Revista Justiça & Cidadania

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2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004


edição 53 • DEZEMBRO de 2004

4 José Sarney

Uma Justiça que não será cega

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Luis Carlos de Urquiza Nóbrega

Porque e como subsidiar o transporte público

Foto Capa: Jorge Campos

16 ORPHEU SANTOS SALLES DIRETOR / EDITOR

Bernardo Cabral

Histórico da Assembléia Nacional Constituinte

TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO EDISON TORRES DIRETOR DE REDAÇÃO

23

DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DEBORA OIGMAN EDITORA DE ARTE

Marco Maciel

O Mestre Celso Furtado

CARLA SANTOS REVISÃO FELIPPE BITTENCOURT ESTAGIÁRIO

REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO AV. NILO PEÇANHA,50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-100. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429

CONSELHO EDITORIAL

ÁRIO

aurélio wander bastos

EDITORIAL

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A CAIXA PRETA

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Arnaldo Esteves Lima antonio carlos M. Soares Antônio souza prudente Bernardo Cabral

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

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A COOPERAÇÃO BRASIL x ESTADOS UNIDOS

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SUCURSAIS

carlos ayres britTo

SÃO PAULO ORPHEU SALLES JUNIOR AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611

Carlos mário Velloso

MÉDICO: MISTO DE ADMIRAÇÃO E TEMOR

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carlos antônio navega

INDEPENDÊNCIA AMEAÇADA

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FORTALEZA CARLOS MOURA RUA JOAQUIM FERREIRA Nº 1200 BAIRRO LAGOA REDONDA. FORTALEZA-CE TEL(85) 476 -1200 / 9951 - 3773

Edson Vidigal

UMA NOVA JUSTIÇA NO BRASIL

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eLLIS hermydio FIGUEIRA

POSSE NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL

30

PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED.PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP 90010 272 TEL (51) 3211 5344

Francisco Peçanha Martins

MERCADO DE GÁS CANALIZADO

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HOMENAGEM AO DESEMBARGADOR SÉRGIO CAVALLIERI

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revistajc@revistajc.com.br www.revistajc.com.br

Marco Aurélio Mello

Memória NAcional

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Miguel Pachá

UNIÕES ESTÁVEIS OU UNIÕES INSTÁVEIS

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RESPONSABILIDADE CIVIL

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CRISE DA DEMOCRACIA

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denise frossard

fernando neves Francisco Viana Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins josé augusto delgado

maximino gonçalves fontes Paulo Freitas Barata thiago ribas filho

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UMA JUSTIÇA A necessidade da

QUE NÃO SERÁ CEGA

Foto: Divulgação

José Sarney

O

Senado acaba de prestar um grande serviço ao País. Votou a Reforma do Judiciário que há doze anos, com audiências públicas e conferências, se arrastava em meio a discussões apaixonadas e divergentes, mobilizando juízes e advogados, todos envolvidos na defesa dos seus pontos de vista. Velho parlamentar, nunca vi uma matéria tão esmiuçada, tão estudada e composta de tantos e diversos interesses. A reforma tem dois pontos principais: o controle externo e a súmula vinculante. O objetivo é acelerar o andamento dos processos que correm na Justiça, milhões. Basta citar que um juizado do Rio de Janeiro tem dois milhões de processos a julgar. Pela análise do Supremo Tribunal Federal, 95% dos julgamentos são repetitivos, questões já julgadas que são renovadas e se dispersam sobre o mesmo assunto por milhares de suplicantes, como os ajustes do Plano Verão, Collor e outros. Com a súmula vinculante, uma decisão do STF pode se aplicar a todos os processos que visem à mesma interpretação jurídica. Isso vai eliminar milhares de demandas e descongestionar a Justiça, que será mais célere e terá jurisprudência uniforme. Outra importante decisão foi a criação do Conselho Nacional de Justiça. Ele fará o controle externo da Justiça e zelará pelo decoro da magistratura. Esse conselho terá a participação da sociedade civil, com representantes indicados por Senado, Câmara e Ordem dos Advogados do Brasil. Certamente esta não é a reforma ideal. Nada é perfeito na humanidade. O trabalho do homem, em todas as coisas, é melhorá-las no seu tempo. Esta é a reforma possível. Para que se tenha tranqüilidade de que era a solução neste momento, basta dizer que o trabalho de concertar divergências foi tão grande e tão profundo que a reforma foi votada quase por unanimidade. No Brasil do Império, para zelar pelo equilíbrio institucional, tínhamos o Poder Moderador, o Imperador. Na República, esse poder passou para os militares, que duradouramente e por tantas vezes interferiram no processo político. Nas democracias modernas, o equilíbrio moderador deve ser o do Poder Judiciário, isto é, da lei, aquela que nos obriga a todos. Como dizia Rui Barbosa, para citar o lugarcomum, ‘’fora da lei não há salvação’’. Em carta ao governador Mello e Póvoas, do Maranhão, o Marques de Pombal, em 1761, deulhe conselhos sobre a Justiça, aquela que maior responsabilidade tem nos três poderes. Aos juízes entrega a sociedade o direito de dispor sobre a liberdade, a vida, o patrimônio das pessoas: a guarda da Constituição, que assegura esses direitos. Dizia Pombal que ‘’três divindades pintaram os antigos com os olhos vendados, sinal de que não eram cegas: Cupido, o deus do amor, Pluto, o da riqueza, e Astrea, a da justiça’’. E recomendava: ‘’Negue V. Excia. o culto a essas divindades: porque é prejudicial a quem governa riqueza cega, amor cego - e Justiça cega’’. Com a Reforma do Judiciário, a Reforma Tributária e a Reforma da Previdência, mostramos o grande esforço do país, que, em dois anos, sem dúvida, com a coragem do presidente Lula, enfrentou esses problemas. Isto renova a fé em nossas instituições. O Senado ajudou o Judiciário a não ser cego, olhando mais rapidamente àqueles que têm ‘’fome e sede de Justiça’’, porque ‘’Justiça tardia é a maior das injustiças’’.

Presidente do Senado Federal 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004


Editorial

Contestada

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epois de mais de uma dezena de anos de debate e discussões, o Congresso Nacional finalmente aprovou a Reforma do Poder Judiciário proposta em 1991 pelo então Deputado Hélio Bicudo, que pretendia tornar a “Justiça mais ágil e próxima do povo”. Aprovada a lei, entretanto, a maioria dos Magistrados e advogados faz acirrada crítica a certos postulados da proposição. Os advogados ressalvam e demonstram o inconformismo à aplicação indiscriminada da súmula vinculante, aprovada pela maioria de pelo menos oito Ministros do STF. Os juízes monocráticos, igualmente, acham-se tolhidos na sua independência julgadora. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Nelson Jobim, exulta com a aprovação. O Ministro Edson Vidigal, presidente do Superior Tribunal de Justiça, tem dúvidas sobre os resultados práticos da reforma. Assim, parece-nos que a referida reforma pouco de prático trará na melhoria da tramitação dos processos no Judiciário. Poucos foram os aspectos importantes introduzidos, os quais, inquestionavelmente poderiam melhorar de muito a condição do Judiciário. O aumento da idade da aposentadoria compulsória para 75 anos, foi desprezada, em prejuízo do erário público e da experiência e saber adquiridos na labuta cotidiana de prestação judicante. Nada se viu ou se constatou que positivamente melhorará ou trará mais celeridade na máquina da Justiça. Ela, portanto, continuará morosa e os dependentes da prestação judiciária continuarão na expectativa do velho axioma de Rui Barbosa: “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada”. A criação do Conselho Nacional de Justiça e o propalado controle externo, se constituirá, sem dúvida em mais um órgão burocrático dispendioso, que de prático não trará nenhum benefício para a melhoria e conceituação da Magistratura e do Poder Judiciário. A reforma que foi promulgada pelo Congresso Nacional, na sessão de 08 de dezembro já está sendo contestada perante o Supremo Tribunal Federal, pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), com ação direta de

inconstitucionalidade, repudiando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Na ação, a AMB questiona o fato do Conselho ser integrado por pessoas fora do Judiciário, sob alegação que isso fere o princípio da independência dos Poderes. No mesmo dia da promulgação da reforma, o Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Desembargador Miguel Pachá, na solenidade da comemoração do Dia da Justiça, fez acirrada crítica contra, afirmando que em sua opinião, a reforma não resolverá os problemas crônicos da Justiça. Declarou mais: “Lamentavelmente, o arremedo de reforma constitucional hoje promulgada reduz a importância do Judiciário, notadamente da Justiça Estadual.” Com a criação do Conselho Nacional de Justiça, órgão de constitucionalidade duvidosa, pretende-se mutilar o poder e impor aos Magistrados limitações inadmissíveis ao exercício da jurisdição. Apresentado como panacéia a todos os males que acometem o sistema judicial, longe de apontar para uma solução efetiva, resulta na fragilização do próprio poder, confrontando-o com a população. “O mal maior da administração judiciária reside, principalmente, e sem qualquer dúvida, no emaranhado arcabouço burocrático dos incontáveis recursos protelatórios, constantes dos mandamentos processuais. Esquecem os que defendem essa anomalia, que sem uma justiça independente impera o arbítrio e o caos, predomina o mais forte e assim perdemos todos.” Enquanto não se enxugarem certos preceitos constantes na processualidade, por certo, a administração da justiça continuará emperrada e concedida tardiamente. Vamos esperar e aguardar que os nossos legisladores se empenhem efetivamente nas reformas dos códigos, pois, como está e ficou embutido na nova lei, tudo continuará na mesma panacéia como uma reforma contestada. Infelizmente é isso...

Orpheu Santos Salles Diretor-Editor

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A CAIXA PRETA Francisco Peçanha Martins

Temos que nos penitenciar pelo retardo da publicação da excelente matéria do eminente jurista Peçanha Martins, mas, que entretanto, foi atropelada em parte pela aprovação da reforma no Senado, com a nova lei do Poder Judiciário. O referido assunto foi muito bem enfocado no excelente artigo do ilustre e culto Ministro do Superior Tribunal de Justiça.

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ecente pesquisa de opinião concluiu que 61% dos brasileiros consultados não acreditam na justiça. Triste constatação da profunda crise que grassa no Estado Democrático de Direito

do Brasil. Mas, a que se deve tão acentuado descrédito? Responderão todos os brasileiros que há morosidade na prestação de justiça pelo Estado. É verdade que os juizados especiais vêm funcionando com relativa eficiência, considerados a insuficiência de meios e a grande procura pelos cidadãos necessitados de justiça. Basta dizer que já se contam aos milhares o número de processos distribuídos em alguns deles, sobretudo nos estados mais industrializados - São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia fato determinante da democrática instituição da fila para a audiência inaugural. O povo brasileiro, porém, vem sendo mal informado sobre as causas dos problemas que acometem os pretórios e afligem os magistrados brasileiros e por isso mesmo, empresta crédito às panacéias propostas e difundidas como remédios milagrosos, curativos do calo ao câncer. Vende-se a imagem de que o juiz é tardinheiro, desonesto ou tendencioso e que o “controle externo”, sugerido pelo Poder Executivo, resolverá a crônica morosidade observada na prestação de justiça pelo Judiciário, um dos poderes da União nesta República Federativa do Brasil, como diz a Constituição no seu artigo 2º, que vale transcrito para conhecimento de todos os que lerem este desabafo:

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“Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Os poderes, em que se fraciona o Estado Democrático de Direito, são independentes e harmônicos e ao Poder Judiciário assegura a Carta Magna “autonomia administrativa e financeira” (art. 99 da CF). Na verdade, a autonomia financeira se subordina aos humores dos governantes nos estados federados, onde se repetem as desrespeitosas negativas de liberação de verba pública orçamentária, e ao famoso contingenciamento no plano federal. Poder forte e que dita as diretrizes no Brasil é o Executivo, que arrecada e paga. Veja-se, por exemplo, o que ocorre com o Legislativo para a formação das famosas maiorias, constituídas mediante barganhas e conchavos não muito recomendáveis. Aos magistrados cumpre aplicar a lei, decretos e regulamentos editados pelos Poderes Legislativo e Executivo. E não raro são diplomas inadequados, promulgados contra os interesses de parcela significativa do povo, como tem acontecido repetidamente nos últimos anos: tablita; retenção de depósitos das cadernetas de poupança; FGTS; correção a menor da inflação, o mais injusto dos gravames incidentes contra a camada social dos mais pobres; redução das pensões; imposição de tributos aos aposentados; aumento da idade e do tempo de serviço necessários à concessão de aposentadoria; não pagamento de atrasados, como se


notas

observa presentemente no que diz respeito às diferenças correspondentes à aplicação da URP a que têm direito milhões de aposentados; enfim, todas as maldades ou bondades praticadas pelos Poderes Legislativo e Executivo repercutem no Poder Judiciário. E é nele, estuário e desaguadouro de todas as mágoas, sofrimentos, angústias, indignações e revoltas, que o povo encontra a resposta as suas aspirações de justiça. E o povo sabe disso e por isso procura o Judiciário aos milhões, buscando, com sede crescente, justiça aos seus reclamos. A grande quantidade de ações propostas - cerca de 15.000.000 (quinze milhões) - é fantástica e supera a capacidade de julgamento do aparelho judiciário. E quem é o maior responsável pelas lides neste país? As estatísticas o revelam, sem contestação: o Poder Executivo, responsável por 80% (oitenta por cento) dos recursos que chegam ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal. Se o Poder Executivo fosse um razoável cultor das leis, por certo não seria tão acentuada a crise por que passa o Poder Judiciário. Todavia, não informam ao povo que no ano de 2002 foram distribuídas 12.437.533 (doze milhões, quatrocentos e trinta e sete mil, quinhentos e trinta e três) ações para serem julgadas por cerca de 13.000 (treze mil) juízes. Não dizem à população brasileira que o STJ julgou 216.999 (duzentos e dezesseis mil novecentos e noventa e nove) recursos no ano de 2003; e que o STF decidiu outros 158.785 (cento e cinqüenta e oito mil, setecentos e oitenta e cinco).

Não positivam que cada um dos Ministros do STJ, do STF, do TST julgou, em média, cerca de 10.000 (dez mil) recursos. Não noticiam que os juízes brasileiros são os campeões de sentenças no mundo, com uma proporção de 30.000 habitantes por juiz, enquanto é muito menor a proporção nos países ocidentais desenvolvidos. Alardeiam, sim, os defeitos e comportamentos condenáveis de um ou outro magistrado, sem considerar o direito de defesa e, sobretudo, sem informar o quão insignificante é o número dos infratores das regras rígidas de conduta impostas pela lei e pela sociedade. Não esclarecem que o juiz é o mais fiscalizado dos agentes públicos, pois atua sob o constante crivo dos advogados das partes; é obrigado a relatar os processos e a fundamentar as suas decisões, que são submetidas a reexame pelos Tribunais, necessariamente quando uma das partes é o Estado, e mediante recurso das partes, comumente. E a fiscalização social sobre o magistrado? Não há cidadão cuja conduta sofra maior censura. Nos Municípios, nas comunidades menores, o juiz, o padre e o prefeito estão entre os mais observados. Demais disso, o juiz não pode empatar a lide. Uma das partes na demanda será sempre vitoriosa, desagradando o vencido. E quando o vencido é defendido por um advogado sem compostura, que imputa ao magistrado defeitos para justificar o seu fracasso, desperta o ódio, a maledicência, crucificando-se o juiz acoimado injustamente de parcial ou vendido. Agrava-se a cena quando se vive no país do 2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


que morre, e o Poder

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Judiciário, bem ou mal, é o último bastião dos direitos do cidadão.

“jeitinho”, e o comum das pessoas pensa que o direito transita por linhas tortas, e que seria possível ao Judiciário deixar de aplicar a lei consoante as regras da ciência do direito. Mas para prevenir que um desses “injustiçados” venha a indicar um ou outro caso até escabroso, em que se tenha decidido teratologicamente, lembro que as sentenças poderão ser sempre submetidas a recursos, ou seja, à revisão coletiva pelas Turmas ou Câmaras dos tribunais. A pugna judiciária não se assemelha ao jogo de futebol, submetido à decisão unilateral de um árbitro. O processo judicial é permeado de recursos, submetidas as decisões e sentenças, no Brasil, a uma dezena deles, nos quais o julgamento se faz coletivamente (ou deve ser coletivo). Mas não elucidam o povo sobre a árdua e difícil tarefa de julgar, e, o que é pior, permitem confusão entre as atribuições do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia. É comum ler-se que o juiz ainda não deu o seu parecer, ou a imputação ao Judiciário de omissões do Ministério Público, dos desmandos e malvadezas da polícia e a ignomínia dos presídios. Não positivam que a polícia e o sistema penitenciário se subordinam ao Poder Executivo e que o Judiciário não é órgão acusador, mas julgador, e deve coibir os excessos, abusos e transgressões à lei, cometidos pelos agentes públicos. As prisões arbitrárias, inquéritos mal feitos e retardados, torturas, tratamento abusivo do detido, erros e equívocos

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A esperança é a última

na investigação criminal, enfim, as mazelas policiais devem merecer atenção do Judiciário via habeas corpus que, quando concedidos, são noticiados como desserviços à sociedade, invectivados pela mídia com manchetes chamativas deste quilate – “A polícia prende e a justiça solta”. O povo, contudo, não é informado de que por falta de presídios, há mais de 90.000 (noventa mil) mandados de prisão sem cumprimento pelo Executivo carioca. Em São Paulo, são mais de 150.000 (cento e cinqüenta mil). As prisões são depósitos onde se amontoam seres humanos, destituídos de qualquer dignidade. Carandiru, retratado pelo cinema, diz um pouco da sordidez a que se reduzem os criminosos. Todos os defeitos, porém, são debitados ao Poder Judiciário, o que explica a distorção revelada pela estatística. Se a mídia desse nome aos bois, apontando os culpados, veria todo o povo que a maioria dos males, senão todos, decorre da má administração da coisa pública, em todos os níveis de poder, com supremacia quase absoluta do Poder Executivo. Temos leis imperfeitas, inadequadas e até injustas, irrefletidamente impostas na via estreita e sinuosa das medidas provisórias ditadas pelo Poder Executivo e que impuseram prejuízos notáveis à parcela significativa do povo brasileiro. E continua a fabricação legal com a profusão de medidas provisórias baixadas e anunciadas pelo governo. O único bastião de resistência do povo é, e continuará sendo, o Poder Judiciário. Nele desaguaram as chuvas abundantes da insensatez inflacionária e das desastrosas experiências econômicas deflacionárias, acentuando desmesuradamente o fenômeno da morosidade da justiça, que não é só nosso, mas de todo o mundo civilizado, e é velho e revelho, herança dos tempos coloniais. No Brasil, é certo, a inadequação do processo e o crescimento da economia, causas permanentes da lentidão do Judiciário mal aparelhado, juntou-se a multidão atingida pelos planos econômicos. E já se noticiam novos problemas com a anunciada falta de meios para acudir ao pagamento

(...) o juiz não pode empatar a lide. Uma das partes na demanda será sempre vitoriosa, desagradando o vencido.

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Na verdade, a autonomia financeira se subordina aos humores dos governantes nos estados federados, onde se repetem as desrespeitosas negativas de liberação de verba pública orçamentária (...)

das indenizações a que o Estado foi condenado pelo mais recente desses planos – o Real. Seguem-se reuniões entre aposentados e representantes do Poder Executivo para resolver o problema da “ressuscitação” do cadáver da URP, como vêm os economistas definindo as sentenças prolatadas pelo Poder Judiciário. Mas o que fazer? O “bode expiatório” continuará na sala, desviando as atenções da verdadeira causa das mazelas, constantes e aflitivas do povo brasileiro: a má administração da coisa pública. Resta, porém, que a aplicação da lei de responsabilidade conduza os administradores públicos ao bom caminho, afastando-os da conduta irresponsável de transferir as responsabilidades pelos pagamentos das obras e dos desmandos aos seus sucessores. A ação livre do Ministério Público, já reclamada, deverá coibir o “investimento” supérfluo, inadequado, desaconselhável, perdulário ou desonesto, enriquecedor de uns poucos larápios em detrimento de todo o povo. A esperança é a última que morre, e o Poder Judiciário, bem ou mal, é o último bastião dos direitos do cidadão. E como diz e sabe o povo: “tarda mas não falha”. O estranhável e inusitado é que a advocacia, ou melhor, a OAB, defenda o controle externo do Judiciário, onde se fará presente o Poder Executivo, o maior adversário da advocacia brasileira em todos os quadrantes, mormente no campo da aplicação da lei penal. É de imaginar-se o quadro difícil a ser enfrentado pelos criminalistas, constantes adversários do “clamor social” pela punição dos apontados culpados de crimes, diante de um Judiciário controlado pelo Estado policial. Quantos Pilatos surgirão? É tão fácil agradar, seguir a onda, satisfazer ao clamor. Já o fizeram antes, condenando Cristo à crucificação. Não faz muito, a polícia maranhense desenterrou ossadas de meninos assassinados por um degenerado. São mais de quinze (15) os jovens mortos. Lamentável, porém, é que três pessoas inocentes foram presas, sob suspeita. Nada se disse em favor delas. Apodreceriam na prisão se não se descobrisse o criminoso confesso. O mesmo episódio ocorreu no Rio Grande do Sul, e a crônica criminal está repleta de condenações de inocentes. Os irmãos Naves que o digam; ou os professores degradados de São Paulo, levianamente acusados de pedofilia. E os criminalistas injustiçados, invectivados pela mídia

Fotos: Jorge Campos

e até acusados por falsos crimes, com flagrantes forjados? Quem os julgará? O juiz controlado, submetido ao guante do julgamento por Conselho integrado de pessoas estranhas à magistratura, desafeiçoadas da difícil missão de julgar? Creio que a publicação da carta dirigida por Rui Barbosa a Evaristo de Moraes ajudaria melhor à compreensão da nobre função da advocacia, profissão indispensável à prestação da justiça, tão desgastada nos nossos dias. E lembro que “controle externo” já tivemos, com os indesejados “atos institucionais” baixados pela “Revolução de março de 1964”, numa reedição dos promulgados pela ditadura Vargas. Enfim, os pronunciamentos de eminentes advogados, do STF, do STJ, dos Tribunais Federais e Estaduais, da AMB, e a lição do grande filósofo Aristóteles são contrários à composição do Conselho de Justiça defendida pelo Poder Executivo, o grande causador da morosidade do Judiciário pela administração inconveniente e até ilegal dos interesses da nação brasileira, em todas as esferas. Entre manter a independência e a autonomia do Poder Judiciário e a reforma sugerida, ficamos com a sábia lição de Aristóteles, lembrada por Saulo Ramos em artigo publicado nesta conceituada Revista, ed. 44/março de 2004, sob o título “Aristóteles estava certo”: “O governo é uma coisa complexa demais para que seus problemas sejam decididos por muitos, quando problemas menores são reservados à sabedoria e capacidade de poucos. Assim como médico deve ser julgado pelo médico, assim também devem os homens em geral ser julgados pelos seus pares. E não deverá esse mesmo princípio ser aplicado às eleições? Pois uma eleição certa só pode ser feita por pessoas capazes: um geômetra, por exemplo, fará a escolha certa em assuntos de geometria; ou um piloto em assuntos de navegação. De modo que nem a eleição de magistrados nem sua convocação para prestação de contas deverá ser confiada a muitos”. (Política, III,11, apud “Os Grandes Filósofos“, Aristóteles, Will Durant, tradução de Maria Thereza Miranda, Edição Ediouro, pg. 97/98). E controle externo já tivemos, na Bahia, declaradamente exercido pelo Senador Antonio Carlos Magalhães, e foi desastroso, como podem atestar magistrados e advogados. E por certo que o povo, na sua sabedoria, faz muito positiva a frase: “cada macaco no seu galho”.

Ministro do Superior Tribunal de Justiça 2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


PORQUE E COMO SUBSIDIAR O TRANSPORTE PÚBLICO Luiz Carlos de Urquiza

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O Brasil está com mais de meio século de atraso em relação à Europa e aos Estados Unidos em políticas apropriadas de transporte.

rês grandes acontecimentos sobre transporte público ocorreram na cidade do Rio de Janeiro, nos dias 10, 11 e 12 de novembro: o 11º Congresso sobre Transporte de Passageiros; o seminário “Pacto Federativo para o Transporte Público – uma Agenda para o Barateamento das Tarifas” e a 5ª Feira Rio Transportes. A prioridade dos temas tratados e o nível de conferencistas, autoridades e especialistas que participaram dos trabalhos permitem previsão de resultados práticos e imediatos, por imperativos de interesse público e clamor da sociedade, expresso pelo MDT – Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos. Com efeito, não há mais como protelar medidas conjuntas e convergentes da União, dos Estados e Municípios, destinadas a definir e operar políticas públicas que priorizem de modo concreto o transporte coletivo em nossas cidades e metrópoles. As razões para a urgência dessas definições são múltiplas e graves: 1º) A poluição ambiental causada por milhões de automóveis e outros veículos retidos em congestionamentos ou circulando em baixa velocidade vem comprometendo seriamente a qualidade do ar e, conseqüentemente, a saúde da população e do planeta; 2º) Especialistas calculam que aproximadamente são sacrificados na existência de homens e mulheres, três anos de suas vidas consumidos em enervantes engarrafamentos; 3º) É incalculável a queima inútil e irracional de derivados do petróleo (gasolina, óleo diesel e gás natural veicular), consumidos, sem qualquer vantagem para a economia, em trânsito crescentemente caótico nas vias urbanas; 4º) Os custos dessas irracionalidades são inevitavelmente repassados na produção de bens e serviços, afora conseqüências não mensuráveis na saúde da população, na produtividade da força de trabalho e na qualidade de vida. Calcula-se um prejuízo de 5 bilhões de reais por ano com o tempo perdido de horas não trabalhadas.

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O Brasil está com mais de meio século de atraso em relação à Europa e aos Estados Unidos em políticas apropriadas de transporte. De fato, nos países mais adiantados, há décadas seus governantes compreenderam que transporte público de qualidade e confiável deveria ser tratado como elemento propulsor do desenvolvimento social e econômico. Portanto, deveria ser encargo do estado lato sensu, com recursos da sociedade, subsidiar a atividade e promovê-la de modo contínuo e vigoroso. Veja-se o quadro (pág. 12) que mostra a porcentagem de subsídios nas tarifas pagas pelos usuários em algumas cidades da Europa. Nos Estados Unidos, há muito tempo o poder público assumiu elevada parte dos custos. Na cidade de Nova Iorque, o usuário do metrô, dos trens suburbanos e dos ônibus só paga 50% dos custos. Na capital do Estado, Albany, os ônibus são subsidiados em 70%. Em regra esses subsídios europeus e americanos são injetados diretamente nas operadoras estatais ou privadas, exigindo forte burocracia de controle e auditagem. No Brasil, assiste-se ao exemplo da cidade de São Paulo, com a tarifa única, impondo subsídios do orçamento público ainda não claramente mensurados. A burocracia de controle dos subsídios também não se revela clara. Como praticar os subsídios? A partir da elevada estrutura de custos das empresas operadoras dos serviços de ônibus – modal que atende a 90% da população fluminense – e de equivocadas políticas de benefícios tarifários, é possível montar prático e eficiente modelo de subsídio, dentro do almejado pacto federativo. As medidas que simplificarão o processo e reduzirão as tarifas poderão ser: - eliminação da forte carga tributária incidente sobre as operadoras, da ordem de 32% dos respectivos custos; as perdas da receita por parte dos municípios, estados e da União poderão ser compensadas com aumento nas alíquotas

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(...) 40% dos usuários do transporte coletivo já dispõem do subsídio do vale-transporte concedido pelos empregadores (...)

Fotos: Jorge Santos

do IPVA e do IPI sobre automóveis, utilitários e respectivos assessórios; - assunção, por municípios, estados e União, nos respectivos serviços de transporte público jurisdicionados dos encargos de gratuidade – idosos, estudantes, deficientes e doentes crônicos – desonerando em conseqüência esses custos, hoje total ou parcialmente repassados para as tarifas; estima-se que essa despesa, atualmente, é da ordem anual de 6 milhões de reais, que poderão ser reduzidos se houver substituição do atual modelo linear, que na maioria dos casos não leva em conta o nível de renda do beneficiário, critério mais justo já adotado pelo Bolsa Família; - subsídio, pela União de 50% do óleo diesel e do GNV efetivamente consumidos pelas empresas concessionárias, fazendo-se a compensação mediante adicional no preço da gasolina e do álcool. Certamente outras medidas poderão ser adotadas para a melhoria da qualidade e da produtividade do transporte público, como investimento em corredores expressos para ônibus e terminais de integração, expansão paulatina da redes de transporte de massa e desestímulo gradual ao uso perdulário do automóvel, em face da boa opção do coletivo, no interesse social. Se levado em conta que 40% dos usuários do transporte coletivo já dispõem do subsídio do vale-transporte concedido pelos empregadores, a conjugação desse importante mecanismo com as medidas acima sugeridas acarretarão histórico avanço na melhoria do transporte público no Brasil, reduzindo custos para todos, provendo inclusão por justiça social e induzindo maior desenvolvimento econômico e melhor qualidade de vida. Técnico em transportes e Diretor da Associação Comercial do Rio de Janeiro 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004


Mariângela Gallucci/AE

Foto: Divulgação

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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

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stá programada para 2005 a liberação de R$ 3 milhões. No entanto, caberá a seus integrantes definir a estrutura do órgão, como número de funcionários, pagamento ou não de jetom e eventual construção de edifício para abrigar o conselho. No Judiciário a expectativa é que esse orçamento se multiplique com o desenvolvimento das atividades do CNJ. A base para essas previsões é o Conselho da Justiça Federal (CJF), órgão criado pela Constituição de 1988 que se reúne uma vez por mês e tem entre suas atribuições administrar precatórios federais, coordenar atividades e fiscalizar as contas desse segmento do Judiciário. Com a reforma aprovada, o CJF, que está situado em um prédio exclusivo em Brasília, também passará a ter poderes correicionais. De acordo com o secretário-geral do CJF, Ney Natal, o órgão tem um orçamento de R$ 44 milhões para este ano, dos quais R$ 24,987 milhões serão gastos com os salários de seus 242 funcionários. O valor médio anual gasto com cada um desses empregados é de R$ 103,252 mil. Segundo Natal, os 10 integrantes do conselho - cinco Ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e os cinco presidentes dos Tribunais Regionais Federais (TRFs) - não recebem nada para exercer essa função. Como o CNJ será responsável por elaborar a política de todo Judiciário, em seus cinco ramos (Federal, Estadual, Eleitoral, Trabalhista e Militar), cálculos de especialistas no setor indicam que o orçamento desse órgão poderá ser equivalente a cinco vezes o valor consumido anualmente pelo CJF: a cifra resultante atingiria R$ 220 milhões. O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do CJF, Edson Vidigal, defende que o órgão nacional tenha uma estrutura enxuta e que os conselheiros não sejam remunerados. “Meu único receio é que estejamos gerando mais um monstrengo para custeio das contas públicas. Existem maneiras mais práticas e econômicas para alcançar os objetivos: nada de prédio suntuoso nem de muita gente”, afirmou Vidigal. O secretário da reforma do Judiciário, Sérgio Renault, opinou que os conselheiros devem receber remuneração

já que terão de exercer a atividade praticamente em tempo integral. Segundo ele, o órgão “tem de trabalhar a um custo baixo e não pode construir prédio”. Renault reconheceu que será necessário o trabalho de auditores, mas disse que eles poderão ser requisitados em outras áreas da administração, como o Tribunal de Contas da União (TCU). Além dos custos do órgão, já existem nos meios jurídicos disputas políticas pelos cargos de conselheiros do CNJ. No Supremo Tribunal Federal (STF) é dado como certo que a presidência do CNJ ficará com o atual presidente do Supremo, Nelson Jobim. Nos últimos meses, Jobim vem desenvolvendo um criterioso trabalho de coleta de dados sobre o Judiciário que subsidiará o funcionamento do conselho. No entanto, há quem acredite que o CNJ exigirá dedicação exclusiva, o que obrigaria Jobim a decidir entre ficar na presidência do STF ou do CNJ. Edson Vidigal, que é um dos cotados para ocupar o cargo de corregedor do CNJ, disse que será difícil conciliar todas as atribuições dos dois postos. “Tenho dúvidas se o presidente do STJ, com tantas atividades, pode ser corregedor”, afirmou Vidigal. “Temos de encontrar um critério que observe a impessoalidade e que respeite o princípio da antigüidade”, sugere o presidente do STJ. Se for seguida essa idéia, o presidente do CNJ deverá ser o ministro do STF mais antigo, mas que tenha no máximo 66 anos. No caso, o posto ficaria com Celso de Mello. Pelo mesmo critério, o cargo de corregedor deveria ser preenchido pelo decano do STJ, Antônio de Pádua Ribeiro. “Vejo o conselho como vigia permanente a gerar, de pronto, constrangimento naqueles que, por algum descuido, deixarem de fazer bem o seu trabalho. Jamais poderá ser um posto policial entregue a um chefe de escoteiros”, argumenta Vidigal.

Trecho de matéria publicada no Jornal do Commercio 2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


A COOPERAÇÃO BRASIL E ESTADOS UNIDOS John Danilovich

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ste é um momento importante para a cooperação Brasil-EUA na luta contra a fome e o tráfico de pessoas. Os Estados Unidos assinaram ontem dois memorandos de entendimento com o Brasil, comprometendo-nos a trabalhar em parceria com os esforços do programa Fome Zero, do presidente Lula, para aliviar a fome, e com a secretaria de Direitos Humanos, para combater o tráfico de pessoas. Durante a reunião de junho de 2003 com o presidente Lula em Washington, o presidente Bush ressaltou a maturidade e importância do relacionamento BrasilEUA. Os termos de cooperação assinados são excelentes exemplos da amplitude e profundidade de nossa parceria. Há mais de 50 milhões de brasileiros vivendo na pobreza. Quando assumiu em janeiro de 2003, o presidente Lula prometeu que seu governo faria tudo que estivesse em seu poder para erradicar a fome em quatro anos. Para erradicar a fome, é preciso combater as causas fundamentais da pobreza. O crescimento econômico sustentado é essencial, mas leva tempo. Por isso, o programa Fome Zero é elemento-chave para dar a inúmeras famílias pobres uma rede de proteção social, enquanto as medidas fiscais sólidas adotadas pelo governo vão funcionando para produzir novos empregos e oportunidades econômicas. O memorando de entendimento reflete essa cooperação permanente e nossas esperanças de ampliar a assistência no futuro. Por exemplo, em setembro de 2004 foi assinado um acordo de cooperação com a organização Catholic Relief 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004

Services (Serviços Católicos de Assistência), na ordem de US$ 660 mil, para reduzir a insegurança alimentar em três comunidades pobres assistidas pelo Fome Zero. Atividades específicas incluem a construção de cisternas para armazenar água para consumo domiciliar e aplicação agrícola de pequena escala, restaurantes comunitários para fornecer refeições nutritivas e a preço acessível aos pobres, microcrédito e programas de pequenas verbas destinados a financiar atividades comunitárias de geração de renda. O projeto fornecerá ajuda direta a 13 mil pessoas e servirá de modelo para reprodução em âmbito nacional. No mês passado, a Usaid (Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional) contribuiu também com US$ 500 mil para um projeto que será implantado por uma ONG com sede nos Estados Unidos, a Inmed, em parceria com várias empresas, entre elas, Monsanto, GE, El Paso Energy, Johnson & Johnson. Essa iniciativa contribuirá também para o Fome Zero, por meio de programas de hortas comunitárias e de nutrição escolar, além da capacitação de professores e pais nessas áreas, beneficiando aproximadamente 100 mil crianças pobres. A Inmed cuidará também do tratamento de infecções parasitárias e de melhorias na higiene, saneamento e qualidade da água das comunidades. A Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional e o Departamento de Agricultura dos EUA estão comprometidos com a ampliação da cooperação delineada nesse acordo que, esperamos, possa contribuir para o sucesso do programa Fome Zero.


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Para erradicar a fome, é preciso combater as causas fundamentais da pobreza. O crescimento econômico sustentado é essencial, mas leva tempo.

O presidente Lula já deixou claro que uma de suas prioridades no campo dos direitos humanos seria a eliminação da exploração sexual de crianças e adolescentes. Estima-se que anualmente de 800 mil a 900 mil mulheres e crianças são vítimas de tráfico no mundo todo e submetidas a trabalho escravo, exploração sexual ou escravidão por dívida. Trabalhando juntos, Brasil e Estados Unidos podem fazer grande diferença na eliminação dessa exploração. Essa é uma prioridade fundamental de ambas as nações. No ano 2000, o presidente Bush criou uma força-tarefa para monitorar e combater o tráfico de seres humanos, por meio de maior articulação entre várias agências governamentais dos EUA, entre elas, o Departamento de Estado, a Usaid e os Departamentos de Segurança Interna, Justiça, Trabalho e Saúde e Serviço Social. Além disso, o presidente Bush alocou US$ 50 milhões para equipar essas agências americanas para o trabalho com seus pares em várias nações comprometidas com a eliminação desse crime contra a humanidade. Aqui no Brasil, os estágios de planejamento dessa cooperação multifacetada estão bem avançados. Esperamos que a parceria entre a Usaid e a secretaria de Direitos Humanos, contida no memorando assinado, seja o primeiro passo para uma cooperação abrangente, que dará grande força aos dois governos para enfrentar o problema, aumentando os exemplos de sucesso de cooperação. Desde a criação, em 2000, do programa brasileiro

para o combate ao tráfico humano (Sentinela), foram implantados quase 400 centros de assistência às vitimas em todo o país. Trabalhando com a secretaria de Direitos Humanos, a ONG Companheiros das Américas e a Organização Internacional do Trabalho, a Usaid tem ajudado a desenvolver metodologias específicas para auxiliar as vítimas e treinar equipes multidisciplinares do Sentinela em sete municípios. A Usaid forneceu US$ 853 mil a esse programa, em 2002 e 2003, e mais US$ 300 mil este ano. Esperamos agora ampliar ainda mais essa cooperação. O presidente Bush manifestou grande admiração pela capacidade do presidente Lula de trabalhar em parceria com o governo e a população do Brasil para estimular a prosperidade e acabar com a fome. Nossos objetivos para o hemisfério ocidental são os mesmos que os de vocês: a promoção de sociedades bem-sucedidas que sejam democráticas e justas, seguras e prósperas. Somente poderemos alcançar essas metas se abraçarmos as causas comuns como uma comunidade de nações com o compromisso de proporcionar uma vida melhor para todos os nossos cidadãos. As nações deste hemisfério enfrentam desafios graves. Podemos e devemos nos ajudar na superação desses obstáculos. A cooperação entre nossas nações é outro passo importante nessa direção. Embaixador dos EUA no (Texto transcrito do Jornal do Brasil)

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BREVE HISTÓRICO DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE E A ATUAL CONSTITUIÇÃO FEDERAL/88 Bernardo Cabral

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screvo estas linhas sob a responsabilidade de ter sido o Relator-Geral da Assembléia Nacional Constituinte e, portanto, protagonista dos acontecimentos que cercaram o seu desenrolar. Por isso mesmo, torna-se necessário lembrar o contexto em que foi elaborada a nossa Lei Maior, nos idos de 1987 e 1988. Assim, o primeiro ponto que desejo destacar diz respeito ao perfil do órgão ao qual foi atribuída a feitura do Pacto fundamental. Diversamente do que antes ocorrera, e até em contrariedade ao que desejado por alguns, deliberou-se por partir do nada, para a elaboração de uma Lei Maior. Preferiu-se, a sólida estaca de um Anteprojeto - formulado por um jurista ou uma comissão deles - a abertura da senda constituinte a partir do próprio povo, seus anseios, suas idéias, suas necessidades, suas convicções. Algumas centenas de brasileiros receberam mandato, neste embutida a representatividade constituinte. E como essa legitimação era haurida e conferida sem limitações, que não as do próprio ato convocatório, decidiu-se pelo mais difícil e mais autêntico: estruturar aos poucos, tijolo sobre tijolo, piso sobre piso, o grande edifício da Constituição. Abriu-se mão da comodidade do prémoldado e das estruturas pré-fabricadas, em nome da realização da edificação conforme à realidade do Brasil e dos brasileiros. Uma vez mais estava o Brasil mobilizado para a tarefa de elaborar uma nova Carta Magna. Tratava-se de reordenar democraticamente o país após a ruptura da ordem constitucional, e a importância, para a sociedade 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004

brasileira, de uma Constituição democraticamente votada era evidente para todos. Sem ela os valores fundamentais em que se deve basear a sociedade estão permanentemente ameaçados. Uma Constituição deve espelhar o estado atual das relações sociais, mas, ao mesmo tempo, deve servir de instrumento para o progresso social. Para tanto, elegeu-se um método a ser utilizado pelo Congresso Constituinte que privilegiou a espontaneidade das contribuições ao invés de adotar um texto inicial, como disse antes, a partir do qual trabalharíamos. Era essa metodologia extremamente controvertida, devido as suas características democráticas. Realizou-se amplo levantamento das aspirações nacionais, expressas pelos constituintes e também pelo próprio povo através das emendas populares. Nesse estágio, o objetivo era termos um documento que refletisse a consciência da maioria do povo. Foi montada uma estrutura composta de subcomissões e comissões temáticas, que dariam uma visão da realidade brasileira que se mostrou específica e necessariamente parcial. Como resultado, temos hoje um documento no qual as diversas partes refletem diferentes posicionamentos ideológicos e, portanto, de difícil articulação numa proposta unificada. Tratou-se porém, apesar das críticas suscitadas, de um trabalho extremamente profícuo, que permitiu que soubéssemos aquilo que setores majoritariamente da sociedade tinham a propor. Nesses palcos setoriais transcorreu a primeira etapa do grande esforço: justapondo idéias, amalgamando propostas, formulando textos, as subcomissões foram construindo a parte que lhes cabia, da engenharia


constituinte. Seus trabalhos não eram um diktat setorial: pelo contrário, eles eram submetidos a intensas discussões entre os constituintes, dissecados em assembléias públicas (com enorme participação popular, diga-se) estudados em cuidadosos pareceres e, afinal, votados, em sessões de grande atividade e mesmo, por vezes, eletrizantes. Aliás, essa era uma tônica do Congresso, naqueles dias, como até a mídia repetidamente assinalou: os corredores estavam repletos de populares, cidadãos, que circulavam de um gabinete ao outro, de uma comissão a outra, abordando constituintes, convocando-os a ouvirem suas idéias e aspirações, numa sadia prática lobista, bem diversa das que por vezes se registram nesta República. Aliás, essa era a marca daqueles dias: vivia-se uma República, um momento em que a atividade política era res publica, coisa de todos, de todos nós brasileiros. É oportuno, mesmo, evidenciar que a participação da cidadania, aqui relembrada, foi um poderoso vetor de atuação popular, aplacando iras e ressentimentos, transformando-os em energia positiva, construtiva, participativa. E, como tal, a participação em causa foi um valioso instrumento de concretização da transição democrática, delicada etapa de nossa História, ainda inconclusa.

Foto: Divulgação

SUMARIAMENTE, CABE DESTACAR:

•A Assembléia Nacional Constituinte teve a sua instalação no dia 1º de fevereiro de 1987. •A elaboração do Regimento interno no dia 24/03/87. •O funcionamento das 24 Subcomissões de 07/04/87 a 25/05/87. • O funcionamento das oito Comissões Temáticas de 26/05/87 a 15/06/87. • De 17/06/87 a 18/11/87, o funcionamento da Comissão de Sistematização e do Plenário, para discussão e apresentação de emendas. Realizadas 123 reuniões da Comissão. Produzidos cinco textos para discussão, emendas e votação na Comissão. Apresentadas 35.111 emendas, das quais 122 populares. • De 27/01/88, votação do Projeto em 1º Turno. Apresentadas mais 2.045 emendas (reforma regimental de iniciativa do auto-denominado grupo político “Centrão”). • Realizada 119 sessões e 732 votações. • Tempo de trabalho: 476 horas e 32 minutos. • De 01/07/88 a 02/09/88, votação do Projeto em 2º Turno. • Apresentadas: 1.834 emendas. • Realizadas: 38 sessões. • Tempo de trabalho: 142 horas e 10 minutos. • De 13/09/88 a 22/09/88, votação da redação final. • Apresentadas: 833 emendas, com o objetivo de corrigir o texto, sanar omissões, falhas ou contradições. Realizadas todas as oito sessões previstas. Tempo de trabalho: 27 horas e 41 minutos. • 05/10/88: sessão solene para a promulgação da

Nova Constituição. •RESUMO FINAL: ao todo foram realizadas 330 sessões plenárias em 309 dias. As Comissões Temáticas e Subcomissões trabalharam 1.109 horas. A Comissão de Sistematização: 263 horas. O Plenário: 1.304 horas e 16 minutos. • Total de Emendas: 62.160 - examinadas nas Comissões e Subcomissões: 21.337. • Por mim, pessoalmente, uma a uma: 40.823 emendas. Aquele que ler, sem paixão e preconceito, o texto da Constituição de 1988 poderá, descontando os naturais problemas de qualquer obra do homem, asseverar que se trata, sem dúvida, de diploma exemplar, profundamente renovador, à altura dos melhores que o constitucionalismo tem produzido, aí incluídas, as justamente decantadas, Constituições de Espanha e Portugal. Façamos breve ponderação a esse respeito. O primeiro dado a destacar é de topografia, mas igualmente de conteúdo: o texto se instaura com a indicação dos princípios fundamentais, direitos individuais, garantias fundamentais e direitos sociais. Em vez de clássica exposição vestibular da estrutura do Estado e de seus Poderes, deu-se prevalência ao cidadão e ao trabalho: no dado geográfico, uma eleição ideológica. Esta, verdadeiramente, é uma Constituição cidadã. E o exame sumário de seus Títulos reforça tal convicção. Vejamos alguns reflexos e conseqüências do texto constitucional no Estado Democrático de Direito: 2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17


1. a expressa consagração do respeito aos direitos humanos como princípio fundamental; 2. o alargamento das garantias fundamentais, com ênfase para o habeas data, o mandato de injunção, a garantia do devido processo legal, o mandato de segurança coletivo, a imprescritibilidade de certos delitos gravíssimos etc; 3. a consagração constitucional dos direitos fundamentais do trabalhador, com particular referência ao fortalecimento do sindicato e à ampliação do direito de greve; 4. a maior dimensão do sufrágio universal e do direito de votar e de ser votado; 5. a redefinição das competências normativas, conferindo aos Estados e ao Distrito Federal poderes jamais antes concedidos; 6. a atribuição ao Município de efetivos instrumentos de autonomia; 7. o fortalecimento e aumento de atribuições do Legislativo, que é a casa do povo, deslocando o Executivo da posição majestática, antes detida; 8. os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais conferidas às Comissões Parlamentares de Inquérito; 9. a reformulação da partilha tributária, de sorte a viabilizar a federação; 10. o estabelecimento, pioneiro no patamar da Constituição, de uma clara e ordenada política urbana; 11. o regramento, voltado para os interesses da sociedade, do sistema financeiro nacional; 12. a elaboração, por vez primeira, de uma estrutura integral da seguridade social; 13. a total reformulação da disciplina fundamental da educação e da cultura, assentando a amplitude de seus fins e a generalização de seus beneficiários, priorizando o sistema público como destinatário dos recursos arrecadados da população; 14. os capítulos absolutamente inovadores e exemplares da comunicação social, ciência e tecnologia, desportos; o do meio ambiente, primeira consagração mundial do tema em sede constitucional, com a dignidade de direito público subjetivo, de natureza difusa; 15. o combate sem trégua à corrupção, através do fortalecimento do Ministério Público; 16. a preocupação específica com o idoso, a criança, o adolescente e o índio, todos, enfim, justamente considerados como titulares de atenção especial; 17. a revalorização da família, com o reconhecimento de seu novo perfil e a abolição das discriminações entre os filhos; 18. o fim da censura. REFLEXOS E CRÍTICAS

Não é de hoje que se atribui à Constituição de 1988 ter tornado o país ingovernável. E, de forma mais ácida, que “o único artigo irrecusável da Constituição era o que previa, no 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a revisão em cinco anos”. Por oportuno, merece o problema da revisão alguns comentários. Ele surgiu de uma emenda de autoria do deputado Joaquim Beviláqua, com a justificativa de que imitando, em parte, a Constituição Portuguesa - logo após a promulgação da Constituição, no ano seguinte, teríamos a eleição para Presidente da República, o que aconteceu. Restariam, ainda, três anos para concluir a legislação ordinária e complementar, isto é, quando se efetivasse a revisão as arestas, os senões, as imperfeições, o detalhismo, enfim, qualquer excesso, estariam todos corrigidos e ultrapassados. Infelizmente, as legislações ordinária e complementar não foram realizadas e a revisão não logrou êxito. Como se vê, os Constituintes de 88 tinham a mais absoluta razão de incluir esses cinco anos de decurso de prazo para a revisão. Quanto a ingovernabilidade é um argumento que não se põe de pé, por algumas razões inarredáveis. A primeira delas é que o Presidente da República à época da promulgação da Constituição era o, atual Senador, José Sarney que concluiu o seu mandato até 15 de março de 1990, data em que assumiu o novo Presidente eleito, Fernando Collor. Este, afastado pelo impeachement teve o restante do seu mandato cumprido pelo Vice, Itamar Franco. A seguir, os oito anos de mandato de Fernando Henrique Cardoso e, agora, há quase três anos, o do Presidente Lula. Ora, se o país fosse ingovernável - só para citar o período Collor - o Vice não teria assumido, como aconteceu com o Vice Pedro Aleixo. Vale dizer: - deve-se à Constituição de 88 a vivência de um período democrático, sem paralelos, no Brasil. Destarte, debitar-se à Constituição todos os equívocos - como se faz na atualidade - é esquecer o instante histórico em que ela foi elaborada, quando participaram da sua feitura políticos cassados, guerrilheiros, banidos, revanchistas etc. que, sem dúvida, contribuíram para o detalhismo condenável, como se vê nas relações de trabalho e o papel do Estado na economia. Sem contar, à época, com a chamada dicotomia entre os regimes capitalista e comunista. Por outro lado - e essa é a validade que se tenta esconder - apesar de ser o Brasil uma Federação, as principais decisões sempre foram tomadas pelo Governo Central. Com a Constituição de 88, a Federação ficou restabelecida, inclusive com a possibilidade de o Estado membro legislar concorrentemente sobre um série de matérias e, o que é digno de destaque, dispor de recursos para por em prática sua administração. Foi com a Constituição de 88 que se deu ênfase a descentralização administrativa, comprovando que o melhor governo é o que governa mais perto do cidadão, o qual poderá reclamar os seus direitos diretamente à Prefeitura ou ao Governo do Estado com a facilidade de que jamais dispôs em Brasília.


Assim é que houve a elevação do percentual de arrecadação dos dois mais produtivos impostos federais: o imposto de renda e o imposto sobre produtos industrializados, destinados a integrar o Fundo de Participação dos Municípios e o Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal. Para se ter uma idéia do progresso obtido com o aumento desses fundos, basta lembrar que até 1975 somente eram carreados para tais Fundos apenas 10% dos referidos impostos. Eis aí o fortalecimento do Municipalismo e o da Democracia. Ora, o fundo Especial até a Constituição de 88 era de 2% (os IR e IPI). Com a nova Constituição foi aumentado para 3%, com destino específico para os Estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste (art. 159, I, c). É imperioso registrar que a perda do Poder Central foi POLÍTICO e não ORÇAMENTÁRIO, uma vez que o texto constitucional determinou que a destinação das verbas orçamentárias a que tinham direito os estados a eles fossem repassados diretamente, sem intermediário. Antigamente - e esse ambiente está voltando - os Prefeitos e Governadores vinham ao Poder Central, como se costuma dizer, com “o pires na mão”, ou quando convocados pelo Presidente da República aos quais impunha que orientassem as suas bancadas no sentido de dar apoio ao que desejava o Poder Central. Repito: - o ambiente está voltando porque o governo anterior carregou nos impostos indiretos e cumulativos como o COFINS, o PIS, a Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL) e o CPMF e não fez o mesmo com os impostos diretos sobre a renda. Isto é: não há repasse para os Estados e Municípios. MINICOSNTITUINTE OU NOVO PACTO CONSTITUINTE

Já há numerosas declarações sobre a convocação de uma Constituinte restrita ou Miniconstituinte, as quais - com o respeito que os seus defensores merecem - é necessário, senão indispensável, fazer algumas oposições. Qual a semelhança entre o Brasil de hoje e o de 1964? Vamos retroagir um pouco no tempo. No primeiro semestre de 1964, sob os impulsos de um movimento popular, fruto ou não de equívoco, as Forças Armadas, com o apoio, manipulado ou não, de significativa parcela da classe política (parlamentares, governadores e prefeitos), destituíram o Presidente da República e operaram lesões na ordem político-institucional vigente, através dos chamados atos institucionais. Após um período de convivência da Constituição de 1946 com os atos institucionais, o Congresso Nacional foi chamado a institucionalizar o quadro jurídico resultante, através da elaboração da nova Constituição, que foi promulgada a 24 de janeiro de 1967 e entrou em vigor a 15 de março do mesmo ano. Durou pouco e, no curto espaço de tempo de sua vigência, ouviram-se as primeiras vozes em favor da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte,

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(...) deve-se à Constituição de 88 a vivência de um período democrático, sem paralelos, no Brasil.

idéia que, informalmente, foi defendida, desde abril de 1964, pelo saudoso Senador da Bahia, Aluísio de Carvalho Filho. A idéia não prosperou, uma vez que a 13 de dezembro de 1968 o estamento militar impôs ao Presidente da República a edição de ato institucional de nº 5, que promoveu a completa ruptura político-institucional. Eis aí o motivo forte para a convocação da Assembléia Nacional Constituinte: a completa ruptura políticoinstitucional. E dela decorreram todas as ações políticas que tiveram curso no País. Como pois, no momento atual - apesar dos problemas econômicos - quem pode negar a existência de um tempo excepcional de liberdade e da plenitude do Estado de Direito? É o que me leva a adotar opinião contrária ao chamado novo pacto constituinte. Ademais, a doutrina consiste em ver a Constituição como lei fundamental, onde se resguardam, acima e à margem das lutas de grupos e tendências, alguns poucos princípios básicos, que uma vez incorporados ao seu texto tornam-se indiscutíveis e insuscetíveis de novo acordo e nova decisão. Como não é todos os dias que uma comunidade política adota um novo sistema constitucional ou assume um novo destino, cumpre extrair da Constituição tudo o que permite a sua virtualidade, ao invés de, a todo instante, modificar-lhe o texto, a reboque de interesses meramente circunstanciais. CONCLUSÃO

Tendo procurado traçar - ainda que com cores esmaecidas - o retrato destes 15 anos da Constituição de 1988 e de seus resultados, bons ou ruins, devo, agora, à guisa de consideração final, registrar que a memória da História presente não permite a quem quer que seja - nem ao mais competente nem ao mais arguto - agredir a verdade, como tentar induzir que esta Constituição de 1988 foi um presente do Governo ou dos Constituintes. Não e não! Ela foi conquistada pelo povo que, com bravura, resistindo ou lutando contra o autoritarismo, tornou inevitável o advento da nova e renovadora ordem constitucional.

Conselheiro da Confederação Nacional do Comércio 2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


MÉDICO, MISTO DE ADMIRAÇÃO E TEMOR Walter Felippe D’ Agostino

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O médico é, ao mesmo tempo, esperado e temido. M temor, é amado e odiado simultaneam

atividade do médico, como de regra, a de todo profissional liberal, é extremamente complexa, porquanto as prestações profissionais, o objeto e a forma sobre os quais são exercidas muito

variam. O exercício da atividade médica, sem dúvidas, envolve riscos e, em determinadas situações, alto risco. Os riscos são das doenças e, por extensão das condições dos doentes. Porém, por vezes, conseqüências podem envolver o Médico, a quem está reservado o ofício de enfrentar os males do físico e da mente. Ao exercer sua nobilíssima função, é de se exigir que deverá agir com esmero e eficiência, probidade e clareza suficientes, dissipando dúvidas. Toda cautela e firmeza devem ser invocadas para o pleno esclarecimento de situações de saúde, garantido assim, respeito aos preceitos legais e morais, éticos e humanos, no relacionamento profissional. O Médico é, ao mesmo tempo, esperado e temido. Misto de admiração e temor, é amado e odiado simultaneamente. É normal o inconformismo com as conseqüências de atos médicos, donde decorre a necessidade de cobrança direcionada ao profissional. Responsabilidades existem e devem ser exigidas, mas, para tanto, é preciso que fique caracterizada, extreme de dúvidas, a culpa do Médico, o seu erro. O vocábulo erro possui larga sinonímia (falta, falha, engano, desacerto, equívoco, desvio, incorreção, inexatidão, entre outros significados). Mais. Muito mais que uma 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004

simples contingência é uma constante na vida humana. Erro pressupõe distanciamento do correto, divórcio do desejado, distorção do planejado. O erro médico significa, em última instância, contrair o correto, descumprir o certo. Encarando-se a doença como uma perversão do correto biológico, identificamos a doença como um erro da natureza. Ao médico, a responsabilidade de enfrentar os erros da natureza, corrigindo-os, quando possível. Encontra-se, certamente, em evidente desvantagem. Daí, de exigir-se dele a aplicação de conhecimento adequando, das técnicas usuais disponíveis, probidade e zelo no trato dos enfermos. Aí residirá a distinção entre erro e insucesso. O erro está calcado na figura da culpa: o insucesso, na imponderabilidade biológica. Não se evoluirá neste julgado discutindo-se a natureza da obrigação do médico, se é de meio ou de resultado, conceitos que até podem estar desatualizados, já que remonta a distinção aos primórdios do século passado, fruto do intelecto do DEMOGUE que, segundo FROSSARD, teria sido elaborada, precipuamente, para resolver a questão da repartição do ônus da prova, na responsabilidade contratual. Ao nosso ver, à doutrina compete fixar a exata dimensão da obrigação do médico, diante da legislação em vigor. “O que se torna preciso observar” – como o faz Aguiar Dias, em “Da Responsabilidade Civil”, Rio, forense, 8ª edição, 1987, vol. 1, pág. 299 – “é que o objeto do contrato médico não é a cura, obrigação de resultado, mas a prestação de cuidados conscienciosos, atentos e, salvo excepcionais, de acordo com as aquisições da ciência,


Misto de admiração e mente.

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na fórmula da Corte Suprema da França”. Citando frase de Ambrósio Paré, Je lês pansay. Dieu lês guarit, acrescenta considerar-se contrário ao costume ou à ética profissional assegurar o médico determinado resultado ao cliente, o que, no entanto, não influi na validade do compromisso desse teor, quando livremente por ele assumido. Antonio Chaves – “Tratado de Direito Civil, Responsabilidade”, vol. III, São Paulo, Ed. Revista Dos Tribunais, p. 396 -, diz que: “não se obriga o médico a restituir a saúde ao paciente aos seus cuidados, mas a conduzir-se com toda a diligência na aplicação dos conhecimentos científicos, para colimar, tanto quanto possível, aquele objetivo”. “Logo”, – pondera Ulderico Pires dos Santos, “A Responsabilidade Civil na Doutrina e na Jurisprudência”, Rio, Forense, 1984, pág. 361 – “para responsabilizá-lo pelos insucessos no exercício de seu mister que venham a causar danos aos seus clientes em conseqüência de sua atuação profissional é necessário que resulte provado de modo concludente que o evento danoso se deu em razão de negligência, imperícia ou erro grosseiro de sua parte”. O Código Civil posicionou a responsabilidade civil dos médicos e cirurgiões dentre as obrigações provenientes de atos ilícitos, nos termos do artigo 1.545, atualmente distribuída nos artigos 948/951 do novo diploma. Nada obstante isso, não se pode negar que, atualmente, a relação médico-paciente é uma relação contratualizada, tendência que Josserand já observava na jurisprudência francesa e que acabou por firmar-se, definitivamente,

depois do famoso julgado de 20 de maio de 1936, da Câmara Civil da Corte de Cassação (apud Aguiar Dias, “Da Responsabilidade Civil”, Ed. Forense, 4ª ed., pág. 294-5). O direito positivo pátrio vê na relação médico-paciente uma relação de consumo, sendo médico o fornecedor; o paciente, o consumidor e: o serviço prestado, o objeto dessa relação dispondo, como já o afirmamos linhas acima, que a responsabilidade civil dos profissionais liberais depende da verificação da culpa destes. Logo, deve o médico, no exercício de sua atividade, utilizar adequadamente os seus conhecimentos, obrar com zelo, com o cuidado, com a atenção devidos em relação aos pacientes, com técnica. A não observância de alguma dessas diligências importará na violação da obrigação contratualmente assumida perante o paciente. Não se trata, como adiante demostrar-se-á, de discutir se a obrigação do médico é de meio ou se é de resultado, até porque pode ser de ambos. Esse profissional tem um compromisso maior com o paciente, o da qualidade dos serviços que presta. Em artigo intitulado “A Bioética e a Relação MédicoPaciente”, publicado no periódico do Conselho Federal de Medicina, n°. 109, setembro 1999, pág. 08/09, o Doutor Júlio César Meirelles Gomes – médico e Conselheiro Federal do CFM - lembre que a relação médico-paciente, nos primórdios da Medicina, afigurava-se primorosa, solene e ocupava o ponto central da cena e que agora, na plena gestão da medicina científica, volta a ocupar lugar de destaque. 2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


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Toda cautela e firmeza devem ser invocadas para o pleno esclarecimento de situações de saúde, garantindo assim, respeito aos preceitos legais e morais, (...) no relacionamento profissional.

Professa que “antes de tudo, a atenção médica como uma forma de relação entre pessoas é provida do atributo mágico da afeição pela condição humana, prenhe de respeito e carinho pelo semelhante, e repousa no preceito basilar do cristianismo: ama a teu próximo como a ti mesmo”. Diz, ainda, o articulista que “a relação do médico com o paciente vem a ser um momento agudo, quase emergencial nessa convivência fraterna marcada pela feição técnica de aplicação de conhecimentos específicos, cuja base é a fraternidade. Sem esse lastro, aquele atributo não dispõe de peso, mostra-se frio, isolado e deixa de ser benemerência para se tornar esmola. O cuidado que um ser humano pode dispensar a seu semelhante é, por natureza, vário e plural e uma das formas possíveis é exatamente a atenção médica”. Esta introdução, talvez um pouco mais extensa do que o necessário, tem por finalidade compartilhar com as partes a visão serena e imparcial que deve ter o Magistrado da questão que, por sua própria natureza, é complexa, tormentosa e, por vezes, passional, pois não se ter sensibilidade para entender essa valoração ao ato médico que tem reflexos imediatos sobre a pessoa humana é reduzir esta à condição de coisa, retirando dela sua essência que é a dignidade. Qualquer ato que atue sobre a pessoa humana, suas características fundamentais, sua vida, sua integridade física, sua saúde mental, deve obrigatoriamente subordinase a preceitos éticos e aí, exatamente, é que se situa a atividade médica. Os direitos humanos tão arduamente conquistados 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004

no sentido da defesa da pessoa e da vida devem estar necessariamente conjugados com a bioética. O Eminente jurista patrício Dalmo de Abreu Dallari em artigo publicado pelo Conselho Federal de Medicina na Revista “Iniciação à Bioética”, fls. 241, assim pontifica: “Os direitos humanos não são uma nova moral nem uma religião leiga, mas são muito mais do que um idioma comum para toda a humanidade. São requisitos que o pesquisador deve estudar e integrar em seus conhecimentos utilizando as normas e os métodos de sua ciência, seja esta a filosofia, as humanidades, as ciências naturais, a sociologia, o direito, a história ou a geografia. A consciência dos direitos humanos é uma conquista fundamental da humanidade. A Bioética está inserida nessa conquista e, longe de se opor a ela, ou de existir numa área autônoma que não a considera, é instrumento valioso para dar efetividade aos seus preceitos numa esfera dos conhecimentos e das ações humanas diretamente relacionadas com a vida, valor e direito fundamental da pessoal humana.” O médico tem o dever de agir com diligência e cuidado no exercício da sua profissão, exigíveis de acordo com o estado da ciência e as regras consagradas pela prática médica, descurando-se de qualquer dessas circunstâncias, sujeita-se a ser chamado à responsabilidade sofrendo as conseqüências que daí advirão. Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro


O MESTRE CELSO FURTADO

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onheci o professor Celso Furtado no início da década de 60, no tempo em que fui líder estudantil e presidia o Diretório Central de Estudantes da então Universidade do Recife. Na ocasião, ele se dedicava, com status de Ministro de Estado, a uma desafiante tarefa que lhe confiara o presidente Juscelino Kubitschek: promover estudos com vistas a formular uma política de desenvolvimento para o Nordeste e constituir, a partir daí, uma instituição federal que a executasse. O projeto intitulado “Uma política para o desenvolvimento do Nordeste” envolveu uma equipe multidisciplinar mobilizada por Celso Furtado - e por ele coordenada - representando a primeira iniciativa bem tecida de plano integrado para a região nordestina. Destacaria dois pontos mais relevantes: a originalidade da proposta, por considerar que não era a seca o único problema da área, e sim, o subdesenvolvimento a causa maior condicionante das reduzidas taxas de crescimento econômico e os elevados níveis de desemprego e concentração de renda; ao lado disso, a criação da Sudene, pioneira autarquia federal destinada a coordenar e executar, em articulação com os estados, programas econômicos, sociais e culturais, sob a supervisão de um conselho deliberativo que se transformou em parlamento regional, constituído de ministros de Estado, governadores, representantes de trabalhadores e empresários. Furtado intuíra que as ações deveriam ser precedidas de consistente planejamento, ainda não exercitado com sofisticação técnica em nosso país, mormente no Nordeste. Preocupou-se em formar quadros para a Sudene e estabelecer enlaces com as Universidades da região. Valeu-se da cooperação de instituições brasileiras e do exterior; Cepal, BID e Banco Mundial. Roberto Campos, em 1992, ao analisar as obras de Lord Keynes e Frederick Hayek observou que este costumava afirmar que “não era bom economista quem fosse apenas economista’’. Celso Furtado antes de ser um economista, era um pensador social e, sobretudo um humanista, atento gassetianamente a tudo o que dissesse respeito ao homem e a

Foto: Richam Samir

Marco Maciel

sua circunstância. Observe-se a propósito o que pensava Celso Furtado em entrevista ao jornal A União, da Paraíba, após sua eleição para a Academia Brasileira de Letras: “Quando, finalmente, aos 26 anos de idade, comecei a estudar economia de maneira sistemática, minha visão do mundo já estava definida. Assim, a economia não chegaria a ser mais um instrumental, que me permitia com maior eficácia tratar problemas que vinha da observação da História ou da vida dos homens em sociedade. Pouca influência teve a economia, portanto, na conformação do meu espírito. Nunca pude compreender a existência de um problema estritamente econômico. Por exemplo, a inflação nunca foi, em meu espírito, outra coisa senão a manifestação de conflitos de certo tipo entre grupos sociais’’. Sua obra, especialmente a “Formação econômica do Brasil”, atesta a percepção metaeconômica, posto que social, cultural e política, de sua concepção do processo de desenvolvimento. “Caio Prado, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre, Celso Furtado, Raymundo Faoro e precursores de gênio como Nabuco voltaram-se para essas estruturas do passado a fim de nelas encontrar a chave do presente’’, lembrou o embaixador Rubens Ricupero. E acrescentou: “A eles devemos as referências e os parâmetros obrigatórios para qualquer discussão da experiência histórica brasileira’’. Depois de haver, no governo do presidente José Sarney, sido colega do mestre Celso Furtado, ele Ministro da Cultura e eu chefe do Gabinete Civil, voltei a ouvir, após o meu ingresso na ABL, as suas probas e densas lições, tendo sempre ao lado sua querida Rosa, que participava, intensamente, de sua vida com amorosa e total dedicação. No seu desaparecimento, resta o conforto de saber que a morte, como disse Rui Barbosa, “não divorcia, aproxima’’ e suas idéias continuarão a pervadir corações e mentes de quantos buscam consolidar a democracia e o desenvolvimento integrado do país. Senador da República 2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


INDEPENDÊNCIA AMEAÇADA Ney Moreira da Fonseca

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Para poder exercer a judicatura com total independência, os Tribunais Superiores não deveriam (...) estar sediados em Brasília, (...) tão próximos do Poder Político (...)

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ogo em seu artigo 2º a Constituições Federal estabelece serem os Poderes da União independentes e harmônicos entre si. Esses poderes, regime político brasileiro é o presidencialismo. O poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, com auxílio de Ministros de Estado, por ele livremente nomeados e demissíveis ad nutum. O Poder Legislativo é exercido por senadores, deputados federais, deputados estaduais e vereadores, todos eleitos pelo povo, em eleições diretas e secretas. O Poder Judiciário é exercido por juízes, desembargadores e ministros, nas esferas estaduais e federal. Os cargos são providos por meio de concursos públicos de provas e títulos e, em um quinto dos lugares nos tribunais, com a única exceção do Supremo Tribunal Federal, por representantes do Ministério Público e dos advogados, com mais de dez anos de carreira e de exercício profissional, respectivamente, de notório saber jurídico e reputação ilibada, por meio de listas sêxtuplas composta pelos órgãos de representação das respectivas classes, reduzidas a três pelos Tribunais e escolhido um pelo Presidente da República. O presidente da República também nomeia os Desembargadores Federais, os Ministros do Superior Tribunal de Justiça, os do Tribunal Superior do Trabalho, 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004

do Tribunal Superior Eleitoral, os do Superior Tribunal Militar, em lista tríplices compostas pelos respectivos Tribunais Superiores e os do Supremo Tribunal Federal, por sua livre e soberana escolha, após sabatina do Senado Federal. Essa Submissão do Poder Judiciário, máxime na esfera federal, ao Executivo, mais precisamente ao Presidente da República, com a nomeação de Desembargadores Federais e Ministros, cria uma indesejável e inconveniente limitação à independência funcional do magistrado. Só quem já passou por essa triste e longa semita de sofrimento e até de humilhação sabe como ela é inconveniente e desastrosa para a inafastável independência do juiz no exercício do múnus de julgar. São incontáveis meses, dias e horas de peregrinação humilhante pelos corredores do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e de gabinetes ministeriais em busca de apoios políticos, sobretudo os dos parlamentares dos partidos que dão sustentação política ao governo. Um parlamento dos partidos que dão sustentação política ao governo. Um longo e sofrido beija-mãos, absolutamente inconveniente à independência do juiz e à sua inarredável necessidade de autonomia para julgar com imparcialidade. Um autêntico jogo de pôquer. Os candidatos conhecem


Foto: Divulgação

os seus apoios, vale dizer o jogo que têm nas mãos, mas não conhecem os de seus competidores. Sem dúvida essa sistemática da luta pela nomeação, pela escolha, comprometem a futura independência na indeclinável obrigação que tem o juiz de julgar com imparcialidade, com independência total, submetidos tão-somente à sua consciência. Por que juízes não são escolhidos por critérios de mérito e antiguidade por próprios Tribunais, isto é, pelo próprio Poder Judiciário, observando-se o critério da carreira? Antiguidade e merecimento no Superior Tribunal de Justiça e não por sistemas de cotas de sexo e de etnia. Por que essa desnecessária e inconveniente submissão ao poder político? A sociedade assistiu perplexa a um recente julgamento do Supremo Tribunal Federal no caso da imposição de pagamento de contribuição previdenciária pelos aposentados, com indisfasável conotação política. E um dos ministros chegou a sustentar em seu voto que o Supremo não era só um tribunal jurídico, mas também político. Quando se sabe que o Supremo é a última instância recursal, é a Corte Constitucional, e deve ser o guardião da Constituição, essa postura assusta a sociedade, em especial aos mais fracos, aos desassistidos, na luta da sobrevivência

contra atos de tirania do Poder Executivo. Os malefícios dessa situação mais se exasperam quando se cogita, na reforma do Judiciário da implantação da chamada Súmula Vinculante, que irá impor a todo o judiciário as decisões do Supremo Tribunal Federal, em nome da agilização da prestação jurisdicional. Para poder exercer a judicatura com total independência, os Tribunais Superiores nem deveriam, a meu ver sentir, estar sediados em Brasília, uma cidade burocrática, tão próximos do Poder Político, especialmente o Supremo Tribunal Federal. Certa vez, o meu saudoso amigo, Ministro Evandro Lins e Silva, disse-me que o Ministro Barros Barreto, quando no exercício da Presidência do Supremo, e bem assim o Ministro Nelson Hungria, relutaram muito em transferir do Rio de Janeiro a sede da Alta Corte para Brasília. Por que não retorná-la ao Rio, seu berço histórico na Avenida Rio Branco, agora restaurado com esmero, servindo de sede ao magnífico Centro Cultural da Justiça Federal? Desembargador Federal Ap. / TRF 2ª Região 2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


Em entrevista ao Jornal do Commercio, o Ministro Márcio Thomaz Bastos referiu-se à temas de grande importância no que tange o cenário político-social do Brasil. A Revista Justiça & Cidadania transcreveu alguns trechos de grande relevância para o conhecimento do leitor.

“A

reforma do Judiciário é o ponto de partida para se construir uma nova justiça no Brasil. A grande mudança do Judiciário começa aqui”, disse o Ministro Márcio Thomaz Bastos quando questionado sobre o assunto. Sobre o Conselho Nacional de Justiça declarou na entrevista que: “Será a ferramenta responsável pelo planejamento do Judiciário, seja, orçamentário, financeiro e estratégico. No Brasil já há muita justiça; a criminal, a trabalhista, a civil e a federal, e ainda a primeira instância. Os tribunais superiores e os tribunais estaduais, cada um deles trabalha solto, sua articulação e seu planejamento são livres. Agora vamos abandonar as rotinas envelhecidas e planejar todas elas”. Márcio Thomaz Bastos não concorda que esteja tudo errado na Justiça. “Pelo contrário” – disse – “existem muitos magistrados competentes e criativos que tomam iniciativas surpreendentes”. Perguntado se gostaria de ver uma justiça “sem papel”, o Ministro declarou: “Essa justiça já existe em alguns lugares, mas precisa se espalhar e virar regra”. Declarou fazendo referência ao Estado de São Paulo, onde já existe uma justiça efetivamente sem papel. “É uma forma desburocratizada de fazer justiça, que espero que sirva de exemplo, assim como, os juizados itinerantes. Ainda sobre a Reforma do Judiciário aprovada pelo Senado, o Ministro destacou que a Cultura de Gestão é a coisa mais importante no Conselho Nacional de Justiça. “O Conselho é fundamental como organismo de planejamento pela possibilidade de se pensar o judiciário, de traçar metas para o próprio judiciário e fazer um planejamento estratégico, que nunca houve”. Sobre punição, destacou o Ministro que o Conselho não pode determinar a perda de cargo. Mas pode punir, propor a perda, suspender, censurar e aposentar compulsoriamente. Além disso, pode investigar, fazer todo o trabalho de corregedoria e, ao mesmo tempo, o de planejamento. Súmula Vinculante “A súmula vinculante passou prevalecendo a soberania do 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004

Congresso Nacional” – disse o Ministro afirmando que era contra a sua aprovação, assim como a OAB e as Associações de Juízes de 1ª Instância. “Acho, entretanto, que entre perdas e ganhos, a criação do Conselho é uma coisa muito importante para o Brasil porque vem coroar uma luta que começou em 1987”. O Ministro falou ainda das operações da Polícia Federal. “Isso é uma coisa planejada. Antes de tomar posse, fiz uma reunião a respeito da necessidade de usar a PF dentro desse conceito de segurança pública, como uma política de Estado, uma política que não é de governo. Política de um trabalho republicano impessoal, que não persegue, nem protege, e que não é o que vai atingir”. Com certa dose de otimismo o Ministro falou da campanha do desarmamento. “Nossa meta era recolher até 23 de dezembro, 80 mil armas. Já recolhemos 165 mil, então, subimos a meta para 200 mil”. Na abordagem feita sobre o cerco ao crime organizado disse: “a lavagem de dinheiro é a causa final do crime, que é organizado porque oculta o dinheiro desviado. Esse procedimento recicla e legaliza o dinheiro”. Sobre outros temas que repercutem atualmente, como a derrota da prefeita Marta Suplicy, em São Paulo, declarou: “A derrota de Marta foi uma grande injustiça na medida em que talvez tenha sido a grande experiência de uma administração distributiva de esquerda no Brasil, bem feita, bem consumada, com começo, meio e fim. Mas a democracia é exatamente isso, é você respeitar os resultados e procurar tirar as lições que as urnas trazem.” Indagado sobre a abertura do arquivo dos militares, Márcio Thomaz Bastos afirmou que eles devem ser abertos no ritmo do governo, respeitando o ritmo do Presidente. Mais um destaque de sua entrevista foi a reforma política, da qual declarou acreditar que o próximo ano não sendo eleitoreiro, seja propício para se fazer a reforma, formalizando e normatizando as tendências que a nação brasileira tem mostrado através das eleições.

Foto: Divulgação

UMA NOVA JUSTIÇA NO BRASIL


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2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27

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E o nosso também.

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Segurança na administração dos depósitos judiciais é o seu objetivo.


POSSE NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ganhou dois novos desembargadores no mês de novembro, os juízes Luis Felipe Salomão e Siro Darlan de Oliveira. A Revista Justiça & Cidadania transcreve abaixo trechos dos discursos dos juízes no dia da posse.

O perfil do Judiciário

e independente. E com uma nova estrutura de poder gerada a partir de uma necessária democratização interna, poderemos fazer uma revolução silenciosa. Se isso ocorrer, em breve o povo estará como aliado, orgulhoso dos seus magistrados, defendendo nas ruas as suas prerrogativas, que são, no fundo e ao cabo, as garantias do estado de direito. É preciso avançar mais, muito mais. O Judiciário que se quer, moderno e democrático, é como planta que exige cultivo. Não cresce em climas inóspitos. Só viceja em lugares onde sopram ventos da liberdade, onde os mandatários no plano administrativo são escolhidos pelo voto de todos os seus pares. Onde todos os Juízes são partícipes da administração, e não meros expectadores ou destinatários de regras impostas, com viés de subordinação que não deveria existir. Como poder encarregado de julgar a moralidade administrativa dos demais, o Judiciário não pode aceitar, internamente, deslizes com a ética. A confusão entre a coisa pública e privada levou a desvios, como por exemplo, o nepotismo e o apadrinhamento nas contratações de pessoal, que tanto custo de credibilidade nos acarreta. A luta pela democratização do acesso à justiça, transparência no Judiciário, critérios objetivos para promoções e remoções, com o fim das sessões e votos secretos em decisões administrativas; a eleição direta para os cargos de direção dos tribunais e do órgão especial; a defesa real das prerrogativas; a participação na elaboração do orçamento e uma maior democratização interna; além do fim do nepotismo, foram e serão prioridades para as entidades de classe.” Ao Centro, Luis Felipe Salomão proferindo seu discurso de posse.

“Qual o perfil dos juízes que estão sendo selecionados e preparados, ao longo desses quase quinze anos, entre o início dos anos 90 e o começo do novo século? Estão sendo recrutados aqueles que resolverão problemas intersubjetivos ou os que interferem em políticas públicas e interpretam as leis para a consecução do bem comum. Os que tornam reais os direitos constitucionais ou os que, burocraticamente, promovem o andamento dos processos? O que deseja a sociedade? Os problemas do mundo não mudaram tanto desde então, e o Judiciário continua, hoje, com o mesmo dilema, quase como no paralelo do mito de Orfeu. O novo perfil do Judiciário deve ser adequado ao mundo atual, e não nos é dado o direito de olhar para trás, devemos ‘lamber as nossas feridas’ e avançarmos firmes em direção ao futuro. Não há democracia, digna desse nome, sem Judiciário forte

Luis Felipe Salomão 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004


Fotos: Luis Henrique

Siro Darlan, sendo observado por Miguel Pachá, presidente do TJ / RJ, no ato da

A importância de lutar pelos sonhos

“Foram dez anos de uma Justiça a serviço da população infanto-juvenil e suas famílias em que se privilegiou a aproximação com a população mais carente como no projeto “Justiça nas Comunidades”, através do qual o Poder Judiciário vai ao encontro das necessidades do povo, gratuitamente; da mesma forma como em o “Escola de pais”, consagrado internacionalmente e apresentado em Congressos no exterior servindo de modelo de reintegração familiar de crianças em conflito com a família; o Família Solidária que promove a aproximação social entre os que possuem e tem espírito solidário e os mais necessitados; o Projeto “Pais Trabalhando”, o qual graças a sensibilidade da administração do Tribunal de Justiça tem dado emprego e sustentabilidade para tantos pais antes desempregados e violentos; o BECA-Banco de Empregos, Cursos e Aperfeiçoamento que conseguiu colocar no mercado de trabalho mais de 30000 adolescentes; o programa “Engraxando hoje para brilhar amanhã” que evitou que jovens ingressassem na mão-de-obra marginal. Citei apenas alguns dos muitos projetos e programas que fez com que o Judiciário do Rio de Janeiro se transformasse em paradigma para outras Varas especializadas no resto do país. Agradeço a todos que, consciente ou inconscientemente, me ensinaram a sonhar e a caminhar na direção desses sonhos, pois como Luther King, eu també tive um sonho. No Tribunal de meus sonhos, não haveria controle ideológico, respeitar-se-ia a autoridade. O Conselho de vitaliciamento e a Escola da Magistratura seriam plurais, pólos de incentivo a um conhecimento crítico, aberto ao novo, e o conhecimento transdiciplinar seria reconhecido e exigido dos Magistrados, tanto dos iniciantes quanto dos decanos do Tribunal. Haveria um maior entrosamento com a representação civil da sociedade para que o magistrado melhor se informe sobre a realidade da população excluída, encarcerada, dos movimentos populares,

dos sem-terra, dos sem direitos respeitados, dos torturados, dos explorados, das minorias sexuais e étnicas. Haveria maior sensibilidade e conhecimento da realidade do sistema carcerário tanto do sistema sócio-educativo quanto do sistema penitenciário. Sonhei que havia ingressado num Tribunal de Justiça onde o nepotismo fosse uma prática abandonada. Lembrando São Paulo, “Combati o bom combate, terminei a minha obra. Guardei a fé”. É assim, com o coração partido de saudade e sofrimento pelo ato de despedida, mas feliz por haver cumprido o meu dever, parto para outra trincheira, onde pretendo, com toda humildade, continuar servindo à causa das crianças e adolescentes mais excluídos e suas famílias, além de prestar toda minha contribuição para o aperfeiçoamento do Judiciário para que a cada dia esteja mais presente na vida dos cidadãos servindo à causa da verdadeira Justiça. Quero ainda, destacar a honra de estar ingressando nesse Tribunal de Justiça na cadeira deixada pelo Eminente Desembargador Gustavo Adolpho Küll Leite, substituir sua excelência aumenta muito a minha responsabilidade, mas tudo farei para honrar esse lugar que o destino me reservou. Concluindo, quero manifestar a minha fé nesse Deus que criou o céu, a terra, o sol, as estrelas, tudo fez e tudo criou para o seu louvor. Peço que me afaste de qualquer forma de mágoa ou rancor, ressentimento ou qualquer pensamento ruim em relação ao próximo, fazendo de mim um instrumento de sua paz. Que eu seja um instrumento de união entre todos os magistrados, serventuários e, sobretudo aqueles que por terem fome e sede de Justiça são os bem aventurados aos quais temos o dever de servir e entregar a prestação jurisdicional com a humildade de quem tem a consciência de estar na função judicante para servir e não para ser servido.”

Siro Darlan de Oliveira 2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29


REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL José Heitor dos

No Brasil, a maioridade penal já foi reduzida: Começa aos 12 anos de idade. A discussão sobre o tema, portanto, é estéril e objetiva, na verdade, isentar os culpados de responsabilidade pelo desrespeito aos direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente, previstos na Constituição Federal.

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maior de 18 anos de idade que pratica crimes e contravenções penais (infrações penais) pode ser preso, processado, condenado e, se o caso, cumprir pena em presídios. O menor de 18 anos de idade, de igual modo, também responde pelos crimes ou contravenções penais (atos infracionais) que pratica. Assim, um adolescente com 12 anos de idade (que na verdade ainda é psicologicamente uma criança), comete atos infracionais (crimes), pode ser internado (preso), processado, sancionado (condenado) e, se o caso, cumprir a medida (pena) em estabelecimentos educacionais, que são verdadeiros presídios. O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao adotar a teoria da proteção integral, que vê a criança e o adolescente (menores) como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, necessitando, em conseqüência, de proteção diferenciada, especializada e integral, não teve por objetivo manter a impunidade de jovens, autores de infrações penais, tanto que criou diversas medidas sócioseducativas que, na realidade, são verdadeiras penas, iguais àquelas aplicadas aos adultos. Assim, um menor com 12 anos de idade, que mata seu semelhante, se necessário, pode ser internado provisoriamente pelo prazo de 45 dias, internação esta

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que não passa de uma prisão, sendo semelhante, para o maior, à prisão temporária ou preventiva, com ressalva de que para o maior o prazo da prisão temporária, em algumas situações, não pode ser superior a 10 dias. Custodiado provisoriamente, sem sentença definitiva, o menor responde ao processo, com assistência de advogado, tem de indicar testemunhas de defesa, senta na banco dos réus, participa do julgamento, tudo igual ao maior de 18 anos, mas apenas com 12 anos de idade. Não é só. Ao final do processo, pode ser sancionado, na verdade condenado, e, em conseqüência, ser obrigado a cumprir uma medida, que pode ser a internação, na verdade uma pena privativa de liberdade, em estabelecimento educacional, na verdade presídio de menores, pelo máximo de três anos. A esta altura, muitos devem estar se perguntando: Mas a maioridade penal não se inicia aos 19 anos de idade? Sim e não! A Constituição Federal (art. 228) e as leis infraconstitucionais, como por exemplo o Código Penal (art. 27), o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 104) dizem que sim, ou seja, que a maioridade penal começa aos 18 anos, contudo o que acontece na prática é bem diferente, pois as medidas sócios-educativas aplicadas aos menores (adolescentes de 12 anos a 18 anos de idade) são verdadeiras penas, iguais as que são aplicadas aos


adultos, logo é forçoso concluir que a maioridade penal, no Brasil, começa aos 12 anos de idade. Vale lembrar, nesse particular, que a internação em estabelecimento educacional, a inserção em regime de semiliberdade, a liberdade assistida e a prestação de serviços à comunidade, algumas das medidas previstas no Estatuto da Criança e do adolescente (art. 112), são iguais ou muito semelhantes àquelas previstas no Código Penal para os adultos que são: prisão, igual à intenção do menor; regime semi-aberto, semelhante à inserção do menor em regime de semiliberdade; prisão, albergue ou domiciliar, semelhante a liberdade assistida aplicada ao menor; prestação de serviços à comunidade, exatamente igual para menores e adultos. È verdade que ao criar as medidas sócio-educativas, o legislador tentou dar um tratamento diferenciado aos menores, reconhecendo neles a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento. Nessa linha, as medidas deveriam ser aplicadas para recuperar e reintegrar o jovem à comunidade, o que lamentavelmente não ocorre, pois ao serem executadas transformam-se em verdadeiras penas, completamente inócuas, ineficazes, gerando a impunidade, tão reclamada e combatida por todos. No processo de sua execução, esta é a verdade, as medidas transformam-se em castigos, revoltam os menores, os maiores, a sociedade, não recuperam ninguém, a exemplo do que ocorre no sistema penitenciário adotado para adultos. A questão, portanto, não é reduzir a maioridade penal, que na prática já foi reduzida, mas discutir o processo de execução das medidas aplicadas aos menores, que é completamente falho, corrigi-lo, pô-lo em funcionamento e, além disso, aperfeiçoá-lo, buscando assim a recuperação de jovens que se envolvem em crimes, evitando-se, de outro lado, com esse atual processo de execução, semelhante ao adotado para o maior, que é reconhecidamente falido, corrompê-los ainda mais. O Estado, Poder Público, Família e Sociedade, que têm por obrigação garantir os direitos fundamentais da criança e do adolescente (menores), não podem, para cobrir suas falhas e faltas, que são gritantes e vergonhosas, exigir que a maioridade penal seja reduzida. Para ilustrar, vejam quantas crianças sem escola (quase três milhões) e sem saúde (milhões) por omissão do Estado; quantas outras abandonadas nas ruas ou em instituições, por omissão dos pais e da família; quantas sofrendo abusos sexuais e violências domésticas por parte dos pais e da família; quantas exploradas no trabalho, no campo e na cidade (cerca de 7,5 milhões), sendo obrigadas a trabalhar em minas, galerias de esgotos, matadouros, curtumes, carvoarias, pedreiras, lavouras, batedeiras de sisal, no corte de cana-de-açúcar, em depósitos de lixo etc, por ação dos pais e omissão do Estado. A sociedade, por seu lado, que não desconhece todos estes problemas, que prejudicam sensivelmente os menores, não exige mudanças, tolera, aceita, cala-se, mas ao vê-los envolvidos em crimes, muitos provavelmente por conta

destas situações, grita, esperneia, sugere, cobra, coloca-os em situação irregular e exige, para eles, punição, castigo, internação, abrigo em instituições. Ora, quem está em situação irregular não é a criança ou o adolescente, mas o Estado, que não cumpre suas políticas sociais básicas; a Família, que não tem estrutura e abandona a criança; os pais que descumprem os deveres do pátrio poder; a Sociedade, que não exige do Poder Público a execução de políticas públicas sóciais dirigidas à criança e ao adolescente. O sistema é falho, principalmente o da execução das medidas sócio-educativas, para não dizer falido, mas o menor, um ser em desenvolvimento, que necessita do auxílio de todos para ser criado, educado e formado, é quem vem sofrendo as conseqüências da falta de todos aqueles que de fato e de direito são verdadeiros culpados pela situação de risco. Não bastasse isso, o que, por si só, já é extremamente grave, pretendem alguns reduzir a maioridade penal, tentando, com a proposta, diminuir sua culpa e eliminar os problemas da criminalidade, esquecendo-se, porém, além de tantos outros aspectos, que metade da população é composta de crianças e adolescentes, os quais, contudo, são autores de apenas 10% dos crimes praticados. A proposta de redução busca encobrir as falhas dos poderes das Instituições, da Família e da Sociedade e, de outro lado, revela a falta de coragem de muitos em enfrentar o problema na sua raiz, cumprindo ou compelindo os faltosos a cumprir com seus deveres, o que é lamentável pois preferem atingir os mais fracos – crianças e adolescentes -, que muitas vezes não têm, para socorrê-los, sequer o auxílio da família. Por estes motivos e outros, repudiamos a proposta de redução da maioridade penal, que, se vingar, configurará um “crime hediondo”, praticado contra milhões de crianças e adolescentes, que vivem em situação de risco por culpa não deles mas de outros que estão tentando esconder suas faltas atrás desta proposta, que, ademais, se aprovada, não diminuirá a criminalidade, a exemplo do que já ocorreu em outros países do Mundo.

Promotor de Justiça no Estado de São Paulo Professor de Direito Processual Civil na Unip, no Estado de São Paulo

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A IMPORTÂNCIA DA ESTABILIDADE NO MERCADO DE GÁS NATURAL CANALIZADO Armando Laudorio

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mercado de distribuição de gás canalizado no Brasil, especialmente no Estado do Rio de Janeiro, experimentou, nos últimos anos, acentuado crescimento. No Rio de Janeiro, esse crescimento decorreu do ambiente de estabilidade jurídica e regulatória até agora observado, ensejando pesados investimentos realizados pelas empresas distribuidoras de Gás do Rio de Janeiro. Para se ter uma idéia, o investimento dessas empresas no primeiro qüinqüênio após a privatização foi, aproximadamente, cinco vezes superior ao investimento realizado no período da administração estatal compreendido entre 1990 e 1997. Os investimentos, desde o ano de 1997 até 2002, alcançaram o montante total de R$ 473.7 milhões, e para o qüinqüênio, de 2003 a 2007, os investimentos previstos são da ordem de R$ 1.1 bilhão de reais, dependendo a concretização desse ambicioso plano de investimentos,

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basicamente, da aprovação das propostas de revisão tarifária apresentadas, tempestivamente, pelas Concessionárias ao ente regulador – o que se acredita que vá ocorrer por terem sido as mesmas elaboradas em consonância com os marcos regulatórios -, como forma de garantir as necessárias seguranças jurídica e regulatória. Nesse particular, cabe destacar que a proposta de revisão tarifária apresentada pelas Concessionárias à Agência Reguladora há, praticamente, 2 anos e meio atrás, implica em manter as tarifas de todos os segmentos, com pequeno ajuste no segmento do GNC (Gás Natural Veicular). Esses investimentos, realizados e pretendidos, não só resultam de obrigações e diretrizes estabelecidas pelo Poder Concedente na forma de metas nos Contratos de Concessão, mas, especialmente, de políticas diretivas internas das próprias Concessionárias, que traduzem práticas de moderna gestão empresarial e atendem aos objetos de universalização almejados pelo Estado quando da concessão dos serviços.


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A universalização dos serviços públicos de distribuição de gás natural canalizado pode ser considerada senão o maior, um dos maiores objetivos das privatizações e concessões realizadas no país e neste Estado. Ela representa a modernidade tecnológica chegando a regiões menos privilegiadas do interior, gerando riqueza e movimentando a economia. A instabilidade que poderia ameaçar a continuidade desse grandioso trabalho das concessionárias pode se traduzir, por exemplo, na quebra de contratos, na captura dos reguladores por interesses contrários aos marcos regulatórios, demora nas decisões regulatórias e judiciais, na tentativa do regulador se arvorar em legislador, por decisões regulatórias que não observem os princípios básicos que regem a Administração Pública ou que revoguem atos jurídicos perfeitos, por processos regulatórios em que não seja observado o pleno exercício do direito de defesa dos envolvidos, falta de motivação das decisões etc.

Foto: Divulgação

Preservar os direitos dos investidores, consolidados através de marcos regulatórios previamente estabelecidos e acordados, é preservar o interesse público(...)

Há que se atentar para o fato de que a atuação regulatória tem por fim a preservação dos interesses públicos e, portanto, jamais poderá se dar com a revisão de atos jurídicos perfeitos ou com a quebra de ajustes previamente pactuados, pois é do interesse público a manutenção do capital privado na exploração dos serviços públicos, pelos incontestáveis benefícios que o mesmo vem trazendo e ainda poderá trazer à população em geral. Dentro desse contexto, para que os objetivos econômicos, jurídicos e sociais da regulação sejam alcançados, com a manutenção de investimentos, é primordial a manutenção do equilíbrio econômicofinanceiro dos contratos de concessão firmados entre os investidores e o poder público. O equilíbrio econômico-financeiro é a relação estabelecida inicialmente entre as partes, quando se determinam as obrigações da concessionária e a retribuição regulada pelo Poder Concedente, que provê a justa 2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


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A universalização dos serviços públicos de distribuição de gás natural canalizado pode ser considerada senão o maior, um dos maiores objetivos das privatizações e concessões realizadas no país e neste Estado.

remuneração do objeto da concessão, quando as receitas das empresas são suficientes para cobrir as despesas e remunerar o capital investido, seja próprio ou de terceiros, e que deve ser mantida durante todo o prazo do contrato, a fim de que os investidores não venham a sofrer indevida redução no retorno esperado do empreendimento. É uma medida de justiça e equidade, que objetiva assegurar continuidade da prestação do serviço. Nesse contexto, ao regulador, como integrante da Administração Pública, cabe observar na prolação de suas decisões, os princípios básicos a ela aplicáveis, dentre outros, os princípios da Legalidade, Moralidade e Impessoalidade, Igualdade, Publicidade, Razoabilidade e Proporcionalidade. Em linha com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o regulador está obrigado a aplicar penalidades regulatórias que guardem proporção e razoabilidade quando consideradas suas causas, ou seja, as infrações cometidas. Também não se pode admitir a vulgarização de sanções pecuniárias, sob pena de se substituir o caráter educativo da penalidade, pelo caráter meramente arrecadatório. Ademais, a atribuição indiscriminada de multas, gera uma suspeição sobre as decisões regulatórias que as fixarem posto que, em regra, os montantes correspondentes revertem, em geral, a favor dos próprios entes reguladores. Tudo em franco descrédito à seriedade das instituições regulatórias. Para assegurar a necessária segurança jurídica e regulatória, cabe destacar a possibilidade de controle jurisdicional dos atos das Agências Reguladoras, quando o Poder Judiciário passa a ser palco de discussões decisivas e assume a responsabilidade de assegurar o cumprimento de cláusulas contratuais e dos marcos regulatórios, como de costume, de maneira firme, garantindo imparcialidade e legalidade às decisões. Preservar os direitos dos investidores, consolidados através de marcos regulatórios previamente estabelecidos e acordados, é preservar o interesse público, na medida 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004

em que esse procedimento estará gerando um ambiente de atratividade para os investimentos e para o desenvolvimento econômico sustentável. Para que os objetivos do Estado, através das delegações de serviços públicos, sejam atingidos - em especial das concessões de gás canalizado -, é preciso que se dê especial atenção às necessidades de universalização dos serviços, uma das principais metas objetivadas quando das privatizações, sob pena de avalizar privilégios de uma minoria consumidora, em detrimento de uma maioria alijada do direito inalienável de usufruir dos benefícios desses serviços. Assim, cabe ao Poder Judiciário, o destacado papel de corrigir eventuais ilegalidades, garantindo o funcionamento das instituições e dos mercados dentro de um ambiente de previsibilidade, de forma a preservar o investimento privado com base nos ditames dos marcos regulatórios, pois é sabido que a dúvida em economia se traduz em custo. Cabe destacar ainda, que aos investidores não interessa a fixação de tarifas irreais e sim de tarifas justas, posto que, tarifas acima dos patamares reais e devidos, aumentariam o risco de inadimplência e de perda de mercado consumidor, enquanto tarifas abaixo dos valores contratuais e legalmente previstos, reduziriam na mesma proporção, os investimentos a serem realizados, reduzindo, com isso os benefícios inerentes aos mesmos. Assim, fica demonstrado que a responsabilidade do regulador/juiz é enorme no que tange ao futuro dos serviços públicos e ao desenvolvimento econômico sustentável do país. Em suas mãos está o grande desafio de manter os níveis de investimento previstos pelos investidores com base em planos de expansão audaciosos, que buscam expandir seus mercados ou optar pela decretação do fracasso do modelo de Estado Regulador. Diretor de Relações Institucionais CEG / CEG Rio


HOMENAGEM AO DESEMBARGADOR SÉRGIO CAVALLIERI O Desembargador Sérgio Cavallieri foi a figura central de um jantar oferecido pelo vicepresidente do Jornal do Brasil e Gazeta Mercantil, Paulo Marinho, em sua residência da Península dos Ministros. Estavam presentes figuras do mundo jurídico do Rio, São Paulo e de Brasília, como ministros de tribunais superiores, desembargadores, juízes e advogados. E também jornalistas e políticos. Abrilhantaram a homenagem as presenças do vice-presidente e ministro da Defesa, José Alencar, presidente do Senado, José Sarney, e do chefe da Casa Civil da Presidência, José Dirceu. O anfitrião aproveitou o encontro para homenagear também o mais novo desembargador do Estado do Rio, Luiz Felipe Salomão.

Fotos: Paulo Lima

Da esquerda para direita:O Vice-Presidente da República e Ministro da Defesa, José Alencar e o presidente do Congresso, José Sarney ladeando o homenageado da noite, o Desembargador carioca Sérgio Cavallieri Filho.

Da esquerda para direita: Paulo Marinho, o Ministro José Dirceu e o homenageado. 2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35


Rui Jurista, Jornalista, Diplomata e Edison Torres Carla Santos

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“De tanto ver triunfar as nulidades, De tanto ver prosperar a desonra, De tanto ver crescer a injustiça, De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, O homem chega a desanimar-se da virtude, A rir-se da honra, A ter vergonha de ser honesto.” Rui Barbosa

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ui Barbosa foi, sem dúvida, um dos mais importantes personagens da História do Brasil. Dotado não apenas de inteligência privilegiada, mas também de grande capacidade de trabalho. Essas características permitiram-lhe deixar marcas profundas em várias áreas da vida profissional, seja nos campos do direito – como advogado ou como jurista – seja no jornalismo, na diplomacia e na política.   Foi deputado, senador, ministro e candidato a Presidência da República em duas ocasiões, tendo realizado campanhas memoráveis. Seu comportamento sempre revelou sólidos princípios éticos e grande independência polí­ tica. Participou de todas as grandes questões de sua época, entre as quais, a Campanha Abolicionista, a defesa da Federação, a própria fundação da República e a Campanha Civilista. Rui conhecia a fundo o pensamento político constitucional anglo-americano, que, por seu intermédio, tanto influenciou na feitura da nossa primeira

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Constituição Republicana. Era um liberal, e sempre um defensor incansável de todas as liberdades. Estudioso da língua portuguesa e um Orador imbatível acabou sendo nomeado presidente da Academia Brasileira de Letras em substituição ao grande Machado de Assis. Em suma, Rui foi um cidadão exemplar e ainda hoje, sua memória é fonte de inspiração para um grande número de brasileiros. Inquieto e sonhador Filho de Maria Adélia e João José Barbosa de Oliveira, Rui Barbosa de Oliveira nasceu na Bahia, em 05 de novembro de 1849. Irmão de Brites Barbosa, Rui contou com a boa influência da trajetória de seu pai, renomado médico e político de tendência liberal. Casou-se com Maria Augusta Viana Bandeira, em 1876, neste mesmo ano, traduziu e publicou a obra “O Papa e


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o Concílio”, que apesar de não lograr o êxito financeiro esperado, obteve grande repercussão. O “Diário do Rio de Janeiro” publicou críticas à respeito da introdução feita pelo tradutor. Esta contava com 285 páginas, e excedeu em importância a obra alemã que fora traduzida. Em 1878 começava seu ano político. Rui obteve sua ascensão no parlamento juntamente com a subida do seu partido com a situação liberal. Foi eleito à Assembléia Provincial da Bahia durante uma legislatura, e deputado por dois mandatos consecutivos. Em seis anos de parlamento conquistou uma posição primacial nas esferas políticas e intelectuais do país. Colaborou ativamente na reforma eleitoral, com o “projeto saraiva” aprovado em 1881. Foi autor de um plano de reforma do ensino em 1882, que não chegou a ser aprovado, e, em 1884, foi encarregado pelo Ministério de elaborar o projeto de abolição do elemento servil. A experiência no governo lhe proporcionou amargas decepções, pois aceitara o convite pensando ter alcançado a oportunidade para realizar as ambições do seu espírito inquieto e sonhador, e só encontrara ódio e incompreensão em seus atos, tendo sido injustamente acusado de enriquecimento ilícito, mesmo sem ostentar qualquer patrimônio. Coube-lhe ainda, ser o advogado que primeiro recorreu à justiça pedindo o julgamento de atos legislativos e do executivo, em habeas corpus famosos que constituem peças fundamentais na interpretação do estatuto político de 1891. Em sua intransigência na defesa dos princípios constitucionais e na sua obediência aos textos legais, iniciou uma campanha contra o Governo Floriano, lançando suas críticas através de textos vinculados pelo Jornal do Brasil. Por este seu posicionamento de defesa dos oprimidos contra a tirania na imprensa, no senado e nos tribunais, foi declarado suspeito de ligação com o movimento revolucionário contra o governo que rebentou em 1893. Assim, não lhe restou outro recurso, senão o exílio, a princípio no Chile, depois na Argentina, em Portugal e na Inglaterra, seu último refúgio. Em Londres escreveu as famosas Cartas da Inglaterra para o Jornal do Commercio. Rui Barbosa morreu em Petrópolis no dia 1º de março de 1923, aos 74 anos, sua morte repercutiu em todas as camadas da população. Rui deixou inacabada “A imprensa e o dever da verdade”, Obra sobre o papel do jornalismo na construção da cidadania. Princípio da Igualdade Jurídica Restaurada a ordem no Brasil, em 1895 Rui Barbosa regressou do exílio. Tomou assento no Senado, no qual se manteve até à morte, sucessivamente sendo reeleito. Em 1905, a Bahia levantou sua candidatura à presidência da República, mas Rui abriu mão da mesma para decidir

Foto Enciclopédia Nosso Século

a favor de Afonso Pena. Em 1907, o czar da Rússia convocou a 2ª Conferência da Paz, em Haia, o Barão do Rio Branco, no Ministério das Relações Exteriores, escolheu primeiramente Joaquim Nabuco para chefiar a delegação brasileira, mas a imprensa e a opinião pública lançaram o nome de Rui Barbosa. Seu papel em Haia foi de grande importância. Defendeu tenazmente o princípio da igualdade jurídica das nações, enfrentando irredutíveis preconceitos das chamadas grandes potências. Agiu realmente como apóstolo de um ideal humano. Foi nomeado Presidente de Honra da Primeira Comissão, teve seu nome colocado entre os “Sete Sábios de Haia”. Destas atitudes, lhe adveio um renome internacional que lhe valeu, em 1921, a eleição pelo Conselho da Liga das Nações para compor a Corte Permanente de Justiça Internacional, por uma votação que superou a de todos os demais candidatos. 2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


Campanha Civilista De volta ao Brasil, Rui Barbosa interveio no início da sucessão presidencial se opondo a candidatura do Marechal Hermes da Fonseca, então Ministro da Guerra. A candidatura do Marechal já era uma realidade. Da oposição à Affonso Penna, Hermes da Fonseca salta para a situação, pois seu nome recebe o apoio de Nilo Peçanha, vice-presidente, Pinheiro Machado e com ele o partido republicano Gaúcho, o partido republicano Mineiro e alguns estados do Norte e do Nordeste e ainda várias facções oligárquicas e setores militares. Inconformado com o perfil militarista da candidatura do Marechal, Rui Barbosa articulou seu próprio nome nos arraiais da oposição e lançou sua campanha civilista. Foi sua primeira candidatura à presidência da República. Sua campanha foi considerada como um movimento político de amplitude até então inédita no Brasil, e atingiu praticamente todas as classes em todo o país. O Partido Republicano paulista empresta seu apoio a Rui. Rompe-se a política do “café-com-leite”. Começada a campanha eleitoral, Rui, de 3 de outubro a 1º de março, ocupa a tribuna popular, a parlamentar e a da imprensa. Faz oito conferências, pronuncia 15 discursos e profere dez alocuções.

Escreve um manifesto à Nação e uma carta ao eleitorado. Era um recorde para um país que passa a conhecer o que é uma verdadeira campanha eleitoral. Mas, o apoio ao candidato civilista não era unânime nas cidades. Hermes da Fonseca contava igualmente com a simpatia de setores das classes médias. Pela primeira vez na história da República Velha, uma campanha eleitoral ganhou ruas e galvanizou a opinião pública em formação. Ao lado de Rui Barbosa agruparam-se além do PRP e do situacionismo baiano, o Partido Federalista do Rio Grande do Sul, setores das elites e amplos segmentos das classes médias urbanas. Mas a campanha não alcançou o sucesso esperado, resultado disso foi a vitória do Marechal. A derrota foi justificada como uma evidente manifestação da vontade nacional, sendo a origem de uma corrente de indignação contra a velha máquina política, viciada e fraudulenta. Venceu o candidato que controlava a maior parte do sistema eleitoral. No poder, Hermes da Fonseca lançou a Campanha de “Salvações Nacionais”, derrubando elites dominantes de Estados do Norte e do Nordeste. Começava na vida do país, um período turbulento, revelador da insatisfação política das cidades.

O ENCILHAMENTO - DÍVIDA, INFLAÇÃO E CRISE ECONÔMICA Essa expressão é usada para nomear os anos da ação de Rui Barbosa à frente do Ministério da Fazenda, de Deodoro da Fonseca. Rui Barbosa - que além de ministro, foi diplomata, advogado e um dos políticos mais atuantes do país - tinha como principal objetivo modernizar e estimular a industrialização. Tudo começou com o Decreto nº. 165 de 17 de janeiro de 1890. A idéia era simples: permitir que os bancos emitissem dinheiro, lastreado apenas por bônus governamentais, e não por fundos de reservas. Foram lançados no mercado 450 mil contos – o dobro da quantia então em circulação no país. Na verdade, o decreto foi baixado justamente para suprir a ausência crônica do “meio circulante” (quantidade de moeda em circulação no país). Desde o império era evidente que não havia papel-moeda suficiente para suprir 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004


Voto Secreto: a proposta da primeira campanha eleitoral do país A rigor, as diferenças entre a sua candidatura e a do Marechal não eram essenciais. Nenhuma das duas propunha transformações fundamentais no viciado sistema oligárquico. Na campanha civilista, porém, Rui colocava o dedo numa das chagas do antigo sistema: “A segunda exigência da nossa moralização eleitoral consiste em extinguir radicalmente a publicidade no voto. A publicidade é a servidão do votante. O segredo é a sua independência”, dizia ele em sua plataforma. Ao colocar a luta pelo voto secreto no centro do seu programa Rui Barbosa revelava extrema sensibilidade política, captando a crescente insatisfação nas classes médias urbanas. O sistema eleitoral era uma das barreiras que impediam a participação popular nos centros de decisão. Investindo contra tal sistema, o senador baiano aparecia aos olhos das massas urbanas, como o campeão do liberalismo e da luta contra as oligarquias no poder. Rui e a República Dois dias após a publicação do seu contundente artigo

as necessidades impostas pelo trabalhador assalariado, realizado por mais de um milhão de escravos libertos e imigrantes recémchegados. Em tese, portanto, a nova medida estava correta. Mas a questão é que o Decreto nº. 165 incentivava também a criação de sociedades anônimas e liberava o crédito. Desencadeou-se uma corrida desenfreada às bolsas de valores e os bancos faziam “chover” dinheiro. Milhares de empresas – muitas delas fictícias – foram criadas da noite para o dia. Dessa forma, o encilhamento gerou desenfreada especulação devido à concorrência entre as empresas proprietárias de ações. Bolsas em queda súbita, empresas falindo, inflação acelerada, fuga do ouro, corre-corre do povo por causa da depreciação cambial e o Governo atordoado a emitir notas. As boas intenções de Rui acabaram por jogar o país numa tremenda crise. Surgiu,

“O Plano contra a Pátria”, Rui Barbosa é levado por Benjamin Constant a uma reunião na casa de Deodoro da Fonseca, que aceitara dirigir o movimento revolucionário. Em seguida, por intermédio de Quintino Bocaiúva, Rui recebe convite para assumir a pasta da Fazenda, assim que a República fosse proclamada. Em 15 de novembro de 1889, já estava decretado o fim da Monarquia e instituída a República Federativa dos Estados Unidos do Brasil. Uma das primeiras medidas do novo governo foi determinar o banimento da Família Real. O Imperador D. Pedro II acatou a ordem expedida no dia 16 de novembro, e naquela mesma noite embarcou para Lisboa. A Constituinte Logo após a proclamação da República o Governo Provisório nomeou uma comissão de juristas para elaborar o projeto de Constituição. Esse projeto deveria ser submetido à discussão e aprovação da Assembléia Constituinte, escolhida por meio de eleições, a ser instalada em 15 de novembro de 1890. O projeto apresentado pela Comissão não foi aprovado pelo Governo Provisório, que encarregou Rui Barbosa de revê-lo. Por quinze dias,

assim, a idéia de que a República seria o “reino dos negócios”. A especulação atingiu níveis estratosféricos. A enlouquecida disputa pela preferência dos investigadores nos pregões foi logo identificada como o encilhamento dos cavalos antes da largada no hipódromo – instante no qual a atividade dos apostadores se torna frenética. E assim foi que o povo acabou batizando o “pacote”. Em menos de um ano, o balão estourou. Muitas ações não tinham lastro ou correspondência monetária – eram títulos falsos de empresas fantasmas. No início de 1981, a crise começou. O custo de vida disparou, o desemprego veio em massa, o valor da moeda brasileira com relação à libra desabou. Com o país mergulhado no caos, o ministro se demitiu.

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Defendeu tenazmente o princípio da igualdade jurídica das nações, enfrentando irredutíveis preconceitos das chamadas grandes potências.

Rui reuniu-se em sua residência, na praia do Flamengo, para discutir com todos os ministros os artigos com suas emendas. Por fim, deu forma definitiva ao projeto, aprovado em junho de 1890, que contemplava a federação, o presidencialismo e a divisão dos poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário. Uma das mais significativas contribuições de Rui Barbosa à Constituição de 1891 foi atribuir ao recémcriado Supremo Tribunal Federal o controle sobre a constitucionalidade das leis e atos do Legislativo e Executivo. E, como o projeto constitucional não contemplava a garantia da liberdade do indivíduo em situações de violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder, Rui acrescentou-lhe o direito ao habbeas corpus. Assim, foi Rui Barbosa quem transformou o STF no Guardião da Constituição e, em especial, dos direitos e das liberdades individuais. Em 24 de fevereiro de 1891, quando finalmente foi promulgada a primeira Constituição Republicana, a qual, trazia a marca indelével das contribuições de Rui Barbosa. Deve-se a ele o figurino federativo e presidencial que a República assumiu. Rui Barbosa – O advogado Em 20 de dezembro de 1948 Rui Barbosa foi aclamado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil como Patrono dos advogados brasileiros. Conforme avalia corretamente Otto Gil, houve razões de sobra para esta atitude, explicando que “não são, apenas, os trabalhos forenses, os pareceres jurídicos, a revisão do Código Civil, que fazem Rui estar sempre presente aos Advogados. Ao lado dessa fecunda produção doutrinária, lugar de merecido destaque, tem passado para nós as suas lições de Ética profissional, dadas quando não se sonhava sequer com o Código de Ética e Advocacia”. É impressionante a atuação de Rui como profissional do fôro, defrontando-se em espetaculares debates como os maiores advogados de sua época, esmagando os seus adversários com os veios de ouro de seus arrazoados. Também na polêmica em torno da redação do Código Civil, Rui ensinou aos advogados que o conhecimento do vernáculo é indispensável ao bom manuseio dos textos da lei e sua interpretação. Rui legou ainda as doutas lições de suas celébres 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004

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petições de habeas Corpus que apresentou ao STF em 1892 e 1893, em defesa da liberdade dos cidadãos, presos em virtude do estado de sítio; a sustentação oral do primeiro desses habeas Corpus, quando declarou que o verdadeiro impetrante era a nação brasileira, e, ainda, a corajosa crítica ao acórdão do Supremo, na qual Rui demonstrou o desacordo da decisão denegatória. É de grande valor as palavras com que Rui conceitua a profissão e a eleva a verdadeiro apostolado: “Tratandose de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluta e indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova: e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas. Cada uma delas constitui uma garantia, maior ou menor, da liqüidação da verdade, cujo interesse em todas se deve acatar rigorosamente”.

O Mito Deputado, senador, vice-chefe do Governo Provisório, Ministro da Fazenda nos primeiros anos da República e ideólogo de reformas sociais, Rui Barbosa consagrou-se como a consciência crítica do povo brasileiro. Sem jamais ter chegado à Presidência da Nação, sua figura surpreende pela força e permanência no imaginário popular. Representando talvez o mito bíblico de Davi e Golias, esse homem franzino, de pouco mais de um metro e meio de altura, consolidou as bases do lendário construído em torno de si, sobretudo a partir da Conferência da Paz em Haia. Sua brilhante participação no conclave correu mundo em versões aumentadas e exageradas, com notícias sobre um suposto poliglotismo de Rui. Diziam de Rui, um mito, que dominava todas as línguas vivas ou mortas, fazendo as nações civilizadas calarem-se assombradas. Raros homens públicos foram em vida alvo de tantas caricaturas, desenhos, canções, anedotas e poemas como Rui Barbosa. Muitos contemporâneos já expressavam admiração perante sua eloqüência e disposição cívica. Desesperança No crepúsculo da vida, desiludido e cético quanto à política, Rui em 1921 resolve abandonar a cadeira no


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Parlamento, e justificava sua posição de desesperança: “Acabando, por fim, de ver que não tenho meio de conseguir nada a bem dos princípios a que consagrei minha vida, e que a lealdade a essas convicções me tornou um corpo estranho na política brasileira, renuncio o lugar, que, em quase contínua luta ocupo, neste regime, desde seu começo, deixando a vida política para me voltar a outros deveres. Desprovido, pela natureza, das qualidades que, entre nós, talham o homem, para isso a que chamamos política, sem a ductilidade, a docilidade e a duplicidade necessárias às condições de tal vida no ambiente brasileiro, entreguei-me à influência de certas convicções e à cultura de certos ideais, cujo amor me apaixona ainda hoje com a mesma intensidade, e de cuja direção retilínea, tal qual a concebi em adolescente, nas minhas primeiras lutas de imprensa e tribuna quando estudante, não tenho variado”. Revelando este ceticismo, Rui estava mais uma vez sendo sincero, e como ele mesmo costumava dizer, “a política brasileira não é palco adequado para sinceridades”.

Bibliografia: Enciclopédia Nosso Século.

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(...) a política brasileira não é palco adequado para sinceridades (...)

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“UNIÕES ESTÁVEIS” OU“UNIÕES INSTÁVEIS”? Última abordagem

Sergio Couto

FIANÇA NA UNIÃO ESTÁVEL Agora estou convencido: a união estável veio para ficar. O companheiro está até proibido de conceder fiança sem o consentimento de seu “consorte”, tal como acontece no casamento em que a outorga uxória é indispensável, sob pena de nulidade. Foi o que decidiu recentemente e por unanimidade a 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça fluminense. Foi a resposta que precisava. Desde a alvorada da nova legislação indagava-me sobre essa possibilidade jurídica. Quando a Carta Constitucional consagra o princípio da igualdade jurídica entre o homem e a mulher, soa estranho que alguém ao formar, com esforço próprio, o seu patrimônio, esteja correndo o risco de dividí-lo pela metade, em caso de dissolução da “relação convivencial” e ainda, possa, em outra vertente, depender da vontade do outro, quando queira socorrer um amigo ou parente ao emprestar a sua solidariedade fidejussória em um momento de sufoco. Temos agora que perguntar à namorada se ela está de acordo. A verdade é que o ato simplista de dormir um com o outro, continua gerando efeitos jurídicos patrimoniais fantásticos. Dispenso-me de mencionar o rol de hipóteses daí decorrentes que podem causar até mesmo indenização por danos morais, outra mazela nacional, sob o ponto de vista de relações familiares mal resolvidas.   DANOS MORAIS NAS RELAÇÕES DE FAMÍLIA Quando acaba o amor e com ele o casamento (ou união estável), onde já se viu indenização por danos morais, seja a que título for, cujo efeito é a eternização do conflito entre os ex-parceiros. Com a mais respeitosa vênia dos que acolhem o ressarcimento, tenho que a desilusão dos amantes não se resolve em perdas e danos, pois é a frustração dos sentimentos que acarreta a dissolução. Nessa linha de raciocínio, o Desembargador Teixeira Giorgis do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em inédito julgamento de infidelidade do companheiro em que a traída pretendia pecúnia, ao afastar a pretensão, proclamou que “a dor e a angústia daquele que ama são conseqüências do término do consórcio, das agruras 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004

da vida, não se prestando o Judiciário a vingar a ausência da reciprocidade de afeto e respeito, indenizando aquele que sentiu-se traído” (Ap. 70.006.974.711). A litigância em busca da indenizabilidade, parece “algo” um tanto masoquista que interfere psicossomaticamente para nunca permitir a extinção do tálamo, mas ao reverso, criam-se circunstâncias para tornar pendentes uma relação já desfeita e, com isso, exacerbar os ânimos ad aeternum, lançando-se os estilhaços da causa perdida sobre os filhos, as principais vítimas de toda essa incômoda situação. INCONSTITUCIONALIDADE Sempre imaginei que a legislação concubinária vigente (e continuo com o mesmo pensar) é inconstitucional e artificiosa, por imiscuir-se nas relações de natureza privada, e assim gerar inquietação social e desconforto. Pena que as entidades jurídicas responsáveis não tenham suscitado a questão perante aqueles que guardam a Constituição.   FAMÍLIA EM PERIGO O resultado aí está: “Mulheres modernas casam-se uma vez por ano, tatuam o nome de todos os namorados pelo corpo, tudo é pra sempre, tudo já foi, passado e futuro são agora; um, dois, e já marido novo (...)”, no espirituoso artigo de Martha Medeiros, O Globo, de 12/09/2004, Revista. E os laços familiares vão aos poucos e inexoravelmente, desaparecendo... Esse processo de deterioração vem ocorrendo desde a implantação do divórcio. É a vocação tupiniquim de sempre imitar os países estrangeiros, quando as diferenças sociais, econômicas e mesmo religiosas são abissais. Tudo passa a ser estranho quando a Lei Magna soleniza a família como célula básica da sociedade e o casamento como seu único fato gerador (artigo 226 e parágrafos). Como qualificar os partícipes do novo instituto jurídico, se assim se pode considerá-lo? Concubino, companheiro, convivente, ou simplesmente, por elastério, “marido e mulher”? Chega a ser constrangedor o ato de apresentação social de um deles a um


Foto: Rodrigo Galvão

terceiro: “quero te apresentar minha companheira” ou minha “patroa”, (sim, porque “concubina” sempre teve conotação pejorativa).   UNIÃO ESTÁVEL PUTATIVA Para se avaliar a insegurança jurídica decorrente da intitulada “união estável”, basta a afirmativa de que o homem poderá, em tese, ter duas ou mais mulheres, enfim, um harém bem demarcado (vice-versa). A primeira providência do varão é tratá-las por um apelido carinhoso como por exemplo, “florzinha”, que acaba virando “fôzinha” tal a reiteração desse tratamento para várias destinatárias. O uso da expressão serve apenas para evitar confusão de nomes que possam atrapalhar o convívio dos amantes. O descuido verbal poderá por tudo a perder. O enquadramento jurídico que se dá ao fenômeno, muito mais freqüente do que se imagina, é “União Estável Putativa”. Há dois precedentes judiciários, bem recentes: um, no Rio de Janeiro (Ap. Cív. 2003.001.33248); outro, no Rio Grande do Sul (Embs. Infrs. 599.469.202), ambos reconhecendo essa nova figura jurídica, com a determinação da partilha igualitária dos bens disputados pelas companheiras. Exige-se, apenas, um leve pressuposto a cumprir: a “sincera” revelação em Juízo de que elas desconheciam o embróglio. Nos casos citados, o finado (que realizou o milagre do “exclusivismo concomitante”), embora sem se desvincular da primeira companheira, mantinha relacionamento antigo, duradouro e estável, com as demais. É o quanto basta para admitir-se a união estável putativa, com os doces efeitos jurídicos contemplados na lei. Ora, putativo é o que aparenta ser verdadeiro, legal e certo, sem o ser. Mera suposição... A que ponto chegamos! Indagação necessária: O caso citado revela bigamia ou se pode ampliar o conceito para o reconhecimento de concubinatos sucessivos? O colorido formal e vistoso da “união estável” abriga sob o manto protetor de suas asas a multiplicidade de casos escabrosos que a Justiça terá de resolver. A propósito, adverte Carlos Alberto Bittar, que “não é admissível que um Estado, por meio de leis inadequadas e inconstitucionais, aceite o verdadeiro solapamento do regime do Direito de Família, edificado ao longo dos séculos sob a égide de sólidos e profundos valores da cristandade e da moral pública, a pretexto de proteção a conviventes”. (Nova Realidade do Direito de Família,Vol. 1, p. 28, Ed. COAD).   PESSOAS DO MESMO SEXO Como se tudo fosse pouco, pretende-se o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou contrato de “união estável” com efeitos jurídicos, tema que, pela sua relevância, impõe que a sociedade plebiscitariamente seja ouvida. O Tribunal gaúcho já acenou, repetidas vezes, para a possibilidade da união estável entre companheiros, designando-a carinhosamente como relação homoafetiva ou homoerótica. Ninguém nega que “o amor que não diz seu nome” é fato social que já não pode ser ignorado. Consideráveis segmentos alinham-se dentre os

que exercitam tal preferência. Todavia, a edição de um diploma legal, longe de facilitar a existência dessas pessoas que merecem o maior respeito, vai estigmatizá-las ainda mais. A norma só tem lugar em uma sociedade, quando o fato social a impõe. Não como criação artificial de cérebros que vivem atormentados em encontrar um modo de aparecer na mídia e fazer-se popular em determinado setor social. Nem se diga que tais parceiros, vivendo em convivência, ficam ao desabrigo de qualquer proteção quando ocorre ruptura dos liames afetivos ou morte de um dos conviventes. O Judiciário sempre ofereceu a solução adequada à luz do artigo 1.363 do antigo Código Civil (atual artigo 981). A intromissão legislativa, contudo, quer no concubinato puro (já consagrado), quer no caso das uniões homossexuais, é fator de desagregação, confusão e ampliação dos conflitos. Tudo pela simples razão de que o legislador não é do ramo. A conseqüência dessa explosiva mistura de despreparo com oportunismo, é a quebra da espontaneidade da relação afetiva entre os seres humanos. Um tem receio de aproximarse do outro, sempre desconfiando de suas intenções. As relações estão cada vez mais patrimonializadas, por trás das demonstrações de afeto sempre um velado interesse que só o tempo revela. Se tudo continuar assim, até a amizade parecerá suspeita. Dois homens ou duas mulheres que decidem viver no mesmo 2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


O legislador brasileiro atavicamente tem vocação Voyerista. Gosta de se intrometer na vida dos outros apenas para obter dividendos eleitorais.

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imóvel para poupar despesas, poderão amanhã se defrontar com o pedido de reconhecimento de união estável por parte de um deles, porque os sinais exteriores apontam para tal situação. Houve um recente caso no Sul em que o motorista, por desempenhar durante anos o cargo, cujo patrão era homossexual, queria tirar uma “casquinha” indenizatória, fundada em união estável. Ganhou a causa na 1ª instância, mas perdeu na 2ª em razão do reconhecimento da relação empregatícia, tendo recebido os favores legais por força da rescisão do contrato de trabalho. Bis in idem, não!   ALIMENTOS AO CONVIVENTE Outra questão recorrente, saber se cabem alimentos ao outro convivente, com o fim da “união”. A evidência que não porque a Carta Constitucional de 1988 consagra o princípio da igualdade jurídica entre os cônjuges, salvo hipóteses especialíssimas em que o necessitado estiver impossibilitado para o trabalho. O objetivo dos alimentos dizia Clóvis, não é fomentar o ócio ou estimular o parasitismo.   EFEITOS JURÍDICOS DO “NAMORO” Quando se namora sob o mesmo teto ou fora dele, sobretudo nas relações de “segunda mão”, na tentativa sincera de reconstrução de suas vidas, o fator “experimentação” no sentido físico e moral (“a lei proíbe”) é de capital importância, na busca do bem-estar e, se possível, da felicidade integral. Trata-se de um fenômeno natural de aproximação intimista entre dois seres, não se permitindo a ninguém a bisbilhotice. O legislador brasileiro atavicamente tem vocação voyerista. Gosta de se intrometer na vida dos outros apenas para obter dividendos eleitorais. É o defensor das minorias teoricamente excluídas e a seu talante, intervém quase sempre desastradamente, oferecendo-lhes soluções duvidosas e sempre questionáveis. Afinal isso é problema para o Judiciário resolver no futuro... Não tem sido sempre assim?   CASAMENTO E CONCUBINATO – DISTINÇÃO Consigno que o Supremo Tribunal Federal, julgando o RE 212.560-1-SP, nos idos de 1998, sob a relatoria firme do Ministro Marco Aurélio, parecia ter resolvido o impasse, ao julgar um caso de partilha de bens entre concubinos, verbis:  “Registre-se que consubstanciam institutos distintos o casamento e o concubinato. Tanto é assim que o § 3º do artigo 226 da Constituição Federal, tido como vulnerado pela recorrente, sinaliza no sentido de a lei facilitar a conversão da união estável em casamento. Por outro lado, na cláusula 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004

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alusiva à proteção pelo Estado, não se tem tal igualação no campo patrimonial, com a partilha dos bens pelo simples fato de haver ocorrido a convivência comum. A referência à citada proteção e ao reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar não é conducente a, por si sós, levar à conclusão sobre a meação. Assim é, porquanto, até mesmo no casamento, é possível a adoção do regime de separação total dos bens”. Fiquei eufórico. Vitória da razão e do bom senso. A Corte Maior interveio providencialmente colocando o lar brasileiro em ordem, faltando, apenas, a declaração formal da inconstitucionalidade das leis concubinárias vigentes, que influenciaram, no particular, o Novo Código Civil. Ledo engano. A decisão, além de solitária, jamais o Supremo Tribunal Federal, apesar da matéria ser eminentemente constitucional, voltou a debruçar-se sobre o tema. O julgamento das questões correlatas de família foi transferido, à órbita da Corte infraconstitucional, que à míngua de uma adequada legislação, vem fazendo o que pode, até criando uma ficção como o da indenização por serviços domésticos prestados ao outro convivente, como compensação pela inexistência de bens a partilhar ou alimentos a prestar. As pautas de julgamento estão recheadas de relacionamentos espúrios e incestuosos, tendo como escopo pretensões de ordem patrimonial. A preocupação maior do julgador é estar sempre perquirindo se o “golpe da união estável” está presente. É o risco do modismo que bem funciona nas colunas sociais, mas nunca nas sagradas relações familiares.  ESTATIZAÇÃO DO AFETO É preciso sempre ter em conta, nas magnas questões de família, a sagração da jurisprudência sedimentada ao longo do tempo, para proteção dos relevantes interesses do casal e da prole. Numa época que tem se caracterizado por uma ridícula e irresistível tentativa de equiparar o casamento às uniões estáveis, corrente doutrinária de elevado tomo vem se manifestando em sentido contrário, rejeitando a estatização do afeto, (João Baptista Villela, Sergio Gischkow Pereira, Eduardo de Oliveira Leite, Carlos Alberto Bittar). Não seria a hora de dar um “basta” às propostas rigorosamente acientíficas e rasteiras de pessoas leigas travestidas de juristas-legisladores? Vejam que situação teratológica: concubinos vivem juntos, como se casados fossem, sem o serem. Aí reside o âmago da questão, que a miopia nacional generalizada não quer enxergar. Como se casados fossem, mas não o são. Se não são casados,


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evidente não estão legitimados a invocar os institutos de Direito de Família para proteção de seus direitos. A relação é obrigacional.  Sob o risco de endossarmos uma analogia absolutamente inadequada e impossível à espécie, isto é, se duas pessoas vivem juntas e não querem legalizar sua situação, ou seja, desconhecem e negam o valor da lei no que diz respeito a sua vida em comum, inadmissível que invoquem esta mesma lei (antes negada e, de certa forma, desprezada e humilhada) para regularizar os efeitos decorrentes da ruptura da vida em comum. Ora, querer considerar a concubina meeira é o mesmo que equipará-la a cônjuge (mulher casada) que, certamente, é meeira, porque este é um dos apanágios decorrentes da união legalizada. Não fossem suficientes estas considerações, é sempre bom lembrar que o constituinte de 1988 em momento algum equiparou as uniões estáveis ao casamento, tanto é que no artigo 226, § 3º deixou bem clara a dissimetria existente entre as duas figuras, quando declarou, sem vacilar, “...devendo a lei favorecer a conversão em casamento”. Ora, se o constituinte protege a união estável, mas quer que a mesma seja convertida em casamento, é evidente, e muito evidente, que as duas situações são distintas e, merecem, pois, tratamento, diverso. Qualquer exegese que fugir desta evidência é abusiva e, tranqüilamente, cai no terreno laico gerador de inquietação e turbulência. Tempos atrás, em Congresso realizado em Curitiba, o pranteado Senador Josaphat Marinho, proclamou: “em momento algum o artigo 226, § 3º se referiu ao concubinato, mas tão-somente às uniões estáveis”, conforme já vinha afirmando há alguns anos, ou seja, o que o constituinte protegeu foram as uniões fáticas sem impedimento, que, certamente, nada tem a ver com o concubinato, onde há impedimento (“como se casados fossem, porém, sem o serem”) logo, não há como guindar estas uniões ao nível de casamento, e muito menos, daí fazer ilações capazes de colocar as duas realidades, essencialmente díspares, num só patamar.   CONCLUSÃO Sei que essas idéias representam o outro lado do movimento jurídico que transformou o amor em negócio de ocasião. Mulheres, principalmente elas que são mais espertas que os homens, não se pejam em namorar e conviver de olho somente no patrimônio do consorte (e vice-versa). Com isso, os homens, que são bobos e não burros, se retraem e não assumem mais compromissos. Hoje em dia, até tirar foto do homem ao lado de mulher é coisa perigosa hoje em dia. Porém, existem situações em que o reconhecimento de direitos para os conviventes é questão de justiça. Devemos reconhecer isso. No entanto, para que a sentença de procedência possa obter o selo de qualidade é preciso não só que os juízes julguem, com severidade, os pressupostos que caracterizam a união estável (aspecto do tempo da união, vontade de constituir família e projetos espirituais de solidariedade), coisas que não se acumulam sem a entrega da alma, além do corpo. Contudo

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A conseqüência dessa explosiva mistura de despreparo com oportunismo, é a quebra da espontaneidade da relação afetiva entre os seres humanos.

e apesar disso, os juízes necessitam de introduzir um segundo raciocínio para que o convencimento da justiça de partilhar o patrimônio se justifique, qual seja, o estado de dependência econômica: a prova final indispensável de que duas pessoas criaram um regime único de economias. Ocorre que a formação desse caixa comum não se dá apenas porque um integrante da relação é rico e outro pobre. O estado de dependência não se prova porque se paga uma viagem ou se compra um perfume. Prova-se pelo fato de alguém renunciar seus projetos de vida, interrompendo carreiras e outras perspectivas, para viver a vida do consorte em parceria e com solidariedade. Somente alguém que seja capaz de incorporar na sua existência, a existência do parceiro será digna de receber uma parte do patrimônio que se formou durante a vida comum no momento em que for dispensado. O que se observa, no entanto, são decisões que valorizam circunstâncias menores, desimportantes, como ensejadores da dependência econômica. Assim, não se faz justiça social; cria-se a instabilidade social, uma insegurança que intimida o homem e que somente serve para aumentar a sua freqüência nos “termas”, ou na aquisição de revistas eróticas, melhor opção para quem vive só e que não pode correr riscos... Quedando-me, vencido, à maioria da corrente doutrinária, que prestigia o atual estado de coisas, proclamo que não escreverei mais sobre o assunto, talvez convencido de que nada mudará, a não ser que haja um milagre, até porque uma formiga não faz cócegas no sovaco de um elefante!

Advogado 2004 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


RESPONSABILIDADE CIVIL INDIRETA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DOS PAIS POR DANOS CAUSADOS PELOS FILHOS MENORES NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 RISCO DA PATERNIDADE? José

Carlos

INTRODUÇÃO

A

lei atribui a todas as pessoas os deveres jurídicos primários, genéricos, de agir com cautela nas relações civis, de modo a não prejudicar e não causar danos a ninguém. Os negócios jurídicos em geral também são fontes de obrigações, e através deles ficam as partes, vinculadas ao dever jurídico primário de adimplir as obrigações assumidas. A violação de um dever jurídico primário, seja este oriundo de lei ou de negócio jurídico, faz nascer o dever jurídico secundário de reparar o prejuízo causado a outrem. Assim, a Responsabilidade Civil nada mais é do que este dever jurídico secundário imposto pelo legislador de reparar o prejuízo causado em virtude da violação de deveres jurídicos primários, contidos em lei ou em negócio jurídico. O Código Civil Brasileiro de 1916 adotou o princípio da culpa como fundamento da responsabilidade, estabelecendo, em seu artigo 159, verdadeira Cláusula Geral de Responsabilidade Subjetiva. Nestes termos, a responsabilidade se configura com a prática de um ato ilícito em sentido subjetivo, cuja noção envolve a violação de um dever jurídico preexistente: o dano, o nexo de causalidade (relação de causa e efeito entre a ação ou omissão do agente 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004

e o dano) e a culpa em sentido amplo, que abrange o dolo e a culpa em sentido estrito (situação em que o agente não tem sua vontade dirigida para o resultado, mas este ocorre em virtude da conduta do agente, que atua com negligência, imperícia ou imprudência). Com o passar do tempo, percebeu-se, entretanto, que a técnica da responsabilização subjetiva não atendia às necessidades de uma sociedade em que se revelavam cada vez mais freqüentes as violações de direitos subjetivos, o que levou, conseqüentemente, à busca de meios que facilitassem a obtenção, pela vítima, do devido ressarcimento, eis que esta arcava com o ônus de demonstrar a culpa do agente. Assim, em um primeiro momento, a jurisprudência passou a admitir, em algumas hipóteses, a culpa presumida do agente. Posteriormente, a própria lei passou a prever hipóteses em que o dever de reparar o dano se imporia em virtude do risco criado pela atividade da qual teria resultado o dano, independentemente, portanto, de conduta culposa. Desenvolvia-se, assim, a noção de Responsabilidade Civil objetiva, com fundamento na Teoria do Risco. A Constituição de 1988 e a Lei n.º 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) sobrelevam-se, assim,


Fotos: Alex Viana

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A Constituição garante o direito à reprodução ao mesmo

tempo em que impõe limites ao exercício deste direito (...)

como importantes marcos na evolução do sistema de Responsabilidade Civil no Direito brasileiro, eis que viabilizaram a aplicação da teoria objetivista a largo espectro de situações, que, até então, seriam forçosamente apreciadas à luz do artigo 159 do Código Civil de 1916, de índole subjetiva, como já se ressaltou. A tendência foi confirmada com a edição do Código Civil de 2002, que, além de prever a responsabilização objetiva em hipóteses pontuais, tratou, também, de estabelecer importantes cláusulas gerais de Responsabilidade Civil objetiva, tais como aquelas veiculadas nos artigos 927, § único, e 931, em que pese a intensa discussão doutrinária que já se instaurou a respeito da real abrangência destes dispositivos, e de eventuais deficiências de redação. Os atuais contornos da Responsabilidade Civil no Direito pátrio não podem, no entanto, ser bem delineados sem que se promova a necessária conexão axiológica com os princípios constitucionais, uma vez que neles estão consubstanciados os valores fundamentais de nossa sociedade, balizamento hermenêutico necessário e indispensável às atividades do intérprete. Neste particular, preciosa a lição de Gustavo Tepedino1, apontando que os princípios da solidariedade social e da

justiça distributiva, capitulados no artigo 3º, incisos I e III, da Constituição Federal, retiram da esfera meramente individual os riscos da atividade econômica, riscos que, com os avanços tecnológicos de nossa era, se apresentam cada vez mais exacerbados. Impõe-se, assim, a intensificação de critérios objetivos de reparação de danos, e a criação de novas formas de seguro social. Rompe-se, assim, com a idéia tradicional desenvolvida pela ideologia liberal que marcou o século XIX, segundo a qual o Direito Público e o Direito Privado estariam separados por contornos nítidos, por fronteiras bem definidas. Inaceitável tal ponto de vista, já que não se concebe hoje a existência de qualquer instituto ou espaço de atuação privada que permaneça estanque aos princípios difundidos pelo texto constitucional. Nesta ordem de idéias, afasta-se de imediato, a tese de que no Direito Civil prevaleceria a responsabilidade subjetiva, enquanto que a responsabilidade objetiva teria seu campo de incidência no Direito Público, como, por exemplo, no caso da Responsabilidade Civil das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado prestadoras de serviços públicos, em relação aos danos causados por seus agentes. Temos, atualmente, a consolidação de um sistema dual,

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No sistema subjetivista

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prevalece a idéia de que só

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responde pelo dano aquele que efetivamente lhe deu causa, afinal, a culpa é pessoal.

em que convivem a Responsabilidade Civil subjetiva, que tem sua Cláusula Geral estampada no artigo 186 do atual Código Civil, ao lado da Responsabilidade Civil objetiva, que encontra seu fundamento nas cláusulas gerais acima indicadas, além de outras hipóteses específicas previstas em lei. Da Responsabilidade Civil por Fato de Outrem No sistema subjetivista prevalece a idéia de que só responde pelo dano aquele que efetivamente lhe deu causa, afinal, a culpa é pessoal2. No entanto, mesmo sob a égide do Código Civil de 1916, já se admitia a responsabilidade indireta ou por fato de outrem, atribuída a alguém que estivesse de alguma forma vinculado ao responsável direto, como se verifica das hipóteses elencadas no artigo 1521 do referido Código. Deve ser ressaltada, no entanto, a crítica de alguns autores que nunca vislumbraram em qualquer dos casos apontados naquele dispositivo, genuína responsabilização por fato de outrem, já que as pessoas ali indicadas responderiam, em realidade, por terem efetivamente contribuído para o fato danoso. Assim, em relação à responsabilidade dos pais pelos danos causados pelos filhos menores que estivessem sob seu poder, que nos interessa em particular nestas breves anotações, defendia-se que a responsabilidade era direta, derivada de culpa própria, por violação do dever de guarda e vigilância. Controvérsias à parte, importa salientar que as hipóteses de responsabilidade indireta foram mantidas pelo Código Civil de 2002, que no artigo 932, praticamente, reproduziu o referido artigo 1521, ressalvando-se, no entanto, que o artigo 933 do Novo Código atribuiu responsabilidade objetiva às pessoas mencionadas no artigo 932. Da Responsabilidade Civil dos Pais Pelos Danos Causados Pelos Filhos Menores Quando se cogita da responsabilidade dos pais por atos de 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • DEZEMBRO 2004

seus filhos menores, tem-se em vista o inadimplemento real ou presumido de certos deveres que se incluem na órbita do exercício do poder familiar. Pode-se citar, inicialmente, o dever de assistência, traduzido não apenas na satisfação de necessidades econômicas, mas também espirituais e morais, incluindo a instrução e educação dos filhos menores. Portanto, além da obrigação de propiciar ao menor, acesso a conhecimentos básicos e condizentes com a situação social da família, têm os pais o dever de criar e educar os filhos em ambiente sadio, capaz de assegurar o pleno desenvolvimento da personalidade de cada um. Complementa-se o dever de assistência com a obrigação de vigilância, que se insere no contexto do exercício do poder familiar. É bem verdade que a vigilância se fará mais ou menos necessária conforme a atuação dos pais no desempenho do dever de assistência3. Assim, quando o atual Código atribui aos pais a responsabilidade pela reparação dos danos causados por seus filhos menores, que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia (artigo 932, I), independentemente de culpa (artigo 933), estabelece, obviamente, mais uma hipótese de Responsabilidade Civil objetiva, que, como sabemos, fundamenta-se na Teoria do Risco. Partindo desta premissa, seria razoável admitirmos que a obrigação dos pais deriva do risco criado, ou seja, seria correto admitirmos o “risco da paternidade”? Não nos parece que esta seja a abordagem mais adequada ao tema em debate. Antes de prosseguir nesta análise devemos tecer breves comentários acerca do direito à procriação. Do Direito à Procriação. Princípios e Limites4 O direito à procriação, ou seja, o direito de decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos e o intervalo entre eles, sempre foi encarado pela doutrina norte-americana como uma das manifestações da liberdade


individual, sendo um dos múltiplos aspectos do direito à vida privada. No entanto, ainda que se trate de uma doutrina fortemente arraigada nas concepções liberais, reconhecem seus representantes que o direito de procriar não tem caráter absoluto, temperando o tradicional parental rights doctrine com outro mais recente e já dominante, best interest of the child doctrine. No Brasil, o direito à procriação encontra fundamento constitucional no artigo 226, § 7º da Constituição Federal, que prevê o planejamento familiar, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, como livre decisão do casal. O dispositivo é regulamentado pela Lei n.º 9.263, de 12/01/1996. Verifica-se que também segundo a doutrina brasileira, o direito à procriação não pode ser visto em termos absolutos, devendo ser sempre ponderado com outros princípios de igual envergadura, tais como os princípios da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e da paternidade responsável (CF, art. 229), indicados expressamente no artigo 226, § 6º da Constituição. O intérprete não pode esquecer, ainda, do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (CF, art. 227), em relação ao qual o constituinte atribuiu, expressamente, absoluta prioridade. A procriação envolve, portanto, não apenas os interesses dos pais, mas também os interesses inerentes à pessoa dos futuros filhos. A Constituição garante o direito à reprodução ao mesmo tempo em que impõe limites ao exercício deste direito, conclamando os pais ao exercício de uma paternidade responsável, atribuindo-lhes os deveres de assistir, criar e educar os filhos menores. Por outro lado, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente impõe aos pais o dever de assegurar aos filhos menores direitos básicos inerentes à vida, educação, alimentação, liberdade e à convivência familiar. Assim, além de deveres materiais, atribuem-se aos pais deveres de ordem espiritual, afetiva, uma vez que o ambiente em que se realiza o processo educacional do menor repercute de forma decisiva na formação de sua personalidade. Justificativa da Responsabilidade Objetiva dos Pais Estabelecendo uma vez mais a necessária conexão axiológica entre o Código Civil e a Constituição Federal, podemos concluir que a responsabilidade objetiva dos pais em relação aos atos praticados por seus filhos menores, prevista no Código Civil de 2002, decorre intuitivamente dos princípios da paternidade responsável e do melhor interesse da criança e do adolescente, e, conseqüentemente, dos deveres inerentes ao exercício do poder familiar (CC, art. 1634). É oportuno observar que o poder familiar, ou a autoridade parental, revela seu aspecto mais relevante não quando se aborda o tema da gestão patrimonial, isto é, a questão da administração e disposição dos bens dos menores, mas sim no enfoque da função educativa, quando vista como ofício funcionalizado à promoção das potencialidades criativas dos filhos5. Trata-se de situação jurídica existencial, caracterizada

pela atribuição aos pais do poder de interferência na esfera jurídica dos filhos menores, no interesse destes últimos e não dos titulares do chamado poder jurídico6. A solução encontrada pelo Código Civil de 2002, nos parece, portanto, melhor do que aquela encontrada pelo legislador de 1916. A responsabilidade objetiva dos pais em relação aos danos causados pelos filhos menores atende tanto aos interesses da vítima, que se desonera de uma eventual demonstração de culpa dos genitores, quanto aos interesses do menor, uma vez que enfatiza os deveres assumidos pelos pais diante da procriação, fortalecendo a vinculação destes últimos com o processo de educação e desenvolvimento da personalidade dos filhos, harmonizando-se, assim, com os princípios da paternidade responsável e do melhor interesse da criança e do adolescente. Por fim, o direito à procriação não pode, definitivamente, continuar a ser encarado como mais uma atribuição de poderes assegurada pela ordem jurídica para a proteção de interesse do titular, ou seja, sob à ótica tradicional dos direitos subjetivos. Tratando-se de situação existencial, não se amolda, absolutamente, ao modelo de relação jurídica consagrado pelas codificações civis para a defesa do patrimônio, atraindo, antes, um feixe de deveres e responsabilidades estabelecidos no interesse da tutela do filho a ser gerado, e da própria sociedade. Concluindo, quando o novo Código amplia a responsabilidade dos pais em relação aos atos de seus filhos menores, estabelecendoa em termos objetivos, confere plena atuação aos princípios da paternidade responsável e do melhor interesse da criança e do adolescente, deixando clara a importância do papel que os pais devem desempenhar no processo de educação e desenvolvimento da personalidade dos filhos. É evidente, portanto, que a responsabilidade objetiva dos pais não encontra sua justificativa no chamado “risco da paternidade”, mas sim no rol de princípios constitucionais que fundamentam e fornecem novos contornos para o instituto da paternidade, visto agora sob a perspectiva de um Direito Civil perfeitamente integrado à tábua axiológica da Constituição Federal. Juiz Federal Substituto da 27ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro Notas 1 - Gustavo Tepedino. Temas de Direito Civil, Renovar, 3º edição, p. 194. 2 - Aguiar Dias, Da Responsabilidade CIvil, Volume II, Rio de Janeiro, Forense, 5ª edição, p. 145. 3 - Aguiar Dias, Da Responsabilidade Civil, Volume II, Rio de Janeiro, Forense, 5ª edição, p. 152. 4 - Nesta matéria, contamos com o valioso trabalho desenvolvido por Heloisa Helena Barbosa, em Direito à Procriação e as Técnicas de Reprodução Assistida, in Bioética e Biodireito, coord. Eduardo de Oliveira Leite. Rio de Janeiro: Forense, 2004, pp. 153-168; 5 - Perlingigieri, Pietro, Perfis do Direito Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p. 259. 6 - Tepedino, Gustavo. A disciplina da guarda e a autoridade parental na ordem civil constitucional, in Revista trimestral de direito civil, vol 17, jan-mar 2004, pp. 33-50.

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Ives Gandra Martins

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CRISE DE DEMOCRACIA: OS POLÍTICOS (...) o eleitor vota não no político como ele é, mas na imagem dele produzida por especialistas em ilusões.

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ma das características do estado mastodôntico da atualidade é a sua classe política. Quase todos os políticos têm projetos pessoais e utilizam-se de seus eleitores para realizá-los. A demagogia é a essência da sua pregação. Já não se importam em ser transparentes ou altruístas, mas apenas em impressionar bem. A imagem do político não é construída a partir de sua atuação como homem público, mas aquela que o assessor de imprensa, o homem da publicidade, denominado marqueteiro da mídia, constrói. Nada é tão distante do político atual quanto a imagem dele que os homens de mídia por ele contratados edificam perante o público e que deve ser seguida à risca para que tenha viabilidade eleitoral. Em outras palavras, o eleitor vota não no político como ele é, mas na imagem dele produzida por especialistas em ilusões. Criam um herói cinematográfico e vendem esta imagem, como se fosse de um idealista dedicado à pátria e aos interesses da comunidade. Uma vez eleito, seu compromisso com o eleitorado deixa de existir e só o retomará, novamente, nos últimos meses de seu mandato para, novamente contratando os ‘’especialistas da ilusão’’ - muitas vezes ‘’especialistas da mentira’’-, venderem sua imagem de dedicado cidadão e agente público exemplar. Em qualquer país do mundo democrático e especialmente no Brasil, os melhores marqueteiros são os que vencem as eleições e são disputados a peso de ouro. À evidência, o compromisso do marqueteiro é com sua profissão, ‘’vender ilusões’’; não tem nenhuma vinculação com os ideais dos candidatos que ‘’produz’’. Basta estudar a trajetória, por exemplo, de um dos mais bem sucedidos marqueteiros do país, que elegeu, em um pleito, um típico candidato da direita e, depois, tendo recebido proposta profissional melhor da esquerda, elegeu um típico candidato da esquerda. Por esta razão, é que a democracia, no mundo, é uma singela democracia de acesso, tanto mais frágil quanto

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mais o regime vincular-se às soluções presidenciais e não parlamentares. É que, no sistema parlamentar de governo, a alternância no poder é mais rápida e só nele permanece o político consistente. Margareth Thatcher governou a Inglaterra durante 11 anos e apenas perdeu por ter acreditado que o aumento de tributação seria irrelevante. O povo reagiu e ela foi derrotada. Na democracia de acesso, todavia, o povo é ilu dido pelo político exclusivamente voltado a projetos pessoais; no exercício de mandato, é apenas o representante de si mesmo. No Brasil, o estelionato eleitoral representado pela possibilidade de troca de partidos - quase todos os candidatos só foram eleitos pelo acréscimo dos votos de sua legenda demonstra a absoluta falta de ética do regime e de cada eleito, que, apropriando-se dos votos dos não eleitos do seu partido, leva-os para o outro, apenas em função de seu exclusivo interesse pessoal. A pátria e os eleitores que se danem. A ética que se dane. O que prevalece é exclusivamente sua ambição pessoal de crescer, de ter cargos, de ser alguém e exercer o poder pro domo sua. Há de se convir que esse é um mal necessário da democracia, pois, de tempos em tempos, deve correr novamente atrás de novos eleitores, mas, para tanto, conta sempre com os marqueteiros de ocasião. Estou convencido de que a ditadura é forma dramática de se governar, sendo quase sempre os ditadores sanguinários, como Hitler, Stalin, Mussolini, Saddam Hussein, Pinochet ou Fidel Castro. A democracia, entretanto, está longe do retrato que os políticos da atualidade no mundo inteiro apresentam - decididamente um péssimo retrato. Ela é apenas menos ruim que a ditadura. Advogado e Professor Emérito da Universidade Mackenzie e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército



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