Revista Justiça & Cidadania

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Edição 120 - Julho de 2010

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2 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010


S umário Foto: STJ

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Cesar Asfor Rocha, exemplo de gestão e modernização do Judiciário

Foto: Gil Ferreira SCO/STF

Foto: Arquivo JC

editorial

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THE RULE OF LAW E A DEMOCRACIA 20 A QUEM INTERESSA UMA JUSTIÇA 22 PENAL SOBRECARREGADA? A LEI DA FICHA LIMPA E A 24 PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

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Michael Jackson e a pele do ar

Manipulação de patrimônio genético à luz da constituição federal e da MP 2186-16/2001

19

NO PROJETO DE LEI DO NOVO 32 CPC A VEDAÇÃO DA COMPENSAÇÃO DOS HONORÁRIOS NA SUCUMBÊNCIA PARCIAL Termo de Ajustamento 35 de Conduta Dom Quixote: 38 CNJ estuda políticas públicas para filhos de presas

Foto: Renata Mendes

Foto: Arquivo Pessoal

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TIRADENTES – DESCENDENTES 40 Controvérsias & Fatos

Crise e desafios à Constituição

O processo como meio de efetivação dos Direitos Fundamentais

Bondades em gestação 43 em Itaipu

46

Em Foco: 44 Críticas à PEC que prevê a demissão de juízes

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EDIÇÃO 120 • JULHO de 2010 ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR geral

Foto: STJ

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E ditorial

ASSISTENCIALISMO EM DESFAVOR DO BRASIL

É

indiscutível e reconhecida a assistência e a benemerência que o Presidente Lula dispensa aos pobres, desassistidos e injustiçados que pervagam anônimos e desgraçados por esse imenso Brasil afora. Entretanto, vez ou outra, o Presidente da República se excede, ao conceder benemerência contra incontestáveis direitos contratuais assegurados à Nação, em evidente detrimento aos interesses e necessidade da carente e sofrida população. Um dos casos mais extravagantes que atinge as raias do absurdo, é o engajamento a que se propõe no sentido de apoiar ostensivamente a absurda pretensão do Presidente Lugo, do Paraguai, no tocante à espoliação que este pretende contra o acordo estabelecido, quando da construção da Usina Hidroelétrica de Itaipú. É patente que a realização da gigantesca Usina, na ocasião tida como obra de grandeza ufanista, imposta pela prepotência dos governos militares, e que foi realizada contra a opinião de técnicos e especialistas, que desaconselhavam a construção da Usina nas margens do Rio Paraná, na fronteira entre os dois países, pelo inútil desperdício de gastos nababescos, que iriam onerar grandemente os cofres da Nação, levando benefícios enormes para o país vizinho, sem nenhuma vantagem econômica, comercial e política para o Brasil. Contra a decisão de construir Itaipú, manifestaram-se entidades de classe, como o Instituto de Engenharia, cientistas e especialistas no assunto, que opinavam e sugeriam a construção de três usinas, menores e mais modestas, no leito do Rio Paraná e em território nacional, com a mesma ou maior potência que a de Itaipú, sem que o Brasil tivesse a obrigação de financiar a parte correspondente, devida pelo Paraguai, correndo o risco, como acontece agora, de o governo daquele país vizinho não cumprir o pactuado, e ainda, com o absurdo de reivindicar o aumento de benesses inaceitáveis, que ferem enormemente os interesses do Brasil, com consequências desastrosas e irrecuperáveis para a economia brasileira. A pretensão do Paraguai de rever as cláusulas contratuais firmadas na ocasião, reivindicando o aumento despropositado de triplicar em mais de 200%, correspondente a 240 milhões de dólares anuais até 2023, constitui verdadeiro crime de lesapátria, impossível e inominável de se aceitar, primeiramente,

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porque indevido, ferindo o tratado convencional assinado na ocasião; e segundo, por não haver razão ou motivo plausível de o Brasil vir a arcar indevidamente com uma despesa de milhões de dólares, com o fito único de beneficiar ideologicamente o presidente paraguaio, em detrimento da população sofrida e desamparada, como é visto nas portas dos hospitais, sem assistência médica e hospitalar, além da comum falta de medicamentos, como infelizmente ocorre. Acresce ainda, à pretensão do referido presidente, quando, além das exigências formuladas, pleiteia também a construção, pelo Brasil, de mais duas pontes sobre o Rio Paraná, a fim de melhorar o intercâmbio entre os dois países, e aí inclusive, por natural, a rendosa prática do contrabando fronteiriço. O artigo que republicamos na página 43, do eminente jornalista Ruy Mesquita, diretor do jornal O Estado de São Paulo, esclarece com detalhes e minúcias o crime que se perpetra contra o Brasil com o beneplácito do Presidente Lula, que infelizmente encaminhou o projeto ao Congresso Nacional com recomendação de urgente aprovação. O referido projeto é altamente contrário aos interesses do Brasil, que não pode aceitar a desmedida pretensão do país vizinho, constituindo verdadeira lesão ao patrimônio nacional. Justificativas mil impõem-se para barrar a pretensão do Presidente Lugo, principalmente considerando a população empobrecida e desgraçada que se encontra nas portas dos estabelecimentos hospitalares em busca de socorro às suas doenças e moléstias. Razões, portanto, existem para rechaçar esse ato que não é somente contra a Pátria, mas principalmente contra o povo sofrido, e por constituir, além de danoso, imoral e vexatório contra os interesses nacionais. A Nação não está em condições de abrir mão da riqueza de 240 milhões de dólares, enquanto milhões de brasileiros sofrem por fome, doenças e estão desassistidos da devida e necessária ação do governo. A exigência descabida e inclusive atrevida do presidente paraguaio, traz à lembrança a investida também ideológica do líder boliviano Evo Morales, que, com truculência inadmissível, investiu contra o patrimônio da Petrobrás, invadindo mano-militar as instalações da empresa, arrancando do mastro a bandeira do Brasil e subistuindo-a pela da Bolívia, num menosprezo atrevido


Foto: Alexandre Fatori e Maurino Borges

e aviltante, e que infelizmente, contou também naquela ocasião com a indiferença e o beneplácito do Presidente Lula. Acresce que ainda existem esperanças para reverter e desconsiderar o infeliz assistencialismo como se pretende ofertar ao referido presidente, em virtude da citada benemerência estar em apreciação perante o Congresso Nacional. Espera-se que os membros sensatos, tanto da Câmara dos Deputados como do Senado Federal — que conhecem e convivem de perto com a miserabilidade que campeia nas choupanas do interior do Brasil, como a falta de água, saneamento básico, alimentação precária, falta da merenda nas escolas, com a população desassistida, injustiçada e carente dos direitos constitucionais, e ainda sofrendo os horrores e tragédias da inclemência das intempéries que lhes destruíram as casas, pequenas colheitas e alguns poucos bens — se rebelem contra essa malfadada proposição, que nominalmente furta do povo a pouca assistência que lhe é devida, face um farisaísmo ideológico manifestamente cruel e trágico. O Brasil não se pode dar ao luxo de conceder assistencialismo e benemerências políticas e ideológicas, enquanto a população carente tem fome e sede de direitos e justiça. Podemos até tentar minorar com um pouco do que temos as desgraças perdidas, como aconteceu no Haiti e alhures, mas esbanjar o que nos falta é imperdoável. Cabe, portanto, ao Congresso Nacional recusar o ilegal, indevido, abusivo e atrevido achaque pretendido pelo Presidente Lugo. É de levar em conta, também, que o assistencialismo e a benemerência que se pretendeu estender ao Paraguai foi idealizado antes da trágica e dramática catástrofe climática que se abateu sobre a pobreza absoluta nos estados de Alagoas e inclusive em Pernambuco, torrão natal do Presidente Lula, onde a desgraça e a miséria se tornaram parte daquele povo, como participantes da mais horrível hecatombe que se abateu no Brasil, atingindo principalmente as desgraçadas populações locais. Não é o caso de reverter para nossa gente o assistencialismo e benemerência oferecidos aos outros? Será que os senhores senadores da República e deputados federais, que têm em suas mãos para apreciação o pedido da escorcha vergonhosa e despudorada para entrega espúria e indevida desses milhões de dólares ao Presidente Lugo,

não se conscientizam da desgraça que se abateu sobre seus irmãos afligidos, e ao invés de ampará-los vão compartilhar das indevidas benesses pelo sôfrego presidente? Em todos os Estados brasileiros, do mais rico, São Paulo, aos mais pobres, Piauí e Maranhão, existem pequenas cidades e vilarejos aonde faltam as mínimas condições de vida e o Estado não cumpre sequer as obrigações mais elementares, deixando a população à míngua, sem escola, sem ao menos um Posto de Saúde, e, portanto, completamente esquecidos e abandonados. Pergunta-se: será que os senhores membros do Congresso Nacional não sabem dessa desgraçada e dolorosa realidade e continuarão esquecendo a triste situação desse povo sofredor, que eles um dia no passado juraram defender? Portanto, não vamos dar aos outros o que nos falta e pensar na aplicação do ditado popular: MATEUS, PRIMEIRO OS TEUS!

Orpheu Santos Salles Editor 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 7


MANIPULAÇÃO DE PATRIMÔNIO GENÉTICO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DA MP 2186-16/2001 Ives Gandra da Silva Martins

Professor emérito das universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE Membro do Conselho Editorial

A

lgumas considerações fazem-se necessárias antes de passar a ofertar minha breve opinião sobre o tema. A primeira delas diz respeito aos princípios que regem a Ordem Econômica plasmada na lei suprema. Pela primeira vez em um texto constitucional no Brasil, a economia de mercado foi consagrada de forma inequívoca. Após definir que dois são os alicerces da atividade econômica, a saber: 1) a valorização do trabalho humano; e 2) a livre iniciativa, o legislador supremo elenca nove princí­ pios que regem a ordem econômica. Entre eles: a) propriedade privada; b) livre concorrência; c) defesa do meio ambiente. O princípio da livre concorrência, que perfila a economia de mercado, é aquele que surge pela primeira vez no texto constitucional, lembrando que as Constituições anteriores falavam apenas em livre iniciativa, mas não em livre concorrência. Está o artigo 170 assim redigido: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante trata­ mento diferenciado conforme o impacto ambiental dos 8 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. Tal dispositivo é complementado pelo artigo 174, que não permite que o planejamento econômico oficial seja imposto ao segmento privado, sendo, no máximo, indicativo. Está o artigo 174 caput expresso da forma que se segue: Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. (grifos meus). Em outras palavras, em face da dualidade da iniciativa econômica, sempre que a iniciativa caiba ao Estado, o planejamento oficial é obrigatório, mas será facultativo para as empresas do segmento privado. Não pode, pois, o Estado impor planejamento econômico, restrições indevidas que prejudiquem a livre iniciativa, pois a ordem suprema impede que o faça.


Foto: Arquivo JC

Entre os princípios, entretanto, encontra-se o disposto no inciso VI, cuja dicção repito: VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado, conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) O discurso constitucional é dividido em três partes, preconizando: a) defesa do meio ambiente; b) tratamento diferenciado, sempre que haja impacto ambien­ tal de produtos e serviços; c) sujeição dos processos de elaboração e prestação de serviços, na hipótese de impacto ambiental, a um tratamento diferenciado. A defesa do meio ambiente vinculada está à própria preservação da natureza, dos ecossistemas, da ecologia, ou seja, dos aspectos macroambientais, como florestas, fauna etc. A preservação do denominado patrimônio genético, que apresenta aspectos macro e microambientais, apenas é referido, no artigo 170, inciso VI, no que diz respeito aos macroaspectos, visto que a defesa da natureza e a eliminação de impactos ambientais negativos sobre a fauna e a flora referem-se à visão de espectro mais amplo (macroambiental) e não microambiental. Os aspectos microambientais são cuidados no artigo 225 da Lei Suprema. Compreende-se, portanto, que os dois outros elementos, consagrados no VI como princípios informadores da ordem econômica, digam respeito a produtos e serviços que IMPACTEM

o meio ambiente, ou processo de elaboração e prestação que possuam o mesmo poder e potencialidade de impactação. Não vejo como se possa considerar que os microaspectos referentes ao patrimônio genético possam estar enquadrados no inciso VI; pois, se assim fosse, NÃO HAVERIA QUALQUER TIPO DE PRODUTO, SERVIÇO OU PROCESSO DE ELABORAÇÃO QUE NÃO FOSSE CONSIDERADO COMO DE IMPACTO AMBIENTAL. Em outras palavras, a mais intranscendente ação do homem implicaria, necessariamente, um impacto no meio ambiente, em face do denominado efeito borboleta. Tais considerações eu as faço por entender que somente o que se refere ao macroimpacto ambiental justifica a preservação do meio ambiente, erigido em princípio geral da atividade econômica. Em outras palavras: a defesa do meio ambiente e o exame do impacto que a atividade econômica pode ocasionar dizem respeito, à evidência, àquele tipo de ação cuja envergadura pode atingir de forma importante o ambiente, como, por exemplo, a instalação de uma usina elétrica, a utilização de produtos agrícolas capazes de afetar a flora e a fauna, a atividade de exploração de madeira, capaz de gerar desflorestamento, etc. Não impactam o meio ambiente aquelas atividades cuja potencialidade de agressão é quase nenhuma ou nenhuma, como, por exemplo, o cultivo de flores para obtenção de óleos essenciais ou a pavimentação de uma rua antes de terra. É de se lembrar que o Direito Constitucional, interpreta-se com regras próprias, como bem o explica Carlos Maximiliano, ao dizer: A técnica da interpretação muda, desde que se passa das disposições ordinárias para as constitucionais, de alcance mais amplo, por sua própria natureza e em 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 9


À evidência, as palavras e a intenção do constituinte têm particular relevância na exegese do direito supremo. Se, no plano da legislação infraconstitucional, a lei é mais inteligente que o legislador — pois a norma é interpretada à luz do antecedente constitucional —, a Constituição não é mais inteligente que o constituinte, pois o antecedente da norma constitucional é a vontade dele.

virtude do objeto colimado redigidas de modo sintético, em termos gerais. Deve o estatuto supremo condensar princípios e normas asseguradoras do progresso, da liberdade e da ordem, e precisa evitar casuística minuciosidade, a fim de se não tornar demasiado rígido, de permanecer dúctil, flexível, adaptável a épocas e circunstâncias diversas, destinado, como é, à longevidade excepcional. Quanto mais resumida é uma lei, mais geral deve ser a sua linguagem e maior, portanto, a necessidade, e também a dificuldade, de interpretação do respectivo texto. À evidência, as palavras e a intenção do constituinte têm particular relevância na exegese do direito supremo. Se, no plano da legislação infraconstitucional, a lei é mais inteligente que o legislador — pois a norma é interpretada à luz do antecedente constitucional —, a Constituição não é mais inteligente que o constituinte, pois o antecedente da norma constitucional é a vontade dele. Ora, na expressão “meio ambiente”, como macrovisão do “habitat” em que vivemos, não é razoável considerar — nos termos expostos na Constituição — aquelas atividades que não impactem o meio ambiente, embora todas as ações do homem perante a natureza (fumar, pisar na terra ao andar pelo campo, dirigir um carro) tenham um impacto, ainda que reduzido. Desse impacto não cuidou o constituinte. Por esta razão é que, além dos princípios da livre concorrência, da livre iniciativa e da preservação da natureza contra o macroimpacto ambiental, a atividade econômica segue a opção do constituinte pela impossibilidade de impor o planejamento econômico oficial à atividade privada. Numa palavra: ao regular a atividade econômica, não pode o Estado impor condutas de atuação ao setor privado, em nível de definição do que pode ou não fazer. Repito, o artigo 174 caput está assim redigido: Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, 10 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Uma terceira breve consideração faz-se necessária, antes de passar a responder as questões formuladas. Pelo princípio da eficiência e pelo da celeridade do processo (administrativo ou judicial), não podem, as repartições encarregadas de fiscalização, autorização ou licenciamento, dificultar, colocar obstáculos às ações da sociedade, visto que sua função limita-se a examinar e deferir os procedimentos adotados, quando compatíveis com a Constituição Federal. Reza o caput do artigo 37 que: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) ... Cinco são os princípios que regem a administração pública, todos eles essenciais. A meu ver, mesmo que a Constituição Federal não os contemplasse de maneira expressa, eles estariam implícitos, pois decorrentes da própria natureza da Administração Pública. Dizer que a moralidade é essencial para a confiança que o cidadão deve nutrir em relação ao Estado; que a impessoalidade é fundamental para prevenir preferências e personalizações seletivas; que a publicidade é necessária para que se saiba o que o administrador público está fazendo ensejando o controle pela sociedade; que a legalidade assegura o Estado de Direito na medida em que impõe que os atos administrativos se atenham aos termos da lei; e que todos os administradores devem ser eficientes é dizer que a Administração Pública, no Brasil e no mundo, deve observar obrigatoriamente tudo isso, POIS, A SERVIÇO DA COLETIVIDADE E NÃO ESSA A SERVIÇO DA ADMINISTRAÇÃO. Ora, atrasos, sem justificativa, na apreciação dos procedi­ mentos para concessão de autorizações ou licenças, pleiteados de forma compatível com as exigências da Constituição, ferem os direitos do cidadão de obter a prestação de serviços públicos,


nos termos da lei suprema, acarretando responsabilidade das autoridades que se esquivam da obrigação de atender a sociedade, omitindo-se de decidir, conceder ou licenciar procedimentos necessários para o desenvolvimento científico, tecnológico, empresarial, cultural etc. do País. O princípio da eficiência realça a segurança jurídica. É o que determina o § 6º do artigo 37, assim redigido: § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Sempre que tal procedimento implique prejuízos patrimoniais ou morais à sociedade e que o Estado tenha de responder por eles, por força de sua responsabilidade objetiva, torna-se imprescritível a ação de regresso e ressarcimento contra os agentes que os provocaram agindo com dolo, má-fé ou culpa, nos termos do art. 37, § 5º da Carta Magna: § 5º - A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento. (grifos meus). Uma quarta consideração, também breve e que se faz necessária, diz respeito ao § 1º, inciso II, do artigo 225 da CF: § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: ......... II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;...... A hipótese prevê, para assegurar a integridade do patrimônio genético e biodiversidade, que a fiscalização se dará em relação às entidades dedicadas a a) pesquisas e b) manipulação do material genético. Em outras palavras, cuida apenas das instituições dedicadas a pesquisas com estas finalidades ou daquelas empresas que MANIPULAM TAIS COMPONENTES PARA MODIFICÁ-LOS. Manipular é alterar alguns de seus componentes, como ocorre com produtos alimentares, que, modificados, podem gerar espécies pouco diferenciadas de produtos, porém mais resistentes. Não se pode falar de manipulação de patrimônio genético relativamente a flores destinadas à fabricação de perfumes. Tal ação assemelha-se à colheita de frutas, verduras ou legumes para serem transformados em alimentos nas casas ou restaurantes, algo que pode ser feito por qualquer miniagricultor em qualquer parte do mundo. Em 1953 estudei perfumaria em Grasse, no sul da França. Era o negócio de meu pai e deveria sucedê-lo, o que não ocorreu, por ter-me dedicado à advocacia. Nos meses de Abril e Maio, impressionava-me a colheita das flores de laranjeira e as rosas de madrugada, que chegavam ao pátio da fábrica onde eu estudava, em filas de caminhões, para serem transformadas em óleos essenciais puros, através do calor e

Santos Salles A

crise atual decorreu de um imperativo psicossocial clássico nas economias de mercado, ou seja, o envolvimento de toda a sociedade, sem intervenção adequada dos governos, na busca de resultados financeiros e no mercado de capitais, em face do crescimento da economia em padrões acima das necessidades de consumo dos que têm capacidade de absorver a produção. Dessa forma, os investimentos foram valorizados também em patamar mais elevado do que seu intrínseco valor estrutural, com o que, em lDireito Tributário um determinado momento, tal evolução, sem sustentabilidade real, necessariamente, terminaria por explodir, gerando mais lDireito Previdenciário uma crise cíclica de capitalismo, em dimensões maiores do que aquelas lDireito que ocorreremdas após 1929. Relações de Consumo O efeito psicológico de uma percepção superficial dos lDireito elementos causadores Civil da crise, indiscutivelmente, acabou por gerar um prolongamento ilusório de um “boom econômico”, lDireito do Trabalho já diagnosticado por especialistas como sem condições de permanência, a partir de 2006/2007. lDireito Penal Empresarial Os mercados não são autorreguláveis, mas as regulações oficiais lDireito quase sempreAdministrativo são insuficientes para corrigir suas distorções, mormente quando as próprias autoridades iludemse quanto à sua capacidade de conduzi-lo. lDireito Internacional Por outro lado, os investidores que o alimentam e que, não lMediação e Arbitragem poucas vezes, também se iludem com a fortaleza estrutural do progresso e do desenvolvimento, terminam sendo, lPetróleo, Gás momento em simultaneamente, causa e Energia efeito geradoredaquele que a constatação da impossibilidade de sua permanência em lDireito das Telecomunicações níveis elevados indefinidamente torna-se evidente. Em outras palavras, há um ponto de equilíbrio, que seria o limite crítico entre uma realidade controlável, propiciadora da estabilidade dos mercados, e a atuação dos agentes econômicos e autoridades tanto para perceber, quanto para promover uma intervenção corretiva, sempre que esse limite crítico, precário por natureza, é ultrapassado. É que, de outra forma, a atuação dos agentes econômicos passa a ser aleatória e desordenada, na busca desesperada de salvar o que lhes parece em risco de se perder, terminando, a ação das autoridades com poder regulatório, por ser superada pela atuação de investidores e consumidores. São estes, de rigor, aqueles que determinam os humores da realidade econômica, nas crises e nos tempos de bonança. Assim, há um ponto de equilíbrio permanente, na economia de mercado, sempre que os investidores, os agentes produtivos (agricultura, indústria, comércio e serviços) e os agentes públicos atuam na perspectiva de um desenvolvimento projetado, detendo pleno conhecimento dos fatores sociais, políticos, econômicos, de consumo e emprego, e sendo capazes de mantê-los constantes mediante controle induzido, por meio de políticas creditícias e fiscais capazes de estimular desestimular setores queandar possam Av. ou Paulista, 1765 -13° provocar os desequilíbrios definidos como indesejáveis pelos TEL: +55 (11) 3266-6611 - São Paulo agentes econômicos e públicos em conjunto. Nesse contexto de adequadaRio política mercado,- Brasília a própria conjunção de de de Janeiro - Campinas agentes públicos e privados conformará o nível de gastos Belo Horizonte públicos e despesas burocráticas, sempre que estes possam

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da pressão das grandes chapas com orifícios, colocadas em enormes cilindros, para separar a essência que se desejava das próprias flores. Tal transformação, mais sofisticada, mas não diferente de um trabalho de culinária envolvendo alimentos, está a demonstrar que tanto a colheita de frutas, verduras ou legumes, como a das flores para a produção de perfumes, não representam manipulação do patrimônio genético, como no caso de milho ou de outros produtos transgênicos, que são alterados na sua composição para torná-los mais fortes. Dessa última cuidou o constituinte, e não da colheita de produtos da flora para utilização imediata nos produtos deles derivados. Dos transgênicos tratou o constituinte, não do resto; pois, caso contrário, cada miniagricultor teria que pedir autorização ou licença para colher os produtos que plantasse. Uma última consideração. Os artigos 218 (pesquisa científica) e 225 (defesa do meio ambiente) estão no capítulo da ordem social e devem ser interpretados em conjunto e harmonia com os demais capítulos do Título 8º da Lei Maior, como Educação, Cultura etc. Não são artigos, todavia, que se atritam; mas, ao contrário, são complementares uns aos outros. A pesquisa a que faz referência o artigo 218 não pode alterar a defesa do meio ambiente, a que se refere o artigo 225. NEM ESTE PODE ELIMINAR PESQUISAS que objetivam o desenvolvimento e o progresso do País. No caso em questão, à luz da Constituição, tudo aquilo que foi posto na MP 2186-16/2001, afetando a atuação das empresas, inclusive em nível de pesquisas, assim como tudo o que transcende a Carta Magna — para criar obrigações inexistentes na lei suprema, com o intuito não de fiscalizar, mas de criar dificuldades e exigências desmedidas, descomunais e não previstas na norma maior — à evidência, fere princípios constitucionais. Os dois artigos, 218 e 225, podem ser examinados complementarmente. Um não tem o poder de inviabilizar as disposições contidas no outro, risco de gerarem uma contradictio in terminis, inadmissível na exegese da lei maior. Desta forma, parece-me que as pesquisas a que se refere o artigo 218 são fundamentais para o desenvolvimento, a preservação do meio ambiente e o direito de fiscalizar a manipulação genética de transgênicos, por exemplo. Seria, entretanto, inconstitucional, sobre ser desnecessário, considerar qualquer produto da flora para alimento ou adorno como produto manipulado, sujeito à licença ou autorização. Nem disse isso o constituinte, nem tem o legislador infraconstitucional o direito de criar exigências contra lei máxima. Isto posto, passo a ofertar minha opinião sobre o tema. A Medida Provisória nº 2186-16/2001 alicerça-se na Carta Máxima, objetivando regulamentar o artigo 225, § 1º, inciso II e § 4º, sendo estes os dois balizamentos para sua edição. Está assim redigida, em sua introdução: Regulamenta o inciso II do § 1º e o § 4º do art. 225 da Constituição, os arts. 1º, 8º, alínea “j”, 10, alínea “c”, 15 e 16, alíneas 3 e 4 da Convenção sobre Diversidade Biológica, dispõem sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e 12 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização, e dá outras providências, (grifos meus), tendo sido desnecessária a sua reedição, após o advento da EC nº 32/2001. Não cuidarei da análise da Convenção sobre Diversidade Biológica, que, embora tenha sido aprovada por Decreto Legislativo nº 2 de 1994, tem eficácia apenas de lei ordinária, conforme inteligência da Suprema Corte. Os fundamentos constitucionais são aqueles do § 1º, inciso II e § 4º, cuja dicção repito: § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: ..... II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; ..... § 4º- A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. Determina o inciso II dois objetivos de responsabilidade do Poder Público, ou seja: preservação da diversidade e integridade do patrimônio genético e fiscalização de entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético. Por material genético entende-se, conforme o artigo 7º, inciso I, da MP 2186-16/2001: Patrimônio genético (PG): informação de origem genética, contida em amostras do todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na forma de moléculas e substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições ‘in situ’, inclusive domesticados, ou mantidos em coleções ‘ex situ’, desde que coletados em condições ‘in situ’ no território nacional, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva, Sendo função do Poder Público preservar a sua integridade. É de se compreender, na definição legal de patrimônio genético, que toda a fauna e flora do país o integra, pois tudo constitui a biodiversidade. Toda a agricultura e a pecuária brasileira constituem patrimônio genético, mesmo os espécimes consumidos para alimentação e outras finalidades. A expressão usada pelo constituinte é clara (preservação e integridade), o que se percebe, por exemplo, no controle dos desmatamentos para consumo da madeira como combustível ou para a fabricação de móveis, cabendo à União delimitar áreas e vedar exploração indevida. Não, porém, atuar na sua preservação, senão para manter o nível de biodiversidade existente. No plano da preservação do patrimônio genético, não tem função fiscalizatória sobre a produção decorrencial,


de alimentos ou produtos de toucador, enquanto tal ação não implicar modificação da própria contextura. A Constituição outorga ao Poder Público o poder de polícia, ou seja, a forma direta de fiscalização própria dos diversos departamentos, para examinar a qualidade da produção industrial de uma empresa fabril ou o nível de poluição que possa causar, normalmente a posteriori, ao detectar-se alguma irregularidade. Os controles para que um estabelecimento fabril funcione, são muito mais burocráticos que técnicos. No que diz respeito ao segundo aspecto, em que impõe o constituinte a fiscalização de estudos dedicados à pesquisa e manipulação de material genético, a questão é diferente, pois tal pesquisa pode importar manipulação genética, como ocorre com determinados alimentos estruturalmente modificados, ou seja, os transgênicos. Na busca de obter maior rendimento nas plantações e maior qualidade nutriente de determinados alimentos, por exemplo, pode o patrimônio genético justificar a fiscalização das entidades encarregadas desta manipulação. E, neste particular, o constituinte foi bem claro. Apenas neste caso de pesquisa e manipulação utiliza-se da expressão “fiscalizar”, visto que na fiscalização preventiva —que implica processo de análise prévia das pesquisas e manipulações desejáveis — encontra-se a razão de ser da preservação, ante propostas de modificações genéticas a serem realizadas. Em outras palavras, apenas em relação às entidades dedicadas a pesquisas e manipulação genética cabe a fiscalização especial, a que se refere a Constituição. Não cuidou o constituinte, neste inciso, da utilização dos demais seres da fauna e flora para variada finalidade, apesar de todos eles constituírem-se em patrimônio genético, segundo a definição retrocitada. Ora, o artigo 218 da CF é aquele que define o tratamento a ser dispensado à pesquisa científica, que repito uma vez mais: Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas. § 1º – A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências. § 2º – A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponde­ran­ temente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional. § 3º – O Estado apoiará a formação de recursos huma­ nos nas áreas de ciência, pesquisa e tecnologia, e concederá aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho. § 4º – A lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da produtividade de seu trabalho. § 5º–É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas

No que diz respeito ao segundo aspecto, em que impõe o constituinte a fiscalização de estudos dedicados à pesquisa e manipulação de material genético, a questão é diferente, pois tal pesquisa pode importar manipulação genética, como ocorre com determinados alimentos estruturalmente modificados, ou seja, os transgênicos.

de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica, Não podendo, como já disse atrás, haver um conflito entre as duas disposições. Vale dizer que as pesquisas científicas sobre organismos genéticos a serem modificados dizem respeito ao patrimônio genético a que se refere o constituinte, para que haja a compatibilização entre os artigos 218 e 225, § 1º, inciso II. Nenhuma outra limitação impôs a Constituição à exploração que não envolva a necessidade de manipulação genética na utilização de patrimônio genético, que corresponde a todos os seres vivos da fauna e da flora, menos o homem. Repito, a expressão “pesquisa e manipulação”, para obtenção de uma espécie nova, com modificação genética, é que deve ser fiscalizada. Não pode a medida provisória mencionada ultrapassar os limites impostos pela Constituição, gerando entraves ou impedimentos à pesquisa em que não há MANIPULAÇÃO DE MATERIAL GENÉTICO. O artigo 218, pois, cria disposições estimuladoras da pesquisa, não estando em conflito com o 225, § 1º, inc. II. Entendo, portanto, que limitação possível ocorre apenas em relação à pesquisa científica de organismo geneticamente modificável, cujas fronteiras estão expressas na lei suprema. 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 13


Cesar Asfor Rocha exemplo de gestão e modernização do Judiciário Da Redação

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uando assumiu a Presidência do Superior Tribunal de Justiça, em setembro de 2008, o Ministro Cesar Asfor Rocha anunciou que aplicaria um choque de gestão no tribunal e definiu as prioridades de sua administração: modernizar a estrutura, racionalizar condutas e agilizar os julgamentos da Corte. Nesses quase dois anos de gestão — seu mandato termina no próximo dia 3 de setembro — já é possível constatar que todos os compromissos assumidos foram cumpridos à risca. Sob o seu comando, o STJ entrou definitivamente na era digital, consolidou os recursos repetitivos, disponibilizou novos serviços em seu portal na Internet e incrementou a integração com organismos internacionais. Desde que assumiu a Presidência, Cesar Rocha enfatiza a importância da modernização da Justiça e da melhoria contínua do desempenho como instrumentos para uma prestação jurisdicional mais eficiente, eficaz e efetiva. Para ele, o processo deve ser tratado objetivamente e com a convicção de que, dentro dos autos, habita uma vida e as esperanças de quem postula uma causa. E foi com esse espírito que seu gabinete coordenou o maior projeto de informatização processual do Judiciário brasileiro: o STJ na Era Virtual, que agilizou o trâmite processual, acabou com os processos de papel e transformou o STJ no primeiro tribunal nacional do mundo totalmente virtualizado. A iniciativa liderada pelo Ministro Cesar Rocha foi reconhe­cida no final de 2009, com o Prêmio Innovare, que 14 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

consagra as melhores práticas jurídico-administrativas no âmbito do Judiciário brasileiro. Sob o tema “Justiça Rápida e Eficaz”, o prêmio considerou o projeto do STJ como modelo de agilidade. Para o presidente do STJ, o processo digital não só reduz a morosidade do Judiciário como aumenta o índice de confiança da população na Justiça: “A confiabilidade na Justiça está atrelada à sua capacidade para solucionar conflitos, e o processo digital confere mais transparência e agilidade a essa demanda. Não tenho dúvidas de que sua adoção irá influir positivamente na avaliação que se faz do Judiciário como prestador de serviço público”. De acordo com o Ministro, as travas na tramitação dos processos são uma das principais causas da lentidão do Judiciário. “Perde-se tempo precioso com a remessa dos autos de uma instância para outra, de uma cidade para outra”, explica o Ministro. “O investimento em novas tecnologias, como o processo digital, pode resolver ou mitigar muito esse problema”, garante. Justiça com tecnologia Com a remessa eletrônica, em poucos minutos os processos são recebidos, registrados, autuados, classificados e distribuídos aos relatores com segurança, economia e transparência. Em processo de papel, esse procedimento levava de cinco a oito meses para ser concluído.


Foto: STJ

Ministro Cesar Asfor Rocha, Presidente do Superior Tribunal de Justiรงa

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Foto: STJ

Ministro Cesar Asfor Rocha, Presidente do Superior Tribunal de Justiça

“Estamos derrubando distâncias geográficas de um país imenso como o Brasil, pois agora o processo chega por meio eletrônico num piscar de olhos”, comemora o Presidente. Iniciado em janeiro de 2009, o projeto integrou o STJ a todos os tribunais de justiça e tribunais regionais federais para o envio de recursos no formato eletrônico, a automação de julgamentos em todos os órgãos julgadores do tribunal e o aprimoramento de sua gestão administrativa. Além da segurança, economia e rapidez, a virtualização garante mais transparência à atividade jurídica, já que o arquivo digital pode ser acessado pelas partes de qualquer lugar do mundo, através da Internet. No Judiciário informatizado, a integridade dos dados, documentos e processos enviados e recebidos por seus servidores é atestada por identidade e certificação digital. A assinatura digital serve para codificar o documento de forma que ele não possa ser lido ou alterado por pessoas não autorizadas; a certificação é uma espécie de “cartório virtual”, que garante a autenticidade dessa assinatura. Simultaneamente à implantação do processo eletrônico, o portal do Tribunal na Internet ganhou novas ferramentas para peticionamento eletrônico e visualização digital dos processos. O novo e-STJ permite que os advogados com certificação digital consultem os processos a qualquer momento, em qualquer lugar do mundo, por meio da Internet. Com isso, os atos processuais podem ser praticados em 16 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

tempo real, durante as 24 horas do dia, não se limitando ao horário de funcionamento do Tribunal. Também lançou o Sistema “Processômetro”, que permite aos usuários do Portal visualizar em tempo real o número de processos que tramitam na Corte em formato eletrônico e os processos físicos (em papel), que aguardam digitalização. Nesta página, o usuário acompanha ainda a quantidade de processos eletrônicos e físicos que se encontram nos gabinetes dos ministros do STJ e os que estão tramitando em outras unidades do Tribunal. “O processamento eletrônico é um círculo virtuoso que, brevemente, estará consolidado em todas as instâncias do Judiciário. Todos ganham com a virtualização dos processos: servidores, advogados, juízes, ministros e, principalmente, a sociedade, que terá uma Justiça mais rápida e eficiente”, afirmou o Ministro, Presidente do STJ. Os benefícios gerados pelo projeto “Justiça na Era Virtual” despertaram a atenção do Banco Mundial (Bird) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que vão alastrar a iniciativa para outros países. O Banco Mundial incluiu o projeto no seu “Programa de Ação e Aprendizagem sobre Transparência Judicial e Responsabilidade na América Latina e Região Caribenha”, como modelo de ferramenta estratégica de transparência e eficiência do Judiciário. Para o Diretor do Banco Mundial para o Brasil, Makhtar Diop, é importante que essa iniciativa seja disseminada entre


outros países da região e da África, já que a modernização dos serviços jurídicos e judiciais é a garantia de uma sociedade justa e transparente. O Banco Mundial quer aproveitar o modelo de desenvolvimento do STJ para ajudar na modernização das cortes da América Latina, Caribe e África, dentro do eixo de cooperação conhecido como “Sul-Sul”. Processos repetitivos A Lei dos Recursos Repetitivos (Lei n.º 11.672/08) é outro carro-chefe da luta do STJ contra a morosidade na solução de conflitos judiciais. Enquanto a informatização moderniza a tramitação dos processos, a aplicação da nova lei agiliza o julgamento em bloco de causas idênticas. Uma combinação perfeita para enfrentar a montanha de recursos que lotam os gabinetes do Tribunal. A lei possibilita que uma tese decidida pelo novo sistema seja aplicada no julgamento de todas as causas idênticas, não só no STJ como nos tribunais de segunda instância (tribunais de justiça e tribunais regionais federais). A redução do número de recursos sobre temas comuns permite que os ministros tenham mais tempo para a análise aprofundada de matérias novas e de repercussão nacional. Desde que entrou em vigor, sua aplicação reduziu em mais de 30% o número de processos enviados à Corte. Mais de 180 temas foram destacados para julgamento pelo rito dos recursos repetitivos. Outro fato marcante da administração Cesar Rocha foi a sanção da Lei n.º 12.011/2009, que criou 230 novas varas da Justiça Federal, acatando proposta elaborada pelo Superior Tribunal de Justiça em parceria com o Conselho da Justiça Federal. Para o Presidente do STJ, as novas varas atenderão ao propósito da Justiça Federal brasileira, que é levar a Justiça o mais perto possível da população que dela necessita, “foi uma vitória do cidadão, além de um importante esforço conjunto dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo para melhorar o acesso da cidadania à Justiça”. Responsabilidade social Mesmo com tanta tecnologia, Cesar Rocha faz questão de ressaltar que o Tribunal não se robotizou. “Ao contrário, continua humano, sensível e consciencioso, sempre voltado para o bemestar do jurisdicionado, para a promoção da cidadania e para o fortalecimento da democracia.” Prova disso são os mutirões realizados pelos ministros da Corte para reduzir os estoques de processos e tornar o trabalho mais eficaz. O primeiro mutirão da gestão Cesar Rocha foi realizado pelo próprio gabinete da Presidência, que analisou mais de quatro mil agravos em poucos dias de esforço concentrado. A iniciativa ganhou novos adeptos e atualmente está sendo praticada por vários ministros. Outro bom exemplo foi o lançamento do curso de formação de multiplicadores sobre violência doméstica e Lei Maria da Penha. Para Cesar Rocha, a formação de multiplicadores para disseminar o tema em todos os cantos do País é importante “para o enfrentamento do manto de vergonha e horror que paira sobre

o expressivo contingente de mulheres sofridas, brutalizadas e violentadas no direito mínimo à dignidade humana”. Segundo o Presidente, a iniciativa de aperfeiçoar e disseminar os conhecimentos de juízes e servidores dos Tribunais de Justiça no combate à violência contra a mulher vai respaldar as decisões punitivas e fortalecer os movimentos de conscientização que se espalham pelo País. Sempre focado no cidadão, no comando do Ministro Cesar Rocha, o STJ incrementou projetos de inclusão social, aproximando a sociedade do Judiciário e prestando esclare­ cimentos sobre seus direitos. Entre os projetos, iniciativas como a contratação de estagiários portadores de deficiências, esclarecimento aos estudantes secundários sobre o sistema judiciário e maior aproximação dos estudantes de Direito com as práticas judiciais. O projeto de inclusão social implantado na gestão do Minis­tro Cesar Rocha oferece acessibilidade física, digital e social às pessoas portadoras de deficiência. Servidores do Tribunal mobilizados para o atendimento a essas pessoas receberam cursos de capacitação como, por exemplo, o de Libras, linguagem de surdos e mudos. As instalações físicas da Corte também foram adequadas para atender cadeirantes e deficientes visuais. O projeto consolidou a presença de funcionários deficientes auditivos na digitalização de processos nos quadros de apoio do Tribunal, além de pessoas com Síndrome de Down, que trabalham nas portarias do Tribunal e no gabinete da Presidência. Entre as atividades realizadas por eles estão o atendimento telefônico, a distribuição de crachás e a orientação aos visitantes sobre a localização de gabinetes dos magistrados. Responsabilidade ambiental Em maio de 2010, o STJ aderiu oficialmente à “Agenda Ambiental da Administração Pública” (A3P), criada pelo Minis­ tério do Meio Ambiente para estimular e orientar a inclusão da gestão ambiental nas atividades administrativas e operacionais do Estado mediante ações que vão desde a mudança nos investimentos, compras e contratação de serviços pelo governo, até a gestão adequada dos resíduos gerados e dos recursos naturais utilizados. Desde 2008, o Tribunal vem adotando procedimentos de sustentabilidade socioambiental, como eficiência energética, coleta seletiva de resíduos e racionalização do uso da água, entre outras iniciativas. Defensor ferrenho da transparência, Cesar Rocha elogia a iniciativa da TV Justiça de transmitir julgamentos ao vivo para a sociedade: “é um caso único no mundo, e de grande sucesso”. Mas admite que ainda encontra muita resistência dentro do Judiciário. “precisamos incentivar a conscientização dos magistrados sobre a necessidade de mostrar o que é feito dentro dos Tribunais. “Quanto mais se expuser, mais compreendido o magistrado será, e menos criticado”, avaliou. Foi com esse intuíto que o Presidente do STJ assinou acordo de cooperação com o Supremo Tribunal Federal para aumentar 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 17


os investimentos e o conteúdo de uma faixa de multiprogramação digital da TV Justiça, e articulou a criação do Canal Judicial Ibero-Americano, que levará o dia a dia dos poderes judiciários para 600 milhões de pessoas de toda a América Latina e da Península Ibérica. O Canal Judicial, que terá versões tanto em rede aberta como WebTV, na Internet, já está na fase de desenvolvimento de programas-piloto e deverá contar com a participação da também recém-formada Rede de Comunicadores — fórum de troca permanente de experiências de relacionamento com a mídia e a sociedade. Reconhecimento internacional Eleito em maio de 2009 para um mandato de quatro anos, Cesar Rocha é o presidente da cúpula do Judiciário euro-latino-americano, que reúne 41 países da Europa e das Américas. Além de traçar estratégias conjuntas, a cúpula busca a universalização do acesso e a transparência da Justiça, o combate ao crime organizado e à corrupção, entre outros objetivos. Sua postura atuante foi decisiva na maior inserção e respeito do Tribunal na comunidade jurídica global e na aproximação com os organismos internacionais. O STJ e a Organização das Nações Unidas (ONU) assinaram memorando de entendimento com objetivo de unificar esforços para maior efetividade na punição do crime organizado transnacional. O documento prevê a realização de esforços conjuntos no desenvolvimento de ações que fortaleçam a punição das diversas modalidades de crime organizado transnacional. “A aproximação entre essas entidades é chave para consolidar o papel da Justiça Federal no enfrentamento ao crime organizado doméstico e transnacional”, assinalou o Presidente Cesar Rocha. Além do Banco Mundial, outros dois organismos interna­ cionais propuseram parcerias com o STJ: o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). Para o diretor de Assuntos Jurídicos do Pnuma, Bakary Kante, a atitude pró-ativa do STJ para progredir no campo da proteção ao meio ambiente é um exemplo que deve ser apresentado aos outros países. O Superior Tribunal de Justiça será o primeiro tribunal do mundo a disponibilizar sua jurisprudência sobre meio ambiente no “Portal Judicial Ambiental”, coordenado pela Comissão Mundial de Direito Ambiental da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). Nos últimos 20 anos, o STJ se transformou em peça fundamental na proteção jurídica do meio ambiente no Brasil. São mais de mil decisões de mérito sobre os mais variados temas do Direito Ambiental e sobre todos os biomas brasileiros, como floresta amazônica, mata atlântica, pantanal, cerrado, caatinga e zona costeira. Todo esse acervo estará disponível no Portal, que reunirá legislações, jurisprudências e doutrinas jurídicas das altas Cortes dos países integrantes do Sistema Nações Unidas. O objetivo é subsidiar e capacitar juízes de todo o mundo na aplicação do 18 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

Direito Ambiental, envolvendo temas relevantes como combate à poluição, proteção da biodiversidade e questões relativas às mudanças climáticas. Responsável pela homologação de sentenças estrangeiras no Brasil, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) está se integrando cada vez mais aos organismos de arbitragem e mediação internacional de conflitos, como o Conselho Internacional de Arbitragem Comercial (ICCA) e o Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr). Também estreitou os laços com o Conselho Geral do Poder Judiciário da Espanha, assinou acordos de cooperação com tribunais de Portugal, Moçambique, Líbano, Japão, República Dominicana e Rússia. A assinatura de protocolos bilaterais com tantos países distintos comprova que o modelo de gestão administrativa do STJ já é uma referência internacional. Palco de grandes debates Na presidência de Cesar Asfor Rocha, o STJ sediou a primeira reunião do Comitê Executivo da Rede Internacional de Implementação Ambiental (Inece) realizada na América Latina. O evento reuniu especialistas nacionais e internacionais para debater questões sobre o meio ambiente. Nos próximos meses, o Tribunal vai sediar dois importantes eventos, que reunirão magistrados de cerca de 45 países: a II Reunião da Comissão Conjunta dos Poderes Judiciários Europeus e Latino-Americanos, que debaterá temas como intercâmbio tecnológico, análise comparativa dos blocos regionais e questão dos direitos humanos e das migrações; e a Conferência Mundial sobre Transparência, Ética e Prestação de Contas dos Poderes Judiciários, marcada para os dias 4 e 5 de agosto. O Tribunal também participará da organização do encontro de juízes, promotores e advogados, que acontecerá paralelamente à Conferência Ambiental Rio+20, que vai se realizar em 2012, no Rio de Janeiro. Para o Ministro Cesar Rocha, a preocupação dos magistrados, notadamente os da cúpula do Judiciário, deixou de ser apenas com a atividade de julgar. A modernização está no foco das atividades judiciárias como instrumento de combate à morosidade. “Tivemos de quebrar paradigmas, de refletir e rever posições manufaturadas. Hoje temos de ter, com a mesma prioridade, a preocupação com a gestão do Judiciário”. Tudo isso explica porque o Presidente do Superior Tribunal de Justiça foi eleito pela revista “Isto é” como uma das 100 personalidades mais influentes no Brasil e no mundo, em pesquisa que teve o ano de 2009 como avalista de que continuarão se projetando — e fazendo a diferença — em 2010. Realizada desde 2005, a eleição deste ano apontou homens e mulheres que se destacaram em seus campos de atuação, como Luiz Inácio Lula da Silva, Gilmar Mendes, Abílio Diniz, Aécio Neves, Ciro Gomes, Dilma Roussef, Dunga, Fernando Henrique Cardoso, Guido Mantega, Marina Silva, Kaká, Barack e Michelle Obama, Bill Gates, Hillary Clinton, José Saramago, Nicolas Sarkozy e Carla Bruni, Woody Allen, entre outros.


Michael Jackson e a pele do ar Carlos Ayres Britto

Ministro do Supremo Tribunal Federal Membro do Conselho Editorial

Foto: Gil Ferreira/SCO/STF

M

ichael Jackson foi um dançarino pop. Sobre isso todos os críticos estão de acordo. Logo, um dançarino popular ou não-clássico. Não-erudito, mas um dançarino que trouxe para os palcos do mundo uma dança de rua tão criativamente repaginada que despertava emoções coletivas do mais puro encantamento. Quero dizer: independentemente da faixa etária ou da procedência geográfica dos espectadores, uma atmosfera de delírio visual envolvia Michael Jackson em cena. Nunca se viu alguém (nem mesmo o fenomenal Elvis Presley) que desse tanta liberdade aos quadris, mãos, pernas e expressões faciais, num contexto rítmico de impecável marcação e irresistível contágio. Se caprichava na interpretação vocal de suas músicas, Michael Jackson o fazia para melhor agradar aos ouvidos da própria dança. A garganta era personalíssima, porém os tímpanos a que primeiro se dirigia eram impessoais. Diga-se o mesmo de melodias, acordes, arranjos, instrumentos musicais, figurinos, pois todas essas coisas entravam pelos poros da dança para compor com ela uma só realidade avassaladoramente bela. Era essa monolítica unidade do que há de mais corpóreo e mais etéreo que fazia a diferença. O multiverso a se transformar em universo (holisticamente falando), no desempenho cênico daquele homem frágil como porcelana e ao mesmo tempo forte como um rochedo. E sob tal ambiência é que Michael Jackson regia uma infinitude de coisas para sacralizá-las no altar do seu incondicional amor pela dança. Ele próprio a ceder espaço para ela, mais e mais, como um gênio da lâmpada que se desprendesse da sua originária prisão para atender aos desejos daquela mulher que lhe arrebatava a alma (pois a dança nunca deixa de ser uma mulher, e a mais leve e curvilínea delas). Assim é que a dança reconhecia em Michael o seu mais fervoroso cultor pós-moderno e se permitia apropriar-se dele. Tão possuidora dele que a um dado momento parecia que somente ela estava no palco. Uma dança entregue a si mesma, tão enlouquecida de beleza que já não havia nenhum dançarino a protagonizá-la. Ela e só ela resplendia na objetividade absoluta da mais absoluta arte plástica. Por isso que Michael Jackson, inteiramente açambarcado pela dança, de repente já não fazia parte dele mesmo, porém dela. Dissolvia-se na sua própria dança, por havê-la conduzido ao esplendor quântico da partícula

Carlos Ayres Britto, Ministro do Supremo Tribunal Federal

que se faz onda. Da matéria que se faz éter. Do mármore bruto que se faz “A Pietá” de Michelangelo. Foram muitas, portanto, as fusões que se processaram na trajetória existencial de Michael Jackson. Fusão da mais espontânea dança de rua com a mais elaborada técnica da dança erudita. Fusão da cultura negra com a branca, revelada até mesmo no alisado dos cabelos renitentemente crespos e na progressiva brancura da tez de todo o corpo. Fusão da graça virginal dos meninos com a mais séria compenetração profissional dos adultos. Da volubilidade assustada dos olhos com a tenacidade de um espírito capaz de todos os sacrifícios pela arte. Fusão, em suma, do dançarino e da dança. Dança em cujo coração o dançarino penetrou tão fundo como se chegasse enfim à sua definitiva casa interior. Hoje, um ano depois de sua passagem física por este mundo, Michael Jackson como que sobrevive na pele do ar. Permanece com a sua dança hipnótica na pele do ar que a humanidade respira, junto aos demais seres viventes deste arrepiante, emocional planeta azul. Thriller... 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 19


THE RULE OF LAW E A DEMOCRACIA Marcello S. Godinho Doutor em Direito Doutor em Economia

Fernanda Duarte

Juíza Federal Professora da Universidade Federal Fluminense

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ideia de “rule of law” é considerada um princípio estruturante do constitucionalismo contemporâneo, sendo responsável pela contenção às tentações arbitrárias ao exercício do poder do Estado. Revela a ideia matriz de que o exercício do poder político deve sempre se dar conforme o Direito. Ilustrativa é aquela máxima do Direito inglês de que não se obedecem ordens porque foram dadas por uma autoridade: as ordens são obedecidas quando estão de acordo com o Direito e foram dadas por autoridades investidas legalmente do poder para tal. A partir do “rule of law” chegamos à concepção fundamental do constitucionalismo moderno, ou seja, a prevalência do princípio da separação de poderes. Essa é vislumbrada como um instrumento, uma garantia, uma técnica essencial para impedir os arbítrios e os caprichos de qualquer Governo, seja de que ideologia for. As normas gerais devem ser impessoais, obrigatoriamente aplicadas de forma igualitária, inclusive aos agentes políticos dos Poderes Executivo e Legislativo quando atuam na defesa de seus interesses privados e particulares mesmo que travestidos de interesse público e/ou defesa do bem comum. Através da especialização das funções do Estado e com a separação dos poderes entre o Legislador, o Estado-Juiz, e o Executivo, visa-se proteger o indivíduo contra possíveis atos arbitrários do poder estatal. O cidadão, nas suas relações com o Estado, tem o direito de ser regulado por normas gerais, que vinculam tanto a Administração estatal, através de suas autoridades, como os indivíduos. Nesse cenário, a supremacia do Poder Legislativo é qualificada, respeitada e acatada nas sociedades capitalistas avançadas justamente por reforçar a crença de que as regras são editadas de forma impessoal, não 20 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

arbitrária, que em princípio não visam beneficiar ou prejudicar especificamente nenhuma pessoa física ou jurídica, e desta forma os representantes do povo demonstrariam um correto entendimento acerca do ordenamento jurídico. Neste contexto é fundamental a existência de um Poder Judiciário independente, que assegure a aplicação da lei de forma justa e equânime. A ele cabe proporcionar um tratamento igual aos litigantes, agindo com autonomia ao decidir uma lide, sempre adotando uma visão integral da ordem jurídica vigente. Tendo acesso aos argumentos relevantes e aos fatos fundamentais, o órgão jurisdicional deve examinar, quando o Estado é uma das partes envolvidas no conflito, se um invocado interesse público é verdadeiro, qualificado, ou se trata de mero artifício de retórica usado para derrotar algum pleito do cidadão, e favorecer interesses particularizados. Somente desta forma aquele órgão de soberania formulará adequadamente a norma jurídica concreta que disciplinará a questão controvertida levada ao seu conhecimento. Nos países de tradição anglo-saxã, desde há muito tempo não há dúvidas de que ao Governo são atribuídos os mesmos direitos e liberdades que aos cidadãos. Além de assegurar aos membros de sua comunidade política a proteção das normas gerais, impede-se o Estado de invadir, arbitrariamente, a esfera individual de cada cidadão, dificultando a expedição de qualquer medida que objetive restringir indevidamente o exercício das liberdades e dos direitos. Os indivíduos somente estão sujeitos à coerção estatal quando essa é devidamente prevista em normas gerais e está de acordo com a Lei Fundamental, não sendo permitido ao Estado agir para perseguir qualquer outro desiderato que não


Foto: sxc.hu

Aqui e alhures o desejo de se promover qualquer dimensão do bem público precisa e deve ser determinado na lei, não se permitindo que se busque o benefício ou o prejuízo de alguém especificamente, em nome de um pseudointeresse público.

seja o interesse público, devidamente previsto e autorizado no ordenamento jurídico. A vigilância e a responsabilidade pelo correto procedimento de todos os órgãos de soberania do Estado cabem no Estado de Direito, em última instância, a todo o Poder Judiciário e em especial à Corte, investida da função de zelar pela Constituição, o que no caso brasileiro é atribuição em instância última do Supremo Tribunal Federal, que inclusive é nominado de “guardião da nossa Constituição”. Um dos principais objetivos de qualquer governo democrático na atualidade, em sociedades de mercado, deve ser assegurar a mínima interferência nas liberdades e na propriedade dos indivíduos, sendo que qualquer atuação do Estado neste campo precisa ser prevista em normas gerais, devidamente aprovadas pelo Poder Legislativo, conforme o rito consignado na Lei Maior. Aqui e alhures o desejo de se promover qualquer dimensão do bem público precisa e deve ser determinado na lei, não se permitindo que se busque o benefício ou o prejuízo de alguém especificamente, em nome de um pseudo-interesse público. A intenção de qualquer autoridade de causar danos a pessoas ou grupos sociais, é impedida pelo requisito de que toda e qualquer medida coercitiva deve ser prevista em normas gerais e impessoais (princípio da legalidade), sendo que mesmo essas precisam ser justificadas por princípios, em geral tratados em sede constitucional, os quais dizem respeito ao tratamento jurídico igualitário que obrigatoriamente precisa ser dispensado a todos os cidadãos. Uma concepção adequada da lei nunca pode estar desconectada da ideia de justiça, tendo esta como referencial mínimo de conteúdo, a demanda de conduta correta dos indivíduos nas suas relações privadas, assim como o respeito

do Estado à esfera privada inviolável da liberdade e da propriedade dos cidadãos. Os únicos “desvios” possíveis são aquelas ações estatais indispensáveis precisamente efetuadas com intuito de preservar os direitos e as liberdades dos membros da comunidade. Viver em um regime democrático não é sempre fácil. Os mais céticos e “sábios” tendem normalmente a acreditar no poder e na força da maioria, substituindo a justiça e a razão por aquela. É verdade que o princípio da legitimidade dos governos se assenta no reconhecimento de que o poder de governar depende de aquiescência dos governados, que a maioria é menos provável de estar errada e, principalmente, de que um governo apoiado pela maioria dos cidadãos provavelmente será obedecido. Mas isso não é suficiente. A democracia precisa também oferecer a toda comunidade a segurança de que a lei e os governos não serão arbitrários em seus comandos, ou seja, de que ninguém será “fuzilado” hoje por ter realizado ontem um ato que a lei permitia, como ocorre nos regimes ditatoriais. Toda atividade política — aqui obviamente incluídas as ações dos agentes políticos dos três poderes — deve ser imperiosamente pautada pela busca da justiça, mediante o uso adequado dos instrumentos mais racionais. A principal virtude da democracia é propiciar as condições necessárias para que as ideias de todos os agentes sociais se desenvolvam, transformem-se e circulem livremente entre os cidadãos, a quem cabe fazer as escolhas fundamentais numa sociedade livre. Isto tudo para que aqueles possam sempre afirmar que vivem numa sociedade em constante mutação, na qual são eles, de fato e de direito, os protagonistas da vida social. 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 21


A QUEM INTERESSA UMA JUSTIÇA PENAL SOBRECARREGADA? Rogério Greco

Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais

Foto: Divulgação Rio TVA

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ma democracia deve preservar os direitos de liberdade dos cidadãos. Um regime ditatorial, ao contrário, edita leis com finalidade justamente oposta: limitar, segundo o arbítrio do detentor do poder, essa liberdade. No Brasil, ao que parece, vivemos uma democracia. No entanto, a política criminal vigente é a mesma adotada nos países em que prevalece o regime ditatorial. A todo instante surgem novas leis penais proibindo ou impondo determinados comportamentos, sob a ameaça de uma sanção de natureza penal. Vivemos hoje, infelizmente, uma doença crônica, chamada inflação legislativa. Se, com a graça de Deus, já não falamos mais em inflação econômico-financeira, esse modelo de inflação foi importado pelo Direito Penal. Existem tantas leis penais que se cria, paradoxalmente, uma sensação de anomia, ou seja, de ausência de leis. A Justiça Penal já não consegue cumprir seu papel de julgar os fatos criminosos. Dessa forma, ficam parados processos sobre fatos graves, como aqueles que apuram outros cometidos por organizações criminosas, crimes contra a ordem econômica e financeira, crimes contra a Administração Pública (corrupção, concussão, etc.). Recentemente, em 5 de maio de 2010, surgiu a Lei nº 12.234, com a finalidade de acabar com a chamada prescrição retroativa, ou seja, aquela que era contada da data do cometimento do fato até a data do efetivo recebimento da denúncia. Essa prescrição conduzia à extinção da punibilidade de fatos que, normalmente, não eram considerados tão graves, a exemplo das lesões corporais de natureza leve, crimes contra a honra, crimes contra o patrimônio, etc. Mais que isso, liberavam os recursos limitados do aparelho estatal para enfrentar os crimes mais graves. A nova Lei conduzirá a um número enorme de condenações, gerando uma situação de calamidade no sistema prisional, se é que isso ainda seja possível, uma vez que esse sistema já se encontra em níveis insuportáveis. A grande pergunta é: a quem interessa uma Justiça Penal sobrecarregada? A quem interessa


a multiplicação dos processos na fase da execução da pena? Essa multiplicação de processos de pequena importância, que não mais prescreverão, sobrecarregará a Justiça Penal de tal maneira que os processos entendidos como mais importantes acabarão sendo deixados de lado ou, quando menos, dividirão os meios humanos e materiais do aparelho estatal, já escassos. Quanto mais processos, mais morosidade. É hora (na verdade já passou da hora) de mudar a política criminal típica de um movimento de lei e ordem, de Direito Penal Máximo. É hora de adotar outra, de natureza minimalista, elegendo prioridades, punindo os fatos que impliquem graves lesões aos bens jurídicos e deixando que os outros ramos do ordenamento jurídico — a exemplo do civil, do administrativo, do tributário, etc. — cuidem daqueles que não possuam a importância exigida pelo Direito Penal. O Direito Penal tem sido seletivo para atingir apenas a parcela miserável da população. É só visitar o sistema prisional a fim de saber o percentual de presos que pertencem à classe média ou à classe alta. O número será ridículo. No entanto, pergunta-se: haverá frequência de crimes de corrupção e de sonegação? Contudo, salvo raras exceções, somente o pobre é processado e preso. É hora de mudar. Precisamos eleger prioridades, e uma delas deve ser o combate à corrupção. Os corruptos são, na verdade, genocidas. São exterminadores de crianças, de doentes, de idosos. A patologia deles (nunca se saciar com o que têm) leva ao caos social, enquanto o corrupto, sorrindo, simpático e com seu colarinho branco, continua a posar com ar hipocritamente austero de homem de bem, insensível ao mal que causa. A meu ver, a nova Lei nº 12.234, de 5 de maio de 2010, longe de resolver problemas, sobrecarregará o sistema prisional com fatos de pouca importância. Além disso, aumentará os processos que deverão ser julgados pelos Tribunais Estaduais e Superiores. Dessa forma, pergunta-se, mais uma vez: a quem interessa uma Justiça Penal sobrecarregada?

O Direito Penal tem sido seletivo para atingir apenas a parcela miserável da população. É só visitar o sistema prisional a fim de saber o percentual de presos que pertencem à classe média ou à classe alta. O número será ridículo.

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A LEI DA FICHA LIMPA E A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA Leonardo Pietro Antonelli

Advogado Vice-Diretor da Escola Judiciária Eleitoral do TRE/RJ

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caba de entrar no ordenamento jurídico a Lei Comple­ mentar 135, tendo como pano de fundo os casos de inelegibilidade a que alude o parágrafo 9º, do artigo 14, da Constituição da República. Objetiva-se proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. Editada com amplo respaldo da opinião pública, até porque resulta de projeto de lei de iniciativa popular com mais de dois milhões de assinaturas, e maciço apoio dos meios de comunicação, traduziu-se num exemplo inimaginável na história política brasileira e digna de todos os aplausos. Uma verdadeira mudança de paradigma, em que o Congresso Nacional, às vésperas de uma eleição, “corta a própria carne”. Trata-se de valoroso esforço daqueles que buscam a ética na política, a transparência e a melhora da qualidade da representação do poder popular em todas as esferas governamentais e legislativas. A grande novidade introduzida pela LC 135, sem dúvida, é a inelegibilidade daqueles que tenham contra si determinadas condenações, não apenas na seara criminal, mas em várias outras, desde que proferidas por órgão judicial colegiado e independentemente de trânsito em julgado. A ideia central dessa diretriz consiste no fato de que, diante de uma decisão qualificada, emanada de um coletivo de juízes, já não se poderia invocar, na plenitude, a presunção de inocência. Eis o ponto controvertido que desaguará a partir desta semana nos Tribunais Regionais Eleitorais, por força do início do julgamento de milhares de impugnações aos registros de candidaturas de “Fichas-Sujas”. Registre-se que as consultas formuladas ao TSE versando sobre a imediata aplicação do novo diploma às eleições de 2010, a incidência retroativa em face daqueles candidatos condenados por um colegiado antes da edição da lei etc. ainda

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não foram disponibilizadas, sendo certo que nenhum operador do Direito teve acesso aos votos, por força, inclusive, do recesso vigente naquele tribunal superior durante o presente mês. O que se tem são 8 medidas liminares, algumas deferidas, todavia focadas em questões processuais, peculiares dos respectivos casos concretos. Pois bem. Para o STF, o princípio da presunção de inocência é uma cláusula pétrea (art. 60, §4º, IV c/c art. 5º, §2º, da CF), como salientou o Ministro Celso de Mello, em magistral voto proferido há cerca de dois anos por ocasião do julgamento da ADPF 144-7/DF, proposta pela AMB, através do seu combativo e corajoso Presidente Mozart Valladares, o primeiro a levantar a bandeira de afastar-se a exigência do trânsito em julgado para fins de inelegibilidade. Restou assente no voto condutor que “não existe qualquer possibilidade do Poder Público, sem prévia decisão condenatória irrecorrível, resultar a suspensão temporária da cidadania, em especial o direito de ser votado.” A exigência da coisa julgada é de grande importância para a preservação da segurança jurídica, mormente quando o próprio STF reconheceu no citado precedente que um terço das condenações colegiadas é, por ele, invertido em absolvições. O respeito a este direito fundamental não transgride a exigência de probidade administrativa e moralidade para o exercício do mandato eletivo. Bobbio assevera que, quando dois princípios são igualmente aplicáveis ou conflitantes, ocorre uma antinomia de valores, que in casu é meramente aparente, posto que sanável mediante ponderação. A Suprema Corte, ponderando, optou por privilegiar a segurança jurídica, que é inegavelmente valor constitucional a ser preservado. Segundo o STF, o princípio da presunção de inocência “serve como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer


Foto: Arquivo Pessoal

medidas que afetem ou que restrinjam, seja no domínio civil, seja no âmbito político, a esfera jurídica das pessoas em geral”. Poder-se-ia argumentar que à época do julgamento da ADPF inexistia lei própria dispondo acerca da decretação de inelegibilidade antes do trânsito em julgado, todavia tal argumento não resiste a uma análise constitucional. Com efeito, no leading case julgado pelo STF sobre a constitucionalidade do IPMF, ficou assentado que todos os demais princípios constitucionais dispostos fora do art. 5º, da CF, que trata dos direitos e garantias individuais, não podem ser abolidos nem por emenda constitucional superveniente, o que implica afirmar que toda e qualquer modificação à Carta Magna que pretendesse afastar ou, até mesmo mitigar progressivamente — à medida que se sucedem os graus de jurisdição — a presunção de inocência deveria ser considerada inconstitucional por ofensa a uma cláusula pétrea. Logo, se a emenda constitucional poderia ser, em tese, inconstitucional, o que o STF dirá em relação a uma lei complementar? Impõe-se considerar que seria um grande equívoco remediar a falta de ética na política com a supressão de garantias fundamentais, o que conduz à conclusão, parafraseando o Ministro Dias Toffoli, na recentíssima liminar por ele concedida, de que “a matéria exige reflexão, porquanto a Lei da Ficha Limpa apresenta elementos jurídicos passíveis de questionamentos absolutamente relevantes no plano hierárquico e axiológico”. Por outro ângulo, não se pode olvidar que, diante da busca de critérios para assegurar ao processo eleitoral e ao próprio sistema representativo a transparência e a probidade indispensáveis à permanente construção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, o grande e soberano juiz, em última análise, há de ser... o eleitor. É a ele, e a ninguém mais, que deve ser assegurado

o direito de escolher aqueles que, em seu nome, exercerão o poder popular de que trata o parágrafo único do artigo 1º da Carta Republicana. E a esse direito de escolha deve estar atrelado, indissoluvelmente, um outro que lhe é complementar e não menos importante: o da informação plena sobre a vida pregressa dos candidatos. Com efeito, aquele que postula cargo eletivo de representação não pode se furtar de ter integralmente submetido à exposição pública seu comportamento individual, profissional e social. E é dever da Justiça Eleitoral buscar os mecanismos necessários para que, no momento do voto, o eleitor possa ter à disposição todos os elementos de informação necessários ao exercício pleno, responsável e consciente de sua manifestação de vontade. Tendo o eleitor ciência da conduta pregressa daqueles que lhe disputam o voto, vale dizer, sabendo quais deles se mostraram ímprobos, aéticos, desonestos, já não mais haverá que se falar em restrições, a tal título, ao registro de candidaturas, porque a inelegibilidade acabará sendo decretada pelo próprio cidadão. Não há forma mais legítima de censura do que o voto. Entretanto, enquanto esse amadurecimento eleitoral não vem, enquanto não se vislumbra a possibilidade de inserir na tela de votação a lista de processos a que o candidato responde, outra alternativa não restará senão o enfrentamento da constitucionalidade da LC 135 pelos tribunais, especialmente o STF, reforçando o predominante (e preocupante) ativismo judicial, fruto do vácuo do nosso sistema representativo, que faz com que o Poder Judiciário fique, cada vez mais, no centro do sistema político. Esta ampliação de competências superlativas, tão bem conceituada por Oscar Vilhena como supremocracia, colocará, mais uma vez, o guardião-intérprete da Constituição no centro das tensões entre a vontade popular originária e a derivada. Que Deus o ilumine. 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 25


Crise e desafios à Constituição reflexões acerca da relação entre Constituição, Povo e Estado a partir da discussão de uma Constituição para a Europa Menelick de Carvalho Netto

Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG Professor de Direito Constitucional e Teoria da Constituição dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UnB

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proposta de uma Constituição para a Europa acendeu um intenso debate que possibilitou o levantamento de questões centrais não só para a Teoria da Constituição e para os especialistas em Direito Constitucional, mas para a vida cotidiana de todo aquele que se veja ou pretenda se ver como cidadão de uma comunidade política institucionalizada com base no respeito aos direitos de igualdade e liberdade recíproca e respectivamente reconhecidos a todos e a cada um de seus membros. Seria possível hoje uma Constituição sem povo ou um povo sem Constituição? Seria possível hoje uma Constituição sem Estado ou um Estado sem Constituição? Essas questões exigem que nos aprofundemos na relação entre a Constituição, a institucionalização da política e a efetivação dos direitos fundamentais. Viveríamos em uma época de tamanha complexidade que a ideia mesma que compartilhamos de Constituição encontrarse-ia em xeque, em crise, por não mais dar conta de articular recíproca e institucionalmente o Direito com a Política; ou, na verdade, não haveria nada de errado com o conceito por nós compartilhado de Constituição e, portanto, seria de se requerer precisamente uma férrea imposição judicial que sempre determinasse o cumprimento coercitivo da literalidade do texto constitucional como a única resposta capaz de coibir a recorrência de práticas inconstitucionais desafiadoras que acabariam por (des)qualificar a Constituição. Será que, de fato, estaríamos diante de enfoques alterna­ tivos excludentes entre si e que apenas um deles poderia ser

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produtivo e o outro necessariamente enganoso? Ou haveria uma outra forma de abordar o problema da efetividade das normas constitucionais, mais complexa, que ultrapassasse a simplicidade dessas duas perspectivas dicotômicas e excludentes, revelando que ambos os enfoques originalmente propostos seriam por demais estreitos e limitados e a própria dicotomia uma armadilha conceitual a ser superada para que novos horizontes possam se abrir? Iniciemos, portanto, por trabalhar um pouco a hipótese da crise. Contra aqueles que caracterizam a nossa época como um tempo de crise, acredito perfeitamente cabível pedir-lhes que se indaguem se são capazes de se recordar de qualquer período de suas vidas que não fosse marcado pelo reconhecimento de crises em curso. Devemos ter presente que vivemos em uma sociedade moderna, uma sociedade complexa e em permanente crise; pois, ao lidar racionalmente com os riscos da sua instabilidade, ela faz da própria mutabilidade o seu moto propulsor. A crise, para esse tipo de organização social, para essa móvel estrutura societária, é a normalidade. Ao contrário das sociedades antigas e medievais, rígidas e estáticas, a sociedade moderna é uma sociedade que se alimenta de sua própria transformação. E é somente assim que ela se reproduz. Em termos de futuro, a única certeza que dessa sociedade podemos ter é a sua sempre crescente complexidade. Portanto, a primeira alternativa, para ser aceitável, requer matizes, pois tudo o que é permanente em uma sociedade


como a nossa é mutável; ou seja, é capaz de incorporar mudanças para garantir a sua permanência, de adquirir novos sentidos no devir de gramáticas de práticas sociais cada vez mais complexas. E esse processo é sempre doloroso para nós, visualizado como crise, instabilidade. Desse modo é que a crise da Constituição pode e deve ser enfocada, mais precisa e rigorosamente, não como uma crise da Constituição tout court, mas como uma crise dos excessos de expectativas nela depositadas como integrantes de uma determinada concepção histórica de Constituição não mais sustentável em face da comprovação vivencial de suas implausibilidades. Do outro lado da dicotomia inicial, a segunda alternativa é, na verdade, ao meu ver, apenas a reação emocional e magoada à árdua lição que o excesso de expectativas depositadas no Estado Social e em sua Constituição programática vivencialmente nos ensinou. Se o Direito não é capaz de regular nem a sua própria aplicação, ou seja, se uma norma não se autoaplica e, ao contrário, sempre requererá a mediação do intérprete e a cuidadosa análise da situação concreta em que se pretende a sua aplicação,1a tentativa do Direito de colonizar a vida, de regular através de leis gerais e abstratas, de antemão, toda a complexidade da vida, fragiliza ainda mais o Direito. A Constituição canaliza e viabiliza a democracia, mas se espera-se que ela, unicamente por seu texto normativo, possa substituir, apenas a título de exemplo, o tratamento político dos problemas políticos e o cuidado econômico das questões econômicas por imperativos constitucionais cogentes que dispensem o jogo democrático e a condução concreta de políticas econômicas e sociais, terminar-se-á por pagar o preço do incremento da desestima constitucional a corroer toda a sua

potencial força normativa e a gerar a ineficácia de suas normas, produzindo, na prática, efeitos opostos aos almejados. Maurizio Fioravanti, ao reconstruir a história semânticoinstitucional do termo “Constituição”, verifica que, ao contrário do que fez a tradição, não mais podemos opor como domínios antitéticos a ideia de “Constituição” à de “democracia” ou “soberania popular”, pois o constitucionalismo só é efetivamente constitucional se institucionaliza a democracia, o pluralismo, a cidadania de todos, se não o fizer é despotismo, autoritarismo; bem como a democracia só é democrática se impõe limites constitucionais à vontade popular, à vontade da maioria. Se assim não for, estaremos diante de uma ditadura, do despotismo, do autoritarismo.2 Certamente a manipulação estratégica do arcabouço constitu­cional é sempre possível. Na Teoria da Constituição clássica, foi exatamente para enquadrar esse tipo de embuste histórico que Karl Loewenstein, na sua classificação ontológica, criou a categoria das constituições por ele qualificadas como “semânticas”. Essa categoria foi pensada por Loewenstein para agrupar as constituições que traíssem o sentido originariamente atribuído a essa invenção moderna ao se instituírem e funcionarem não mais como uma garantia dos cidadãos contra os eventuais ocupantes do poder institu­ cionalizado; mas, ao contrário, como uma garantia dos deten­ tores do poder contra os cidadãos.3 Para a atual Teoria da Constituição, essas experiências históricas traem o próprio constitucionalismo e dele buscam abusar em proveito próprio, por isso mesmo, de modo algum podem ser consideradas experiências constitucionais. O atual debate acerca da adoção de uma Constituição para a Europa é diretamente afeto ao problema do deficit de 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 27


legitimidade da organização jurídico-política da União Europeia. Por isso mesmo, iniciaremos a nossa abordagem da questão pelo aspecto da possibilidade de uma Constituição sem Estado, para, em seguida, discutirmos a também necessária relação entre Constituição e povo, muito embora, no processo de apronfundamento do tema, já tenhamos que proceder à reflexão sobre a desnaturalização dos conceitos de povo, de nação e de Estado, vendo-os em sua profunda correlação política interna. Essa é uma discussão que já não é mais tão nova e sobre a qual se pode contar hoje com uma significativa literatura acumulada. Ela vai encontrar densificação doutrinária pela primeira vez em um sofisticado artigo escrito por Dieter Grimm, em que ele busca desenvolver os fundamentos do parecer da Corte Constitucional Federal da Alemanha a favor da ratificação do Tratado de Maastricht.4 Em síntese, a Corte Constitucional, enquanto guardiã dos direitos fundamentais dos cidadãos alemães, somente opinara favoravelmente à ratificação do Tratado porque ele não significaria de modo algum a adoção de uma Constituição para a Europa, não colocando em risco, assim, a cidadania do povo alemão. Dieter Grimm inicia seu artigo recuperando a distinção clássica entre as constituições e os tratados internacionais. As constituições fornecem fundamento jurídico aos Estados, juridicizam a política; as organizações internacionais, por sua vez, encontram seu fundamento jurídico nos tratados de direito internacional. Essa distinção, antes pacífica, agora passa a ser problemática diante de instituições como a União Europeia, uma organização internacional fundada em um tratado internacional celebrado por Estados soberanos que delegaram parcelas de soberania à União. Como afirma Grimm, nem por isso ninguém afirma existir um Estado europeu. Ao contrário, tema recorrente é o da crise dos estados nacionais. No entanto, a todo o momento fala-se da Constituição da União Europeia, muito embora ninguém pense que a União seja um Estado. Por um lado, a doutrina de Direito Internacional, ao comentar os tratados internacionais sobre os quais a existência da União se assenta, considera-os a Constituição da UE. Também a Corte de Justiça Europeia toma as suas decisões fundando-se no que denomina “Constituição da União Europeia”. Por “Constituição da União”, o Tribunal entendia precisamente o tratado que dava base àquela organização supranacional de Estados nacionais, nele fundamentando suas decisões sobre o Direito europeu. Por outro lado, percebiase a insuficiência em termos de legitimidade da base pactual e lamentava-se a ausência de uma Constituição europeia. Assim é que, bem antes da celebração do Tratado de Maastricht, vamos encontrar um movimento forte em prol da adoção de uma Constituição Federal para a União Europeia.5 Como salienta Dieter Grimm, havia assim duas perspectivas diversas; ou a Constituição preexistiria na forma de tratado ou esse tratado não seria capaz de satisfazer as pretensões passíveis de serem levantadas diante de uma Constituição. No entanto, para as duas perspectivas, em que pese a divergência teórica quanto à existência da Constituição, estavam de acordo com a hipótese fundamental de que a União Europeia, embora não sendo um Estado, seria capaz e precisaria de adotar uma Constituição. 28 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

Ao ver de Dieter Grimm, é no debate político sobre o tratado de Maastricht que se descobre, a um só tempo, por um lado, o quanto a integração europeia já avançara e era, ainda que não houvesse sido totalmente percebida pela política e pela opinião pública, determinando as políticas nacionais e consolidando o direito comunitário e a jurisprudência da Corte de Justiça Europeia; e, de outro lado, o deficit de democracia presente na arquitetura institucional da União, que a partir de então domina o debate europeu. Muito embora os cidadãos dos Estados membros tenham os seus interesses afetados pelos da União Europeia e se encontrem submetidos às suas normas jurídicas, a influência do Parlamento Europeu, por eles diretamente eleito, sobre essas normas é muito pequena. O órgão denominado Parlamento Europeu quase nada tem a ver com a visão que o europeu em geral tem do parlamento enquanto órgão legislativo e de controle político do Executivo, do governo. Dieter Grimm ressalta que, na arquitetura institucional da União Europeia, o Parlamento é, de longe, o órgão de menor peso específico, as decisões europeias, inclusive as de tipo legislativo, são determinadas pelo Executivo; mesmo depois do tratado de Maastrichtt, o Parlamento continua limitado ao direito de veto. Nesse quadro institucional, a legitimidade democrática das normas europeias é indireta; ela é devida à legitimação democrática dos governos nacionais. Pois são esses governos nacionais que compõem o Conselho, o verdadeiro centro decisório da União Europeia. Desse modo é que essa discussão perpassou também a aprovação dos tratados de Amsterdã e de Nice. Revelados os termos do dilema, Dieter Grimm faz um estudo em profundidade do constitucionalismo, contrapondo-o ao direito internacional, demarcando a distinção entre a Constituição e o tratado internacional exatamente na capaci­ dade da primeira de produzir legitimidade. O cerne do constitu­­cionalismo, portanto, seria essa afirmação básica e implausível segundo a qual constituímos uma comunidade de pessoas reciprocamente livres e iguais, regidas por leis de nossa própria autoria. A ideia de uma cidadania, de um povo. Um povo que assume o seu próprio governo, a sua própria organização. A ideia de povo é uma ideia básica à Constituição. É claro que Grimm é um autor sofisticado e não vai trabalhar essa questão como Carl Schmitt o faz, por exemplo. O povo, para Grimm, não é um dado, é um constructo, uma construção social, que possibilita, inclusive, pessoas diferentes, formas de vida diferentes, através dos mecanismos constitucionais, conviverem, serem iguais na sua diferença, se respeitarem. A Constituição, distinguindo-se das demais normas do ordenamento que nela encontram fundamento, estabelece o consenso fundamental de uma sociedade acerca dos princípios de sua convivência e da regência de seus conflitos; obrigando sujeitos heterogêneos em termos de convicções e de interesses, possibilitando assim a resolução pacífica dos conflitos e facilitando-lhes a aceitação das derrotas. Assim é que, ao dilatar no tempo a validade a longo prazo dos fundamentos do agir político e das decisões públicas necessárias a curto prazo, ela confere ao processo político uma


Na medida em que não existe um povo europeu, haveria o risco de órgãos autenticamente constitucionais se autonomizarem, de forma incontrolável, correndo-se o risco de os graves problemas burocráticos já existentes nos estados europeus se reproduzirem em escala muito maior na Europa como um todo.

estrutura de direção, de orientação, para os atores e a opinião pública, garante estabilidade na mudança e libera a política da constante necessidade de discutir seus fins e procedimentos de integração. Paradoxalmente, no entanto, a Constituição não gera por si só essas prestações; para realizá-las, ela também se alimenta de pressupostos sociais que ela mesma, no entanto, não tem como garantir, que dependem, em última instância, do próprio bom funcionamento da política como democracia, por um lado e, por outro, do Direito, enquanto efetividade do pluralismo e aberturas inerentes aos direitos fundamentais. Todo esse trabalho de profunda argumentação a respeito da distinção atualmente viável entre tratados e constituições que Grimm vem desenvolvendo ao longo do artigo o conduz a produzir uma sólida defesa do parecer da Corte Constitucional Federal da Alemanha a favor do Tratado de Maastricht. No cerne da argumentação encontra-se o risco de um Parlamento com as competências próprias do órgão para os europeus, ou seja, aquelas típicas de legislação e de controle do governo no regime parlamentarista, se tornar autônomo em relação àqueles que deveria representar, colocando também em risco a soberania, os direitos fundamentais, do cidadão alemão. Na Europa ainda não haveria uma esfera pública em que um debate público acerca das decisões sobre a vida em comum do europeu abrisse a circulação de um fluxo comunicativo de sorte a possibilitar a formação de uma opinião pública consistente sobre as leis acolhidas e os direitos reconhecidos que permitisse reconhecer a existência de um povo europeu. Ainda não haveria uma arena comunicativa europeia de solidariedade cidadã que possibilitasse a adoção de uma Constituição. A Constituição, exatamente em razão desse aspecto de mediação recíproca entre a autonomia privada e a autonomia pública dos cidadãos, requeria a pré-existência das mediações necessárias à representação da vontade popular, de tal sorte que aqueles que a defesa da adoção de uma Constituição

representaria um risco para a cidadania dos estados nacionais. Para Grimm, portanto, o Tratado seria constitucional, na leitura da própria Corte Constitucional Federal Alemã, já que mantinha a estrutura originária daquela organização política decorrente de um tratado, não instituía um Estado, exatamente por não possibilitar a produção direta de legitimidade nas suas próprias instituições. A legitimidade dessa organização política decorreria dos estados nacionais dela integrantes, como em qualquer outro tratado. O Conselho, responsável pela condução dos negócios da Europa, exerce também competências legislativas. O Parlamento Europeu, votado pelos cidadãos integrantes dos estados europeus, tem apenas um poder de restrição, de veto. Na medida em que não existe um povo europeu, haveria o risco de órgãos autenticamente constitucionais se autonomizarem, de forma incontrolável, correndo-se o risco de os graves problemas burocráticos já existentes nos estados europeus se reproduzirem em escala muito maior na Europa como um todo. Por isso, a Corte Constitucional Alemã defendeu o Tratado de Maastricht contra a ideia de uma Constituição, sob o argumento de que a soberania do povo alemão poderia ser ameaçada pela possibilidade de autonomização desses órgãos supranacionais. A função da Constituição é precisamente possibilitar a legitimação da Política e a efetividade das normas gerais e abstratas do Direito, ou seja, a articulação entre a política e o Direito. Através dos procedimentos jurídicos, a tomada de decisão, a política, é canalizada por procedimentos jurídicos, adquirindo assim legitimidade. Por outro lado, o Direito moderno, enquanto conjunto de normas gerais e abstratas, através da imposição de sua observância coercitiva pelo aparato estatal, ou seja, pela política na sua forma moderna, ganha efetividade. Jürgen Habermas, acolhendo todo o profundo estudo de Dieter Grimm, formula a indagação se, precisamente em razão de toda a distinção trabalhada por Grimm, que aponta para a 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 29


Na verdade, um debate como esse certamente desperta a nossa responsabilidade para com a construção de nossa própria cidadania, porque, ao contrário da Europa, não temos que discutir se temos ou não uma Constituição. Temos uma Constituição e, inegavelmente, temos Estado.

necessidade de uma constituição para a instituição de um povo, a Europa não deveria acolher uma estrutura organizativa para a União, capaz de articular política e direito, capaz de produzir legitimidade, de gerar um povo europeu? Habermas defende que as condições objetivas para tanto se encontrariam em condições de maturação, faltando o reforço institucional. Para Habermas, a Europa, por se fazer, precisa se transformar em um Estado federal supranacional e se dotar de uma constituição legitimada pelo pronunciamento popular. Para ele, construir a Europa, forjar um povo europeu, significa contrapor um modelo de civilização fundado na política ao modelo ancorado exclusivamente no mercado que vem se impondo em todo o mundo como se a sociedade hipercomplexa de hoje pudesse ignorar a dimensão dos direitos e da cidadania.6 Na mesma linha de argumentação, Etienne Balibar havia escri­to, em colaboração com Immanuel Wallerstein, e publi­ cado já em 1988 a obra “Race, nation, classe: les identités ambiguës”, em que, contra os discursos neonazistas, promove a deseontologização do conceito de nação, demonstrando seu vínculo na modernidade com o projeto político-estatal, com o projeto de dominação político-juridica. O povo aparece aqui como o resultado de um projeto político bem sucedido ou como a aspiração à autonomia político-jurídica, como um projeto de Estado. Balibar tem contribuído para a discussão aplicando seus desenvolvimentos teoréticos acerca do conceito de nação diretamente ao debate inaugurado pela posição eurocética de Dieter Grimm, de um lado, e pelo europeísmo convicto de Habermas, de outro, com uma série de artigos mais recentes, agora reunidos em um volume.7 A reflexão sobre a questão hoje é imensa, envolvendo a contribuição de autores do porte de Alain Touraine, Claus Offe, Luigi Ferrajoli, Giacomo Marramao, Alessandro Pizzorno e Philippe Schmitter e tantos outros. O mais relevante é que no cerne da discussão acerca de uma Constituição para a Europa, ou da possibilidade de uma Constituição sem Estado ou de uma Constituição sem povo, 30 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

abre-se um amplo espectro de possibilidades que delineiam não somente uma Europa possível, mas a reescrita de muitos dos vocábulos centrais do léxico político-constitucional da modernidade: soberania e Estado, Constituição e poder constituinte, Direito e direitos. Além, é claro, do impacto doutrinário que uma revisão conceitual do significado da que se encontra em curso exerce sobre o direito constitucional em todos os lugares, o que essa discussão poderia ter a ver diretamente conosco e com a nossa história constitucional? Nossa própria história institucional e como nação, como povo, é bastante peculiar. Tivemos formalmente uma Constituição muito antes de sermos ou de nos constituírmos como uma nação. A história do Brasil revela isso claramente. Há um autor, extremamente interessante, Ilmar Rohloff de Mattos, que escreveu uma obra intitulada “O Tempo Saquarema”, de leitura obrigatória para quem pretende conhecer um pouco mais nossa história constitucional no sentido mais profundo da expressão. Como demonstra Rohloff de Mattos, foi somente no Segundo Reinado, após a maioridade de Pedro II, que conseguimos internalizar a ideia de pertinência a uma nacionalidade, a brasileira.8 A fragilidade institucional de órgãos constitucionais de cúpula em face da hipertrofia do Executivo é recorrente em nossa história jurídico-política. A autonomização funcional desses órgãos de cúpula é um risco concreto que temos que enfrentar. E a atual doutrina constitucional, precisamente em razão de revisões como as que vimos, nos habilita a enfrentá-lo. Apenas a institucionalização de espaços públicos, media­ tizados pelo reconhecimento da igualdade e da liberdade de todos os co-cidadãos, pode contribuir para a formação dessa identidade constitucional, a um só tempo, abstrata e solidária. Abstrata posto que universal, aberta, pois ela deve ser capaz de permanentemente incorporar as diferenças existentes e que venham a se tornar visíveis a partir das lutas por reconhecimento dos mais distintos grupos, reconhecendo-as como expressões


constitucionalmente garantidas de liberdade na igualdade solidária da cidadania. Como Habermas bem argumenta, isso se torna mais factível no terreno institucional que as constituições possibilitam. No entanto, o aparato institucional por si só, como salienta Dieter Grimm, não basta, há o risco de sua autonomização. Temos que resgatar nossas melhores tradições constitucionais, repensá-las e mesmo reinventá-las, ou, para dizer como Giácomo Marramao, referindo-se à democracia, arrancá-las do desvio em que são reduzidas a “um sistema de reprodução das oligarquias separado das formas de vida” dos dois lados do Atlântico. Certamente, o raciocínio de Grimm não é simplista, é rico e complexo; mas, em razão dos seus próprios fundamentos, podemos pensar e analisar a conclusão a que chega, somente um espaço institucional constitucionalmente mediatizado pode gerar cidadania, gestar povo. Como essa tensão entre o respeito a todos e a um governo que é das leis, que é da Constituição. Um Presidente que se submeta às leis, que não ocupe o lugar da soberania popular, como se pudesse encarná-la, que reforce as instituições como o Congresso e próprio Supremo, deles cobrando que exerçam seus papéis constitucionais. Esse é o desafio posto a todos nós. Um Presidente que não infrinja recorrentemente seus limites constitucionais. Um Congresso que efetivamente não desconheça a centralidade de suas competências constitucionais, buscando ocupar exatamente o centro do processo de formação da opinião pública, de sorte a permitir a todos nós nos considerarmos co-autores das leis que nos regem. Um Supremo Tribunal Federal que não continue a permitir, por exemplo, a privatização do processo legislativo, tomado como prerrogativa pessoal do parlamentar e não como garantia do próprio regime democrático. Imagine, qual o significado do seu voto nessa eleição que acabou de passar, se você votou na minoria e a minoria pode ser tratorada pela maioria? Se as normas regimentais não impedem a ditadura da maioria, se são apenas normas interna corporis, ou seja, da eventual maioria? Elas não interessam a nós como povo. Esse é o risco que o direito constitucional tem que enfrentar hoje. Palavras gordas como povo, democracia, sabemos, hoje, são manipuladas, são manipuláveis, e é preciso preservar a pluralidade e a abertura da identidade constitucional.9 Na verdade, um debate como esse certamente desperta a nossa responsabilidade para com a construção de nossa própria cidadania, porque, ao contrário da Europa, não temos que discutir se temos ou não uma Constituição. Temos uma Constituição e, inegavelmente, temos Estado. O problema continua a ser, portanto, o do reforço institucional, o da conquista de credibilidade institucional, o da não-autonomização privatizante do público, sobretudo nas esferas mais altas dos órgãos constitucionais. O risco tornou-se claro, há a possibilidade permanente de que os detentores do poder usem-no em proveito próprio, de eles se tornarem autônomos em relação àqueles a quem deveriam prestar contas e de contra eles operarem, por isso mesmo as constituições e o direito constitucional foram inventados.

As constituições, no entanto, como bem salienta Dieter Grimm, não têm como garantir a si próprias, elas não podem obrigar à cidadania. No próprio Brasil, portanto, pode haver o risco recorrente de autonomização dos órgãos constitucionais máximos. Pode haver, sim, uma Constituição sem povo! O preço é o da redução da Constituição a uma simples fachada, o da sua incapacidade de produzir legitimidade, gerando, ao contrário, descrédito institucional e anomia. A meu ver, o grande desafio que a nossa época nos coloca, tanto no Brasil quanto na Europa, é o da reconstrução de uma Teoria da Constituição que seja capaz de enfrentar esses riscos de forma consistente, sem aniquilar a própria conquista evolutiva consubstanciada na invenção da constituição formal, ou seja, apta a superar a pequenez da doutrina privatista do Estado Liberal e a pretensão excessiva da doutrina constitucional do Estado Social, ao não acolher um conceito de Constituição como uma simples barreira ao Estado e ao recusar igualmente a pretensão abusiva de que a Constituição possa nos dispensar da Política ao invés de canalizá-la, juridicizando a Política. É preciso, para dizer com Luhmann, procedermos ao iluminismo do iluminismo, ou, com Habermas, assumirmos levar adiante o projeto inacabado da modernidade no âmbito da doutrina e da prática do Direito Constitucional. Para esse projeto, a possibilidade de se ver os riscos é a primeira condição para o seu enfrenta­mento consistente e racional desses mesmos riscos. Este artigo é basicamente a republicação daquele que, sob o título “A Constituição da Europa”, integrou a obra organizada por SAMPAIO, José Adércio Leite. “Crise e Desafios da Constituição”. Belo Horizonte, Del Rey, 2003, págs. 281 a 289.

NOTAS Ver a esse propósito CARVALHO NETTO, Menelick. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. “Revista de Direito Comparado”, Belo Horizonte, v. 3, p.473-86, maio,1999. _______. A interpretação das leis: um problema metajurídico ou uma questão essencial do Direito? De Hans Kelsen a Ronald Dworkin. “Cadernos da Escola do Legislativo”, Belo Horizonte, n. 5, p. 27-30, 1997. 2 FIORAVANTI, Maurizio. “Constitución: de la antigüedad a nuestros dias”. Madrid: Editorial Trotta, 2001. 3 LOEWENSTEIN, Karl. “Teoria de la Constitución”. Barcelona: Ariel, 1964. 4 GRIMM, Dieter. “Una costituzione per l’Europa?” In: ZAGREBELSKY, Pier Paolo (org.). Il Futuro della costituzione. Turin: Einaudi, 1996.. 5 Cfr. O primeiro “Projeto de uma Constituição da União Europeia”, de 9 de setembro de 1993, é apresentado pelo Comitê Institucional do Parlamento Europeu e revisto em 10 de fevereiro de 1994, e, sob essa forma, objeto no mesmo dia de um debate parlamentar que culminou na “Resolução para a constituição da União Europeia”. 6 HABERMAS, Jürgen. “Uma constituição para a Europa? Observações sobre Dieter Grimm” in A constelação pós-nacional: ensaios políticos. São Paulo: Ed. Littera Mundi , 2001. _________ “A Europa em transição” in Era das transições. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 2003. _________ A inclusão do outro. São Paulo: Edições Loyola, 2002. Capítulo IV. 7 BALIBAR, Etienne. Nous, citoyens d´Europe? Les frontières, l´État, le peuple. Paris: Éditions La Découverte, 2001. 8 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. São Paulo: Uciel, 1987. 9 Ver a propósito ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. 1

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NO PROJETO DE LEI DO NOVO CPC A VEDAÇÃO DA COMPENSAÇÃO DOS HONORÁRIOS NA SUCUMBÊNCIA PARCIAL Estefania Viveiros Advogada

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os dias atuais, torna-se indiscutível o fato de os honorários advocatícios pertencerem aos advogados que atuaram na causa e, por força do seu trabalho, apresentam natureza personalíssima e alimentar, como bem reconheceu o Supremo Tribunal Federal. Claro está também que independentemente da natureza dos honorários advocatícios — convencionais, arbitrados ou de sucumbência — eles competem aos advogados, como, aliás, bem reconhecem os arts. 22 e 23, da Lei Federal nº 8.906/94, intitulada como Estatuto da Advocacia e da OAB. A discussão posta, ainda hoje, está na possibilidade ou não de compensar os honorários advocatícios quando houver sucumbência recíproca. A predominância da aplicação dos arts. 22 e 23 da Lei 8.906/94 em face do enunciado da Súmula 306/STJ A sucumbência decorre do julgamento de pedidos procedentes em parte, restando as partes vitoriosas parcialmente. Nessa circunstância, compete ao juiz condenar no pagamento de honorários advocatícios em proporção ao êxito obtido na causa pelos advogados das partes, de acordo com o art. 20 do CPC. Isso significa dizer que cada parte arca com o pagamento dos honorários dos advogados da parte adversa. É o mesmo 32 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

raciocínio quando há a completa procedência dos pedidos, pois o réu pagará a sua condenação e, por conseguinte, o percentual condenatório referente aos honorários do advogado do autor. A diferença central, na hipótese de sucumbência recíproca, é a divisão em igual percentual em honorários para os advogados de ambas as partes. A regra é que o vencedor seja condenado ao pagamento das custas, das despesas processuais e dos honorários advocatícios, nos termos do caput do art. 20 do CPC. Contudo, há situações em que o magistrado reconhece que as partes são reciprocamente vencidas e vencedores. É o caso do autor que não obteve êxito pleno, enquanto que o réu deixou de ser condenado em algum dos pedidos. Chama-se, nesta hipótese, sucumbência recíproca, ou, utilizando-se da nomenclatura do projeto de lei do novo CPC, sucumbência parcial. Se o êxito for mínimo, quase imperceptível, descarta-se a reciprocidade entre vencidos e vencedores. Pois bem. A questão posta é a seguinte: prevê o art. 21 do CPC que, havendo reciprocidade em parte vencida e vencedora, ocorrerá compensação nos honorários entre as partes. De outro lado, os arts. 22 e 23 do Estatuto da OAB afirmam que os honorários pertencem aos advogados. Há, pois, aparentemente, conflito de normas. A solução, no entanto, é simples.


Foto: Rui Faquini

Ao interpretar o art. 21 do CPC, o STJ editou a Súmula 306, segundo a qual: “Os honorários advocatícios devem ser compensados quando houver sucumbência recíproca (...)”. Extrai-se, portanto, que o art. 21 do CPC, que embasa o entendimento da Súmula 306/STJ, prevê a possibilidade de compensação dos honorários de sucumbência, tendo como premissa o fato de que eles pertencem às partes, mas a Lei Federal 8.906/1994, por outro lado, prevê expressamente que os honorários de sucumbência pertencem aos advogados. No campo da interpretação, tem-se, em regra, que a lei posterior prevalece com relação à anterior. É o caso da Lei Federal, conhecida como Estatuto da Advocacia e da OAB, que é de 1994, ser posterior ao CPC, e ainda ser aquela específica por regulamentar os direitos e deveres dos advogados e os limites de sua ação ética e profissional no exercício da profissão advocatícia. Predomina, assim, a norma prevista no Estatuto da OAB, por ser posterior e, ainda norma especial, em relação ao CPC, afastando-se assim a antinomia existente entre as referidas normas.1 Dessa feita, conclui-se que a Lei 8.096/1994 revoga o referido diploma processual naquilo que lhe contradisser, pois a coexistência das normas só é possível se elas forem compatíveis.2

Essa seria uma solução no aspecto interpretativo da norma. Há também outros fundamentos que, por si só, afastam a possibilidade da compensação dos honorários advocatícios. Uso inadequado do instituto “compensação” e da impossi­ bilidade de realizar compensação em prejuízo de direito de terceiro (art. 380 do CC) O caput do art. 20 do CPC permite a compensação dos honorários entre as partes na hipótese de sucumbência recíproca. De acordo com o art. 368 do CC, aplica-se a compensação quando as partes são, ao mesmo tempo, credoras e devedoras, e que haja reciprocidade das obrigações.3 Ocorre que não há reciprocidade, requisito exigido por lei, na hipótese de compensação de honorários de sucumbência recíproca, por pertencer tal verba aos advogados. É que os credores da verba honorária são os advogados, enquanto os devedores são as partes litigantes. Nessa linha de raciocínio, há a compensação da dívida de terceiros, hipótese vedada expressamente pelo art. 380 do CC. É simples a elaboração dos cálculos neste caso: nada ganha o advogado pela realização do trabalho no processo, quando ocorrer sucumbência recíproca. Nada, absolutamente nada. Trabalha-se sem remuneração final por força de compensação da verba honorária, que beneficia 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 33


exclusivamente as partes, que são consideradas terceiras em relação ao seu procurador.4 Aliás, o próprio CPC trata como pessoas diferentes as partes e seus procuradores (Livro I, Título II), o que também reforça a impossibilidade de se realizar a compensação de honorários no caso de sucumbência recíproca, pelo simples fato de que a verba supostamente compensada pertence, exclusivamente, ao advogado, e não à parte que irá realizar a compensação. Daí se concluir que, com a vigência da Lei 8.904/1994, não é mais possível a aplicação do instituto da compensação por não haver a conexão subjetiva. Não há, realmente, o requisito previsto na lei quanto à necessidade de coincidência entre credores e devedores, e obrigações e créditos recíprocos na medida em que o advogado é credor da parte ex adversa da verba de sucumbência, mas em momento algum é devedor da parte. Com a compensação nesses moldes, resta clara a utilização dos honorários advocatícios de sucumbência em benefício exclusivo das partes, pois a parte autora não efetua o pagamento dessa verba ao advogado do réu; e a parte ré, da mesma forma. Nessa situação, evidentemente quem sai perdendo são os advogados, que fazem jus aos honorários de sucumbência em razão dos serviços prestados no decorrer do processo, que atualmente demora anos para terminar, e acabam sem receber nada dessa verba, aliás, um direito assegurado pelo Estatuto da OAB. Caráter alimentar dos honorários advocatícios e o art. 24 do Estatuto, que veda, sob pena de nulidade, qualquer cláusula que retire do advogado o direito ao recebimento dos honorários de sucumbência Reforça-se hoje a tese de ilegalidade na compensação dos hono­­rários advocatícios de sucumbência, quiçá a sua inconsti­ tucionalidade, o reconhecimento pelo STF da natureza personalíssima e alimentar dos honorários advocatícios5. A natureza dos honorários, por si só, afasta também a possibilidade da compensação dos honorários de sucumbência; pois, além de ser incabível o instituto, pelas razões já expostas, sua aplicação acarreta a perda do direito do advogado de receber os honorários. Ao reconhecer a natureza alimentar e personalíssima dos honorários advocatícios, aplica-se na hipótese o disposto no enunciado da Súmula 144 do STJ, que adota a preferência dos créditos de natureza alimentar, desvinculando-os da ordem cronológica a que se submetem outros créditos de natureza diversa, no tocante ao pagamento mediante precatórios. Aplica-se, também, à verba dos honorários a impenho­ rabilidade nos termos do art. 649, IV, do CPC, o que soma a impossibilidade da compensação dos honorários, por beneficiar exclusivamente as partes e, ao mesmo tempo, prejudicar os advogados por nada receberem. De mais a mais, prevê o art. 24, parágrafo 3º, da Lei nº 8.906/94, a nulidade de qualquer cláusula que retire do advogado o direito ao recebimento dos honorários de sucumbência. Nos moldes da Lei da OAB, a aplicação do instituto da compensação é vedada. É que nesta hipótese o advogado nada recebe. 34 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

Absolutamente, nada. A parte autora não paga ao advogado do réu e vice-versa. Compensam-se os débitos e créditos como se os honorários fossem das partes. Mostrou o legislador, enfim, ao editar a Lei Federal nº 8.906/1994, a importância dos honorários — independente da sua natureza, por ser uma contraprestação econômica paga em favor de profissional liberal pelos serviços técnicos por ele prestados — ao reconhecer a nulidade de toda e qualquer cláusula que retire do advogado a possibilidade do recebimento dos honorários de sucumbência. O projeto de lei do novo CPC Muitos benefícios foram trazidos pelo projeto de lei do novo CPC quanto à regulamentação dos honorários advocatícios e das despesas processuais. A seção III do projeto de lei, que regulamenta as despesas, os honorários e as multas, apresenta treze artigos sobre a matéria, sendo que apenas o art. 73, por exemplo, regulamenta treze parágrafos sobre o tema. Pois bem. O que nos interessa, em particular, é o parágrafo 11 do art. 73, que reconhece que os honorários pertencem aos advogados, adaptando-se o previsto no Estatuto da OAB ao novo CPC. Também o mesmo parágrafo traz a definição de que os honorários têm natureza alimentar, como bem reconheceu o STF e o STJ. Por fim, o referido artigo incorpora as normas previstas nos CC ao projeto de lei quando expressamente reconhece a vedação da compensação de honorários advocatícios em caso de sucumbência parcial. A propósito, cite-se o teor do art. 73, parágrafo 11, do projeto de lei do novo CPC: “Os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, tendo os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial.” Com a nova redação do CPC, eliminam-se definitivamente as incompatibilidades existentes no ordenamento jurídico e, ao mesmo tempo, reconhece-se que os honorários advocatícios, oriundos do trabalho desenvolvido no curso do processo, são sempre devidos, independentemente da sua natureza, sucumbenciais ou não, e recebíveis pela vedação da compensação em sucumbência parcial. Resta-nos, agora, aguardar a aprovação do novo CPC, neste aspecto, ou então o reconhecimento pelos tribunais brasileiros da ilegalidade da compensação dos honorários advocatícios na sucumbência parcial. NOTAS CAHALI, Yussef Said. “Direito Autônomo do Advogado aos Honorários da Sucumbência”. Repertório IOB de Jurisprudência, 1ª quinzena de outubro de 1994, nº 19/94, p. 378. 2 Ap. 70000218933, TJRS. Relator Desembargador Araken de Assis. RT 777/390. 3 RODRIGUES, Silvio. “Direito Civil – Parte Geral das Obrigações”. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 215, vol. 2. 4 Cf. CAHALI, Yussef Said. “Honorários Advocatícios”. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, pp. 844 e 845. 5 RE 470.407/DF, 1ª Turma do STF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 13.10.2006, e EREsp 724.158/PR, CE do STJ, Rel. Min. Teori Albino Zawascki, DJ 08.05.2008. 1


Termo de Ajustamento de Conduta

Jerônimo Jesus dos Santos

Procurador Federal Consultor Jurídico do Ministério do Trabalho e Emprego

Foto: Xxxxxxxx Arquivo Pessoal Foto: Xxxxxxxxx

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m dos mais atuais instrumentos de proteção dos direitos e interesses do cidadão é o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Usado há mais de um século nos países de primeiro mundo, o TAC assume papel destacado na solução dos conflitos ao admitir que órgãos públicos, cada um em sua esfera de competência, celebrem com os infratores termos de compromisso. Normativamente, o TAC surgiu no âmbito doméstico por intermédio da Lei 6.385, de 7.12.1976 (dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários — CVM). Em seu art. 11, § 5º, possibilita que a CVM, a seu exclusivo critério, caso o interesse público permita suspender, em qualquer fase, o procedimento administrativo instaurado para a apuração de infrações da legislação do mercado de valores mobiliários, se o investigado ou acusado assinar termo de compromisso. Nessa linha, a Lei 6.938, de 31.8.1981, assegura que o TAC pode ser utilizado quando o infrator se comprometer a eliminar os danos ambientais causados. Já a Lei 8.884, de 11.7.1994 (transforma o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, em Autarquia, dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica — Lei Antitruste), nos moldes do TAC, permite ao CADE promover a execução do chamado “compromisso de cessação” (art. 53 c/c arts. 25 e 60).

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O TAC aparece detalhadamente disciplinado no art. 79-A da Lei da Natureza (Lei 9.605, de 12.2.1998), que dispõe sobre sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.

O TAC aparece detalhadamente disciplinado no art. 79-A da Lei da Natureza (Lei 9.605, de 12.2.1998), que dispõe sobre sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Esse instrumento alternativo despontou também na legislação da ANS — Agência Nacional de Saúde Suplementar, com fundamento no inciso XXXIX do art. 4º da Lei 9.961, de 28.1.2000, combinado com o art. 29 da Lei 9.656, de 3.6.1998, e na Resolução de Diretoria Colegiada – RDC nº 57, de 19.2. 2001 (dispõe sobre o termo de compromisso de ajuste de conduta das operadoras de planos privados de assistência à saúde). Vale relembrar que a Lei 7.347, de 24.7.1985 (Lei da Ação Civil Pública – LACP) tornou possível a criação do “acordo” com a denominação que se popularizou como Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), com duas características: (1) a de ser um título executivo extrajudicial, e (2) somente usado pelo Ministério Público. Contudo, devido ao advento do CDC, o TAC passou a ser firmado por qualquer órgão público, com fulcro no § 6º, do art. 5º da Lei 7.347, de 1985 (LACP), introduzido pelo art. 113 da Lei 8.078, de 11.9.1990 (dispõe sobre a proteção do consumidor - CDC). Nessa trilha, a Lei 8.069, de 13.7.1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), em seu art. 211, já bem 36 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

antes previa que os órgãos públicos legitimados podiam tomar dos interessados compromisso de ajustamento de conduta às exigências legais, o qual tem eficácia de título executivo extrajudicial. É de se dizer que esse termo de compromisso, tal qual foi idealizado e inserido na legislação antitruste e do mercado de capitais, teve clara inspiração no instituto do consent decree do direito americano. Destaca-se que a maioria das ações impetradas pelo Departamento de Justiça nos EUA termina em “acordo”, que é “homologado” em Juízo e incorporado em uma ordem judicial chamada de consent decree. Tal acordo, que pode ocorrer a qualquer momento do processo, é ajustado pelas partes, que se comprometem a cessar a prática dos atos que poderiam ser considerados irregulares pelo Governo. Esse, por sua vez, compromete-se a suspender a investigação enquanto o acordo estiver sendo cumprido. Aliás, similar àquele, o “acordo” introduzido pela Lei 9.099, de 26.9.1995, nas questões de competência dos Juizados Especiais Criminais, assemelha-se, de certo modo, ao TAC, muito embora dele se distinga em alguns aspectos fundamentais: exige homologação judicial para sua validade, encontrando-se inserido no âmbito estritamente penal, enquanto as normas legais que consubstanciam o poder de polícia dos órgãos da


Administração Pública são mais abrangentes, de cunho misto, envolvendo preponderantemente matéria administrativa. Na verdade, esse termo significa o acordo ajustado entre o indiciado ou o acusado da prática de algum ilícito civil ou criminal, e a autoridade pública é encarregada de sua investigação e eventual responsabilização, caso constatada a ilicitude das atividades desenvolvidas pelo sujeito sob investigação. O TAC também está presente no Código de Ética e de Autorregulação de Associação de Classe Empresarial, ex vi, nos arts. 60 usque 65 do Código de Autorregulação para o Programa de Certificação Continuada da ANBID – Associação Nacional dos Bancos de Investimento. Na seara trabalhista, os TAC’s são compromissos assu­ midos pelas empresas/empregadores, perante o Ministério Público do Trabalho (MPT), de cessarem ou não permitirem em seus estabelecimentos situações que estejam em desacordo com a legislação trabalhista e com os direitos sociais constitu­ cionalmente garantidos. O art. 876 da Consolidação das Leis Trabalhistas — CLT, com a redação que lhe deu a Lei 9.958, de 12 de janeiro de 2000, elevou os TAC’s firmados perante o MPT à condição de título executivo extrajudicial, corroborando a previsão genérica da LACP, de maneira que o TAC é cotidianamente utilizado pelo MPT, como acima apontado, com fulcro no § 6º, do art. 5º, da Lei nº 7.347, de 1985 (LACP), com a redação conferida pelo art. 113 do CDC. Todavia, firmado o TAC, e, posteriormente constatado seu descumprimento, o MPT tem a possibilidade de promover sua execução forçada perante a Justiça do Trabalho. A propósito, há farta e pacífica jurisprudência trabalhista reafirmando a força do TAC como meio alternativo de solução de conflitos. Certo é que o TAC agiliza a efetivação da justiça. É uma medida que propicia maior rapidez e efetividade aos negócios jurídicos relativos aos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, notadamente no que respeita às relações de consumo, evitando a ação judicial de conhecimento quando os interessados estiverem de acordo quanto à solução extrajudicial do conflito. Significa dizer que o TAC é uma criação de mecanismo de garantia de interesses ou direitos transindividuais. Ele passa a tutelar plenamente o indivíduo porque não olvida sua dimensão coletiva, típica das sociedades de massa. Todavia, cabe repisar que essa tutela de interesses ou direitos não deve ocorrer apenas em âmbito judicial, mas também pode ser realizada por intermédio dos meios extrajudiciais. Valendo observar que os interesses ou direitos transindividuais são o gênero que engloba três espécies: os interesses ou direitos difusos, os interesses ou direitos coletivos e os interesses ou direitos individuais homogêneos. Portanto, a defesa coletiva no TAC pode ser exercida quando se tratar de: a. Interesses ou direitos metaindividuais ou transindividuais difusos, os de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

b. Interesses ou direitos metaindividuais ou transindividuais coletivos, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; ou, c. Interesses ou direitos individuais homogêneos, os decorrentes de origem comum. Como notamos, o TAC é um instrumento de tutela de direitos transindividuais, de modo que não deve ser celebrado sob a perspectiva do compromissário ou segundo o seu exclusivo interesse. Ora, o TAC não visa atender a fins públicos que não sejam relacionados ao descumprimento ou ameaça de descumprimento de um dever específico, sob pena de se comprometer sua força executiva extrajudicial. O TAC é a busca de soluções alternativas para corrigir transgressões legais sem que isso seja feito por intermédio de imposição de penalidades, pelo simples fato de que, com a adesão do infrator, é muito mais fácil atingir os objetivos pretendidos. Esse acordo, que ocorre dentro ou fora do processo, faz parte de uma nova política do direito sancionador, que se preocupa em encontrar soluções alternativas que atendam aos interesses do prejudicado, da coletividade, do Estado e do infrator, procurando, se possível, a solução menos gravosa a esse último e mais benéfica a todos. O TAC não só imprime celeridade à Administração Pública como permite, com eficiência, a correção de irregularidades feitas pelo acusado, e, sobretudo, viabiliza a reparação dos danos, sem ônus para a parte prejudicada. A Administração Pública, seguindo a Teoria da Despe­ nalização, não deve punir a qualquer preço, mas cuidar da retidão das condutas e formas de compensar a coletividade. Ademais, a Administração pode e deve extrair desse termo o real exemplo da Teoria da Qualidade do Serviço, porque não basta agir na legalidade, é preciso ser eficiente. O TAC, usado no interesse público, oferece vantagens e resultados positivos no campo social, econômico, financeiro e jurí­ dico, na área trabalhista, de meio ambiente, saúde, previdência, regime de habitação, mercado de capitais, etc., até entre órgãos públicos, na busca do acesso à Justiça — bem da vida. Aliás, viável no sistema prisional em crimes de menor potencial ofensivo, que enchem o Judiciário de processos e os presídios de réus. Desse modo, como meio alternativo de solução de conflitos, denotando eficiência e eficácia, o TAC é forma de justiça pactada ou consensuada, ensejando, ao mesmo tempo, o respeito aos normativos e à participação efetiva do infrator na definição das obrigações que lhe serão exigidas. Portanto, é de se concluir que prepondera o caráter educativo e pedagógico do TAC no objetivo de prevenir a ocorrência de futuras transgressões, mas isso só será alcançado quando estiver sedimentada na sociedade brasileira a ideia de que é mais econômico investir na prevenção de irregularidades ou de crimes e imediata reparação do dano do que suportar as punições aplicadas. 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 37


CNJ estuda políticas públicas para filhos de presas Entrevista: Morgana de Almeida Richa, Conselheira do CNJ e Juíza do Trabalho do TRT da 9ª Região

Foto: Glaucio Dettmar

Morgana de Almeida Richa, Conselheira do CNJ e Juíza do Trabalho do TRT da 9ª Região 38 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

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reocupada com as condições de vida dos filhos de mães detentas, a juíza Morgana Richa comanda uma iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que pretende mapear a situação dos presídios em que vivem essas mulheres e crianças, já que a Lei de Execuções Penais do Brasil determina que os filhos devam ser mantidos em berçários até os 6 meses e em creches até os 7 anos de idade. Como muitas mulheres chegam grávidas e dão à luz na prisão, a maioria dessas crianças acaba passando a infância na cadeia, submetidas à degradante e excludente realidade do sistema prisional do País. A iniciativa dará origem a um projeto que visa à implantação de regras mínimas para o encarceramento de mulheres nos estados, com base em iniciativas semelhantes promovidas pela ONU e pela OEA. De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, a população carcerária feminina no Brasil hoje é de cerca de 30 mil mulheres, grande parte com idade entre 18 e 29 anos. A maioria das prisões não possui berçários ou creches. O projeto do CNJ quer encontrar uma solução para o problema, sem interferir no bem-estar e no desenvolvimento dos filhos das detentas. Para estudar detalhadamente o assunto, o órgão designou um grupo de trabalho, coordenado pela Conselheira Morgana Richa, e formado por juízas de 6 estados (São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Bahia, Acre e Minas Gerais) mais o juiz auxiliar da presidência do CNJ, Luciano Losekann. Morgana, que também é presidente da Comissão Permanente do CNJ de Acesso à Justiça e Cidadania, falou à revista “Justiça & Cidadania” sobre suas expectativas em relação ao projeto e sobre outra iniciativa do órgão direcionado para a área de infância e juventude. É o chamado depoimento especial, que tem o objetivo de colher cuidadosamente o


testemunho de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual ou violência doméstica, sem expor ou constranger os menores. Revista Justiça & Cidadania – Como surgiu a ideia de um projeto voltado para filhos de presas? Morgana Richa – A questão do encarceramento feminino surgiu para o CNJ a partir dos mutirões carcerários, que foram e ainda são realizados em vários estados do Brasil. Deles nasceu uma verificação mais pontual de qual a situação completa em que as pessoas se encontram no sistema prisional brasileiro. Em relação às mulheres, o que se verificou durante esses mutirões é que elas se encontram numa situação bastante difícil, até porque estão em número não tão expressivo — no Brasil, representam cerca de 6% da população carcerária, sendo que na América Latina esses percentuais variam de 3% a 9%, um patamar que não é muito significativo numericamente. Também se verificou que existe muito negligenciamento, que as condições de exclusão são muito acentuadas, a ressocialização é difícil e, por isso, acontece um desinteresse e uma invisibilidade das necessidades femininas, especialmente em relação às crianças, filhas de mulheres encarceradas, e das que estão grávidas e acabam dando à luz na prisão. Isso fez com que o CNJ voltasse os olhos para a necessidade das crianças em tal situação, além da própria integração social dessas mulheres. O Conselho entra com esse estudo e aprofundamento do tema para propor políticas públicas eficazes. JC – Já existe um projeto piloto? MR – O projeto vai partir de um conhecimento mais aprofundado de algumas realidades e experiências já existentes no modelo hoje praticado nos estados, porque cada estado tem um sistema próprio, e o que estamos buscando é uma coleta de informações sobre essas condições de encarceramento nas diversas localidades. Esse é o primeiro ponto: coletar informações. A partir disso, vamos fazer algumas visitações aos centros e capitais de maior referência para verificar os aspectos multiplicadores, porque não adianta, num primeiro momento, sair multiplicando qualquer modelo que não possua noção completa da totalidade do que estamos tratando. A partir do aprofundamento do tema, teremos referências pontuadas para multiplicar. O que também estamos buscando é verificar regras mínimas para o encarceramento a partir do que é feito pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Organização dos Estados Americanos (OEA), dentro da verificação das condições das crianças, o número, e como vivem concretamente. Para isso, já foi elaborado um questionário, que os tribunais vão remeter ao Conselho com o levantamento dos dados que precisamos. Só a partir daí é possível pensar numa política pública mais consistente e densa para resolver o problema. E outro ponto que é interessante: o que se já

se tem muito claro é que o grande problema que envolve as mulheres encarceradas diz respeito a tráfico de drogas, são as chamadas mulas. Pensamos que é possível e necessária uma política social a esse respeito. JC – Quanto tempo a senhora acredita que o projeto levará para ser de fato implantado? MR – Creio que demore mais uns 6 meses para que tenhamos um aspecto mais maturado e uma resposta concreta. Por enquanto existe um grupo de trabalho constituído para estudar as questões que envolvem as condições do encarceramento feminino. Esse grupo será responsável pela apresentação do projeto, que está em fase embrionária. É composto de juízas que trabalham com a questão do encarceramento feminino e também pelo juiz auxiliar da presidência do CNJ, Luciano Losekann. Todos são especialistas na área. JC – Quantas mulheres e crianças serão beneficiadas pela iniciativa do CNJ? MR – O que nós temos hoje são alguns dados do Depen, de abril de 2008, com um “raio x” do sistema. Estima-se que a população carcerária seja de cerca de 27 mil presas. Considerando que o crescimento da população carcerária feminina gira em torno de 10% ao ano, devemos ter agora em torno de 30 mulheres encarceradas, sendo também que, por esta estimativa, em torno de 1,25% dessas mulheres estariam grávidas ou com o filho em sua companhia. Mas esse não é um contingente tão grande quantitativamente. Isso é até positivo na medida em que é mais fácil uma política pública num montante menor. JC – O CNJ possui outros projetos voltados para área de infância e juventude? MR – Sim. Um deles, que também é muito interessante, diz respeito à criança que acaba sendo vítima de violência doméstica ou muitas vezes de abuso sexual, e no Judiciário ela precisa ser ouvida quando é parte ou até mesmo como testemunha. Mas o depoimento dessa criança é muito complexo, doloroso, na medida em que trata de fatos que demandam uma sensibilidade ímpar. O Judiciário precisa se aparatar na avaliação de um depoimento chamado de especial, para o qual há uma sala de audiências montada para esse fim, com a preservação e a proteção integral da criança. Essa é até uma previsão constitucional que permite a obtenção da prova com maior fidelidade, qualidade, a fim de punir e responsabilizar o agressor. O depoimento especial foi objeto de um projeto do Conselho chamado mutirões da cidadania, e nós estamos fazendo uma proposta de recomendação a todos os tribunais do País para que se institua esse modelo em nome da preservação da integridade moral da criança. 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 39


TIRADENTES – DESCENDENTES Controvérsias & Fatos Antonio Izaias da Costa Abreu

Desembargador do TJERJ Membro e Consultor Jurídico da Associação Cultural do Arquivo Nacional Membro do Colegiado Dirigente do Museu da Justiça

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rata-se, aqui, da descendência de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Ilustres e conceituados historiadores indicam, entre outros, Pedro de Almeida Beltrão Júnior e suas irmãs, Maria Custódia dos Santos e Zoé Cândida dos Santos, como trinetos do protomártir da nossa Independência. Entretanto, no nosso entender, tal afirmação não se reveste de credibilidade; pois, no que se infere da real documentação histórica, inexiste o apontado liame entre eles e Joaquim José da Silva Xavier. Em 16 de outubro de 1969, o Congresso Nacional — por admiti-los como trinetos de Tiradentes — contemplou-os com uma pensão vitalícia de dois salários-mínimos cada um, apesar de, à luz de aceitável documentação existente, não haver tal descendência. Bem esclarecendo, com relação a Eugênia Joaquina da Silva (nº cerca 1770), seu filho, que recebeu no batismo o nome de João de Almeida Beltrão, não era filho de Tiradentes, mas de José Pereira de Almeida Beltrão, conforme elucidado pelo professor Waldemar de Almeida Barbosa, ao localizar, na Matriz do Pilar de Ouro Preto, o assento de batismo de João de Almeida Beltrão1, às folhas 354, do livro próprio, assim transcrito: “Aos quinze dias do mês de julho de 1787, nessa igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Vila Rica de Ouro Preto, batizei e pus os santos óleos a João, filho natural que diz ser do cadete José Pereira de Almeida Beltrão e de Eugênia Joaquina da Silva, solteira; foi padrinho o tenente Bernardo Pereira Marques, solteiro; todos desta freguesia, de que fiz este assento. o coadjutor Antonio Ribeiro Azevedo.” Essa descoberta — peça essencial para levar credibilidade do afastamento de qualquer vínculo de parentesco dos “Beltrãos” com Tiradentes — motivou o conceituado professor, em artigo 40 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

na edição de 20 de novembro de 1961 de “O Estado de Minas Gerais”, a pôr fim a tal vetusta tradição oral não comprovada da paternidade de João de Almeida Beltrão. Equivocaram-se, portanto, os ilustres historiadores Lúcio José dos Santos2, Miguel Santos e G. Hércules Pinto3, entre outros, em atribuir a paternidade do menor João de Almeida Beltrão ao Inconfidente, pois Eugênia Joaquina da Silva era a filha mais velha de dona Maria Josefa, sendo aquela, mulher de José Pereira de Almeida Beltrão, colega de regimento de Joaquim José da Silva Xavier, segundo se extrai dos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira4. Aliás, se João de Almeida Beltrão não fosse filho de José Pereira de Almeida Beltrão, este, por certo, não o teria reconhecido. Em 1807, dezoito anos após o malogro da Conjuração, toda a família de Dona Josefa Joaquina mudou-se de Vila Rica para Dores do Indaiá, acompanhando o neto João de Almeida Beltrão, que assentara praça no Regimento e fora designado para servir na Guarnição da Extração Diamantina do Abaeté, dirigida pelo Dr. Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos. Esse lapso temporal é o suficiente para afastar o inconsistente argumento de alguns autores, segundo o qual a família de dona Eugênia Joaquina, por estar submetida ao infame constrangimento, entendeu mudarse de Vila Rica. No entanto, não é o que notifica o censo de 1804, da Capitania de Minas Gerais, dando conta de que dona Maria Josefa, filhas e netos até aquele ano, residiam em Vila Rica, inclusive Antonia Maria do Espírito Santo e Joaquina ainda estavam presentes, na antiga capital mineira5. Depois disso, não se teve mais notícia do paradeiro da filha de Tiradentes, ou seja, onde ela viveu e o fim de seus dias. Certo, é que o tempo esqueceu Joaquina, provavelmente falecida em Dores do Indaiá, substituída na memória familiar pelo seu primo João de Almeida Beltrão6.


Foto: Arquivo Pessoal

Verifica-se também que no mesmo equívoco incorreram Miguel Santos e G. Hércules Pinto ao consignarem, em suas obras “Tiradentes, Patrono da Nação Brasileira”, e “A Vida de Tiradentes”, ter sido João de Almeida Beltrão filho do inconfidente mártir. Desse modo, não havendo suporte probatório dessa assertiva, há que afastar da relação que consta nas obras suso referidas às fls. 50/52 da primeira e 57/58, 97/98, 251/252 da segunda, todas as pessoas apontadas como descendentes de Joaquim José da Silva Xavier, tais como: filhos, netos, bisnetos, tetranetos, quadranetos e quintanetos, e os descendentes do tenente da Milícia da Colônia Joaquim Paulo de Oliveira, igualmente mencionado como filho de Tiradentes. Afirmação efetivamente por demais fantasiosa, eis que, na realidade, Joaquim José da Silva Xavier, conforme suas declarações nos Autos da Inconfidência, só teve uma filha, Joaquina, batizada na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Vila Rica, em 13 de agosto de 1786, tendo por padrinho o tenente-coronel Domingos de Abreu Vieira, do Regimento de Cavalaria Regular de Minas Novas7. Entretanto, afora encontros transitórios, que acreditamos terem sido numerosos, posto que cidadão solteiro e livre de compromissos conjugais, Tiradentes, manteve estreito e íntimo relacionamento apenas com duas mulheres: Antonia Maria do Espírito Santo e a viúva de Francisco Gonçalves Teixeira, Dona Marianna Barboza de Mattos, residente em Cebolas, atual Inconfidência, distrito de Paraíba do Sul. Esta última devotava profunda admiração por Tiradentes, e não havendo impedimento para um relacionamento mais íntimo entre ambos, todas as vezes que a escolta policiadora do “Caminho Novo”, sob o seu comando, passava pela localidade, ele se hospedava na casa da fazendeira.

Sendo Cebolas um dos pontos de pregação do movimento insurreto, determinou o acórdão régio da Alçada da Inconfi­ dência que uma perna do conjurado fosse colocada em um poste, exposta na praça pública daquela localidade, a fim de que o tempo a consumisse. A morte do agente, a prática do esquartejamento e a colocação do seu corpo (ou de parte dele) em local público, onde o povo poderia contemplá-lo, tinham por finalidade infundir o medo, aterrorizar, com o propósito de advertir a que estariam sujeitos todos aqueles que incorressem em prática de igual crime. Ocorre que, após a escolta do Regimento de Extremoz e Chichorro se retirar com destino a Vila Rica, Dona Marianna pediu aos filhos que, no silêncio da noite, sem retardo, dali retirassem a parte do corpo do mártir e a entregassem ao irmão dela, Padre Paulo Manoel Barboza, pároco da igreja de Nossa Senhora do Rosário, a fim de que o religioso a colocasse atrás do altar daquele templo, dentro de um caixote com sal grosso, para que ali, sigilosamente, permanecesse, o que efetivamente ocorreu, até a morte da fazendeira. E, para perpetuar o seu amor por Joaquim José da Silva Xavier, rogou Dona Marianna que, ao falecer, fosse a perna de seu amado sepultada junto ao corpo dela. Esse fato ficou vagando no tempo por quase duas centúrias em segredo confessional absoluto, vindo somente a tornar-se do conhecimento geral a partir das pesquisas efetuadas no Livro Tombo da Matriz de Bom Jesus do Matosinho (arquivo da Paróquia de Magé), determinada, à ocasião, pelo diligente prefeito de Paraíba do Sul, Sr. Nelson Espíndola de Aguiar, quando, então, se comprovou o sepultamento do membro inferior esquerdo do mártir no mesmo ataúde de Dona Marianna Barboza, conforme seu pedido. Vejamos o texto da página do Livro Tombo do Santuário de Bom Jesus do Matosinho, que serviu de ponto de partida 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 41


para as buscas, na localidade de Inconfidência, dos restos mortais de Joaquim José da Silva Xavier. 11º “No sobrado da Fazenda de Cebolas que ainda hoje existe, e que pertence a Dona Marianna Barboza de Mattos, viúva de Francisco Gonçalves Teixeira, hospedava-se sempre em suas viagens para a Corte, Joaquim José da Silva Xavier, Tiradentes, o qual era muito amigo de toda família Barboza, e quando morto no Rio de Janeiro, seus membros esquartejados foram mandados para serem expostos nos lugares mais públicos da estrada de Minas, para servir de terror aos futuros conspiradores, coube também a Capella de Cebolas uma perna, que esteve exposta muitos dias, durante as quaes depois da Missa, um Comissário de Polícia em nome do Vice-Rei D. Luiz de Vasconcellos dava vivas a Rainha reinante D. Maria 1ª, e morte aos Inconfidentes.” 12º “Passados já muitos dias e quando a perna já estava em avançada decomposição, os filhos de D. Marianna Barboza, consternados por tão hediondo espectaculo, em horas mortas da noite, tiraram do poste a perna, e foram sepultá-la dentro da Capella, que hoje serve de Matriz, junto ao Altar de N. Senhora do Rozário, assistindo a essa cerimônia o Pa Paulo Manoel Barboza, irmão de D. Marianna Barboza, e tudo isso feito sobre o maior segredo possível, porque a mesma Família Barboza, tinha sido denunciada como cúmplice do Tiradentes, e foi acareada na devassa, e da qual se livrou.” 13º “Quando o infeliz Tiradentes em suas viagens ao Rio de Janeiro, tratava da conspiração, estando em Cebolas, fez ahi um voto ao Divino Espirito Santo, que então se festejava com muita devoção nesta Igreja, de dar uma corôa de prata, e sceptro para servir aos imperadores da festa, cuja coroa depois desaparecera, sem saber hoje qual o seu destino; e o objectivo do seu voto, o feliz êxito da Inconfidência.” 14º “Na Fazenda das Pedras, hoje pertencente ao Sr. Tenente Antonio Francisco Nunes, junto ao rio que outrora se chamava de Boa Passagem, houve também uma Capella que a tradição aponta sob a invocação de N. Senhora da Conceição, e que numa epocha, isto é, no meiado do século dezoito, pertencera ao Capitão Francisco da Cruz Alves, que tivera sua Fazenda por carta de sesmaria, e por sua morte, os seus herdeiros abandonaram-na por estéril, e pelo motivo de ter-se mudado a antiga estrada que vindo do Rio da Cidade, transpondo a Serra das Araras, que chamam Maria Cumprida passava em frente à Fazenda das Pedras e que 42 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

depois mudara para a Fazenda dos Correias, passando pelas da Olaria, Sumidouro, tornando a encontrar-se com a antiga na Fazenda do Secretário. Hoje acha-se extinta sua Capella.”8 Com a confirmação do valioso achado, ao inteirar-se do fato, o então Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sr. Raymundo Padilha, sobremodo sensibilizado, determinou a construção, na localidade de Cebolas, do prédio do Museu Sacro Histórico, que compõe o conjunto arquitetônico Tiradentes, para a guarda daquela relíquia, solenemente inaugurado no dia 21 de abril de 1972. Desse modo, ficou revelada a manifestação do amor sublime e puro daquela campesina ao não permitir que a voragem do tempo consumisse, como determinou a Sentença Régia, os restos mortais de nosso mártir. Serviu, outrossim, para transformá-la em verdadeira heroína, levando a quem hoje visita o monumento erigido em Cebolas a compreender a grandeza do seu amor pelo patrono cívico da nossa Independência. Assim, cremos haver, sucintamente, dado nossa colaboração para deslindar a descendência do protomártir de nossa Indepen­ dência, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CÂMARA DOS DEPUTADOS - Autos da Devassa da inconfidência Mineira - Volumes 1, 8 e 9 Brasília, DF, 1976. CAMILO, João. “História de Minas Gerais”, v. 3. ed. Difusão Paname­ ricana do Livro. Belo Horizonte MG. FOUCAUT, Michel. “Vigiar e punir: a ostentação dos suplícios”, 27. ed. Editoras Vozes: Petrópolis, RJ, 2009. GÓIS, Carlos. “História da Terra Mineira”, 2. ed. Tipografia Beltrão: Belo Horizonte, 1914. HURIAM, Eduardo Arantes. “A Tortura como crime próprio”, Juarez de Oliveira: São Paulo, 2008. JUNIOR, A. de Lima. “Capitania das Minas Gerais”, Ed. Itatiaia: São Paulo, SP, 1978. PINTO, G. Hércules. “A Vida de Tiradentes”. Editora Alba Ltda.: Rio de Janeiro, 1962. SANTOS, José Felício dos. “Memórias do Distrito Diamantino de Serro Frio”. Livraria Itatiaia Editora Ltda.: Belo Horizonte, 1976. SANTOS, Lúcio José dos. “A Inconfidência Mineira”. Imprensa Oficial: Belo Horizonte, MG, 1982. SANTOS, Miguel. “Tiradentes, Patrono da Nação Brasileira”. VASCONCELLOS, Diogo L. A. P. de. “História Média de Minas Gerais”. Ed. Instituto Nacional do Livro. Imprensa Nacional: Rio de Janeiro, 1948.

NOTAS “Altos da Devassa da Inconfidência Mineira”, v. I, pág. 145, Câmara dos Deputados - Brasília, Distrito Federal, 1976. 2 “A Inconfidência Mineira”, pág. 34 3 In “A vida de Tiradentes”, pás. 57/58 e 97/98, 1962. 4 Notas 1, 2.1, pág. 125, v. I. “Autos da Devassa da Inconfidência Mineira”. Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 1976. 5 Notas 1 e 2.1, pág. 58, v. 9. “Autos da Devassa da Inconfidência Mineira”. Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 1976. 6 Notas 19 e 21, pág. 57, v. 9. “Autos da Devassa da Inconfidência Mineira”, Brasília, 1977. 7 Pág. 125, 145, v. I, “Autos da Devassa da Inconfidência Mineira”, Brasília, 197 8 In “Tiradentes em Paraíba do Sul”, 5. ed. 21/4/2003. 1


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Bondades em gestação em Itaipu Ruy Mesquita Jornalista

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raticamente sem o conhecimento do público, que pagará a conta, tramita com rapidez no Congresso o projeto de decreto legislativo que autoriza a revisão do Tratado de Itaipu e, se aprovado, obrigará o Brasil a pagar ao Paraguai o triplo do que já paga pela compra da energia produzida pela usina binacional e não utilizada por seu parceiro. A revisão implicará, entre outras coisas, o pagamento adicional, pelo Brasil, de US$ 240 milhões por ano, gasto que - na conta de luz ou sob a forma de impostos - recairá no bolso do cidadão brasileiro, que não terá nenhuma vantagem com a mudança. O decreto aprova as alterações no Tratado de Itaipu documento firmado por Brasil e Paraguai em 26 de abril de 1973 - negociadas no ano passado pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Lugo, em razão da forte pressão que o dirigente paraguaio fez sobre seu colega brasileiro para aliviar parte dos problemas políticos que enfrentava em seu país. Para atender aos interesses de Lugo, Lula concordou com algumas mudanças, que exigirão a utilização do dinheiro do contribuinte e do consumidor brasileiros. O Tratado de Itaipu é claro ao determinar que Brasil e Paraguai têm direito, cada um, à metade da energia gerada pelo usina binacional. A energia não utilizada por uma parte será vendida à outra. Os dois sócios recebem royalties e rendimentos iguais. São igualmente responsáveis pela dívida contraída para a construção da usina, e que vem sendo amortizada regularmente, com a utilização de cerca de dois terços da receita da usina. Logo que tomou posse, Lugo quis mudar essas regras para assegurar ao Paraguai a livre disponibilidade da energia de Itaipu a que tem direito, mas não utiliza - e que, pelas regras do Tratado, deve ser obrigatoriamente vendida ao Brasil. Alegava também que sua remuneração deveria corresponder ao que chamava de “preço justo” da energia cedida. Exigia, ainda, a “revisão completa da dívida” de Itaipu e maior controle do orçamento da empresa binacional. Não havia, como não há, nenhuma razão técnica concreta para se rever o Tratado de Itaipu. Mesmo assim, em nome de uma política externa marcada por bondades frequentes com

alguns parceiros ideológicos - e que pouco ou nada atende aos reais interesses do País -, o presidente Lula cedeu às pressões. Em julho do ano passado assinou com Lugo uma declaração segundo a qual, entre outros compromissos, o Brasil assumiu o de iniciar a construção de mais uma ponte entre os dois países sobre o Rio Paraná, de construir linhas de transmissão de energia no país vizinho, estudar a possibilidade de o Paraguai vender energia livremente no mercado brasileiro e aumentar o valor pago anualmente ao parceiro. São essas mudanças que estão em exame no Congresso. O governo quer vê-las aprovadas o mais depressa possível e, por isso, solicitou urgência na tramitação da matéria, que se encontra na Câmara dos Deputados. A oposição, por ver nas mudanças lesão aos interesses dos brasileiros - consumidores de energia elétrica e contribuintes em geral -, vem tentando retardar o andamento do projeto. Na quarta-feira passada, por indicação do deputado Eduardo Sciarra (DEM-PR), as Comissões de Minas e Energia e de Relações Exteriores e de Defesa da Câmara realizaram uma audiência para discutir o projeto. Na ocasião, o presidente do Instituto Acende Brasil, Cláudio Sales, observou que o custo do pagamento adicional onerará o bolso dos brasileiros e que, em 2023, o Paraguai se tornará dono de 50% da usina, já livre das dívidas, “sem ter pago nada por isso”, pois, como lembrou, “o Brasil assumiu 100% da construção”. Os brasileiros esperam que também os parlamentares da situação levem em conta esses fatos e decidam de acordo com eles, para preservar os interesses do País - que não são necessariamente iguais aos interesses políticos do presidente. Tempo e oportunidade para isso eles têm. Por causa da ampla repercussão que as mudanças no Tratado de Itaipu podem ter, o projeto precisa passar por, pelo menos, quatro comissões técnicas da Câmara. Na de Minas e Energia já há um parecer favorável à sua aprovação assinado pelo deputado Pepe Vargas (PT-RS). No dia 7, deve ser examinado pela Comissão de Relações Exteriores. Editorial do jornal O Estado de S. Paulo publicado em 3/7, página A3 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 43


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Críticas à PEC que prevê a demissão de juízes

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uízes e integrantes do Ministério Público (MP) que cometerem irregularidades poderão ser punidos com a demissão — e isso ainda na esfera administrativa. Pelo menos é o que visa a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 89/2003, da Senadora Ideli Salvati (PT-SC), aprovada com unanimidade pelo Senado, no último dia 7 de julho. As duas categorias atingidas não gostaram nem um pouco da aprovação do texto. Por isso, não pouparam críticas à proposição, que será agora apreciada pela Câmara dos Deputados. A PEC 89/2003 tem por objetivo alterar os artigos 93 e 95 da Constituição Federal para eliminar a figura da “aposentadoria por interesse público” de magistrados, assim como de promotores e procuradores, por decisão de dois terços dos membros do tribunal ou conselho ao qual estiverem vinculados. A autora da PEC justificou a proposta. Para ela, é um absurdo a aplicação da aposentadoria como punição aos juízes ou membros do Ministério Público que praticarem ilícitos. O relator da proposição, Demóstenes Torres ((DEM-GO), endossou o posicionamento da parlamentar. No relatório que apresentou — e que foi aprovado —, ele foi categórico: “Quanto à exclusão da aposentadoria do rol de penalidades, considero acertada esta proposta. A rigor, para quem cometeu infrações de maior gravidade, a aposentadoria chega a ser um prêmio”. Na avaliação dele, a PEC “abre a possibilidade de o Poder Judiciário promover sua depuração por um processo mais célere que o judicial, afastando, pela via administrativa, magistrados que cometam faltas graves”. Durante a discussão da matéria, vários senadores parabenizaram a Senadora Ideli Salvatti pela iniciativa. Renato Casagrande (PSB-ES), por exemplo, afirmou que o projeto 44 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

“corrige uma injustiça muito grande”. Demóstenes reforçou que a proposta “acaba com um privilégio odioso de magistrados e membros do Ministério Público”. Mozarildo Cavalcanti (PTBRR), por sua vez, lembrou que “a aposentadoria compulsória era um prêmio para juízes que cometiam delito”. Nos bastidores, fala-se que a aprovação da PEC 89/2003 seria uma retaliação do Legislativo à Lei da Ficha Limpa, que tem por objetivo impedir a candidatura de pessoas condenadas pela Justiça. A norma resulta de ostensiva campanha conduzida, sobretudo, pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que congrega 14 mil juízes em todo o País, em prol de eleições limpas. As entidades representativas da Magistratura, claro, repudiaram a aprovação da PEC. O Juiz Mozart Valadares, presidente da AMB, ameaçou questionar a constitucionalidade da proposta no Supremo Tribunal Federal se ela realmente vir a se tornar lei. A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) também divulgaram manifestos contra a proposição que passou no Senado. A AMB, em conjunto com essas duas associações, vem há algum tempo se mobilizando contra a PEC 89/2003. No primeiro semestre, as três entidades encaminharam em conjunto ao STF e ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ofício em que contestavam a proposta. Em ofício anterior, de fevereiro de 2009, a AMB deixou claro que a PEC visa a autorizar a perda do cargo do magistrado ou membro do MP por meio de decisão administrativa do tribunal ou conselho a que estiver vinculado, “o que se afigura, data máxima vênia, manifestamente inconstitucional”. A Associação explicou que a Constituição Federal consagrou


Foto: sxc.hu

o princípio da vitaliciedade — segundo o qual o magistrado, passados dois anos de exercício do cargo, só poderá ser demitido com sentença judicial transitada em julgado. “Tal princípio, muito ao contrário do que se tem propalado, representa, em verdade, uma garantia institucional de fundamental importância para toda a sociedade, com vistas a assegurar a necessária imparcialidade do juiz, uma vez que os magistrados não estarão suscetíveis a pressões externas, sejam elas de ordem política, econômica ou conjuntural, quando do julgamento das causas que lhes são submetidas”. A AMB argumenta que o princípio da vitaliciedade não deve ser entendido como um privilégio outorgado aos magistrados. “A rigor, tal princípio, ao lado da inamovibilidade e da garantia de irredutibilidade de vencimentos, representa pedra angular do Estado Democrático de Direito, ao conferir estabilidade e segurança ao pleno exercício funcional”. Nesse contexto, a AMB destacou que o fim desta prerrogativa pode trazer prejuízos ao exercício da judicatura e, em consequência, da sociedade. Ele citou como exemplo o caso do juiz boliviano Luis Hernando Tapia Pachi, que se refugiou no Brasil após sofrer perseguição política em seu país por parte do governo Evo Morales. Na Bolívia, os magistrados não possuem prerrogativas garantidas por lei como acontece no Brasil. E a questão da vitaliciedade não existe naquele país, o que deixa os juízes sujeitos a perseguições de políticos e grupos econômicos. No ofício, a AMB deixa claro que sua principal bandeira institucional é a defesa da ética na atividade judicante. Por essa razão, defende que os magistrados que cometem desvios devem ser excluídos dos quadros do Poder Judiciário, mas somente após serem devidamente julgados.

Com essa posição, a Associação esclarece: “Com efeito, a Associação reconhece o legítimo pleito da sociedade, a qual tem reclamado pela devida punição aos agentes públicos acusados de atos de corrupção e de improbidade. Entretanto, é de se ter em mente que o tão almejado combate à corrupção não pode se dar às custas de limitações injustificadas das garantias institucionais fundamentais inscritas no texto constitucional, mormente quando tais limitações incidem sobre a categoria dos magistrados, agentes políticos de um Poder de Estado”. Não tem sido pouca a quantidade de juízes aposentados compulsoriamente em razão de terem cometido irregularidades. Tampouco a notoriedade que esses casos vêm adquirindo. Isso ocorre, principalmente, quando a aposentadoria é decretada pelo Conselho Nacional de Justiça — órgão de fiscalização e planejamento estratégico do Poder Judiciário. Uma simples busca no site do órgão mostra não apenas o rigor do Conselho na apuração das denúncias, mas principalmente a firmeza com que vem aplicando esta punição nas situações que julga como sendo necessárias. Em maio último, por exemplo, o Pleno do CNJ manteve a aposentadoria compulsória de um juiz do Pará, ao aprovar, por unanimidade, a desconstituição de decisão tomada pelo Tribunal de Justiça daquele Estado, que, em dezembro de 2009, trocou a pena de aposentadoria compulsória por remoção compulsória ao magistrado. Agora em 2010 o CNJ completou cinco anos de funciona­ mento. O Conselho hoje está em sua terceira composição e foi responsável pelo recebimento de 21.831 processos e pelo julgamento de 16.663. Até o momento, as composições plenárias do CNJ foram responsáveis pelo afastamento preventivo de oito magistrados e pela aposentadoria compulsória de 13 juízes. 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 45


O processo como meio de efetivação dos Direitos Fundamentais Elpídio Donizetti

Desembargador do TJEMG Presidente da Anamages

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1. Introdução o me debruçar sobre o panorama atual da ciência pro­ cessual — tarefa indispensável para desempenhar meu honroso papel na Comissão de Juristas encarregada de elaborar o novo Código de Processo Civil —, percebo que ganha força a linha de pensamento que se convencionou chamar de neoconstitucionalismo e seu corolário, o direito processual constitucional, desembocando nas correntes do neopro­ cessualismo (também chamado de formalismo-valorativo). Pretendem superada a concepção instrumentalista do processo, bem informada pela teoria circular dos planos material e processual de Carnellutti, ao fundamento de que a ciência processual não pode se olvidar da força normativa da Constituição e da importância dos Direitos Fundamentais. Contudo, aqueles que propugnam a cartilha do futuro se esquecem do valor do passado e, de afogadilho, terminam por violar a Constituição que vige no presente. Trata-se de uma contradição espetaculosa: defender a máxima efetividade do texto constitucional tornando-o inócuo e inaplicável. Não proponho aqui uma teoria conspiratória própria dos anos da cortina de ferro. Mas não posso deixar de, nesse momento em que são dadas (ou apagadas) novas luzes ao regramento jurídico-processual, esboçar minha preocupação com o processo de transfiguração do que deveria ser a última trincheira na luta pela materialização do direito material — a jurisdição — em autêntico “balcão de direitos”, enquanto os demais Poderes da República se desoneram mediante atos simbólicos. Para esse desiderato, discorrerei brevemente sobre o panorama das discussões doutrinárias no âmbito do Direito Constitucional e Processual Civil, procurando enfocar, sempre que possível, as modificações propostas no anteprojeto do novo CPC. Por fim, serão expostas as conclusões práticas desses 46 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

movimentos, notadamente no que tange ao papel reservado — ainda que implicitamente — ao Judiciário. 2. Direitos Fundamentais – alcance e evolução Inicialmente, há que se indagar a razão do adjetivo “fundamentais”. Segundo Konrad Hesse, sob um ponto de vista material, os direitos fundamentais se destinam a criar e manter os pressupostos elementares da liberdade e dignidade humanas. Já sob um ponto de vista formal, direito fundamental é aquilo que o direito positivo qualifica como tal (Konrad Hesse e Carl Schmitt). Em razão dessa dispositividade formal, os direitos fundamentais variam conforme a ideologia, a forma de Estado e de Governo e os valores consagrados no texto constitucional de cada país1, revelando seu papel tradicional de garantir a liberdade estritamente individual face ao arbítrio estatal, limitando a atuação do poder público. Contudo, sob o enfoque material, o conteúdo histórico e filosófico dos Direitos Fundamentais revela seu traço universalizante, consubstanciado na expressão “direitos do homem2”, prerrogativas destinadas não a determinado grupo de pessoas, mas ao próprio gênero humano3. Informados pelo enfoque material, os direitos fundamentais de primeira geração (na expressão de Bonavides) ou dimensão consagravam as prerrogativas das liberdades individuais da burguesia do século XVIII, chamados de direitos civis e políticos, titularizados pelos indivíduos e oponíveis sobretudo em face da atividade estatal. São exemplos dessa geração o respeito à liberdade e à propriedade privada. Já os direitos fundamentais de segunda geração encontramse ligados ao valor da igualdade material, propugnado pela luta


diretamente ligadas às garantias previstas no texto constitucional.

da classe operária pelo reconhecimento dos direitos sociais, econômicos e culturais. Tratam-se de direitos de titularidade coletiva. Em razão de preponderantemente exortarem o Estado à ação, ao contrário do que aconteceu com os direitos de primeira geração, os direitos fundamentais de segunda dimensão passaram por um ciclo de baixa normatividade, observando-se que quase todos os ordenamentos flertaram com a tese da eficácia programática ou da reserva do possível. O efeito prático das duas teses citadas foi exonerar, respectivamente, o Poder constituinte derivado (exercido de forma preponderante pelo Poder Legislativo) e o Poder Executivo do problema do déficit de eficácia. A terceira geração dos direitos fundamentais foi informada pelo valor da solidariedade e compreende a defesa do meio ambiente, a autodeterminação dos povos, a proteção do consumidor, dentre outros. Por fim, os direitos fundamentais de quarta geração, segundo Paulo Bonavides, podem ser associados às discussões que envolvem o pluralismo e a diversidade, de forma a concretizar os ditames do Estado social. Norberto Bobbio aponta também a relevância dos avanços no campo da engenharia genética e as consequências das “manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo”4. Paulo Bonavides sustenta também a inclusão da paz como direito fundamental de quinta geração. Encerrada a digressão acerca da evolução dos direitos fundamentais, cumpre diferenciá-los das garantias funda­ mentais, também objeto de positivação no art. 5º da Constituição. Direitos, como exposto, correspondem a bens e vantagens prescritos na norma, enquanto as garantias tratam dos instrumentos através dos quais se assegura o exercício dos direitos. Dentre esses instrumentos encontramse as ações constitucionais, como o habeas corpus, habeas data e demais previstas na legislação infraconstitucional, mas

3. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: breve escorço e repercussões no texto do anteprojeto do novo Código de Processo Civil • Neopositivismo: a premissa necessária A lei, e isso não mais se discute, perdeu seu posto de supremacia. Se, durante segunda geração dos direitos fundamentais, chegouse a dizer que os dispositivos que previam os aludidos direitos consistiam em meras exortações ao legislador, para que desse corpo normativo às conquistas ali consagradas (mera eficácia programática), hoje o panorama doutrinário e jurisprudencial é praticamente oposto. Ocorreu uma crise do fundamento da imperatividade da lei genérica e abstrata, uma vez que a igualdade formal — criada em oposição aos privilégios da aristocracia do antigo regime — que animava a produção legislativa se revelou insuficiente para a efetivação da própria liberdade que almejava proteger. A neutralidade legislativa (todos serão iguais perante a lei) e, consequentemente, da jurisdição levou a um beco sem saída, porquanto era impensável falar em liberdade sem que se garantisse um mínimo de condições para uma vida digna. Além disso, o positivismo clássico reduziu o Direito à lei, afastando-o das ponderações jusfilosóficas, permitindo a promoção da barbárie sob a proteção da legalidade, como mostraram o fascismo italiano e o nazismo alemão. Assim, ainda que o texto normativo se mostre formalmente perfeito, não se pode concluir que o juiz deve proclamá-lo como resultado (bouche de la loi), apenas resultar de um processo legislativo regular. Torna-se necessário julgar não apenas o caso concreto, mas o próprio conteúdo da norma, tomando como paradigma os princípios e direitos fundamentais projetados na Constituição. • Neoconstitucionalismo Em razão das consequências teóricas do pós-positivismo, foi superada a ideia de Estado Legislativo de Direito, adotandose o Estado Constitucional de Direito, ocupando o texto constitucional o centro do sistema normativo, dotado de intensa carga valorativa. Assim, opera-se a inversão da relação regra regulamentadora — regra de direito fundamental que se observou na fase dos direitos fundamentais de segunda geração: não são as regras de direitos fundamentais que dependem de regulamentação para produzirem efeitos; pelo contrário, a legislação infraconstitucional encontra nos princípios e regras constitucionais seu fundamento de validade e eficácia, em virtude da força normativa da Constituição. Por outro lado, a subordinação das leis à Constituição reclama um sistema de controle de proteção e efetivação dos 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 47


direitos fundamentais, exercido preponderantemente pelo Poder Judiciário. Anota Luís Prieto Sanchís que, como resultado disso, obtém-se uma Constituição transformadora, que pretende condicionar as decisões da maioria, tendo como principais protagonistas os juízes e não o legislador5. Ao confrontar as regras tradicionais (aplicáveis mediante mera subsunção) com os princípios e regras de direitos fundamentais (cuja carga valorativa não absoluta demanda a técnica da ponderação), surgiram novos postulados normativos, dentre eles o da supremacia da Constituição, interpretação conforme a máxima efetividade. Marcelo Novelino6 resume assim as principais características do neoconstitucionalismo: – mais princípios do que regras; – mais ponderação que subsunção; – onipresença da Constituição em todas as áreas jurídicas; – onipotência judicial em lugar de autonomia do legislador ordinário; – coexistência de uma constelação plural de valores. Ressalve-se a intensa crítica que Humberto Ávila7 fez ao neoconstitucionalismo, apontando a fragilidade de seus fundamentos quando analisados em face do ordenamento jurídico brasileiro: Se existe um modo peculiar de teorização e aplicação do Direito Constitucional, pouco importa a sua denominação, baseado num modelo normativo (“da regra ao princípio”), metodológico (“da subsunção à ponderação”), axiológico (“da justiça geral à justiça particular”) e organizacional (“do Poder Legislativo ao Poder Judiciário”), mas esse modelo não foi adotado, nem é absolutamente com que o seja, é preciso repensá-lo, com urgência. Nada, absolutamente nada é mais premente do que rever a aplicação desse movimento que se convencionou chamar de neoconstitucionalismo no Brasil. Se verdadeiras as conclusões no sentido de que os seus fundamentos não encontram referibilidade no ordenamento jurídico brasileiro, defendê-lo, direta ou indiretamente, é cair numa invencível contradição performática: é defender a primazia da Constituição, violando-a. O “neoconstitucionalismo”, baseado nas mudanças antes mencionadas, aplicado no Brasil, está mais para o que se possa denominar, provocativamente, de uma espécie enrustida de “não-constitucionalismo”: um movimento ou ideologia que barulhentamente proclama a supervalorização da Constituição enquanto silenciosamente promove a sua desvalorização. • Neoprocessualismo O estudo do processo foi influenciado por todo esse movimento de valorização da Constituição, que passou a contemplar, em um primeiro momento a tutela constitucional do processo, que é o conjunto de princípios e garantias vindos da Constituição que versam sobre a tutela jurisdicional (princípio da inafastabilidade — art. 5º, XXXV da CF/88), o devido processo legal (art. 5º, LIV da CF/88), a exigência de 48 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

motivação dos atos judiciais (art. 93, IX da CF/88) e a chamada jurisdição constitucional das liberdades, que compreende o arsenal de meios previstos no texto constitucional para dar efetividade aos direitos individuais e coletivos, como o mandado de segurança, o habeas corpus, a ação civil pública, as ações de controle de constitucionalidade, etc. Partindo desse contexto, fala-se hoje no surgimento do neoprocessualismo, cujos adeptos desenvolvem o estudo dos institutos processuais a partir das premissas do neoconstitucionalismo. O movimento, na UFRS, foi chamado de formalismo-valorativo, nomenclatura que, segundo seus adeptos, dá destaque para a afirmação da importância da boafé processual como aspecto ético do processo. Em razão dessa matiz constitucional, a mencionada corrente trata os tradicionais princípios processuais como direitos fundamentais processuais, especialmente aqueles que contam com previsão expressa na Constituição: ... o uso de terminologias como “garantias” ou “princípios” pode ter o inconveniente de preservar toda aquela concepção das normas constitucionais, sobretudo aquelas relativas aos direitos fundamentais, que não reconhecem a plena força positiva de tais normas, em suma, a sua aplicação imediata. Dessa forma, revela-se extremamente oportuno procurar substituir essas expressões terminológicas pela de “direitos fundamentais”, de modo a deixar explicitada a adoção desse novo marco teórico-dogmático que constitui o cerne do constitucionalismo contemporâneo, a saber, a teoria dos direitos fundamentais.8 Essa evolução não passou despercebida à comissão de juristas do novo Código de Processo Civil, que deu o nome “Dos princípios e garantias fundamentais do processo civil” ao primeiro capítulo do novo código. – Processo e direitos fundamentais – dupla dimensão dos direitos fundamentais – valorização do rol de direitos fundamentais processuais previstos na Constituição Reconhece-se atualmente dupla dimensão das normas de direitos fundamentais: a) subjetiva: as normas de direitos fundamentais conferem direitos subjetivos que atribuem posições jurídicas de vantagens aos seus titulares; b) objetiva: por possuírem forte carga valorativa, são normas que devem informar a interpretação e a aplicação de todo o ordenamento jurídico. As normas processuais, à luz do neoconstitucionalismo e do neoprocessualismo, encontram seu fundamento de validade e eficácia nas normas de direitos fundamentais. O processo deve ser adequado à tutela dos direitos fundamentais (dimensão subjetiva) e estruturado conforme essas mesmas normas (dimensão objetiva — direito fundamental ao contradi­ tório, à ampla defesa, etc...). Percebe-se a preponderância do papel do magistrado para desempenhar a reconstrução do processo civil à luz da constituição. Não é por outra razão que o art. 461, § 5º, do atual CPC conferiu ampla liberdade ao magistrado para determinar as medidas necessárias à efetivação da tutela específica.


Para atingir os audaciosos fins almejados, a doutrina delineou o papel do magistrado da seguinte forma: a) ele deve interpretar os direitos fundamentais processuais à luz da hermenêutica constitucional, conferindo-lhes o máximo de eficácia; b) o magistrado poderá afastar qualquer regra que se mostre contrária à efetivação de um direito fundamental; c) o magistrado deve levar em consideração eventuais limitações impostas ao exercício de um direito fundamental por outros direitos fundamentais. A título de exemplo, cabe observar o teor do art. 1º do anteprojeto do novo CPC: Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código. Como consequências do panorama aqui descrito, podese mencionar o reconhecimento de um direito fundamental ao devido processo legal, à máxima efetividade, a um processo sem dilações desnecessárias, à igualdade processual e à participação no contraditório. Como forma de ilustração, transcrevem-se alguns dispositivos do anteprojeto que incorporam essa orientação doutrinária: Máxima efetividade: Art. 4º A tutela prestada por meio do processo será plena e, sempre que possível, específica, compreendendo tanto a inibição da ameaça a direito como a reparação do dano contra ele consumado. Celeridade processual: Art. 5º As partes têm direito de obter em prazo razoável a solução integral da lide, incluída a atividade satisfativa. Devido processo legal (substancial): Art. 6º As partes têm direito de participar ativamente do processo, cooperando entre si e com o juiz, e fornecendo-lhe subsídios para que profira decisões, realize atos executivos ou determine a prática de medidas de urgência. Igualdade processual: Art. 8º É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz velar pelo efetivo contraditório em casos de hipossuficiência técnica. Adaptação do procedimento – criatividade do juiz: Art. 153, §1º Quando o procedimento ou os atos a serem realizados se revelarem inadequados às peculiaridades da causa, deverá o juiz, ouvidas as partes e observados o contraditório e a ampla defesa, promover o necessário ajuste. Aproveitando o ensejo, ao ler a parte final do parágrafo primeiro do art. 153 do anteprojeto, lembro-me das inúmeras e desnecessárias lembranças feitas ao magistrado para que “observe o contraditório” antes de tomar as mais corriqueiras providências. Ora, por força da Constituição vigente, da Loman e também do capítulo do anteprojeto, intitulado “Princípios e Garantias Fundamentais”, o magistrado já é sabedor do dever de promover o andamento célere do processo e da importância

da conciliação, além dos outros “deveres” repetidos à exaustão durante o texto do anteprojeto. O art. 11 do anteprojeto diz que não poderá o juiz decidir com base em fundamento a respeito do qual as partes não tiveram oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria cognoscível de ofício. A excelente regra, todavia, não precisa ser repetida incontáveis vezes ao longo dos mais de mil artigos do novo CPC, como ocorre nos artigos 153, § 1º, 199, § 4º, 261, parágrafo único, apenas para citar alguns. Esse viés policialesco se choca com o papel do Judiciário como protagonista da interpretação e aplicação das normas à luz da Constituição. Afinal, como confiar aos magistrados tarefa tão nobre se eles precisam ser advertidos a todo momento para respeitar o contraditório, que sempre foi inerente à atividade judicante desde antes do movimento de valorização da constituição? A questão seria simples, caso fosse restrita a esses termos. Seria exemplo de mera falta de técnica legislativa, passível de aperfeiçoamento posterior. Contudo, proponho o aprofundamento da análise das consequências práticas do neoconstitucionalismo e as “tendências” reservadas ao processo. 4. Constitucionalismo simbólico como nova tentativa de irresponsabilização pelo déficit de efetividade dos mandamentos constitucionais: a batata quente está nas mãos do Judiciário Como já exposto, com o surgimento dos direitos fundamentais de segunda geração, o Estado se viu exortado a conferir materialidade às promessas constitucionais. Em razão da insuficiência de recursos financeiros, técnicos e humanos, tais direitos padeciam de baixa normatividade, observandose que quase todos os ordenamentos flertaram com a tese da eficácia programática ou da reserva do possível. O efeito prático das duas teses citadas foi exonerar, respectivamente, o Poder constituinte derivado (exercido de forma preponderante pelo Poder Legislativo) e o Poder Executivo do problema do déficit de eficácia. Hoje se assiste a uma nova tentativa de exoneração, que usa o Judiciário como válvula de escape. • Constitucionalismo simbólico O professor Marcelo Neves, ao apontar a “discrepância entre a função hipertroficamente simbólica e a insuficiente concretização jurídica de diplomas constitucionais”9, colocou o dedo na ferida do déficit de eficácia das normas Constitucionais: o furor legiferante, longe de dar concretude aos direitos fundamentais, se presta, preponderantemente, a funcionar como álibi, com o objetivo de criar a ilusão de ativismo Estatal e causando, na prática, o adiamento da solução dos conflitos sociais. Busca a legislação-álibi conferir aparência de presteza. Destina-se, segundo Marcelo Neves “a criar uma imagem de um Estado que responde normativamente aos problemas reais da sociedade, embora as respectivas relações sociais não sejam realmente normatizadas de maneira consequente, conforme o respectivo texto legal. Nesse sentido, pode-se afirmar que a legislação-álibi constitui uma forma de manipulação 2010 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 49


ou de ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas, desempenhando uma função ideológica”10. A acuidade do autor traz à mente as corriqueiras mudanças na legislação penal que ocorrem a cada crime bárbaro noticiado pela imprensa, como se novas letras no texto legal pudessem encobrir a vergonhosa omissão Estatal na prevenção dos delitos. Assim, de um lado o Poder Executivo banaliza o discurso da reserva do possível, olvidando-se que a tese só poderá ser oposta à efetivação dos direitos fundamentais quando provar (o ônus da prova é do Estado) que a efetivação da garantia trará mais danos que vantagens aos direitos fundamentais da coletividade. Por outro, o Poder Legislativo permanece em estado de letargia, cuidando de seus próprios interesses. Só se movimenta quando há grande clamor popular e sua atuação se reveste de um caráter ilusório, apenas enquanto o assunto está na pauta dos jornais. Não é de se admirar que a doutrina que defende o neoconstitucionalismo afirma que cabe ao Judiciário a importante missão de implementar a efetividade das normas constitucionais. Como representante da classe, afirmo sem temores: ACEITAMOS A TAREFA! Nunca nos furtamos a esse ou a qualquer outro papel necessário à construção do Estado Democrático de Direito. Contudo, cabe apontar a manipulação desse papel conferido à função jurisdicional com o objetivo de frustrar os fins constitucionais. • Construções normativas e posterior desacreditação – a culpa é do juiz É de conhecimento geral que as discussões acerca das ações coletivas se encontram na vanguarda da ciência processual, louvadas como importante meio de acesso à justiça e de economia processual. De forma coerente com tais objetivos, dispunha a redação original do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública que “a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”. Contudo, de maneira injustificável, a Lei nº 9.494/97 alterou o artigo mencionado, delimitando a eficácia da coisa julgada aos limites da “competência territorial do órgão prolator”. Ora, limitar a abrangência da coisa julgada significa multiplicar demandas, contrariando os objetivos da tutela coletiva e o próprio bom senso. Percebe-se, portanto, o desinteresse do legislador com a real efetivação do acesso à justiça, que, por meio de sua atuação meramente simbólica, promove a implementação de interesses escusos, deixando para a doutrina e jurisprudência a tarefa de limpar a lambança que fizeram no ordenamento. Melhor seria extinguirem de uma vez as ações coletivas, o que pelo menos evitaria o descrédito e a perplexidade da população diante de uma decisão que vale apenas em determinada circunscrição territorial. A incongruência será ainda maior se mantida a eficácia erga 50 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2010

omnes da decisão do “incidente de resolução de demandas repetitivas”, previsto no anteprojeto do novo CPC11. Ademais, o furor legislativo irresponsável e a ausência de gestão adequada dos recursos pela administração acabam por aumentar o volume de demandas do Judiciário, levando ao conhecido problema da morosidade e à judicialização das relações. Quem, dentre os presentes, já teve o “prazer” de acompanhar uma das milhares de demandas individuais que versam sobre cobrança de expurgos inflacionários saberá do que estou falando. Ocorre que a morosidade é essencial ao planejamento orçamentário de entes públicos e privados, porquanto se exercidas, ao mesmo tempo, todas as pretensões resistidas, não sobraria sequer um centavo nos cofres daqueles que sistematicamente violam os direitos fundamentais. A perversidade do constitucionalismo simbólico revela-se na tentativa de efetivação de suas promessas vazias, recaindo a responsabilidade do déficit de efetivação somente sobre os ombros do Judiciário: por um lado, exaltado por ser o mais adequado para a missão de conferir racionalidade constitucional ao ordenamento; por outro, tachado de moroso e insensível à ânsia de justiça da população. 5. Conclusão A nova tendência que se vislumbra com o advento de um novo Código de Processo Civil é um bem-vindo protagonismo da figura do juiz, embora acompanhado de uma boa dose de desconfiança da comissão que elaborou o anteprojeto. Nesse contexto, a influência e consolidação da hermenêutica constitucional no âmbito de interpretação e aplicação das normas processuais fornecerão um bom arsenal para que o magistrado crie, adapte e efetive soluções adequadas à Constituição. Contudo, tais avanços não podem ser utilizados para exoneração dos demais Poderes da República de suas missões, também indispensáveis à implementação prática das normas de direitos fundamentais. Por isso, convido os profissionais e estudantes aqui presentes para cerrar fileiras contra a atuação estatal ilusória, a fim de restaurar o equilíbrio e a harmonia entre os Poderes da República na consecução dos seus objetivos fundamentais. NOTAS Carl Schmitt, Verfassungslehre, p. 163 a 165 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte da França revolucionária. 3 Paulo Bonavides. “Curso de Direito Constitucional”. p. 562 4 “A Era dos Direitos”, p. 6. 5 Neoconstitucionalismo y ponderación judicial, p. 126-127 6 “Direito Constitucional”, p. 60-61 7 “NEOCONSTITUCIONALISMO: ENTRE A CIÊNCIA DO DIREITO E O DIREITO DA CIÊNCIA” Revista Eletrônica de Direito do Estado. Disponível na Internet: http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp. Acesso em 01/06/2010. 8 Marcelo Lima Guerra. “Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil”. São Paulo: RT, 2003, p. 100 9 Marcelo Neves. “A constitucionalização simbólica”. p. 1 10 Neves. Op. cit. p. 39-40. 11 Art. 960. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os processos pendentes que versem idêntica questão de direito. 1 2


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