coletivo em razão da tutela de bem jurídico difuso ou coletivo, assim entendidos aqueles definidos pelo art. 81, parágrafo único, incisos I e II, da Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990, e cuja ofensa afete, 32

a um só tempo as esferas jurídicas do indivíduo e da coletividade; II) tenha por objetivo a solução de conflito de interesse relativo a uma mesma relação jurídica plurilateral, cuja solução, pela sua natureza ou por disposição de lei, deva ser necessariamente uniforme, assegurando-se tratamento isonômico para todos os membros do grupo; [...] § 6o) O autor originário da ação individual atuará na condição de litisconsorte unitário do legitimado para condução do processo coletivo.

A justificativa do Senado, na relatoria do Senador Vital do Rego: Em primeiro lugar, é de erguerem-se suspeitas sobre a constitucionalidade dessa ferramenta processual, que, mesmo contra a vontade do autor da ação – o que parece arranhar o princípio constitucional do acesso à justiça –, transformará o pleito individual em uma ação coletiva. Em segundo lugar, a discussão acerca da tutela coletiva de direitos tem foro legal próprio, diverso do Código de Processo Civil. O tema atinente à conversão de ações individuais em coletivas deve ser cultivado em outras iniciativas legislativas, que versem sobre processo coletivo.

A suspeita de inconstitucionalidade, levantada pelo Senador Vital do Rego ao fundamento de que a coletivização atentaria contra a vontade do autor da ação, não se sustenta em face do § 6o do artigo 334 do Projeto acima transcrito. Isso porque o autor da ação permanecerá na condução do processo, na qualidade de litisconsorte unitário. Ademais, a tese da inconstitucionalidade carece de fundamento porque a ninguém estará sendo negado o acesso à justiça. Na verdade,

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Foto: Divulgação

os sujeitos de direito estarão nos autos através de um substituto processual que em nome próprio defende direito alheio, nos termos do art. 6o do CPC/73. A prevalecer a suspeita, todo o sistema voltado à coletivização das ações – o que representa uma tendência mundial – estaria em questionamento, qualquer que fosse a espécie de ação coletiva. Ao analisarmos o projeto sistematicamente, fica fácil perceber a pretensão de destacar o excesso de litigiosidade, a insegurança jurídica e a falta de previsibilidade como razão de ser das modificações necessárias para se criar um ambiente de maior conforto para o jurisdicionado e, por que não, para a própria sociedade, a partir do fato de que a legislação processual pode, e muito, contribuir para um ambiente fértil ao investimento e, com isso, elevar o teor de segurança jurídica e previsibilidade das decisões judiciais, sem que tal importe em retirar dos magistrados a independência para julgar os conflitos de interesse postos à sua mesa, mas desenhando um cenário de maior apego à observância das decisões proferidas por tribunais superiores. Falar em redução de litigiosidade, celeridade e efetividade perpassa pelo estudo do incidente de resolução de demandas repetitivas, que objetiva desafogar o processamento crescente de feitos judiciais. Também pela uniformização das sentenças envolventes de casos idênticos, a conferir maior legitimidade às decisões, porquanto inaceitável que sobre bases fáticas idênticas juízes tomem decisões diametralmente opostas, gerando insegurança e desconfiança no sistema judicial. Talvez essa tenha sido a razão do desprestígio àqueloutra novidade da coletivização das ações individuais, que, por outras razões, segundo sustentaram, poderia ser renovada por lei especial que trate de ações coletivas. Contudo, se é verdade que o incidente de resolução de

demandas repetitivas atende ao interesse de uniformização de decisões e redução do inaceitável acervo de processos nos quatro cantos do país, é certo, também, que a coletivização resolveria – ou resolverá – outro problema seríssimo de nosso sistema processual, qual seja, o da coisa julgada nas hipóteses decorrentes da formação de litisconsórcio facultativo e unitário. E é essa a proposta desta breve reflexão. Tudo se inicia pela redação tortuosa do artigo 472 do Código de Processo Civil de 1973, verbis: A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.

Tortuosa porque não é verdade que a coisa julgada só alcança aqueles que foram parte no processo, não beneficiando, nem prejudicando, terceiros. O projeto também não se descuidou de tratar desse ponto, mas agora o momento é destinado à discussão, itere-se, da coisa julgada nas hipóteses de litisconsórcio facultativo e unitário. Como cediço, há terceiros que se encontram em situação de subordinação em relação à parte que frequenta uma relação processual e há casos em que terceiros encontram-se equiparados a outros sujeitos, sem vínculo algum de subordinação. Para o primeiro caso, citemos a figura do assistente simples; enquanto para o segundo, os sócios de uma mesma sociedade. No caso do assistente simples, o artigo 55 do Código de Processo Civil mostra que ele, em regra, é alcançado pela coisa julgada, desconstruindo a redação do já citado artigo 472 do Estatuto Processual. Quanto ao terceiro que não

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está em posição de subordinação, portanto equiparado aos demais, a situação se torna delicada na medida em que, não sendo parte, não será alcançado pela coisa julgada, podendo, assim, revolver a mesma matéria já decidida em relação a outro sujeito que se encontre na mesma situação jurídica. A partir daí, outros poderão agitar a mesma questão já decidida, criando um ambiente de indesejável instabilidade processual e insegurança jurídica. O Professor Alexandre Freitas Câmara assim se manifesta sobre o tema: Quanto aos terceiros juridicamente interessados, podem estes ser divididos em dois grupos: de um lado, há terceiros cujo interesse jurídico é idêntico aos das partes. Estes podem, obviamente, se insurgir contra coisa julgada. Basta pensar numa demanda ajuizada por um acionista de uma determinada sociedade anônima, em face desta, onde se pede a anulação de uma assembleia de acionistas. Transitada em julgado a sentença que julgou improcedente o pedido de anulação, nada impede que o outro acionista, terceiro em relação àquele processo, mas titular de um interesse jurídico equivalente ao das partes venha a ajuizar demanda pelo mesmo fundamento, e com idêntico pedido. Há, porém, que se considerar a existência de terceiros com interesse jurídico inferior ao das partes. Estes, embora possam vir a sofrer prejuízo jurídico em razão da sentença, encontram-se em posição de subordinação em relação às partes, o que acarretará algumas consequências relevantes. Pense-se, por exemplo, na posição do sublocatário em relação a uma sentença que tenha decretado o despejo, em processo em que foram partes locador e locatário. Embora tenha permanecido como terceiro no processo em que se proferiu a sentença, o sublocatário não poderá atacar a coisa julgada que se formou com a mesma liberdade com que o faz o terceiro cujo interesse jurídico é equivalente ao das partes. Assim é que o terceiro com interesse jurídico subordinado ao das partes só poderá atacar a coisa julgada que eventualmente se forme alegando injustiça da decisão. Deve-se entender por decisão injusta a que contrarie o direito em tese ou a que seja proferida manifestamente contra a prova dos autos. Apenas essas duas causas poderão embasar uma demanda do terceiro titular de interesse jurídico subordinado ao da parte em face do vencedor do processo onde se formou a coisa julgada. Diferem, pois, os terceiros juridicamente interessados em que uns (os que têm interesse equivalente ao das partes) não são em nenhum modo afetados pela coisa julgada, enquanto outros (os que têm interesse subordinado ao das partes) só poderão infirmar a res iudicata alegando injustiça intrínseca da decisão.1

O festejado professor reconhece a possibilidade de revolvimento de matérias já decididas, tendo como fundamento a equiparação entre aqueles sujeitos. Contudo, 34

é necessário enfrentar as consequências dessa afirmada possibilidade, porquanto inquestionável concluir pela sobrevinda de instabilidade das relações jurídicas quando se permite que uma matéria já decidida possa ser revisitada. Como resolver a controvérsia? Enfim, a coisa julgada havida na primeira relação processual alcança a todos os sujeitos que se encontram na mesma posição jurídica, e, portanto, encontram-se numa situação de equiparação, ou, ao contrário, não alcança aquele que não frequentou o primeiro processo, permitindo rediscussões sobre a mesma base fática? Não se diga que o artigo 471 do Código de Processo Civil resolveria a questão. É verdade que nenhum juiz decidirá a mesma lide, porém, tratando-se de partes distintas, não há se de cogitar da “mesma ação”, não se aplicando, nesse caso, nem a Teoria da Tríplice Identidade das Causas, nem a Teoria da Identidade das Relações Jurídicas. A proposta da coletivização das ações individuais, gestada na Câmara dos Deputados e retirada por ocasião do retorno do Projeto ao Senado Federal, poria fim à questão processual mediante a coletivização das ações individuais. Com efeito, o inciso II do citado artigo 334 do Projeto de Reforma do Código de Processo Civil se ajustaria, perfeitamente, às hipóteses em comento e que concerne ao litisconsórcio facultativo. Assim: II – tenha por objetivo a solução de conflito de interesse relativo a uma mesma relação jurídica plurilateral, cuja solução, pela sua natureza ou por disposição de lei, deva ser necessariamente uniforme, assegurando-se tratamento isonômico para todos os membros do grupo.

O texto evidencia a preocupação de se conferir a mesma solução ao conflito havido numa relação jurídica plurilateral, e o tratamento de igualdade a todos que integram aquele grupo, gerando a estabilidade necessária à pacificação social. Por outro lado, encerra a discussão acerca da possibilidade de um terceiro, numa situação de equiparação, rediscutir decisões tomadas em outros processos com a mesma base fática, resultando, sublinhe-se novamente em maior legitimidade das decisões judiciais. Para alegria dos defensores da afirmada coletivização das ações individuais, o Requerimento no 1.025, de 2014, da Relatoria do Senador Aloysio Nunes Ferreira, trouxe de volta essa importante figura processual que, por certo, resolverá a controvérsia comum nas questões empresariais, minimizando as tensões decorrentes dos conflitos societários. Veja-se o destaque: O dispositivo em questão fora inserido pela Câmara dos Deputados no Substitutivo ora sob apreciação desta Casa e, juntamente com seus inc. I e II, tratam das hipóteses de conversão da ação individual em coletiva, ou seja, quando houver “alcance coletivo, em razão da tutela do bem jurídico difuso ou coletivo, (...) e cuja ofensa afete, a um só tempo, as esferas.......

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E conclui:

foi o incidente de conversão das ações individuais em coletivas, mantendo o autor original na condução do processo, ao lado de qualquer dos legitimados a propor a ação coletiva; III ao retornar à Casa de origem, a novidade foi suprimida do texto modificado na Câmara, tendo como argumento uma suposta inconstitucionalidade e, ainda, não ser o Código de Processo Civil sede adequada para tratar desse assunto; igualmente entendeu-se que, para enfrentar a litigiosidade desenfreada, conforme palavras do ilustre Ministro Luiz Fux, Presidente da Comissão de juristas responsável pela criação de um novo modelo legal, bastaria a inclusão do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas; IV) ao se analisar o Destaque da Relatoria do Senador Aloysio Nunes Ferreira, a novidade da coletivização das ações individuais foi reintroduzida no texto legal, fato que resultará numa enorme contribuição para reduzir as tensões havidas nas relações empresariais.

Não vemos desta forma a questão. A proposta não impede o acesso do indivíduo ao judiciário, mesmo porque o texto aprovado pela Câmara propõe que seja o autor da ação individual ouvido, antes da conversão judicial em demanda coletiva. Ainda que haja outros indivíduos em mesma situação de fato e de direito, a proposta também não os impede de apresentar suas demandas individualizadas, ainda que esteja em curso a ação coletiva (assim convertida ou não). No mais, a proposta da Câmara dos Deputados é meritória e amplia, ainda mais, o contexto da celeridade processual, ao permitir a simplificação do rito processual para afetação de bens coletivos e interesses difusos.

Em arremate: I) o Código de Processo Civil de 1973, nada obstante os avanços que introduziu no nosso sistema processual, foi objeto de numerosas modificações pontuais ao longo dos anos; chegou a hora de uma modificação geral, organizando-se todo o sistema processual, além de incluir novos institutos e excluir aqueles que o tempo demonstrou desnecessários; II) uma das novidades introduzidas por ocasião da passagem do Projeto pela Câmara dos Deputados

Nota Câmara, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol I. Editora Atlas, São Paulo, 23a ed. 2012. p. 538-539.

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Educação Ambiental como instrumento jurídico nas empresas Ramiro Farjalla

A

Advogado

I – Considerações histórica e jurídica sustentabilidade apresenta-se como um dos maiores desafios da humanidade no século XXI, pois os problemas ambientais agravam-se cada vez mais, conferindo, assim, urgência nas soluções e tendo como pilares a relação de interdependência entre homem, sociedade, desenvolvimento econômico e social e preservação ambiental. A gravidade da situação reside no fato de os recursos naturais se encontrarem escassos, o que leva o meio ambiente à discussão nas dimensões políticas, econômicas e sociais, ou seja, um tema a ser tratado dentro da sociedade. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano (CNUMAH) (1972) foi o ponto de partida rumo à nova forma de desenvolvimento, pois a vigente já se apresentava prejudicial à humanidade nos aspectos político, social e econômico, gerando a crise ambiental que é justamente o esgotamento dos recursos naturais e a consequente queda da qualidade de vida da população em razão da poluição do solo, do ar, da água e de danos ambientais que perpetuaram gerações e localidades, mas também da alta dos preços e a desigualdade social ao acesso de bens e serviços, caracterizando o caos e o comprometimento à sobrevivência das gerações presente e futura. Vale destacar o pioneirismo da conferência sobre a necessidade de um processo educacional que leve à forma sustentável ou, ao menos, respeitosa e não degradante à natureza quanto aos modos de vida e desenvolvimento na sociedade, conforme expõe o Princípio 19: 36

É indispensável um labor de Educação em questões ambientais, dirigido tanto às gerações jovens quanto às adultas e que preste a devida atenção ao setor da população menos favorecida, para ampliar as bases de uma opinião pública bem informada e de uma conduta dos indivíduos, das empresas e das coletividades, inspirada no sentido da sua responsabilidade enquanto a proteção e melhoramento do meio em toda a sua dimensão humana (SÉGUIN, 2006, p. 119).

Segundo o relatório da Comissão de Brundtland – o Nosso Futuro Comum, publicado em 1987, o conceito de desenvolvimento sustentável foi definido como “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades” (ACSERALD; LEROY, 1999). Posteriormente, outras conferências foram realizadas como a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio de Janeiro (CNUMAD) (1992), a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (CMDS), em Johanesburgo, África do Sul (2002) e a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável do Rio de Janeiro de 2012 (RIO + 20). Nesse sentido, em paralelo à realização da CNUMAH (1972) e da CNUMAD (1992), foram realizadas conferências sobre Educação Ambiental como a de Belgrado (1975), a I Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental (Tbilisi, em 1977), o II Congresso Internacional

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Foto: Nara Farjalla

sobre Educação e Formação Ambientais (Moscou, em 1987) e a IV Conferência Internacional da Educação Ambiental (Ahmedabad, em 2007), direcionando-a para mudanças de valores e uma nova ética que conduza o estreitamento das relações homem-natureza para poder atingir novo tipo de desenvolvimento (FARJALLA, 2013). Esse deve ser socialmente mais inclusivo, contando com a participação da sociedade e a articulação entre os seus atores (Estado e sociedade-civil), e ambientalmente menos impactante, evitando ou diminuindo o descarte do excedente de produção à natureza que já se encontra degradada por causa da exploração dos seus recursos (FOLADORI, 2001). Seguindo a tendência internacional, o Brasil incorporou as questões ambientais e acabou desenvolvendo uma legis­lação, se não a mais avançada uma das mais avançadas do mundo, sobretudo no que se refere à Educação Ambiental. Pode-se dizer que o avanço da temática jurídica, ambiental e educacional começou com a vigência da Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981 − Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) −, objetivando a melhoria, a recuperação e a preservação ambiental, estabelecendo a obrigatoriedade da Educação Ambiental em todos os níveis,1 e definindo os conceitos de meio ambiente, degradação ambiental e poluição,2 com o escopo de se promover os desenvolvimentos econômico e social, em que se reconheça o capital natural (recursos naturais) como o suporte, enfatizando assim o termo sustentabilidade.

Com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988,3 o meio ambiente e a Educação Ambiental ganharam status constitucional, tornando-se direitos fundamentais de cunho social, cuja finalidade é a promoção da dignidade humana a ser conquistada pela ação social da democracia participativa para que o fim da sustentabilidade se reflita no meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo, sadio à qualidade de vida (LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo; COSTA, Samira Lima da, 2003). Por essa razão, a Educação Ambiental destaca nesse cenário. Além de ter status constitucional,4 conferindo atribuições do Poder Público ao lado de licenciamento ambiental e estabelecimento das Unidades de Conservação, a Lei no 9.795, de 27 de abril de 1999, da Política Nacional de Educação Ambiental, estabelece que esta seja promovida não só pelo setor público, mas também no âmbito privado a exemplo das empresas ante a própria natureza jurídica do bem ambiental, conforme dispõe o art. 3o: Art. 3o Como parte do processo educativo mais amplo, todos têm direito à educação ambiental, incumbindo: V − às empresas, entidades de classe, instituições públicas e privadas, promover programas destinados à capacitação dos trabalhadores, visando à melhoria e ao controle efetivo sobre o ambiente de trabalho, bem como sobre as repercussões do processo produtivo no meio ambiente. (BRASIL, 1988)

Segundo Fiorillo (2008), educar ambientalmente significa, entre outros fatores, redução dos custos ambientais, à medida que a população atuará como guardiã do meio ambiente, e a fixação da ideia de consciência ecológica, que buscará a utilização de tecnologias limpas (AGUIR; BOAS, 2011). Nesse sentido, os princípios do Direito Ambiental são inovadores por levar a sociedade a condutas preventiva e socialmente participativas, com visão em longo prazo e holística, levando à mudança de paradigmas, em que a cooperação e o reconhecimento da relação interdependente entre homem e natureza são essenciais para o desenvolvimento econômico-social, tendo a educação como a ferramenta fundamental para concretização da sustentabilidade. Portanto, ela está se fazendo presente nos documentos regulamentares a fim de efetivar as leis ambientais. Podemos citar a Instrução Normativa no 2, de 29 de junho de 2012, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que estabelece os Programas de Educação Ambiental nas áreas licenciadas, envolvendo os trabalhadores e a comunidade do entorno atingida pelos impactos ambientais causados pelo empreendimento. A determinação às empresas na realização de projetos de Educação Ambiental deve proporcionar a mitigação e/ou compensação dos impactos.5

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II − A Educação Ambiental como instrumento de capacitação profissional Mais do que uma questão legal, os problemas ambientais inserem-se no cotidiano empresarial e tornamse desafios perante o mercado em relação a clientes, concorrentes e órgãos públicos. Segundo Zambon e Ricco (2009), a efetividade e a evolução das teorias e práticas de desenvolvimento sustentável incluem, necessariamente, a participação de todos os atores sociais, entre eles, as empresas. Isso posto, torna-se cada vez mais frequente e emergente a necessidade da reflexão do empresariado sobre o seu papel no desenvolvimento de nossa sociedade. Nesse contexto, são crescentes as parcerias entre Poder Público e empresas para realização de projetos e programas de Educação Ambiental.6 Tais parcerias costumam ter como objeto de trabalho temas pontuais, a exemplo da coleta seletiva, mas também programas de capacitação profissional. Embora muitas dessas políticas ainda estejam direcionadas às escolas, a razão da sua existência está justamente no cumprimento do artigo 225 da Constituição Federal de 1988. Mais uma vez, vale citar Zambon e Ricco (2009): [...] o novo paradigma da sustentabilidade propõe uma nova dinâmica e ordem para o mundo atual, relacionada principalmente à interação e cooperação entre governos, empresas e sociedade civil organizada na construção de uma sociedade mais justa e sustentável. (p. 3)

Embora o objetivo das empresas seja a lucratividade, elas não podem nem devem se eximir da responsabilidade socioambiental em razão de serem constituídas por pessoas naturais (seres humanos) e estarem inseridas no ambiente em que desenvolvem suas atividades econômicas, conciliando o acervo natural (ecossistemas, fauna, flora etc.) e a cadeia produtiva que envolve toda a sociedade, do fabricante ao consumidor, levando em conta o poder público na regulação dessas relações que são ambientalmente impactantes. Por essa razão, não se deve tratar de sustentabilidade ou desenvolvimento sustentável sem falar na interdependência entre natureza, sociedade e relações humanas. Afinal, o conceito de meio ambiente evoluiu entre a vigência da Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981 − Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) −, e da Lei no 9.795, de 27 de abril de 1999 − Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA). A PNMA atribuiu concepção reducionista de meio ambiente associada aos elementos da natureza quando diz, no artigo 3o, I, tratar-se de “conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica”, enquanto a PNEA apresentou ampliação nas dimensões humanas e sociais ao afirmar: Art. 4o São princípios básicos da educação ambiental: II − a concepção do meio ambiente em sua totalidade, con38

siderando a interdependência entre o meio natural, o socioeconômico e o cultural, sob o enfoque da sustentabilidade. (BRASIL, 1999)

Conforme o dispositivo citado acima, o legislador reconheceu a relação de interdependência entre homem e natureza, ou seja, que a espécie humana é um ser natural, histórico e social. Por conta disso, trata-se de uma relação transformadora, mas sem a necessidade de ser degradadora. Do contrário, ocorrerá o desequilíbrio ecológico, algo que já vem ocorrendo, traduzido no aquecimento global ou desastres naturais, fenômenos esses que expressam as consequências da insustentabilidade da nossa sociedade. Com isso, exige-se potencial mudança de perfil dos profissionais que ingressam no mercado de trabalho. Essa questão já se encontra presente dentro do âmbito da política educacional, por meio da Resolução no 2, de 15 de junho de 2012, e do reconhecimento do meio ambiente como tema transversal, ambos os documentos expedidos pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), que se torna estrutural no aspecto curricular do futuro profissional e cidadão, seja para se tornar empreendedor, seja integrante da classe trabalhadora, profissional liberal ou governante. De plano, para fins de viabilização à capacitação profissional nas empresas, a Educação Ambiental objetiva a formação da personalidade, despertando a consciência ecológica em crianças e jovens, além de adultos, para valorizar e preservar a natureza, de acordo com princípios comumente aceitos. Para que se possa prevenir de maneira adequada, necessário é conscientizar e educar (LAFREDI, 2002; TOALDO, 2011). Nesse sentido, as empresas precisam estar preparadas à nova demanda e o instrumento legal está na capacitação profissional. Obviamente, seria incoerente o engajamento empresarial em prol da conservação da natureza e do meio ambiente ecologicamente equilibrado, sem trabalhar a qualidade ambiental dentro das corporações (FARJALLA, 2009). Diferentemente da Educação Ambiental que trabalha temas ambientais pontuais e em datas comemorativas, a educação que se propõe, que está prevista na lei, possui caráter permanente e auxiliador na gestão ambiental, proporcionando assim a capacitação profissional direcionada à integração e à preocupação com produção sustentável que possa refletir no seu entorno. Entretanto, a sustentabilidade empresarial começa dentro da empresa, com a capacitação de trabalhadores, conforme expõe o artigo 3o, V, da PNEA, no sentido de propor trabalho integrado, a fim de que se viabilizem, de forma eficiente, o cumprimento das leis, a satisfação dos trabalhadores, a elaboração de projetos de compensação e a

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III – Conclusão A lei da PNEA estabelece, no artigo 2o, que a Educação Ambiental é “um componente essencial e permanente

da educação nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em caráter formal e não formal” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2010). No caso da educação não formal, o legislador refere-se à atuação processo de formação fora da escola, devendo ser feita pelos meios de comunicação, organizações sociais e empresas, tornado justificável a sua obrigatoriedade, a fim de que se atinja toda sociedade e as presentes e futuras gerações. Ao contrário dos demais instrumentos legais, cuja penalidade é imediata, a Educação Ambiental tem como escopo e destaque a sua importância para prevenção de danos ambientais e os consequentes prejuízos na esfera econômica e qualitativa em termos de vida, evitando quaisquer sanções. Como vivemos em um sistema de produção e consumo capitalista que leva ao ritmo superior ao de recomposição da Terra, cabe às empresas investirem na capacitação dos seus funcionários e demais profissionais envolvidos em práticas e soluções sustentáveis, que mitiguem os impactos negativos. Do contrário, terão prejuízos e queda na imagem perante consumidores. Segundo Séguin (2006), as políticas ambientais têm, na educação, instrumento de densificação, em que o Poder Público deve trabalhar em parceria com a sociedade civil. O motivo deve-se ao compartilhamento da responsabilidade para buscar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, e a Educação Ambiental destaca-se porque ainda vivemos em uma sociedade que prima pelo individualismo em detrimento dos demais interesses. Porém, quando se trata de problemas ambientais, não há distinções econômicas, sociais e culturais, porque a natureza desconhece as fronteiras e a estrutura social criadas pelo homem. Foto: Arquivo pessoal

mitigação de impactos ambientais negativos, o investimento de tecnologias limpas e o adequado e justificado uso, e também consultorias ambientais para se evitarem danos e litígios judiciais e, com isso, se estabelecer melhor relação com órgãos ambientais. A ferramenta eficaz está na elaboração do diagnóstico socioambiental que significa o conhecimento da realidade da empresa para poder trabalhar os problemas existentes e as potencialidades no sentido de buscar as soluções e tomar as medidas sustentáveis cabíveis. Consiste em trabalhar em cima da cultura da empresa, da atividade-fim, o perfil do cliente e o tipo e o nível de impactos ambientais que possam causar sobre a natureza e sociedade. Tomando a indústria como exemplo, vale destacar a norma ISO 14001, cujo objetivo é o de minimizar os impactos ambientais industriais produzidos. As certificações ISO 14001 junto à implantação dos sistemas de gestão ambiental, passaram a fazer parte do dia a dia das empresas na busca pelo atendimento às legislações nacionais e internacionais e também, conforme Simons (2006), pela própria existência da competitividade (AGUIAR; ARAÚJO, 2008). Conforme o apresentado, a base da sustentabilidade empresarial está na gestão ambiental participativa, levando em consideração a observação das leis, a utilização de tecnologias, a educação e o estabelecimento de metas para o cumprimento das exigências legais e a apresentação de diferencial no mercado, com escopo de atrair clientes e contribuir com a qualidade de vida, valor este estimado na sociedade.

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Referências bibliográficas ACSELRAD, Henri; LEROY, Jean-Pierre. Novas premissas da sustentabilidade democrática. Rio de Janeiro: Projeto Brasil Sustentável e Democrático: FASE, 1999. p. 72 (Série Cadernos de Debate Brasil Sustentável e Democrático, n. 1). AGUIAR, L. V.; ARAUJO, J. Discutindo a educação ambiental em ambiente corporativo. In: Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental. Rio Grande do Sul: FURG, v. 20, jan./jun. 2008. AGUIAR, Dayse de Carvalho Teixeira; BOAS, Rosângela Gonçalves Villas et al. Educação ambiental como instrumento de proteção jurídica do meio ambiente na percepção dos graduandos da FADIVALE. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3.063, 20 nov. 2011. Disponível em: <http:// jus.com.br/artigos/20450>. Acesso em: 10 dez. 2014. Leia mais: <http://jus.com.br/artigos/20450/educacao-ambiental-como-instrumento-de-protecao-juridica-do-meio-ambiente-na-percepcao-dos-graduandos-da-fadivale#ixzz3LWZlzLGe>. BRASIL. Resolução no 2, de 15 de junho de 2012. Estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental. Diário Oficial da União, Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação, Conselho Pleno, Brasília, 18 jun. 2012. Seção 1, p. 7. BRASIL. Instrução Normativa no 2, de 27 de março de 2012. Estabelece as bases técnicas para programas de educação ambiental apresentados como medidas mitigadoras ou compensatórias, em cumprimento às condicionantes das licenças ambientais emitidas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama. Diário Oficial da União, Ministério do Meio Ambiente, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente dos Recursos Naturais Renováveis, Brasília, 62 mar. 2012. Seção 1, p. 130. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Legislação Brasileira sobre Meio Ambiente. 3. ed. Brasília, 2010. COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso futuro comum. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1992. FARJALLA, R. Implementação de políticas de educação ambiental no município de Petrópolis (RJ): Curso de Form-Ação em Educação Ambiental e Agenda 21 Escolar: Formando Elos de Cidadania. Petrópolis: Universidade Católica de Petrópolis. Dissertação (Mestrado em Educação), 2013. FARJALLA, R. A sustentabilidade como instrumento de proteção da saúde e segurança do trabalhador. Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes/Instituto A Vez do Mestre. Monografia (Pós-Graduação Latu Sensu de Direito Ambiental), 2009. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. FOLADORI, Guilhermo. Limites do desenvolvimento sustentável. Tradução: Marise Manoel. Campinas, SP: UNICAMP, 2001. LANFREDI, Geraldo Ferreira. Política ambiental: busca da efetividade de seus instrumentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 197. SÉGUIN, Elida. O direito ambiental: nossa casa planetária. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2006. SIMONS, Mônica Osório. Educação ambiental na empresa: mudando uma cultura. In: JÚNIOR, Vilela; DEMAJOROVIC, Jacques. Modelos e ferramentas de gestão ambiental, desafios e perspectivas para as organizações. São Paulo: Senac São Paulo, 2006. TOALDO, Adriane Medianeira. A educação ambiental como instrumento para a concretização do des sustentável. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 87, abr. 2011. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_ id=9171>. Acesso em: dez 2014. ZAMBON, Bruno Pagoto; RICCO, Adriana Sartório. Sustentabilidade empresarial: uma oportunidade para novos negócios. Entrevista em 09 nov. 2009. Disponível em: <http://www.craes.org.br/arquivo/artigoTecnico/Artigos_Sustentabilidade_Empresaria_Uma_oportunidade_para_novos_negciosl.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2014.

Notas Art. 2o − Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios: [...] Inc. X − educação ambiental a todos os níveis do ensino, inclusive a educação da comunidade, objetivando capacitá-la para participação ativa na defesa do meio ambiente. 2 Art. 3o − [...] I − meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas; II – degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente; III − poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos; 3 Art. 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 4 § 1o − Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; 5 Art. 1o − [...] § 1o − Os programas, compostos por um ou mais projetos de educação ambiental serão executados em cumprimento às medidas mitigadoras ou compensatórias, como condicionantes das licenças concedidas ou nos processos de regularização do licenciamento ambiental federal, após aprovação do IBAMA. § 2o − Os programas e projetos de educação ambiental o conjunto dos Programas Básicos Ambientais e deverão ser submetidos à análise e aprovação do IBAMA, previamente à concessão da Licença de Instalação, ou na instauração dos processos de regularização ambiental. 6 FARJALLA, R. Implementação de políticas de educação ambiental no município de Petrópolis (RJ): Curso de Form-Ação em Educação Ambiental e Agenda 21 Escolar: Formando Elos de Cidadania. Petrópolis: Universidade Católica de Petrópolis. Dissertação (Mestrado em Educação), 2013. 1

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E m foco, por Ada Caperuto

Foto: Secretaria doFoto: Emprego e Relações Tamna Waqued do Trabalho SERT

Deputado Federal Arnaldo Faria de Sá, autor do Projeto de Lei no 117/13

Guarda compartilhada Pelo bem das crianças

As mudanças na lei que estabelece as regras sobre o destino, cuidados e educação dos filhos em caso de divórcio dos pais deverão contribuir para trazer mais paz a uma situação que tende a ser conflituosa.

N

os últimos dias de 2014, a sociedade brasileira viu se concretizar o respaldo legal que pretende fazer valer os direitos de pais e mães que, após o divórcio, muitas vezes, perdem na Justiça as garantias de conviver adequadamente com seus filhos. A 22 de dezembro, a presidente Dilma

Rousseff sancionou o Projeto de Lei no 117/13, de autoria do Deputado Federal Arnaldo Faria de Sá (PTB/ São Paulo), que altera o Código Civil e torna a guarda compartilhada regra no País, mesmo se não houver acordo entre os pais. Publicada no Diário Oficial da União, a lei no 13.058 altera os arts. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da

Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Para o autor do texto, o fato chega, em primeiro lugar, para colocar fim a um usual equívoco de interpretação, que vinha sendo perpetrado por alguns operadores do Direito. Arnaldo Faria de Sá também celebra o que acredita ser uma vacina contra a alie-

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nação parental e menciona o apoio recebido pela avó do garoto Bernardo Uglione Boldrini, de onze anos, encontrado morto em um matagal na cidade de Frederico Westphalen (RS), em abril de 2014. O parlamentar revela que Jussara Uglione lhe enviou uma correspondência em que afirma: “(...) se nessa época já existisse a lei, talvez Bernardo estivesse vivo.” Revista Justiça & Cidadania – Do ponto de vista da sociedade, como o senhor enxerga esta conquista, com a aprovação do PLC 117/13? Deputado Arnaldo Faria de Sá – Quando fizemos essa propositura do PLC 117/2013 – hoje, graças a Deus, Lei 13.058/14, sancionada sem vetos –, a intenção era corrigir um erro de interpretação do parágrafo 2o do artigo 1.584, que continha a expressão “sempre que possível”. Essa expressão deveria ser usada para que fosse deferida a guarda compartilhada, sempre que os pais estivessem aptos a exercer a paternidade. Acontece que parte dos magistrados, assim como alguns membros do Ministério Público, interpretaram diferentemente da intenção do legislador, imprimiram um conceito em que só se concederia a guarda compartilhada se os pais se dessem bem. Então, o novo texto vem corrigir isso explicando o sentido real do que significa guarda compartilhada. São muitos filhos e pais que se separam depois do divórcio, acabando com a convivência entre ambos. O pai ou a mãe que não detém a guarda é um mero visitante em finais de semana alternados. O malefício para as crianças é muito grande e o avanço vem nesse sentido de fazer o que é certo, ou seja, quem se separa são os cônjuges, mas nunca o pai ou a mãe dos filhos. A convivência deve ser igualitária, tentando preservar-se a higidez mental da criança, aplicando-se o duplo referencial; conviver com ambos equilibradamente. Essa conquista é imensa e, mais que justa, necessária, 42

como já disse. Pai e mãe não podem ser vistos como visita. O projeto foi tão bem assimilado pelo Legislativo que obteve parecer favorável em todas as comissões nas duas casas e, como mencionei, foi sancionado pela Presidência da República sem vetos. JC – Alguns juízes afirmam que essa mudança poderá contribuir para reduzir a violência contra as crianças e a prática da alienação parental. Qual sua opinião sobre isso? AFS – É verdade! A alienação parental é um mal nefasto para as crianças. Quando um dos cônjuges não aceita a separação, deseja se vingar pelo fim da relação, ou, por algum motivo menor, usa a prole. E, então, dificulta a convivência dos filhos com o outro, faz denúncias falsas, não deixa que o outro participe da vida dos filhos, não passando qualquer tipo de informação, como rendimento escolar, consultas médicas etc. Não é raro quando implantam “falsas memórias”, denegrindo a imagem do outro pai para que a criança venha desenvolver uma repulsa a este. Isso é muito sério. Essa tortura psicológica é uma violência seriíssima contra a criança, além de causar sérias sequelas psicológicas, às vezes irreversíveis, no relacionamento entre esta e o pai alienado. Assim, a guarda compartilhada, a convivência com ambos, funcionaria como uma vacina contra esse mal, já que determina a convivência igualitária, dificultando a conduta negativa de um dos ex-cônjuges contra o outro. JC – Daqui para frente, na prática, quais deverão ser as mudanças no dia a dia de advogados e juízes quando diante de um conflito que envolva a guarda de crianças? Afinal, a obrigatoriedade da guarda compartilhada pode influenciar no conflito entre as partes, que já não é uma situação fácil. AFS – Penso que a conduta deve ser pautada pela preservação do maior/ melhor interesse da criança e do ado-

lescente. Esse é o espírito da lei. Foi essa a intenção do legislador ao definir, nesses casos, o modelo que deva ser seguido pelo Judiciário e os operadores do direito, ou seja, preservar o convívio igualitário. Não tem segredo. É simples. O que não se pode mais tolerar é que depois de uma reedição da lei da guarda compartilhada – em pouco tempo, pois a anterior é de 2008 –, e após exaustivos debates, consultas a entidades e audiências públicas com especialistas, continuem com o conceito anterior do “sempre que possível” e das visitas. Isso acabou! Só poderá ser negada a guarda compartilhada em duas hipóteses: se um dos genitores abrir mão em juízo, ou se não estiverem em condições de exercer o poder familiar. Fora isso, a guarda compartilhada é regra e a unilateral passa a ser exceção. O tempo de convívio deverá ser o mais equilibrado possível, se for 50% a 50% será ótimo. E isso deverá ser visto caso a caso, considerando as situações fáticas, como a de pais que moram perto, às vezes no mesmo bloco de apartamentos, ou dos que moram em cidades distantes. Mas veja, isso não impede o deferimento da guarda compartilhada, mesmo que morem em países diferentes, o caso a caso será, como disse, na questão do tempo de convivência, unicamente. JC – Se a guarda, a partir de agora, for obrigatoriamente compartilhada, como ficam as questões relativas a pensão alimentícia, custeio de educação, entre outros aspectos? AFS – Essa questão continua sendo regida pela situação fática nos termos da lei de alimentos. Cada genitor vai contribuir na medida de sua possibilidade, dentro da necessidade dos filhos. É o binômio necessidade/possibilidade. Os filhos não podem ser prejudicados com isso. Não haverá mais a disputa da pensão alimentícia, em que um dos genitores paga e o outro administra. A mudança que deve haver é a divisão das despesas equitativamente dentro Justiça & Cidadania | Fevereiro 2015


JC – Gostaria de colocar aqui uma situação prática e recente: meses antes de ser assassinado, o menino Bernardo Boldrini procurou a Justiça para pedir que sua tutela fosse retirada do pai. No caso da obrigatoriedade, como a Justiça poderá lidar com uma situação similar no futuro? AFS – Realmente! Olha, esse drama infelizmente manchou nosso Direito de Família. A criança tem o direito consagrado de ser ouvida nas decisões que influenciam sua vida. Essa criança foi vítima de um sistema arcaico, burocrático demais. O Judiciário é capaz de desmontar uma grande peia de traficantes, de bandidos, mas não se mostra capaz ainda de ouvir a simplicidade do pedido de uma criança. Na maioria das vezes, as pessoas são encaminhadas para setores de psicologia e assistência social, para que esses profissionais a avaliem com equipe multidisciplinar. Temos de ter cuidado aí, muito cuidado, porque esses laudos são apenas uma fotografia do momento da vida dessa criança. O Judiciário deve prestar muita atenção a isso, de preferência que o juiz e

o próprio Ministério Público ouçam diretamente, até porque, são eles que vão decidir o futuro dessas crianças. É lógico que outros campos da ciência são bem vindos, mas o Direito é diferente da Psicologia e vice-versa. Então, nesses casos, penso que não deva haver uma decisão repentina, mas um acompanhamento da situação. Já que foi citado esse caso especificamente, tenho de mencionar aqui que durante

a tramitação do projeto de lei, quando estava no Senado, a avó do menino Bernardo enviou uma correspondência apoiando abertamente a aprovação de nossa iniciativa, contando o drama que Bernardo e ela viveram. Terminou dizendo que, se nessa época já existisse a lei, talvez Bernardo estivesse vivo. A lei deve ser cumprida pelo Judiciário, pelo bem de nossas crianças. Elas agradecem!

Foto: Depositphotos/Kakigori

do conceito acima. Este é o ideal a ser perseguido. Não havendo acordo, o Judiciário pode fixar quais as despesas que cada um arcará para mantença dos filhos dentro dessa nova realidade. Por exemplo: o pai paga a escola, a mãe o cursinho de inglês ou outra atividade, o lazer com a criança ficará ao encargo de cada um dentro do seu período de convivência e assim por diante. Mas tem uma observação importante que gostaria de destacar. Tem gente pensando que não vai mais pagar nada. Isso não é verdade! Para um pai ou mãe que venha a desenvolver essa estrutura da convivência ampliada, como determina a lei, ambos têm que manter uma estrutura de moradia e tempo para se dedicar aos filhos. Dependendo do caso, com certeza a despesa irá aumentar, então precisam pensar bem nisso, antes de qualquer medida.

E como fica? Principal diferença: a guarda compartilhada deixa de ser opção e se torna regra, a ser descartada apenas em casos excepcionais (pais usuários de drogas, por exemplo); Local de moradia: o juiz irá estabelecer, prevalecendo a cidade que melhor atender aos interesses da criança; Tempo de convivência: dividido de modo equilibrado entre mãe e pai; se um deles vive em localidade muito distante, a convivência poderá ser compensada durante os períodos de férias e/ou feriados prolongados; Pensão alimentícia: este valor e demais gastos (médicos, estudos e outros) serão divididos de forma equilibrada, independentemente da residência de qual dos pais a criança viva; Modelo de criação e educação formal: os pais decidem em conjunto a melhor opção; Conflito entre os pais: a regra será aplicada de todo modo e eles deverão obedecer a ordem judicial: Opinião da criança: será ouvida em casos muito excepcionais (após avaliação da família por equipe multidisciplinar); Revisão da guarda: continua a caber, mas dependerá de processo judicial.

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Penhora de dinheiro e impenhorabilidades de salário e poupança Compatibilização traumática?

Bruno Cezar da Cunha Teixeira

O

Juiz Federal Substituto

presente texto destina-se a analisar a evolução do pensamento jurisprudencial a respeito da penhora direta em conta corrente e seus meios de cumprimento, entoando aspectos que possuem relevo no nosso sistema processual, mais especificamente no que atine ao comum embate entre a efetividade da execução e a menor onerosidade para o devedor, à luz do alcance que muitas vezes a interpretação pretoriana termina por dar às impenhorabilidades. Inicialmente, qualquer reflexão dependeria de uma assunção clara a respeito de certa marca característica – assaz negativa – do sistema processual brasileiro, com os pesares que se sentem em dita afirmação: há, inegavelmente, uma vetusta tradição burocrática nos procedimentos judiciais das execuções que, por tão arraigada, demorou a ser rompida com autoridade. Pode-se pensar então que a primazia na defesa de direitos fundamentais, especificamente relacionados à intimidade do devedor, estaria posta de lado quando da adoção de uma visão do processo judicial efetivo, que a tudo toleraria um prol do ideal último de efetividade processual. Entretanto, a evolução e a curial maturação do pensamento jurisprudencial sobre o tema fizeram com que juízes e tribunais passassem a enxergar na efetividade do processo judicial, capaz que seja de respeitar garantias, 44

o objetivo maior da jurisdição executória, sob pena de amputar – em via oblíqua – o monopólio da força do Estado a respeito da efetiva e cabal entrega do bem da vida àquele a quem se reconhece o direito, seja por meio de decisão judicial definitiva, seja em título a que a lei tenha reconhecido similar eficácia. A autonomia do Direito Processual em face do Direito Material não nos remete à conclusão da plena neutralidade entre as duas ciências, como tratassem de mundos estanques e submetidos a lógicas próprias e insensíveis. É exatamente nesse sentido que foram promovidas diversas reformas processuais, tão necessárias e caras, como se vê da Lei no 11.382/06, na linha de raciocínio das ondas renovatórias do processo civil1. Vivenciamos atualmente, como se sabe, a fase da efetividade jurisdicional e da afirmação da instrumentalidade do processo, verdadeiro objetivo a ser perquirido por todos os atores processuais – incluindo, claro, o Estado-juiz –, na medida em que se constatou na praxe judicial que a idolatria às liturgias procedimentais e ao formalismo cumpriram em boa parte o papel, muitas vezes involuntariamente, outras nem tanto, de obstaculizar a meta de que o processo judicial fosse, de fato, quanto mais importância lhe coubesse, o efetivo veículo de realização do direito material.

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Não é do escopo do texto, igualmente, adentrar o estudo característico do chamado processo de execução, hoje (e de modo salutar) estudado como fase de cumprimento de sentença quando tratamos – regra geral – de títulos executivos judiciais. A meta fundamental é analisar a penhora online de valores em conta (nomenclatura que restou consagrada), perpassando seus aspectos polêmicos relacionados à impenhorabilidade de salários e de poupança, esta no valor de quarenta salários mínimos (art. 649, incisos IV e X do Código de Processo Civil). Devo ressaltar que o princípio da efetividade da execução não é outra coisa senão fruto do Princípio do Devido Processo Legal (cláusula do due process of law) aplicado especificamente a tal momento ou etapa processual, e tal comporta o conjunto mínimo de garantias processuais (sentido formal do due process), bem como direito a decisões jurisdicionais razoáveis (sentido material). Nesse sentido advieram mudanças processuais, ampliando-se os poderes do juiz para a concretização das decisões jurisdicionais, como se vê pela mudança de diversos dispositivos de nosso Código Adjetivo, dentre os quais o artigo 461 e 461-A do CPC. A lei tem dado, pois, respostas claras nos últimos anos à crise de efetividade do processo executivo, sendo que a penhora de dinheiro em conta, posteriormente

“O legislador pátrio trouxe assim, por intermédio da referida Lei 8.009/90, proteção ao devedor sob expropriação e, consequentemente, à sua família, inspirado no princípio da dignidade da pessoa humana, conferindo ao executado e seus familiares – malgrado o óbvio abalroamento teórico de seu patrimônio que está em curso – o mínimo de dignidade juridicamente possível, ao tomar como impenhorável sua moradia.”

estruturada através de sistema eletrônico direto entre o juízo da execução e o Banco Central, vai ao encontro de tais linhas e aspirações, qual buscadas por inelutável voluntas legis. Qualquer afirmação contrária obtempera a obviedade de que o processo, enfim, caminha a passos largos para a efetividade, firmando a tese de que a execução se há de realizar no interesse do credor, embora com parcimônia e prudência, seja nos meios, seja nas possibilidades, a respeitar direitos fundamentais do devedor executado. Nesse diapasão, a penhora online é meio de constrição de bens do executado inovador – somenos em sua configuração normativa atual – no direito processual brasileiro, tendo sido incluída no Código de Processo Civil pela recente reforma legislativa trazida a lume pela Lei no 11.382/06, não obstante já fosse praticada em razão de convênios firmados por órgãos do Judiciário com o Banco Central do Brasil. Com a inclusão do artigo 655-A no texto codificado, bem como com a nova redação de seu art. 655, I, inaugurou-se expressa previsão legislativa de referida modalidade de constrição de bens. Em breve síntese, trata-se da possibilidade de o exequente requerer ao juízo da execução o bloqueio do valor dívida diretamente na conta bancária do executado, com o objetivo de satisfazer a obrigação.

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Eis a dicção legal hodierna, por sinal: Art. 655-A. Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou aplicação financeira o juiz, a requerimento do exequente, requisitará à autoridade supervisora do sistema bancário, preferencialmente por meio eletrônico, informações sobre a existência de ativos em nome do executado, podendo no mesmo ato determinar sua indisponibilidade até o valor indicado na execução.

Quer se entenda que a penhora on line nada mais é do que a antiga penhora de dinheiro, como fazem Marinoni e Arenhart2, quer se entenda que se trata de meio de constrição judicial de fato inovador (se supuséssemos haver ineditismo), é inquestionável que a constrição de valores depositados em instituições financeiras e pertencentes ao executado integra expressamente o rol de possibilidades elencado pela Lei, ocupando a primeira posição na ordem preferencial nela trazida. Talvez a revolução do pensamento judicial tenha sido por demais custosa, mormente em um direito processual prático conhecido por criar ensanchas e abrir brechas; hoje, contudo, a penhora online não é nada mais do que aquilo que se vê e o que se faz em juízo, vencidas as etapas de elucubração científica, por um lado, e de acanhamento natural dos operadores do direito frente ao novo, por outro (hoje não tão novo assim). O ponto que nos interessa jaz, sim, nas impenhorabilidades. Está claro que, como Humberto Theodoro Júnior aduz sobre o princípio da economia processual, O processo civil deve-se inspirar no ideal de propiciar às partes uma Justiça barata e rápida, do que se extrai a regra básica de que ‘deve tratar-se de obter o maior resultado com o mínimo de emprego de atividade processual’3.

Entretanto, não é a todo custo que o resultado do processo se vai buscar. Justo por isso existem normas que asseguram as impenhorabilidades, de modo que, estando ali satisfeita a hipótese (art. 649 do CPC, entre outros) normativa, não poderá subsistir o ato judicial de constrição do patrimônio do devedor. São hipóteses que excepcionam a regra de que o patrimônio pessoal faz as vezes de garantia genérica às dívidas contraídas. Um dos exemplos mais comuns – e intuitivo para quem não opera com o direito – é o da impenhorabilidade do bem de família. Como de sabença, O imóvel residencial próprio do casal, ou de entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges, ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei (art. 1o da Lei no 8.009/90).

Trata-se de uma blindagem jurídico-processual aposta sobre determinado bem, mas que não se fundamenta em atributos do bem em si mesmo considerado, senão na possibilidade de se remontarem ditos caracteres ao “mínimo existencial”, isto é, ao espaço nuclear do princípio da dignidade da pessoa humana4 de quem os titulariza ou de quem deles usufrua. O legislador pátrio trouxe assim, por intermédio da referida Lei 8.009/90, proteção ao devedor sob expropriação e, consequentemente, à sua família, inspirado no princípio da dignidade da pessoa humana, conferindo ao executado e seus familiares – malgrado o óbvio abalroamento teórico de seu patrimônio que está em curso – o mínimo de dignidade juridicamente possível, ao tomar como impenhorável sua moradia. A lógica para as impenhorabilidades

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que interessam à hipótese aqui estudada, de penhora de dinheiro (art. 649, IV e X do CPC), quais sejam, a proteção de salários e de cadernetas de poupança até o limite de quarenta salários mínimos, não dissente do que até aqui foi pontuado: busca-se na dignidade da pessoa humana o fundamento para a incolumidade dos salários – visto que os mesmos se destinam à subsistência do executado e de seus familiares –, assim como para a intangibilidade investimentos miúdos, uma vez que se desenham como a esfera indevassável do patrimônio que assegura, em situação normal ou de excepcional necessidade, condições de vida condigna ao devedor e sua família. Todavia, há de se pontuar que, consoante consagrados estudos da hermenêutica jurídica, às hipóteses de exceção – previstas na lei processual, seja o CPC, sejam outros diplomas especiais, como a Lei no 8.009/90 – não se pode dar leitura ampliativa tal que, ultimando-se o raciocínio, transforme-se a exceção em regra (ou seja, já não se poder saber o que está regulado e o que está excepcionado pelo superdimensionamento insidioso do último aspecto). Nesse sentido, e para o particular interesse deste texto, se a impenhorabilidade recai sobre o salário e outras verbas estipendiais assemelhadas (art. 649, IV do CPC), assim o é porque o legislador, ciente de sua natureza alimentar, quis deixar incólume o mínimo existencial que configura o núcleo do princípio da dignidade da pessoa humana. Por isso mesmo não se pode confundir: a impenhorabilidade diz respeito aos salários (próprio conteúdo), não à conta (continente) que os alberga, tendo em vista que os mesmos podem ter sido já convertidos em ativos financeiros, como reconhece a jurisprudência (TJSP, 001437929.2012.8.26.0000, Relator: Candido Alem, Data de Julgamento: 24/04/2012, 16a Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/05/2012). Muitas vezes se supõe suficiente, tão logo efetuada a penhora de dinheiro em dada conta bancária (através do hoje comum sistema BACENJUD, na maioria dos casos), a comprovação de que a mesma é singelamente destinatária de ditos salários, rendimentos, soldos, subsídios, proventos de aposentadorias ou outras espécies, na forma do art. 649, IV do CPC, para que incida, argumentativamente, o óbice da impenhorabilidade. Ademais, e por equívoco, também muitos juízes terminam se seduzindo pelo contexto de que, se os salários – e seus equivalentes – são impenhoráveis, a penhora on line efetuada sobre dada conta que lhes faz as vezes de receptáculo haverá de ser levantada, porque terminará clarividente que o conteúdo fora atingido. O raciocínio está incorreto, evidentemente, porque amplia de tal forma a regra de impenhorabilidade que termina por tornar nada efetiva a alvissareira penhora de dinheiro; isto é: o que esforços pretorianos e, já hoje, legislativos consagraram, uma interpretação ingênua das

impenhorabilidades termina por esvaziar. Por vez mais: dáse ao espectro de exceção uma interpretação de tal forma ampliativa da noção de salário (a conta, o “invólucro” que os recepciona) que a penhora em dinheiro termina, sob a falseada premissa de dignificar a situação de sujeição do devedor, por tornar-se um mero simulacro do espírito de efetividade do processo de execução. Como de sabença, valendo-nos das lições do jurista Moacyr Amaral Santos, Penhora, na definição de FREDERICO MARQUES, “é o ato inicial de expropriação do processo de execução, para individualizar a responsabilidade executória, mediante a apreensão material, direta ou indireta, de bens do patrimônio do devedor”. Ou, conforme definição mais ou menos generalizada, “é o ato pelo qual são apreendidos e depositados tantos bens do executado quantos bastem para a segurança da execução (GABRIEL DE REZENDE FILHO). É o primeiro ato executório da execução por quantia certa contra devedor solvente. É o ato de apreensão e depósito de bens do devedor destinados à segurança da execução, isto é, destinados à satisfação do credor5.

Insiste-se: em relação ao dinheiro, todo mecanismo da penhora passa a ser mais “singelo”, se o permite a palavra, visto que se trata de bem com liquidez imediata. Por assim ser, despicienda seria a individualização do bem como efeito da penhora, para assegurar preferência em relação aos valores havidos de sua alienação, na medida em que o dinheiro é, por excelência, a estima buscada em toda e qualquer demanda creditícia e naquelas em que reverbere disputa sobre um bem patrimonial outro ou, ainda, sobre um fazer, se resolvida a obrigação em perdas e danos. Não se trata de imperativo de lógica, mas de exigência legal clara: como de sabença, há uma ordem de bens a serem destinados à penhora, que está prevista no artigo 655 do Código de Processo Civil. A jurisprudência tem entendido, entretanto, que não tem caráter rígido aquela lá estabelecida, sendo autorizada a alteração – de modo fundamentado – de acordo com as peculiaridades do caso concreto, assim como pelo interesse das partes. O que não se concebe é que aquele que possua bens em ordem legal preferencial possa sonegá-lo ao processo executivo em desfavor daquele que busca satisfazer seu crédito. Por tal ensejo, a penhora de dinheiro em conta é medida extremamente vantajosa, pois suprime as fases de avaliação e arrematação, resgatando ao processo o princípio da celeridade processual e da efetividade. Não há dúvida de que o devedor deva ser excutido de forma menos gravosa (chama-se princípio da menor onerosidade), por exigência do art. 620 do CPC, mas há que se ressaltar, aliás, que a razoável duração do processo foi alçada ao patamar de direito fundamental individual (art. 5o, LXXVIII da CRFB/88),

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sendo, pois, impossível de ser juridicamente negligenciada. Em interessantíssimo e recente julgado, relatado pela Ministra Maria Isabel Gallotti (REsp no 1.230.060-PR, DJe 29/08/2014), ressaltando a visão sensível e acurada da Corte, a 2a Seção do STJ ratificou o entendimento – muitas vezes ignorado por juízes e advogados – de que “A remuneração a que se refere o inciso IV do art. 649 do CPC é a última percebida, no limite do teto constitucional de remuneração (CF, art. 37, XI e XII), perdendo esta natureza a sobra respectiva, após o recebimento do salário ou vencimento seguinte”. Avistam-se, no trecho, dois contornos limitativos que a jurisprudência, em briosa luta, vinha aos poucos fazendo reconhecer: i) primeiro, somente se há de considerar salário ou verba assemelhada, para os fins aqui analisados, o último aporte em conta que se faça a esse título, o qual se presume seja utilizado para mantença pessoal do devedor e de sua família, perdendo citada natureza a sobra respectiva a ser parametrizada após o recebimento do salário ou vencimento imediatamente subsequente, pois tão só a estritamente utilizada (e presumidamente utilizável), sentido preciso da noção de salário (sob a sua ínsita periodicidade), guardará ligação com a dignidade justificadora da menor oneração do devedor, no sentido da possibilidade de constrangê-lo; ii) considerando-se a existência possível de salários e assemelhados em valor muito elevado, inteligente construção pretoriana confirma a limitação de sua intangibilidade jurídica ao patamar do teto constitucional de remuneração do funcionalismo (CF, art. 37, XI e XII), que passa a ser tido como margem de valor impassível de constrição para além da qual o espaço de exceção da impenhorabilidade se encolhe, valendo, dali por diante, a regra da cobertura genérica da dívida pessoal pelo patrimônio do devedor. Ademais, o julgado não apenas referendou a compreensão correta acerca da impenhorabilidade dos salários, como também considerou, no que tratante das sobras de valores, que os pequenos investimentos por igual se recobrem de impenhorabilidade, dessa feita não com fulcro no art. 649, IV do CPC, senão com base no art. 649, X do mesmo diploma, até o limite de quarenta salários mínimos, quando o texto apenas mencionava “cadernetas de poupança”. A intenção do legislador aqui foi a de proteger a pequena monta de investimento, que por tradição sempre se fez em cadernetas de poupança. Ora, se o investidor buscar livremente outras opções que não a poupança, por almejar rentabilidades mais razoáveis ou mesmo se busca acumular riqueza em papel-moeda, e pelo motivo que lhe vá aprazer, há de valer a manutenção da lógica por trás da regra excepcional da impenhorabilidade, vez que, como se estruturou no pensamento jurídico de tradição romana, ubi eadem ratio, ibi ius (onde há uma mesma razão fundamental, deverá haver a mesma regra). Assim, pontuou o Eg. STJ com felicidade ímpar: 48

Reveste-se, todavia, de impenhorabilidade a quantia de até quarenta salários mínimos poupada, seja ela mantida em papel-moeda; em conta-corrente; aplicada em caderneta de poupança propriamente dita ou em fundo de investimentos, e ressalvado eventual abuso, má-fé, ou fraude, a ser verificado caso a caso, de acordo com as circunstâncias da situação concreta em julgamento (inciso X do art. 649).

Por todo o exposto, podemos concluir que, se não é a conta, o invólucro em que depositado salário que está a se mostrar intangível e inalcançável pela penhora, senão justo os salários (ou seus assemelhados), observando-se a ontologia do que se quer ver preservado e sua ligação com a dignidade do devedor (art. 649, IV do CPC), igualmente se há de considerar não poder ser, desde a compreensão da lógica inerente à própria ratio legis, apenas a caderneta de poupança, que é também mero invólucro, o tipo de investimento possivelmente protegido até o limite de quarenta salários mínimos explicitado pelo legislador (art. 649, X do CPC), mas também todos os demais, sempre ressalvados, como não poderia deixar de ser, eventuais abuso, má fé ou fraude a serem perquiridos caso a caso. Uma notável evolução, diga-se, quer em um ponto (o da menor onerosidade da execução, no sentido de suas possibilidades), quer em outro (da máxima efetividade do processo executivo, buscando a satisfação do credor).

Notas CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Editora Fabris, 1988. 2 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Execução. São Paulo: RT, 2007, p. 271. 3 JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 30. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1999. v. 1. 4 Para interessante e já célebre abordagem acerca do chamado “mínimo existencial”, vide BARCELOS, Ana Paula de. A eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 5 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 22a ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008, vol. 3, p. 305 1

Referências bibliográficas BARCELOS, Ana Paula de. A eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Editora Fabris, 1988. JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 30. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1999. v. 1. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Execução. São Paulo: RT, 2007, p. 271. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 9. ed. São Paulo: RT, 2006. SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 22a ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008, vol. 3.

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A reserva de vagas para negros em concursos públicos e a Lei no 12.990/2014 Helena Medeiros Martins Santos

Advogada

conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. (...) Em síntese, trata-se de políticas e de mecanismos de inclusão concebidas

Foto: Mariana Fróes

A

I – Das ações afirmativas reserva de vagas para negros1 em concursos públicos é tema afeto às chamadas ações afirmativas ou discriminações positivas. De acordo com o art. 1o, parágrafo único, inciso VI, do Estatuto da Igualdade Racial (Lei no 12.288/10), as ações afirmativas são “programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades”. Em sede doutrinária, conforme leciona Flávia Piovesan2, “as ações afirmativas constituem medidas especiais e temporárias que, buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo com o alcance da igualdade substantiva por parte dos grupos socialmente vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais, entre outros grupos”. Em sentido semelhante, nas palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa3, as ações afirmativas podem ser definidas como:

por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito.

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O art. 5o, caput, da Constituição Brasileira de 1988, consagra o princípio da igualdade, estabelecendo serem “todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Duas noções do princípio da igualdade, no entanto, são recorrentes: a de igualdade formal e a de igualdade material. A primeira é a necessidade de proibir ao Estado o tratamento discriminatório, ou seja, de proibir todos os atos administrativos, judiciais ou expedientes normativos do Poder Público que visem à privação do gozo das liberdades públicas fundamentais do indivíduo com base em critérios arbitrários. Na segunda acepção, sustenta-se que, além de não discriminar arbitrariamente, deve o Estado promover a igualdade material de oportunidades por meio de políticas públicas e leis que atentem para as especificidades dos grupos menos favorecidos, compensando, desse modo, as eventuais desigualdades de fato decorrentes do processo histórico e da sedimentação cultural. Nesse contexto, insere-se a adoção por parte do Estado de ações afirmativas em relação aos negros. Como é de conhecimento geral, o reduzido número de negros que exercem cargos ou funções de relevo em nossa sociedade, seja na esfera pública ou privada, resulta da discriminação histórica que as sucessivas gerações de pessoas pertencentes a esse grupo têm sofrido. Os programas de ação afirmativa apresentam-se, portanto, como uma forma de compensar tal discriminação, culturalmente arraigada, não raro, praticada de forma inconsciente. O Supremo Tribunal Federal já analisou em diversas oportunidades a adoção de políticas afirmativas pelo Poder Público, dentre as quais se destaca o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no 186/DF (data de julgamento: 26/4/2012), na qual o Plenário do Tribunal considerou, por unanimidade, constitucional a política de cotas étnico-raciais para seleção de estudantes da Universidade de Brasília (UnB). Em suma, reconheceu o Supremo Tribunal Federal, no referido julgamento, que as cotas raciais constituem forma de aplicação do princípio da igualdade material. De acordo com o voto proferido pelo Ministro Relator Ricardo Lewandowski, o modelo constitucional brasileiro não se mostrou alheio ao princípio da justiça distributiva ou compensatória, porquanto, incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade. A Constituição Brasileira de 1988, com efeito, é repleta de dispositivos que não só possibilitam a adoção de ações afirmativas por parte do Estado, mas que de fato criam verdadeiros mandamentos de sua implementação. 50

Dentre outros dispositivos, destaca-se o próprio preâmbulo do texto constitucional, o qual erige a igualdade e a justiça “como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. Em sentido semelhante, dispõe, também, o art. 3o, da Constituição de 1988: Art. 3o Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; II) garantir o desenvolvimento nacional; III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

A propósito do citado dispositivo constitucional, a doutrina da Ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia4: Verifica-se que todos os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover [contidas no art. 3o da Constituição da República] – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. O que se tem, pois, é que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são definidos em termos de obrigações transformadoras do quadro social e político retratado pelo constituinte quando da elaboração do texto constitucional. E todos os objetivos contidos, especialmente, nos três incisos acima transcritos do art. 3o da Lei Fundamental da República traduzem exatamente mudança para se chegar à igualdade. Em outro dizer, a expressão normativa constitucional significa que a Constituição determina uma mudança do que se tem em termos de condições sociais, políticas, econômicas e regionais exatamente para se alcançar a realização do valor supremo a fundamentar o Estado Democrático de Direito constituído. Ação afirmativa: o conteúdo jurídico do princípio da igualdade.

Cumpre registrar que a partir do ano de 2003, o Governo Federal brasileiro inaugurou uma nova etapa na história das relações raciais no Brasil, mediante a instituição da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR/PR, órgão de assessoramento da Presidência da República, com status de Ministério, responsável pela formulação, coordenação e articulação de políticas e diretrizes para a promoção da igualdade racial e proteção dos direitos dos grupos raciais e étnicos discriminados, com ênfase na população negra. Além disso, nos últimos anos, inúmeras ações afirmativas relativas à população negra foram instituídas pelo Governo Federal, como por exemplo: i) Decreto no 4.886/03 – instituiu a Política Nacional de Promoção da

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Igualdade Racial – PNPIR; ii) Decreto 4.887/03 – definiu procedimentos para a regularização fundiária das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos; iii) Lei no 11.096/05 – instituiu o Programa Universidade Para Todos (PROUNI), com previsão de percentual de bolsas para os autodeclarados negros; iv) Lei no 11.645/08 – incluiu no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”; v) Lei no 12.288/10 – Estatuto da Igualdade Racial; vi) Lei no 12.711/12 e Decreto no 7.824/12 – instituiu e regulamentou, respectivamente, cotas raciais e por renda em universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio; etc. II – Da Lei no 12.990/14 Em prosseguimento a tais políticas afirmativas, foi publicada no Diário Oficial da União, de 10 de junho de 2014, a Lei no 12.990, que institui a reserva de vagas para candidatos negros em concursos públicos federais. Estabelece o artigo 1o, da referida lei, que “ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União”. Conforme se depreende da leitura do dispositivo acima, a reserva de vagas para negros prevista na Lei no 12.990/14 não se aplica indistintamente a todos os entes da Administração Pública. Não se aplica a referida lei, por exemplo, aos concursos públicos estaduais e municipais. Tampouco se aplica a Lei no 12.990/14 aos concursos públicos realizados pelos Poderes Legislativo e Judiciário, vez que quando da tramitação do projeto de lei do qual resultou a Lei no 12.990/14 houve recusa expressa da emenda parlamentar que pretendia estender o alcance da referida lei aos concursos públicos realizados por tais Poderes. Registre-se, a propósito, que, recentemente, o Supremo Tribunal Federal negou seguimento a mandado de segurança em que se pleiteava que o Poder Judiciário completasse – em razão de omissão legislativa – os termos da Lei no 12.990/2014, para determinar a reserva para candidatos negros de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para ingresso nos Poderes Legislativo e Judiciário5. De acordo com o parágrafo 1o, art. 1o, da referida lei, “a reserva de vagas será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas no concurso público for igual ou superior a 3 (três)”. Na hipótese de quantitativo fracionado para o número de vagas reservadas a candidatos negros, estabelece o art. 1o, parágrafo 2o, que esse deverá ser aumentado para o

primeiro número inteiro subsequente, em caso de fração igual ou maior que 0,5 (cinco décimos), ou diminuído para número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5 (cinco décimos). A reserva de vagas a candidatos negros deverá constar, nos termos do disposto no art. 1o, parágrafo 3o, expressamente dos editais dos concursos públicos, que deverão especificar o total de vagas correspondentes à reserva para cada cargo ou emprego público oferecido. Para aqueles cargos/polos em que não haja a previsão inicial de no mínimo três vagas, cumpre atentar, contudo, que a reserva de vagas deverá ser assegurada à medida que novas vagas surjam ao longo do certame, conforme inteligência do art. 4o, da Lei no 12.990/20146. De acordo com o art. 2o, caput, da referida lei, “poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE”. No que se refere especificamente ao “quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE”, destaque-se que não se trata da mesma declaração quanto à cor apontada pelo candidato no último censo do IBGE, vez que nos levantamentos domiciliares, não necessariamente todas as pessoas do domicílio são entrevistadas – algumas por estarem ausentes no momento da visita, outras por incapacidade, etc.. Além disso, observe-se que segundo os princípios normativos estabelecidos pela Lei no 5.534/68 (art. 1o7), as informações prestadas ao IBGE para execução do censo são confidenciais, destinando-se exclusivamente a fins estatísticos, não podendo ser objeto de certidão e nem ter eficácia jurídica como meio de prova. Da leitura do disposto no art. 2o, da Lei no 12.990/14, não se afigura tampouco que a lei tenha conferido ao IBGE a competência para estabelecer critérios para definição das cores e raças existentes, mas sim que a lei tenha se valido apenas da nomenclatura “preto e pardo” adotada pelo IBGE em seu censo. Esclareça-se que desde o censo demográfico de 1991, o IBGE vem investigando a cor ou raça da população brasileira através de um sistema de classificação que utiliza cinco categorias básicas: branca, preta, parda, amarela e indígena. Em censos anteriores tal investigação também era feita, mas com algumas diferenças de categorias ou nomenclaturas. A investigação de cor ou raça feita pelo IBGE em suas pesquisas domiciliares é feita com base nas respostas dos entrevistados à pergunta formulada pelos rescenseadores, isto é, por meio de autodeclaração. Há instrução expressa no sentido de que os rescenseadores devem se limitar a ler as opções de cor ou raça (branca, preta, parda, amarela e

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indígena), não devendo, em momento algum, influenciar a resposta dos entrevistados8. Ainda quanto ao disposto no art. 2o, da Lei no 12.990/14, embora este preveja a autodeclaração como critério para que o candidato concorra às vagas reservadas para negros, o próprio dispositivo abre a possibilidade de se fiscalizar tal declaração, ao estabelecer, em seu parágrafo único, que: At. 2o - (...) Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.

Com efeito, observe-se que ausência de adoção de mecanismos de fiscalização poderia implicar no desvirtuamento da lei, e, por consequência, implicar em burla ao próprio sistema de cotas raciais. A propósito do tema, vale destacar que recentemente houve a instauração de inquérito civil público pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MP-RJ) em face da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) a fim de se apurar suposta fraude no sistema de cotas do vestibular daquela universidade. Um dos principais questionamentos do Ministério Público, de acordo com notícia publicada sobre o tema na revista Veja9, é justamente a ausência de fiscalização por parte da Uerj quanto ao sistema de cotas. Apesar de não ter sido localizado precedente específico relativo à Lei no 12.990/14, cumpre salientar que no voto proferido pelo Ministro Relator Ricardo Lewandoski no julgamento da já citada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no 186/DF, restou expressamente reconhecida a validade da adoção tanto de sistemas de autoidentificação como de heteroidentificação (identificação por terceiros) na identificação do componente étnico-racial pelas Universidades Públicas: Além de examinar a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa, é preciso verificar também se os instrumentos utilizados para a sua efetivação enquadram-se nos ditames da Carta Magna. Em outras palavras, tratando-se da utilização do critério étnico-racial para o ingresso no ensino superior, é preciso analisar ainda se os mecanismos empregados na identificação do componente étnico-racial estão ou não em conformidade com a ordem constitucional. Como se sabe, nesse processo de seleção, as universidades têm utilizado duas formas distintas de identificação, quais sejam: a autoidentificação e a heteroidentificação (identificação por terceiros). 52

(...) Tanto a autoidentificação, quanto a heteroidentificação, ou ambos os sistemas de seleção combinados, desde que observem, o tanto quanto possível, os critérios acima explicitados e jamais deixem de respeitar a dignidade pessoal dos candidatos, são, a meu ver, plenamente aceitáveis do ponto de vista constitucional.” (grifos nossos)

Frise-se que o art. 2o, parágrafo único, da Lei no 12.990/14, supra mencionado, é peremptório ao afirmar que, na hipótese de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso. Em relação ao candidato cuja declaração falsa só seja constatada após sua nomeação ou admissão, vale atentar que a lei expressamente tipifica tal situação como hipótese de nulidade do contrato de trabalho. Nesse caso, contudo, a Lei no 12.990/14 impõe a adoção de procedimento administrativo específico em que seja assegurado ao servidor público ou empregado o direito ao contraditório e à ampla defesa. Em ambas as hipóteses, cumpre atentar que o candidato poderá responder pelo crime de falsidade ideológica, previsto no art. 299, do Código Penal10. Avançando sobre a análise da Lei no 12.990/14, estabelece o art. 3o11 que os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência. De acordo com o texto legal, os candidatos negros aprovados dentro do número de vagas oferecido para ampla concorrência não serão computados para efeito do preenchimento das vagas reservadas. No caso de desistência de candidato negro aprovado em vaga reservada, a vaga será preenchida pelo candidato negro posteriormente classificado. Já na hipótese de não haver número de candidatos negros aprovados suficiente para ocupar as vagas reservadas, as vagas remanescentes serão revertidas para a ampla concorrência e serão preenchidas pelos demais candidatos aprovados, observada a ordem de classificação. Não disciplina tal lei, no entanto, a situação em que o candidato seja concomitantemente negro e pessoa com deficiência. Em não havendo qualquer restrição legal quanto à participação de candidatos negros com deficiência às vagas destinadas a pessoas com deficiência, afigura-se que não cabe às entidades da Administração Pública Federal elencadas no art. 1o, da Lei no 12.990/14 fazê-lo, principalmente diante da sensibilidade dos direitos em foco. Ora, sendo o candidato concomitantemente negro e pessoa com deficiência, não há como compeli-lo a optar

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por apenas uma destas condições, elegendo aquela que lhe é mais cara, mesmo porque a reserva legal de vagas para negros e a reserva legal de vagas para pessoas com deficiência possuem naturezas jurídicas distintas, não se confundindo. Por fim, prevê o art. 6o, da Lei no 12.990/2014, que “esta Lei entra em vigor na data de sua publicação e terá vigência pelo prazo de 10 (dez) anos”. Esclareça-se que, de acordo com o art. 5o, da referida lei, o “órgão responsável pela política de promoção da igualdade étnica de que trata o § 1o do art. 49 da Lei no 12.288, de 20 de julho de 2010, será responsável pelo acompanhamento e avaliação anual do disposto nesta Lei, nos moldes previstos no art. 59 da Lei no 12.288, de 20 de julho de 2010”12. Vale esclarecer, com efeito, que a temporariedade constitui uma das principais características das ações afirmativas, tendendo estas a desaparecerem à medida que as discrepâncias sociais diminuem.

III – Conclusão Em suma, a reserva de vagas para negros em concursos públicos é tema afeto às chamadas ações afirmativas ou discriminações positivas, corolários do princípio da igualdade material. Como é de conhecimento geral, o reduzido número de negros que exercem cargos ou funções de relevo em nossa sociedade, seja na esfera pública ou privada, resulta da discriminação histórica que as sucessivas gerações de pessoas pertencentes a esse grupo têm sofrido, apresentando-se as cotas raciais em alguns concursos públicos federais, instituídas pela Lei no 12.990/14, como forma de compensar tal discriminação. Quanto ao conteúdo da Lei no 12.990/14, remete-se o leitor às considerações tecidas no bojo do presente artigo, principalmente no que se refere à autodeclaração prestada pelos candidatos e a possibilidade de fiscalização de tal declaração por parte das entidades da Administração Pública Federal elencadas no art. 1o da referida lei.

Notas 1 Nos termos do disposto pelo art. 1o, parágrafo único, inciso IV, do Estatuto da Igualdade Racial (Lei no 12.288/10), esclareça-se que a população negra corresponde ao “conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga”. 2 Piovesan, Flávia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos. Faculdade de Direito e Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124,: Políticas Inclusivas e Compensatórias. Fundação Carlos Chagas, em co-edição com a Editora Autores Associados, jan./abr. 2005.) 3 GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 67-69. 4 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Ação Afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de Informação Legislativa, v. 33, n. 131, p. 283-295, jul./set. 1996). 5 MS 33072, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, julgado em 07/08/2014, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-156 DIVULG 13/08/2014 PUBLIC 14/08/2014. 6 “Art. 4o. A nomeação dos candidatos aprovados respeitará os critérios de alternância e proporcionalidade, que consideram a relação entre o número de vagas total e o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros.” 7 “Art. 1o Toda pessoa natural ou jurídica de direito público ou de direito privado que esteja sob a jurisdição da lei brasileira é obrigada a prestar as informações solicitadas pela Fundação IBGE para a execução do Plano Nacional de Estatística. Parágrafo único. As informações prestadas terão caráter sigiloso, serão usadas exclusivamente para fins estatísticos, e não poderão ser objeto de certidão, nem, em hipótese alguma, servirão de prova em processo administrativo, fiscal ou judicial, excetuado, apenas, no que resultar de infração a dispositivos desta lei.” 8 http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf 9 http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/uerj-nada-faz-para-deter-as-fraudes-a-lei-das-cotas 10 “Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular.” 11 “Art. 3o Os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso. § 1o Os candidatos negros aprovados dentro do número de vagas oferecido para ampla concorrência não serão computados para efeito do preenchimento das vagas reservadas. § 2o Em caso de desistência de candidato negro aprovado em vaga reservada, a vaga será preenchida pelo candidato negro posteriormente classificado. § 3o Na hipótese de não haver número de candidatos negros aprovados suficiente para ocupar as vagas reservadas, as vagas remanescentes serão revertidas para a ampla concorrência e serão preenchidas pelos demais candidatos aprovados, observada a ordem de classificação.” 12 “Art. 49. O Poder Executivo federal elaborará plano nacional de promoção da igualdade racial contendo as metas, princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR). § 1o A elaboração, implementação, coordenação, avaliação e acompanhamento da PNPIR, bem como a organização, articulação e coordenação do Sinapir, serão efetivados pelo órgão responsável pela política de promoção da igualdade étnica em âmbito nacional. Art. 59. O Poder Executivo federal criará instrumentos para aferir a eficácia social das medidas previstas nesta Lei e efetuará seu monitoramento constante, com a emissão e a divulgação de relatórios periódicos, inclusive pela rede mundial de computadores.”

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Invista em Itaboraí

A capital dos bons negócios. Distante apenas 39km da capital do Rio de Janeiro, Itaboraí é hoje a grande oportunidade de excelentes negócios para empresas de diversos setores. Sede do Comperj - Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, e com uma Base Industrial e Tecnológica sendo implantada, o município terá em 10 anos, o seu PIB estimado em R$17 bilhões e sua população chegará a 1 milhão de habitantes nesse período. Esses empreendimentos estão atraindo empresas de diversos segmentos, pois hoje com a nova administração municipal, Itaboraí mostra um cenário de progresso e de modernização da cidade. Seu território faz divisa com Tanguá e Maricá, municípios que serão beneficiados pelo Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma via de escoamento que integrará uma importante região do estado que compreende de Itaguaí à Itaboraí, promovendo o desenvolvimento integrado de toda essa região.

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Itaboraí

Conheça Itaboraí, a cidade que será a segunda capital do estado e o melhor lugar para sua empresa.

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A evolução da judicialização no Brasil e o papel dos departamentos jurídicos na sua prevenção Breves considerações Kátia Valverde Junqueira

omo é sabido, existe, atualmente, grande problemática que prejudica a adequada prestação jurisdicional por parte do Poder Judiciário no Brasil, com impactos sobre toda a sociedade. Essa problemática traduz-se no excesso de demandas que abarrotam os tribunais pátrios e prejudicam, mais especialmente, não só às partes, mas, também, a todos os operadores do Direito. A preocupação com essa questão leva-nos a investigar suas causas e a buscar alternativas que permitam atuação preventiva à chegada de demandas ao Judiciário e que tais alternativas não se limitem ao mero incremento da máquina judiciária a reboque da crescente evolução do problema, sob pena de se gerar o caos com um gigantismo não funcional. É certo que, após tantos anos de repressão e autoritarismo, a Constituição Federal de 1988 trouxe ao alcance dos cidadãos brasileiros, muito apropriadamente, uma série de recursos para que esses indivíduos hipossuficientes pudessem fazer valer seus direitos, especialmente no âmbito consumerista. Não obstante, toda essa instrumentalização, muito embora necessária, teve consequência perversa, que foi a colaboração desses instrumentos para um incremento gigantesco e, até então imprevisível, da demanda por jurisdição. Para se ter uma ideia, de forma bastante objetiva, quanto a esse incremento, basta trazer à colação o fato de que, no ano da promulgação da atual Constituição, 56

Foto: Mariana Fróes

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Diretora Jurídica do Grupo Gas Natural Fenosa Brasil

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ou seja, 1988, existiam, aproximadamente, 350 mil ações judiciais em curso no Brasil, enquanto, nos dias atuais, temos, aproximadamente, 100 milhões de ações. Isso representa volume atual cerca de 286 vezes maior que o existente quando promulgada a atual Constituição! Sabe-se também que essa instrumentalização do consumidor / usuário acaba por ser bastante utilizada em razão do inadequado serviço prestado por inúmeras pessoas jurídicas, fornecedoras de bens e serviços, que não zelam pela qualidade em suas atividades na forma como deveriam. Por outro lado, os atuais aproximadamente, 100 milhões de ações correspondem, também aproximadamente, a cerca de 6.060 processos ativos por magistrado, considerando o número total de 16.500 magistrados no Brasil, ou seja, volume insano para qualquer ser humano. Seguramente os processos relacionados a matéria consumerista têm relevante participação nesses números. Isso porque a população foi instrumentalizada para litigar – e, paralelamente, existem motivos para tanto –, sem que houvesse, em contrapartida, a implantação de medidas legais e o planejamento de medidas institucionais que pudessem prevenir e substituir, sempre que possível, o litígio pela solução amigável dos conflitos, hipótese que não geraria prejuízo algum ao princípio constitucional do livre acesso à Justiça, valendo comentar que o novo Código de Processo Civil, recentemente aprovado no Senado, de alguma forma, virá a corrigir essa lacuna, ainda que não completamente. Ao contrário, a ausência dessas medidas, sim, enseja prejuízo ao princípio constitucional do livre acesso à Justiça, considerando-se a incapacidade de se atuar sobre as demandas judicializadas com a rapidez que o objetivo de tal princípio exige, haja vista o volume de ações que são impetradas diuturnamente e que geram, dessa forma, a lentidão da máquina judiciária, com repercussões sobre a celeridade e a qualidade das decisões judiciais e, consequentemente, com prejuízo ao trabalho dos advogados militantes, entre outros problemas não menos importantes. Não obstante a ausência dessa previsão pelo legislador constituinte, vale dizer que a legislação infraconstitucional, no que tange aos advogados, estabeleceu a atuação na prevenção dos litígios como dever ético, previsto no Código de Ética e Disciplina da OAB, a saber: Art. 2o O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce. Parágrafo único. São deveres do advogado: [...] VI – estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios.

Nessa linha, todos os advogados devem atuar de forma a estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios. Portanto, nós advogados devemos fazer desse dever ético oportunidade profissional e campo de trabalho. Não é demais relembrar que o artigo 133 da Constituição Federal prevê que o advogado é indispensável à administração da justiça e a Lei no 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia) dispõe que o advogado exerce função social. No caso dos advogados das grandes corporações, estes podem e devem atuar com o propósito de cumprir com seus deveres éticos, acrescentando-se a isso o respeito devido ao princípio da responsabilidade social corporativa das companhias que representam. É com esse pensamento que a Diretoria Jurídica do Grupo Gás Natural Fenosa no Brasil (que abrange as empresas Companhia Distribuidora de Gás do Rio de Janeiro (CEG), a CEG RIO S.A., entre outras, vem adotando medidas que buscam colaborar com a redução da judicialização e a agilização do andamento dos processos judiciais no estado do Rio de Janeiro. Vale comentar que uma das medidas mais importantes adotadas, com impacto efetivo sobre os processos judiciais em curso no estado do Rio de Janeiro, foi a assinatura de convênios entre as empresas CEG e CEG RIO S.A., com o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), por meio dos quais foi disponibilizado o acesso das bases de dados dos clientes (notadamente endereços) ao TJRJ. Com isso, viabilizou-se maior rapidez e sucesso na localização de partes e a realização de diligências. Tais convênios foram também firmados com o Ministério Público do Rio de Janeiro, Tribunal Regional do Trabalho 1a Região e com a Justiça Federal, Seção Judiciária do Rio de Janeiro. Por outro lado, em 2011, quando de sua primeira participação em mutirões de conciliação, a CEG foi a primeira empresa na história do TJRJ a alcançar o exitoso índice de 100% de acordos nesses eventos e, desde então, continuamos a repetir esse índice em diversos outros mutirões. Além disso, buscamos cotidianamente, estudar e implementar práticas administrativas internas que, de alguma forma, contribuam para a prevenção das demandas das empresas do Grupo, seja na condição de autoras, seja na de rés, buscando, entre outras práticas, acordos em âmbito pré-processual e, até mesmo, utilizando dos serviços do Centro de Conciliação Pré-Processual no estado do Rio de Janeiro. Para 2015, pretendemos implantar importante projeto na linha da prevenção da judicialização e da criação da cultura do uso dos meios alternativos para a solução de conflitos. Bem, mas isso será objeto de um próximo artigo.

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Nossa maior tragédia Educação, o desenvolvimento comprometido José Carlos Prado Peres

M

Economista

uitos falam da questão da educação como nosso maior fator de atraso, mas é a educação brasileira – principalmente a pública – a grande causadora do atraso do País e obstáculo maior de nosso futuro como sociedade e como nação. Sempre falaram que éramos ou seríamos o País do futuro. Esse bonde sempre passa em nosso presente e não permite delinearmos de forma clara o nosso futuro. Pela raiz histórica brasileira, a educação pública sempre foi um processo separado da sociedade. Nossa raiz de formação, desde o início, sempre tirou a escola do alcance da população. Desde a descoberta do Brasil, com a inserção dos jesuítas para catequizar os índios, a educação não foi pensada para a sociedade e sim como instrumento do colonizador. Então, os especialistas e historiadores diagnosticam a nossa educação como sendo sempre elitista e excludente. Mesmo com a chegada da família imperial, em 1808, a prioridade foi fundar escolas que formassem mão de obra para servir a Corte. Alguma preocupação vai existir com a outorga da primeira Constituição – em 1824 – que vai ter uma citação para a educação popular em seu artigo 179, que garante, de forma explícita, o acesso ao ensino primário a toda a população, já fruto do “liberalismo” que era o ideário do Partido Liberal. Já completávamos, nesse período, 300 anos de história. Mas isso pouco significou, pois, na prática, o ensino continuava excludente e pensado somente para as elites. Passamos pelo Império e assim chegamos até o fim da República Velha, em 1930. Com o advento da Revolução de 1930 e o início da industrialização efetiva do Brasil, passamos a ver o quanto a educa58

“O melhor combate que a educação pode travar é contra a pobreza política, no sentido de sedimentar a cidadania crítica e as práticas voltadas para os projetos de desenvolvimento – sejam quais forem – adequados à nossa realidade social e cultural. O maior problema social que ainda se tem de enfrentar é a ignorância, porque esta nega a capacidade de cada um de encontrar soluções.” ção fazia falta, pois a indústria exigia mão de obra qualificada e o Brasil também começava a se urbanizar; as próprias famílias começam a descortinar novos horizontes. A Constituição de 1934 é a primeira a estruturar o ensino no Brasil, fazendo com que o Estado assuma esse controle, tendo como regra a obrigação de proporcionar educação à sociedade. Chegamos aos dias atuais, passando pelo Regime de Exceção de 1964, que focou na tecnicidade do estudo no Brasil e nas primeiras tentativas efetivas de resgate da questão do analfabetismo. Essa chaga ainda atinge quase 14 milhões de brasileiros, ou quase 9% de nossa população maior de 15 anos. Somos o oitavo país com maior número

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Foto: Arquivo pessoal

de analfabetos no mundo, segundo pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). São taxas para nos envergonhar, já que contamos com mais de 500 anos de história e estamos em pleno Século XXI. Na continuação do processo histórico, chegamos à Constituição de 1988, a primeira a universalizar o ensino no Brasil, incluído no Primeiro Plano Nacional de Educação (PNE), em 1999. O PNE já está em sua segunda edição, cuja discussão levou quatro anos no Congresso Nacional. Devemos ressaltar que nosso primeiro plano nacional de educação foi editado em 1999. A partir daí, passamos a ter ações efetivas e metodo­ lógicas para atacar o problema, com a implantação de instrumentos de aferição, tais como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e mais alguns. Mas, também a partir daí, com ênfase nos últimos governos, passamos a ser síndicos de números manipulados conforme o público e o fim. Os números, no entanto, são só representativos; as questões maiores continuam, quais sejam: • Baixa qualidade do ensino; • Infraestrutura deficiente generalizada; • Formação inadequada dos professores; • A dicotomia aluno x estudante;

• A baixa atratividade da nossa escola de ensino básico (os índices de evasão no ensino médio passam de 50%). Enfim, isso é apenas um artigo. Não pretendo elencar todas as raízes históricas, estruturais, políticas e econômicas para explicar nossa questão educacional, já que tenho a intenção de voltar ao assunto, que deve ser prioritário para o Estado e para a sociedade. E isso não é uma questão só de recursos, como apregoam muitos políticos. Agora mesmo, com a promulgação da segunda edição do PNE, foi votado e aprovado pelo Congresso o incremento do financiamento da educação, com o aumento de 7 para 10% do Produto Interno Bruto (PIB), com a entrada dos recursos do pré-sal; mas precisamos aplicar bem esses recursos. Não adianta ter uma montanha de dinheiro e não aplicá-lo adequadamente. Os nossos resultados comprovam isso. Adiante. A relação mais firme entre a educação e o desen­vol­ vimento passa pela questão da qualidade política, ou seja, pela competência humana de se fazer sujeito capaz de escrever sua própria história, sem tutela de qualquer espécie. O melhor combate que a educação pode travar é contra a pobreza política, no sentido de sedimentar a cidadania crítica e as práticas voltadas para os projetos de desenvolvimento − sejam quais forem – adequados à nossa realidade social e cultural. O maior problema social que ainda se tem de enfrentar é a ignorância, porque esta nega a capacidade de cada um de encontrar soluções.

Referências bibliográficas Educação e Desenvolvimento: análise crítica de uma relação quase sempre fantasiosa. Pedro Demo. Disponível em: http://www.senac. br/BTS/251/boltec251b.htm. Educação, base do desenvolvimento. Portal Brasil Escola. Disponível em: http://www.brasilescola.com/geografia/educacao-base-desenvolvimento.htm. A educação e o conhecimento: uma abordagem complexa. Prof. Dr. Roberto Ramos. UFPR. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/er/ n32/n32a07.pdf. Educação e conhecimento. Coluna Sérgio Besserman Vianna, jornal O Globo.

Notas finais Educação: A Presidente da República adotará como lema de seu governo: “Brasil, Pátria Educadora.” Nos resultados do Enem 2014 divulgados pelos INEP/MEC, alguns números chamam a atenção: 529.374 candidatos tiraram zero na redação e apenas 250 conseguiram a nota máxima, o que representa apenas 0,004% do total. Estudo da OCDE aponta que só se reduzem desigualdades e, por conseguinte, se alavanca o desenvolvimento de um país, com políticas efetivas de educação e não apenas com políticas de transferências de renda. Precisamos distribuir ativos que eram, no século XIX, terras, residências e fábricas. Hoje, esse ativo é o conhecimento.

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Da TR como índice de correção monetária na Justiça do Trabalho

Daniel Barbosa Lima Faria Corrêa de Souza

Advogado

O Introdução

Foto: Arquivo pessoal

presente estudo tem por desiderato traçar algumas considerações iniciais sobre a correção monetária, bem como destacar a respeito da decisão do Supremo Tribunal Federal proferida nas ADIs 4.357 e 4.425 e a sua influência (ou não) sobre os rumos da correção monetária no âmbito da Justiça do Trabalho. Tem-se por fito demonstrar que a aludida decisão do Supremo versava sobre precatórios, não tendo qualquer correlação lógica com a sistemática hoje existente na esfera trabalhista. O tema enfrentado possui importante relevo na execução trabalhista, pois já está sendo objeto de debates nos Tribunais Regionais, em especial no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. 1. Breves considerações sobre a correção monetária A correção monetária nem sempre existiu em nosso sistema jurídico, mas exsurgiu da história inflacionária brasileira, em decorrência da desvalorização sistemática da moeda. Para o Ministro Moreira Alves (apud ASSIS, 2011, grifos nossos), a correção monetária é um dos grandes vilões da inflação: Esse foi o grande mal que se fez ao Brasil com a adoção da correção monetária institucionalizada. Criou-se a mentalidade de que onde há inflação não se pode sobreviver sem correção monetária, embora não haja nenhum País do 60

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mundo que tenha adotado essa política. A Alemanha, na segunda década do século, quando a inflação era muito mais grave do que a nossa, não adotou correção monetária institucionalizada, até porque os alemães sabiam que isto é a pior das pragas, pela circunstância de que a correção monetária é fator realimentador da inflação, além de criar estado psicológico favorável a ela, com a falsa sensação de enriquecimento que ela propicia. Para combater a inflação, para se sentir na carne os males da inflação, de imediato, é preciso acabar com a correção monetária. Então combatese a inflação, porque todos sofrem; só não sofre o devedor relapso. A correção monetária é um jeitinho de convivência com a inflação. A desindexação total torna indispensável o efetivo combate à inflação, sem que os menos favorecidos sejam engodados com a ilusão do enriquecimento pelas cadernetas de poupança, nem que o capital seja desviado para a “ciranda financeira”. Ademais, a verdadeira atualização monetária só se faz com um índice que dela mais se aproxime e não, evidentemente, com diversos como tivemos, pois a simples multiplicidade mostra que ou todos são falsos pelos métodos e expurgos que se adotam para chegar a eles, ou só um é que se aproxima da realidade e os demais são elementos de manobra (ADIn 493-0/91, RT 690/187).

Segundo Assis (2011), a correção monetária foi criada para preservar o valor real do crédito. Wald (1959, p. 81) obtempera, verbo ad verbum: Na realidade, nenhuma dessas cláusulas garante, de modo absoluto, o credor contra a desvalorização da dívida. Não é só a moeda nacional que oscila, também pode oscilar o valor do ouro e das moedas estrangeiras. A cláusula de escala móvel, que fixa o quantum da dívida, em relação ao índice de variação do custo de vida ou dos salários ou de algumas mercadorias, atenderia melhor ao anseio de dar certa estabilidade à dívida monetária, de manter o seu poder aquisitivo, ou seja, o seu valor. Como o valor da moeda varia em proporção inversa aos preços, a cláusula de escala móvel, que fizesse variar certa obrigação de acordo com o índice de custo de vida, alcançaria o seu objetivo, que é a estabilidade e a segurança.

A correção monetária restou instituída em nosso país através da Lei Federal no 4.357, de 16 de junho de 1964, ocasião em que foi criada a ORTN (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional). Dias (2000) alude: Nesse quadrante, as construções pretorianas sempre explicitaram que a correção monetária não constitui parcela que se agrega ao principal, mas simples recomposição do valor e poder aquisitivo do mesmo. Trata-se, na verdade, de adequação numérica do valor monetário aviltado pela inflação.

Por conseguinte, a correção monetária surgiu no Brasil em decorrência da inflação, objetivando preservar o poder aquisitivo da moeda. 2. Da adoção da TR como índice de correção monetária pelo CSJT O Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), com o desiderato de pacificar a jurisprudência, unificar procedimentos e proporcionar segurança jurídica, editou a Resolução 08/2005, a qual, em síntese, determina ser a TR (Taxa Referencial) o índice de correção monetária a ser adotado nos processos trabalhistas. Pela Resolução mencionada, foi criada e aprovada a Tabela única para atualização e conversão dos débitos trabalhistas, a ser utilizada em todos os cálculos de débitos trabalhistas no âmbito da Justiça do Trabalho. Essa tabela é atualizada, mensalmente, pela TR. Reza a norma: Art. 1o. É aprovada a Tabela Única para Atualização e Conversão de Débitos Trabalhistas, constante do Anexo I, que será aplicada na elaboração de todos os cálculos de débitos trabalhistas no âmbito da Justiça do Trabalho. § 1o: A Tabela Única será disponibilizada a todos os interessados nos sítios da internet do Conselho Superior da Justiça do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho. 2o. Caberá à Assessoria Econômica do Tribunal Superior do Trabalho: I - promover a atualização da Tabela Única, até o terceiro dia útil de cada mês, de acordo com a variação da TR, ou mediante outro índice por que venha a ser substituída, do dia 1o ao último dia de cada mês; II - incorporar os novos coeficientes de atualização monetária à Tabela Única disponibilizada na forma do § 1o. Art. 2o. É aprovado, integrado pela Tabela Única a que se refere o art. 1o, o Sistema Único de Cálculos da Justiça do Trabalho – SUCJT (versão 2.4), que sera disponibilizado a todos os interessados nos sítios da internet do Conselho Superior da Justiça do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho. Art. 3o. A Tabela Única para Atualização e Conversão de Débitos Trabalhistas vigerá a partir de 1o de novembro de 2005 e sucederá a todas as demais tabelas afins editadas pelos Tribunais Regionais do Trabalho.

Indubitavelmente, a Resolução em testilha recebe amparo no artigo 39 da Lei Federal no 8.177/91 (publicada em 1o de março de 1991), que estabelecia a TRD (Taxa Referencial Diária) como índice de correção monetária dos débitos trabalhistas. A TRD foi substituída pela TR, com supedâneo na Lei Federal no 8.660/93 (publicada em 28 de maio de 1993). A TR é aplicada na Tabela de Fatores de Atualização e Conversão de Débitos Trabalhistas (FACDT), a qual

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se constitui em lista de atualização diária dos débitos trabalhistas. Outrossim, consoante dispôs o Ministério Público Federal no parecer de lavra do eminente Procurador da República Dr. André Pimentel Filho: Declarar o direito à determinada correção monetária, como cláusula ínsita ao direito de propriedade, e assim incentivar a indexação de preços, é abrir espaço para a insegurança jurídica e para a desvalorização disfuncional da moeda. Deveria o Poder Judiciário reconhecer que o assunto é intrinsecamente complexo, naturalmente da esfera de especialistas, deixando para o legislador a tarefa de dispor sobre os índices, prima facie válidos desde que não patente abuso consistente na expropriação de valores ou no desrespeito a direitos adquiridos. Afora essas hipóteses, em que seria cabível intervenção jurisdictional para a preservação de axiomas constitucionais, ao legislador deveria ser facultado, livremente, a escolha de índice de atualização da moeda, mesmo porque não é raro em determinadas situações, para o bem comum da economia, a imposição de medidas de restrição de liquidez (e de redução dos níveis de indexação), para salvaguardar a moeda. A primeira dificuldade do Judiciário se arvorar em definidor do melhor índice de correção monetária é a própria e imanente intangibilidade de seu conceito e congêneres, como as distintas espécies de juros. Os indices de inflação são sempre imperfeitos, relativos, na medida em que são uma média, tendo cada qual uma metodologia. Gandra Martins, falando sobre as diferenças entre juros e correção monetária, reconhece que “não há conceito definitivo e absoluto na doutrina sobre juros, visto que o nominalismo da moeda, cujo empréstimo é remunerado por juros, pode ser atingido por variados fatores”, e que “não há forma fiel e absoluta para se medir a inflação, de tal maneira que são inúmeros os indexadores capazes de, setorialmente, apresentar soluções parciais, convivendo o País com inúmeros indexadores relativos, como o IPC, INVV, INPC, OTN, FGV, URP etc.” (parecer prolatado em 07/02/2014, nos autos da ação coletiva no 2013.50.01.107229-7, que tramita perante a 4a Vara Federal de Vitória, grifos nossos).

Dessa feita, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho, objetivando segurança jurídica, pacificação social e decisões equânimes para os jurisdicionados, pacificou o tema da correção monetária na esfera trabalhista. Não obstante, tal decisão vem sendo infundadamente questionada, em razão da decisão proferida nas ADIs 4.357 e 4.425. 3. Da inaplicabilidade da decisão do STF ao processo do trabalho Em julgamento conjunto das ADIs 4.357, 4.372, 4.400 e 4.425, no Supremo Tribunal Federal, os Ministros 62

declararam, em 2013, a parcial procedência das ações, julgando inconstitucional o regime de compensação de precatórios da forma prevista na Emenda Constitucional 62/2009 e determinando, quanto aos precatórios de natureza tributária, que fossem “aplicados os mesmos juros de mora incidentes sobre todo e qualquer crédito tributário”. Sem dúvida, a decisão proferida não guarda qualquer relação lógica ou fático-jurídica com o processo do trabalho, pois trata de direito tributário. Efetivamente, ficou assentada, no acórdão, a inaplicabilidade da TR apenas no tocante à compensação tributária através dos precatórios. Ademais, a decisão do STF objetivou acabar com a distorção que estava ocorrendo. Enquanto credor, os créditos da Fazenda Pública estavam sendo corrigidos pela SELIC e, enquanto devedor, as dívidas da Fazenda eram corrigidas pela TR. Ineludivelmente, havia grande distorção nesse critério, havendo quebra do princípio da isonomia e do igual tratamento entre as partes. Assim, com razão o Pretório Excelso. E importa destacar que a TR e a SELIC são instrumentos bem distintos; enquanto o primeiro é um índice de correção monetária, o segundo é um índice híbrido, que abarca correção monetária e também juros. O que se percebe, diante desses fatos, são situações jurídicas distintas as tratadas na decisão do Supremo e a correção dos débitos trabalhistas. E, como bem asseverou a advogada Bianca Zoehler Baumgart Crestani nas razões de recurso de revista apresentadas na RT 012400013.2008.5.04.0016, em 14 de julho de 2014: Verifica-se que as pretensões abarcadas pela Resolução fustigada não se tratam [sic] de uma relação jurídicotributária como no precedente da Corte ventilado. O discrímen fundamental e motivador da decisão do STF é que o crédito de precatórios poderá ser utilizado como instrumento de compensação de dívidas tributárias, cujos índices de correção monetária alcançam patamares manifestamente superiores aos de correção dos precatórios. Tal fato importava na quebra da isonomia entre o credor e o devedor, repita-se, para fins de compensação, mote da decisão do Supremo.

O grande erro da aplicação destemperada dessa decisão do STF aos demais casos decorre da aplicação de situação sui generis do regime de compensação de precatórios ao regime distinto e próprio da Justiça do Trabalho. Gize-se: a decisão do STF não revogou, não declarou a ilegalidade nem a inconstitucionalidade da TR, apenas a sua não aplicação a um caso peculiar, em que dois sistemas distintos de correção de valor de débito eram utilizados. Assim, incorre em grave errodizer que a TR foi afastada do ordenamento jurídico.

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Transcreve-se parte do voto do Relator Ayres Britto1 na ADI 4.425 (p. 19): 14. Prossigo neste voto para assentar, agora, a inconstitucionalidade parcial do atual § 12 do art. 100 da Constituição da República. Dispositivo assim vernacularmente posto pela Emenda Constitucional no 62/2009: “§ 12. A partir da promulgação desta Emenda Constitucional, a atualização de valores de requisitórios, após sua expedição, até o efetivo pagamento, independentemente de sua natureza, será feita pelo índice official de remuneração básica da caderneta de poupança, e, para fins de compensação da mora, incidirão juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança, ficando excluída a incidência de juros compensatórios.” (Grifou-se) [...] 16. Observa-se, então, que, em princípio, o novo § 12 do art. 100 da Constituição Federal retratou a jurisprudência consolidada desta nossa Corte, ao deixar mais clara: a) a exigência da “atualização de valores de requisitórios, após sua expedição [e] até o efetivo pagamento”; b) a incidência de juros simples “para fins de compensação da mora”; c) a não incidência de juros compensatórios (parte final do § 12 do art. 100 da CF). Mas o fato é que o dispositivo em exame foi além: fixou, desde logo, como referência para correção monetária, o índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança, bem como, “para fins de compensação de mora”, o mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança. E contra esse plus normativo é que se insurge a requerente.

Considerando a importância e relevância da decisão da ADI 4.425 para o estudo do tema proposto, passa-se a transcrever o inteiro teor da ementa: Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL. REGIME DE EXECUÇÃO DA FAZENDA PÚBLICA MEDIANTE PRECATÓRIO. EMENDA CONSTITUCIONAL No 62/2009. [...] INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL NÃO CONFIGURADA. INEXISTÊNCIA DE INTERSTÍCIO CONSTITUCIONAL MÍNIMO ENTRE OS DOIS TURNOS DE VOTAÇÃO DE EMENDAS À LEI MAIOR (CF, ART. 60, §2o). CONSTITUCIONALIDADE DA SISTEMÁTICA DE “SUPERPREFERÊNCIA” A CREDORES DE VERBAS ALIMENTÍCIAS QUANDO IDOSOS OU PORTADORES DE DOENÇA GRAVE. RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E À PROPORCIONALIDADE. INVALIDADE JURÍDICOCONSTITUCIONAL DA LIMITAÇÃO DA PREFERÊNCIA A IDOSOS QUE COMPLETEM 60 (SESSENTA) ANOS ATÉ A EXPEDIÇÃO DO PRECATÓRIO. DISCRIMINAÇÃO ARBITRÁRIA E VIOLAÇÃO À ISONOMIA (CF, ART. 5o, CAPUT). INCONSTITUCIO-

NALIDADE DA SISTEMÁTICA DE COMPENSAÇÃO DE DÉBITOS INSCRITOS EM PRECATÓRIOS EM PROVEITO EXCLUSIVO DA FAZENDA PÚBLICA. EMBARAÇO À EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO (CF, ART. 5o, XXXV), DESRESPEITO À COISA JULGADA MATERIAL (CF, ART. 5o XXXVI), OFENSA À SEPARAÇÃO DOS PODERES (CF, ART. 2o) E ULTRAJE À ISONOMIA ENTRE O ESTADO E O PARTICULAR (CF, ART. 1o, CAPUT, C/C ART. 5o, CAPUT). IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DO ÍNDICE DE REMUNERAÇÃO DA CADERNETA DE POUPANÇA COMO CRITÉRIO DE CORREÇÃO MONETÁRIA. VIOLAÇÃO AO DIREITO FUNDAMENTAL DE PROPRIEDADE (CF, ART. 5o, XXII). INADEQUAÇÃO MANIFESTA ENTRE MEIOS E FINS. INCONSTITUCIONALIDADE DA UTILIZAÇÃO DO RENDIMENTO DA CADERNETA DE POUPANÇA COMO ÍNDICE DEFINIDOR DOS JUROS MORATÓRIOS DOS CRÉ- DITOS INSCRITOS EM PRECATÓRIOS, QUANDO ORIUNDOS DE RELAÇÕES JURÍDICO-TRIBUTÁRIAS. DISCRIMINAÇÃO ARBITRÁRIA E VIOLAÇÃO À ISONOMIA ENTRE DEVEDOR PÚBLICO E DEVEDOR PRIVADO (CF, ART. 5o, CAPUT). INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME ESPECIAL DE PAGAMENTO. OFENSA À CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DO ESTADO DE DIREITO (CF, ART. 1o, CAPUT), AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES (CF, ART. 2o), AO POSTULADO DA ISONOMIA (CF, ART. 5o, CAPUT), À GARANTIA DO ACESSO À JUSTIÇA E A EFETIVIDADE DA TUTELA JURISDICIONAL (CF, ART. 5o, XXXV) E AO DIREITO ADQUIRIDO E À COISA JULGADA (CF, ART. 5o, XXXVI). PEDIDO JULGADO PROCEDENTE EM PARTE. 1. A Constituição Federal de 1988 não fixou um intervalo temporal mínimo entre os dois turnos de votação para fins de aprovação de emendas à Constituição (CF, art. 62, §2o), de sorte que inexiste parâmetro objetivo que oriente o exame judicial do grau de solidez da vontade política de reformar a Lei Maior. A interferência judicial no âmago do processo político, verdadeiro locus da atuação típica dos agentes do Poder Legislativo, tem de gozar de lastro forte e categórico no que prevê o texto da Constituição Federal. Inexistência de ofensa formal à Constituição brasileira. 2. O pagamento prioritário, até certo limite, de precatórios devidos a titulares idosos ou que sejam portadores de doença grave promove, com razoabilidade, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1o, III) e a proporcionalidade (CF, art. 5o, LIV), situando-se dentro da margem de conformação do legislador constituinte para operacionalização da novel preferência subjetiva criada pela Emenda Constitucional no 62/2009. 3. A expressão “na data de expedição do precatório”, contida no art. 100, §2o, da CF, com redação dada pela EC no 62/09, enquanto baliza temporal para a

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aplicação da preferência no pagamento de idosos, ultraja a isonomia (CF, art. 5o, caput) entre os cidadãos credores da Fazenda Pública, na medida em que discrimina, sem qualquer fundamento, aqueles que venham a alcançar a idade de sessenta anos não na data da expedição do precatório, mas sim posteriormente, enquanto pendente este e ainda não ocorrido o pagamento. 4. O regime de compensação dos débitos da Fazenda Pública inscritos em precatórios, previsto nos §§ 9o e 10 do art. 100 da Constituição Federal, incluídos pela EC no 62/09, embaraça a efetividade da jurisdição (CF, art. 5o, XXXV), desrespeita a coisa julgada material (CF, art. 5o, XXXVI), vulnera a Separação dos Poderes (CF, art. 2o) e ofende a isonomia entre o Poder Público e o particular (CF, art. 5o, caput), cânone essencial do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1o, caput). 5. A atualização monetária dos débitos fazendários inscritos em precatórios segundo o índice oficial de remuneração da caderneta de poupança viola o direito fundamental de propriedade (CF, art. 5o, XXII) na medida em que é manifestamente incapaz de preservar o valor real do crédito de que é titular o cidadão. A inflação, fenômeno tipicamente econômico-monetário, mostra- se insuscetível de capta-

ção apriorística (ex ante), de modo que o meio escolhido pelo legislador constituinte (remuneração da caderneta de poupança) é inidôneo a promover o fim a que se destina (traduzir a inflação do período). 6. A quantificação dos juros moratórios relativos a débitos fazendários inscritos em precatórios segundo o índice de remuneração da caderneta de poupança vulnera o princípio constitucional da isonomia (CF, art. 5o, caput) ao incidir sobre débitos estatais de natureza tributária, pela discriminação em detrimento da parte processual privada que, salvo expressa determinação em contrário, responde pelos juros da mora tributária à taxa de 1% ao mês em favor do Estado (ex vi do art. 161, §1o, CTN). Declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução da expressão “independentemente de sua natureza”, contida no art. 100, §12, da CF, incluído pela EC no 62/09, para determinar que, quanto aos precatórios de natureza tributária, sejam aplicados os mesmos juros de mora incidentes sobre todo e qualquer crédito tributário. 7. O art. 1o-F da Lei no 9.494/97, com redação dada pela Lei no 11.960/09, ao reproduzir as regras da EC no 62/09 quanto à atualização monetária e à fixação de juros moratórios de créditos inscritos em prec-

Foto: Depositphotos

Ineludivelmente, a aplicação de outro índice de correção monetária que não a TR malfere o disposto nas Leis 8.177/91 e 8.660/ 93, as quais dão ampla legitimidade à Resolução 8/2005, do Conselho Superior da Justiça do Trabalho.

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atórios, incorre nos mesmos vícios de juridicidade que inquinam o art. 100, §12, da CF, razão pela qual se revela inconstitucional por arrastamento, na mesma extensão dos itens 5 e 6 supra. 8. O regime “especial” de pagamento de precatórios para Estados e Municípios criado pela EC no 62/09, ao veicular nova moratória na quitação dos débitos judiciais da Fazenda Pública e ao impor o contingenciamento de recursos para esse fim, viola a cláusula constitucional do Estado de Direito (CF, art. 1o, caput), o princípio da Separação de Poderes (CF, art. 2o), o postulado da isonomia (CF, art. 5o), a garantia do acesso à justiça e a efetividade da tutela jurisdicional (CF, art. 5o, XXXV), o direito adquirido e à coisa julgada (CF, art. 5o, XXXVI). 9. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente em parte.

De outra banda, impende destacar que o próprio STF, no Recurso Extraordinário no 226.855, já se manifestara pela legalidade da TR como índice de correção monetária no regime do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), como se verifica na decisão abaixo: EMENTA: Fundo de Garantia por [sic] Tempo de Serviço - FGTS. Natureza jurídica e direito adquirido. Correções monetárias decorrentes dos planos econômicos conhecidos pela denominação Bresser, Verão, Collor I (no concernente aos meses de abril e de maio de 1990) e Collor II. - O Fundo de Garantia por [sic] Tempo de Serviço (FGTS), ao contrário do que sucede com as cadernetas de poupança, não tem natureza contratual, mas, sim, estatutária, por decorrer da Lei e por ela ser disciplinado. - Assim, é de aplicar-se a ele a firme jurisprudência desta Corte no sentido de que não há direito adquirido a regime jurídico. - Quanto à atualização dos saldos do FGTS relativos aos Planos Verão e Collor I (este no que diz respeito ao mês de abril de 1990), não há questão de direito adquirido a ser examinada, situando-se a matéria exclusivamente no terreno legal infraconstitucional. - No tocante, porém, aos Planos Bresser, Collor I (quanto ao mês de maio de 1990) e Collor II, em que a decisão recorrida se fundou na existência de direito adquirido aos índices de correção que mandou observar, é de aplicar-se o princípio de que não há direito adquirido a regime jurídico. Recurso extraordinário conhecido em parte, e nela provido, para afastar da condenação as atualizações dos saldos do FGTS no tocante aos Planos Bresser, Collor I (apenas quanto à atualização no mês de maio de 1990) e Collor II.

A Súmula 459 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por analogia, afiança a legalidade da TR como índice de correção monetária: SÚMULA 459/STJ - A Taxa Referencial (TR) é o índice aplicável, a título de correção monetária, aos débitos com

o FGTS recolhidos pelo empregador mas não repassados ao fundo.

Nessa seara argumentativa, podemos mencionar informação contida no sítio eletrônico do Tribunal Superior do Trabalho – TST (http://www.tst.jus.br/web/guest/tabela-unica-debitos-trabalhistas): A atualização de débitos trabalhistas é definida no art. 39 da lei 8.177/91, que não sofreu alteração com a lei 12.703/12: tal lei modificou os parâmetros para cálculo dos rendimentos da caderneta de poupança, mas não alterou a TR, índice-base para atualização monetária.

De outra banda, impende destacar a OJ 300 do SDI-1 do TST: OJ-SDI1-300 EXECUÇÃO TRABALHISTA. CORREÇÃO MONETÁRIA. JUROS. LEI No 8.177/91, ART. 39, E LEI No 10.192/01, ART. 15 (nova redação) - DJ 20.04.2005. Não viola norma constitucional (art. 5°, II e XXXVI) a determinação de aplicação da TRD, como fator de correção monetária dos débitos trabalhistas, cumulada com juros de mora, previstos no artigo 39 da Lei no 8.177/91 e convalidados pelo artigo 15 da Lei no 10.192/01.

De clareza solar, não houve revogação nem cancelamento da TR como índice oficial de correção monetária. Deixar, pois, de aplicar a taxa em apreço se configura em incorreção e ilegalidade, consoante se exporá na seção seguinte. 4. Da violação ao princípio da legalidade Ineludivelmente, a aplicação de outro índice de correção monetária que não a TR malfere o disposto nas Leis 8.177/91 e 8.660/ 93, as quais dão ampla legitimidade à Resolução 8/2005, do Conselho Superior da Justiça do Trabalho. Assim, as decisões que não aplicam a TR ferem o princípio da legalidade, insculpido no artigo 5o, inciso II, da Constituição da República, in verbis: “II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Da alínea pétrea da Constituição, observamos ser a lei a criadora de obrigações, deveres e vedações, aos quais os indivíduos ficam adstritos. No caso, é direito do devedor efetuar o pagamento de seus débitos com a observância dos índices corretivos previstos em lei; especificamente, nas Leis 8.177/91 e 8.660/93. Alguns reclamantes sustentam a adoção do INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) ou do IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) em substituição à TR. O Tribunal Regional 4a Região, através da Orientação Jurisprudencial no 49, adotou tese mista, isto é, TR até a data da decisão da ADI mencionada e, após, INPC, in verbis:2

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ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA DOS DÉBITOS TRABALHISTAS. A partir de 14 de março de 2013, o índice a ser utilizado para atualização monetária dos débitos trabalhistas deve ser o INPC, diante da declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, na ADI 4357, do uso da TR como fator de atualização monetária.

Para Aristóteles: “A paixão perverte os magistrados e os melhores homens: a inteligência sem paixão, eis a lei”. Assim, na lição do filósofo, a norma (in casu, a Resolução 08/2005) é a inteligência sem paixão, devendo, pois, ser respeitada, sob pena de arbítrio. 5. Da violação ao princípio da segurança jurídica O uso de outro índice de correção monetária que não a TR quebra o princípio da segurança jurídica e o da uniformização procedimental almejada pela Resolução 08/2005 do CSJT. Do princípio da segurança jurídica decorrem os mais basilares princípios de Justiça. Observa Chacon (2003): “Tal princípio é composto por diversos institutos, tais como respeito aos direitos adquiridos, o devido processo legal, irretroatividade da lei, entre outros”. Citando Miguel Reale, Chacon (2003) anota que o princípio da segurança jurídica decorre da ideia de ordem e da obrigatoriedade de vigência do direito: A segurança jurídica depende da aplicação, ou melhor, da obrigatoriedade do Direito. Miguel Reale, discorrendo acerca da obrigatoriedade ou a [sic] vigência do Direito, afirma que a idéia de justiça liga-se intimamente à idéia de ordem. No próprio conceito de justiça é inerente uma ordem, que não pode deixar de ser reconhecida como valor mais urgente, o que está na raiz da escala axiológica, mas é degrau indispensável a qualquer aperfeiçoamento ético.

O autor aponta os elementos asseguradores da aplicação da segurança jurídica: Acerca dos elementos que dão efetividade ao princípio, temos que a segurança jurídica é assegurada pelos princípios seguintes: irretroatividade da lei, coisa julgada, respeito aos direitos adquiridos, respeito ao ato jurídico perfeito, outorga de ampla defesa e contraditório aos acusados em geral, ficção do conhecimento obrigatório da lei, prévia lei para a configuração de crimes e transgressões e cominação de penas, declarações de direitos e garantias individuais, justiça social, devido processo legal, independência do Poder Judiciário, vedação de tribunais de exceção, vedação de julgamentos parciais, etc (CHACON, 2003).

Conclusão A utilização da TR como índice de correção monetária recebe respaldo na Resolução 08/2005 do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, bem como no artigo 39 da Lei Federal no 8.177/91. Gize-se: a decisão do STF não revogou, não declarou a ilegalidade nem a inconstitucionalidade da TR, apenas a sua não aplicação a um caso peculiar. A aplicação de outro índice de correção monetária que não a TR malfere o disposto nas Leis 8.177/91 e 8.660/93, as quais dão ampla legitimidade à Resolução 8/2005, do Conselho Superior da Justiça do Trabalho. É direito do devedor efetuar o pagamento de seus débitos com a observância dos índices corretivos previstos em lei; no caso, as Leis 8.177/91 e 8.660/93.

Referências bibliográficas ASSIS, Jose Eduardo Ribeiro de. A inflação, a correção monetária e o Código Civil. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 89, jun 2011. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/ site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9744&revista_ caderno=7>. Acesso em: set2014. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4.425, Plenário. Requerente: Confederação Nacional da Indústria (CNI). Ministro Relator para acórdão: Luiz Fux. Brasília. Data do julgado: 14 mar. 2013. Data da publicação: 19 dez. 2013. Disponível em:<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciavisualizarEmenta.asp?s1=000223827&base=baseAcordaos>. Acesso em: 11 set. 2014. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário no 226.855, Plenário. Recorrente: Caixa Econômica Federal. Recorridos: Ademar Gomes Mora e outros. Ministro Relator: Moreira Alves. Brasília. Data do julgado: 31 ago. 2000. Data da publicação: 13 out. 2000. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000099203&base=baseAcor daos>. Acesso em: 12 set. 2014. CHACON, Paulo Eduardo de Figueiredo. O princípio da segurança jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 118, 30 out. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4318>. Acesso em: 17 jul. 2014. DIAS, Luiz Claudio Portinho.Correção monetária dos créditos trabalhistas em liquidação de sentença. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 38, 1 jan. 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/1262>. Acesso em: 6 set. 2014. WALD, Arnold. A cláusula de escala móvel. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito, 1959.

Notas Foi Relator do Acórdão. Aposentou-se em 17/11/2012, antes do término do julgamento. 2 A Orientação Jurisprudencial no 49 do TRT4 foi editada pela Resolução no 06/2014 do Tribunal Regional do Trabalho da 4a Região (disponibilizada no DEJT dias 5, 6 e 9/6/2014, considerada publicada nos dias 6, 9 e 10/6/2014). 1

Por conseguinte, a não utilização da Taxa Referencial malfere os princípios basilares da Resolução 08/2005 do CSJT: uniformização procedimental e segurança jurídica, além de afronta à legalidade, conforme alhures destacado. 66

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