Revista Justiça & Cidadania

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ISSN 1807-779X

Edição 111 - Outubro de 2009

R$ 16,90



homenagem ao editor

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osso editor foi homenageado pelo Senado Federal, por indicação do ilustre Senador Arthur Virgílio, conforme transcrição do ofício do Senador Heráclito Fortes, Primeiro Secretário daquela Casa do Congresso Nacional, e do requerimento propondo o Voto de Aplauso. A justa e merecida homenagem ao nosso estimado editor reflete o elevado conceito e consideração que o longevo jornalista conquistou nesses 10 anos da Revista Justiça & Cidadania com seus editoriais em defesa da liberdade, da moralidade e da ética na política, em especial, perante os membros dos Poderes Legislativo e Judiciário. Erika Branco Diretora de Redação

Publicação que reúne todos os editoriais publicados nos últimos 10 anos por Orpheu Salles e pode ser adquirido pelo telefone (21) 2240-0429.

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EDIÇÃO 111 • OUTUBRO de 2009 ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO ERIkA BRANCO diretorA DE REDAÇÃO DAVID SANTOS SALLES EDITOR ASSISTENTE DIOGO TOMAZ DIAGRAMAdor Giselle Souza Jornalista colaboradora Luciana Peres Revisora EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI RIO DE JANEIRO – RJ CEP: 20020-906 TEL./FAX (21) 2240-0429 SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765 / 13°ANDAR SÃO PAULO – SP CEP: 01311-200 TEL. (11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO, 1038 / SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO – Porto Alegre – RS CEP: 90010-272 TEL. (51) 3211-5344 BRASÍLIA Arnaldo gomes SCN, Q.1 – Bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK BRASÍLIA – DF CEP: 70711-903 TEl. (61) 3327-1228/29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL. (61) 9674-7569 revistajc@revistajc.com.br www.revistajc.com.br CTP, IMPRESSÃO E ACABAMENTO ZIT GRÁFICA E EDITORA LTDA ISSN 1807-779X 4 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

Foto: Antônio Cruz/ABr

Conselho editorial Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima arnaldo Lopes süssekind aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau Fábio de salles meirelles fernando neves Francisco Peçanha Martins

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Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman Joaquim Alves Brito josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Siro Darlan Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho


Foto: Wilson Dias/ABr

S umário

Foto: Arquivo JC

Foto: Roosewelt Pinheiro/ABr

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Balanço ambiental positivo

editorial

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Dom Quixote: O contador de histórias

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O ÚLTIMO PERSEGUIDO 22

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Permissão e concessão de serviço público

O direito autoral nas obras televisivas

Tribunais de Contas: 40 uma visão! A PRESTAÇÃO 42 JURISDICIONAL RACIONAL

Foto: Ana Colla

Foto: Roanse Naylor

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Democratizar a democracia

Justiça Federal terá mais varas do meio ambiente

PRESCRIÇÃO DAS AÇÕES 30 INDENIZATÓRIAS

Em foco: 48 Constituição Cidadã chega aos 21 anos

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E ditorial

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m passado recente o povo brasileiro se viu fraudado e furtado com a privatização da Cia. Vale do Rio Doce, considerada a maior e mais rica mineradora do mundo, criada em 1942 pelo Presidente Getúlio Vargas, depois da nacionalização da Itabira Iron, enfrentando grandes grupos internacionais, aliados a conglomerados econômicos nacionais, cujas lutas contra os interesses contrariados, se constituiu numa das causas que levou o Presidente da República ao suicídio em 1954. Apesar do preço vil com que foi privatizada, felizmente, a sua direção técnica e administrativa acabou ficando em mãos de empresas e dirigentes nacionais, isenta de politicagem e da corrupção, tendo aumentado o número de empregados de dez mil para sessenta mil, e o valor de mercado de R$8 bilhões para R$125 bilhões, segundo notícias veiculadas. Infelizmente, comentaristas de grandes jornais e emissoras de rádio e televisão estão divulgando a atuação de grupos financeiros e políticos, interessados em alterar a atual direção da Vale e substituí-la por arrivistas e pessoas estranhas às atividades técnicas e administrativas da empresa. É de se esperar, que o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que obteve uma gloriosa consagração nacional, como ninguém no Brasil conseguiu, com a conquista da cidade do Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016, não se deixe levar pelo canto de sereia dos interessados, que não possuem a competência devida para dirigir o grande complexo da Vale, e cometa essa impropriedade contra os interesses reais da Nação. O objetivo deste Editorial é compartilhado e comungado com a opinião categórica e repulsa efetiva da imprensa especializada, bem como das cartas de inúmeros leitores que expressam suas opiniões, como as que transcrevemos da edição do jornal “O Globo” dos últimos dias, que repelem essa malfadada intenção, que se encontra, infelizmente, em plena e indigesta elucubração. 6 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

Foto: Arquivo JC

A VALE, NÃO!


O bolivariano ataque à Vale, na pessoa de seu presidente, Roger Agnelli, procura demonstrar uma vocação estatizante do governo, quando na verdade mascara a verdadeira intenção de enfiar goela abaixo, na administração da maior mineradora do mundo, uma patota de alinhados executivos, futuros dizimistas políticos. Se, de fato, os maiores fundos de pensão entraram de cabeça nesta ação coordenada com precisão cirúrgica, é hora de outras grandes empresas brasileiras começarem a botar suas barbas de molho. É importante que alguém informe ao presidente que o principal ativo de qualquer corporação é o talento de seu corpo gestor, bem não contabilizável por ser intangível, porém, verdadeiro responsável pelos resultados econômico-financeiros alcançados. Augusto Acioli de Oliveira (por e-mail, 14/10), Rio

A bola da vez é a Vale! Depois de aparelhar o Banco do Brasil, a Petrobras e outras menos votadas, o nosso governo agora volta suas baterias em direção da Vale. Não está satisfeito com os lucros? Não está de acordo com a política de investimentos? Nem com a administração dos seus recursos humanos? Ou não é nada disto e na verdade quer simplesmente assumir o controle da Vale para usá-la como instrumento político, visando a assegurar a sua perpetuação no poder em prejuízo da empresa, seus empregados, acionistas e, por que não dizer, do Brasil? Paulo Binenboim (por e-mail, 14/10), Rio

Qual outra empresa de grande porte apresentou em 12 anos um crescimento de 15,6 vezes seu valor de mercado, 7,7 vezes sua receita, 29 vezes seu lucro líquido, 13,7 vezes de pagamento de impostos e aumentou o número de empregados em 5,5 vezes? Qual a justificativa do governo, tentando uma mudança em seu comando? Espero estar enganado, mas só vejo uma: lotear seus quadros com “companheiros” para administrar uma receita igual ao PIB de vários países. A Vale, hoje, mais do que nunca, é de todos os brasileiros e não de poucos, apenas com administração profissional e sem interferência do Estado. Jorge Claudino de Oliveira e Cruz Neto (por e-mail, 14/10), Rio

A turma que comanda a República Sindicalista do Brasil é gulosa. Não satisfeita em “privatizar” a Petrobras com a companheirada, quer abocanhar a Vale. Acho que há muitos companheiros precisando de emprego. Além disso, quanto mais fontes para financiar o projeto da Dilma 2010, melhor. Temos que ficar atentos, pois pelo andar da carruagem daqui a pouco estarão querendo controlar os meios de comunicação, conforme os companheiros de Venezuela, Argentina e Equador. Altair Vieira Filho (por e-mail, 14/10), Juiz de Fora, MG

Ate onde sei, a Vale foi privatizada no Governo Fernando Henrique. Hoje, portanto, é uma empresa privada. Como pode o Presidente Lula querer mudar a sua direção? A empresa é uma das maiores do país. Paga imposto. Mantém uma quantidade enorme de empregados. É produtiva. Tem projeção internacional. Está investindo muito. Qual o objetivo disso? Torná-la novamente estatal, improdutiva e voltar a ser novamente cabide de empregos? Sei não, mas acho bom alguém ou algum órgão começar a se preocupar com isso. O que pode estar por trás de uma intervenção destas? É muito preocupante. O próximo passo será a interferência em nossas casas? Sei não. Com a palavra, as mentes pensantes e não comprometidas. Mucio Antonio Botelho Gadelha (por e-mail, 14/10), Rio 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 7


O contador de histórias Entrevista: Antônio Carlos Malheiros, Desembargador da 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP)

O

Desembargador da 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), Antônio Carlos Malheiros, é um contador de história. E por puro prazer. Ele é integrante da Associação Viva e Deixe Viver, uma Sociedade Civil de Interesse Público, criada em 1997, com o objetivo de promover entretenimento, cultura e informação a crianças enfermas, em tratamento em diversos hospitais do País. A leitura divertida é a principal arma dos voluntários para alegrar um pouco a vida dos pequenos. “Podemos contar a história fazendo desenhos, dobradura de papel, palhaçada ou brincando com fantoches e marionetes. Tem que ser interessante. A criança já está tão amolada no hospital, não resolve apenas ir lá e ler com uma voz chata uma história que ela já conhece”, afirma o Magistrado, que se voltou para o voluntariado ainda na adolescência, quando teve de realizar um trabalho da escola em uma comunidade paulistana. Malheiros conta que a experiência fez com que aprendesse “a ser gente”, principalmente em sua atuação como juiz. Apesar da correria diária, ele dedica duas horas por semana ao trabalho social. É um compromisso que leva a sério. “Brincadeiras, é o que vamos fazer com as crianças. O compromisso é muito sério. Se começar a faltar, o contador é excluído do grupo”, diz.

assim também como trabalhei com crianças e adolescentes. Durante 15 anos, desenvolvi um longo trabalho nas ruas de São Paulo e, ao final dos anos 70, tornei-me voluntário em hospitais. Trabalhei, primeiro, com adultos. Nesta época, chegou a AIDS, comecei então a atuar junto aos doentes mais abandonados, infectados com o HIV. Em 1997, o Valdir Cimino, criador da “Viva e Deixe Viver”, convidou-me para trabalhar com crianças. De lá para cá, além de integrar outros projetos e comissões de Direitos Humanos, participo ativamente da Associação como contador de histórias para as crianças hospitalizadas no Hospital Emílio Ribas (especializado em infectologia). Éramos poucos na época. Hoje são mais de 70 hospitais e somamos mais de mil voluntários em todo o País.

Revista Justiça & Cidadania – Como surgiu seu interesse pelo voluntariado? Antônio Carlos Malheiros – Comecei o trabalho voluntário aos 13 anos de idade, ainda no colégio, quando recebi a tarefa de fazer um levantamento em uma comunidade. Comovi-me tanto com a situação de miserabilidade que, a partir dali, voltei-me para as pessoas menos favorecidas. Durante a faculdade, trabalhei com a alfabetização de adultos em uma comunidade carente,

JC – Como era o trabalho com os adultos? ACM – Era um trabalho de companhia, animação, de conversa e consolo. Eu pertencia à Pastoral da Saúde. Era um trabalho, portanto, que tinha uma índole religiosa. O “Viva e Deixe Viver”, no sentido mais estrito, não tem religião alguma.

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JC – O que lhe marcou nessa experiência desenvolvida ainda na adolescência? ACM – Essa experiência me ajudou a ser gente no meu trabalho e no contato com meus amigos, conhecidos, alunos e jurisdicionados. O trabalho social traz para mim uma mensagem de igualdade, liberdade e solidariedade, além do grande desejo de trazer felicidade para as pessoas também nas minhas decisões judiciais.

JC – E como é trabalhar com crianças? ACM – Já trabalhava com adultos com AIDS, então passei


Foto: ASCOM/TJSP

a lidar com as crianças portadoras dessa doença. Hoje, com os tratamentos adequados, elas vivem saudáveis. Muitas das crianças com as quais trabalho não estão internadas no hospital, vão lá para tomar as drogas e se fortalecerem. As pessoas aprenderam a viver com a AIDS, que ainda é extremamente grave. JC – Como é contar histórias? ACM – Quando começamos, não havia nenhum treinamento. Hoje, há um de oito meses para que o voluntário esteja completamente preparado para ser um contador de histórias diferenciado. Trata-se de uma forma de contar histórias de maneira diferente. Podemos inventá-las ou apenas lêlas, mas interpretando-as com riquezas. Podemos contar a história fazendo desenhos, dobradura de papel, palhaçada ou brincando com fantoches e marionetes. Tem que ser interessante. A criança já está tão amolada no hospital, não basta apenas ir lá e ler com uma voz chata uma história que ela já conhece. Precisamos realmente trazer felicidade para aquela criança. Não tenho a menor dúvida de que a alegria, o sorriso e a gargalhada são excelentes remédios para qualquer tipo de doença. Muitas vezes, as crianças melhoram e saem rapidamente dos hospitais porque tiveram algum momento de alegria. As pessoas se recuperam melhor quando se sentem alegres. JC – Com que periodicidade o senhor presta esse trabalho? ACM – Cada voluntário destina duas horas por semana para essa atividade. Eu destino as tardes de sexta-feira. Pode ficar um pouco mais de duas horas, mas essa é a média. Há uma

seriedade no cumprimento desta meta. Brincadeiras é o que vamos fazer com as crianças. O compromisso é muito sério. Se começar a faltar, o contador é excluído do grupo. JC – Porque o senhor considera esse trabalho tão recompensador? ACM – É uma satisfação imensa verificar que as crianças estão sorrindo. Crianças, muitas vezes, extremamente carentes, que estão entristecidas com uma doença que lhes causa deformidades e que pode levá-las à morte. Qualquer que seja a doença, assusta até adultos, imagina as crianças. Nossa maior recompensa é ver que a criança está feliz naquele momento. E elas acabam nos ensinando muito: a sermos mais simples e alegres, a termos bom humor e, principalmente, esperança. JC – O trabalho de juiz é exaustivo. É difícil arrumar tempo para o voluntariado? ACM – Estamos numa fase de cumprir metas, por determinação do Conselho Nacional de Justiça. E temos mesmo que fazer isso, pois estamos afogados em processos, então temos que trabalhar muito. E, em relação a isso, juiz, como qualquer outro profissional, tem seus próprios defeitos, mas também uma grande qualidade: trabalha muito. Além dos processos, desenvolvo atividades administrativas dentro do TJSP. Sou o Coordenador da Infância e Juventude de todo o Estado de São Paulo pelo Tribunal de Justiça. Sou também o Presidente da Comissão de Negociação Salarial relativa aos funcionários, Conselheiro e Professor na Escola da Magistratura. Enfim, tenho muitas atividades. No entanto, sabendo se organizar, dá para dispensar um pouco do nosso horário para uma atividade voluntária. 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 9


Balanço ambiental Positivo

Da Redação

H

á pouco mais de um ano como Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc vem mostrando que sabe dialogar com os dirigentes das demais pastas. Em entrevista exclusiva à “Revista Justiça & Cidadania”, ele fez um balanço de sua atuação e constatou que o número de concessões de licenças aumentou desde que passou a comandar o Ministério. Pelas contas que faz, seriam 40% a mais de autorizações do que na gestão de sua antecessora, Marina Silva. Isso não quer dizer, entretanto, que ele tenha arredado o pé em suas convicções para facilitar as negociações. “Estamos concedendo licenças com mais rapidez, porém de forma mais rigorosa. Isso é uma coisa interessante. Temos 40% a mais de licenças, porém com mais rigor. Acho que esse é um bom caminho. Se não dermos licença nenhuma, acabamos criando conflitos com a área econômica e os outros ministérios”, afirmou o Ministro, comentando como vem, na prática, ocorrendo este “rigor”. No que diz respeito à terceira Usina Nuclear de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, por exemplo, o Ministro estabeleceu que o monitoramento dos índices de radioatividade deveria ser feito por organismos independentes, ligados a universidades, de modo que qualquer cidadão pudesse ter acesso aos dados, independentemente da necessidade de autorização do órgão competente. Minc também brigou para que o grupo responsável pelas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira (RO), arcasse com os custos do desenvolvimento naquelas

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localidades. Estima-se a criação de 20 mil novos empregos — o que certamente provocará a migração em massa para a região. As empresas envolvidas terão que investir em saneamento básico, habitação e na elaboração e efetividade de planos de recuperação ambiental. Chamam atenção ainda os leilões de gado e madeira ilegais apreendidas pelo governo. Apesar dos esforços dos infratores, a medida acabou dando certo e resultando na arrecadação de cerca de R$ 2,5 milhões logo no início da sua implantação. Para o Ministro, no entanto, esse não foi o maior ganho. “Houve uma queda substancial no desmatamento, algo na ordem de 80% a 90%, sendo em alguns casos até de 100%”, constatou. JC – A regulamentação da Lei do Meio Ambiente é recente, de 2008, e foi alvo de muita polêmica. Principalmente o seu artigo 3º, inciso IV, que prevê a apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora e demais que sejam objetos da infração. Essa previsão legal motivou a criação da Operação Boi Pirata. Quais resultados já foram alcançados com esssa operação? Carlos Minc – Tínhamos leis ambientais, a de crimes ambientais e várias outras, mas os dispositivos não eram cumpridos por falta de regulamentação. Além disso, estávamos lidando com uma questão, que era a da impunidade. Víamos, em muitos locais, especialmente na Amazônia, o agente econômico entrar em uma terra que não era a dele e não pagar imposto, não assinar carteira, nem pagar multa, e nada acontecer.


Foto: Elza Fiúza/ABr O Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, discursa na solenidade de lançamento do zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar

Então, dava a impressão de que o crime compensa. Por outro lado, para ele fazer a coisa certa — que seria recuperar uma área degradada, pegar um crédito e apoio tecnológico — era complicadíssimo. Então, sempre que o errado for fácil e o certo for muito difícil, perderemos a guerra. Temos que inverter isso, fazer com que o crime ambiental não compense. Ao mesmo tempo, temos que simplificar a vida daqueles que querem fazer o procedimento adequado. Então, preparamos, e o Presidente Lula assinou, o decreto de crimes ambientais, que em um dos seus inúmeros artigos criou a figura do perdimento. Com isso, passamos a promover o embargo, a apreensão e o leilão como uma medida de prevenção administrativa para vedar o crime continuado. Nessa primeira ação, houve muitos lances e contra-lances. Isso, inclusive, chegou ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região. O caso foi relatado pelo Desembargador Souza Prudente. Era a primeira vez que isso acontecia no Brasil, e o Desembargador manteve, dizendo que havia respaldo jurídico para essa atuação. Fizemos, então, a apreensão na Terra do Meio, que é uma estação ecológica (localizada no Pará) e o leilão foi organizado pela Companhia Nacional de Abastecimento. No entanto, houve um pacto entre os pecuaristas de que ninguém compraria. Eles queriam quebrar a operação. No terceiro leilão, o gado foi vendido. Eram 3.150 cabeças. Se não me engano, isso gerou algo em torno de R$ 2.200.000,00 ou R$ 2.500.000,00. O ganho maior, no entanto, não foi esse. O que verificamos em toda essa área foi que cerca de 40 ou 50 mil cabeças de gado foram

retiradas dessa reserva federal. A terra nem pertencia àquele que estava desmatando e colocando o gado lá. Uma entidade importante da Amazônia, chamada Imazon, que todo mês divulga estatísticas de desmatamento a partir de satélites, fez um trabalho em torno dos municípios de São Félix do Xingu e da estação ecológica da Terra do Meio, no Pará. Eles usam os mesmos satélites que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, mas a forma com que organizam os dados é diferente. Eles verificaram que nos meses seguintes houve uma queda substancial no desmatamento, algo na ordem de 80% a 90%, sendo em alguns casos até de 100%, por causa dessas medidas. Temos vários leilões, de madeiras piratas a gado. Muitas vezes, fazemos acordos, por meio do qual doamos esse material ao Município afetado para que construa uma escola municipal, uma ponte ou casas populares, de modo a oferecer um emprego à população que trabalhava em serrarias ou carvoarias ilegais, dando-lhes alguma cobertura social. Nos próximos dias, vamos assinar um acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social, do Ministro Patrus Ananias, para que esse recurso, seja do gado ou da madeira, se converta em um tipo de apoio e alternativa de emprego, enquanto não vem a Operação Arco Verde. Essa sim é uma grande operação, com o envolvimento de dez ministérios; trinta órgãos; recursos do Banco da Amazônia (Basa), do Banco do Brasil e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que dá apoio à agricultura de bom 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 11


rendimento e baixo impacto; assim como com o Ministério da Pesca, que põe a piscicultura como alternativa contra o boi pirata, já que permite a geração de uma proteína animal oriunda do peixe que não se expande nas florestas, nas terras públicas e nas áreas protegidas; e também com o Governo do Pará, que apoiou a fiscalização. JC – A situação dos moradores da região desmatada que dependem economicamente da exploração ilegal, de forma direta ou não, é levada em consideração antes da adoção das medidas preservativas? CM – É levada em consideração. Inclusive, durante todo esse último ano batemos às portas dos ministérios. Alguns prefeitos e governadores se queixavam de que a Operação Arco de Fogo chegava mais rápido e intensamente com as medidas de controle e repressão, em suma, de combate à impunidade e ao crime ambiental; mas que a Operação Arco Verde, não. Essa última é justamente a que contém as alternativas que mencionei anteriormente, para o manejo florestal sustentável, pequenas empresas de tecnologia limpa e de serviços ambientais, assim como para o reflorestamento das matas ciliares de alguns rios. Então, havia um descompasso. Há dois meses e meio, a Operação Arco Verde começou com força total. Desde então, desencadeou-se a Operação Arco Verde Terra Legal, que já cobriu, até o dia 25 de agosto deste ano, 23 dos 43 municípios que são os maiores desmatadores da Amazônia. Incrível, a Amazônia tem mais de 500 municípios, mas apenas 43 são responsáveis por 55% do desmatamento. É claro que temos que começar por aí. Nesse tempo, foram feitos 120 mil atendimentos, que visaram à regularização fundiária; às operações de crédito e pequeno crédito, do Banco do Brasil e do Basa; ao manejo florestal; à instalação de postes da Embrapa, exatamente pra ajudar a agricultura de bom rendimento e baixo impacto, assim como do Ministério da Pesca e do Instituto Nacional de Seguridade Social. Então, qual é a minha grande esperança? Até agora — portanto, de agosto do ano passado a julho desse ano — conseguimos reduzir o desmatamento da Amazônia em cerca de 45%. Vamos ter, então, nesse ano, o menor desmatamento dos últimos 20 anos. Isso por causa, sobretudo, das ações de fiscalização forte, da destruição de fornos ilegais de carvão, do corte de crédito para os desmatadores e, diria, de apenas 10% de alternativas sustentáveis. Meu grande sonho é que, nesse próximo ano, pelo menos metade das ações que resultem em queda do desmatamento esteja ligada ao implemento e ao incentivo de atividades sustentáveis. Temos vários mecanismos, um deles é o Zoneamento Econômico e Ecológico. Estamos colocando gente e recursos, priorizando, correndo atrás e fazendo reuniões na região. A expectativa é boa. Nossa ideia é a de que até janeiro do ano que vem já estejamos concluindo o Zoneamento Econômico e Ecológico de toda a Amazônia. A segunda linha é o Fundo Amazônia. Brigamos e conseguimos implantar os critérios e o conselho. Os primeiros projetos já foram enquadrados pelo BNDES. Esperamos que já a partir do fim de setembro e início de outubro os 12 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

primeiros seis ou oito projetos, com valor de cerca de R$ 60 milhões, já estejam chegando com alternativas para as instituições científicas, como por exemplo, o Museu Goeldi e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, instituições reconhecidas e que remuneram pessoas pelos serviços ambientais de recuperação de áreas degradadas. Uma terceira linha diz respeito à Operação Arco Verde, que tem como objetivo atenuar os efeitos da Operação Arco de Fogo e abrir empregos verdes. Outra ainda é a operação de regularização fundiária, que dá muito mais segurança jurídica para as pessoas e acaba sendo um inibidor da violência no campo. Se a pessoa não tem um título, é muito mais fácil mandar matá-la e dizer que é a dona, mas se ela tem um papel registrado, atual e reconhecido, isso acabará com a violência. Então esses quatro projetos juntos — Terra Legal, Arco Verde, Fundo Amazônia e Zoneamento Econômico Ecológico — nos permitirão combater o desmatamento abrindo alternativas sustentáveis. JC – Sobre o Zoneamento Econômico e Ecológico, muito se noticia que, nos moldes em que foi aprovado, acabará por aumentar o desmatamento e diminuir a recuperação das áreas degradadas. Qual a sua interpretação para essas notícias e o que elas têm de verdade? CM – Isso não é verdade. A questão completa é a seguinte: o próprio Código Florestal — não a versão que querem fazer dele em que se diminuem as defesas das florestas — prevê que, em algumas áreas completamente degradadas ou com atividades econômicas consolidadas, há a possibilidade de se continuar a explorar 50% delas, desde que isso seja aprovado no Zoneamento Econômico e Ecológico. Por exemplo, há um mês, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) votou o ZEE das terras em torno da BR 163 e da BR Transamazônica. Essas duas áreas juntas, que são enormes, representam mais de um terço de todas as terras do Pará. Então, esse trabalho foi feito através de oito audiências públicas, com milhares de pessoas. Quem deu o apoio e a base técnica foi o ZEE Brasil, um consórcio composto por quatro instituições: o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Embrapa, o Ministério do Meio Ambiente e a Companhia de Recursos Minerais. Portanto, um pessoal seríssimo. Isso foi para o governo, que mandou para a assembleia uma lei, que votou. Então, o Pará passou a ter uma lei. Isso, no entanto, só significa que haverá uma alteração se o Conama aprovar, e isso aconteceu. O que existe de concreto nesse fato? Para citar outro exemplo, da BR163, de Cuiabá a Santarém, só em apenas duas dessas áreas — uma completamente degradada, com área 100% desmatada, e a outra completamente ocupada com atividade consolidada há mais de 10 anos — definiuse que poderia ter o aproveitamento de metade delas e a recuperação ambiental da outra metade. Para uma área que está 100% degradada, recuperar metade e intensificar a produção na outra parte não é um mau negócio. Se você pega uma área dessas, usa a tecnologia e intensifica a produção,


Foto: Jefferson Rudy/MMA Carlos Minc, Ministro do Meio Ambiente

é uma forma de inibir a expansão da produção em áreas ainda virgens e intocadas do bioma. Então, dobrar ou triplicar a produtividade em uma área garante alimento, emprego e renda numa região menor. Na Amazônia, vivem 24 milhões de pessoas, elas têm que sobreviver. É melhor intensificar em uma região já degradada do que deixar que a expansão ocorra com uma moto-serra em cima do que restou. Por isso, acho que essa interpretação é um equívoco de quem não sabe que isto está previsto no Código Florestal, que existe o ZEE Brasil com a participação da Embrapa e do IBGE, que isso passa pelo Conama e que a recuperação é obrigatória. O balanço ambiental é positivo, porque se recupera uma área que estava completamente detonada, desmatada, degradada e ainda se intensifica a produção. JC – O senhor continua contrário à energia nuclear? CM – Veja como é que se coloca essa questão. A crítica à energia nuclear vem de alguns pontos. Essa é uma atividade muito concentrada e cara, e não há uma solução segura para os rejeitos radioativos. Houve grandes problemas e acidentes no mundo, como o caso de Trimailai, nos EUA, e o caso de Chernobyl, na União Soviética. Chernobyl, por exemplo, afetou milhares de pessoas em oito países. Então, no episódio do Brasil, sempre critiquei porque nosso País é a terra do sol, do vento e da biomassa. Estávamos usando uma energia que era duas vezes mais cara e não sabíamos o que fazer com o lixo atômico (o Césio, o Xenônio, o Urânio, o Plutônio), que tem um ciclo de 400 a 500 mil anos. É verdade também que, nesse

período, vários dos acidentes ou incidentes que detectamos não foram passados para a sociedade pela Eletronuclear, mas sim por engenheiros lá de dentro que tinham um nível maior de consciência. Assim descobrimos 18 pequenos ou médios acidentes, ou incidentes. O mais grave deles ocorreu em julho de 1986, que foi o vazamento de água do circuito primário do núcleo do reator de Angra Um que poderia levar à fusão daquele reator da matéria nuclear, depois queimar e se enterrar na terra, contaminando enormes áreas e provocando muitas mortes. É verdade também que, nos últimos anos, alguns ambientalistas, em vista da questão do efeito estufa e de estarem ocorrendo menos acidentes na proporção de Chernobyl ou Trimailai, mudaram um pouco. Como a questão que mais preocupa é o aquecimento global, alguns passaram a ser muito menos críticos e outros até favoráveis. Não é o meu caso. Acho que temos energias mais seguras e mais baratas. Diferentemente de países que não têm essas alternativas, nós temos. Então, por que usar uma que custa o dobro do preço, e não resolver, entre outros, o problema do lixo atômico? Quando houve o licenciamento de Angra Três, a então Ministra Marina Silva tinha uma posição bem semelhante à minha. Isso foi a voto no Conselho Nacional de Política Energética, o CNPE, e a Ministra perdeu por 12 x 1. Quando cheguei ao Ministério, o licenciamento de Angra Três estava 90% realizado. Então, o que fiz? Declarei que tinha a mesma posição, que não era favorável. Como isso já tinha sido votado, dei prosseguimento, mas introduzi algumas novas questões. Por exemplo, introduzi 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 13


Não havia casa nem saneamento. Houve poluição do mar, construções nas encostas e favelização da Mata Atlântica. Então, cravei a ideia de que eram necessários recursos para a habitação popular. Ficaram definidos R$ 50 milhões para o saneamento e a adoção de um parque federal, que é o Parque Nacional da Bocaina. Não gostaram muito, mas assim será. Não tem sentido se não aprendermos com os erros. Fiz a mesma coisa pelas hidrelétricas do Rio Madeira (em Jirau e Santo Antônio, em Rondônia), que vão provocar a ida de milhares de pessoas para lá. Inclusive, estabe­ lecemos que a prioridade seria para as pessoas da região. Mesmo assim, essas hidrelétricas vão empregar 20 Ministro Carlos Minc concedendo entrevista ao nosso Diretor, Tiago Salles, e o Desembargador Antônio mil pessoas cada uma. E a habitação Souza Prudente, Vice-Presidente do TRF 1ª Região delas? Vão jogar isso para cima do poder público? E o saneamento? Então os consórcios de Santo Antônio e Jirau tiveram que a questão de que o monitoramento não poderia ser feito pela bancar a adoção de unidades de conservação, o monitoramento Eletronuclear, mas por um organismo independente — uma de terras indígenas, R$ 30 milhões para o saneamento de fundação universitária como a Coppe ou a Unicamp —, de Porto Velho, R$ 30 milhões para a habitação, além de preparar tal maneira que não fosse a operadora a dizer se tinha ou não programas com duração de 20 anos para salvar a fauna acontecido algum vazamento. Isso já é feito na Espanha e em ameaçada de extinção na bacia do Rio Madeira. Estamos outros países. Lá há um local com vários computadores ligados concedendo licenças com mais rapidez, porém de forma mais a sensores em terra, ar e mar; qualquer cidadão comum — um rigorosa. Isso é uma coisa interessante. Temos 40% a mais juiz, parlamentar ou jornalista — pode chegar a qualquer hora de licenças, porém com mais rigor. Acho que esse é um bom e verificar como está a radioatividade, independentemente de a caminho. Se não dermos licença nenhuma, acabamos criando operadora liberar ou não essa informação. Isso é uma inovação. conflitos com a área econômica e os outros ministérios. Não é que a (ex-ministra) Marina Silva não concedesse licenças. Ela JC – Que outra medida o senhor adotou em relação a isso? concedia muitas. Mas uma das principais razões do desgaste CM – Eu disse que não haveria licença de operação — que que sofreu no ano anterior à saída dela estava ligada ao é a última etapa, daqui a cinco anos — sem que houvesse licenciamento ambiental. Então, optamos por esse caminho de uma solução de longa duração para o lixo atômico. Não disse fazer com que ele fosse mais ágil e mais rigoroso. uma solução definitiva, porque ela não existe; uma das razões das críticas. Logo dessa decisão, disseram que não cabia ao JC – Uma questão que ficou muito batida na mídia foi a órgão ambiental dispor sobre isso, que era algo exclusivo da dos 89 containeres encontrados no porto de Santos. Quais Comissão Nacional de Energia Nuclear. Eu falei que não. A as medidas punitivas adotadas e o que pode ser feito para Comissão Nacional tem o poder de definir como deve ser o impedir novas remessas de lixo ao Brasil pelos países transporte, a disposição, etc. Por exemplo, hoje em dia o lixo desenvolvidos? atômico de Angra Um e Dois está em uma piscina ao nível CM – Essa é uma questão emblemática. Assim que detectamos do mar, a cem metros do mar, no núcleo do reator em frente que havia chegado o lixo — nesse caso basicamente lixo à Ilha Grande, que é uma das pérolas da Mata Atlântica do domiciliar — no Rio Grande do Sul e em Santos, imediatamente Brasil. Como o nível do mar, daqui a 30 anos, deverá subir de falamos com o Presidente Lula. Dissemos que isso era 15 a 20 centímetros, isso não é admissível. Provei que essa inadmissível, que os países desenvolvidos tinham discursos era uma questão ambiental. Não estava discutindo como seria de salvação do planeta e que mandar o seu lixo doméstico, transportado ou armazenado, mas dizia que tínhamos que ver hospitalar ou químico para países em desenvolvimento, tendo qual a solução encontrada pelos países desenvolvidos que há eles, os ricos, muito mais recursos financeiros e tecnológicos mais tempo utilizam isso. Lacrar e enterrar em uma mina de sal para dar uma destinação final adequada, não era jurídica e estável geologicamente a 1000 metros, por exemplo. eticamente adequado. Recebemos multas violentas, entramos Depois de certa queda de braço, eles aceitaram, e assim junto com o Itamaraty na Convenção da Basiléia, que no artigo será. Com Angra Um e Dois vieram muitas pessoas para a região. 14 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009


9º diz que os países são co-responsáveis por erros como esses — de enviar ilegalmente lixo químico —, cometidos por empresas. Ou seja, ainda que os países não tenham estimulado, permitiram (as empresas a enviar o lixo). Também estive pessoalmente nos portos de Santos e do Rio Grande do Sul. Armazenamos, selamos e mandamos o lixo de volta para a Inglaterra. Não somos xenófobos. Queremos parceria comercial e cultural, mas o lixo, por favor, que cuidem do seu, porque já temos dificuldades de cuidar do nosso. Agora, não fiquei contente com isso. Tive reuniões com os órgãos da Receita, Polícia Federal, Administração do Porto, Vigilância Sanitária, Ibama, tanto em Santos quanto no Rio Grande, que tem um grande porto. E depois, no Ministério, já por ordem do Presidente Lula, fizemos uma reunião com cerca de 40 dirigentes de todas essas áreas: Ministério dos Portos, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Alfândega, Receita, Ibama. A visão era a seguinte: identificar o erro e tomar medidas para que isso não se repetisse. Essa não era a primeira vez. Quando eu era Deputado Estadual, fiz uma lei no Rio de Janeiro, em 1991, que proibia o Rio de receber lixos químicos de outros países. Em 1992, chegou um navio da Bélgica trazendo lixo químico e dois portuários ficaram intoxicados. Fomos para o porto, acampamos lá por uma semana, com os sindicatos e as autoridades, e mandamos o navio de volta para a Bélgica. Depois, no final dos anos 90, descobri a existência de lixo químico da Alemanha e dos Estados Unidos enterrados na baixada fluminense, em Belford Roxo, Queimados e Nova Iguaçu. Esse assunto é antigo. Na África, infelizmente, é muito pior. Há países que estão se transformando literalmente em lixeira. JC – Por que esse fenômeno existe? CM – Muito simples, nos países ricos as leis são rigorosas. Dar a destinação adequada para o lixo doméstico, hospitalar ou químico é caríssimo. Não basta enterrar, é preciso fazer dupla impermeabilização. Não basta incinerar, porque os produtos com furanos e dioxinas têm que ter tratamentos secundários e terciários da fumaça que sai da chaminé para impedir que as pessoas em torno fiquem intoxicadas. Os custos disso chegam a US$ 100 a tonelada para o lixo doméstico, US$ 250 para o hospitalar e US$ 500 para o lixo químico com metais pesados. É fácil entender o porquê (do envio do lixo) do ponto de vista econômico. Para eles, é muito mais barato botar no navio e mandar para a África, para o Caribe, para o Brasil ou até para uns países pobres da Ásia. Isso acaba saindo por US$ 100 ou mesmo US$ 80, assim mesmo contando com todas as propinas de hábito. Se comparar US$ 500 com US$ 100, ainda há um lucro de US$ 400. Se multiplicar por 100 mil toneladas, dá US$ 40 milhões. Daí, vemos qual é a base econômica dessas autênticas máfias e quadrilhas do lixo químico. Verificamos que o nosso sistema estava muito falho: 85% da mercadoria passava no chamado Canal Verde sem ser aberta e escaneada, sem deixar a documentação nos portos. Rapidamente, com a Receita e a Polícia, mudamos os procedimentos. Agora menos de 85% passarão. Teremos mais scanners e aparelhos de raios X para comparar a carga

declarada com a carga observada. Realmente, não temos condições de abrir tudo, toda hora chega e sai navio, cada minuto custa milhões. Agora é curiosa a exigência dos EUA de que todo material que sair daqui destinado àquele país seja escaneado, porque eles não fazem o mesmo com o material que mandam para cá. Outra questão que percebi, também curiosa, é que a lei atual, que tem que ser mudada, diz que no caso de uma carga ilegal a pena é o perdimento. Ora, uma carga valiosa, de computadores, por exemplo, tem sentido. Pegamos esses computadores e damos para a Receita, para uma escola, leiloamos e ficamos nós com o produto que era ilegal. Agora, no caso do lixo químico, essa lei é perversa e cruel porque ficamos com o ônus. A lei tem que ser modificada. Chamamos a atenção dos nossos parlamentares para o fato de que essa lei nos punia duplamente, primeiro porque falsificaram e mandaram o que não devia para cá e depois porque somos nós que temos que arcar com o ônus de neutralizar os agrotóxicos. Em suma, é um assunto muito complexo. Quando, depois desse fato, vieram ao Brasil os ministros do Clima da Inglaterra e dos EUA, cobramos deles. Também vamos alertar os países da África e outros para que, unidos, impeçamos que os países em desenvolvimento se convertam em lixeira de qualquer um dos países ricos. JC – Como o senhor interpretou as decisões do STF em relação à reserva indígena e à importação de pneus? CM – Com muita alegria. Acho que o STF está avançando muito. Tanto no caso da Raposa Serra do Sol quanto no caso (da importação) dos pneus, acho que foram boas as decisões. No caso dos pneus, isso é pré-lixo. As empresas, por lei, têm que recomprar 25%, mas não o fazem. Então, ao invés de importar sucata de pneu, deveriam organizar uma rede coletora e captar o nosso que está jogado no meio ambiente se convertendo em piscina do mosquito da dengue. No caso da Raposa Serra do Sol, também fiquei contente porque, na verdade, havia seis grandes arrozeiros, que estavam lá há 40 anos, sendo que alguns já tinham sido indenizados. Temos uma dívida com as nações indígenas. Há 500 anos eram cinco milhões de índios. A população foi decrescendo até chegar a 300 mil. Agora, por força da demarcação e de investimentos, voltaram a crescer e passaram de 300 para 480 mil. Isso graças à demarcação e homologação de medidas que impedem que os agrotóxicos contaminem suas águas, por exemplo. No próprio Ministério do Meio Ambiente, abrimos uma carteira de apoio à escola dos indígenas. Então, vi com muita alegria essa decisão. Se o direito de seis arrozeiros tivesse sido considerado maior do que o do povo que habitava essa terra indígena, seria uma absoluta inversão de valores. O STF foi sábio porque falou que não há vedação do Exército em defender fronteiras, mesmo quando a terra é indígena, porque aquilo é Brasil. Então, achei que foi uma decisão equilibrada, pois garantiu o contínuo das terras que permitem as condições de existência digna; mas, por outro lado, garantiu que a soberania nacional fosse exercida, quer pelas Forças Armadas, quer pelos órgãos ambientais da Fundação Nacional do Índio – Funai. 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 15


Justiça Federal terá mais varas do meio ambiente Antônio Souza Prudente

A

Justiça Federal terá mais varas para julgar questões ligadas ao meio ambiente. Essas instâncias serão especializadas conforme a criação das novas 230 varas, aprovadas com a Lei 12.011, de agosto último. O Desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Souza Prudente, explicou que a norma não estipulou o número exato de juízos que terão essa atribuição. Caberá aos tribunais realizarem pesquisas sobre a demanda na área e, assim, decidir pela competência. “Na 1ª Região, temos que especializar varas ambientais diante da grande demanda de ações coletivas e de ações de natureza individual que também tratam de matéria ambiental”, constatou o Magistrado. A 1ª Região atende a 13 Estados do Brasil, mais o Distrito Federal. Souza Prudente lembrou que o Direito Ambiental foi introduzido recentemente no ordenamento jurídico brasileiro e que, a cada dia, vem ganhando relevância. Por isso, defendeu a especialização dos magistrados, principalmente pelas Escolas da Magistratura. “Para isto também se faz necessário que as Escolas da Magistratura, que têm um papel relevante na formação do juiz, preparem-nos para o exercício da jurisdição ambiental, para que assim possamos definir qual juiz tem o perfil ideal para exercer a jurisdição ambiental”, disse. De acordo com o Desembargador, as novas varas especializadas em meio ambiente precisam de juízes vocacionados para atuar nesta área. “Se colocarmos em uma vara ambiental um juiz formalista e medroso, nada se resolverá quanto à defesa do meio ambiente. Portanto, o juiz tem que ter esse compromisso com a Justiça acima de tudo, precisa ter ética e essa visão sistêmica do Direito Ambiental, assim como deve conhecer as técnicas do processo coletivo. Mas, sobretudo, é imprescindível que ele tenha coragem para enfrentar os agressores do meio ambiente, que são muitos”.

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Foto: Ascom/TRF 1ª Região

Vice-Presidente do TRF 1ª Região Membro do Conselho Editorial


Nosso Tribunal Regional Federal já deveria ter se preocupado com essas questões de especialização de varas ambientais há muito tempo, desde a sua fundação.

JC – Das 230 novas varas que serão criadas na Justiça Federal, já foram designadas quais serão especializadas em meio ambiente? Souza Prudente – Durante a tramitação do projeto que se transformou na Lei 12.011, de 4 de agosto de 2009, havia, e ainda há, a preocupação do Tribunal Regional Federal da 1ª Região no sentido da implantação das varas ambientais na nossa região. Como todos sabem, a jurisdição exercida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região é muito ampla, porque abrange 80% do território nacional. Vale dizer que o nosso Tribunal jurisdiciona sobre 13 Estados da federação e mais o Distrito Federal. Portanto, nesta imensidão territorial, há a necessidade premente de se interiorizar a Justiça Federal, buscando atender à demanda dos juizados especiais federais e também à demanda imperiosa da jurisdição ambiental. A lei, a rigor, vai buscar atender com eficácia plena aos princípios do acesso pleno à Justiça e da razoável duração do processo. E, sob o ponto de vista ambiental, o princípio magno que está consagrado no artigo 225 da Constituição, que é do progresso ecológico. JC – A lei já não define o número de varas especializadas? SP – A localização das varas será por ato do Conselho da Justiça Federal, como a própria lei assim determina. Agora a especialização das varas ocorrerá por ato do próprio tribunal. A lei autoriza expressamente o Tribunal a especializar varas ambientais ou juizados especiais, fazendo os levantamentos necessários de acordo com os critérios objetivos ditados pela lei federal.

JC – Na sua avaliação, essas varas devem ficar em regiões maiores ou mais para o interior? SP – A questão ambiental é muito mais complexa do que o cenário clorofila da flora e da fauna, portanto temos que pensar sistemicamente o meio ambiente dentro de uma região imensa como a nossa. As varas ambientais devem ser interiorizadas. É esse contato do juiz com o cenário da agressão ambiental, praticamente levando as inspeções judiciais, que vai fazer com que ele se torne realmente sensível à necessidade de exercer uma jurisdição ambiental pronta e de urgência. Do contrário, não conseguiremos atingir os objetivos traçados pela Constituição do Brasil e pela legislação ambiental. Então, penso que a melhor solução já foi sinalizada pelo texto legal e pelo que criou as 230 varas, no sentido de interiorizar a Justiça Federal no Brasil, dando aos Tribunais Regionais Federais a competência para especializá-las. Na 1ª Região, temos que especializar varas ambientais diante da grande demanda de ações coletivas e de ações de natureza individual que também tratam de matéria ambiental. Portanto, a melhor solução será aquela em que se busque a instalação de varas ambientais como já citado no Estado do Piauí, em São Raimundo Nonato, em São José ou no Município de Parnaíba, como também no Estado do Pará. Há uma necessidade urgente de uma vara ambiental em Marabá e provavelmente em Santarém, onde as ações ambientais se multiplicam diante do gravíssimo fenômeno do desmatamento, que é cada vez mais crescente naquelas regiões. JC – Existem estudos sobre a real necessidade dessas varas especializadas? SP – Estudos concretos, a rigor, não existem. Temos, em nosso Tribunal, levantamentos estatísticos feitos em matéria ambiental nas diversas seções judiciárias que compõem a nossa região. Nosso Tribunal Regional Federal já deveria ter se preocupado com essas questões de especialização de varas ambientais há muito tempo, desde a sua fundação. A verdade é que todos sabem que o Direito Ambiental é relativamente novo e que somente agora as universidades passaram a incluir a questão ambiental como disciplina obrigatória nos currículos do Direito. Pessoalmente, tive que batalhar bastante para incluir no currículo da Universidade Católica de Brasília a disciplina Direito Ambiental como sendo obrigatória na graduação. E hoje, é com felicidade que vejo que todas as universidades têm essa disciplina no seu currículo como sendo obrigatória. No âmbito judicial, o nosso Tribunal precisa realmente tomar medidas para levantar tais ações e racionalizar essa jurisdição. Na verdade, o nosso Tribunal, que tem uma jurisdição tão ampla no campo ambiental, deve fazer com celeridade esses levantamentos. Há uma proposta de um colega no sentido de que o Tribunal promova a criação e a especialização de varas ambientais com base na experiência da 4ª Região, que é pioneira. Agora é preciso ver que a realidade de lá é bem diferente da nossa. Nosso Tribunal possui a maior jurisdição ambiental não só do Brasil, mas do planeta. Os maiores biomas estão sob nossa jurisdição. Não basta pensarmos em instalar uma vara 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 17


Foto: Arquivo JC Ministro Castro Meira e o Desembargador Souza Prudente

ambiental ou uma vara de jurisdição mista, como acontece lá na 4ª Região. Temos condições de pensar na implementação e especialização de vara totalmente ambiental porque temos matéria para isto, temos uma jurisdição tão imensa. Então a experiência da 4ª Região, a meu ver, não vai servir de modelo para nossa região. JC – Mas não poderia servir nem como referência? SP – Uma referência, sem dúvida, porque é pioneira. Temos na Justiça Estadual do Mato Grosso e do Pará varas ambientais com relativo sucesso no exercício dessa jurisdição. No Estado de São Paulo, temos uma câmara especializada em matéria ambiental. Também, recentemente, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal especializou uma vara ambiental. Nossa jurisdição federal trata de questões ambientais bem mais complexas, porque essa especialidade do Direito é imensa. Temos questões ambientais no campo urbanístico, como, por exemplo, em São Paulo, onde a maior incidência de ações ambientais acontece exatamente em matéria de Direito Urbano Ambiental. Já a nossa realidade na 1ª Região é bem diversificada, principalmente porque temos que enfrentar o mais grave problema ambiental, não só do Brasil como do mundo, que é o desmatamento voraz e criminoso da Amazônia. JC – Em sua opinião, que papel o Judiciário deve desempenhar? SP – A norma matriz do artigo 225 da Carta Política Federal é muito clara e objetiva: o meio ambiente é um direito fundamental do ser humano, portanto deve ser defendido por todos. A Constituição também diz que: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público — em primeiro lugar, e aqui já se caracteriza o princípio da oficialidade ecológica — e 18 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O Poder Público está autorizado constitucionalmente a agir de ofício, independentemente da técnica da provocação das partes. O Poder Público, aqui considerado como os Três Poderes da República. O Legislativo tem o dever constitucional de elaborar leis ambientais que visem à defesa e proteção do meio ambiente para as presentes e futuras gerações. O Poder Executivo, no cumprimento das leis, está obrigado, pela Constituição, a dar cumprimento à lei de forma a preservar e defender o meio ambiente. Assim, se as políticas públicas se desvirtuarem e se desviarem da finalidade da lei ambiental para permitir, quer por omissão do agente público, quer por ação do agente público, agressão ambiental, está ferindo o princípio da oficialidade ecológica. Por último, o Poder Judiciário. Muitos juízes ainda não tomaram consciência, em primeiro lugar, de que são membros de um Poder, de que integram um dos Poderes da República: o Judiciário. Esta é a primeira consciência que devemos tomar. Frente a um processo de natureza ambiental, o juiz tem que dirigilo e presidi-lo com os olhos voltados para o princípio da oficialidade ecológica. Isto é, diante de uma lide em que o interesse particular entra em conflito com o interesse público ambiental, o juiz tem o dever constitucional de decidir oficialmente em favor do meio ambiente, porque é uma determinação expressa da Constituição. O juiz, logicamente, terá que aplicar outros princípios correlatos, tais como o da razoabilidade e o da proporcionalidade. Chegamos em um campo em que se dá aquele fenômeno tão discutido na doutrina e na jurisprudência, da aparente colidência de direitos fundamentais. Imagine que a Constituição colocou a propriedade no artigo 5º, caput, como um direito fundamental, mas escreveu logo em seguida que a propriedade deve ter uma função social. Por isso o juiz, ao decidir uma lide ambiental, tem que buscar a defesa do meio ambiente e preservar também o


direito de propriedade. Vale dizer que, buscando a aplicação do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, é que se faz a verdadeira justiça ambiental. JC – Em sua opinião, que tipo de juiz deve ocupar essas varas especializadas? SP – Sob o ponto de vista científico, o Direito Ambiental é considerado novo, assim como o Direito do Consumidor. Aliás, ambos se harmonizam perfeitamente. O nosso Código de Defesa do Consumidor, regulado pela Lei 8.078 de 1990, dá eficácia a uma garantia fundamental no sentido de que todo cidadão tem o direito fundamental à proteção estatal na forma da lei, como consumidor. E temos uma lei excelente, em que é definido com clareza o que é o interesse homogêneo, coletivo, de estrito senso ou difuso. Os interesses ambientais são difusos. O Direito Ambiental visa à tutela de interesses que rompem as barreiras do tempo, portanto é um interesse transtemporal, intertemporal ou intergeracional, como se diz na jurisprudência já firmada pelo Supremo Tribunal Federal, no extraordinário precedente da relatoria do Ministro Celso de Mello. Portanto, lidar com Direito Ambiental exige um novo perfil do juiz. Exige um juiz que rompa as algemas de Montesquieu, que não seja formalista, que preste a tutela jurisdicional não só quando provocado pela parte, que não se apegue àquelas técnicas do processo tradicional. Em matéria ambiental, não vale o princípio da congruência. Por isso que tramitam no Congresso Nacional alguns projetos de processo coletivo estabelecendo uma nova técnica de tutela coletiva. Para isto também se faz necessário que as Escolas da Magistratura, que têm um papel relevante na formação do juiz, preparemnos para o exercício da jurisdição ambiental, a fim de que possamos definir qual juiz tem o perfil ideal para exercer a jurisdição ambiental. Se colocarmos em uma vara ambiental um juiz formalista e medroso, nada se resolverá quanto à defesa do meio ambiente. Portanto, o juiz tem que ter esse compromisso com a Justiça acima de tudo, tem que ter ética e essa visão sistêmica do Direito Ambiental, assim como tem que conhecer as técnicas do processo coletivo. Mas, sobretudo, ele tem que ter coragem para enfrentar os agressores do meio ambiente, que são muitos. Temos alguns juízes com esse perfil e o Tribunal tem condições de identificálos e nomeá-los para estas varas. JC – O juiz, então, precisa ter conhecimentos outros além do Direito Ambiental? SP – A bagagem cultural nunca atrapalha, mas é preciso reunir outros predicados, como já expostos. Diria que iria ajudar bastante a formação do juiz para o exercício da jurisdição ambiental, sob o ponto de vista da técnica processual. O processo é uma garantia fundamental, está na Constituição, e o juiz brasileiro, de uma forma geral, aprendeu na faculdade a lidar com um processo que já não atende aos reclamos dos novos direitos, assim como aos reclamos do Direito do Consumidor, com as chamadas tutelas de urgência e inibitórias.

Observe que toda tutela voltada para proteção do meio ambiente tem que ser precautiva; isto é, tem que dar eficácia ao princípio da precaução, que é alfa no meio ambiente. Este é o princípio 15, escrito com todas as letras na Eco 92. Então, todos os poderes constituídos têm a obrigação de dar cumprimento ao princípio da precaução. Um dos mais recentes documentos em matéria de meio ambiente fora editado em 2005, que é a carta ambiental da França, na qual o princípio da precaução foi estabelecido com todas as letras. A Constituição do Brasil também, de alguma forma, desenha o princípio da precaução quando impõe o estudo prévio de impacto ambiental para que o Poder Público possa licenciar qualquer atividade potencialmente agressora do meio ambiente. O juiz tem que ter presente esses princípios no exercício da jurisdição ambiental. Então, ele tem que ter cultura para poder torná-la efetiva no exercício da jurisdição ambiental. Tive alguns casos que relatei como integrante, por oito anos, da 3ª Seção do TRF-1, que é o órgão competente para julgar todas as ações ambientais, e, dentro desse acervo imenso de processos que transita nos nossos gabinetes — pois cada desembargador tem, em média, dez mil processos —, procurei racionalizar esses feitos aplicando o princípio da máxima priorização no julgamento das ações ambientais e lá descobri, no final de uma prateleira, um processo fino que, eu diria, estava esquecido, já que fora ajuizado antes de eu ingressar no Tribunal, lá no Estado do Pará. Fora ajuizado por uma empresa pública federal que pretendia reorganizar o comércio de camelôs na cidade de Belém. Esse processo estava em grau de recurso no Tribunal, com uma apelação inteligente, pois o procurador da empresa federal pedia uma liminar — na época não se falava em antecipação de tutela de natureza ambiental —, e aquele pedido de antecipação de tutela liminarmente formulado perante o juízo federal de primeira instância não havia sido apreciado. O juiz indeferiu a petição inicial, equivocadamente, por entender que uma empresa pública federal não poderia ajuizar uma ação coletiva. Veja que a ação fora ajuizada em 2001, e a Lei 8.078, que regula o Código de Defesa do Consumidor, que dá ampla legitimação a essas entidades, inclusive à empresa pública, para promover ação civil pública, já estava em vigor. Portanto, foi um equívoco do juiz. Ao perceber esse processo nessa fase, sete anos após o seu ajuizamento, pude avaliar que a questão ambiental ainda era emergente e logo deferi a antecipação de tutela para que fosse cumprida — o que ocorreu. O réu era o Município de Belém e o senhor Prefeito Municipal não recorreu da decisão, ao contrário, enviou-me um ofício pedindo auxílio para dar cumprimento à nossa decisão e eu lhe dei a força federal necessária para reorganizar aquele comércio, liberando a cidade de uma poluição evidente ao longo daquela avenida belíssima, que é a Avenida Presidente Vargas. Portanto, vejam é preciso que o juiz também tenha sensibilidade e procure estar sempre se atualizando em matéria ambiental, não só sob o ponto de vista do Direito Ambiental substantivo, mas de acordo com as novas técnicas do processo coletivo. 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 19


Em Brasília, há sérios problemas ambientais, quer da competência da Justiça do Distrito Federal, que já instalou a sua vara ambiental, quer da competência da Justiça Federal. JC – A especialização de câmaras, como no Tribunal de Justiça de São Paulo, é importante para o julgamento dessas causas? SP – A experiência de São Paulo também é muito válida. No Tribunal de Justiça paulista, temos uma câmara especializada em Direito Ambiental, composta por doutos magistrados daquele Tribunal. Portanto, é uma experiência ainda, diria, inovadora e necessária, mas que precisa ser ampliada. Essa demanda em ações de natureza ambiental poderá aumentar sensivelmente com a formação da consciência ecológica, que a cada dia cresce neste País. Nesse sentido, a mídia tem um papel altamente relevante. Temos uma lei federal que traça a política nacional da educação ambiental e, dando cumprimento ao preceito constitucional, impõe a todos, com base no princípio da participação democrática, o dever de defender o meio ambiente, especialmente o Poder Público. Portanto, quer a Constituição Federal assim determine, quer a legislação ambiental infraconstitucional também assim determine, isso nos leva a uma conclusão no sentido de que essa consciência ecológica a cada dia cresce e, portanto, entendemos que o Poder Público, no que tange à sua atuação, a cada dia também aumenta o ajuizamento de ações ambientais, e vai se estruturando melhor para exercer seu poder de polícia ambiental que resulta do texto magno e da legislação ambiental. Especialmente os dois institutos: o Ibama, que é o órgão executor da política nacional do meio ambiente, de acordo com a Lei 6.938, de 1981, que regula essa política nacional do meio ambiente, e o Instituto Chico Mendes. Portanto, acredito que a incidência de feitos ambientais vai aumentar, e isso na mesma proporção das agressões ambientais que se praticam aqui no Brasil, especialmente na região amazônica. Ali me parece que é o ponto mais sensível desses danos ambientais. Toda a região amazônica está sob a nossa jurisdição, o que nos leva à consciência da nossa responsabilidade perante esta jurisdição ambiental que se pretende implantar interiorizando no norte do País e em todos os Estados por nós jurisdicionados. 20 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

JC – Brasília tem uma vara especializada em meio ambiente. Que resultados vem apresentando? SP – Em Brasília, há sérios problemas ambientais, quer da competência da Justiça do Distrito Federal, que já instalou a sua vara ambiental, quer da competência da Justiça Federal. No exemplo que citei, do Município de Belém, observe que ali tínhamos uma questão de Direito Urbano Ambiental e de zoneamento ambiental, mas da competência federal, em que o Município é que tinha a competência primária e originária para exercer este ordenamento urbano. E, se não exerceu, uma empresa pública federal, que presta serviços públicos à população de Belém e a todos aqueles que por ali transitam, teve que enfrentar uma questão ambiental, que é de interesse difuso. Aí entra a segurança jurídica e até a segurança pública, porque era a Empresa de Correios e Telégrafos, que é uma empresa pública federal, que estava sendo afetada por uma questão local, mas essa é uma causa ambiental a ser decidida por um juiz federal, e assim foi decidida. No Distrito Federal, temos situações dessa natureza e que também interferem na competência federal quando tratam, por exemplo, da proteção de uma unidade de conservação. Temos unidades de conservação da natureza de proteção integral, no cerrado e no planalto central, onde o Ibama, que é o órgão fiscalizador da política nacional do meio ambiente por força de lei, tem o dever de exercer poder de polícia. A Constituição de 1988 já superou aquela interpretação equivocada do artigo 10 da Lei 6.938 de 81, que é a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que colocava o Ibama em uma atividade supletiva, mas a Constituição estabeleceu uma competência comum e concorrente e determinou a aplicação do princípio da cooperação entre as unidades federativas em defesa do meio ambiente. Portanto, temos que fazer a leitura da competência para o licenciamento ambiental nos termos da Constituição em vigor. A Carta é claríssima e não poderia ser diferente diante do princípio da proibição do retrocesso ecológico, que obriga a cada cidadão individual e coletivamente. A Constituição diz: “impondo-se ao Poder Público e a toda coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações”. Observe que nenhum ramo do Direito, cultivado até as gerações de hoje, trouxe uma dimensão tamanha para a tutela de interesses que rompem com as barreiras do tempo. O Direito Ambiental tutela interesses de pessoas que ainda não nasceram, que ainda irão nascer. Um autor alemão, Alexandre Kiss, cita o exemplo do Tribunal filipino que acolheu o pleito de um grupo de crianças que entraram com ação coletiva para preservar os interesses de crianças que ainda iriam nascer, no sentido de manter uma unidade de conservação da natureza. Então, veja como é magnífico o Direito Ambiental, a dimensão infinita que tem, a grandeza da tutela jurisdicional do meio ambiente dentro dessa dimensão que rompe o tempo e que garante os interesses das presentes e futuras gerações.


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O ÚLTIMO PERSEGUIDO

Luís Roberto Barroso

Foto: Arquivo Pessoal

Professor de Direito Constitucional Advogado

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O

pedido de extradição de Cesare Battisti tornou o Brasil cenário tardio do último capítulo da guerra fria mundial e da guerra civil italiana, conhecida na própria Itália como “anos de chumbo”. Como na guerra fria, a propaganda é vista como a alma do negócio. Como em qualquer guerra, e nos anos de chumbo não foi diferente, os fatos são as primeiras vítimas. Talvez fosse o caso de se recolherem as faixas, cessarem as palavras de ordem e se prestar atenção a alguns aspectos que a disputa de torcidas tem obscurecido. Só alguns instantes de serenidade, prudência e preocupação com os direitos humanos Há três componentes que têm dificultado a compreensão do que é direito e justo na matéria. O primeiro é o empenho da Itália de Sylvio Berlusconi em levar de volta Battisti, último troféu político disponível depois que países como Inglaterra e Japão se recusaram a extraditar outros ativistas do mesmo período. O segundo é a política interna brasileira, onde muitos interessados gostariam de desacreditar uma decisão do Ministro da Justiça, endossada pelo Presidente da República. O terceiro é um certo pragmatismo utilitário de parte da opinião pública, que acha que, pelas dúvidas, e como não temos nada a ganhar, melhor mandar de volta. São forças muito poderosas, com porta-vozes em toda a parte. Mas, lembrando que estamos falando da vida de uma pessoa, pode ser que ainda haja espaço para uma breve reflexão sobre alguns fatos que não foram notados.


Como em qualquer guerra, e nos anos de chumbo não foi diferente, os fatos são as primeiras vítimas. Talvez fosse o caso de se recolherem as faixas, cessarem as palavras de ordem e se prestar atenção a alguns aspectos que a disputa de torcidas tem obscurecido.

Primeiro fato que passou despercebido: o ProcuradorGeral da República, à época o Dr. Antônio Fernando de Souza, após a concessão de refúgio pelo Ministro da Justiça, deu parecer pela validade dessa decisão e pela extinção do processo de extradição. Ao longo dos quatro anos em que permaneceu no cargo, todos os pareceres que ele proferiu em questões relevantes mereceram grande destaque. Alguém lembra de ter ouvido falar de sua manifestação favorável a Battisti? No dia do julgamento no STF, o novo ProcuradorGeral da República, Dr. Roberto Gurgel, fez um veemente pronunciamento pelo fim do processo de extradição. Alguém viu isso destacado em algum noticiário? O Ministro Joaquim Barbosa — acompanhado pelos Ministros Eros Grau e Carmen Lúcia — proferiu um voto contundente em favor da validade do refúgio e pelo fim do processo de extradição. Afirmou com todas as letras que Cesare Battisti estava preso indevidamente e, pior, queixou-se duramente da “arrogância” da atuação da Itália e da “insistência inapropriada” do embaixador italiano nas gestões junto ao STF. Há muitos anos, os pronunciamentos do Ministro Joaquim Barbosa têm significativa repercussão na imprensa. Mas não dessa vez. A propósito: alguém ficou sabendo que três dos maiores juristas brasileiros — os professores Paulo Bonavides, José Afonso da Silva e Dalmo Dallari — defendem o refúgio concedido a Cesare Battisti? Cesare Battisti foi condenado por quatro homicídios em um segundo(!) julgamento coletivo, com mais de vinte

réus. No primeiro, ao qual compareceu e se defendeu, não foi sequer acusado por qualquer das mortes. Outras pessoas foram condenadas. Após haver deixado a Itália e se refugiado na França é que ele foi julgado uma segunda vez, à revelia, sem ter podido comparecer para se defender. Detalhe importante: a única prova relevante contra ele foi a delação premiada de um “arrependido”, que era acusado pelos crimes de homicídio e transferiu a culpa para Battisti. Outros acusados dos crimes “confirmaram”. Não há outras provas nos autos. A propósito: a sentença fala mais de trinta vezes em crime político, voltado para a “subversão” da ordem. A Constituição brasileira proíbe a extradição nessa hipótese. Cesare Battisti desafiou a Itália, por escrito, a realizar um novo julgamento, livre de contaminação política. Sem resposta. Alguém leu alguma dessas notícias em algum lugar? O julgamento da extradição está empatado em 4 a 4 — o Ministro Marco Aurélio pediu vista, mas antecipou sua posição favorável ao refúgio. O empate revela, no mínimo, a existência de dúvida razoável. Por que razão desempatar contra o acusado, que tanto na França como no Brasil já foi reconhecido como perseguido político e leva uma vida pacífica há mais de trinta anos? Não há precedente de corte constitucional ou tribunal supremo relevante que tenha anulado a concessão de um refúgio. Muito menos por voto de desempate. Ativismo judicial contra os direitos humanos não tem a cara do Brasil nem do Supremo Tribunal Federal. 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 23


Democratizar a democracia

Marco Maciel

Senador Membro da Academia Brasileira de Letras

P

ouco mais de dez anos antes de sua morte, o Professor Norberto Bobbio enumerava uma longa lista de “promessas não cumpridas” da democracia. Entre elas destacava a supremacia dos interesses sobre a representação política, a persistência das oligarquias, a limitação do espaço público da democracia, a existência de poderes invisíveis e a falta de educação política dos cidadãos. Parodiando os principais autores que abordam o problema, poderíamos dizer que, muito provavelmente, as democracias são tão mais democráticas quanto mais intensa é a participação política. Em “Os fundamentos da Democracia”, Hans Kelsen afirma que a característica essencial desse regime é a participação no governo. Democracia, diz ele, “não é uma fórmula particular de sociedade ou uma concreta forma de vida, mas sim um tipo específico de procedimento ou de técnica, em que a ordem social é criada e aplicada pelos que estão sujeitos a essa mesma ordem, para assegurar a liberdade política, entendida como autodeterminação”. Os conceitos de Kelsen nos levam, necessariamente, à distinção entre Democracia Representativa e Democracia Participativa. A Teoria da Representação é calcada na premissa de que os que tomam as decisões na Democracia Representativa são os representantes livremente escolhidos pelos eleitores. Mas isso apenas não afiança que essas leis 24 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

sejam justas e equitativas e expressem o interesse comum. Justiça, equidade e interesse comum são predicados cuja presença se dá na exata proporção em que o processo adotado é o da Democracia Participativa. Considerado sob esse aspecto, o fundamento ético da representação política e seu papel insubstituível consiste na necessidade de enfrentar e superar as novas demandas sociais. Em outras palavras, o desafio reside em perseguir sistemas melhores e mais eficientes, capazes de responder de forma eficaz às demandas da sociedade. Quando isso não ocorre, o resultado é o surgimento de crises que se sucedem sem que, muitas vezes, saibamos qual a sua causa. E, como dizia Ortega y Gasset na crise dos anos 30 em seu país, quando “não sabemos o que se passa conosco, isso é precisamente o que se passa: não sabemos o que se passa conosco”. As relações entre democracia e participação política guardam intensa relação com a distinção formulada por Georges Burdeau entre o que ele chamou de Democracia Governante e Democracia Governada. A primeira é a democracia representativa, em que os cidadãos não decidem as questões de seu interesse, mas escolhem os que devem decidir por eles. E a Democracia Governada é aquela em que a representação política se dobra à vontade popular, tornando-a, como ele definiu, “demo dirigida”. O que faz a diferença entre ambos os conceitos é que em um o eleitor escolhe os que decidem e no


Foto: Roosewelt Pinheiro/ABr

outro o eleitor decide e não escolhe. O que Burdeau chama de democracia governante, os demais especialistas chamam de democracia plebiscitária. Com toda razão, Stuart Mill, na crítica à obra de Tocqueville, argumenta que de nada servem o sufrágio universal e a participação no governo nacional se o indivíduo não foi preparado para essa participação a um nível local, já que é nesse nível que se aprende a governar. Em outras palavras, para que os indivíduos em um grande Estado sejam capazes de participar efetivamente do governo da “grande sociedade”, as qualificações necessárias subjacentes a essa participação devem ser fomentadas e desenvolvidas no plano local. Essa advertência serve, em especial, para um país como o Brasil, em que as sucessivas experiências de reformas políticas jamais se consumam, por não serem as inovações testadas nos municípios e só depois estendidas às demais esferas do poder. Só a democracia garante a liberdade, busca a igualdade e tem como pressuposto a ética como princípio, as eleições como meio e o aperfeiçoamento da sociedade como fim. A democracia que temos e a democracia que queremos dependem sobretudo de nós e de nossa participação. Como participar é outra lição que espero seja útil a todos nós. Só se aprende a participar, participando. É isto que defendo, porque essa é a minha mais profunda convicção.

Santos Salles A

crise atual decorreu de um imperativo psicossocial clássico nas economias de mercado, ou seja, o envolvimento de toda a sociedade, sem intervenção adequada dos governos, na busca de resultados financeiros e no mercado de capitais, em face do crescimento da economia em padrões acima das necessidades de consumo dos que têm capacidade de absorver a produção. Dessa forma, os investimentos foram valorizados também em patamar mais elevado do que seu intrínseco valor estrutural, com o que, em lDireito Tributário um determinado momento, tal evolução, sem sustentabilidade real, necessariamente, terminaria por explodir, gerando mais lDireito Previdenciário uma crise cíclica de capitalismo, em dimensões maiores do que aquelas lDireito que ocorreremdas após 1929. Relações de Consumo O efeito psicológico de uma percepção superficial dos lDireito elementos causadores Civil da crise, indiscutivelmente, acabou por gerar um prolongamento ilusório de um “boom econômico”, lDireito do Trabalho já diagnosticado por especialistas como sem condições de permanência, a partir de 2006/2007. lDireito Penal Empresarial Os mercados não são autorreguláveis, mas as regulações oficiais lDireito quase sempreAdministrativo são insuficientes para corrigir suas distorções, mormente quando as próprias autoridades iludemse quanto à sua capacidade de conduzi-lo. lDireito Internacional Por outro lado, os investidores que o alimentam e que, não lMediação e Arbitragem poucas vezes, também se iludem com a fortaleza estrutural do progresso e do desenvolvimento, terminam sendo, lPetróleo, Gás momento em simultaneamente, causa e Energia efeito geradoredaquele que a constatação da impossibilidade de sua permanência em lDireito das Telecomunicações níveis elevados indefinidamente torna-se evidente. Em outras palavras, há um ponto de equilíbrio, que seria o limite crítico entre uma realidade controlável, propiciadora da estabilidade dos mercados, e a atuação dos agentes econômicos e autoridades tanto para perceber, quanto para promover uma intervenção corretiva, sempre que esse limite crítico, precário por natureza, é ultrapassado. É que, de outra forma, a atuação dos agentes econômicos passa a ser aleatória e desordenada, na busca desesperada de salvar o que lhes parece em risco de se perder, terminando, a ação das autoridades com poder regulatório, por ser superada pela atuação de investidores e consumidores. São estes, de rigor, aqueles que determinam os humores da realidade econômica, nas crises e nos tempos de bonança. Assim, há um ponto de equilíbrio permanente, na economia de mercado, sempre que os investidores, os agentes produtivos (agricultura, indústria, comércio e serviços) e os agentes públicos atuam na perspectiva de um desenvolvimento projetado, detendo pleno conhecimento dos fatores sociais, políticos, econômicos, de consumo e emprego, e sendo capazes de mantê-los constantes mediante controle induzido, por meio de políticas creditícias e fiscais capazes de estimular desestimular setores queandar possam Av. ou Paulista, 1765 -13° provocar os desequilíbrios definidos como indesejáveis pelos TEL: +55 (11) 3266-6611 - São Paulo agentes econômicos e públicos em conjunto. Nesse contexto de adequadaRio política mercado,- Brasília a própria conjunção de de de Janeiro - Campinas agentes públicos e privados conformará o nível de gastos Belo Horizonte públicos e despesas burocráticas, sempre que estes possam

advogados associados

www.santossalles.com.br 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 25


PERMISSÃO E CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO Humberto Gomes de Barros

Advogado e Ministro aposentado do STJ

Palestra proferida no V Seminário – Questões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo, realizado pela Emerj

O meu entendimento é que enquanto não se houver exaurido aquele prazo de 15 anos das prorrogações, desde que ele tenha sido exercido, ele precisa ser respeitado, não em virtude somente do direito adquirido mas fundamentalmente porque esse é o espírito da última reforma sofrida pela Lei 8.987/95, a partir dos dispositivos finais da Lei 11.445/07.

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E

stou aqui para falar sobre um tema que é, na realidade, um comentário à lei que disciplina as permissões e as concessões de serviço público. Queria lembrar a todos, principalmente, o valor que me parece fundamental para que a gente examine qualquer direito. Esse valor é a segurança, que certamente é o objetivo maior de todo o reino animal. Qualquer animal, todo animal, tem preocupação com a sua segurança. Desde a caverna o homem sempre procurou abrigo em busca da segurança. A ânsia por segurança terminou introduzindo em nós uma qualidade que hoje está inserida de tal forma em nossa mentalidade que a falta dela é talvez o grande motivo, o maior dos sofrimentos que o homem pode enfrentar, que é a solidão. O gregarismo é resultado certamente da busca de segurança. A busca de segurança levou o homem a se agrupar na cidade, e a cidade fez com que o homem conseguisse a segurança externa. Na cidade, ele teve condições de enfrentar os seus inimigos, tanto de outras tribos, como também dos próprios animais ferozes. A cidade deu força ao homem, mas na medida em que se conseguiu a segurança externa, surgiu então a insegurança interna, a implantação da lei do mais forte. Com um passo à frente, os homens passaram a eleger líderes que faziam o papel de juízes e de moderadores da violência dos outros. Mas como o poder corrompe e o poder absoluto


Foto: Rosane Naylor

corrompe de forma absoluta, esses líderes em pouco tempo se transformaram em tiranos, e a insegurança interna voltou a reinar. Veio uma outra entidade que é fundamental na nossa evolução e que terá sido uma das grandes invenções do gênero humano, que é a República. Na República, os bens da vida que eram propriedades, que eram geridos de forma absolutamente descontrolada pelos monarcas se transformaram em coisa de todos, a res publica; e para que isso acontecesse, o soberano, o rei, o duque, o arquiduque, o imperador se transformaram em mandatários, e o poder se transfere para o cidadão; quem era súdito se transformou em cidadão. Esse, certamente, é o maior motivo de comemoração quando se fala do meu conterrâneo, o Marechal Deodoro da Fonseca. Não pessoalmente, mas quando se fala na Proclamação da República, a grande modificação que tivemos é que deixamos de ser súditos de um rei que era bom, de um imperador que era sábio, mas nós éramos súditos deles e trouxemos então um presidente, um governador mandatário, que se tornou mandatário. O Estado de Direito republicano me parece que é o pai das grandes invenções. Ele tornou possível o progresso da humanidade e se baseia fundamentalmente em alguns princípios que são essenciais: uma Constituição, uma lei que deveria ser enxuta para ser perpétua, para ser perene e imutável; o princípio da reserva legal, segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei, lei que necessariamente há de coincidir, há de se submeter aos princípios, aos dispositivos da Constituição; e, o outro dispositivo que me parece extremamente importante para quem é magistrado, principalmente, é o princípio da inacumulabilidade de funções. A entidade Estado acumulou três funções: a legislativa, que é aquela que produz as normas, que devem ser observadas pelo cidadão; a administrativa, que é a que aplica as leis; e a jurisdicional, que sempre imaginei que devesse ser assim: o juiz em primeiro lugar é uma função inerte, só atua quando provocado; em segundo lugar, o juiz deve julgar segundo a lei. E aí, observo algo que tem me preocupado muito, que é a tendência atual de julgar segundo princípios. Há uma frase que me parece que foi lançada com um propósito e ultrapassou e muito a alçada intelectual de quem a lançou, o intuito de quem a lançou. É uma frase que diz: “é mais grave ofender com princípio do que ofender com a lei”. Parece-me que não podemos dar a este preceito um alcance maior do que ele deve ter. Na verdade, os princípios devem ser apreendidos pelo legislador que os transforma em lei e que deve reger, segundo aquele princípio que falei, o da reserva legal, a conduta dos cidadãos. O juiz deve se conter à lei. Os princípios somente na omissão da lei; é o que diz a Lei de Introdução ao Código Civil, é o que deve ser levado fundamentalmente em consideração. A preocupação que tenho com isso é que quando se quebra essa regra da inacumulabilidade de poderes, instaura-se uma anomalia dentro da República, que é a Ditadura. A Ditadura não é nada mais nada menos do que um poder acumular mais de uma função. O juiz deve julgar, assim como o legislador deve legislar e o administrador administrar. É assim que deve ser e

é assim que o Estado de Direito republicano deve funcionar; e só funciona bem se assim for. Assim funcionando, e eu digo que a grande invenção da humanidade foi a República, trouxemos para nós, para a humanidade, um atributo que põe em harmonia o próprio universo. Aquelas leis que foram detectadas por Newton, por Einstein e por outros sábios. Essas leis é que põem em equilíbrio os astros, porque, nós sabemos, utilizando-as podemos dar um tiro para mandar uma nave ao planeta Marte, dar um tiro numa situação normalmente oposta àquela em que está o planeta, mas sabemos que naquele momento em que o projétil que lançamos da Terra se aproximar do planeta Marte, ele estará em determinada posição. E assim é na sociedade organizada. O cidadão, o indivíduo, precisa saber que determinada atitude dele produzirá determinada consequência. Quem mata sabe que cometeu um crime e que, por conta disso, deverá sofrer uma sanção que pode ser a perda da liberdade e outras mais. Então, digo que nós juristas, em última instância, estamos para a sociedade assim como o físico está para a astronomia. Esta física social é que traz para o homem aquele valor que ele sempre perseguiu: a segurança. A segurança jurídica é realmente a individual, e essa segurança só se torna viável, só se realiza quando passamos a exigir a estrita observância ao dispositivo legal. Quando se foge disso, quando a gente pensa 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 27


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Foto: Antonio Cruz/ABr

Foto: Rosane Naylor

em fugir para julgar segundo princípios abstratos, o que já vi alguns colegas fazerem quando judicavam. Hoje há juízes que começam a tirar princípios da algibeira, da lapela, e com esses princípios eles conduzem o cidadão à absoluta perplexidade. Isto é uma forma de Ditadura; e eu acho a pior das ditaduras, que é a ditadura judicial. Nós precisamos, como juízes, ter extremo cuidado com isso. A tal juizite é algo extremamente prejudicial, e principalmente à própria segurança do Poder Judiciário. Vamos julgar conforme as leis, de acordo com as leis. É verdade que o juiz não é um mero leitor da lei. Eu diria que o juiz é, na verdade, o piloto da lei, ele conduz, interpreta e a aplica de acordo com os fins sociais para os quais ela foi concebida. Acho que essa é a coisa mais nobre da função jurisdicional. A partir desta estrutura do Estado Republicano, o Estado percebeu que existem, já na seara administrativa, serviços que atendem de forma coletiva a cada um dos indivíduos, e esses serviços foram chamados de serviços públicos. Não há uma relação fechada dos serviços públicos; eles vão surgindo. Há cento e poucos anos não se cogitava a existência do serviço público de telefonia. Assim como há menos de 50 anos não se pensava no serviço público da informática, da internet. E a

relação do serviço público vai crescendo, vai surgindo à medida que vamos avançando na tecnologia. Daqui a pouco teremos serviço público de viagens à Lua ou a Marte. É bem possível que os nossos netos já consigam até cogitar da regulamentação desse tipo de serviço público. Mas o Estado percebeu que os serviços públicos não devem ser ministrados estritamente por ele; para fugir ao gigantismo da estrutura, resolveu delegar a execução desses serviços a empresas especializadas, surgiram então as concessões; em cujo gênero cabe um outro, que é a permissão. Eu me lembro que era um terror na área dos concursos, isso antes do Decreto-lei 200, na prova de Direito Administrativo, uma questão para definir o que é permissão, o que é concessão e o que é autorização. A definição era absolutamente arbitrária e deixava os pobres dos concorrentes com uma insegurança brutal. Mas, na verdade, parece-me, e sempre pensei isso, que a diferença entre concessão e permissão é que a permissão é um gênero de concessão em que a autorização para executar o serviço público é precária, em suma, não obedece a prazos. No meu ponto de vista, essa é a definição fundamental em relação a isso. Em se tratando de transportes rodoviários, o Brasil começou sem regulamentação, não havia sequer permissões.


Peguei um tempo em que lá em Alagoas, antes até dos ônibus começarem a circular pelo interior, as estradas eram precárias e tínhamos lá o boleia larga. Era um caminhão que eles ampliavam com madeira a cabine e o motorista levava 3 ou 4 pessoas de cada lado. Então, quem não viajava na carroceria viajava na boleia larga. Os colombianos ainda usam muito esse sistema. Por isso, o serviço de transporte rodoviário no Brasil começou tocado por pioneiros. Eram pessoas, motoristas que conseguiam comprar um caminhão, colocavam nele algumas tábuas e geraram aquele velho e tão poético, poético para nós que estamos longe, mas devia ser extremamente duro viajar de Alagoas para cá num pau de arara. Do pau de arara se gerou o serviço de ônibus, e fez com que o Brasil tivesse um dos serviços de ônibus que a gente custa até a acreditar. São ônibus de melhor qualidade, mais seguros do que na grande maioria até dos países desenvolvidos. É uma coisa que inclusive deve gerar orgulho para nós. É o trabalho proveniente desses pioneiros. E um desses pioneiros eu gostaria até de destacar aqui, porque foi com quem tive mais proximidade, de quem fui advogado, e é um dos meus clientes na minha primeira fase de advocacia, que se chama Nélio Raimundo de Almeida. Esse homem começou com um pau de arara, começou ele dirigindo, dizia que era uma coisa terrível, dirigia quase que dormindo, mas trazendo gente para cá, e hoje é um empresário de porte médio e com segurança, com perseverança e, principalmente, com algo que é até difícil de a gente conceber: um homem rico que tinha seus princípios interessantes. Ele se hospedava em Brasília, num hotel, na cidade satélite de Taguatinga, porque achava que não podia gastar; e uma vez eu disse: mas, Nélio, você vive viajando de um lado para outro, por que você não compra um avião? Não, doutor. Se eu comprar um avião, vou fazer como eu fazia antes. Eu precisando ir para qualquer lugar, tendo o avião, vou fazer o piloto viajar dormindo, vou fazer o avião viajar sem ter feito revisões, e por isso já perdi muita gente. É um homem dessa sabedoria. A sabedoria gerada no trabalho, gerada na experiência. Entretanto esse pioneirismo começa a ultrapassar o limite admissível para nós. O Estado, então, se preocupa em regulamentar, em estruturar de forma definitiva o serviço rodoviário no Brasil. E, por isso, destaco aqui o Decreto nº 952 de 1993, que estabelecia para essas permissões um prazo de sobrevida de 15 anos, prorrogável por outros 15. O pioneiro se transformou em permissionário, e o que era permissão se transformou por esse decreto, no meu ponto de vista, em concessão. Passou a ser a execução de serviço público com prazo determinado e sem o vício da precariedade. Veio depois o Decreto 2.521 de 98, que acabou com esse direito à prorrogação. Simplesmente disse que não havia mais prorrogação. E daí surge a questão fundamental aqui. Esse Decreto 2.521 é corolário, é regulamentador da Lei 8.987/95, que de sua vez não fez referência à extinção dessa prorrogação. E, por último, ela veio a ser modificada pela Lei 11.445/2007. Essa lei, em suma, diz que as concessões precárias e as que tiverem o prazo vencido valerão por tempo necessário à

realização de levantamentos e avaliações. Na verdade, a lei é de uma imprecisão muito grande, mas o que de fato ela faz é condicionar a prorrogação a um “desde que”, e o “desde que” diz que o levantamento seja o mais amplo possível, que o acordo entre Estado e concessionário para indenização de eventuais créditos e que haja uma publicação de ato formal, e por último o artigo 4º diz que se não houver aquele acordo, o cálculo será feito com base em critérios previstos até o pagamento de indenizações. O que essa lei fez, em suma, foi declarar a possibilidade de uma desapropriação; e com muito cuidado, embora com muita imprecisão, o legislador declarou que essa desapropriação do direito à execução do serviço público só se consumará — isto está no parágrafo 4º, a meu sentir, e no parágrafo 5º — com o pagamento dessa indenização que precisa ser calculada a partir daqueles levantamentos. Por isso, o que eu percebo é que na verdade, apesar de, aparentemente, o administrador, o Ministério dos Transportes, haver declarado extintas essas permissões e essas concessões, elas, na verdade, nos termos da lei, permanecem; e bem por isso eu, nos estertores da minha jurisdição, tive a oportunidade, e não me arrependo, faria novamente, de conceder uma decisão liminar em um processo de mandado de segurança para afastar esse dispositivo do legislador, esse ato administrativo que declarava extintas as concessões de transportes rodoviários para que se fizessem imediatamente licitações para a outorga de nova concessão. O meu entendimento — e eu não sei como o Superior Tribunal de Justiça irá decidir isso, e acho que precisa decidir com urgência — é que enquanto não se houver exaurido aquele prazo de 15 anos das prorrogações, desde que ele tenha sido exercido, ele precisa ser respeitado, não em virtude somente do direito adquirido mas fundamentalmente porque esse é o espírito da última reforma sofrida pela Lei 8.987/95, a partir dos dispositivos finais da Lei 11.445/07. Penso, e estou seguro que assim é, que isto não é uma simples benesse àqueles pioneiros, atuais empresários de serviços públicos, e, sim, a consequência da segurança jurídica a esses homens crentes de que os seus 15 anos seriam prorrogados. Porque quando se decidiu pela prorrogação, estabeleceram-se alguns requisitos, e quem os cumpriu tem induvidosamente o direito a essa prorrogação. No entanto, tem mais ainda, quem contou com isso, e aí vem a segurança jurídica, fez investimentos para manter durante tanto tempo a fim de continuar esse serviço com uma qualidade aceitável para cumprir até o encargo que assumiram quando passaram a exercer essa licitação, acredito que assim deve ser. Recomendo, a quem quer se aprofundar em relação a isso, a leitura de um parecer extremamente bem elaborado pelo meu ex-colega de Tribunal, o Ministro Evandro Leite Gueiros, que é um primor de segurança e de concisão e traduz com muito mais perfeição o que acabo de relatar. O que me parece que é a boa doutrina, a boa orientação para que nós possamos homenagear a segurança jurídica. Eram essas as observações que eu queria fazer. 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 29


PRESCRIÇÃO DAS AÇÕES INDENIZATÓRIAS CONTRA O PODER PÚBLICO E O CÓDIGO CIVIL DE 2002 Flávio de Araújo Willeman

Procurador do Estado do Rio de Janeiro

D

I - Introdução efinir o conceito de prescrição sempre foi um dos maiores dilemas do operador do Direito, em razão das diversas variantes que o instituto apresenta. Todavia, pode-se dizer que existia quase um consenso na doutrina no sentido de que a prescrição (extintiva) tinha o condão de fulminar o direito de ação pelo decurso do prazo previsto em lei, e, por isso, opunha-se ao instituto da decadência, na medida em que este fulminava não o direito de ação, mas sim o próprio direito material.1 AGNELO AMORIM FILHO2, porém, nos idos de 1961, desenvolveu estudo para estabelecer um critério científico para distinguir efetivamente os institutos da prescrição e da decadência, concluindo que a prescrição não afeta o direito de ação, mas sim a pretensão a que corresponde; de outro lado, a decadência fulmina o direito potestativo. Após a entrada em vigor do atual Código Civil dissiparam-se, de certa maneira, as divergências conceituais sobre o instituto da prescrição, na medida em que o artigo 189 textualmente alinhou-o à noção de pretensão3. Por esta razão, pode-se afirmar que a prescrição extintiva é a perda não do direito de ação, mas sim da pretensão que o titular detém a partir dele, em virtude de sua inércia. Nota-se, com isso, que a prescrição é um instituto intimamente ligado ao Direito Privado, notadamente ao Direito Civil, propondo-se a regular regras de estabilização das relações jurídicas a partir do estabelecimento de prazos para que os 30 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

titulares exerçam a faculdade de exigir suas pretensões. Nada obstante, as noções teóricas do instituto devem ser aplicadas não só às relações jurídicas oriundas do Direito Privado, mas também àquelas que, porventura, recebam o influxo de regras de Direito Público. Neste caso, em razão da taxonomia do Direito Administrativo, deve ser aplicada às relações jurídicas administrativas a essência do instituto da prescrição, cunhada pelo Direito Privado, mas com as vicissitudes do Direito Público, mormente à luz de critérios interpretativos que bem esclareçam a razão e os ideários da edição das normas jurídicas que pretendem e que pretenderam regular a prescrição das ações indenizatórias contra a Fazenda Pública. De posse destas observações sobre o instituto da prescrição, passa-se efetivamente à análise do tema proposto neste ensaio. II- Prescrição das ações indenizatórias contra o Poder Público e o Código Civil de 2002 Até a vigência do atual Código Civil era lugar comum falar-se que as ações indenizatórias a serem ajuizadas em face das pessoas jurídicas de Direito Público prescreviam em cinco anos, ante o disposto no artigo 1º do Dec. nº 20.910/32. Tal vetusto Decreto sempre foi equivocadamente utilizado como a principal norma para regular a prescrição das ações indenizatórias contra o Poder Público. Isto porque a prescrição das pretensões indenizatórias


Foto: Arquivo Pessoal

contra o Poder Público era objeto de regulação em data muito anterior à vigência do Dec. 20.910/32, eis que o revogado Código Civil de 1916, mais especificamente no artigo 178, § 10º, inciso VI, estabelecia, textualmente, que a prescrição das pretensões pessoais (e assim soem ser as indenizatórias) contra a Fazenda Pública ocorria em cinco anos. Quer-se dizer com isto que, desde 1916, já se tinha no ordenamento jurídico brasileiro norma-regra genérica que preceituava ser de cinco anos a prescrição das pretensões indenizatórias contra a Fazenda Pública. Nada obstante o acima exposto, doutrina e jurisprudência, ao se referirem à prescrição das ações indenizatórias contra a Fazenda Pública, quase sempre se reportavam aos ditames do Dec. 20.910/32, olvidando o que dispunha o Código Civil de 1916. A pergunta que sugestiona o título deste estudo busca saber se houve alteração do prazo prescricional das ações indenizatórias após a vigência do atual Código Civil. Sustentar-se-á neste trabalho que sim. Isto porque, nada obstante o novo Código Civil não ter trazido grandes inovações quanto ao regime de responsabilização civil das pessoas jurídicas de Direito Público — eis que repete no artigo 43, quase que integralmente, a regra prevista no artigo 37, § 6º da Constituição da República de 1988 —, inovou no estabelecimento do prazo de prescrição para que as pretensões indenizatórias sejam objetos de ações indenizatórias em face do Poder Público.

O artigo 206 do Código Civil de 2002, no § 3º, inciso V, estabelece que prescreve em (3) três anos o prazo para “pretensão de reparação civil”. Digno notar que a referida norma não traz qualquer distinção a respeito das pessoas que devem compor o polo passivo ou que estariam excluídas de sua aplicação, o que certamente permite concluir, prima facie, que as pessoas jurídicas de Direito Público estão aí inseridas. Contra-argumento que poderia ser levantado em oposição à tese acima sustentada é o de que o artigo 1º, do Decreto 20.910/32, e o artigo 1º-C, da Lei Federal nº 9.494/97, não teriam sido derrogados pelo artigo 206, § 3º, do Código Civil de 2002, por se apresentarem como regra normativa específica frente à norma do artigo 206, § 3º, Código Civil de 2002, que se apresenta no cenário jurídico como norma jurídica genérica. Aplicar-se-ia, segundo este argumento, o jargão jurídico de que norma geral não derroga norma especial. Apesar de sedutora, parece ser equivocada a adoção de tal entendimento. Em primeiro lugar porque não é absoluto o método interpretativo segundo o qual norma geral não pode derrogar regra especial. É perfeitamente possível que isto aconteça quando as interpretações dos momentos históricos em que as normas jurídicas foram produzidas autorizarem e até indicarem este resultado interpretativo. Mais: será possível a norma geral derrogar a norma especial quando a sua permanência frustrar o instituto objeto da regulação jurídica (no caso a prescrição) e fomentar a injustiça. 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 31


O artigo 206 do Código Civil de 2002, no § 3º, inciso V, estabelece que prescreve em (3) três anos o prazo para “pretensão de reparação civil”. Digno notar que a referida norma não traz qualquer distinção a respeito das pessoas que devem compor o polo passivo ou que estariam excluídas de sua aplicação, o que certamente permite concluir, prima facie, que as pessoas jurídicas de Direito Público estão aí inseridas.

E, se assim é, mostra-se perfeitamente possível sustentar a revogação do artigo 178, § 10º, VI, do Código Civil de 1916, bem como (parcialmente) os artigos 1º do Decreto nº 20.910/32 e 1º-C da Lei Federal nº 9.494/97, que estabelecem o prazo de 5 (cinco) anos para a prescrição das pretensões pessoais (indenizatórias) em face das pessoas jurídicas de Direito Público. Esclareça-se, porque é importante, que as demais pretensões pessoais contra a Fazenda Pública (ex. anulação de um ato administrativo) continuarão a ser reguladas pela legislação antes mencionada, o que importa concluir que poderão ser intentadas no prazo de até cinco anos contados da ciência da “lesão”. Digno reiterar que a prescrição quinquenal de todas as demandas pessoais — e assim se mostram as indenizatórias —, em face das pessoas jurídicas de Direito Público, já estava prevista no artigo 178, § 10º , VI, do Código Civil de 1916, situação que afasta a especialidade do Dec. 20.910/32 e da Lei Federal nº 9.494/97 (que apenas repetiram uma regra jurídica prevista em lei geral, o Código Civil de 1916), e faz aplicar, tranquilamente, o critério interpretativo para evitar antinomia de normas segundo o qual a norma posterior revoga a norma anterior, de igual hierarquia, quando dispuser em sentido contrário. Para que o Decreto nº 20.910/32 e a Lei Federal nº 9.494/97, especificamente no que diz respeito ao estabelecimento do prazo prescricional das pretensões indenizatórias contra a Fazenda Pública, sejam considerados normas especiais deviam sê-las, igualmente, tendo como parâmetro a norma jurídica genérica (Código Civil de 1916) que vigia quando de suas edições. Ora, se assim for analisada a questão jurídica, ver-se-á que o Decreto nº 20.910/32 e a Lei Federal nº 9.494/97 jamais pretenderam ser normas especiais frente à norma geral que vigia quando foram editadas, uma vez que estabeleciam exatamente o mesmo prazo 32 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

de cinco anos para prescrição das ações indenizatórias contra o Poder Público, já contida no citado artigo 178, § 10º, inciso VI do Código Civil de 1916. Por isso é que se sustenta que o artigo 206, § 3º, do Código Civil de 2002 dispôs em sentido contrário à redação contida no artigo 178, § 10º, VI, do Código Civil de 1916, reduzindo de 5 (cinco) para 3 (três) anos o prazo de prescrição das pretensões indenizatórias em face da Fazenda Pública, permitindo a aplicação do brocardo jurídico que determina a revogação de uma norma geral por outra norma geral de igual hierarquia. Por outro lado, caso não fosse o argumento acima desenvolvido suficiente para fazer a regra inserta no artigo 206, § 3º, do Código Civil de 2002 ser aplicável às demandas indenizatórias contra a Fazenda Pública, cabe enaltecer a necessidade de se proceder à interpretação histórica dos comandos legislativos envolvidos, mais especificamente aqueles previstos nos artigos 177, 178, § 10º, VI do CC de 1916 e 1º do Dec. nº 20.910/32 e artigo 1º da Lei Federal nº 9.494/97. Quando os dispositivos legais acima mencionados foram promulgados apresentavam a nítida missão de reafirmar a prescrição quinquenal das pretensões indenizatórias em face do Poder Público, bem assim de dispensar tratamento diferenciado para a Fazenda Pública em relação à regra prevista no artigo 177 do Código Civil de 1916, que estabelecia o prazo de 20 (anos) para o ajuizamento das demandas cujo objeto fosse a reparação civil. O objetivo da Lei Federal nº 9.494/97 e do Decreto nº 20.910/32 era, nitidamente, beneficiar a Fazenda Pública, não podendo, por isso, permanecer em vigor diante de nova norma geral mais benéfica, trazida ao ordenamento jurídico pelo artigo 206, § 3º, do Código Civil de 2002. Ganhou fôlego o argumento acima utilizado com o fato de o Código Civil de 2002 ter confirmado a máxima legislativa


de diminuição dos prazos prescricionais para todas as pretensões, sobretudo as indenizatórias. Por sua relevância e importância, traz-se à colação último argumento fundamental à tese da NÃO subsistência da prescrição quinquenal das pretensões indenizatórias contra a Fazenda Pública, notadamente o fato de o próprio Decreto nº 20.910/32 (que poderia ser invocado como regra especial frente ao Código Civil, conforme acima se mencionou), no artigo 10º,4 estabelecer que, em caso de conflito de normas relativas à prescrição, deverá prevalecer aquela que estabelecer o menor prazo prescricional em favor da Fazenda Pública. Importante registrar que o Superior Tribunal de Justiça tem firmado o seu entendimento nos exatos termos aqui sustentados, conforme é possível concluir do aresto abaixo: RESPONSABILIDADE. ESTADO. PRESCRIÇÃO. Trata-se, na origem, de ação indenizatória lastreada na responsabilidade civil proposta contra o Estado por viúvo e filhos de vítima fatal de disparo supostamente efetuado por policial militar durante incursão em determinada área urbana. Assim, a questão cinge-se em saber se, após o advento do CC/2002, o prazo prescricional para o ajuizamento de ações indenizatórias contra a Fazenda Pública foi reduzido para três anos, como defende o recorrente com suporte no art. 206, § 3º, V, do mencionado código, ou permanece em cinco anos, conforme a norma do art. 1º do Dec. n. 20.910/1932. Isso posto, a Turma deu provimento ao recurso para o argumento de que o legislador estatuiu a prescrição de cinco anos em benefício do Fisco e, com o manifesto objetivo de favorecer ainda mais os entes públicos, estipulou que, no caso de eventual existência de prazo prescricional menor a incidir em situações específicas, o prazo quinquenal seria afastado nesse particular (art. 10º do Dec. n. 20.910/1932). O prazo prescricional de três anos relativo à pretensão de reparação civil (art. 206, § 3º, V, do CC/2002) prevalece sobre o quinquênio previsto no art. 1º do referido decreto. (REsp 1.137.354-RJ, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 8/9/2009)5. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por igual, também tem se posicionado no mesmo sentido do que se sustenta neste trabalho6. Confira-se: “RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE FERROVIÁRIO. CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA, QUE TERIA ATRAVESSADO A LINHA FÉRREA EM PASSAGEM CLANDESTINA. ROMPI­ MENTO DO NEXO CAUSAL. INAPLICABILIDADE DO CDC AO CASO, EIS QUE A VÍTIMA NÃO SE ENQUADRA NO CONCEITO DE CONSUMIDOR, SEQUER POR EQUIPARAÇÃO. PRESCRIÇÃO. PRAZO PRESCRICIONAL REGIDO PELO ART. 206, § 3º, V, DO CÓDIGO CIVIL. O PRAZO PRESCRICIONAL PREVISTO NO ART. 1-C DA LEI Nº 9494/97 FOI INSTITUÍDO COMO PRERROGATIVA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, QUANDO O PRAZO PRESCRICIONAL COMUM ERA DE VINTE ANOS. ASSIM,

QUIS O LEGISLADOR QUE AS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO E AQUELAS DELEGATÁRIAS DE SERVIÇOS PÚBLICOS SE BENEFICIASSEM COM MENOR PRAZO PRESCRICIONAL. NÃO SE VISLUMBRAM, POR ISSO, RAZÕES PARA SE APLICAR A LEI INVOCADA PELO APELANTE, JÁ AGORA QUANDO O CÓDIGO CIVIL VEIO ESTABELECER MENOR PRAZO PRESCRICIONAL. RECURSO DESPROVIDO”. (Apelação Cível: 2009.001.12295. Apelante: Marco Aurélio de Souza Silva e Outro. Apelados: Supervia Concessionária de Transporte Ferroviário S.A. Vara de Origem: 28ª Vara Cível da Comarca da Capital. Relatora: Desª. Luisa Cristina Bottrel Souza).7 Em razão do acima exposto, conclui-se que, como regra, o prazo prescricional das pretensões indenizatórias contra a Fazenda Pública é de três anos, na medida em que o artigo 206, § 3º, V, do Código Civil de 2002 derrogou parcialmente o prazo prescricional de cinco anos previsto no artigo 178, § 10º, VI do Código Civil de 1916, no artigo 1º do Dec. nº 20.910/32 e no artigo 1º da Lei Federal nº 9.494/978. NOTAS Confira-se, por todos, Silvio Rodrigues. “Direito Civil – Parte Geral”. São Paulo: Saraiva, 2003. vol. 1. p. 324-325. 2 Apresenta o referido autor as seguintes conclusões: “1º) Estão sujeitas à prescrição (indiretamente, isto é, em virtude da prescrição da pretensão a que correspondem): todas as ações condenatórias, e somente elas (arts. 177 e 178 do Cód. Civil); 2º) Estão sujeitas à decadência (indiretamente, isto é, em virtude da decadência do direito potestativo a que correspondem): as ações constitutivas que têm prazo especial de exercício fixado em lei; 3º) São perpétuas (imprescritíveis): a) as ações constitutivas que não têm prazo especial de exercício fixado em lei; e b) todas as ações declaratórias”. Grifos do original. AMORIM FILHO, Agnelo. “Critério Científico para Distinguir a Prescrição da Decadência e para Identificar as Ações Imprescritíveis”. In. “Revista de Direito Processual Civil”, ano II, vol. 3. Rio de Janeiro: Saraiva, Jan. a Jun. de 1961, p. 95-132. 3 Pretensão, segundo a definição do Desembargador Federal André Fontes, “é o poder de exigir alguma prestação, pois em virtude do seu reconhecimento pela ordem jurídica é que se atribui ao sujeito a proteção para fazer atuar o seu direito subjetivo, cabendo ao termo poder a característica de ser conveniente mais amplo e compreensivo, além de ser diretamente utilizável no elemento conceitual. Dizendo-o mais sucintamente, e reportando-nos ainda à noção do legislador germânico, podemos assim definir: pretensão é o poder de exigir um comportamento.” In “A Pretensão como situação jurídica subjetiva”. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 10-11. Grifos do original. 4 “Art. 10º – O disposto nos artigos anteriores não altera as prescrições de menor prazo, constantes, das leis e regulamentos, as quais ficam subordinadas às mesmas regras”. 5 No mesmo sentido: REsp 1066063/RS e REsp 982811/RR 6 Em verdade, temos sustentado a tese posta neste trabalho desde o ano de 2004, quando concluímos o curso de Mestrado na Universidade Candido Mendes, bem assim após a publicação da obra “Responsabilidade Civil das Agências Reguladoras”. Ed. Lúmen Júris, 2005. 7 No mesmo sentido: Apelação cível nº 2007.001.57337 8 No mesmo sentido apresentam-se as doutrinas de José dos Santos Carvalho Filho, In “Manual de Direito Administrativo”. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 451, e de Carlos Roberto Gonçalves, In “Responsabilidade Civil”. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 190 1

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O DIREITO AUTORAL NAS OBRAS TELEVISIVAS Sérgio Zveiter Advogado

É

inegável o fascínio que a televisão desperta nas pessoas. As pesquisas indicam que o brasileiro passa cerca de quatro horas por dia em frente à televisão, que está presente em aproximadamente 90% dos lares brasileiros. A televisão é explorada economicamente em quase todos os países do mundo, em alguns deles pelo próprio Estado e, em outros, mediante concessão, por empresas organizadas para esta finalidade. As redes de televisão são verdadeiras fábricas de programas, de todos os gêneros e formatos, que procuram entreter e informar um exército de telespectadores e teleconsumidores no mundo todo. Podemos afirmar, sem demérito para as demais criações do espírito, que a obra audiovisual, expressa e fixada por qualquer meio, é a que mais se conformou com as novíssimas mídias. As características do direito autoral No âmbito internacional, tem destaque a Convenção de Berna, da qual o Brasil é signatário desde 1922, que foi integrada ao ordenamento jurídico nacional através do Decreto nº 75.699, de 6 de maio de 1975, onde encontram-se assentados os mais importantes princípios referentes à proteção dos direitos dos criadores. Acompanhando os princípios delineados pela Convenção de Berna, foram elaborados outros Tratados e Convenções Multilaterais, devidamente assinados pelos Estados, inclusive pelo Brasil, que procuraram, mediante a sedimentação de tais garantias, proteger seus respectivos patrimônios culturais. Com efeito, a preocupação dos Estados com a proteção da propriedade intelectual resultou na adoção, inclusive na Organização Mundial do Comércio – OMC, de acordos, como 34 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

o denominado TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), ou Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – AADPIC, incorporado ao nosso ordenamento através do Decreto nº 1355, de 30 de Dezembro de 1994, o qual determinou ao País submetido ao referido Acordo a obrigação de respeitar os princípios da proteção aos direitos autorais contidos na Convenção de Berna, cujo descumprimento acarreta, ao País onde ocorreu a violação, uma série de sanções comerciais. A Constituição Federal de 1988, em consonância com os Tratados Internacionais acima mencionados, assegurou, em seu artigo 5º aos autores o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, bem como a fiscalização por parte dos criadores, intérpretes e das respectivas representações sindicais e associativas do aproveitamento econômico das obras criadas ou de que participem. Como consequência do mandamento constitucional, a Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 — Lei do Direito Autoral —, protegeu as obras intelectuais, assegurando a prerrogativa exclusiva dos seus titulares de utilizar, dispor e fruir, com exclusividade, de suas criações. Das obras audiovisuais No que concerne às obras audiovisuais, definiu, a Lei 9.610/98, no seu artigo 5°, que considera-se, para efeitos da lei, obra audiovisual “a que resulta da fixação de imagens com ou sem som, que tenha a finalidade de criar, por meio de sua reprodução, a impressão de movimento, independentemente dos processos de sua captação, do suporte usado inicial ou posteriormente para fixá-lo, bem como dos meios utilizados para sua veiculação”.


Foto: Ana Colla

Destaque-se, a complexidade da obra audiovisual se reflete na definição de sua autoria, conferida pela Lei de Regência ao autor do argumento literário, musical ou lítero-musical e ao diretor, como ordena o artigo 16 da Lei 9.610/98. Assim, para que possa gerir de forma ampla e eficiente a sua obra, diante de todas as partículas que a envolvem, cabe ao produtor audiovisual obter a aquiescência de todos os co-autores da obra, que são, como dito, o autor do roteiro, ou argumento e o diretor. Na hipótese de o roteiro basear-se em obra pré-existente, não caída em domínio público, é necessária, ainda, a autorização do autor dessa obra primígena. Cabe ao Produtor, ainda, a celebração de diversos outros instrumentos, os quais regularão a participação dos artistas, permitirão a inclusão das obras musicais e/ou lítero-musicais que compõem a trilha sonora, além de outros ajustes que garantirão a plena exploração da obra por todos os meios existentes. Com o advento da Lei 9.610/98, produtores audiovisuais, aí incluídos os que realizam filmes cinematográficos e os que realizam produções para a televisão, assumiram a posição de titulares dos direitos patrimoniais sobre o conjunto da obra coletiva, da qual a audiovisual é o mais expressivo exemplo. Como ensina o mestre José de Oliveira Ascensão: As necessidades da indústria cinematográfica, e os grandes investimentos realizados em cada produção, levam a que as leis procurem cada vez mais assegurar ao produtor a plenitude dos direitos de exploração econômica da obra. Podem fazê-lo mediante a outorga ao produtor da categoria de autor. Mas mesmo não o fazendo, procuram de várias maneiras assegurar ao produtor, com autonomia, direitos de utilização.

O direito brasileiro garante aos produtores audiovisuais a gestão patrimonial da obra audiovisual, conforme estabelece o artigo 81 da Lei 9.610/98, segundo o qual a autorização do autor e do intérprete para a produção audiovisual implica, salvo disposição em contrário, consentimento para a sua utilização econômica. Tratando-se da proteção às obras televisivas, vale pontuarmos os direitos conferidos também às empresas de radiodifusão que, por força do artigo 95 da Lei 9.610/98, e sem prejuízo da titularidade das obras intelectuais incluídas na sua programação, podem, com exclusividade: a) autorizar ou proibir a retransmissão, fixação e reprodução de suas emissões e b) a comunicação ao público, pela televisão, em locais de frequência coletiva. O objeto do direito de radiodifusão são as emissões, transmissões e retransmissões “sem fio, inclusive por satélite, de sons e imagens ou da representação desses, para a recepção do público, e a transmissão de sinais codificados, quando os meios de decodificação sejam oferecidos ao público pelo organismo de radiodifusão ou com seu consentimento.” (art. 5°, XIII da Lei 9.610/98). As empresas de radiodifusão são titulares de direitos conexos quando exercem apenas o papel de condutores, na função de veiculadoras e distribuidoras de obras de conteúdo autoral, que são as obras audiovisuais protegidas. Contudo, são titulares também de direitos de autor quando exercem, não só a atividade típica de radiodifusão, mas especificamente a atividade de produtora e organizadora da obra audiovisual. Dos formatos Considerando, como dito acima, que o sucesso de uma emissora de televisão é medido, substancialmente, pelos 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 35


índices de audiência obtidos, é notória a preocupação desta em desenvolver programas capazes de atrair o telespectador, gerando, em consequência, maior valoração de seus espaços comerciais. A despeito do sucesso alcançado com esse tipo de negócio, a comercialização de formatos televisivos ainda causa muita polêmica e insegurança para as partes envolvidas, face às incertezas quanto à eficácia da tutela jurídica dos direitos contratados. Segundo a lapidar definição do Mestre JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO: “A obra é a exteriorização de uma criação do espírito” que se dará por um texto escrito, oralmente, por desenho, por fotografia, pelo cinema, etc. A Lei de Proteção aos Direitos Autorais de nosso País, a Lei 9.610/98, define que: “São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro” (Art. 7°). Ensina o insigne ANTONIO CHAVES em sua obra “Direito de Autor” (Ed. Forense, 1. ed. p. 166) que a obra, para que seja objeto de proteção pelo direito de autor, deve estar revestida de três elementos essenciais: “constituir-se em emanação do espírito criador, ter forma sensível e ser original”. Portanto, além de tratar-se de uma criação do espírito expressa por qualquer meio ou fixada em qualquer suporte, é imprescindível a constatação de sua originalidade para que a obra possa ser objeto de proteção pelo direito de autor. Diante destas considerações, sabendo que o objeto de proteção do direito de autor é a obra, e para que esta seja protegida, é imprescindível que decorra de origem àquela obra, portanto não poderá ser protegida, tanto que esta foi expressamente excluída do rol das obras passíveis de proteção (art. 8° LDA). Os requisitos de originalidade e criatividade exprimemse pela necessidade de a obra não ser uma cópia de outra pré-existente e, ainda, de reunir um mínimo de criatividade; englobar uma série de elementos que, em função da sua organização e disposição, resulte numa criação de espírito advinda do intelecto. Quanto ao requisito de fixação, resulta na necessidade de a obra ser expressa de alguma forma, ou seja, não estar restrita ao intelecto do criador, mas sim externada através de algum suporte tangível ou intangível. Para que o formato se enquadre como obra literária, é fundamental que ele seja fixado por escrito, devendo, necessariamente, existir um roteiro ou argumento com uma detalhada descrição dos elementos sobre os quais o formato se baseia e se operacionaliza. Relativamente ao inciso XIII, é necessário demonstrar que o formato é o resultado de uma seleção organizada de diversos elementos, constituindo, por si só, uma obra intelectual merecedora de proteção. Formato de programa de televisão, no sentido empregado no meio empresarial televisivo, é um conceito muito mais largo, que não abrange só a ideia central do programa, 36 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

mas compreende um extenso conjunto de informações, técnicas, artísticas, econômicas, empresariais (...) o formato de programas televisivos não é apenas a ideia do programa, é a ideia e muito mais. (Trecho da sentença proferida pela 4ª Vara Cível da Comarca de Osasco/SP, Brasil, Proc. nº 2315/01 e 2543/01, 16/6/03, p. 6) Em síntese, formato é um conjunto de diversos elementos, informações e características sobre os quais o programa se baseia e operacionaliza; é a estrutura que descreve e possibilita não só a efetiva realização do programa, como também a sua própria adaptação para televisão. O principal argumento daqueles que advogam pela impossibilidade de conferir proteção ao formato, consiste em afirmar que se trata de um mero sistema ou ideia, sobre o qual se operacionaliza o programa. Tanto o sistema franco-romano quanto o sistema anglo-saxônico consagram a premissa de que ideias, métodos, sistemas e conceitos não são passíveis de proteção, devendo sua disseminação se manter livre, com o que não há a menor divergência, sob pena de privarmos os autores de exercer o direito fundamental de criar, o que resultaria na total obstrução do progresso das artes. No entanto, restou claro acima que o formato somente será passível de proteção quando se tratar de “algo” que vai muito além de um mero sistema ou ideia. Em termos práticos, a tutela jurídica recai sobre a expressão da ideia (desenvolver uma obra a partir de uma ideia) sem que isso configure violação aos direitos daquele que primeiro explorou aquela ideia. Só existirá infração quando se tratar de reprodução, cópia ou plágio de outra forma de expressão anteriormente exteriorizada. No tocante à autoria do formato, caberá à pessoa física que tenha participado da sua criação, que será reconhecida como o titular originário do Direito de Autor, sendo certo que os direitos patrimoniais de autor poderão ser objeto de cessão em favor da empresa que comercializará o produto. Sem a pretensão de enfrentar de forma exaustiva a questão, é imperioso abordar a busca pela proteção dos formatos através das normas pertinentes ao direito concorrencial. A lei brasileira sobre o tema (Lei nº 9.279/96) dispõe que: Art. 195 - Comete crime de concorrência desleal quem: III - emprega meio fraudulento para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem; (...) XI - divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos, informações ou dados confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços, excluídos aqueles que sejam de conhecimento público ou que sejam evidentes para um técnico no assunto, a que teve acesso mediante relação contratual ou empregatícia, mesmo após o término do contrato. Todo ato de concorrência desleal envolve a noção de aproveitamento indevido do esforço, ou de desvio fraudulento da clientela de um concorrente. Existe fraude quando estamos diante de um artifício utilizado para induzir alguém em erro, o que pode ocorrer quando


Foto: stockxpert

determinado agente se apropria indevidamente da criação de um concorrente e a apresenta como própria. Quanto ao inciso XI, trata-se da hipótese em que o infrator teve acesso a informações ou dados confidenciais sobre o formato, situação comum nas negociações que precedem a aquisição da licença do mesmo. Assim sendo, a questão da proteção dos formatos não pode ser solucionada de forma exata, pois cada situação possui especificidades próprias, sendo certo que nos casos em que o formato for dotado de originalidade e criatividade que o diferenciem de todos os seus congêneres no mercado, o aplicador do direito tem instrumentos jurídicos aptos a conferirlhe a proteção legal e, em consequência, reprimir a violação. A previsão legal de limites e exceções ao direito autoral No ordenamento jurídico brasileiro, a exemplo da quase totalidade dos países desenvolvidos, a própria lei interna estabelece “limitações” ao direito autoral, assim como a qualquer outro direito de propriedade. São as chamadas “válvulas de escape”, necessárias para que os diversos princípios de direito, nesse caso, princípios constitucionais, convivam em harmonia; ou, para os que preferirem, é uma relativização de um direito absoluto, como é o da propriedade, em prol do interesse público. Nas exceções previstas no artigo 46 da lei (também chamadas de hipótese de uso honrado), naturezas distintas de interesses são identificadas, tais como: proteção ao deficiente visual (inciso I, item d); informação (incisos II e III); comercial (inciso V); educativo (incisos III e VI) e o estímulo à criação de novas obras (inciso VIII).

Logo a seguir, no artigo 47, que trata da paráfrase e da paródia, claro fica o interesse do legislador em estimular o direito à liberdade e manifestação de pensamento, que, nesse caso, é limitado apenas pela vedação à difamação da obra escolhida. Já no artigo 48, que trata das obras situadas em logradouros públicos, nota-se uma grande restrição ao direito autoral, eis que a norma permite que essas sejam representadas, sem sequer impedir o uso com finalidade lucrativa. Por fim, mas não menos importante, eis que é a maior limitação à propriedade, podemos citar a regra que determina o prazo de proteção da obra e a que estabelece o domínio público, previstas nos artigos 44 e 45 da lei. Tais normas constituem, sem dúvida, a maior restrição ao titular do direito autoral, eis que fazem cessar a possibilidade do mesmo auferir qualquer vantagem financeira com a sua criação, em prol do interesse público. Verifica-se, assim, a eficácia dos mecanismos de exceção previstos na legislação de direito autoral no sentido de equilibrar a tensão estabelecida entre o direito autoral e o interesse coletivo, mediante a relativização do primeiro. As “dificuldades” introduzidas pelo desenvolvimento de novas tecnologias As obras audiovisuais, como todos os bens imateriais, objetos do direito de autor, não reconhecem fronteiras e alcançam todas as novas mídias ofertadas com o desenvolvimento tecnológico. Neste sentido, volumosa tem sido a doutrina publicada sobre as dificuldades trazidas pelo desenvolvimento 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 37


Dr. Sérgio Zveiter, advogado

Mecanismos tecnológicos de proteção Em meio a essa instigante “revolução” de conceitos, a obra audiovisual televisiva enfrenta, mais uma vez, uma importante discussão prática que vem atraindo a atenção de todos, que é a introdução da televisão digital e dos sistemas de gerenciamento de direitos, na sua versão estrangeira, Digital Rights Management ou, simplesmente, DRM. Com a digitalização dos meios de transmissão, a qualidade dos sinais que serão disponibilizados por meio da televisão aberta atingirá um nível jamais antes experimentado pela população, em especial a brasileira. Vale destacar a realidade brasileira, pois em nenhum outro país a transmissão de televisão aberta (broadcast) conta com tamanha variedade e qualidade de programação. Nos demais países, a programação de maior qualidade, ou pelo menos, de maior interesse, como filmes e eventos esportivos, é exibida apenas na chamada televisão paga que, por natureza, já traz consigo características que impedem (ou pelo menos dificultam) a pirataria do sinal transmitido. Assim, essa evolução tecnológica permitirá que cópias perfeitas de obras audiovisuais televisivas exibidas pelos radiodifusores possam alimentar o mercado ilegal, o que pode se dar por diversos meios, inclusive e especialmente pela Internet. Note-se que nos Estados Unidos da América a televisão aberta chega a 85% dos domicílios via cabo e 10% via satélite, o que totaliza uma cobertura de 95%, sendo que todas as caixas

de TV por assinatura, seja via cabo ou satélite, contêm um avançado sistema de DRM. Assim, no Brasil, com o lançamento da televisão digital, os detentores dos direitos autorais sobre as obras audiovisuais internacionais, com os grandes estúdios de Hollywood e as entidades esportivas, como a FIFA, já vêm se negando a vender os direitos sobre seus produtos caso não existam mecanismos de DRM. O método de DRM, proposto para o recém-criado Sistema Brasileiro de Televisão Digital, permitirá ao telespectador realizar uma cópia em alta definição de todos os programas e cópias irrestritas em definição padrão. Seu objetivo é desestimular a atividade ilegal e não reduzir as possibilidades de o telespectador apreciar uma obra audiovisual. Importante salientar que o DRM não altera as características de liberdade e gratuidade do serviço de radiodifusão, tendo em vista que este permanecerá sendo gratuito e livre e que continuará a ser recebido, por qualquer televisor, a qualquer momento a exclusivo critério do telespectador. Por fim, é preciso reconhecer que as obras televisivas cumprem papel fundamental em nossa sociedade, sendo para milhões de pessoas a única forma de acesso a entretenimento, cultura e educação; são ainda responsáveis por milhões de empregos, diretos e indiretos, gerando riquezas para o país. Sua proteção é um dever de todos nós, operadores do direito.

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Foto: Ana Colla

tecnológico à aplicação das normas de direito autoral. Avanços tecnológicos, sem dúvida, levam o Direito a um movimento de acomodação; note-se: o Direito já existe, ele apenas entra em fase de reconhecimento das “novidades” para em seguida abraçar as novas situações criadas, na maior parte das vezes, com a mesma estrutura já existente. No que diz respeito à tecnologia da informação e entretenimento, dúvidas existem sobre a necessidade de nova regulamentação. Certo é que a discussão trazida há alguns anos desafiando a aplicação da nossa lei de direito autoral ao novo mundo virtual não pode prosperar no caso brasileiro, eis que a lei de direito autoral é clara ao determinar que depende de autorização prévia e expressa do titular a utilização da obra por qualquer modalidade (art. 29) e, após elencar o rol das possibilidades de uso das criações, incluiu na lista quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a existir (inciso X). Verifica-se que o legislador se preocupou em estabelecer um mecanismo de “atualização” de suas disposições ao deixar claro que a proteção da obra continua seja qual for a novidade tecnológica que venha a ser inventada. Notadamente quanto à Internet, a legislação autoral brasileira já tem mecanismos de proteção aplicáveis a esta nova plataforma, bastando para tanto que todos os operadores do direito se conscientizem da necessidade de submeter a nova fronteira tecnológica aos ditames da lei. Como vem se repetindo muito em diversos fóruns: a Internet é um território livre, mas não é uma terra sem lei.


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Tribunais de Contas: uma visão! Paulo Planet Buarque

Conselheiro aposentado do TCMSP

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oderá parecer, digamos, no mínimo, um ponto de vista extemporâneo, tardio, em se tratando da opinião de quem, enfim, durante trinta anos exerceu as funções. Mas, a realidade é outra: forma de pensar que sempre foi a mesma, embora nunca tivesse sido possível pelo menos a tentativa da sua concretização. Ante, claro, o fato concreto de, então, ser impossível até mesmo a idealização, pois, enfim, tratava-se de alguém jungido ao ponto de vista coletivo, que não era precisamente o mesmo. Já agora, aposentado há mais de treze anos, amadurecido, inclusive em relação ao cerne jurídico da questão, acredito-me em condições de, favorecido pela concessão do espaço, através de amigo de mais de cinquenta anos, expor a ideia e, quem sabe, torná-la possível ante, igualmente, o entendimento de quantos integrem atualmente os Tribunais de Contas do País, a começar pelo Tribunal de Contas da União. Fui para o Tribunal de Contas do Município de São Paulo, através da indicação do então Governador desse Estado, Roberto Costa de Abreu Sodré, acolhido pelo então Prefeito, que criava o TCM, não menos saudoso, José Vicente de Faria Lima. Isso porque, sendo Deputado há mais de dez anos, e, ocasionalmente, Líder do Governo, na Assembleia Legislativa, problemas familiares graves levaram-me a simplesmente renunciar ao mandato para cuidar de quem, naquele momento, mais precisava de mim, que era a minha esposa. Gesto carinhoso, amigo, jamais esquecido daqueles dois amigos e políticos que marcaram época na administração do Estado e do Município de São Paulo, em que pese, claro, parte dessas administrações terem ocorrido já ao tempo das administrações militares. Hoje, creio, mais amadurecido, mais enfronhado no âmbito das administrações do Estado brasileiro, parece-nos, salvo melhor juízo, que é a hora importante de se modificarem certos mandamentos constitucionais relacionados, repito, com o âmbito dos referidos tribunais, que embora tendo esse nome, na verdade, continuam sendo, apenas e, segundo meu juízo, equivocadamente, órgãos auxiliares do Poder Legislativo, seja ele municipal, estadual ou federal. Os Tribunais de Contas são, sem dúvida, órgãos importantíssimos para efeito da fiscalização dos atos constitucionais, administrativos, econômicos, tanto do Poder Executivo, quanto do próprio Poder Legislativo, dos quais são, os Tribunais de 40 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

Contas, ao meu ver, equivocadamente, órgão de auxílio!... A rigor, referidas Cortes de Contas deveriam, isso sim, integrar de fato o Poder Judiciário, e, claro, por homens e mulheres, tal como no aludido Poder, escolhidos através de concurso público e, na razão direta disso, não dependentes, como o são, do Poder Legislativo, inclusive no que tange à ocupação dos seus cargos, importantíssimos, mas sempre objeto de conjunturas políticas, como eu mesmo o fui, àquela época. Em se tratando, como o próprio nome o indica, de Tribunais de Contas, parece-nos óbvio que em hipótese alguma deveriam e poderiam os seu Ministros e Conselheiros, tal como sucede no momento presente, ser objeto da escolha, da indicação, do Poder Executivo, às vezes do Poder Legislativo, nos termos das conjunturas políticas de momento. Porque, por mais íntegros que sejam os indicados, e sempre, não nos esqueçamos, aprovados pelos respectivos Poderes Legislativos, haverá, inequivocamente, no mínimo, uma dependência sentimental nos seus eventuais julgamentos, seja como relatores ou simples votantes, em relação àqueles que os nomearam e aprovaram. O que, claro, supostamente jamais existiria se, e quando, os seus integrantes, Ministros ou Conselheiros, ou mesmo Juízes, como num determinado momento assim eram chamados os seus integrantes, fossem objeto de concurso e suas atividades se baseassem, tal como sucede no Poder Judiciário, propriamente dito, no que estivesse inserido no bojo dos Autos, dos Processos, mediante, claro, a legítima possibilidade de defesa por parte das autoridades eventualmente incriminadas. Sei que se trata, digamos, de um sonho tal forma de pensamento, pois os interesses são demasiado grandes, tanto por parte dos Executivos, quanto dos Legislativos, que se privariam de acesso mais fácil às contas em geral, mas, sem dúvida, seria um enorme, um extraordinário avanço e aperfeiçoamento da adequada fiscalização dos gastos públicos! Quem sabe, contudo, um dia, ainda possamos ver consideravelmente aperfeiçoada a aludida fiscalização, que, claro, seria mais eficiente, mais clara e significativa, a partir da ideia que, enfim, todas as despesas dos Executivos e Legislativos do País, fossem objeto de análise e julgamento por profissionais submetidos a concursos e, na razão direta disso, sem, aparentemente, qualquer tipo de influência política.


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A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL RACIONAL

Ricardo de Oliveira Paes Barreto

Desembargador TJPE Diretor do Centro de Estudos Judiciários do TJPE

A

1. O Estado e a composição dos conflitos sociais ideia do Estado de Direito consolidou nele a função jurisdicional, cujo objetivo é “resguardar a ordem jurídica, o império da lei e, como consequência, proteger aquele dos interesses em conflito que é tutelado pela lei, ou seja, amparar o direito objetivo”1. Como legislador, o Estado formula as leis destinadas à conservação e ao desenvolvimento da boa convivência social, e realizando a ordem jurídica, aplica a lei, seja no exercício da sua função administrativa, na garantia do bem comum, ou no exercício de sua função jurisdicional, já que “nenhuma lesão ao direito poderá fugir da apreciação do Poder Judiciário”, visando à composição de conflitos de interesses que venham a perturbar este bem comum, a paz jurídico-social, ante a proibição da autotutela, posto que “é vedado o exercício arbitrário das próprias razões”. Esses inevitáveis conflitos de interesses no meio social geram a necessidade de se estabelecerem mecanismos para suas composições, e entre os métodos criados pelo homem, encontra-se o do processo judicial, concretizado através da atuação daquele agente político investido no munus público de julgador das contendas: o juiz.2 Seria a jurisdição estatal o ato de resguardo da ordem jurídica, o império da lei, a forma constitucional de amparo do direito objetivo, frente aos interesses em litígio. Entretanto, para o exercício dessa jurisdição, algo bastante complexo e de suma responsabilidade, necessária se faz a criação, manutenção e permanente aperfeiçoamento dos organismos responsáveis pela aplicação da lei, próprios do Poder Judiciário, através dos seus órgãos, juízes e tribunais, 42 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

dentro de variados contextos, seja na esfera criminal, processual penal, administrativa, no âmbito civil e também processual civil, o qual ora nos interessa. Desse modo, como paradigma da função judicante, diversos são os princípios a serem observados em cada fase da atuação jurisdicional, entendendo princípios, conforme os ensinamentos de Ivo Dantas3, como “categoria lógica e, tanto quanto possível, universal, muito embora não possamos esquecer que, antes de tudo, quando incorporados a um sistema jurídico-constitucionalpositivo, refletem a própria estrutura ideológica do Estado, como tal, representativa dos valores consagrados por uma determinada sociedade”. Os princípios estariam, assim, acima das normas, tanto que estabelece o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, bem como o art. 126 do Código de Processo Civil, que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, uma vez que a interpretação das leis é obra de raciocínio, mas também de sabedoria e bom senso, não devendo o aplicador da lei, que é o juiz, ater-se exclusivamente aos vocábulos, mas, sim, aplicar os princípios que informam as normas positivas4. Assim é que só após a posse e o início do exercício no cargo, decorrente de ato solene e oficial, sob pena de nulidade e prática do crime previsto no art. 324 do Código Penal Brasileiro, é que o juiz estará investido legalmente na jurisdição e poderia então praticar os atos judiciais de sua competência, e uma vez investido de suas funções jurisdicionais, exercê-las-á no limite territorial de sua atuação, sob pena de nulidade de seus atos. A jurisdição pressupõe um território de atuação, cabendo a cada Órgão do Poder Judiciário um determinado limite, sejam os


Foto: TJPE

Judiciário, em matéria processual civil, através dos seus variados Órgãos, aplicar a lei obedecendo aos princípios que regulam os procedimentos, meio para que se chegue do pedido, exercido através da ação, até a sentença, ato de encerramento da prestação jurisdicional, de forma regular, garantindo ao cidadão uma atuação serena, legal e, acima de tudo, justa.

Tribunais Superiores, os Tribunais dos Estados, as Comarcas; ou seja, “a jurisdição não pode ser exercida fora do território fixado ao juiz”5. A jurisdição só pode ser exercida, ainda, pelo órgão ao qual a Constituição lhe atribui competência jurisdicional, a origem jurisdicional, portanto, emana essencialmente da Constituição, de sorte que é defeso ao legislador ordinário criar juízos de exceção, para julgamento de certas causas6, nem mesmo ao próprio Poder Judiciário se estruturar internamente de forma contrária à previsão legal da Lei Magna, art. 5º, LIII e XXXVII. Este órgão constitucionalmente investido no poder de jurisdição tem obrigação de prestar a tutela jurisdicional, não se trata de uma mera faculdade. Após o ajuizamento da ação, não pode o magistrado se negar ao julgamento do pleito subjetivo, sob alegação de lacuna na lei, devendo recorrer, quando possível, à analogia, aos bons costumes e aos princípios gerais do direito. O magistrado, ao apreciar um caso concreto cuja composição não se encontra disciplinada pelas regras abstratas do sistema normativo, deve criar uma norma fixa, oriunda de uma regra genérica, mas decorrente dos demais elementos que compõem a ordem jurídica7, de forma a prestar efetivamente a tutela jurisdicional, função que exerce por delegação do Estado; e só ele, como representante desse poder estatal, desde que legalmente investido no seu cargo, pode praticar os atos jurisdicionais, que são atos personalíssimos, conforme a regra ínsita do art. 2º da Constituição Federal. Como ente do Estado encarregado da solução dos conflitos de interesses que surgem no seio da sociedade, o que é inevitável no convívio humano, cabe assim ao Poder

2. Os procedimentos na composição das lides O objeto da relação jurídica é um bem e a relação entre o que se julga titular do direito e esse bem é o interesse, e quando o interesse de uma pessoa por determinado bem se opõe ao interesse de outra pessoa pelo mesmo bem, surge o conflito de interesses8. Como já analisamos, o Estado veda ao particular o poder de fazer justiça pelas próprias mãos e assumiu esta titularidade, através da jurisdição, quando surgem esses conflitos de interesses, “qualificados pela pretensão de um e resistência de outro”9. Tudo emana do fato de que os bens da vida se destinam ao uso humano, são elementos de sua essência de subsistência, de aperfeiçoamento, e que podem satisfazer estas necessidades, e a razão entre o homem e o bem é o que se chama de interesse. De nada valeria atribuir um bem a uma determinada pessoa se essa fosse obstaculada de uso ou fruição. O direito objetivo, que incide sobre os fatos e que prescreve a conduta das pessoas diante de um interesse, a possibilidade de ocorrência de certas hipóteses conflitantes de interesses e as consequências que destas resultam, não teria força obrigatória. O direito subjetivo, que segundo Pontes de Miranda estaria embutido no direito objetivo10, é o poder atribuído à vontade de alguém para fazer valer seu interesse, em conflito com interesse de outrem, o que se denomina pretensão. Surgindo, então, o conflito de interesses subjetivos, gera-se tal pretensão à pessoa que se julgar prejudicada de recorrer ao Estado, através da ação, na busca de uma sentença, que subordinará ao final, os sujeitos envolvidos naquela contenda, às ordens abstratas que emanam da lei, ocasião da formação da relação processual, denominada lide. É através da ação que essa pessoa visa ao reconhecimento do direito subjetivo contrariado, de seu interesse, constante do pedido, no qual se pleiteia por exemplo a indenização, o despejo, a consignação, a cobrança, a separação ou os alimentos, através dos procedimentos legais previstos nos processos respectivos. Para que possa obter a composição dessa lide, a parte, mediante exercício de uma pretensão subjetiva, contrária a uma pretensão resistida, pessoal ou legal, serve-se do processo, ou mesmo de eventual procedimento de jurisdição voluntária, e a condição primeira para que ele se instaure é a ação. Nos dizeres de Couture, ação é um direito à jurisdição11, ela provoca a jurisdição e é o seu limite. Jurisdição que se exerce através de um complexo de atos, que é o processo, de modo que a ação é o fiat lux da jurisdição, cujos procedimentos se encontram inseridos no processo. O processo, como meio da ação para que se provoque a atuação da jurisdição, deve ser encarado não como um 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 43


A imparcialidade e independência do juiz nos remete à paridade de tratamento, princípio constitucional previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal, e consiste no princípio pelo qual as partes envolvidas no litígio devem ser tratadas de forma igualitária durante todo o processo.

emaranhado de procedimentos obscuros, mas como um caminho de onde se deve extrair o melhor proveito possível, em termos práticos, para torná-lo efetivo, o que significa, segundo consta nos léxicos, um resultado verdadeiro. Neste diapasão, o processo visa a garantir a defesa das pretensões em jogo e a assegurar a justiça das decisões, a fim de que possam ter eficácia adequada em relação às partes envolvidas no litígio, e deve se desenvolver na forma mais humana possível, segundo Souza12, supondo a atuação de valores éticos no sistema processual, ordenados à sua finalidade. Como regras procedimentais, para que a jurisdição se desenvolva célere e, ao mesmo tempo, componha de forma justa estas lides, deve se dar oportunidade para que as partes defendam amplamente suas pretensões, aos terceiros intervenientes ou que de algum modo se quedaram envolvidos pela coisa julgada, para que igualmente exerçam o direito de pedir a tutela de seus interesses, e, por fim, que o juiz, dentro da relação jurídica que se forma no processo, venha a se instruir sempre, a fim de aplicar a lei ao caso concreto, com a correção e certeza que se fazem necessárias. Na sociedade moderna as relações entre pessoas se apresentam na forma de direitos e obrigações de uns perante outros, e o processo é apenas um conjunto de meios destinados à proteção dos direitos, fazendo atuar o sistema judiciário; o direito prescinde do processo para sua efetividade e este sem o direito seria um vazio13. O processo, assim, é o instrumento da jurisdição para a composição das lides, sendo previsto no ordenamento processual civil pátrio nas modalidades de conhecimento, de execução e de cautela, às vezes utilizado sincreticamente, 44 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

quando cabível. Este começa por iniciativa da parte, através da ação, seja qual for sua modalidade ou natureza, porém tem impulso por iniciativa oficial, ou seja, por parte do juiz que o preside, até a sentença e eventual execução latu sensu. Elucida Sydney Sanches sobre o processo que “no de conhecimento o que se busca é um juízo de certeza do direito. No de execução o objetivo é a satisfação do direito. E no cautelar o simples acautelamento de eventual direito de uma das partes, enquanto não se obtém um juízo de certeza ou satisfação do direito.”14 O direito processual entra em sua quase totalidade na categoria de disposições que foram denominadas “regras finais”: que não impõem obrigações, sendo que, quem se propõe a um determinado fim, que seria obter justiça, oferece o método, a receita para consegui-lo15. A ação provoca a jurisdição e o processo é o instrumento desta, um complexo de direitos e deveres, das partes e do juiz, objetivando-se em atos até a prolatação da sentença; o processo nada mais é do que uma relação jurídica, conforme procuraremos demonstrar, daí a denominada relação jurídica processual. Ensina Couture16 que “a lei processual, tomada em seu conjunto, é uma lei regulamentadora dos preceitos constitucionais que asseguram a justiça”, o procedimento se apresenta como um ramo autônomo do direito, colocado sobre a fronteira da Constituição, para assegurar a eficácia dos direitos do homem no tocante à justiça. Portanto, como objeto do processo podemos entender a instrumentalização do direito, a busca do Estado para a composição da lide. A lei processual, tomada em seu conjunto,


é uma lei regulamentadora dos preceitos constitucionais que asseguram a justiça. Conforme leciona Couture, o conteúdo do Processo Civil, pondo em relevo seus elementos principais, são aqueles que vêm do fundo e sem os quais o fenômeno não é concebível: “a ação, a defesa, o processo, a sentença. Por outros termos: a justiça do autor, a justiça do réu, a justiça de ambos em conjunto e a justiça do juiz”17. Liebman18 complementa esse entendimento ao indicar que “o restabelecimento da ordem jurídica, através da satisfação integral do direito violado, conseguido com todos os meios ao alcance dos órgãos judiciários, eis o escopo da sanção: e este é justamente um dos fins máximos do processo civil”. Os princípios processuais informativos do processo civil são, acima de instrumentais, primordialmente constitucionais, advindos de um conjunto de princípios entranhados no texto constitucional denominado devido processo legal, ou princípios constitucionais da segurança jurídica, conforme veremos no desenvolvimento deste estudo, que norteiam os procedimentos até a formação da denominada convicção do julgador, que, in casu, será representada pela sentença, e que, nos dizeres de Pontes de Miranda19: “é a entrega da prestação jurisdicional, que satisfaz a tutela jurídica”, a que se obrigou o Estado ao assumir o monopólio da Justiça. Esses princípios nos auxiliam tanto na compreensão do conteúdo e extensão do comando normativo quanto em caso de lacuna, atuando como fator de integração da eventual omissão existente20, alguns estão normatizados e outros não. Mas de uma forma ou de outra são diretrizes da atuação jurisdicional, até porque na sua quase totalidade emanam do texto constitucional, devendo-lhes o órgão jurisdicional, quando de sua atuação, portanto, estrita obediência. Neste caminho, cabe à parte a propositura da ação. É um direito seu dispor do processo, cujo ajuizamento implicará na atuação da jurisdição que, recebida a petição inicial, determinará a formação do contraditório. A partir daí, passa o juiz competente ao processamento do feito, sendo a autoridade na sua condução, deferindo as provas que entende por pertinentes e agindo de ofício, quando necessário, aplicando as regras procedimentais de ordem pública aos casos concretos. Regra do art. 5º, LIV, da Constituição Federal, o devido processo legal, denominado due process of law, segundo Calmon dos Passos, engloba três elementos essenciais: a imparcialidade e independência do juiz; o acesso ao Judiciário e o contraditório21. A imparcialidade e a independência do juiz nos remete à paridade de tratamento, princípio constitucional previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal, e consiste no princípio pelo qual as partes envolvidas no litígio devem ser tratadas de forma igualitária durante todo o processo. O acesso ao Judiciário, como já vimos, dá-se através do direito de ação e o contraditório consiste na possibilidade de uma das partes se manifestar contrariamente à pretensão deduzida pela outra, cabendo-lhe, se quiser, apresentar contraprova ou mesmo silenciar, princípios cujas regras, caso

não respeitadas, gerarão nulidade insanável que deverá ser reconhecida de ofício pelo juiz, cuja trilha procedimental deve exigir das partes lealdade; ou seja, boa-fé na prática dos seus atos processuais, visando a aplicação justa da lei ao caso concreto, através das decisões, em sentido amplo, contra as quais de regra caberá recurso adequado, ou seja, contra as decisões judiciais dispõem as partes do recurso, meio para que a instância superior, por decisão colegiada, promova com suas revisões, mantendo-as ou reformando-as. É no processo que o raciocínio jurídico se manifesta por excelência, diz com bastante propriedade Perelman22, que afirma categoricamente ser papel do juiz dizer o direito — não o criar —, embora seja frequente na obrigação de julgar, que é imposta ao juiz, o complemento da lei, sua reinterpetração e flexibilização, porém está igualmente obrigado a motivar suas decisões, o que permite discernir o raciocínio jurídico empregado, sendo considerado hoje essencial à boa administração da justiça. 3. A decisão e a exaustão da atuação jurisdicional O processo é apenas o conjunto de meios destinados à proteção dos direitos23, fornecendo, portanto, os mecanismos jurídicos para tutelar os direitos e atuar o seu sistema, através de atos das partes e do juiz, interligados pela unidade do escopo a ser alcançado, qual seja, a justa composição da lide, o que entendemos ser o fim da atuação jurídico-racional. No conjunto de procedimentos que se desenvolve desde a aceitação da petição inicial, com a análise de seus requisitos intrínsecos, além das condições para o exercício do direito de ação e dos pressupostos para o desenvolvimento válido e regular do processo, até a decisão final declaratória do direito, diversos são os atos praticados pelo juiz, despachos ordinatórios, decisões interlocutórias e por último a própria sentença, viabilizando eventual execução latu sensu. O que seria a sentença: a pura aplicação da lei a um caso concreto? Antes da alteração do atual conceito de sentença para a doutrina de Amaral Santos24, a sentença seria o ato pelo qual o juiz resolve a lide. Na mesma obra, cita o doutrinador a conceituação de Rezende Filho, que afirma ser a sentença o ato pelo qual o juiz resolve a contenda, cumprindo a obrigação jurisdicional que lhe foi imposta pelo pedido do autor, ou mesmo a definição então constante do diploma instrumental, em seu art. 162, § 1º, que seria o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa. Com a nova redação dada ao citado artigo de lei pela Lei nº 11.232/05, a sentença deixou de ser o ato que põe termo ao processo para ser considerada como uma mera fase do processo sincrético, aquele no qual o juiz não só declara o direito, mas também o realiza nos próprios autos, latu sensu, resolvendose posterior liquidação, quando necessária, e consequente execução, atuando coercitivamente como meio de coagir o devedor, em tese, ao cumprimento da obrigação declarada. Quando não resolver a pretensão de direito material reclamada na ação, esta decisão será meramente terminativa, 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 45


quando não aceitas as condições da ação ou os pressupostos processuais, por exemplo, será definitiva, porém, quando, segundo Chiovenda25, constituída regularmente a relação processual e o juiz se pronunciar sobre a demanda, acolhendo-a ou rejeitando-a, caso em que seguir-se-á, como já exposto, eventual execução latu sensu, hipóteses que aqui nos interessa analisar, pois é aqui que a jurisdição, na pessoa do juiz, faz-se pronta a pacificar a controvérsia posta. Produzidas as provas pretendidas pelas partes, ou mesmo determinadas ex officio, encerra-se a fase instrutória, após o que o juiz, trabalhando com os elementos de convicção colhidos no curso do processo, o instrumento destinado ao conhecimento, vai proferir a decisão que definirá a contenda, garantindo a paz social e a supremacia da norma de direito. Essa operação é denominada de subsunção, definida por Lalande como “o enlace lógico de uma situação particular, específica e concreta, com uma previsão abstrata, genérica e hipotética contida na lei”26, de forma que terá o juiz que considerar as afirmações dos fatos e a respectiva prova, a fim de convencer-se da sua verdade, ou seja, da certeza dos fatos. Ou os fatos são verdadeiros ou não e este é o gol que busca a jurisdição, senão será a sentença injusta, nos dizeres de Chiovenda, “quando considera existente uma vontade de lei concreta que não existe, ou considera inexistente uma vontade que existe”27. Assim, numa visão ampla, a sentença tem por finalidade compor a lide, traduzir a vontade e o imperativo da lei, na sua aplicação à espécie decidida, visando sua oportuna execução, sendo necessária. O direito subjetivo preexistente se concretiza com a declaração positiva ou negativa da jurisdição, ora será procedente, ora improcedente. “O direito abstrato, contido na norma aplicável, se concretiza com a declaração da sua aplicação à espécie”28. Brilhantes as palavras de Calamandrei29 ao afirmar que “no momento final do juízo, intervém na consciência do juiz uma espécie de iluminação irracional, um verdadeiro e próprio ato de fé, que transforma a probabilidade em certeza”. É exatamente esse momento da atuação do juiz que nos interessa na abordagem do tema de fundo proposto, a busca da verdade, aquela que põe em paz a consciência do julgador ao sentenciar, respeitados os limites da própria lei. 4. O racionalismo jurídico na formação do julgamento justo A pretensão deste arrazoado, inclusive interpretando o direito na fixação do sentido, alcance e conteúdo da norma jurídica30, por tudo que se expõe, é exatamente demonstrar que a atividade judiciária está sujeita a certos limites formais que permitem realizar um controle sobre ela; mas, por seu turno, sabemos que esse controle se mostra ineficaz por si só para proporcionar uma segurança relativa no sentido de que os conflitos sejam resolvidos por uma instância imparcial e que utilizará o conjunto normativo que forma o sistema jurídico, motivando as razões de suas decisões. A instrução se encerrou. As provas, compostas pelos documentos acostados pelos depoimentos prestados, pela 46 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

perícia realizada, foram colhidas. As partes arrazoaram e ratificaram seus pedidos de procedência e de rejeição, respectivamente. Os autos estão conclusos para sentença. Este o momento objeto de apreciação: a aplicação racional do direito de forma a se compor a lide com justeza. Segundo Ortega31, o conteúdo da decisão não pode ser conhecido antecipadamente, isto porque sempre é possível, não apenas em casos de maior complexidade, optar entre alternativas distintas e que podem ser incompatíveis entre si, mesmo que parcialmente, apontando que as teorias formais de argumentação jurídica igualmente não se apresentam satisfatórias, posto que concebem a racionalidade em termos procedimentais, produzindo uma redução injustificada da realidade jurídica. Comumente, afirma Saldanha32, considera-se “que a existência de uma “razão jurídica” não se confunde com a validade da razão abstrata, com a qual operam as lógicas e as matemáticas: trata-se, no primeiro caso, de uma racionalidade precária e vivente, inteligível embora como um logos específico. O que não impede de considerar o conceito de razão em uma acepção abrangente, envolvendo tanto dimensões metafísicas (senão onto-teológicas) como o significado dos mais diversos processos reais. Fazer menção à racionalidade do direito corresponderia, em certo sentido, a falar de sua própria definição, entrementes não é só com a busca da definição do direito que se preocupa a racionalidade, afirma Saldanha, pensar o real como racional é parte da racionalidade do pensar. A razão deverá nortear a justiça, complementando o uso do poder com a atuação ética do julgador, utilizando-se do direito como razão, como justiça, como estrutura animada por valores, os ditos valores maiores. Maccormick33 afirma com propriedade que a racionalidade no direito e nos procedimentos jurídicos é a primeira das virtudes, porém há outras mais que apenas ela. Sem um bom juízo, compaixão e sentido de justiça, a racionalidade pura pode nos aparentar não ser razoável, haver razão para se fazer o que verdadeiramente são coisas irracionais. Para Dworkin34, caberia ao juiz, com habilidade, sabedoria, paciência e agudeza sobre-humanas procurar uma única resposta correta para o caso posto, de forma a se aproximar o mais que possível deste ideal, complementando Alexy35, muito embora na realidade não exista nenhum procedimento que permita, com segurança intersubjetivamente necessária, chegar em cada caso a uma decisão correta. Para tanto, o magistrado deverá direcionar sua atuação tomando por base princípios fundamentais, não apenas as regras normativas pura e simples, através de uma argumentação jurídica orientada de acordo com o conceito de razão prática. Os princípios seriam na verdade comandos que possibilitariam a realização de algo na maior escala possível, em relação às possibilidades jurídicas e fáticas apresentadas, sendo considerados por Alexy, com o qual comungo neste particular, os ditames constitucionais como de dignidade humana, liberdade, igualdade, democracia, Estado de Direito


e Estado social, a forma principal de atuação do direito racional na atualidade36. Estes princípios devem certamente se completar com uma argumentação jurídica, para que seja possível uma decisão racionalmente fundamentada. A racionalidade da argumentação jurídica depende essencialmente de si própria, de suas bases fundamentais, para que alcance esses valores como forma de controle da atuação jurisdicional racional. A aplicação de uma regra normativa por parte do juiz deve levar em consideração o fato de que esta decisão não pode ferir princípios fundamentais, cujo papel dentro da prática judiciária é exatamente manifestar este racionamento prático. Um discurso racional seria um sistema de direitos fundamentais que incluiria uma preferência dos direitos individuais sobre os bens coletivos, conduzindo a uma inevitável conexão entre direito e moral. O conceito de direito deve ser definido de maneira que a moral prevaleça, para que a decisão da autoridade judiciária tenha real efetividade e aceitação no seio social. Não se deve decidir meramente positivando o direito, mas o interpretando racionalmente, levando em consideração os interesses maiores da sociedade como um todo, pressupondo-se sobretudo a moral como fundamento social, isto seria decidir de forma justa. A aplicação do direito positivo poderá, assim, caso não observadas estas direções, ser na verdade injusta, ilegítima. A motivação das decisões é igualmente peça fundamental para sua justeza. Segundo Perelman37, motivar uma decisão é expressar-lhe as razões. É afastar toda arbitrariedade. Somente graças à motivação aquele que perdeu um processo sabe como e por quê. A sentença motivada substitui a afirmação por um raciocínio, e o simples exercício da autoridade por uma tentativa de persuasão, desempenhando um equilíbrio jurídico e moral, absolutamente essencial à vida numa sociedade de direito. O puro respeito à lei não garante a racionalidade da decisão, afirma Ortega38, seja porque a norma pode ser irracional a depender de sua origem, mesmo que democraticamente elaborada, seja porque no processo decisório influem uma série de elementos que não estão contidos na lei e que não podem ser controlados de modo eficaz, posto que ocultos, e podem de alguma maneira provocar um déficit de racionalidade em relação à decisão. O juiz deve valorar o impacto que causará sua decisão e deve procurar que a mesma satisfaça o maior número de sujeitos possível, diz Ortega39, ou, como diria Perelman40, o juiz não pode considerar-se satisfeito se pôde motivar sua decisão de modo aceitável; deve também apreciar o valor desta decisão e julgar se lhe parece justa ou, ao menos, sensata. O racionalismo vem assim buscar que a razão vá dominando as coisas, por meio de uma estratégia simétrica de ações, sendo, em verdade, uma visão do mundo acima de um simples método. As decisões judiciais, assim como o próprio sistema jurídico como um todo, devem ter necessariamente pretensões de correção, como diria Hegel41, “a verdadeira certeza moral é a disposição de querer aquilo que é bom em si e para si”.

NOTAS 1 SANTOS, Moacyr Amaral. “Primeiras Linhas de Direito Processual Civil”. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 1º vol., 1998, p. 69. 2 TEIXEIRA, Sérgio Torres. “A Criação do Direito no Exercício da Atividade Judicante”, “Revista da ESMAPE”, Recife, jul/dez, 1998, v. 3, nº 8, p. 367. 3 DANTAS, Ivo. “Princípios Constitucionais e Interpretação Constitucional”, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995, p. 59. 4 RSTJ 19/461. 5 SANTOS, (nota 1), p. 72. 6 CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. “Direito Processual Constitucional”, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 16. 7 TEIXEIRA, (nota 2), p. 376. 8 SANTOS, (nota 1), p. 7. 9 SANTOS, Ernani Fidélis dos Santos. “Manual de Direito Processual Civil”. 7 ed. São Paulo: Saraiva, vol. 1, p. 44. 10 PONTES DE MIRANDA. “Tratado das Ações”, t. 1, Campinas: Bookseller, 1999, p. 46. 11 COUTURE, Eduardo J. “Introdução ao Estudo do Processo Civil”, tradução Mozart Victor Russomano. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 15. 12 SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. “Poderes Éticos do Juiz”, Porto Alegre: Fabris, 1987, p. 28. 13 LIEBMAN, Enrico Tullio. “Manual de Direito Processual Civil”, tradução de Cândido Rangel Dinamarco, v. I, Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 72. 14 SANCHES, Sydney. “Revista da AMB”, Poder Cautelar Geral do Juiz, Ano I, 02/90, p. 10. 15 CALAMANDREI, Piero. “Derecho Procesual Civil”, tradução de Santiago Sentis Melendo, vol. III, Buenos Aires: Europa-America, 1973, p. 261. 16 COUTURE, (nota 11), p. 19. 17 COUTURE, (nota 11), pp. 3/4. 18 LIEBMAN, (nota 13), p. 13. 19 PONTES DE MIRANDA, (nota 10), p. 37. 20 CORREIA, (nota 6), p. 8. 21 CALMON DE PASSOS. “O Devido Processo Legal e o Duplo Grau de Jurisdição”, São Paulo: Saraiva, 1981, p. 86. 22 PERELMAN, Chaim. “Lógica Jurídica”, tradução Vergínia K. Pupi, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 209-210. 23 LIEBMAN, (nota 13), p. 148. 24 SANTOS, Moacyr Amaral. “Primeiras Linhas de Direito Processual Civil”. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 3º vol., 1999, p. 9. 25 CHIOVENDA, Giuseppe. “Instituições de Direito Processual Civil”, tradução de Paolo Capitanio, Campinas: Bookseller, 1998, vol. III, p. 39. 26 Em COUTURE, Eduardo. “Fundamentos Del Derecho Procesual Civil”, Buenos Aires: Depalma, 1988, p. 285. 27 CHIOVENDA, (nota 25), p. 231. 28 SANTOS, (nota 1), p. 13. 29 CALAMANDREI, Piero. “Direito Processual Civil”, tradução de Luiz Abezia e Sandra Drina Fernandez Barbery, Campinas: Bookseller, 1999, vol. III, p. 271. 30 MELO BORGES, Maria Clara Siqueira de. “A Norma Jurídica e sua Interpretação”. “Revista da ESMAPE”, Recife, jul/dez, 1998, v. 3, nº 8, p. 290. 31 ORTEGA, Manuel Segura. “La Racionalidad Jurídica”, Madrid: Tecnos, 1998, p. 127. 32 SALDANHA, Nelson. “Filosofia do Direito”, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 155. 33 MACCORMICK, N., em ORTEGA, (nota 31), pp. 127/128. 34 Em ALEXY, Robert. “Derecho y Razón Práctica”. 2 ed. Colônia Del Carmem: Fontamara, 1998, p. 8. 35 ALEXY (nota 34), pp. 8 e 20. 36 ALEXY, (nota 34), pp. 12/13. 37 PERELMAN, (nota 22), pp. 210/211. 38 ORTEGA, (nota 31), p. 119. 39 ORTEGA, (nota 31), p. 126. 40 PERELMAN, (nota 22), p. 996. 41 HEGEL, G.W.F. “Princípios da Filosofia do Direito”, trad. Orlando Vitorino, São Paulo: Martin Fontes. 1997, p. 121.

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E m foco

Constituição Cidadã chega aos 21 anos

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Constituição Federal do Brasil completa, no dia 5 de outubro, 21 anos de sua promulgação. Chega à fase adulta consolidada, porém ainda em dúvida acerca do futuro que terá pela frente. Juristas ouvidos pela Seção Em Foco destacam a importância da Carta na concretização do sonho democrático brasileiro. No entanto, não escondem o temor que têm em relação às constantes tentativas empreendidas pelo Legislativo de se alterar o texto original, seja por meio da apresentação das (ainda) infrutíferas propostas de convocação de uma nova constituinte ou das sequentes emendas aprovadas quase todos os anos. No último dia 23 de setembro, a Lei Maior sofreu mais uma modificação: a aprovação da Emenda Constitucional 58, que autorizou a criação de mais de 7 mil cargos de vereador. O Constitucionalista Luís Roberto Barroso vê com preocupação tantas modificações. Mesmo assim, ele explica por que isso ocorre. Segundo afirma, a conjuntura política da época em que a Constituição fora elaborada fez com que o constituinte original inserisse nela muitas matérias cuja regulamentação deveriam ter ficado a cargo da legislação ordinária. “Como houve uma constitucionalização extremamente abrangente, a Carta passou a ter certa instabilidade em seu texto. A razão para isso é que a política ordinária no Brasil se faz, em grande medida, por meio de emendas à Constituição”, afirma o Jurista. Apesar disso, a Carta Magna vem resistindo, afirma Barroso. “Acho que esse (as emendas) é um fator negativo, porém que não comprometeu a subsistência intocada do que era verdadeiramente substantivo na Constituição”, diz o Constitucionalista. “O saldo desses 21 anos é extremamente 48 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

positivo. A Carta realizou, a meu ver, as principais finalidades de um documento dessa natureza. Contribuiu para a demarcação adequada do papel dos Poderes e para criar no Brasil uma cultura de valorização dos Direitos Humanos e dos Direitos Fundamentais”, avalia ainda. Opinião semelhante acerca do número de emendas realizadas na Constituição tem o ex-senador e ex-ministro da Justiça, Bernardo Cabral. Ele foi presidente da Comissão de Sistematização da Carta Magna, quando da constituinte. De acordo com ele, algumas modificações ditas reformistas podem ser consideradas lamentáveis porque a doutrina consiste em ver a Constituição como lei fundamental, na qual se resguardam, acima e à margem das lutas de grupos e tendências, alguns poucos princípios básicos, que uma vez incorporados ao seu texto tornam-se indiscutíveis e insuscetíveis de novo acordo e nova decisão. “Como não é todos os dias que uma comunidade política adota um novo sistema constitucional ou assume um novo destino, cumpre extrair da Lei Maior tudo o que permite a sua virtualidade, ao invés de, a todo instante, modificar-lhe o texto, a reboque de interesses meramente circunstanciais”, critica. A constituinte foi convocada após a aprovação, em 1985, da Emenda Constitucional nº 25. Bernardo Cabral recorda os momentos do período em que a Lei Maior foi elaborada e o que mais o marcou. “O mais marcante foi o discurso proferido pelo saudoso Ulysses Guimarães, no dia 27 de julho de 1988, ao qual deu o título de ‘A Constituição Cidadã’. Ele afirmou: ‘esta será a Constituição Cidadã, porque recuperará como cidadãos milhares de brasileiros, vítimas da pior das discriminações: a miséria’. E fez uma profecia, em resposta aos catastrofistas que diziam que ela não duraria seis meses:


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‘ela terá cheiro de amanhã e não de mofo’”, relembra. O ex-senador faz apenas uma ressalva ao trabalho realizado pelo constituinte originário à época. De acordo com ele, o fio condutor filosófico da Comissão de Sistematização estava voltado para o parlamentarismo, mas esse regime não prevaleceu. “E para completar, houve o clamoroso erro histórico de não ter sido ele viabilizado na Revisão Constitucional de 1993”, critica. Mesmo assim, Bernardo Cabral faz um balanço positivo da Lei Maior, nesses 21 anos. “Os direitos e garantias têm sido cumpridos. Sem a nova Constituição, o Brasil hoje não estaria respirando o ar saudável das liberdades públicas e civis, enfim restauradas, já que a longa era de autoritarismo e a prolongada fase de transição, que lhe sucedeu, receberam, então, o selo que as qualifica como etapas históricas superadas, para a formação de nossa cidadania”, explica. “Vale dizer que a Carta soterrou a época do obscurantismo e firmou a liberdade de expressão, a liberdade de comunicação, o acesso à informação, o sigilo da fonte, o fim da censura, dentre tantos comandos constitucionais do mais alto valor significativo”, afirma ainda Bernardo Cabral, sobre a Constituição. O Presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, destaca que o constituinte, à época, acertadamente, considerou que a melhor forma de solucionar alguns dos principais problemas do País era apostar nos princípios fundamentais do homem “como antídoto a abusos autoritários de governantes de plantão”. “Nesses 21 anos, o Brasil enfrentou crises políticas, afastou um Presidente da República e nada disso fez com que a estrutura política do Brasil fosse abalada. A Constituição se converteu em um dos

maiores instrumentos da democracia no mundo”, afirma. “É bem verdade que fora retalhada em alguns de seus fundamentos, principalmente com a aprovação de emendas constitucionais neo-liberais que reduziram o papel do Estado em pontos estratégicos. É bem verdade também que alguns de seus princípios fundamentais demoraram a ser aplicados, como aqueles que garantem a liberdade de expressão. Também é verdade que alguns de seus princípios não passaram de boas intenções: a igualdade ainda não se concretizou, da mesma forma que a liberdade plena de todos os cidadãos brasileiros. Ainda assim, é de se comemorar o fato de uma Constituição que prioriza o cidadão em detrimento do Estado ter sobrevivido e permitido a maior estabilidade já vivida pelo Brasil. Ela derrotou os pessimistas e aqueles que acreditavam que faria do Brasil ingovernável”, avalia. Nesse sentido, Cezar Britto assume que é contra as frequentes alterações realizadas na Carta por meio de emendas, assim também como não apoia as propostas que visam à convocação de uma nova constituinte. Uma das últimas proposições nesse sentido foi apresentada em julho deste ano pelo Deputado Marco Maia, do PT do Rio Grande do Sul. Pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC) apresentada pelo parlamentar, a constituinte seria convocada para revisar dispositivos da Carta Magna relativos ao regime de representação política. A proposição, que tramita com o número 384/2009, foi apensada à PEC 193/2007, que visa à realização de um plebiscito sobre a revisão constitucional. Em caso de aprovação, a medida deverá ter início a partir de 1 de fevereiro de 2011. Ambos os textos encontram-se em análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados. 2009 OUTUBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 49


Foto: Acervo fotográfico ABr

“Não se mexe em time que deu certo. O clima préconstituinte de 1988 é diverso do atual clima político no Brasil e no mundo. Naquela época, havia necessidade de se preservar o homem, em razão da Ditadura Militar. Agora, o mecanismo que se quer preservar é o capital econômico. Uma constituinte agora apagaria todo o acerto que se teve há 21 anos. É um risco que o Brasil não merece correr”, afirma Cezar Britto. Para Bernardo Cabral, propostas como essas padecem de vício de origem. O Senador volta ao tempo para explicar os motivos que justificam a convocação de uma constituinte e a instituição de um novo ordenamento constitucional. “Qual a diferença entre o Brasil de hoje e o de 1964? Vamos retroagir um pouco no tempo. No primeiro semestre de 1964, sob os impulsos de um movimento popular, fruto ou não de equívoco, as Forças Armadas, com o apoio, manipulado ou não, de significativa parcela da classe política, parlamentares, governadores e prefeitos, destituíram o Presidente da República e operaram lesões na ordem político-institucional vigente por meio dos chamados atos institucionais”, conta o ex-senador, acrescentando que a ação resultou na edição do Ato Institucional nº 5. De acordo com ele, esse ato promoveu a completa ruptura político-institucional brasileira.Eis aí a razão para a consagração e convocação da Assembleia Nacional Constituinte. “Como, pois, no momento atual, alguém poder negar a existência de um tempo excepcional de liberdade e de plenitude do Estado de Direito? Isso é o que me leva a adotar opinião contrária à convocação de uma nova constituinte”, argumenta. Luís Roberto Barroso acha que, apesar das frequentes tentativas de se convocar uma nova constituinte, as propostas nesse sentido não deverão prosperar. “A meu ver, não existe a possibilidade de se convocar uma constituinte. O poder constituinte originário não é convocado por um ato formal. É uma expressão política da população que ocorre em determinados momentos históricos e cívicos, quando 50 JUSTIÇA & CIDADANIA | OUTUBRO 2009

existe grande mobilização para a modificação das bases filosóficas e institucionais em que o Poder é exercido. Foi o que nos aconteceu ao final do Regime Militar. Nesse momento, não existe no Brasil nenhum tipo de mobilização que justifique a convocação de uma nova constituinte. Não se deve desperdiçar o importantíssimo capital político que é a Constituição de 1988”, argumenta. Em discursos recentes, no Brasil e no exterior, o Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Gilmar Mendes, destacou que desde o advento da Carta, em 1988, o País não sofreu qualquer imbróglio institucional ou turbulência externa que tenham sido resolvidos dentro dos parâmetros normativos pertinentes. Segundo afirmou, a Constituição de 1988 representou o fim de um ciclo autoritário e o início de uma nova experiência democrática duradoura. Permitiu, ao constitucionalizar os Direitos Sociais e criar instrumentos de judicialização dessas pretensões, superar o quadro de imensas desigualdades acumuladas ao longo dos anos. Diante desse quadro, o Ministro afirma que a sociedade civil brasileira saiu fortalecida. “As eventuais críticas quanto ao detalhamento do texto constitucional sucumbem diante da certeza de que a extensa proclamação de direitos pela Carta estimulou os movimentos de representação da sociedade a lutarem pela concretização das promessas constitucionais referendadas por valores revelados ao longo de toda a Carta. De tudo resultou, sem nenhuma dúvida, a ampliação da cidadania e o estabelecimento definitivo desse ambiente democrático que, por de tanto nos orgulharmos, muito celebramos”, afirmou. Por esse motivo, o Ministro também criticou as propostas relacionadas à convocação de uma nova Constituição. “A experiência dos últimos anos indica que as mudanças necessárias podem ser realizadas dentro dos marcos existentes, dispensada a aventura de processos constituintes especiais, parciais ou totais”, defendeu o Ministro.


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