Revista Justiça & Cidadania

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EDIÇÃO 102 • JANEIRO de 2009

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26 prazo nas

O Uso de algemas e a dignidade da pessoa humana

concessões e permissões

Foto de capa: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID SANTOS SALLES Diretor jurídico ERIkA BRANCO SECRETÁRIA DE REDAÇÃO DIOGO TOMAZ ROBERTO MONICO DIAGRAMAÇÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI RIO DE JANEIRO - RJ - CEP: 20020-906 TEL./FAX (21) 2240-0429 SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765 / 13°ANDAR SÃO PAULO - SP - CEP: 01311-200 TEL. (11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO, 1038 / SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO - Porto Alegre - RS CEP: 90010-272 TEL. (51) 3211-5344 SALVADOR FREDERICO DINIZ GONÇALVES RUA BARÃO DE ITAPUÃ, 60 / CONJ. 301 CENTRO EMPRESARIAL PORTO CENTER Salvador - BA - CEP: 40140-060 TEL. (71) 3264-3754 BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 – Bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK BRASÍLIA - DF - CEP: 70711-903 TEl. (61) 3327-1228/29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL. (61) 9674-7569

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Constituição, magistratura e vontade popular

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A verdade sobre a expulsão de olga benário

42 SUMÁRIO

CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima arnaldo Lopes süssekind aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau Fábio de salles meirelles fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman Joaquim Alves Brito josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho

ESPERANÇAS & RESPONSABILIDADES

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tarso genro o ministro da cidadania

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Amargas contradições na aplicação das leis

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Exclusão do Sócio nas Sociedades Simples e nas Limitadas

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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E DE GÊNERO

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RELATIVIDADE DA IMUNIDADE DO ADVOGADO NO DESEMPENHO DE SUAS FUNÇÕES

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Varas Trabalhistas de Fazenda Pública: Mais um desafio para a “nova” Justiça do Trabalho

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CINGAPURA – PARAÍSO FISCAL X MODERNIDADE E EFICIÊNCIA

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Supremo deu efetividade ao Mandado de Injunção

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O presidente não lê

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ADOÇÃO POR CASAL HOMOSSEXUAL

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ASSINE (21) 2240-0429 assinatura@revistajc.com.br 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 3


O

mundo está em alvíssaras com o renascer de esperanças de paz, representado pelo discurso de Barack Hussein Obama ao tomar posse da presidência dos Estados Unidos da América; mas está também consciente da responsabilidade que afeta toda a humanidade. Os horrores precipitados com o terrorismo de 11 de setembro em Nova York, a guerra do Iraque, os horrorosos bombardeios ocorridos na Faixa de Gaza, criando para os palestinos um novo e desumano holocausto, a fome interrompendo a vida de milhões e milhões de homens, mulheres e crianças por esse mundo afora traduzem a expectativa representada por novos líderes que surgem no mundo globalizado. O vibrante e incisivo pronunciamento do presidente americano reflete o ânimo e a confiança do condutor da maior e mais poderosa nação do mundo, na reversão da difícil situação econômica, financeira e política que os Estados Unidos atravessam, com a confiança afirmativa de quem acredita na ação audaciosa e rápida, como diz e promete. O discurso de Barack Obama é primoroso e extremamente objetivo: tem como lema e finalidade a paz no mundo e o término das guerras geradas na rede de violências e ódio, a recuperação da economia gravemente enfraquecida, consequência da cobiça e irresponsabilidade de alguns, o encontro do emprego e do trabalho, a restauração da ciência a seu lugar de direito e o emprego das maravilhas da tecnologia para elevar e melhorar as condições de vida na América e proporcionar ajuda para toda a humanidade. As afirmativas enérgicas de Barack Obama demonstram o seu propósito, que, desde os discursos da campanha eleitoral, despertou no mundo a onda de confiança e esperança, reiteradas no discurso de maior audiência pronunciado no mundo. Dentre as suas oportunas e candentes orações, ele disse: “O estado de economia exige uma ação firme e audaciosa e nós vamos agir. Continuamos a ser um país jovem, mas, 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009

EDITORIAL

Foto: Sandra Fado

ESPERANÇAS & RESPONSABILIDADES

nas palavras da Bíblia, é chegada a hora de deixar de lado as coisas infantis. É chegada a hora de reafirmar o nosso espírito duradouro, de escolher nossa história melhor: de levar adiante aquela dádiva preciosa, aquela idéia nobre que vem sendo transmitida de geração em geração: a promessa dada por Deus de que todos são iguais, todos são livres, e todos merecem a oportunidade de lutar por sua plena medida de felicidade. Começando hoje, precisamos nos reerguer, esfregar nossas mãos e começar novamente o trabalho de refazer a América. Vamos construir estradas e pontes, as grandes elétricas e as redes digitais que alimentam nosso comércio e nos unem. Vamos restaurar a ciência a seu lugar de direito e empregar as maravilhas da tecnologia para elevar a qualidade da saúde e reduzir seus custos. Vamos atrelar o sol, os ventos e o solo para proverem combustível para nossos carros e nossas fábricas. E vamos transformar nossas escolas, nossas faculdades e universidades, para que façam frente às demandas de uma nova era. Tudo isto nós podemos fazer. E isto tudo nós vamos fazer. Os fundadores do nosso país, confrontados com perigos que mal conseguimos imaginar, redigiram uma carta para assegurar o respeito pelas leis e os direitos do homem, carta essa ampliada pelo sangue de gerações. Esses ideais ainda iluminam o mundo, e não abriremos mão deles em nome da conveniência. E assim, diremos a todos os povos e governos que nos estão assistindo hoje, desde as capitais mais grandiosas até o pequeno povoado em que meu pai nasceu: saibam que a América é amiga de cada país e de cada homem, mulher e criança que busca um futuro de paz e de dignidade; e saibam que estamos preparados para liderar novamente. Somos uma nação de cristãos e muçulmanos, de judeus e hindus – e de não-crentes. Somos moldados por todas as línguas e culturas, vindas de todos os cantos da Terra, e, porque já sentimos o sabor amargo da guerra civil e da segregação e emergimos desse capítulo sombrio mais fortes e


mais unidos, não podemos deixar de acreditar que os velhos rancores algum dia passarão, que as divisões entre tribos se dissolverão, e que, à medida que o mundo se torna menor, nossa humanidade comum se revelará, e que a América terá de exercer seu papel em saudar a chegada de uma nova era de paz. Somos os guardiões deste legado. Guiados novamente por esses princípios, poderemos fazer frente às novas ameaças que demandam esforço ainda maior, cooperação e entendimento ainda maiores entre nações. Começaremos a entregar o Iraque de modo responsável aos cuidados do seu povo e a forjar uma paz conquistada a duras penas no Afeganistão. Com velhos aliados e inimigos anteriores, trabalharemos incansavelmente para reduzir a ameaça nuclear e para afastar o fantasma de um planeta em processo de aquecimento. Não vamos pedir desculpas por nosso meio de vida, nem hesitaremos em sua defesa, e, àqueles que buscam promover seus objetivos, induzindo ao terror e massacrando inocentes, afirmamos neste momento que nosso espírito é mais forte e não pode ser derrotado; que esses não podem resistir mais do que nós, e que nós os derrotaremos. Aqueles que se agarram ao poder através da corrupção, do logro e do silenciamento da dissensão, saibam que estão do lado errado da história – mas que estamos dispostos a lhes estender uma mão, se vocês se dispuserem a abrir seus punhos. Estamos em meio a uma crise já amplamente compre­ endida. Nossa nação se encontra em guerra contra uma rede de violência e ódio de grande extensão. Nossa economia está gravemente enfraquecida, consequência da cobiça e irresponsabilidade de alguns, mas também de nosso fracasso coletivo em fazer escolhas difíceis e preparar o país para uma nova era. Residências foram perdidas, empregos desapareceram, empresas foram fechadas. Nosso sistema de saúde é oneroso demais, e a cada dia traz mais evidências de que a maneira que utilizamos a energia elétrica fortalece nossos adversários e põe em risco nosso planeta. Esta é a jornada que levamos adiante hoje. Continuamos a ser o país mais próspero e poderoso da Terra. Nossos trabalhadores não são menos produtivos hoje do que eram quando esta crise começou. Nossas mentes não são menos criativas, nosso bens e serviços não são menos necessários do que eram na semana passada, no mês passado ou no ano passado. Nossos desafios podem ser novos. Os instrumentos com os quais os enfrentamos podem ser novos. Mas os valores dos quais depende nosso êxito, o trabalho duro e a honestidade, a coragem e o fair play, a tolerância e a curiosidade, a lealdade e o patriotismo – essas coisas são antigas. Essas coisas são verdadeiras. Elas têm sido a força tranquila do progresso ao longo da nossa história. O que se exige de nós agora é uma nova era de responsabilidade, o reconhecimento, de parte de cada americano, que temos deveres para conosco, para com nosso país e para com o mundo, deveres que não aceitamos a contragosto, mas que agarramos com alegria,

firmes na consciência de que não existe nada que não seja tão satisfatório ao espírito, que tanto defina nosso caráter, quanto darmos tudo de nós mesmos para levar adiante uma tarefa difícil. Esse é o preço e a promessa da cidadania. Essa é a fonte da nossa confiança: a consciência de que Deus nos convoca para moldarmos um destino incerto. Este é o significado de nossa liberdade e de nosso credo – e é por isso que homens, mulheres e crianças de todas as raças e todas as fés podem unir-se em celebração neste espaço magnífico e porque um homem cujo pai, menos de 60 nos atrás, talvez não tivesse sido servido num restaurante local, hoje pode colocar-se diante de vocês para fazer o mais sagrado dos juramentos. América, diante de nossos perigos comuns, neste inverno de nosso sofrimento, recordemo-nos dessas palavras que resistem ao tempo. Com esperança e com virtude, enfrentemos as correntezas geladas novamente e suportemos as tempestades que possam vir. Que seja dito pelos filhos de nossos filhos que, quando fomos postos à prova, nos recusamos a deixar esta jornada terminar, que não recuamos nem fraquejamos e que, com os olhos fixos no horizonte e com a graça de Deus a nosso lado, carregamos adiante a grande dádiva da liberdade e a entregamos em segurança às gerações futuras.” O empolgante discurso do presidente Barack Obama, com toda a esperança que espalha para o mundo, deixa, entretanto, em exame para reflexão as responsabilidades e as previsões que se fazem necessariamente no mundo globalizado de hoje, e que estão levando de roldão, indistintamente, todas as economias do planeta. O conflito econômico e financeiro dos Estados Unidos, aceitando-se todas as premissas, propostas e intenções do seu novo chefe, está muito aquém de ser solucionado a curto prazo, evidenciando a continuidade da avassaladora crise que ocorre, e deverá continuar no mesmo diapasão, pelo menos, ainda por todo este ano de 2009. Preocupante também é a situação e responsabilidade do Brasil, nesse contexto da crise que atinge indiscriminadamente os países emergentes, pois são evidentes os graves problemas que já estão espoucando continuadamente com demissões de trabalhadores e reduções de horário de trabalho, férias e reformulação de contratos temporários. Entretanto, ao nos filiarmos aos propósitos e às esperanças formulados pelo governante americano, não podemos descurar das responsabilidades que também estão afetando a economia brasileira.

Orpheu Santos Salles Editor

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tarso genro o ministro da cidadania

Da Redação

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estacamos a personalidade do Ministro Tarso Genro, que tem se revelado, com invulgar desempenho nas árduas e complicadas atribuições que lhe cabem, como o condutor do governo, na importante missão no Ministério da Justiça. Desde a juventude universitária, filiou-se à corrente trabalhista e à liderança do Presidente Getúlio Vargas e de João Goulart, amigo e companheiro de seu pai. Durante o regime militar, teve ativa participação política na contestação, sofrendo perseguições que o levaram ao exílio no Uruguai, ficando homiziado em uma das fazendas de Jango, de quem se tornou amigo e correligionário político. Na sua volta ao Rio Grande, ingressou na Universidade de Santa Maria diplomando-se bacharel em Direito. Foi vereador em Santa Maria em 1968; vice-prefeito de Porto Alegre em 1988, na chapa com Olívio Dutra; deputado federal pelo PT, tendo recebido 48.000 votos (1989 a 1992) e prefeito de Porto Alegre (1993 a 1996). Em 2000, eleito pela segunda vez (2001 a 2002), reformulou tecnicamente os quadros dos servidores municipais e realizou extraordinária administração. Em 2003, exerceu as funções de Secretário Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e, no início de 2004, foi nomeado Ministro de Estado da Educação, no qual criou o ProUni, programa para criar vagas públicas nas universidades, e enviou ao congresso o projeto do FUNDEB, Fundo de Desenvolvimento e Manutenção do Ensino Básico. Em 2006, passa a ocupar a pasta do Ministério das Relações Institucionais, e, em 16 de março de 2007, tomou posse no Ministério da Justiça. Sua atuação na pasta da Justiça tem demonstrado uma

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capacidade de trabalho extraordinária, solucionando com apurado bom senso e praticidade os vários problemas criados na Polícia Federal, condicionando aos termos legais as questões surgidas com a divulgação das prisões espalhafatosas e o uso de algemas, solucionando e adequando as substituições nas chefias da Polícia Federal – como o destempero profissional do Delegado Protógenes Queiroz, que motivou o seu afastamento da operação Satiagraha. A firme participação do Ministro Tarso Genro no questionamento sobre a responsabilidade criminal dos torturadores possibilitou que essa discussão parasse no Supremo Tribunal Federal, sendo submetida à decisão e julgamento, sobre a aplicabilidade do inciso XVIV, do artigo 5º, da Constituição Federal. Os questionamentos referentes à anistia concedida pelo artigo 8º da Carta Magna aos que sofreram violências, perda de emprego público, ou foram perseguidos durante os 20 anos de Ditadura Militar, devido à contribuição de nosso Ministro, se encontram em ritmo acelerado para soluções finais, tendo sido reformulada em 2007 a Comissão encarregada da sua apuração, julgamento e concessão, que, sob a competente e dinâmica presidência do professor Paulo Abrão Pires Junior, nestes 2 anos de trabalho já concluiu cerca de 15 mil processos, cumprindo à risca a recomendação do TCU (Tribunal de Contas da União). O pedido de extradição feito pelo governo da Itália do ex-militante do grupo Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), César Battisti, encontrou por parte do Ministro Tarso Genro a solução certa, legal e independente do governo brasileiro, tornando-se até insolente diante dos esdrúxulos


Foto: Marcello Casal JR/ABr

Ministro da Justiça, Tarso Genro

posicionamentos feitos por autoridades e personalidades italianas. O Ministro da Justiça – ao comentar a manifestação de “assombro” do Presidente da Itália em carta ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva contra a concessão de status de refugiado ao italiano César Battisti –, declarou que o Brasil cumpriu a Constituição ao adotar a medida que evitou a extradição, e que a negativa de devolver Battisti, condenado por quatro homicídios no fim dos anos 70, tem base na legislação do país, assim como a recusa da Itália em extraditar o ex-banqueiro Salvatore Cacciola, condenado no Brasil por supostos crimes financeiros. O Ministro afirmou ainda que, neste caso, é preciso considerar que a decisão brasileira está baseada em vários pontos. Primeiro, o governo italiano considera que Battisti cometeu crime contra o Estado, um crime político. Depois, levou-se em conta que ele permaneceu por mais de 10 anos com status de asilado político na França, que foi concedido pelo então presidente François Mitterrand. Acresce que o Brasil tem uma tradição jurídica liberal no que se refere a asilos, seja da direita como da esquerda. Não houve, inclusive, debate jurídico até agora, apenas um exame ideológico da questão. O pedido de extradição feito pelo governo da Itália e o asilo concedido pelo Ministro da Justiça Tarso Genro tornamse complicados, considerando-se as divergências apontadas no pedido de extradição baseado em crime contra o Estado, o que constitui um crime político, e as declarações posteriores confirmando a condenação, à revelia, à pena de prisão perpétua pela autoria de quatro homicídios cometidos em 1977 e 1979. Em estudos detalhados sobre o processo da Justiça italiana, o Ministro Tarso Genro concluiu que o julgamento não foi

sustentado em confissão, provas materiais ou periciais contra Battisti, que foi condenado tão-somente com base na acusação feita contra ele por um militante da mesma organização, Pietro Mutti, que poderia ter incriminado Battisti apenas para ter direito aos benefícios da delação premiada, como de fato ocorreu. Acrescentando ainda que Mutti se encontra em lugar ignorado e com identidade trocada. Acresce também que o italiano, preso em março de 2007 no Rio de Janeiro, nega ter cometido os crimes. Tarso Genro contestou a legalidade do julgamento, no qual Battisti, foi condenado à prisão perpétua, afirmando, pela avaliação que fez do processo, que ele não teve direito à ampla defesa, analisando essa questão pela óptica da época e não da atualidade, concluindo que, na ocasião, restou evidente que as circunstâncias eram políticas. São razões fortes como as razões jurídicas nas quais o país se pautou para deferir extradição ou asilo a determinados chefes de Estado, nos deixando convencidos de que a posição adotada foi correta. Para evitar críticas sobre a possível motivação ideológica do asilo a Battisti, o Ministro citou a decisão do Supremo Tribunal Federal, que negou ao Paraguai a extradição do ex-ditador Alfredo Stroessner. No caso, a Corte Suprema decidiu por não permitir a extradição de outras pessoas em situação similar, com a mesma autonomia e soberania com que o Brasil deu asilo a Stroessner. Então, não há nenhuma lesão à ordem jurídica interna. Em seu parecer de 46 tópicos, ao longo de dez folhas, deteve-se ao argumento do “fundado temor de perseguição”, necessário ao reconhecimento da condição de refugiado, como 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


Foto: Marcello Casal Jr./ABr

Ministro da Justiça, Tarso Genro

prevê a Lei nº 9.474/97, observando ser “comum e previsível” que, nos momentos de extrema tensão social e política, aparatos legais e/ou paralelos, “comandados por pessoas que se erigem à condição de justiceiros de fato”, passem a funcionar, mesmo no Estado de Direito. Explanando mais o assunto, o Ministro acrescentou: “Situações de emergência como a italiana — no caso, a luta contra a fúria assassina que redundou na morte de Aldo Moro — motivam uma preocupação candente com o funcionamento dos aparatos repressivos. É fundamental, porém, que jamais seja aceita a derrogação dos fundamentos jurídicos que socorrem os direitos humanos”, numa referência ao líder político executado com 11 tiros, em 1978 após ficar 55 dias refém das Brigadas Vermelhas, em nome dos ideais da esquerda revolucionária. Quanto aos argumentos apresentados a ele contra o refúgio, continham “visão simplificadora”, porque se sustentavam no “presumido envolvimento” do italiano em homicídios. “Concluo entendendo, também, que o contexto em que ocorreram os delitos de homicídio imputados ao recorrente, as condições nas quais foram montados os seus processos, a sua total impossibilidade de ampla defesa face a radicalização da situação política na Itália, no mínimo, geram uma profunda dúvida sobre se o recorrente teve direito ao devido processo legal”. O asilo concedido tem merecido contestação e aprovação, inclusive do governo da Itália, que pede reconsideração e apela até ao Presidente Lula. Entre as manifestações favoráveis, destacamos a do eminente professor, publicista e jurista Dalmo Dallari, ilustre membro do Conselho Editorial da Revista, que, em nota, defendeu a concessão do asilo. Segundo ele, essa é uma tradição no Brasil, que, na sua opinião, tem sido um país acolhedor, orientado por princípios humanitários e que dá proteção a perseguidos ou inseguros devido à perseguição por motivação política. Para Dallari, Battisti é um antigo militante político participante de um grupo 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009

que se propunha a conquistar o governo por meios armados para implantar o socialismo na Itália, afirmando: “ainda que por hipótese se admita como verdadeira a acusação da prática de homicídio, a motivação básica, que levou à sua perseguição e prisão, era política, ficando claramente configurado um crime político”. O posicionamento do Ministério da Justiça adotado pelo Ministro Tarso Genro encontra-se dentro do contexto da legalidade constitucional, sendo ainda ratificada em entrevista pelo Presidente Lula, que afirmou que a decisão do País nesse caso “é soberana”. “A Itália pode não concordar, mas tem que respeitar”. Aproveitando a oportunidade em que realçamos os trabalhos que o Ministro Tarso Genro promove e executa no Ministério da Justiça, endereçamos à S. Exa. algumas perguntas, às quais gentilmente acedeu em responder: Justiça & Cidadania – Considerando a sua naturalidade gaúcha, o que representou para a sua formação ter vivido, a partir da sua adolescência, sob a influência de Getúlio Vargas,? Ministro Tarso Genro – Meu pai foi trabalhista, getulista e janguista. Logo, as questões sociais levantadas pelo trabalhismo, que compunham o cerne político do velho PTB, sempre estiveram presentes na minha infância. Portanto, fui influenciado por esse ambiente político. JC – Considerando que a legislação implantada no país a partir de 1930 foi inteiramente paternalista, sem que houvesse por parte dos trabalhadores nenhuma reivindicação organizada, e sim imposta pelo governo – CLT, férias, descanso semanal remunerado, previdência com assistência e aposentadoria, seguro contra acidentes do trabalho e todos os demais benefícios concedidos –, o senhor julga que hoje os trabalhadores já têm consciência própria para reivindicações? TG – Os trabalhadores têm consciência de suas reivindicações


“É fundamental, porém, que jamais seja aceita a derrogação dos fundamentos jurídicos que socorrem os direitos humanos.”

e a CLT não foi um “favor”do Estado. A CLT foi produto de um conjunto de mobilizações das classes trabalhadoras do país, do sentimento paternalista do Presidente Vargas, que conhecia o ambiente do mundo do trabalho, e também de pressões internacionais para que as legislações sociais no mundo se equiparassem. O objetivo, nesse caso, era organizar, de forma mais adequada, o mercado mundial e o preço dos produtos no mercado internacional, face à industrialização que ocorria naquele período. É preciso destacar que as leis trabalhistas não são apenas paternalismo, nem somente influência externa. Houve no Brasil um ambiente de luta dos movimentos e do sindicalismo tradicional. JC – E a pluralidade sindical? TG – A pluralidade sindical só pode ser pensada no âmbito de um sistema legal em que não seja permitido ao Estado financiar a atividade sindical. Creio que estamos longe disso aqui no Brasil, já que o sindicalismo mantém o financiamento, ainda que indiretamente, originário do Estado, através de diversas formas de aporte de recursos públicos para o movimento sindical; aportes esses que são legais e constitucionais. JC – O que é, na sua opinião, mais vantajoso para o trabalhador: o regime do FGTS ou a garantia do tempo de serviço, como vigorava antes da Revolução Militar? TG – Creio que o ideal será a combinação de uma estabilidade mínima; isto é, a impossibilidade de romper um contrato de trabalho por parte do empregador sem uma causa econômica ou disciplinar razoável, com um sistema de Fundo. Ou seja, a combinação de um mínimo de estabilidade no contrato, com um Fundo de Garantia que faça uma reserva para indenizar o trabalhador na circunstância da sua demissão. JC – O seu propósito futuro continua na política ou no Judiciário?

TG – Atualmente não tenho nenhuma avaliação sobre o meu futuro político. JC – Qual a previsão do governo para o término das concessões da anistia? TG – Pretendemos terminar as concessões de anistia no atual governo, no fim do segundo mandato do Presidente Lula. Estamos trabalhando arduamente para isso. Não só reorganizamos a Comissão de Anistia, como também demos a ela condições de trabalho para que isso ocorra. JC – Como Ministro do Governo e de uma pasta política, e como pai, como convive e se relaciona com a valorosa, veemente e intemorata líder oposicionista, Deputada Luciana Genro? TG – A relação com minha filha Luciana é normal entre pai e filha e não tem qualquer obstáculo de natureza política. Mesmo porque posições políticas diferentes não podem alterar o relacionamento entre pessoas maduras e responsáveis. JC – No exílio no Uruguai, como foi o seu relacionamento político, se houve, com o Presidente João Goulart? TG – No exílio, relacionei-me diretamente com o Presidente João Goulart, não evidentemente pela minha importância, mas pelo fato de que ele era amigo de meu pai, e por isso me tratava com muito carinho e atenção. Inclusive o trabalho que consegui como professor, na cidade de Rivera, durante meu exílio, decorreu de indicação do Presidente João Goulart. Neste reconhecimento e homenagem que deferimos justa­ mente ao Ministro Tarso Genro, responsável pela direção administrativa e política do Ministério da Justiça, deixamos expressa a confiança que foi depositada a um cidadão portador de todos os méritos para alcançar as metas que se impõem para o bom desempenho da missão a que foi e está destinado. 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


O USO DE ALGEMAS E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Marco Aurélio Mello Ministro do STF Membro do Conselho Editorial

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Foto: Valter Campanato/ABr

m dos mais polêmicos temas levados à apreciação do Supremo nos últimos anos foi objeto de análise no Habeas Corpus nº 91.952-9/SP. Competia à Corte resolver controvérsia de maior envergadura – a possibilidade de se manter algemado acusado durante julgamento perante o Tribunal do Júri, sem elemento concreto a justificar a excepcional medida. Atuando como relator, proferi voto na sessão plenária de 7 de agosto de 2008, tendo sido seguido, à unanimidade, pelos demais integrantes do Colegiado. Abaixo faço uma síntese da argumentação desenvolvida. Iniciei a abordagem da matéria consignando não requerer o julgamento perante o júri a custódia preventiva do acusado – inciso LVII do artigo 5º da Lei Maior. Registrei não ser atualmente sequer necessária a presença do acusado – Lei nº 11.689/08, alteração do artigo 474 do Código de Processo Penal. Diante disso, indaguei se surgiria harmônico com a Constituição manter o acusado, no recinto, com algemas. A resposta mostrava-se iniludivelmente negativa. Em primeiro lugar, ressaltei a necessidade de se levar em conta o princípio da não-culpabilidade. Era certo que fora submetida ao veredicto dos jurados pessoa acusada da prática de crime doloso contra a vida, mas que merecia o tratamento devido aos humanos, aos que vivem em um Estado Democrático de Direito. Segundo o artigo 1º da Carta Federal, a própria República tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Da leitura do rol das garantias constitucionais – artigo 5º –, depreende-se a preocupação em resguardar a figura do preso. A ele é assegurado o respeito à integridade física e moral – inciso XLIX. Versa o inciso LXI, como regra, que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. Além disso, existe a previsão de que a custódia de qualquer pessoa e o local onde se encontre hão de ser comunicados 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009


imediatamente ao juiz competente, à família ou a pessoa por ele indicada – inciso LXII. Também deve o preso ser informado dos respectivos direitos, entre os quais o de permanecer calado, ficando-lhe assegurada a assistência da família e de advogado – inciso LXIII. O inciso LXIV revela que o preso tem direito à identificação dos responsáveis pela prisão ou interrogatório policial. Mais ainda, a prisão ilegal há de ser imediatamente relaxada pela autoridade judiciária – inciso LXV – e ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança – inciso LXVI. Sob o ângulo do cumprimento da pena, impõe-se a separação em estabelecimentos prisionais considerada a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado – inciso XLVIII. Prossegui destacando que esses preceitos – a configurarem garantias dos brasileiros e dos estrangeiros residentes no país – repousam no inafastável tratamento humanitário do cidadão, na necessidade de lhe ser preservada a dignidade. Manter o acusado em audiência, com algema, sem que demonstrada, ante práticas anteriores, a periculosidade, significa colocar a defesa, antecipadamente, em patamar inferior, não bastasse a situação de todo degradante. O julgamento no Júri é procedido por pessoas leigas, que tiram as mais variadas ilações do quadro verificado. A permanência do réu algemado indica, à primeira visão, cuidar-se de criminoso da mais alta periculosidade, desequilibrando o julgamento a ocorrer, ficando os jurados sugestionados. Ressaltei que o tema não era novo. Na apreciação do Habeas Corpus nº 71.195-2/SP, relatado pelo ministro Francisco Rezek, cujo acórdão foi publicado no Diário da Justiça de 4 de agosto de 1995, a Segunda Turma assentou que a utilização de algemas em sessão de julgamento somente se justifica quando não exista outro meio menos gravoso para alcançar o objetivo visado: HABEAS CORPUS. CONCURSO MATERIAL DE CRIMES. PROTESTO POR NOVO JÚRI. PENA INFERIOR A VINTE ANOS. UTILIZAÇÃO

DE ALGEMAS NO JULGAMENTO. MEDIDA JUSTIFICADA. [...] II – O uso de algemas durante o julgamento não constitui constrangimento ilegal se essencial à ordem dos trabalhos e à segurança dos presentes. Habeas corpus indeferido. Assim também decidiu a Primeira Turma do Supremo no Habeas Corpus nº 89.429-1/RO, relatora ministra Cármen Lúcia, acórdão veiculado no Diário da Justiça de 2 de fevereiro de 2007. Assentou o Colegiado: [...] o uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer, e para evitar agressão do preso contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo. No Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Recurso de Habeas Corpus nº 5.663, do qual foi relator o ministro William Patterson, acórdão publicado no Diário da Justiça de 23 de setembro de 1996, outro não foi o entendimento, como se constata da seguinte ementa: Penal. Réu. Uso de algemas. Avaliação da necessidade. – A imposição do uso de algemas ao réu, por constituir afetação aos princípios de respeito à integridade física e moral do cidadão, deve ser aferida de modo cauteloso e diante de elementos concretos que demonstrem a periculosidade do acusado. – Recurso provido. Desse julgamento, sem voto discrepante, participaram os ministros Luiz Vicente Cernicchiaro, Vicente Leal, Fernando Gonçalves e Anselmo Santiago. Salientei ainda que, de modo enfático, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento da Apelação Criminal nº 74.542-3, relator desembargador Renato Talli, acórdão publicado na Revista dos Tribunais nº 643/285, estabeleceu que “algema não é argumento e, se for utilizada sem necessidade, pode levar à invalidação da sessão de julgamento”. Consignei remontar essa postura ao tempo do Império. Dom Pedro, quando ainda Príncipe Regente, em Decreto de 23 de maio de 1821, ordenou: [...] que em caso nenhum possa alguém ser lançado em segredo, em masmorra estreita, escura ou infecta, pois que a prisão deve só servir para guardar as pessoas e nunca para as adoecer e flagelar; ficando implicitamente abolido para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões e outros quaisquer ferros, inventados para martirizar homens, ainda não julgados, a sofrer qualquer pena aflitiva, por sentença final; entendendo-se, todavia, que os Juízes e Magistrados Criminais poderão conservar por algum tempo, em casos gravíssimos, incomunicáveis os delinqüentes, contanto que seja em casas arejadas e cômodas e nunca manietados ou sofrendo qualquer 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


espécie de tormento. (Em “Coleção das Leis do Brasil de 1821”, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1889, Parte II, p. 88 e 89). O Código de Processo Criminal do Império – de 29 de novembro de 1832 –, no capítulo “Da Ordem de Prisão”, dispunha, no artigo 180, que, “se o réu não obedecer e procurar evadir-se, o executor tem direito de empregar o grau da força necessária para efetuar a prisão, se obedecer porém, o uso da força é proibido”. A Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, reformou o Código de Processo Criminal, mas manteve a mencionada norma. Nova reestruturação do processo penal brasileiro somente ocorreu trinta anos depois, com a Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto nº 4.824, de 22 de novembro do mesmo ano. O artigo 28 deste último preceituava que o preso não seria “conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo condutor; e quando o não justifique, além das penas em que incorrer, será multado na quantia de dez a cinqüenta mil réis, pela autoridade a quem for apresentado o mesmo preso”. A Constituição de 1891 conferiu às unidades federativas a competência para legislar sobre matéria processual penal. Algumas exerceram a competência legislativa, enquanto outras se limitaram a adotar a legislação do Império. O artigo 28 do referido decreto regulamentar, então, acabou repetido em várias leis. Com a Carta da República de 16 de julho de 1934, foi restabelecida a competência privativa da União para legislar sobre direito penal. Em 15 de agosto de 1935, sendo Ministro da Justiça e Negócios Interiores Vicente Ráo, foi apresentado o Projeto de Código de Processo Penal, cujo artigo 32 vedava “o uso de força ou o emprego de algemas, ou de meios análogos, salvo se o preso resistir ou procurar evadir-se”. O projeto não vingou, em virtude da Constituição promulgada com o Golpe de Estado de 1937 (em José Frederico Marques, “Tratado de Direito Processual Penal”, São Paulo, Saraiva, 1980, v. I, § 83, p. 123). O novo Código somente veio à balha em 3 de outubro de 1941, passando a viger desde então o artigo 284 – “Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso” –, que, embora não se refira expressamente ao uso de algemas, sinaliza as situações de fato extremas em que poderão ser utilizadas. É o que se constata, ainda, no artigo 292 dele constante, a revelar que, se houver, mesmo que por parte de terceiros, “resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas”. Na Lei de Execução Penal – nº 7.210/84 –, bem se revelou o caráter excepcional da utilização de algemas, instando-se o Poder Executivo à regulamentação – artigo 159. Se, quanto àquele que deve cumprir pena ante a culpa formada, o uso de algemas surge no campo da exceção, o que se dirá em relação 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009

a quem goza do benefício de não ter a culpa presumida, ao simplesmente conduzido, indiciado ou mesmo acusado que responda a processo-crime? Até mesmo na área penal militar, a utilização de algema é tida como excepcional. Consta do artigo 234 do Código de Processo Penal Militar: O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas. O § 1º do citado artigo, harmônico com a Carta de 1988, revela especificamente que: O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242. O artigo 242 prevê que: Serão recolhidos a quartel ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão, antes de condenação irrecorrível: a) os ministros de Estado; b) os governadores ou interventores de Estados, ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários e chefes de Polícia; c) os membros do Congresso Nacional, dos Conselhos da União e das Assembléias Legislativas dos Estados; d) os cidadãos inscritos no Livro de Mérito das ordens militares ou civis reconhecidas em lei; e) os magistrados; f) os oficiais das Forças Armadas, das Polícias e dos Corpos de Bombeiros, Militares, inclusive os da reserva, remunerada ou não, e os reformados; g) os oficiais da Marinha Mercante Nacional; h) os diplomados por faculdade ou instituto superior de ensino nacional; i) os ministros do Tribunal de Contas; j) os ministros de confissão religiosa. Prossegui destacando que, se fica excluída a utilização da algema seja qual for o quadro, quanto a essas pessoas, o que se dirá no tocante àquele que, vindo sob a custódia do Estado há algum tempo, já se encontra fragilizado e comparece ao tribunal para ser julgado? Valia registrar, ainda, estabelecer o item 3 das regras da Organização das Nações Unidas para tratamento de prisioneiros que o emprego de algemas jamais poderá se dar como medida de punição. Isso indica, à semelhança do que antes previsto no artigo 180 do Código de Processo Criminal do Império, que o uso desse instrumento é excepcional e somente pode ocorrer nos casos em que realmente se mostre indispensável para impedir ou evitar a fuga do preso ou quando se cuidar comprovadamente de perigoso prisioneiro. A ausência de norma expressa prevendo a retirada das


algemas durante o julgamento não conduz à possibilidade de manter o acusado em estado de submissão ímpar, incapaz de movimentar os braços e as mãos, em situação a revelá-lo não um ser humano que pode haver claudicado na arte de proceder em sociedade, mas uma verdadeira fera. Não obstante a clareza vernacular do artigo 284, a afastar o emprego de força, tomada esta no sentido abrangente – ante abusos de toda sorte, vendo-se, nos veículos de comunicação, algemadas pessoas sem o menor traço agressivo, até mesmo outrora detentoras de cargos da maior importância na República, em verdadeira imposição de castigo humilhante, vexaminoso –, veio à balha norma simplesmente interpretativa, e, portanto, pedagógica, específica quanto à postura a ser adotada em relação ao acusado na sessão de julgamento pelos populares, pelos iguais, alfim, pelo Júri. A recente Lei nº 11.689, de 9 de junho de 2008, ao implementar nova redação ao artigo 474 do Código de Processo Penal, tornou estreme de dúvidas a excepcionalidade do uso de algemas. Eis o preceito: Artigo 474 [...] [...] § 3º Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes. Era hora de o Supremo emitir entendimento sobre a matéria, inibindo uma série de abusos notados na atual quadra, tornando clara, até mesmo, a concretude da lei reguladora do instituto do abuso de autoridade, considerado o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, para a qual os olhos em geral têm permanecido cerrados. A Lei em comento – nº 4.898/65, editada em pleno regime de exceção –, no artigo 4º, enquadra como abuso de autoridade cercear a liberdade individual sem as formalidades legais ou com abuso de poder – alínea “a” – e submeter pessoa sob guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado por lei – alínea “b”. No caso concreto, sem que houvesse uma justificativa socialmente aceitável para submeter um simples acusado à humilhação de permanecer durante horas e horas com algemas, na oportunidade do julgamento, concluiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que a postura adotada pela Presidente do Tribunal do Júri, de não determinar a retirada das algemas, fezse consentânea com a ordem jurídico-constitucional. Proclamou a Corte que “a utilização das algemas durante o julgamento não se mostrou arbitrária ou desnecessária e, por conseguinte, não vinga a nulidade argüida”, aludindo, no entanto, a precedente da Segunda Turma do Supremo que vincula a permanência do preso algemado à necessidade de manutenção da ordem dos trabalhos e de garantia da segurança dos presentes. Frisei que, abertos os trabalhos do Júri – o acusado já estava preso há um ano e meio –, o defensor, Dr. Walter Antônio Dias Duarte, pediu a palavra e assim se manifestou: MM. Juíza: Hão (com a correção vernacular) que ser retiradas as algemas do acusado para que algemado não

influencie indevidamente o ânimo dos senhores jurados. Se necessário for a defesa apontará a Vossa Excelência as correspondentes folhas dos autos onde o meritíssimo Juiz de então cancelou dois dos motivos que autorizavam a decretação da preventiva, vez que a garantia da ordem pública e a conveniência da instrução criminal não mais integravam o rol dos motivos que autorizam a decretação desta custódia (fls. 115). Se, como precedente jurisprudencial e julgado do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que tem por ementa: “Írríto o julgamento do Júri se o réu permaneceu algemado durante o desenrolar dos trabalhos sob a alegação de ser perigoso, eis que tal circunstância interfere no espírito julgador e, conseqüentemente, no resultado do julgamento, constituindo constrangimento ilegal que dá causa a nulidade”.(RT. 643/285) – confiram com a ata da sessão realizada, que se encontra às folhas 301 e 302 do apenso, numeração de origem. O Ministério Público se opôs à retirada das algemas. Afirmou que ficara o réu algemado durante todas as audiências de instrução, reclamando fosse guardada a coerência. Olvidou, com essa óptica, que o erro anterior não justificava a manutenção da violência. Então, a Juíza deliberou: Entendo que não constitui constrangimento ilegal o réu permanecer algemado em Plenário, sobretudo porque tal circunstância se faz estritamente necessária para preservação e segurança do bom andamento dos trabalhos, já que a segurança hoje está sendo realizada por apenas dois policiais civis. Assim, indefiro o pleito da defesa, observando ainda, como bem notou a Dra. Promotora de Justiça que o réu permaneceu algemado em todas as audiências ocorridas antes da pronúncia. Consignei não ter sido apontado, portanto, um único dado concreto, relativo ao perfil do acusado, que estivesse a ditar, em prol da segurança, a permanência com algemas. Quanto ao fato de apenas dois policiais civis fazerem a segurança no momento, a deficiência da estrutura do Estado não autorizava o desrespeito à dignidade do envolvido. Incumbia sim, inexistente o necessário aparato de segurança, o adiamento da sessão, preservando-se o valor maior, porque inerente ao cidadão. Concedi a ordem para tornar insubsistente a decisão do Tribunal do Júri. Determinei a realização de outro julgamento, com a manutenção do acusado sem as algemas. Fui acompanhado, à unanimidade, pelos integrantes do Tribunal. Em seguida, a Corte deliberou pela aprovação do Verbete Vinculante nº 11 da Súmula, com a seguinte redação: Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


Amargas contradições na aplicação das leis

Paulo Skaf Presidente da Federação e do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP/CIESP)

A

“Incluímos a sugestão num conjunto de medidas para o enfrentamento da crise, a começar pela redução significativa dos juros, como fazem todas as nações, enquanto continuamos por aqui com as taxas mais altas do mundo.”

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impunidade, a lentidão da justiça, a burocracia estatal e a cultura de criar dificuldades para vender facilidades transmitem a impressão de que o arcabouço legal do País é totalmente inadequado e obsoleto. Sem dúvida, é verdade que precisamos de reformas estruturais, em especial nas áreas tributária, previdenciária e trabalhista. Entretanto, a falsa sensação de que todo o conjunto de leis é precário acaba dificultando ainda mais a solução de problemas, antigos e novos, e impede a adoção ágil de medidas prementes no contexto de situações emergenciais. Exemplo dessa distorção verifica-se neste momento: por conta da necessidade de se modernizar a legislação trabalhista (cuja alteração depende de emenda constitucional), postergase a busca de soluções para atenuar os efeitos da crise mundial. Não há dúvida de que a lei é ultrapassada e precisa ser revista de modo integral. Entretanto, também é verdade que contém dispositivos que permitem, sem qualquer aprovação do Congresso ou nova regulamentação ordinária, acordos soberanos entre empresas e/ou sindicatos patronais e as representações dos trabalhadores. Dentre esses entendimentos legalmente viáveis, inclui-se a possibilidade de redução temporária da jornada de trabalho e dos salários, conforme sugere a Fiesp, visando a conferir mais fôlego aos setores produtivos e maior segurança de manutenção dos empregos durante a travessia dos momentos mais agudos da crise mundial que estamos enfrentando. O tempo poupado dos trabalhadores pode ser preenchido


Foto: Renata Castello Branco

com cursos gratuitos de qualificação profissional, incluindo aprendizado de novas funções. Na indústria, por exemplo, o Senai tem plenas condições de atender a essa demanda. Muitos trabalhadores, além de preservar seus postos de trabalho, poderão ser promovidos e desenvolver melhor as carreiras quando a crise passar, pois estarão tecnicamente mais capacitados. Não propomos tais soluções de maneira isolada. Incluímos a sugestão num conjunto de medidas para o enfrentamento da crise, a começar pela redução significativa dos juros, como fazem todas as nações, enquanto continuamos por aqui com as taxas mais altas do mundo. Ainda no sentido de restabelecer níveis de crédito capazes de manter a economia dinâmica, é preciso garantir maior acesso de empresas e pessoas físicas ao dinheiro do depósito compulsório acertadamente liberado pelo governo. Continua no ar o estranho sentimento de que esses recursos não chegaram de modo pleno à produção e ao consumo. E isto, sem falar da necessidade de os bancos estatais reduzirem seus custos, bem maiores do que os dos bancos privados. É essencial também um drástico corte das despesas de custeio das máquinas estatais da União, Estados e Municípios. Com raras exceções, o setor público brasileiro continua sendo gastador e, o que é mais grave, sem devolver à sociedade benefícios e serviços proporcionais ao montante de recursos que retira nos impostos. Cortando o supérfluo, não só se reduz a pressão representada pelos juros expressos nos papéis, com os quais o governo gira a dívida pública, como se provê

mais dinheiro para investimentos em obras impulsionadoras da atividade econômica e relacionadas a prioridades sociais, como as de infraestrutura, escolas e hospitais. Em paralelo, seria imprescindível desoneração tributária em mais larga escala, como se realizou, há pouco, no setor automobilístico. Prazos mais amplos para o recolhimento de impostos e, até mesmo, medidas de restrição às importações de produtos com similares nacionais, o que garante empregos lá fora e não aqui no País. Como se vê, a despeito da necessidade de reformas estruturais, o conjunto de leis permite a adoção de providências pontuais para o enfrentamento da crise. É paradoxal constatar que a prerrogativa do Executivo de editar medidas provisórias – muitas vezes utilizada ao exagero em períodos de normalidade –, a ponto de ser acusada de trancar a pauta do Legislativo, acabe sendo parcimoniosa exatamente quando a conjuntura exige soluções rápidas, práticas e concretas. São as contradições brasileiras... Não se realizam as reformas estruturais por falta de consenso político, impossibilidades nos anos eleitorais e votações sempre “urgentes” no Parlamento; mantém-se a legislação obsoleta em relação ao mundo civilizado; remendam-se artigos e parágrafos para solucionar problemas nem sempre prioritários e acomodar interesses; e – pasmem – os mesmos responsáveis por tais descompassos utilizam o anacronismo das leis como desculpa pela omissão ante os mais graves desafios. É um perverso círculo vicioso, no qual perdem os brasileiros, perde o Brasil! 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


Exclusão do Sócio nas Sociedades Simples e nas Limitadas

Décio Luiz José Rodrigues Juiz de Direito do TJ/SP

O

artigo 981 do novo Código Civil define o contrato de sociedade dizendo que celebram o referido contrato as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados. Extrai-se do conceito a possibilidade do sócio poder contribuir com bens ou prestando serviços, sempre visando à divisão dos resultados, não havendo, ipso facto, necessidade de contribuição tão somente com bens. As sociedades passam a ser divididas em sociedade empresária (tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário) e em sociedade simples (as demais, podendo considerar-se a antiga sociedade civil), sendo, sempre, empresária, a sociedade por ações e, simples, a cooperativa, conforme artigo 982 e parágrafo único do novo Código Civil. A sociedade empresária constitui-se de acordo com os seguintes tipos: sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples, sociedade limitada, sociedade anônima, sociedade em comandita por ações e a sociedade simples. Caso não se constitua de acordo com um desses tipos, subordinase às suas normas peculiares (artigos 983 e 1039 usque 1.092, todos do novo Código Civil). A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição dos seus atos constitutivos no registro próprio (artigos 45, 985 e 1.150, todos do novo Código Civil). Quando a sociedade não adquirir personalidade jurídica (sem registro no órgão legal), é chamada de sociedade não personificada, sendo dividida em sociedade em comum e 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009

sociedade em conta de participação. Na sociedade simples, conforme artigos 1.004 e 1.030, ambos do Código Civil, é possível a exclusão do sócio na hipótese dele não pagar a contribuição devida no prazo de trinta dias da notificação. A maioria dos sócios decide se, in casu, prefere pagar uma indenização ao sócio que não pagou a sua contribuição ou se, ao revés, prefere excluí-lo da sociedade. Não se olvide de que o sócio que não paga a sua contribuição social é chamado de sócio remisso. Judicialmente é possível que se dê a exclusão do sócio, caso a maioria dos sócios conclua que houve falta grave deste no cumprimento de suas obrigações ou se sobrevier incapacidade superveniente (ad exemplum o sócio fica louco). Entendemos que a falta grave deve ser provada e, sempre, deve ser dado ao sócio o direito de defesa. Ainda, pode dar-se a exclusão do sócio de pleno direito, caso se torne falido ou ocorra a liquidação da sua cota por seu credor particular, conforme artigo 1.026 e parágrafo único do novo Código Civil. Nesta última hipótese vislumbramos a figura do sócio-devedor que teve a atuação de seu credor particular, em termos de execução, sobre o que cabia ao sócio devedor de lucros na sociedade, ou na parte que lhe tocaria na hipótese de liquidação. Quanto à exclusão do sócio nas sociedades limitadas, caso os sócios optem pela aplicação das normas que regem as sociedades simples, ex vi do artigo 1.053 do novo Código Civil, podemos concluir que todas as hipóteses de exclusão analisadas aplicar-se-ão in casu.


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Santos Salles advogados associados

lDireito Tributário lDireito Previdenciário lDireito das Relações de Consumo lDireito Civil lDireito do Trabalho lDireito Penal Empresarial lDireito Administrativo lDireito Internacional lMediação e Arbitragem lPetróleo, Energia e Gás Além disso, conforme artigo 1.085 e parágrafo único do novo Código Civil, os sócios da Limitada que representem mais da metade do capital social poderão decidir a exclusão do sócio que ponha em risco a continuidade da empresa em virtude de atos de inegável gravidade. Para isto, deve haver a indigitada previsão no contrato social de exclusão por justa causa e a deliberação dos sócios deve dar-se em reunião ou em assembléia (obrigatoriamente, se o número dos sócios for superior a dez, ex vi do artigo 1.072, § 1º, do Novo Código Civil) e com direito de defesa ao futuro excluído, o que vai redundar, inclusive, na alteração do contrato social. Entendemos que, caso o contrato social elenque os atos de inegável gravidade que colocam em risco a continuidade da empresa, somente poderá haver a iniciativa dos sócios para a exclusão do outro sócio se verificada a situação esmiuçada no contrato social, pois só assim estaria sendo respeitada a vontade da própria sociedade. Finalizando, consigne-se que o valor da cota do sócio excluído será liquidada e o seu quantum será verificado em balanço especial, com pagamento em dinheiro a ele, em noventa dias a partir da liquidação, salvo convenção em contrário, o que não exime o sócio excluído, e nem os seus herdeiros, da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a resolução da sociedade, respondendo ainda o sócio excluído, pelas obrigações posteriores da sociedade, em até dois anos, enquanto não se requerer a averbação referida, ex vi dos artigos 1.031 e 1.032, ambos do Novo Código Civil.

lDireito das Telecomunicações

Av. Paulista, 1765 -13° andar TEL: +55 (11) 3266-6611 - São Paulo Rio de Janeiro - Brasília - Campinas Belo Horizonte 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17 www.santossalles.com.br


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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E DE GÊNERO Myriam Therezinha Cury Juíza de Direito do TJ/RJ

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niciam-se estas análises observando o alcance do significado da violência, podendo-se observar que, no seu sentido literal, trata-se de ato violento, agressivo ou constrangedor (BUENO, 2000). No sentido acadêmico, a discussão da violência associa-se à teoria do abuso com suas manifestações amplas e complexas, que incluem palavras, atitudes de ironias, desqualificações, arbitrariedades, agressões e diversas formas de exclusão social, movidas, entre outros fatores, por estigmas e preconceitos (RANGEL, 2003). Assim, “quando se discute violência, como fator de ameaça à vida, não se pode omitir ou dispensar a discussão de estigmas e preconceitos que podem gerá-la” (RANGEL, 2003, p.67). Estigmas são fatores de preconceitos e ambos promovem e justificam discriminações e desrespeito pela condição de ser humano e ser cidadão. Portanto, é preciso compreender, mais ampla e profundamente, as expressões do processo violento, seus fatores e seus resultados, sem limitá-los aos atos físicos, mas entendendo-os nas diversas formas de origem e construção histórica, social, econômica, política, filosófica, psicológica, existencial e cultural. Sabe-se que a violência não se define somente no plano físico; apenas a sua visibilidade pode ser maior nesse plano. Essa observação se justifica quando se constata que violências como a ironia, a omissão e

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indiferença não recebem, no meio social, os mesmos limites, restrições ou punições que os atos físicos de violência. Entretanto, essas “armas” de repercussão psicológica e emocional são de efeito tão ou mais profundo que o das armas que atingem e ferem o corpo, porque as “armas brancas” da ironia ferem um valor precioso do ser humano: a auto-estima (RANGEL, 2003, p.68). Portanto, para pensar a violência doméstica e de gênero são requeridas duas premissas essenciais: a sua compreensão ampla e contextualizada e o entendimento de que suas manifestações sociais inserem-se na análise dos diversos aspectos da dominação e da falta de princípios éticos de orientação de conduta, que influem na falta de limites. A palavra “limites” pode estar sujeita a interpretações que a associam a cerceamento da liberdade, a controle externo (de uns sobre outros), ou à imposição de condutas. Entretanto, a compreensão ética dos limites tem um sentido mais amplo e mais essencial de parâmetros, definições, critérios, valores que orientam a vida pessoal e as relações sociais. Os limites, decididos e assumidos por princípios éticos de conduta, traduzem os interesses de cada pessoa, afinados com os interesses sociais; esse é um dos princípios do pertencimento a um coletivo no âmbito da família


“Os limites, decididos e assumidos por princípios éticos de conduta, traduzem os interesses de cada pessoa, afinados com os interesses sociais; esse é um dos princípios do pertencimento a um coletivo no âmbito da família e da sociedade, estabelecendo-se relações construtivas e emancipadoras.”

e da sociedade, estabelecendo-se relações construtivas e emancipadoras. Os limites – contornos éticos das relações – representam valores, com significativo conteúdo humano, político, existencial. Assim, é preciso e possível reafirmar a relevância dos limites para a vida pessoal e coletiva. Os limites demarcam os espaços de liberdade individual, de modo a preservar os espaços coletivos. Os limites aproximam as pessoas em seus grupos familiares e sociais, e constituem referências de condutas que as qualificam, respeitam e compreendem em seus direitos e deveres. Os limites favorecem a superação de interessismos autocentrados por interesses partilhados; de individualismos solitários, por individualidades solidárias; da inconseqüência do autoritarismo, pela competência da autoridade; da inconsciência da arbitrariedade, pela consciência da liberdade. A importância dos limites é a importância de critérios de justiça, ética, equidade, dignidade humana; é a importância da “lei” da vida e do “viver com”, de criar laços que fortaleçam os valores de cidadania e a preservação da dignidade humana, respeito à pluralidade e atitude de inclusão, preservação e realização desses valores. Com essas considerações, chega-se à análise de elementos significativos da abordagem da violência doméstica e de gênero.

Nesse âmbito de análise, é especialmente importante considerar o avanço, no sentido de proteção e segurança, proporcionado pela criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM), em janeiro de 2003, com status de Ministério. Sem dúvida, a SEPM é uma instância significativa de elaboração e execução de políticas em favor da igualdade de gênero e prevenção, assistência e combate à violência contra a mulher. Ressalta-se, entre as várias produções da SEPM, a publicação do “Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher – Plano Nacional” (BRASIL, 2003). Os diálogos sobre violência doméstica e de gênero, que se apresentam nessa publicação da SEPM, merecem uma atenção especial, pelos subsídios que oferecem à discussão desse problema que tensiona a sociedade. A ministra Emília Fernandes ressalta que: O fenômeno da violência de gênero, também chamada violência contra a mulher, acontece no mundo inteiro e atinge as mulheres, em todas as idades, graus de instrução, classes sociais, raças, etnias e orientação sexual. A violência de gênero, em seus aspectos de violência física, sexual e psicológica, é um problema que está ligado ao poder, onde de um lado impera o domínio dos homens sobre as mulheres, e de outro lado, uma ideologia dominante, que lhe dá sustentação. (FERNANDES, 2003, p. 10). É importante lembrar que a violência doméstica é contemplada pela Constituição Federal do Brasil, no seu artigo 226, parágrafo 8º, que assume o valor e o compromisso da segurança: “O Estado assegurará a assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações”. Violência, pobreza, discriminação étnica e racial compõem o cenário do desrespeito, da desqualificação e do abuso. Sueli Carneiro assinala, fazendo referência a Ruffino, que: A violência doméstica atinge mulheres de todas as raças, mas há um agravamento da violência doméstica quando a mulher é negra, pelo racismo que gera violências adicionais. Estatísticas americanas revelam que a taxa de homicídios para mulheres negras é de 12,3 para cada 100 mil assassinatos, enquanto que a taxa para mulheres brancas é de 2,9 para 100 mil. Mulheres negras, entre 16 e 24 anos, têm três vezes mais possibilidades de serem estupradas que mulheres brancas. (RUFFINO, apud CARNEIRO, 2003, p. 11-12). Os dados que se apresentam no artigo de Carneiro (2003, p. 18) revelam indicadores expressivos que merecem ser destacados pelos aspectos que informam sobre as mulheres negras do Brasil. Exemplificam-se os índices apresentados pela Fundação Seade, que apontam a estimativa de vida para as mulheres brancas em 71 anos, enquanto as afro-descendentes têm essa estimativa em 50 anos. O estudo de Carneiro informa também, entre outros dados, que, “quando empregadas, as mulheres negras ganham, em média, metade do que ganham as mulheres brancas e quatro 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


Foto: Arquivo Pessoal

Juíza de Direito Myriam Therezinha Cury

vezes menos do que ganham os homens brancos (Ibid, p.18). Benedito Medrado e Jorge Lyra (2003) também auxiliam a perceber a dimensão da violência doméstica, informando percentuais alarmantes: Em diferentes países da América Latina, estudos apontam um número significativo de mulheres que afirmam terem sido vítimas de violência física exercida por seu parceiro. Em alguns países, o percentual de mulheres que afirmou ter sido agredida fisicamente por um homem chegou a 50%. O menor percentual foi de 20%. No Brasil, particularmente, um número estimado em 300.000 mulheres relataram terem sido agredidas fisicamente por seus maridos ou companheiros a cada ano. Mais da metade de todas as mulheres assassinadas no Brasil foram mortas por seus parceiros íntimos (HEISE, apud MEDRADO; LYRA, 2003, p.21). Estudos realizados com homens também evidenciam uma situação preocupante. No Rio de Janeiro, pesquisa publicada em 2003, em que foram entrevistados 749 homens, com idade entre 15 e 60 anos, destaca que 25,4% afirmaram terem usado violência física contra a parceira, 17,2% informaram terem usado violência sexual e 38,8% afirmaram terem insultado, humilhado ou ameaçado pelo menos uma vez a parceira. Em Recife, no ano de 2002, foi aplicado um questionário a um total de 170 recrutas das Forças Armadas. Na questão “Há momentos em que mulher merece apanhar?” 25% responderam que “sim”; 18% disseram que “depende”. Além disso, 18% afirmaram que “já usaram agressão física contra uma mulher” (ACOSTA; BARKER, apud MEDRADO; LYRA, 2003, p. 21-22). Medrado e Lyra descrevem, então, a Campanha Brasileira do Laço Branco: 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009

Neste sentido, uma importante estratégia de ação tem sido a Campanha Brasileira do Laço Branco (www. lacobranco.org), que tem o objetivo geral de sensibilizar, envolver e mobilizar os homens no engajamento pelo fim da violência contra a mulher, em consonância com as ações dos movimentos organizados de mulheres e de outros movimentos organizados por equidade e direitos humanos, através de ações em saúde, educação, trabalho, ação social, justiça, segurança pública e direitos humanos. Mais especificamente a campanha nacional pretende: − sensibilizar homens jovens e adultos sobre as implicações resultantes da violência cometida contra as mulheres em suas próprias vidas e a de outros homens e oferecer propostas que visem mudar suas atitudes e comportamentos frente às mulheres; − integrar homens jovens e adultos na Campanha, transformando-os em participantes ativos e capazes de difundir as metas da mesma para outros homens; − divulgar, da forma mais abrangente possível, a Campanha e os recursos existentes para lidar com a violência cometida por homens contra as mulheres; − integrar formadores de opinião através da mídia, para incentivar a divulgação da Campanha; − estimular a formação de políticas públicas nos municípios, que fortaleçam o desenvolvimento e a sustentabilidade das ações. (MEDRADO; LYRA, 2003, p. 25). A Rede de Cidadania também é uma construção significativa em favor do enfrentamento do problema e inclui serviços e propostas como as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAMs, que têm o papel de investigar, apurar e tipificar o crime, constituindose numa primeira instância da busca de proteção; Corpo de Bombeiros e Unidades Móveis da Polícia Militar, que prestam o primeiro socorro às mulheres; Instituto Médico Legal – IML, onde se realiza a coleta de provas que serão necessárias ao processo judicial e condenação do agressor; o Centro de Referência, onde se fazem os encaminhamentos da Rede e o acompanhamento psicológico e social à mulher em situação de violência; os Serviços de Casas Abrigo, que oferecem, em nível sigiloso e temporário, o atendimento integral à mulher em situação de risco de vida iminente, devido à violência doméstica; as Defensorias Públicas e as Defensorias Públicas da Mulher, que oferecem assistência jurídica, orientação e encaminhamento às mulheres em situação de violência, constituindo-se em órgãos dos Estados, responsáveis pela defesa e oferecendo suporte jurídico às mulheres; o Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência contra a Mulher, que se constitui em um Plano Nacional, que tem como meta a implementação da Rede, articulando os serviços, nos campos federal, estadual e municipal, como também serviços oferecidos pela sociedade civil e os movimentos sociais, particularmente os movimentos de mulheres e feministas.


“Além dos postulados legais, é importante que se considerem aspectos da cultura e da psicologia social referentes à formação de preconceitos e estigmas que circulam na sociedade.”

Ainda, como parte integrante dessa rede de auxílio, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SEPM está implantando um sistema de Ouvidoria, que tem como objetivo incentivar e apoiar a participação da mulher, consciente de seus direitos, constituindo-se em mais uma instância de enfrentamento de arbitrariedades e violência doméstica e de gênero. Para que o enfrentamento da violência seja efetivo é necessário que essa extensa Rede de Cidadania funcione articulada e com apoio do Estado e da sociedade, e que, a cada dia, outros setores e organizações a ela se incorporem, fazendo do enfrentamento da violência contra as mulheres um dos centros de suas políticas e ações. Para a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SEPM, o Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher é meta prioritária, e todos os esforços e recursos serão mobilizados para que esta Rede se estruture adequadamente e acolha as mulheres em situação de violência, dando a elas todo o suporte necessário (BRASIL, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2003, p. 51-53). Considerações finais A publicação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SEPM sobre o Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher – Plano Nacional (BRASIL, 2003) apresenta dados de significativa relevância para a compreensão do alcance e complexidade do problema e informa também as iniciativas e instâncias de proteção, oferecendo subsídios que enfatizam o reconhecimento da importância da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Por suas definições e alcance, ressalta-se a importância da Lei nº 11.340, 2006, pela criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do artigo 226 da Constituição Federal e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, e pelas suas disposições sobre a criação dos

Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Observam-se também os avanços na alteração do Código de Processo Penal, do Código Penal e da Lei de Execução Penal. A Lei considera como formas de violência as que se apontam no capítulo II, artigo 7º, incisos de I a V: violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial, violência moral. Essa compreensão ampla favorece, significativamente, o entendimento da extensão e variedade de abusos domésticos e de gênero. Sem dúvida, acredita-se que, tanto os estudos e pesquisas de gênero, como os estudos, publicações e ações da SEPM, como a Lei nº 11.340 de 7 de agosto de 2006, representem marcos significativos na compreensão e realizações em favor do enfrentamento de uma situação que afeta, sobretudo, direitos de cidadania e de dignidade humana. Além dos postulados legais, é importante que se consi­ derem aspectos da cultura e da psicologia social referentes à formação de preconceitos e estigmas que circulam na sociedade, provocando e naturalizando discriminações e processos de exclusão, que atingem as pessoas “classificadas”, por essas matrizes excludentes, como “menores” e “piores”. Paulo Freire (1999) discute, com muita propriedade, as categorias de “ser mais” e “ser menos”, que justificam a dominação e as arbitrariedades. Essas categorias são, sobretudo, justificadoras da violência, da desqualificação, da opressão. Uma sociedade inclusiva é aquela na qual as diferenças são respeitadas e acolhidas, de modo que não se transformem em desigualdades. Finalizam-se essas considerações reafirmando-se que o movimento atual em favor do respeito à diversidade e suas ações, no plano legal e social, representam uma mobilização relevante em favor da dignidade humana e da cidadania. A Lei nº 11.340, de agosto de 2006, é parte significativa desse movimento. 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


RELATIVIDADE DA IMUNIDADE DO ADVOGADO NO DESEMPENHO DE SUAS FUNÇÕES

EMBARGOS INFRINGENTES Nº 2007.005.00238 Relator: Origem:

Jds. Desembargador Renato Ricardo Barbosa NONA CÂMARA CÍVEL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

O

art. 133 da Constituição da República Federativa do Brasil e o art. 7º, § 2º, do Estatuto da OAB, dispõem sobre a inviolabilidade do advogado, por seus atos e manifestações no exercício da

profissão. No entanto, tal inviolabilidade é relativa, uma vez que a ofensa à honra e à moral, no decorrer do processo, às partes, aos magistrados que nele atuam, ou a qualquer envolvido nos autos, bem como qualquer excesso cometido pelo patrono é considerada como ilícita e fora dos limites da razoabilidade pretendida pelo nosso ordenamento jurídico. Sobre o tema, fui relator dos Embargos Infringentes que, respeitada a identidade das partes, seguem na íntegra, cujo entendimento por mim comungado foi votado por unanimidade na Nona Câmara Cível deste E. Tribunal de Justiça: NONA CÂMARA CÍVEL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO EMBARGOS INFRINGENTES Nº 2007.005.00238 RELATOR: Jds. Desembargador RENATO RICARDO BARBOSA Embargos Infringentes. Sentença de procedência da pretensão autoral 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009

reformada pelo Acórdão embargado. Manutenção do decisum a quo, em conformidade com o voto vencido, pois contém o entendimento mais adequado à solução da controvérsia. Provimento do recurso. Vistos, relatados e discutidos estes autos dos Embargos Infringentes nº 2007.005.00238, em que são embargantes Desembargadores deste Tribunal e embargado Advogado Ilustre. ACORDAM os Desembargadores componentes da E. 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por unanimidade, em dar provimento ao recurso, para que prevaleça o voto vencido. Rio,

de

de 200 .

Jds Desembargador Renato Ricardo Relator Voto Trata-se de ação de indenização por dano moral proposta pelos embargantes, desembargadores integrantes da Câmara Cível deste Tribunal, sob o fundamento de que o Embargado lhes teria ofendido a honra, quando em Embargos Declaratórios por ele opostos, na qualidade de advogado, contra a decisão que rejeitou exceção de suspeição


Foto: TJ/RJ

Desembargador do TJ/RJ, Renato Ricardo Barbosa

arguida pela sua cliente contra o Juiz de Direito da 1a Vara Cível da Comarca de Nova Friburgo, sugerindo a prática de corporativismo por parte daqueles. Sentença, às fls.163/166, julgou procedente o pedido, condenando o Embargado ao pagamento de indenização a cada um dos autores no valor de R$20.000,00 (vinte mil reais), devidamente corrigido, além das custas, despesas processuais e honorários advocatícios fixados em 10% sobre o valor da condenação. Inconformado com o decisum apelou o réu, ora Embargado, através das razões de fls. 169 usque 189, alegando, preliminarmente, cerceamento de defesa e, no mérito, a inexistência de dano a ser indenizado e o excesso do valor arbitrado. Os apelados ofertaram suas contra-razões, pela mantença da decisão e desprovimento do recurso. Divergiu a Colenda 17ª Câmara Cível deste Tribunal, decidindo por maioria de seus membros pelo provimento da apelação para julgar improcedente o pedido, invertendo os ônus sucumbenciais (fls.213/223). Forte no tema contido no voto vencido do ilustre Desembargador Relator Marcos Alcino de Azevedo Torres (fls. 224/231), formularam os autores os presentes Embargos Infringentes (fls. 234/240), a fim de modificar a posição majoritária e derivada do voto do relator designado,

Desembargador Edson Vasconcelos. O Embargado se manifestou às fls. 243/258. O recurso é tempestivo. Cuidam-se de Embargos Infringentes opostos por Desembargadores deste Tribunal ao Acórdão de fls. 213/223 que, por maioria, deu provimento ao apelo do Embargado. Após minucioso exame das provas e das alegações, concluise que merece integral provimento o presente recurso, posto que o d. voto vencido foi o que dera a adequada solução à controvérsia. E assim, conclui-se, pelo fato de considerar que não se pode tolerar o excesso. O Desembargador Marcos Alcino de Azevedo Torres, ementou seu voto nos seguintes termos: Responsabilidade Civil. Advogado. Passagem ofensiva à dignidade do magistrado. Sugestão de julgamento corporativo. Abuso de direito. Liberdade de crítica que encontra limites na vedação à ofensa aos bens da vida protegidos pela ordem jurídica, em sua gradação principiológica. É dever dos operadores de direito tratar-se com consideração e respeito recíprocos” (art. 6º, Estatuto da Advocacia). Dano moral. Quantificação. Patrimônio do ofensor que se deve levar em conta, a fim de evitar que a indenização seja arbitrada em valor inalcançável ao autor do dano, 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


“a imunidade profissional do advogado não dá a ele o direito de ofender a honra alheia. A sua inviolabilidade, indicada no art. 133 da CRFB/88, não o torna imune a responder por todo e qualquer excesso cometido no exercício da Advocacia.”

desde que no descumprimento e, daí, na ineficácia junto ao meio social ao qual se dirige a tutela judicial, em sua finalidade educativa. Aspecto punitivo da indenização. A inviolabilidade do advogado, por seus atos e manifestações no exercício da profissão, está consagrada na 2ª parte do art. 133 da CRFB e no art. 7º, § 2º, do Estatuto da OAB. Entretanto, essa imunidade deve guardar relação com os limites legais e razoáveis da demanda, sendo vedado o ataque ilícito e imoral a qualquer dos envolvidos no processo. Desta forma, a imunidade profissional do advogado não dá a ele o direito de ofender a honra alheia. A sua inviolabilidade, indicada no art. 133 da CRFB/88, não o torna imune a responder por todo e qualquer excesso cometido no exercício da Advocacia. Salta aos olhos o excesso praticado pelo Embargado, transbordando o direito de livre expressão do pensamento. Em razão deste excesso, atingiu a honra dos magistrados. Considera-se ilícito o ato praticado em descompasso com o ordenamento jurídico, devendo ser punido e desestimulado. Toda lesão a qualquer direito traz como conseqüência a obrigação de indenizar. O respeito entre magistrados, advogados e membros do Ministério Público restou codificado pelo art. 6º do EOAB: Não há hierarquia ou subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, ressaltando que todos devem tratar-se com consideração e respeito recíprocos. Dúvidas inexistem no sentido de que a gratuita afirmação, extrapolando os limites fixados pelo ordenamento jurídico, causou aos Embargantes ofensa a justificar a necessidade de reparação. Como ressalta o ilustre Desembargador Marcos Alcino de Azevedo Torres, ao fundamentar seu voto: 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009

A imparcialidade é um princípio que se faz verdadeiro requisito ao exercício da magistratura, na medida em que tem por finalidade distribuir justiça, provendo a cada qual o que lhe é de direito. Imputar a um magistrado, no julgamento da suspeição argüida contra um colega de primeiro grau, conduta corporativista – o que implica dizer parcial, já que não trata com isonomia as partes em disputa – equivale a afirmar que não se verifica no criticado o requisito essencial para o desempenho da magistratura, e assim, que não estaria aquele a altura desta. Adoto o entendimento de que o disposto no artigo 133 da Constituição Federal não traz um direito ilimitado à prática da Advocacia. Tal dispositivo é um instrumento de apoio à atuação profissional do advogado, mas que não o protege de ser processado quando extrapola as necessidades do ofício. A sua imunidade, de acordo com a farta jurisprudência, não é absoluta, restringindo-se aos atos cometidos no exercício da profissão em função de argumentação relacionada diretamente à causa. Induvidosas as exigências morais ao exercício tanto da Magistratura quanto da Advocacia, seja entre seus pares e demais operadores do Direito, seja na comunidade na qual exerce suas atribuições. O Embargado se excedeu no exercício de sua atividade, utilizando em seus Embargos termos ofensivos à honra dos Embargantes e completamente divorciados do objeto do recurso, demonstrando a evidente intenção de ofender. Oportuniza trazer as decisões a seguir do STJ, TJ/RJ e TJ/RS: “EXCEÇÃO DA VERDADE. ADVOGADO QUE ATRIBUI CONDUTAS CRIMINOSAS AOS JULGADORES DA APELAÇÃO DA PARTE ADVERSA. TOTAL AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO


DA VERACIDADE DOS FATOS NARRADOS. 1. A imunidade prevista no art. 133 da Constituição Federal e art. 7º, § 2º, da Lei nº 8.906/94 não é absoluta, estando circunscrita aos limites da lei, restando clara a possibilidade de, em tese, uma vez extrapolado o limite legal, o advogado cometer o crime de calúnia no exercício profissional. Precedentes do STJ. 2. O Excipiente não logrou provar a efetiva ocorrência das condutas delituosas as quais foram atribuídas aos Exceptos. 3. Exceção da verdade julgada improcedente. ExVerd 51 / SP EXCEÇÃO DA VERDADE 2006/0123217 – 4 Ministra LAURITA VAZ (1120) CE – CORTE ESPECIAL – JULGAMENTO 16.5.2007 – DJ 28.6.2007 – P. 461 EXCEÇÃO PROCESSUAL (CPC, 304/6). (I) Meio de Impugnação da Decisão. Apelação. Inadequação. Fungibilidade Recursal. Inadmissibilidade. Erro Crasso. A exceção de suspeição configura incidente processual, não havendo nova res in iudicium deducta, ou seja, não configura novo processo. Logo, o pronunciamento judicial que a indefere liminarmente, ou a resolve, não caracteriza sentença, mas decisão interlocutória (CPC, 162, §§ 1º e 2º). O meio adequado de impugnação é o agravo de instrumento, a teor do disposto nos artigos 522 e 162, §3º, ambos do Código de Processo Civil. Constitui erro crasso interpor recurso de apelação contra a decisão sub examen, razão pela qual não se há de falar em fungibilidade recursal. (II) SUSPEIÇÃO DE PROMOTORES DE JUSTIÇA. Inadequação do Rito. Falta de Interesse Processual. Os membros do Ministério Público não se sujeitam a tal exceção ritual, mas sim à arguição prevista no artigo 138 do Código de Processo Civil. A diferença entre o procedimento de arguição da suspeição em ambas as situações é cristalina, ante os claros e expressos termos das normas contidas nos §§ 1º e 2º do artigo 138 e dos artigos 304/6 c/c 312/4, todos do Código de Processo Civil. (III) ADVOGADO. Litigância de Má-fé. Possibilidade. Deveres Ético-processuais. Subsunção. Alegação de Imunidade Profissional. Caráter Relativo. Responsabilidade Civil x Responsabilidade Processual. A observância dos deveres éticoprocessuais por todos os sujeitos participantes do processo é um imperativo do devido processo legal e do acesso à ordem jurídica justa (CR, 5º, XXXV, LIV, LV, LXXVIII), consectários necessários de um Estado Democrático de Direito (CR, 1º, caput). A imunidade profissional do advogado não é absoluta. Também ele se sujeita a freios ético-jurídicos encontrados em nosso ordenamento positivo. Seria indecente imunizar os advogados não só às sanções referentes aos atos desleais e ilícitos, como também aos próprios deveres éticos inerentes ao processo;

se todos têm o dever de proceder no processo com lealdade e boa-fé, de expor fatos em juízo conforme a verdade, chegaria a ser inconstitucional dispensá-los de toda essa carga ética, ou de parte dela, somente em nome de uma independência funcional. (C.R. DINAMARCO. “A Reforma da Reforma”, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 68). A recorrente considera sinônimas a responsabilidade processual e a responsabilidade civil. O equívoco é evidente: aquela, em que pese o truísmo, tem natureza processual e decorre da violação às normas com esse mesmo caráter (previstas no Código de Processo Civil); esta natureza substancial decorrente da violação de preceitos de direito material previstos na legislação (Código Civil e Estatuto da OAB). Desprovimento do recurso DES. SERGIO CAVALIERI FILHO – Julgamento: 17.8.2007 – DÉCIMA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL 2007.001.43604 – APELAÇÃO CÍVEL “DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DANO MORAL. INDENIZAÇÃO. ADVOGADO EXCESSO. INAPLICABILIDADE DA “IMUNIDADE” PROFISSIONAL. PRECEDENTE. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. LEGITIMIDADE PASSIVA DO ADVOGADO. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. REEXAME DOS FATOS DA CAUSA. DANO MORAL. LIQUIDAÇÃO. RECURSO DESACOLHIDO. I – Segundo a jurisprudência da Corte, a imunidade conferida ao advogado no exercício da sua bela e árdua profissão não constitui um bill of indemnity. A imunidade profissional garantida ao advogado pelo Estatuto da Advocacia não alberga os excessos cometidos pelo profissional em afronta à honra de qualquer das pessoas envolvidas no processo. II – O advogado, assim como qualquer outro profissional, é responsável pelos danos que causar no exercício de sua profissão. Caso contrário, jamais seria ele punido por seus excessos, ficando a responsabilidade sempre para a parte que representa, o que não tem respaldo em nosso ordenamento jurídico, inclusive no próprio Estatuto da Ordem.(...)” (STJ. RESP 163221/ES. Quarta Turma, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julgado em 14.3.2000). Portanto, à conta de tais fundamentos, dá-se provimento ao recurso, e julga-se procedente a pretensão autoral, nos termos do voto vencido, para fixar o valor da indenização em R$10.000,00 (dez mil reais) para cada autor, devidamente corrigido a partir da sentença e acrescido de juros de 1% ao mês a contar da citação. É como voto. Rio de janeiro

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Jds. Desembargador Renato Ricardo Barbosa Relator 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


ALTERAÇÕES DE PRAZO NAS CONCESSÕES E PERMISSÕES DE SERVIÇO PÚBLICO Gustavo Binenbojm Procurador do Estado do Rio de Janeiro

Transcrição da palestra proferida no Seminário “Questões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo”

Incumbido de falar sobre um tema dos mais delicados, que é “Prorrogações – Alterações de Prazo nas Concessões e Permissões de Serviço Público”, permitirme-ei fazer uma breve introdução sobre o tema, porque me parece ser esse um dos tópicos ainda pouco compreendidos em sua dimensão finalística, tanto pela doutrina como por parte ainda da jurisprudência de nossos tribunais. Quando se fala em serviço público, há de se ter em mente que está se tratando de um conjunto de atividades que o Estado toma para si, seja como prestador direto, seja como regulador, tendo em vista a viabilização do fornecimento de algumas utilidades essenciais à população. Por outras palavras, a idéia de serviço público traduz atividades que, de tão essenciais, tão cruciais para a realização de direitos fundamentais das pessoas e para o desenvolvimento do país, não seriam plenamente realizadas ou satisfatoriamente implementadas se entregues, pura e simplesmente, ao domínio da iniciativa privada. Dessa forma, o regime jurídico dos serviços públicos deve ser compreendido como uma espécie de estratégia institucional do Estado, no sentido de viabilizar a realização de direitos fundamentais dos cidadãos e de promover o desenvolvimento do país, que, de outra forma, não se alcançaria. A Constituição, no seu artigo 175, caput, menciona que compete ao Poder Público prestar os serviços públicos, direta

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ou indiretamente; nesse segundo caso, mediante concessões e permissões. A prestação direta traduz a antiga idéia do serviço público como um serviço estatal, prestado por meio da instrumentalidade do Estado, dos seus servidores públicos, obviamente remunerados pela via orçamentária, com a oneração dos contribuintes. A outra via, resgatada nas últimas quadras do século XX e com muita força nesse início do século XXI, é a da prestação direta, mediante contratos de concessão e permissão desses serviços. As concessões e permissões do serviço público são, portanto, uma espécie de acordo garantido pelo Estado, mediante o qual esse atrai a iniciativa privada para realizar por ele, com recursos privados, atividades que lhe incumbiriam prestar e realizar. O Estado, entretanto, faz esse acordo por uma via institucional, que são os contratos de concessão e permissão. Como o Estado tem inúmeras finalidades a acudir, e se vê jungido por recursos orçamentários limitados, ele lança mão da estratégia de utilizar a iniciativa privada não mais como um fim em si mesmo, mas tendo um fim instrumental para realizar os direitos fundamentais subjacentes à idéia de serviço público. Nesse Seminário, tratamos de um direito fundamental básico: o direito de ir e vir, o direito de locomoção, que é inerente à dignidade de qualquer pessoa, não só para a realização do seu trabalho, para a realização do seu lazer, mas também


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em uma dimensão objetiva de promoção do desenvolvimento nacional, da ocupação adequada do espaço urbano, tem uma íntima relação com o direito à moradia, com o equilíbrio nas grandes metrópoles. Esse regime jurídico traduz aquilo que Norbert Reich chama de uma relação de dupla instrumentalidade. De um lado, o Estado atrai o setor privado para assumir concessões e permissões e através dele realizar finalidades que àquele incumbiria realizar – ou seja, o Estado utiliza as empresas privadas, gerando um regime jurídico pelo qual estas empresas serão induzidas ao cumprimento de finalidades que interessam a toda a sociedade –; e, de outro lado, a impossibilidade do Estado no ambiente constitucional, no Estado Democrático de Direito, de realizar eficientemente esse fim – de atrair as empresas privadas –, se não estabelecendo os marcos jurídicos claros dentro dos quais esses serviços públicos serão prestados. Essa atividade será explorada pelos concessionários e permissionários, sem que para isso ocorra qualquer tipo de confisco da propriedade privada, ou qualquer tipo de negação dos seus direitos. Esse é o marco básico da idéia de concessão e permissão de serviço público. Apenas para lembrar, com a concessão ou com a permissão não se dá a privatização do serviço. O serviço conserva sua natureza pública, o que se garante pela aplicação ao regime das

empresas concessionárias e permissionárias de regras próprias do Direito Público, tais como uma regulação intensa de preços. Basicamente a teoria econômica fala em três tipos de regulação que retiram uma atividade do domínio puramente privado e a coloca no domínio do serviço público: regulação de preços, de quantidade e de qualidade do serviço prestado. Desta forma, a nossa realidade é vinculada ao direito romano-germânico, que trabalha com a idéia de um regime jurídico próprio de serviços públicos, considerando-se que no mundo anglo-saxônico tudo é atividade econômica, variando apenas o grau de regulação. Essa regulação de preços dos serviços públicos é chamada de política tarifária. A política tarifária é um instrumento que o Estado tem para regular o preço que os concessionários podem cobrar dos seus usuários; é o coração de qualquer regime eficaz de prestação de serviços públicos. A tarifa paga pelo usuário está sujeita a um princípio fundamental, o princípio da modicidade, sem o qual o serviço público não atinge o seu fim, que é tornarse acessível a toda a gente e, sobretudo, à população de baixa renda. De outro lado, essa tarifa não pode ser achatada ao ponto de inviabilizar a sustentabilidade do serviço. Ela tem que ser, nessa relação de dupla instrumentalidade, baixa o bastante para viabilizar a universalização do acesso dos usuários, mas suficientemente modulada para garantir a remuneração dos investimentos que o Estado exigiu do concessionário no momento em que o chamou, através de licitação, para celebração de um contrato de concessão ou permissão. Se a tarifa é achatada demais, alguma coisa não vai funcionar bem no serviço, ou então ocorrerá o que nós conhecemos como expropriação regulatória. O papel do Estado, quando faz uma concessão ou permissão, é exercitar juízos de prudência, juízos de ponderação, juízos de razoabilidade, modulando o valor da tarifa com vistas a garantir a continuidade do serviço em boa qualidade, com adequação, com atualidade, permitindo que a tarifa seja módica, mas sem inviabilizar economicamente a continuidade do negócio. Dentro dessa idéia, o Direito Positivo brasileiro, desde a Constituição, estabeleceu alguns princípios básicos que hão de ser observados em qualquer concessão ou permissão de serviço público que vise a harmonia dos interesses das partes. De um lado, os interesses sociais, promovidos pelo Estado ao criar um regime jurídico especial para o serviço público, que impõe a modicidade tarifária, que exige normas de segurança na prestação do serviço – no caso dos transportes, uma idade média máxima para a frota, exigências de comodidade, garantias quanto à continuidade e periodicidade do serviço para atender a todos os usuários –; por outro lado, o Direito vai assegurar basicamente aos concessionários algumas garantias mínimas de retorno desse investimento, que podem ser reduzidas a um único instituto do Direito Administrativo: o equilíbrio da equação econômico-financeira das empresas concessionárias e permissionárias. Esse equilíbrio pode ser traduzido em uma velha idéia do Direito Civil, oriunda do Direito Romano, a idéia de sinalagma, de relação de equivalência entre as obrigações e os encargos dos concessionários e permissionários de um lado, 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


“As tecnologias se transformam, novos avanços em termos de segurança, de conforto, de garantias de atendimento contínuo e adequado aos usuários levam o Poder Público a impor novos encargos, novas obrigações aos concessionários e permissionários, e essas novas obrigações necessariamente incrementam encargos.”

e as retribuições que lhe são previstas nos seus contratos de concessão ou permissão – ou previstas de alguma forma em lei ou ato normativo administrativo –, de outro. A manutenção dessa relação de equivalência entre encargos de um lado e retribuições de outro é a garantia institucional oferecida pelo Direito. No caso do Direito brasileiro, de matriz constitucional, é reproduzida na Lei Geral de Concessões e Permissões, Lei Federal nº 8.987/95, que visa harmonizar os interesses dos concessionários e os interesses sociais. Na verdade, essa harmonização pretende alcançar um grau otimizado de atendimento ao interesse público, porque não se pode imaginar um funcionamento saudável dos serviços públicos sem que os concessionários tenham direito à amortização dos seus investimentos, à taxa de retorno esperada em seus negócios e que possam com isso realizar investimentos para cumprir metas de universalização impostas pelo Poder Público, como por exemplo: a modernização dos equipamentos com que prestam os seus serviços e a garantia de segurança e conforto para os seus usuários. Dessa forma, a preservação, a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro é condição sine qua non para o bom funcionamento das concessões e permissões. Nada obstante disso, sabemos que o regime jurídico dos serviços públicos se caracteriza pela mutabilidade. O Poder Público, quando faz a delegação contratual às empresas privadas, conserva para si um papel de regulador. Apesar de explorados por empresas privadas, as normas que vão presidir o funcionamento daqueles serviços são estabelecidas pelo Estado, que fixa o valor das tarifas, com maior ou menor flexibilidade. Dentro dessa idéia, é natural que o regime jurídico possa se modificar. As tecnologias se transformam, novos avanços em termos de segurança, de conforto, de garantias de atendimento contínuo e adequado aos usuários levam o Poder Público a impor novos encargos, novas obrigações aos concessionários e permissionários, e essas novas obrigações necessariamente 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009

incrementam encargos que, em contrapartida, devem ter algum tipo de remuneração como condição para garantia do equilíbrio econômico-financeiro. Essa garantia tem repercussão direta no tema central da minha exposição, que é a possibilidade, ou não, de prorrogação do prazo de duração das concessões ou permissões de serviços públicos. Normalmente, quando há um incremento de um encargo, a solução que o Poder Público apresenta é uma dentre essas que elencarei a seguir. Mais do que comum no Direito brasileiro são as chamadas gratuidades dos transportes coletivos, que, na realidade, não são gratuitas, considerando-se que na economia capitalista tudo é precificado. Se alguma coisa que custa não é remunerada, de algum lugar esse custo vai sair. Paul Samuelson, prêmio Nobel de Economia, diz que as coisas gratuitas normalmente valem o quanto custam. Em outras palavras, quando não se tem a fonte de custeio adequada, normalmente o serviço que se oferece não é aquele esperado. Nesse sentido, dando exemplo de um poder diretivo que cria um encargo superveniente às concessionárias e permissionárias, a gratuidade dos serviços públicos – não prevista originalmente nos contratos de concessão e permissão – é uma inovação que incrementa um encargo e normalmente não é remunerada adequadamente nas diversas instâncias do Poder no Brasil. A fórmula de que o Poder Público tem se utilizado para remunerar adequadamente a instituição da gratuidade é, em primeiro lugar, a oneração dos demais usuários através de um incremento tarifário. Muitas vezes, os concessionários e os permissionários deixam de postular aumento tarifário porque sabem que isso importará em perda de usuários, visto que a tarifa já se encontra no limite da sua modicidade e esse aumento não será possível, tampouco adequado para que o serviço público atinja os seus fins. No entanto, havendo essa margem, o incremento tarifário é delegado pelo Poder Público sob os mais diferentes fundamentos, todos eles normalmente convergentes para a idéia


de populismo tarifário, que é o que aconteceu na Argentina, muito recentemente, no setor elétrico. Néstor Kirchner, ao eleger sua mulher, Cristina, como Presidente da República na Argentina, colocou um torniquete nas tarifas de energia elétrica do país, resultando em uma retração tão grande de investimentos no setor que o país mergulhou durante vários meses em um grande apagão elétrico, com prejuízo para a atividade econômica, para a geração de empregos e, sobretudo, para o dia-a-dia de vida dos cidadãos argentinos. Uma outra possibilidade, que não o aumento tarifário, é a oneração dos contribuintes. A fonte de custeio pode não ser o pagamento de mais tarifas pelos usuários, mas o pagamento de mais impostos, de mais tributos pelos contribuintes, e nesse sentido há, inclusive, uma previsão constitucional de que novos benefícios assistenciais devem sempre se fazer acompanhar da respectiva fonte de custeio. Quando não o aumento tarifário, a revisão da estrutura tarifária pode servir de previsão em uma fonte orçamentária para fazer frente àquele novo encargo imposto ao concessionário. Também é uma prática comum no Brasil os governantes criarem, de maneira nem sempre responsável, esse tipo de benefício tarifário, de gratuidades ou descontos, sem a fonte de custeio orçamentária. O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro tem sido implacável, a meu ver com toda a razão, na declaração da inconstitucionalidade dessas leis e atos normativos que, a pretexto de beneficiarem alguns usuários, irresponsavelmente não contêm uma fonte de custeio ou previsão de alguma reposição tarifária, prejudicando não só os beneficiários da gratuidade, mas todos os usuários, porque o serviço não terá condição de ser prestado da forma adequada. Outras modalidades de reposição seriam: a criação de algum mecanismo de isenção fiscal que indenizasse os concessionários pelos encargos supervenientes; a redução de encargos em troca dos que foram incrementados; e, finalmente, chegamos à possibilidade de se haver, ou não, uma prorrogação de prazos, que representará uma forma de pagamento de indenização por pendências financeiras ainda não amortizadas que o Poder Público tenha gerado junto aos concessionários e permissionários. Essa prorrogação representará uma forma de pagamento de indenização, através dos recebíveis dos concessionários e permissionários, pelo prazo estendido nas suas concessões e permissões. Essa idéia não é nenhuma originalidade da escola carioca de Direito Público, ela é defendida pelos mais ilustres publicistas brasileiros, desde o mestre saudoso Hely Lopes Meirelles, passando pelo mestre de São Paulo, Celso Antônio Bandeira de Mello, até professores mais jovens como Marçal Justen Filho, Carlos Ari Sundfeld, de São Paulo, Marcos Juruena, Alexandre Aragão, e outros publicistas da cidade do Rio de Janeiro. Essa é uma idéia que esbarra em um grande preconceito e, a meu ver, em uma dificuldade de entendimento sobre o papel do Poder Público na gestão das concessões e permissões de serviços públicos.

Quando se fala em prorrogação do prazo de uma concessão ou permissão de serviço público, trata-se de uma situação em que determinadas concessões que tinham um termo final, ou que já vigiam precariamente por prazo indeterminado – ou como em muitos casos, e essa é a realidade brasileira, de municípios que não tenham o instrumento formal de outorga –, são extintas pelo Poder Público, que transfere as pendências existentes com os concessionários e permissionários para um futuro Governo, preferencialmente de oposição. Normalmente isso acontece em períodos pré-eleitorais, em que a opinião pública aplaude iniciativas aparentemente revestidas de argumentos de moralidades, mas que no fundo, no seu espírito, podem prejudicar sobremaneira o bom funcionamento de um setor e, sobretudo, da população usuária. A Lei Federal nº 8.987/95, recentemente alterada, prevê que o Poder Público deve ter uma conduta de responsabilidade fiscal no trato do dinheiro do contribuinte e na gestão do próprio serviço público. É preciso que, antes de qualquer medida tendente à extinção das concessões e permissões, haja um levantamento detalhado de todas as pendências financeiras que tenham surgido do Poder Público para com os concessionários e os permissionários, no que se refere àquelas determinações emanadas do próprio Poder Público e que geraram investimentos dessas empresas ainda não amortizados. Refiro-me, por exemplo, a bens reversíveis adquiridos pelo concessionário e transferidos, ao cabo da concessão ou da permissão, para o patrimônio público. A Lei Geral de Concessões estabelece claramente que esses bens reversíveis devem ser indenizados – por exemplo: o não cumprimento de taxas de retorno por força de achatamentos tarifários; o estabelecimento de gratuidades ou descontos tarifários sem fonte de custeio; investimentos exigidos pelo Poder Público com modernização de equipamentos e realização de obras, com vistas à maior eficiência e à maior comodidade dos usuários –, caso não tenham sido amortizados no curso da prestação de serviço dentro do prazo estabelecido. Contudo, se o Poder Público assim não fizer, estar-se-á consagrando o confisco, o desrespeito ao direito de propriedade e a elevação do enriquecimento sem causa do Poder Público à condição de princípio constitucional. É nesse ponto que entra a possibilidade da extensão de prazos de concessão, prática adotada em quase todos os países civilizados do mundo, como exceção e não como regra, mas, eventualmente, como a medida administrativa mais eficiente para atender aos interesses, não só dos concessionários, mas dos usuários, dos contribuintes e da sociedade como um todo. Refiro-me, usando a terminologia mais moderna do Direito Constitucional, a uma espécie de ponderação entre princípios constitucionais que o poder concedente não executa por favor, mas por obrigação. Sempre que se fala em prorrogação e alteração de prazo de uma concessão ou permissão, o princípio constitucional que vemos imediatamente como violado é o da licitação. A Constituição, no seu artigo 175, caput, estabelece que a prestação do serviço público dar-se-á diretamente ou, 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29


mediante concessão ou permissão, sempre por licitação. Pois bem, nessas prorrogações o que se imagina é que o princípio da licitação estaria sendo violado por esta não ter sido realizada ao término do prazo contratualmente previsto, ou nos casos de vigência precária de concessões e permissões que já vigem por prazo indeterminado. Esse princípio pode até não estar sendo atendido no momento da prorrogação, mas lembro que o princípio da licitação é um dentre vários outros princípios reitores da atividade da administração pública, e especialmente da prestação de serviços públicos mediante concessão ou permissão. Aqui posso mencionar quatro princípios básicos que nesses momentos cruciais podem justificar a ação da administração em realizar uma prorrogação/alteração do prazo final da concessão, da permissão. Em primeiro lugar, o princípio da eficiência – elevado à condição de princípio constitucional ao ser introduzido no caput do artigo 37 da Constituição, pela Emenda Constitucional nº 19 de 98 – deve significar a maximização de resultados para a sociedade através da otimização dos recursos dela retirados pelo Poder Público. A idéia de gestão eficiente de recursos públicos é uma das aplicações mais importantes do princípio da eficiência. Se é possível não onerar o contribuinte com pagamentos de indenizações que, em muitos casos, municípios e estados não podem pagar, tamanha a magnitude das dívidas que têm com empresas concessionárias e permissionárias através da prorrogação do prazo, esta pode ser a melhor forma de realizar o princípio da eficiência; pode significar uma maneira de indenizar o concessionário, sem que haja desembolso por parte do Poder Público. O contribuinte agradece. Além disso, há o princípio da economicidade previsto no artigo 70 da Constituição Federal, aqui entendido como a forma de otimizar o uso dos recursos públicos de uma maneira um pouco mais restrita. A idéia de que não pode haver dispêndio de recursos públicos, sem a demonstração de que se trata do melhor custo-benefício, se enquadra perfeitamente à prorrogação. Além desses, o princípio da continuidade do serviço público, que poderia ser comprometido por licitações complexas, que podem se mostrar, na prática, litigiosas – muitas delas não chegando a bom termo –, acarretando necessariamente em prejuízo para a população usuária. E, por fim, refiro-me a um princípio de segurança jurídica, que o Supremo Tribunal Federal, pela pena do ministro Gilmar Mendes, tem admitido como encartado na Constituição, que é o princípio da proteção da confiança legítima. Quem é induzido pelo Poder Público a realizar investimentos, a modernizar seus equipamentos, a pagar por gratuidades, a atender sem pagamento de tarifa determinados usuários sem a devida compensação, tem uma garantia constitucional de que de alguma forma deverá ser remunerado. Como é que fica o princípio da licitação diante disso? Parece-me que a solução é menos complexa do que vem sendo cogitada, considerando-se que o artigo 37, inciso XXI, da Constituição, quando exige a licitação como condição prévia 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009

para contratos do Poder Público, diz expressamente: ressalvados os casos especificados na legislação. Essas ressalvas costumam ser apresentadas pela doutrina como sendo: a inexigibilidade, quando a competição é inviável; ou a dispensa, quando o Poder Público, via Legislativo, entende que há razões suficientes de conveniência e oportunidade que afastem momentaneamente o dever de licitar com vistas a maximizar o interesse público e a melhor atender a sociedade. Esse último caso é disciplinado pela Lei nº 8.666/93. Se a própria Constituição traz a janela constitucional pela qual é possível que leis estabeleçam exceções ao dever de licitar, mediante a criação de hipóteses de dispensa ou de inexigibilidade, o que impediria que, nessas circunstâncias fáticas apresentadas, o legislador federal, estadual ou municipal, em relação aos serviços respectivos, pudesse concluir que a melhor maneira de preservar o equilíbrio econômico-financeiro de contratos de concessão e permissão é não onerar o contribuinte, não onerar o usuário, não descumprir a Constituição criando enriquecimento sem causa por meio da alteração do prazo de vigência dessas concessões e permissões como forma de pagar aquilo que por direito é devido às empresas concessionárias e permissionárias? Não estou fazendo apologia ao fim das licitações. Acho que a licitação tem um papel importante, porém instrumental: garantir a isonomia entre todos os interessados e permitir a seleção da proposta que seja mais vantajosa para o Estado e para a sociedade. Essa finalidade instrumental, todavia, pode ceder em algumas circunstâncias, elencadas pela Lei nº 8.666/93, nada impedindo, entretanto, que outras circunstâncias possam ser consideradas em busca do atendimento aos princípios da eficiência, da economicidade, da continuidade dos serviços públicos e ao princípio da proteção da confiança legítima. É assim que, a meu ver, deve ser interpretada a inovação legislativa introduzida no artigo 42, §1º, §§3º a 6º, da Lei nº 8.987/95 e pela Lei nº 11.445/07. Cabe sinalizar apenas que o legislador federal, especificamente para os serviços públicos federais concedidos, estabeleceu um dever procedimental, através dos órgãos competentes, para que, antes da extinção dos contratos de concessão ou permissão, se realize um levantamento sobre as pendências financeiras de investimentos não amortizados, ou seja, de dívidas que o Poder Público Federal tenha contraído com as empresas concessionárias e permissionárias. Esse me parece ser o modelo que deve nortear o procedimento de estados e municípios, embora, por ser uma norma geral federal, não se aplique diretamente a estes. A meu ver, esse procedimento é válido, possível, e a questão da licitação deve ser avaliada, caso a caso, verificando se trata-se de uma prorrogação sem fundamento ou se essa prorrogação concretiza, em relação às concessões e permissões do município ou Estado em questão, alguma espécie de remuneração de investimentos não amortizados, de bens cuja aquisição foi exigida aos concessionários; enfim, de encargos que foram incrementados e que não tiveram a devida retribuição.”


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CONSTITUIÇÃO, MAGISTRATURA E VONTADE POPULAR

Siro Darlan Desembargador do TJ/RJ

Foto: TJ/RJ

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utamos e esperamos tantos anos pela reconquista do Estado Democrático de Direito e escrevemos com tanta paixão a Carta Cidadã que não podemos aceitar qualquer retrocesso do tipo “os fins justificam os meios”; deve haver um limite à atuação do particular, assim como do Estado. Sabe-se que nos Estados autoritários não há limites para o exercício do poder, ali ele é exercido ao talante de quem o detém. No Brasil vive-se o paradoxo da busca da concretude do projeto constitucional, i.e, a construção de uma democracia em sentido material, na qual a efetiva participação dos cidadãos nas decisões políticas some-se ao respeito aos direitos fundamentais de toda a população. Parcela considerável da sociedade, ainda influenciada pelos anos da Ditadura, acredita que a Constituição da República representa um óbice aos seus desejos pessoais. Essa visão não é nova. Carl Schmitt, constitucionalista alemão filiado ao partido Nazista, ao afirmar que “nós somos a Constituição”, apontava para a desnecessidade de limites constitucionais e, não por acaso, declarava-se contrário à idéia de um controle da constitucionalidade dos atos estatais (apara o jurista do início do século XX, a atribuição para esse “controle” deveria ser do Presidente do reich). Também no fascismo e no stalinismo procurava-se justificar a violência e a negação de direitos a partir de uma afirmada “vontade popular”. A negação dos direitos das minorias, historicamente, só foi possível em razão do “sentimento popular” ou da “vontade da maioria”.


Os últimos acontecimentos midiáticos retratam a existência de um confronto entre concepções democráticas e autoritárias, e causa especial preocupação a postura de algumas instituições, como a da Polícia Federal, parte do Ministério Público e da Magistratura que, mesmo com boas intenções (e de boas intenções o inferno está cheio), transigem com os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal e nos tratados internacionais. Ao ceder à tentação populista, magistrados passam a julgar de acordo com a opinião pública (por vezes, forjada na desinformação), ora com a opinião publicada, e esquecem da natureza contramajoritária da Magistratura, que tem o dever legal de atuar contra maiorias de ocasião sempre que for necessário à garantia dos direitos fundamentais. Essa parcela da Magistratura ignora que a legitimidade de sua atuação não advém do voto popular, mas do respeito à Constituição Federal. Sem pudor, esquecem que a função deles é de garantir a Constituição e passam a decidir de forma arbitrária e de acordo com suas próprias convicções ou perversões; descumprem a lei a pretexto de melhor cumpri-la (na seara penal, com o intuito de punir quem viola a lei, violam a lei). Arriscam os direitos das minorias ao não reconhecer que os direitos fundamentais são “trunfos” democráticos contra a maioria (Dworkin). Em suma, esses magistrados não acreditam em limites externos à sua atuação. A Constituição Federal não é um mero pedaço de papel, com idéias abstratas e desconsideráveis. As regras e os princípios inscritos no texto constitucional, a partir de intérpretes comprometidos com a democracia, transformam-

se em normas que constituem (e vinculam) a sociedade brasileira, em especial servem de limites intransponíveis a toda e qualquer atuação, particular ou pública. É verdade que o intérprete deve aplicar a lei com os olhos voltados para a sociedade, mas não para conservá-la tal como está, o que significaria perpetuar as desigualdades e o autoritarismo que existem. Um juiz não pode, por exemplo, reproduzir em suas decisões o desapego aos valores constitucionais que se vê nas ruas; não pode igualmente ignorar os valores constitucionais do direito à comunicação social, assim como o respeito à dignidade da pessoa humana e do direito à privacidade e intimidade. O juiz comprometido com a democracia, por outro lado, atua de forma transformadora, para dar concretude, para tornar real o projeto constitucional, a sociedade desenhada na Constituição. Na concepção democrática da Magistratura exige-se que o juiz se interprete ao interpretar a lei, como forma de podar preconceitos e pré-compreensões que contrariem a Constituição. Por vezes, o magistrado se depara com situações em que é mais fácil, poder-se-ia dizer mais cômodo, ignorar os limites constitucionais para alcançar os fins desejados; porém, sobretudo nesses casos, deve reafirmar seu compromisso com a democracia, reconhecer que sua vontade não se sobrepõe à vontade do legislador constituinte e atender às “regras do jogo” democrático, que tem como antítese o arbítrio e a falta de limites ao exercício do poder. Se o projeto constitucional de vida digna para todos ainda não foi alcançado, como admitir o afastamento da Constituição? 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


Varas Trabalhistas de Fazenda Pública: Mais um desafio para a “nova” Justiça do Trabalho

Rafael Rolim de Minto Procurador do Estado/RJ Procurador Chefe da Procuradoria Trabalhista

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ltrapassados quatros anos das alterações promovidas pela Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, também conhecida como “Reforma do Judiciário”, a Justiça do Trabalho ainda convive com inúmeros dilemas oriundos da expressiva ampliação da sua competência. Embora exista considerável resistência à nova realidade vivida pela Justiça Trabalhista, não restam dúvidas que os avanços desejados pelo Poder Constituinte derivado vão se tornando realidade a cada dia que passa. Tais avanços, contudo, devem estar acompanhados de medidas que contemplem uma maior eficiência operativa na administração da Justiça do Trabalho. Em outras palavras, a multiplicação da competência daquela Justiça Especializada impõe uma gestão cada vez mais eficiente em termos de plena satisfação dos jurisdicionados com os menores custos para a sociedade. A especialização das varas trabalhistas, tal como ocorre na Justiça Comum Estadual ou na Justiça Federal, é um elemento indispensável no debate acerca de uma “nova” Justiça do Trabalho, comprometida com a eficiência da sua gestão. Destaque-se, na presente reflexão, antiga reivindicação da Administração Pública quanto à necessidade de criação de varas do trabalho de Fazenda Pública. Em que pese a ausência de ineditismo na abordagem do tema, não pairam dúvidas que

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a ampliação da competência da Justiça do Trabalho impõe um reexame da questão, levando-se em conta não apenas os interesses da Administração, mas também a eficiência operativa que deve nortear a chamada “nova” Justiça do Trabalho. Como se sabe, as relações de emprego (não utilizo, neste momento, a expressão relação de trabalho, por força da decisão proferida pelo STF, na ADI nº 3.395-DF) mantidas entre a Administração Pública direta, autárquica e fundacional e seus empregados públicos não são regidas tão somente pela CLT, na medida em que, por força de normas constitucionais, sofrem o influxo de diversas regras de direito público, dentre as quais podemos destacar: ingresso mediante concurso público, aumento de salários somente através de lei e limitações orçamentárias na celebração de acordos coletivos. Não restam dúvidas, portanto, que a relação de emprego mantida pelo Poder Público reveste-se de alto grau de especialidade; ainda mais quando lembramos que em tal relação não existe o conflito entre o capital e o trabalho, pelo simples fato de uma das partes não se dedicar ao lucro ou a acumulação de riqueza pelo capital, mas sim em prover o interesse público. No campo processual, por sua vez, as diversas prerrogativas processuais da Fazenda Pública (p.ex., o quádruplo do prazo previsto no art. 847, in fine, CLT, o prazo em dobro para recorrer, presunção relativa dos recibos de quitação, dispensa


Foto: Alexandre Torreão

de depósito recursal para interposição de recursos, reexame necessário e execução através de precatório) impõem um procedimento altamente especializado em todas as fases do processo. As consequências negativas do tratamento indiscriminado de matérias e ritos especializados são de conhecimento de todos e, infelizmente, também afetam a todos. Podemos citar três situações rotineiras na Justiça do Trabalho, que, por conta de uma falta de atuação especializada, são agravadas sensivelmente, a saber: • A ausência de desconsideração da personalidade jurídica das empresas que prestam serviços para a Administração Pública, nos casos em que o próprio Poder Público também é vítima de fraude, recorrendose para uma segura execução da Fazenda Pública como responsável subsidiária. A existência de varas especializadas traria maiores condições para a busca de patrimônio da empresa e subsídios para desconsideração da personalidade jurídica da mesma, sem contar com a possibilidade de uniformização de procedimentos diante de empresas reconhecidamente fraudadoras, diminuindo, dessa forma, o comprometimento de dinheiro público; • A quitação dos precatórios e das requisições de pequeno valor (RPV) também é afetada profundamente por uma ausência de atualização especializada. A existência

de varas e procedimentos especializados certamente dinamizaria o pagamento, bem como facilitaria o controle por parte do Tribunal Regional do Trabalho; • As diversas nulidades processuais alegadas pela Fazenda Pública, diante do descumprimento de normas legais específicas do Poder Público, praticamente deixariam de existir, contribuindo, dessa forma, para a celeridade da Justiça. É certo que alguns Tribunas Regionais do Trabalho já adotam medidas que primam pela sua eficiência operativa, com a especialização de varas de Fazenda Pública, como, por exemplo, o Tribunal da 4ª Região (Rio Grande do Sul). Ainda que se tratem de movimentos isolados, não há como negar o início de uma transformação necessária que a Justiça Trabalhista deverá passar. A ampliação da competência da Justiça do Trabalho e o seu consequente fortalecimento institucional impõem sua remodelagem, de modo a assumir com o máximo de eficiência as novas responsabilidades consagradas pela Constituição da República. O primeiro passo, e talvez o mais importante, pode ser dado com a especialização das varas do trabalho, como, por exemplo, as varas do trabalho de Fazenda Pública, que, sem sombra de dúvida, irá contribuir para a celeridade e eficiência da “nova” Justiça Trabalhista, comprometida com os novos desafios do Poder Judiciário brasileiro. 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35


CINGAPURA – PARAÍSO FISCAL X MODERNIDADE E EFICIÊNCIA

Wilfrido Augusto Marques Advogado Tributarista Presidente da Comissão de Relações Internacionais da OAB/DF

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as relações negociais internacionais é patente a necessidade de estruturação e preparo de uma empresa, sendo de grande importância um planejamento tributário de suas operações, buscando assim todos os benefícios possíveis para o seu desenvolvimento. Na sua atuação internacional, uma empresa escolhe investir em um país em função das muitas vantagens que ele apresenta; entre elas, um sistema tributário mais amigável. Ocorre que o Estado, como legítimo mecanismo de defesa, montou uma legislação que classifica os países segundo critérios de tributação e sigilo coorporativo. No discurso leigo, esses países acabaram por ser chamados de paraísos fiscais, denominação esta que traz uma forte carga negativa. Não me espanta que a maioria dos leitores, ao se depararem com esta expressão, já pensem em atividades ilícitas, como lavagem de dinheiro. Não faço aqui qualquer apologia à utilização dos denominados paraísos fiscais com fins ilícitos, por óbvio. Pelo contrário, defendo que uma análise mais profunda de todo arcabouço jurídico, comercial e político de cada país possa dar uma acuidade maior no enquadramento daqueles com sistema tributário favorecido. São muitas as características a serem analisadas, que não se esgotam no simples enquadramento, ou não enquadramento, dentro do que se convencionou chamar de paraíso fiscal. A utilização lícita dos incentivos fiscais deve ter uma melhor compreensão para que nenhum tratamento errôneo venha a prejudicar o desenvolvimento e o dinamismo que o comércio internacional exige. 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009

É imensurável o tamanho do dano causado à nossa economia ao se qualificar países que são produtivos e com atividade econômica, por vezes, complementar à economia brasileira, inibindo-se o investimento do país – no caso, Cingapura – no Brasil e a internacionalização de empresas brasileiras para este país, uma vez que as taxações, monetárias ou morais, freiam a sua colocação neste entreposto comercial. As perdas com tal taxação são imensas, configurandose como um empecilho interno para a expansão do país na Ásia e, consequentemente, dificultando sua inserção plena no comércio mundial. Digo isto analisando a tamanha importância dos fluxos comerciais com a Ásia para a balança comercial brasileira e para um posicionamento mundial. Cingapura é um dos maiores investidores asiáticos no Brasil. O país estruturou-se como um verdadeiro entreposto comercial com forte cooperação com organismos internacionais de integração e de regulação. Esta cooperação se afirma, pois Cingapura é membro do GAFI (Grupo de Operações Financeiras), cujo objetivo fundamental é a promoção de políticas para combater a lavagem de dinheiro nacional e internacionalmente. Há que se ter a justa medida ao classificar paraísos fiscais e países com tributação baixa, o que é absolutamente aceitável no cenário internacional. Por ser um centro financeiro internacional, é certo que haverá em Cingapura sigilo bancário, mas isto não quer dizer que condutas como lavagem de dinheiro sejam toleradas no país; pelo contrário, tal procedimento é tipificado neste país.


Foto: Nilson Carvalho/WHD

Nesta ótica, podemos apresentar uma série de países que têm taxas baixas e outras características que ensejariam a taxação como paraíso fiscal, a ver pelo Brasil, que poderia ser taxado com base na Medida Provisória 281/06 que reduz a zero a alíquota do imposto de renda incidente sobre os rendimentos produzidos na aplicação em títulos de dívida pública federal quando pagos, creditados, entregues ou remetidos a beneficiário residente ou domiciliado no exterior. A legislação brasileira, ao sustentar o enquadramento de “país com tributação favorecida” (a bem dizer, “paraíso fiscal”) tende a inibir relações comerciais profícuas com países – como Cingapura – que podem ser excelente porta de entrada para empresas brasileiras no rico cenário de comércio com a Ásia. Analisemos: Cingapura tem baixíssimo percentual de sua matriz produtiva voltada para o agronegócio. O Brasil é um dos maiores exportadores de commodities no mundo. Resta, claro, a grande oportunidade comercial existente entre as duais nações e fica patente a perda de competitividade neste país. Outra ressalva se faz à dificuldade de, por ser considerado um paraíso fiscal, firmar-se um acordo de Bitributação entre Brasil e Cingapura, tão defendido pelos cingapurianos que vêm ao Brasil em busca de negócios. Há um grande anseio por parte de empresários e esferas do governo para que esta questão seja solucionada de forma a possibilitar o maior desenvolvimento do país. É o que esperamos.

“Na sua atuação internacional, uma empresa escolhe investir em um país em função das muitas vantagens que ele apresenta; entre elas, um sistema tributário mais amigável.”

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GREVE DE SERVIDORES Supremo deu efetividade ao Mandado de Injunção

Fernanda Mendonça dos Santos Figueiredo Advogada

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O problema á muito se discute acerca da legitimidade do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, não somente pela importância que o assunto requer, tendo em vista o princípio da continuidade que permeia o serviço público, mas também por se tratar de um direito previsto constitucionalmente. O artigo 37, inciso VII, da Constituição Federal de 1988, reconheceu o direito de greve para os servidores públicos. Essa determinação está nas Disposições Gerais do Capítulo referente à Administração Pública. No entanto, ao dizer que o direito seria exercido nos limites definidos por lei específica, o legislador acabou por torná-lo norma programática; isto é, sem validade imediata, enquanto não regulada. Posteriormente, em 28 de junho de 1989, publicou-se a Lei nº 7.783, que definiu a greve em diversos serviços; dentre os quais, os essenciais, mas acabou deixando de abordar sobre a situação do funcionalismo público, razão pela qual consideraram-na, sem detença, inaplicável à espécie. Vislumbrando-se uma solução para o impasse, propôs-se, na Câmara dos Deputados, o projeto de lei (PL 981/2007) que pretende regular o direito de greve no âmbito do serviço público, estando já em tramitação no Congresso Nacional e de cuja aprovação depende para entrar em vigor. É importante relembrar que, no decorrer do ano de 2007, inúmeras greves eclodiram nos diversos setores da adminis­ tração direta e indireta, inclusive em atividades essenciais, como as da saúde e segurança públicas e que, em face de sua relevância, culminaram em negociações heterodoxas. 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009

Neste contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a se manifestar sobre a questão, por ocasião do julgamento dos Mandados de Injunção 670, 708 e 712 – ajuizados, respectivamente, pelo Sindicato dos Servidores Policiais Civis do Espírito Santo (Sindpol), pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Município de João Pessoa (Sintem) e pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Pará (Sinjep), em 25 de outubro de 2007. Os referidos sindicatos buscavam assegurar o direito de greve para seus filiados e reclamavam da omissão legislativa do Congresso Nacional em regulamentar a matéria, conforme determina o artigo 37, inciso VII, da Constituição Federal1. O Remédio utilizado — Mandado de Injunção Em análise sobre o cabimento do Mandado de Injunção à espécie, o STF afirmou que o art. 5º, LXXI, da Constituição, previu expressamente a concessão do Mandado de Injunção sempre que a falta de norma regulamentadora tornasse inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, o que estaria a ocorrer in casu. Desta forma, a jurisprudência do STF firmou enten­ dimento de que o julgamento do Mandado de Injunção tem como finalidade verificar se há mora, ou não, da autoridade ou do Poder de que depende a elaboração de lei regulamentadora do Texto Constitucional, cuja lacuna


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“Por tal motivo, uma continuada conduta omissiva do Legislativo poderia ser submetida à apreciação do Judiciário, que, censurando-a, poderia atuar de forma a garantir os direitos constitucionais reconhecidos.”

torne inviável o exercício dos direitos, das liberdades e prerrogativas assegurados pela Carta Federal. A decisão do Supremo Tribunal Federal O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu declarar a omissão legislativa quanto ao dever constitucional em editar lei que regulamentasse o exercício do direito de greve no setor público e, por maioria, aplicar ao setor, no que coubesse, a Lei de Greve vigente no setor privado (Lei 7.783/89). A decisão do STF destacou a ausência de atitude do Congresso Nacional, que, desde a Constituição de 1988, não aprovou a lei específica para regulamentar a greve no serviço público. E, de maneira inédita, o STF decidiu comunicar ao órgão – Congresso Nacional – sua mora legislativa e aplicar a norma ao caso concreto; ou seja, aplicar ao caso a Lei nº 7.783/90. Fundamentação vencedora O STF, ao decidir a questão, expôs sua preocupação quanto à não-assunção pelo Tribunal de um protagonismo legislativo. Por outro lado, em face das inúmeras situações ocorridas no país, em que as greves se realizam sem qualquer controle jurídico, dando ensejo a negociações absurdas ou a ausências que comprometem a própria prestação do serviço público, o Tribunal entendeu que sua não-atuação naquele momento configuraria quase como uma espécie de “omissão judicial”.

Neste sentido, o Supremo asseverou que se estaria diante de uma situação jurídica que, desde a promulgação da Constituição da República de 1988, permaneceria sem qualquer inovação, não tendo o direito de greve dos servidores públicos auferido o tratamento legislativo suficiente para garantir o exercício dessa prerrogativa em conformidade com mandatórios constitucionais. Reclamar-se-ia, portanto, para fins de plena incidência do preceito, atuação legislativa que desse concreção ao mando positivado no texto da Constituição. O Congresso Nacional atuaria, nessas condições, desempenhando a relevante função de sujeito concretizante do que foi nele – isto é, no texto da Constituição – proclamado. Por essa razão, o STF defendeu a assunção do papel de legislador positivo pelo Tribunal, o qual não poderia se abster de reconhecer que, assim como se estabelece o controle judicial sobre a atividade do legislador, seria possível atuar também nos casos de inatividade ou omissão do Legislativo, pois o legislador não possuiria a discricionariedade para legislar ou não sobre a matéria, tratando-se, na verdade, de um imperativo constitucional. Por tal motivo, uma continuada conduta omissiva do Legislativo poderia ser submetida à apreciação do Judiciário, que, censurando-a, poderia atuar de forma a garantir os direitos constitucionais reconhecidos (CF, art. 5°, XXXV), ainda que por meio de uma conduta positiva legislativa do Tribunal, aplicando a norma ao caso concreto, como 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39


ocorre nos direitos alemão, austríaco e italiano, este com suas sentenças aditivas ou modificativas. O argumento de que a Corte estaria então a legislar – o que se afiguraria inconcebível, por ferir a independência e harmonia entre os poderes (art. 2º da Constituição do Brasil)2 e a separação dos poderes (art. 60, § 4º, III)3 – seria insubsistente. Na realidade, o STF exerceria, ao formular supletivamente a norma regulamentadora do artigo 37, VII, função normativa e não legislativa. No mérito, acolheram a pretensão para aplicar a Lei nº 7.783/90 enquanto a omissão não estivesse devidamente regulamentada por lei específica para os servidores públicos. Ademais, ressaltaram que a lei seria aplicável apenas no que coubesse, tendo em vista a peculiaridade inserta nos serviços públicos. Fundamentação vencida Da decisão divergiram parcialmente os ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio de Mello, que estabeleceram condições para a utilização da Lei de Greve, considerando a especificidade do setor público, já que a norma fora elaborada visando o setor privado, e limitaram a decisão às categorias representadas pelos sindicatos requerentes. Votaram pela garantia do exercício do direito de greve aos servidores públicos, mas afastaram a aplicação da Lei de Greve, por entenderem que esta se aplicaria somente ao setor privado. O ministro Lewandowski, em seu voto, afastou a aplicação da Lei de Greve para os servidores públicos. Para ele, ao aplicar a lei, o STF estaria intrometendo-se, de forma indevida, na esfera da competência que a Carta Magna reserva com exclusividade aos representantes da soberania popular, eleitos pelo sufrágio universal, direto e secreto. Apesar de afastar a aplicação da Lei de Greve, ele destacou a necessidade de ser assegurada, pelos servidores, a prestação dos serviços públicos inadiáveis nos casos de greve. Lewandowski também afastou a possibilidade dos governos adotarem medidas que inviabilizem ou limitem o direito de greve dos servidores públicos, como o corte do ponto dos servidores ou a imposição de multa pecuniária diária. Considerações finais O episódio marcado pela decisão do STF há de ser considerado como a primeira vez que o Tribunal impôs uma lei diante da falta de atuação do Congresso, haja vista não ser sua função a de legislar. Restou evidente a conclusão de que a Corte já teria reconhecido, por mais de uma vez, a manifesta mora e omissão do Congresso Nacional no que respeita ao dever que lhe incumbiria de dar concreção ao preceito constitucional. Por tal motivo, prevaleceu o entendimento de que o STF deveria formular supletivamente a norma regulamentadora de que carecia o artigo 37, VII, da Constituição. E, agindo desta forma, exercera a função normativa – de aplicar a norma ao caso concreto – e não legislativa. 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009

Ou seja, ao atuar de forma a suprir a omissão legislativa, nas hipóteses de concessão do Mandado de Injunção, o Judiciário exerceria a função normativa, removendo um obstáculo criado pela inércia do poder competente para editar a norma regulamentadora faltante. Pode-se concluir ainda que no caso de concessão do Mandado de Injunção, o Poder Judiciário formula a própria norma aplicável ao caso para produzir a norma de decisão a ultrapassar a omissão. Cabe ressaltar que a referida decisão valerá até que o Congresso Nacional aprove uma lei específica para reger o tema, ou seja, será de caráter temporário até a promulgação de lei complementar prevista para regulamentar a greve dos servidores públicos. Por oportuno, cumpre salientar que o STF não poderia impor ao Congresso um prazo para votar a mencionada lei, pois a interpretação sistemática da Constituição Federal não a autoriza. Nem mesmo no processo objetivo – in casu, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão – isso é possível, o que se dirá em Mandado de Injunção, a revelar relação subjetiva. Há, portanto, de se aguardar a opção político-normativa da Casa competente. Então, pode-se concluir que a mudança de entendimento somente foi possível com a alteração do quorum do Supremo, bem como com a situação alarmante pela qual viveu o país no decorrer do ano de 2007 – INSS, Receita, Controladores de Vôo, Ibama, etc., fazendo com que o Tribunal abandonasse as regras atinentes à auto-aplicabilidade, eficácia das normas (se de eficácia contida ou limitada, etc) e à aplicação imediata das normas constitucionais. Lado outro, ficou evidenciada a intenção da Corte em avançar no sentido de conferir maior efetividade ao Mandado de Injunção, dando, portanto, concreção a um dos mais importantes instrumentos de defesa dos direitos fundamentais concebidos pelo constituinte originário. Por fim, é de ser considerada histórica esta decisão, cabendo, por conseguinte, os nossos cordiais cumprimentos aos ministros do Supremo Tribunal Federal.

notas 1 Art. 37 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) VII – o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica. 2 Art. 2º – São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 3 Art. 60 – A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...) § 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) III – a separação dos Poderes;


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O presidente não lê Roberto DaMatta Antropólogo

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uma terra de cegos, quem tem um olho é rei. Num país de gente sedenta e carente de leitura, é desanimador e melancólico descobrir que o presidente da República, o sujeito mais importante e poderoso do sistema; a figura a quem devemos respeito e lealdade pelo cargo que ocupa; que representa não só um partido ou posição política e eonômica, mas – como supremo magistrado da nação – todos nós; o homem número 1 do país não lê. Mais: em entrevista ao jornalista Mário Sérgio Conti, para a revista “Piauí”, ele declara que, quando tenta fazê-lo, tem azia. Ademais, descobrimos que ele fez como o pior presidente que os americanos jamais tiveram, George W. Bush, pois dele veio a cópia de uma estrutura palaciana montada para evitar a leitura. Para um sujeito como eu, que vive para os livros e de livros, e que morreria sem livros; para quem a leitura tem sido um meio de dar sentido à vida e de lidar com o amor, com a perda, com o sucesso, com a raiva, o trabalho e com a morte, saber dessa antipatia à leitura é – digo-o sinceramente e com o coração na mão – chocante, inacreditável, triste, devastador. Para quem tem na leitura não só uma fonte de informação e sabedoria, mas os motivos para viver, como é o caso dos professores, escritores, educadores, ensaístas, legisladores, pensadores e jornalistas; funcionários e intérpretes das normas legais, cujo trabalho consiste em aplicar regulamentos, decidindo a todo instante o que é correto, descobrir que o presidente não lê é uma bofetada na cara! Vejam bem, há contradições triviais. O padre pecador, o ateu crédulo, o professor ignorante, o médico hipocondríaco, o economista pobre, o pastor malandro, o jornalista venal, o desembargador corrupto, o policial criminoso e o político sem caráter. Mas todos leem! Todos se informam por meio de amigos e auxiliares, mas não abandonam o contato direto com a fonte: esse foco indispensável ao conhecimento do mundo. Esse mundo feito de representações codificadas, de palavras e algarismos articulados numa determinada intenção e estrutura. Estivesse eu dizendo o que digo por meio de rimas, o efeito seria diferente. É por causa disso que eu não posso me conformar com um presidente que não lê. O que saiu na revista deve ser um engano. Estou seguro que o presidente lê. Lula estava simplesmente brincando com o entrevistador. Ressentido ou ofendido com alguns jornais e revistas, o presidente usou o manto da ironia e resolveu chocar

o estabelecimento jornalístico, dizendo que não lê. Não posso acreditar que o servidor público mais importante do meu país, apreenda o mundo apenas por meio do ouvido. Sendo instruído e informado sobre os eventos e ideias deste nosso mundo conturbado somente por meio de conversas permeadas pelo ponto de vista e emoções dos seus interlocutores. Não posso crer que o presidente se contente em apenas ouvir o canto do galo, sem jamais vê-lo em pessoa. Que ele não tenha nenhum momento a sós consigo mesmo, no qual – com um texto na frente dos olhos – coloque para dentro de seu ser, por meio da leitura solitária e individualizadora, aquilo que o autor da narrativa explicita, revela, ensina, critica, pede, descobre, interpreta, anuncia, reitera, louva, interroga, suspeita, ou condena. Quando o presidente diz que não lê, ele envia uma poderosa mensagem à sociedade que o elegeu. No fundo, ele diz que o discernimento pode ser alcançado por vias externas. Os laços sociais substituem a experiência da leitura que usualmente vai dos jornais e revistas para os livros. O que impressiona não é apenas o fato de o homem não ler. É o fato de ele estar seguro de que é mesmo possível saber das coisas por tabela e em segunda mão, por meio de olhos alheios. Sem a visão direta, interiorizada, individualizada e subjetiva dos fatos e problemas porque eles podem ser assimilados através dos outros. E que ele não leva a sério a imprensa livre e contraditória que, como ele mesmo admite, foi decisiva na sua eleição. A leitura vai muito além da informação. Ela mostra que os fatos são sempre inventados, relativos e determinados por perspectivas. Um mesmo “fato” pode produzir pontos de vista diversos, relativos a um mesmo dilema ou questão. Num mundo permeado por contradições, a leitura é um instrumento privilegiado para entendê-las e eventualmente superá-las. Em estado de choque, penso na lição daquele Machado de Assis que – diga-se logo – não pode deixar de ser lido, quando ensinou que quem conta um conto aumenta (e necessariamente subtrai) um ponto. As versões pessoais, a apreensão marcante, sempre surgem da leitura em primeira mão. Como um sujeito que morreria sem os livros, como uma pessoa cuja profissão é ensinar a ler e que vive de leitores, eu sou obrigado a imaginar que essa entrevista é, no mínimo, um conto; e, no máximo, uma catastrófica notícia. Publicado no jornal O Globo em 14/01/2009 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


OLGA BENÁRIO A VERDADE SOBRE SUA EXPULSÃO (dESMISTIFICAÇÃO DA VERSÃO DIVULGADA)

Orpheu Santos Salles Editor

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“Luís Carlos Prestes foi preso no Méier, rua honório, nº 279 em 5 de março de 1936, na companhia de Olga Benário que se fazia passar por Maria Prestes, sua esposa, como configurava no passaporte que possuía e com o qual ingressou no País.”

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á longo tempo, desde a expulsão de Olga Benário para a Alemanha, em 1936, versões são transmitidas à opinião pública de forma panfletária, novelesca, errônea e capciosa, buscando apontar o presidente Getúlio Vargas como o responsável pela sua desdita e morte. A sua expulsão – desconsiderando o fato de ela se encontrar grávida do líder comunista Luís Carlos Prestes – deu margem a explorações políticas que são difundidas até os dias de hoje, com a versão de que o presidente Getúlio Vargas a entregara à Gestapo para ser enviada a um campo de concentração. É indiscutível que Olga Benário morreu em 1942 numa câmara de gás. Entretanto, responsabilizar e culpar o presidente Vargas, que nenhuma participação ativa teve na expulsão e no infausto acontecimento da morte de Olga, além do absurdo é também irreal e fantasioso. Seria o mesmo que responsabilizar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela morte dos soldados brasileiros que estavam no exercício da missão de paz da ONU, no Haiti, ou atribuir a ele a culpa pelo calote de R$ 597 milhões que o presidente Rafael Corrêa, do Equador, pretende aplicar no Brasil. Acontecimentos sobre Olga e Prestes Em 24 de novembro de 1935, eclodiu um levante militar liderado pelo capitão do Exército e membro do Partido Comunista Luís Carlos Prestes. Essa insurreição irrompeu em Natal, Recife, e, em seguida, no Rio de Janeiro, onde houve confronto com forças do Exército, principalmente


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no Quartel do 3º Regimento de Infantaria, sediado na Urca, local em que morreram 29 militares. Alguns foram mortos enquanto dormiam, segundo informação noticiada na ocasião e registrada nos arquivos do Exército. A Intentona Comunista, como ficou conhecida a revolta dos militares simpatizantes do marxismo-leninismo, foi sufocada pelo Governo, que, com autorização legislativa votada em 25 de novembro de 1935, instaurou o Estado de Guerra, pelo Decreto 702, de 21/3/1936, que, entre outras restrições de direitos, suspendeu no artigo 2º a concessão do habeas corpus, além da perda da inviolabilidade de deputados, militares e prerrogativas de funcionários públicos, resultando na prisão de centenas de ativistas comunistas, integralistas e anarquistas. Luís Carlos Prestes foi preso no Méier, Rua Honório, 279, em 5 de março de 1936, na companhia de Olga Benário, que se fazia passar por Maria Prestes, sua esposa, como configurava no passaporte que possuía e com o qual ingressou no país. Olga, uma alemã de origem judaica que fora designada pelo Partido Comunista para ser sua guardacostas, conviveu com Prestes desde que embarcaram para o Brasil e durante um ano em que viveram na clandestinidade, como se casados fossem. Na emboscada preparada pela Polícia Política para prender Prestes, Olga cumpriu à risca a incumbência que recebera do Partido Comunista; quando os agentes armados invadiram o pequeno quarto para prendê-lo ou matá-lo, como era a ordem, ela, com denodo e coragem, postou-se à frente de Prestes, impedindo que fosse morto.

Presos e separados, foram levados para a Casa de Detenção e nunca mais se viram. Prestes ficou detido numa cela, completamente incomunicável; Olga, ao contrário, foi confinada com dezenas de outras presas, acusadas também de comunistas, e, ao que se divulgou, não sofreu durante a sua prisão qualquer agressão ou dano físico. A mulher, presa, grávida de dois meses e mantida encarcerada por mais cinco meses até ser expulsa, nunca fora, durante esse período, interrogada nem ouvida, e sequer lhe atribuíram qualquer acusação, além da permanência ilegal no país, ser alemã e comunista. Durante o tempo de sua prisão, formou-se um movimento de mulheres que, sob o fundamento de ela estar grávida de um brasileiro, pleiteavam a sua libertação, e como não conseguiram apelaram ao advogado Heitor Lima, que, em 3 de junho de 1936, através de petição protocolada sob o nº 1.381, ingressou com pedido de habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal, recebendo o número 26.l55, distribuído ao Ministro Relator Antonio Bento de Faria em 8/6/1936. O habeas corpus impetrado visava unicamente a impedir a expulsão de Olga Benário, sob a alegação de que ela estava grávida de cinco meses de filho de pai brasileiro, concebido no Brasil, garantindo que seu filho nascesse e vivesse no Brasil como brasileiro. A petição do insigne e ilustre causídico à Egrégia Suprema Corte é impressionante pelo sentido dramático do apelo. O Ministro Bento de Faria, designado relator do 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


habeas corpus, oficia no dia 10 de junho ao então Ministro da Justiça, professor Vicente Ráo, que responde em l5

do mesmo mês, com o ofício nº 226, conforme cópia do original e anexo:

Cópia do ofício ministerial

Cópia do ofício do delegado 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009


Em 17 de junho de 1936, perante a Corte Suprema, ocorreu o julgamento do HC nº 26.155, como consta da cópia da respectiva sentença:

Acompanharam o presidente do STF, Ministro Edmundo Luís, os ministros Plínio Casado, Laudo de Camargo, Costa Manso, Octavio Kelly e Ataulpho de Paiva; os ministros Eduardo Espínola, Carvalho Mourão e Carlos Maximiliano conheceram do pedido e o indeferiram. As provas acima, extraídas do processo nº 26.l55/1936, que está arquivado no Supremo Tribunal Federal e à disposição do público, comprovam que o presidente Getúlio Vargas não teve participação ativa, como se propaga, na

“O habeas corpus impetrado visava unicamente a impedir a expulsão de Olga Benário, sob a alegação de que ela estava grávida de cinco meses de filho de pai brasileiro, concebido no Brasil, garantindo que seu filho nascesse e vivesse no Brasil como brasileiro.”

expulsão de Olga Benário, efetivada em setembro de 1936. Ocorre ainda, e é oportuno saber, que na ocasião, em 1936, tanto o Brasil como a Alemanha vivenciavam regimes democráticos. A ditadura no Brasil foi instituída e vigorou de 10 de novembro de 1937 até a promulgação da Constituição de 1946, e na Alemanha os Campos de Concentração só foram criados a partir de 1941. Vale também lembrar que Olga, ao chegar à Alemanha, foi recolhida ao hospital do Presídio Barnimstrasse, em Berlim, onde ocorreu o parto de sua filha Leocádia, em 27 de novembro de 1936, conseguindo amamentá-la até a idade de um ano, quando, graças aos pedidos da Cruz Vermelha Internacional, a criança foi entregue aos cuidados da avó paterna, Leocádia Prestes, em 21 de janeiro de 1938. Campo de concentração A ida de Olga para o campo de concentração de Ravensbrück, em Ferstenberg, ocorreu certamente em decorrência da sua condição de judia e de ser comunista, e foi reforçada por conta da sua participação, em 11 de abril de 1928, da invasão, com um grupo armado, da prisão de Moabit, sequestrando o preso comunista Otto Braun, que aguardava julgamento. 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


“Luís Carlos Prestes foi convidado, em 1930, por Oswaldo Aranha, a pedido de Getúlio Vargas, para assumir o comando militar da revolução, tendo inclusive recebido vultosa importância em dinheiro para a preparação militar.”

Esta é a verdade dos fatos. Consta também que teriam sugerido que Prestes se casasse com Olga para evitar a expulsão, e que ele recusara, alegando que ela já era casada na Alemanha. Outro fato necessário de esclarecimento é a questão das torturas que apregoam ter Prestes sofrido quando preso. A versão das torturas é fato irreal e inverossímil, como relatado na biografia de Prestes por seus biógrafos Denis Moraes e Francisco Viana, que, ao lhe perguntarem (pág. 108) como foram as torturas sofridas, ouviram a seguinte resposta: “Pessoalmente eu não fui torturado”. No caso do tratamento carcerário rígido a que foi submetido Luís Carlos Prestes, deve-se considerar o espírito revanchista da oficialidade do Exército daqueles dias, que não esquecia e que reclamava as mortes de seus 29 companheiros sacrificados no levante do 3º Regimento de Infantaria sediado na Urca, cuja responsabilidade do ato revolucionário foi assumida inteiramente por Prestes. Quanto às alusões sobre sofrimentos no cárcere, Prestes menciona períodos de incomunicabilidade absoluta e outros com facilidades referentes a visitas que lhe fizeram os companheiros da Coluna: João Alberto Lins de Barros, Juarez Távora, Juracy Magalhães, Agildo Barata e outros civis, entre eles Oswaldo Aranha, o advogado Sobral Pinto, Antonio Tourinho, Carlos Marighella e o diplomata Orlando Leite Ribeiro. Anistia Nos últimos tempos de Luís Carlos Prestes na prisão, Orlando Leite Ribeiro foi seu interlocutor com o presidente Getúlio Vargas, que, inclusive, lhe concedeu a anistia em 1945. No depoimento aos seus biógrafos, Prestes declarou, estranhando o fato, que o único de seus comandados na Coluna a não visitá-lo na prisão foi Osvaldo Cordeiro de Farias. Outra questão que merece esclarecimentos se refere ao relacionamento do chefe de Polícia Filinto Müller com o preso político Luís Carlos Prestes (na Escola Militar, Prestes foi 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009

professor de Filinto). No início da marcha da Coluna Prestes, Filinto foi seu comandado, e também colegas no Senado Federal, eleitos em 1945. Acresce que, durante o período legislativo na elaboração da Constituição de 1946, tiveram convívio amistoso. É também oportuno falar do relacionamento político de Luís Carlos Prestes com o presidente Getúlio Vargas. Era evidente o antagonismo entre os dois políticos. Comando militar Luís Carlos Prestes foi convidado, em 1930, por Oswaldo Aranha, a pedido de Getúlio Vargas, para assumir o comando militar da revolução, tendo inclusive recebido vultosa importância em dinheiro para a preparação militar. Sob a alegação de ter aderido ao comunismo, Prestes recusou a chefia militar da revolução, mas não devolveu o dinheiro recebido, alegando, posteriormente, quando preso em 1936, ter usado para a preparação da Intentona. Também em 1945, Luís Carlos Prestes e seus partidários comunistas participaram do movimento Queremista do PTB, que pretendia a volta de Getúlio Vargas, e foi em decorrência de acertos políticos intermediados pelo diplomata Orlando Leite Ribeiro que o Presidente concedeu a anistia aos presos políticos, beneficiando Prestes. É inclusive relevante para se desconsiderar a animosidade entre ambos, a participação política eleitoral de Prestes e Getúlio, quando ambos Senadores da República, participaram em 1946, em vários comícios entre os quais o do Vale do Anhangabaú em São Paulo, apoiando a candidatura do Deputado Cirillo Junior contra o candidato do Governador Ademar de Barros, Novely Junior, genro de Presidente Eurico Gaspar Dutra. A deposição do presidente Getúlio Vargas pelos militares, em 29 de novembro de 1945, sob a chefia do então Ministro da Guerra, General Pedro Aurélio de Góis Monteiro, tem como justificativas maiores o Movimento Queremista, a nomeação do irmão Benjamim Vargas para chefia de Polícia do Rio de Janeiro e a anistia concedida a Luís Carlos Prestes.


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ADOÇÃO POR CASAL HOMOSSEXUAL

Beatrice Marinho Paulo Psicóloga do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro

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á há algum tempo forjou-se, no mundo jurídico, um novo conceito de “família”, diferente daquele defendido pelo Código Civil de 1916, que tinha uma visão bem restrita à família proveniente do matrimônio. A elasticidade da interpretação deste termo vem, sem dúvida, em encontro do melhor interesse da criança, que se beneficia ao ver sua família amparada pelo Estado, independentemente de sua configuração. Assim, desde a Constituição, reconhecem-se como enti­ dades familiares, merecedoras de especial proteção, não só a família matrimonializada, como também a oriunda de união estável entre homem e mulher e a monoparental, defendendo alguns autores que estes tipos de família, elencados no artigo 226 de nossa Carta Magna, sejam apenas alguns exemplos lembrados pelo Constituinte, não esgotando, de nenhuma forma, as famílias existentes no mundo, todas merecedoras da dita proteção. No lastro desta discussão, vem ganhando visibilidade a família formada por duas pessoas do mesmo sexo que, portandose e considerando-se como um casal, venham a compartilhar suas vidas e a construir juntas seu caminho, podendo constituir patrimônio e criar filhos. Essas crianças, no entanto, embora criadas como filhos por duas pessoas, não poderiam, até bem pouco tempo, ver juridicamente reconhecidos os laços filiais com ambas, posto que a adoção buscava sempre imitar a família natural, evitando assim causar constrangimentos e traumas sociais aos adotados, sob a justificativa de que, na natureza, ninguém tem dois pais ou duas mães, havendo, por esta razão, espaço para um só pai e uma só mãe nas certidões de nascimento. Até bem pouco tempo, mesmo que no mundo dos fatos ambas as pessoas ocupassem o espaço psicoparental da criança, sendo percebidas por ela como pais ou mães, e mesmo que a sociedade à sua volta já identificasse naquela família essa configuração diferenciada, ainda assim somente um dos

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parceiros/uma das parceiras poderia oficializar aquele vínculo, fosse ele formado pela paternidade/maternidade biológica, fosse constituído através de adoção. Já era pacificado que o fato de a pessoa ser homossexual não impediria a adoção, entretanto somente um deles poderia adotar, o outro permaneceria como companheiro do pai, mantendo com a criança uma relação jurídica semelhante à do padrasto. Isto porque o artigo 1.622 do Código Civil veda expressamente a adoção conjunta, feita por duas pessoas, com exceção de serem elas casadas ou viverem em união estável. Como, tanto para o casamento como para a união estável, a diferença de sexos entre os parceiros era considerada um dos elementos essenciais à existência do ato, a união homoafetiva não se encaixava em nenhum dos dois casos excepcionais, impossibilitando o pedido de adoção por ambos os parceiros. O TJ/RS, todavia, sempre alerta para as mudanças e buscando dar uma interpretação às leis que contemplem as novas necessidades sociais, abriu precedente ao julgar uma apelação, confirmando a concessão da adoção de crianças a uma mulher homossexual que mantinha relação afetiva há oito anos com a mãe adotiva das mesmas, desempenhando funções maternas em relação a elas, desde o seu nascimento. Isto sem desconstituir o vínculo já existente entre sua parceira e as crianças, passando assim a figurarem ambas como mães dos adotandos, o que representou uma adoção conjunta homossexual. A apelação, interposta pelo MP, argumentava que a adoção não se fazia possível, posto que vedada pelo artigo 1.622 do Código Civil e por possibilitar a constituição de uma família não reconhecida ainda juridicamente, nem pelas normas constitucionais nem pelas infraconstitucionais, escapando também dos moldes da família biológica, que serve de modelo e referência para a adotiva. Reconhecendo a família homoafetiva como entidade familiar, merecedora de proteção estatal, como é pacífico


naquele Tribunal, e baseados em estudos psicossociais que apontaram para o reconhecimento da posse de estado de filho dos adotados em relação ao adotante – que não demonstravam nenhum inconveniente na concessão da adoção nem alguma possibilidade de ela gerar consequências desastrosas para os adotados –, os julgadores abriram mão de preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de bases científicas e priorizaram o vínculo afetivo ali existente, garantindo aos adotantes o direito à convivência familiar, sem deixar que o sexo destes se tornasse um impedimento para isto. Agindo assim, o TJ/RS filiou-se, mais uma vez, à tese de que família é uma sociedade de afeto, e que não deve o Poder Judiciário deixar de prestar tutela jurisdicional a um tipo de família por não se constituir a partir de uma diversidade de sexos, pois marginalizar essas entidades familiares seria equivalente a privá-las de diversos direitos, entre os quais o da dignidade humana e o da igualdade. Por este motivo, entendeu que deveriam ser usados os mecanismos previstos em Lei, tais como a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito, para suprir a lacuna existente diante da ausência de lei específica para o caso. Utilizando a analogia à união estável, que, segundo afirma­ ram, é o instituto jurídico que mais se aproxima desse tipo de relação, já que também os parceiros homoafetivos são levados a uma comunhão de vida por um affectio conjugalis, e adotando a tese de que a proteção jurídica deve ser dispensada ao conteúdo (as relações ali desenvolvidas e as funções desempenhadas) e não à forma familiar, o Tribunal entendeu que famílias formadas por pessoas do mesmo sexo mereciam tratamento semelhante às demais, podendo gerar vínculos familiares semelhantes. Assim, ressaltando que paternidade e maternidade se formam mais no social, na circunstância de amar e servir, do que no biológico, no ato da procriação, o Tribunal manteve a decisão do juiz a quo, possibilitando que a família já existente no mundo dos fatos passasse também a constar no mundo

jurídico como tal, e, com isso, concedendo àquelas crianças diversos direitos dos quais estariam excluídas se a decisão tivesse sido outra, tais como o direito à herança, à previdência, ao nome e à segurança jurídica e emocional de se verem reconhecidas filhas de ambas as mulheres que as criam e que lhes servem de referência maior na construção de sua personalidade. Em verdade, crianças são parte de um contexto no qual família, sociedade e Estado interagem diretamente. Sua identidade pessoal vincula-se diretamente à de seu grupo familiar, que lhe fornece os elementos necessários para sua individualização como pessoa e para sua localização no mundo, fatores primordiais em seu desenvolvimento. Por esta razão, as decisões que interferem nesse grupo mais íntimo têm que ser ainda mais cuidadosamente pensadas e avaliadas, para que reflitam, efetivamente, o seu melhor interesse. Se Estado, família e sociedade têm o compromisso de dar proteção integral a crianças e adolescentes, assumidas que são estas como pessoas em condições peculiares de desenvolvimento, qualquer ação do Estado ou de seus agentes deve ter por objetivo o seu bem-estar. Para isto, é necessário que o princípio do melhor interesse da criança esteja sempre presente, como premissa, em todas as ações concernentes àquela parcela da população. A busca de soluções deve estar sempre centrada na criança. Para identificar o melhor interesse da criança em casos que envolvem a família, muito mais que a letra fria da lei ou os vínculos biológicos ou genéticos existentes, é preciso que sejam considerados os laços afetivos que a criança mantém com cada um, levando-se em conta o atendimento diário de suas necessidades biofísicas e psicológicas; o hábito nela desenvolvido de receber de uma determinada pessoa amor e orientação; a habilidade e a capacidade desta pessoa de prover à criança comida, abrigo, vestuário, assistência médica; e as suas preferências. Também devem ser consideradas a estabilidade emocio­nal, a suficiência econômica e a responsabilidade que o candidato demonstre ter em relação à criança, além de sua capacidade de promover-lhe o melhor interesse, trazendo seu bemestar no presente e no futuro. Os julgadores devem analisar cuidadosamente o caso, priorizando as necessidades, as relações de afinidade e afetividade, além das condições psicológicas e emocionais da criança. Considerando que a família é um grupo cultural, uma estruturação psíquica, em que cada um de seus membros ocupa um lugar, uma função, é perfeitamente possível que uma pessoa ocupe o lugar de pai ou de mãe, mesmo sem ser ascendente biológico da criança. No mundo atual, a paternidade/maternidade sócio-afetiva assume cada vez papel mais relevante na convivência familiar e no atendimento às 2009 JANEIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49


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necessidades de seus membros, sendo uma esperança e uma resposta às várias formas de abandono psíquico de milhares de crianças. O direito ao pai e à mãe, ainda que não biológicos, assim como à convivência com eles, é condição básica para que alguém possa se estruturar psiquicamente como sujeito. É importante ter-se em mente que as relações que a criança desenvolve desde o seu nascimento formam o alicerce de seu sistema de valores, de seu olhar para o mundo, de sua racionalidade, de seu futuro proceder com os demais, sendo a base de referência para quem ela será na vida, para a sua identidade como pessoa humana. E a criança tem direito a uma identidade estável, ela própria assegurada por uma rede simbólica. Assim, a estabilidade, a continuidade e a permanência na relação familiar devem ser priorizadas. Qualquer perda dentro do grupo familiar representa uma experiência frequentemente traumática para a criança, que pode lhe trazer significativo custo emocional. Por isso, quando se pensa nas crianças criadas por casais homossexuais como filhos, é necessário que se questione se o ordenamento jurídico como está hoje, não permitindo o seu reconhecimento como filho de ambos os pais (ou ambas as mães), realmente atende a seu melhor interesse, ou se, como fazia outrora a lei que impedia o reconhecimento de filhos espúrios, comprometida axiologicamente com o conteúdo do status quo, apenas tenta ocultar, hipocritamente, uma realidade com a qual se convive no mundo concreto, mas que permanece inaceitável no mundo jurídico, mantendo assim a criança despida dos direitos pessoais e patrimoniais que usufruiria se o contrário ocorresse. Talvez também, nessas situações, seja preciso que se desenvolva um novo olhar sobre o mundo para lidar com o contraditório, o heterogêneo e o divergente. E talvez este acórdão seja um sinal do surgimento desse novo olhar. O momento atual é de crise dos paradigmas familiares, sendo marcado por muitos desafios e ameaças, por muitas incertezas e dúvidas, que deixam o homem moderno cada vez mais perplexo e confuso, vulnerável e inseguro. É necessária muita reflexão e debate para que se mantenha a lucidez que possibilitará encontrar soluções novas e coerentes para novos problemas sociais. É importante, para começar, que se apreenda o novo e verdadeiro sentido de termos como “família”, 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA •JANEIRO 2009

“paternidade” e “maternidade”, bem como suas várias formas, observando toda a subjetividade que, sabe-se hoje, permeia mesmo a objetividade jurídica. Mas, se os paradigmas familiares estão em crise, deve­ mos lembrar que crises são excelentes oportunidades de aprendizagem social, pois permitem que o Direito cresça e amadureça. Uma vez que a paternidade e a maternidade começaram a ser percebidas em sua essência, desbiologizadas e vistas como funções, o pensamento jurídico tem que se reestruturar. E é necessário que o faça logo, pois as consequências de uma decisão errada, nesses casos que versam sobre assuntos tão cruciais e decisivos para a construção da identidade e estruturação da personalidade do sujeito, podem acarretar efeitos particularmente sérios para o seu desenvolvimento cognitivo, linguístico, moral, social e afetivo-emocional, tais como distúrbios no comportamento relacional e bloqueio de emoções e afetividade. Pouco acrescenta à proteção integral da criança essa persistência em manter a idealização da família tradicional, ignorando a experiência vivenciada pela criança. Esta atitude gera apenas preconceitos, estereótipos e visões estreitas e pouco realistas dos outros tipos de família. Para que o melhor interesse da criança seja efetivamente atendido, é preciso que o caminho se inverta: que, sem idéias pré-concebidas, as relações de afeto que conduzem grupos de pessoas, ainda não identificados expressamente em nosso ordenamento jurídico como ‘família’, a conviver e compartilhar o cotidiano de alegrias e tristezas, devem merecer todo o apoio e a proteção do Estado. É preciso que se investigue qual, afinal, o melhor interesse da criança, examinando suas condições emocionais e psicológicas, conhecendo sua vontade e os vínculos decorrentes das relações de afetividade e afinidade estabelecidas por ela com cada membro do grupo familiar, bem como a dinâmica, a engrenagem e a atmosfera reinantes naquela família. Só então poderá a paternidade/maternidade ser estabelecida conforme o melhor atendimento às reais necessidades da criança, reforçado e respeitado inclusive o seu direito à continuidade da convivência familiar, entendendo-se aí família como algo que vai muito além dos vínculos biológicos, muitas vezes prescindindo deles. Por esta razão, a meu ver, procedeu bem o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ao julgar improcedente a apelação interposta pelo Ministério Público. Agindo de outra forma, privilegiaria aspectos meramente secundários ou formais e camuflaria os reais interesses das crianças, em descuido dos pontos mais essenciais do seu viver cotidiano. Tal atitude conduziria, portanto, a graves danos para as crianças, pois seria uma afronta a vários de seus direitos fundamentais, tais como o da própria dignidade humana. Em verdade, resta cada vez mais claro que, se a opção é dar sempre prioridade aos interesses superiores da criança, não pode haver uma regra que dê primazia incontestável à família biológica, privilegiando a genética em detrimento da afetividade, dos hábitos e interesses do menor e, consequentemente, do seu melhor interesse.


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