Revista Justiça & Cidadania

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EDIÇÃO 60 • julho de 2005

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ORPHEU SANTOS SALLES DIRETOR / EDITOR

COrrupção: A pior de todas as Doenças

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O crime de terno e gravata

TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO EDISON TORRES DIRETOR DE REDAÇÃO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO FELIPPE BITTENCOURT EDITOR DE ARTE SIMONE MACHADO REVISÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA,50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-100. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429 CNPJ: 03.338.235/0001-86 SUCURSAIS SÃO PAULO ORPHEU SALLES JUNIOR AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611 FORTALEZA CARLOS MOURA RUA JOAQUIM FERREIRA Nº 1200 BAIRRO LAGOA REDONDA. FORTALEZA-CE TEL(85) 476 -1200 / 9951 - 3773 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED.PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP 90010 272 TEL (51) 3211 5344 CORRESPONDENTE BRASÍLIA ARMANDO CARDOSO TEL (61) 9968 - 5926

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A justiça no cálculo das tarifas de energia elétrica

CONSELHO EDITORIAL aurélio wander bastos Arnaldo Esteves Lima antonio carlos Martins Soares Antônio souza prudente Bernardo Cabral carlos ayres britTo Carlos mário Velloso carlos antônio navega Darci norte Rebelo denise frossard Edson Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros

ISSN 1807-779X

Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins josé augusto delgado José Eduardo carreira Alvim Marco Aurélio Mello Miguel Pachá maximino gonçalves fontes Paulo Freitas Barata

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Polícia FEderal no Olho do Furacão

SUMÁRIO eDITORIAL

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ministério público: autonomia e independência constitucional

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Ora, a culpa é da abin

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a babel tributária

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O reenvio prejudicial: entre o juiz comunitário e o juiz nacional

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Falta uma voz na CPMI dos correios

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FONTE DE CUSTEIO DAS GRATUIDADES E O EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO

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sobre a orientação jurisprudencial 342 do tst

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no caso bombril, ganham força os valores do direito e da justiça financiamento público nas eleições

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intervencão do ministério público federal em ação de mandado de segurança

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o monitoramento dos e-mails no ambiente de trabalho

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da importância de ser quixote DIREITO AUTORAL NOS APARTAMENTOS E QUARTOS DE MEIOS DE HOSPEDAGEM

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thiago ribas filho

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EDITORIAL

A essência do Direito de Defesa Ives Gandra Martins Advogado e Membro do Conselho Editorial

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lgumas explicações prévias são necessárias para justificar as observações que farei. Fui Conselheiro da OAB-Seccional de São Paulo por quatro mandatos (oito anos) e presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (dois anos). Como Conselheiro, tive como companheiro e presidente o atual Ministro da Justiça, Márcio Thomás Bastos, colega de turma da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e sempre devotado defensor da classe dos advogados. Participei de três bancas examinadoras para concurso de juízes federais e estaduais (duas para Justiça Federal e uma para Justiça Estadual). Defendi, por outro lado, a equiparação dos delegados federais e estaduais -em parecer elaborado para a Associação Nacional que os congregava- às demais

de inconstitucionalidade. O Senador Elcio Álvares e o saudoso Deputado Eduardo Magalhães concordaram com minhas observações e Roberto Campos, vencido, com seu humor de sempre, declarou que precisaria, talvez, contratar um “advogado” para proteger-se contra tal unanimidade da mesa. Nessa observação, está a essência do direito de defesa. Os integrantes de todos os Poderes e todos os cidadãos necessitam recorrer a advogados para pleitearem seus direitos em juízo ou se defender de quaisquer acusações, pois, ao contrário das ditaduras, onde não existe o direito de defesa, nas democracias é este o principal alicerce a garantir a segurança e a certeza do Direito (art. 5º, inc. LV, da C.F.). Por outro lado, o artigo 133 da lei suprema declara:

carreiras jurídicas (magistrados e membros do Ministério Público). Por fim, em meus artigos, sempre exaltei a importância do Ministério Público, na preservação da lei e das instituições. Certa vez, em debate num Seminário em Brasília organizado para parlamentares, Roberto Campos, fez críticas ao “lobby” da advocacia que colocara dois artigos na C.F. (133 e 103 inciso VII), quando as outras profissões não haviam conseguido tal inclusão, ao que respondi que a advocacia era tão essencial à administração da Justiça, como o era o Poder Judiciário e o Ministério Público. Destaquei que, na Constituição, o MP era disciplinado em cinco artigos, o Poder Judiciário em 30 artigos, ao Poder Legislativo foram dedicados 29 e ao Executivo 17, além de lhes ser reconhecida legitimidade para propor ações diretas

“Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Ora, nos últimos tempos tem se visto uma brutal maculação da inviolabilidade do advogado no exercício de suas funções. Membros da Polícia Federal, do Ministério Público, lastreados em mandados inespecíficos de busca e apreensão ou de prisão, têm perpetrado -contra a Constituição Federalinvasões em escritórios de advocacia, apreendendo e retirando computadores, documentos de todos os clientes que nada têm a ver com a diligência em questão, num flagrante ferimento ao sigilo profissional e às prerrogativas dos advogados. Exatamente, pelo profundo respeito que tenho às três instituições (Poder Judiciário, Ministério Público e Polícia

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Federal) -pois, de resto, não as teria defendido no passado pro honore, isto é, sem qualquer tipo de remuneração profissional- é que venho denunciar, pelas páginas desta Revista, o fantástico perigo que tais práticas trazem à democracia brasileira. Quero deixar claro que não estou aqui defendendo a não apuração dos fatos. O que estou dizendo é que não podem confundir o defensor com o acusado e dar o mesmo tratamento a um e outro, sob pena de inviabilizar a defesa. Alerto, inclusive, magistrados, policiais federais e membros do Ministério Público que a forma vexatória, com que muitas vezes estas invasões e prisões são feitas, podem gerar ações futuras de reparação e pedidos de indenizações por danos morais ou patrimoniais, que a União será obrigada a ressarcir (art. 37 § 6º da C.F.), lembrando-se que a ação de

regresso contra os autores da lesão, por prática excessiva no exercício das funções, é imprescritível (art. 37 § 5º da C.F.), podendo acompanhá-los além da aposentadoria e até a morte, sobre o excesso de exação (art. 316 do Código Penal) ser punível. O certo é que o bom senso tem que prevalecer nestas investigações, para que não façam lembrar as que tiveram lugar nos regimes de exceção, de triste memória. Os Conselhos Nacional da Magistratura e do Ministério Público deveriam ser acionados pela OAB, através de seus representantes nas comissões, a fim de que se apure a responsabilidade por tais violações e se restaure o profundo respeito que deve haver entre as três instituições fundamentais à ordem democrática, ou seja, o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Advocacia. 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5


OPINIÃO

O crime de terno e gravata Ministro Edson Vidigal Presidente do Superior Tribunal de Justiça

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ara nada servem as leis quando o Estado, encarregado de fazer cumpri-las, se enfraquece e se distancia, ampliando o dissenso entre a sociedade e os grupamentos políticos incumbidos de fazê-lo funcionar. As leis não se realizam na sua força coercitiva quando a sociedade, indiferente, não as legitima. Sem legitimidade, não há autoridade e, sem autoridade, tudo resulta num teatrinho de intermináveis formalidades. As pessoas do povo em geral já não disfarçam o cansaço com a desfaçatez que há muito estamos vivenciando. Do mesmo modo como a política de juros altos não pode ser o único remédio para o controle da inflação, também o Código Penal não pode ser a única saída para o enfrentamento da violência. A criminalidade a ser combatida não é apenas a das ruas, das praças e favelas. Não podemos perder de vista a criminalidade do conluio, da cumplicidade, do silencio; a criminalidade engravatada, exatamente aquela do malandro “que nunca se dá mal”, conforme os versos de Chico Buarque de Hollanda. O povo brasileiro, que é todo, em si, íntegro, trabalhador, honesto, ético, envergonha-se quando se apercebe de que está sendo enganado por quantos, malandramente, conseguem mandatos políticos e, malandramente, passam a atuar no seu nome. Não sendo tais políticos pessoas honradas, não têm como honrar a representação. Aliás, nem precisam, até porque os seus compromissos são outros e com outros igualmente malandros. Não há que haver condescendência. Não há que haver proteção. Proteção se dá é a vítima de injustiça; a quem sofre constrangimento ilegal por abuso de poder. Nas ditaduras, isso se justifica se a vítima, pessoa honrada, é perseguida pelas suas idéias políticas. Nas democracias, não. Nas democracias, é possível distinguir a impunidade de imunidade. Nas democracias, é dever da Justiça Pública perseguir os acusados de qualquer crime, inclusive os lesivos aos cofres públicos. 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2005

Então, precisamos cuidar melhor da democracia. Precisamos combater a sonegação fiscal, a pirataria, o tráfico de drogas, o contrabando de armas, a lavagem de dinheiro. Precisamos trazer para a legalidade a chamada economia informal, que não assina carteira do trabalhador, nem paga imposto. Se conseguirmos que todos saiam da economia informal e se juntem aos que, na economia, não tem problemas com a legalidade, somaremos uma arrecadação maior; assim, será possível reduzir, de pronto, as alíquotas dos impostos. Só com justiça tributária – todos pagando pouco e a arrecadação somando mais – será possível apresentar ao País um orçamento forte, suficiente para responder aos compromissos do Estado e às promessas da democracia para com a sociedade. Vamos ter que interiorizar mais as ações da Polícia Federal, do Ministério Público Federal, da Justiça Federal. Os mecanismos da União Federal de apoio à sociedade e de garantia do dinheiro público e do patrimônio das pessoas não se estendem com eficácia ao interior do Brasil. E é para o interior que o crime está indo, que o bandalho das licitações de “araque” está migrando. Não havendo punição em tempo, quem manda é a impunidade. No Brasil, vemos o Poder Executivo paralisado por um Estado mastodonte, incapaz de cumprir os seus deveres elementares e de atender aos reclamos essenciais da população; o Legislativo dividido entre sua missão maior de elaborar as leis da Democracia Representativa e o emaranhado de lutas políticas e partidárias intestinas. Apesar dos seus problemas e falhas, só o Poder Judiciário ainda pode inspirar à sociedade a confiança de que ela tanto necessita. O Poder Judiciário emerge, neste momento, como uma luz na escuridão, uma chama de esperança para os que ainda crêem na força do Direito, no respeito às leis e aos contratos legitimamente firmados, na garantia das liberdades individuais.


OPINIÃO

Corrupção: a pior de todas as doenças Continuaremos dando aos jovens a impressão de que a esperteza vale mais do que o trabalho Antônio Ermírio de Moraes Empresário

E

m relação ao artigo que publiquei no último domingo sobre violência escolar, recebi várias manifestações de leitores concordando que a indisciplina na escola reflete, em grande parte, o que os alunos vivem no seio da família. Alguns leitores, porém, foram mais longe ao argumentar que a falta de respeito dos jovens é um espelho da falta de respeito com que os governantes tratam a nação. De fato, os exemplos que vêm de cima provocam muitas dúvidas na juventude. Esse é o maior estrago dos desmandos e da corrupção. Dizem que as pessoas têm ou não têm caráter. Essa é uma grande verdade. Mas a sociedade não pode contar com isso para manter a ordem e o respeito às suas instituições. As próprias instituições possuem mecanismos de controle do comportamento das pessoas, fazendo acender a luz amarela no primeiro deslize e aplicando sanções públicas na reincidência. O Brasil tem falhado muito nesse campo. E não é por falta de advogados, pois nosso país possui mais de 800 faculdades de Direito enquanto os Estados Unidos possuem 180. Temos mais de 600 mil advogados, enquanto o Japão tem menos de 20 mil. Raros são os países que têm tantas CPIs como o Brasil. Raras também são as nações que contam com uma imprensa tão bem capacitada na arte da investigação. Apesar de tudo isso, os surtos de corrupção se sucedem, minando o que temos de mais precioso que é a confiança da juventude no trabalho sério como forma de progresso individual e social. Os nossos controles são rígidos só na fachada. As leis são severas, mas a punição é incipiente. Os jovens observam que os mais espertos sempre encontram maneiras de contornar as leis. Isso é péssimo. Vejam o caso do Banestado, para citar um dos escândalos mais recentes. Havia sérios indícios de remessa ilegal de dólares para o exterior em um montante simplesmente estratosférico: US$ 30 bilhões!

Pois bem. Depois de muito falatório, dezenas de reuniões da CPI, enormes gastos com viagens, consultorias e peritagem, e permanente aparição na televisão para os seus integrantes mostrarem serviços aos eleitores, o processo foi arquivado. Não houve nem sim, nem não. Não se sabe o que aconteceu. Uma vergonha! Exemplos como esses enterram as esperanças do povo e destroem a confiança dos jovens. Temos muito que caminhar nessa área. Nossas instituições precisam chegar na penalidade com presteza e as sanções devem ser aplicadas com grande visibilidade - esta sim precisa de muita televisão - para que o medo de ser punido possa prevenir desvios futuros. Enfim, precisamos de mais ação e de menos show da parte dos órgãos repressores. Do contrário, seremos uma republiqueta de segunda categoria que nada tem a ver com as potencialidades do Brasil e com a garra do nosso povo. Pior do que isso é que continuaremos dando aos jovens a impressão de que a indisciplina e a esperteza valem mais do que o respeito e o trabalho árduo. Essa é uma péssima herança.

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CAPA

Ministério Público: autonomia e independência institucional Antônio Fernando Barros e Silva de Souza Procurador-Geral da República

Discurso do novo Procurador-Geral da República Antonio Fernando Barros e Silva de Souza na solenidade de posse , em 30 de junho de 2005.

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“D

entre as instituições a que a Constituição Federal de 1988 conferiu novo perfil normativo, não há dúvida de que o Ministério Público é uma das que apresentou resposta mais satisfatória às expectativas do constituinte e aos anseios da sociedade, na medida em que tem revelado inequívoca aptidão para desempenhar, com competência e efetividade, as atribuições que lhe foram conferidas. Na sua tradicional função de legitimado exclusivo da ação penal pública, reforçada pelo exercício seletivo de atividades investigatórias próprias, vez que reconhecida, a propósito a inexistência de monopólio da polícia, e pela atuação conjunta e articulada com outras instituições estatais, tem realizado efetivo combate especialmente ao crime organizado, à lavagem de dinheiro e aos crimes contra a administração pública. O trabalho integrado com os diversos agentes encarregados de realizar investigações tem favorecido o exercício da ação penal e proporcionado excelentes resultados não só na efetividade da jurisdição penal, mas também na recuperação de ativos ilicitamente desviados. O caso Banestado, entre tantos outros, pode ser mencionado como exemplo significativo dessa atuação profícua tanto no que se refere à efetividade penal, quanto no que diz respeito à recuperação de valores. Se, no plano da tradicional iniciativa penal, a evolução qualitativa da atuação do Ministério Público é inconteste, no que diz respeito a sua posição, na esfera civil, como colegitimado para as demandas sociais, o seu sucesso não é menor. A Constituição de 1988 estabeleceu como funções institucionais do Ministério Público, além de outras, zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de

Ministério Público tem atuado com singular dedicação na defesa do meio ambiente, patrimônio histórico e cultural do consumidor, dos direitos dos infantes e adolescentes, dos idosos, das pessoas portadoras de necessidades especiais, das comunidades indígenas, dos quilombolas, do direito à saúde, à educação, à alimentação, à liberdade religiosa, à liberdade de expressão, ao acesso às fontes de informações e aos conhecimentos técnicos e científicos, à racionalização do desenvolvimento urbanístico, à regularidade e eficiência na prestação de serviços públicos, à proteção do patrimônio público, à honestidade na propaganda comercial, à segurança dos alimentos derivados da biotecnologia, entre muitos outros direitos e interesses. À defesa persistente da compatibilidade constitucional das leis e atos normativos, tanto através da ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, como incidentalmente nos diversos graus de jurisdição, e ao cuidado permanente na proteção multifária dos direitos humanos, o Ministério Público tem reservado especial atenção. Mas, no cumprimento dos seus deveres em favor da sociedade, o Ministério Público não se limita a utilizar apenas a via judicial, cresce, quantitativa e qualitativamente, a sua atuação na esfera extrajudicial, como propósito de obter soluções preventivas e consensuais, tanto em face da administração pública, como de particulares, com notável incremento na tutela preventiva de direitos. E tal atividade extrajudicial ocorre nas diversas áreas de suas múltiplas atribuições. A confiança e o respeito que a sociedade tem depositado do Ministério Público, ao que penso, é conseqüência não só da diligência e empenho que os seus membros têm dedicado

“Se, no plano da tradicional iniciativa penal, a evolução qualitativa da atuação do Ministério Público é inconteste, no que diz respeito a sua posição, na esfera civil, como co-legitimado para as demandas sociais, o seu sucesso não é menor.” relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, bem como promover o inquérito civil público e ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, incisos II e III da CF/88), áreas estas que concentram os aspectos mais modernos do rol da Instituição e a colocam na condição de defensora da sociedade. Sem a pretensão de ser exaustivo, mesmo porque a multiplicidade e a diversidade das tarefas que lhe são confiadas militam contra a completude, não é demais lembrar que o

ao cumprimento dos seus afazeres constitucionais e legais, especialmente na tutela de direitos e interesses coletivos ou difusos, como também da compreensão de que a formação de uma sociedade pluralista e solidária precisa desprezar a filosofia do egoísmo. A respeito, é oportuna a seguinte observação do professor José Carlos Barbosa Moreira, feita em aula inaugural da Universidade do Rio de Janeiro: “A filosofia do egoísmo, que impregnou a atmosfera cultural dos últimos tempos, não concebe que alguém se 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


CAPA possa deixar mover por outra força que o interesse pessoal. Nem faltou quem ousasse enxergar aí a regra de ouro; a melhor maneira de colaborar na promoção do bem comum consistiria, para cada indivíduo, em cuidar exclusivamente de seus próprios interesses. O compreensível entusiasmo com que se acolheu há dois séculos e se cultua até hoje, em determinados círculos, essa lição de Adam Smith explica o malogro da sociedade moderna em preservar de modo satisfatório bens e valores que, por não pertencerem individualmente a quem quer que seja, nem sempre se vêem bem representados e ponderados ao longo do processo decisório político-administrativo, em geral mais sensível à influência de outros fatores”. E o Ministério Público da União e dos Estados, superando a compreensão individualista do direito e da sociedade, na forma do comando constitucional, tem sido capaz de defender os bens e valores coletivos e difusos. Como ingressei no Ministério Público Federal em março de 1975, há mais de 30 anos, pude vivenciar, como muitos dos colegas aqui presentes, entre eles o meu caro Claudio Fonteles, todo o processo de evolução do Ministério Público que resultou no perfil normativo consagrado na Constituição de 1988, e agora todos nós podemos constatar que o nosso sonho converteuse em realidade: o Ministério Público é reconhecido como um defensor da sociedade. Como observou Norberto Bobbio em certa oportunidade, “não é verdade que uma revolução radical só possa ocorrer necessariamente de modo revolucionário. Pode ocorrer também gradativamente”. Todos nós testemunhamos que a transformação radical do Ministério Público ocorreu gradativamente e pela via democrática. A evolução substantiva do Ministério Público corresponde ao resultado de uma verdadeira revolução. O reconhecimento ao Ministério Público vem do trabalho sério e consciente realizado pelos seus agentes nas inúmeras comarcas, pequenas ou grandes, desse imenso Brasil, sempre guiado pelo propósito de propiciar um ambiente social capaz de privilegiar a cidadania, de preservar os direitos humanos, de assegurar rigoroso respeito pela coisa pública, de desestimular as iniciativas ilícitas, enfim de formar uma sociedade justa, pluralista e solidária. O respeito absoluto a sua independência e autonomia é condição indispensável para que o Ministério Público prossiga no cumprimento fiel dos deveres assinalados na Constituição Federal. Por outro lado, a preservação do

poder de realizar diligências investigatórias, no plano civil e penal, bem como o reconhecimento de ampla legitimidade para a busca de tutela jurisdicional a direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, são exigências inafastáveis à efetividade da atuação dos seus membros em prol da sociedade. Como já anotei em outra oportunidade, tenho consciência da gravidade e importância dos deveres assinalados ao procurador-geral da República que podem ser resumidos no desempenho das funções de Ministério Público perante o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, e na chefia do Ministério Público da União e Ministério Público Federal. A responsabilidade de exercer todas as atribuições de Ministério Público perante o Supremo Tribunal Federal, seja como autor de ações constitucionais ou penais, seja como fiscal da lei, decorrente do dever de manifestar-se em todos os processos de competência da Corte Suprema, bem como de iguais deveres perante o Tribunal Superior Eleitoral, será atendida com a independência, a isenção, a imparcialidade e o rigor que se esperam do titular do cargo. No exercício das chefias do Ministério Público da União e do Ministério Público Federal, com a indispensável colaboração dos membros e servidores dos respectivos ramos, dedicarei especial atenção à preservação dos requisitos indispensáveis à atuação do Ministério Público: a autonomia e independência institucional. A Emenda Constitucional 45, de 2004, acrescentou mais duas atribuições ao procurador geral da República: oficiar perante o Conselho Nacional de Justiça e integrar, como seu presidente, o Conselho Nacional do Ministério Público, conselhos estes que foram recentemente instalados. A expectativa da sociedade no sentido de que tais conselhos possam contribuir efetivamente para o aprimoramento tanto do funcionamento do Poder Judiciário, quanto do exercício das atribuições do Ministério Público, está a exigir do procurador-geral da República especial dedicação em cada um deles. Tenham todos a certeza de que, com a compreensão da minha esposa e dos meus filhos, dedicarei todos os meus esforços no sentido de consolidar e aprimorar o Ministério Público da União e, em especial, o Ministério Público Federal, para que cada vez mais atendam com eficiência às demandas sociais e ao desejo da sociedade de valorização da ética e de estrito respeito à coisa pública. Espero corresponder às expectativas de todos.

“Todos nós testemunhamos que a transformação radical do Ministério Público ocorreu gradativamente e pela via democrática. A evolução substantiva do Ministério Público corresponde ao resultado de uma verdadeira revolução.”

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ORA, A CULPA É DA ABIN. Mauro Marcelo de Lima e Silva Delegado de polícia e Ex-Diretor-Geral da ABIN

Já tínhamos praticamente fechado esta edição, contendo o artigo do Diretor-Geral da ABIN, quando ocorreu o incidente com a divulgação da NOTA do Delegado Mauro Marcelo, dirigida aos seus companheiros de instituição, com a qual, objetivava prestigiar e elogiar a conduta do agente Edgar Lange perante a CPI, face às atitudes descorteses e impróprias que o referido sofreu por parte de deputados e senadores, os quais tentaram desqualificá-lo e desmoralizar a ABIN como instituição. O propósito desta nota e a publicação da matéria refletem e reafirmam a intenção-fim dos objetivos da Revista, que desde os seus alvores, há seis anos, prima em apoiar e prestigiar as instituições e o Estado Democrático de Direito que vivenciamos, e em especial, a defesa intransigente do Poder Judiciário, consubstanciado na Magistratura e no Ministério Público. Está claro que não concordamos, em parte, com as expressões usadas genericamente contra deputados e senadores, entretanto, a revolta do Delegado Mauro Marcelo é procedente, face o triste posicionamento de alguns deputados e senadores, membros da CPI, que, na ânsia de se promoverem na mídia televisiva, cometeram deslizes e infelizes impropriedades contra uma instituição que presta bons e úteis serviços ao governo e à sociedade. O Editor

A

Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, ora tem sido a undécima versão da Geni, de Chico Buarque. Joga pedra na Geni. Joga pedra na ABIN. É conveniente, para setores que se dizem politicamente “esclarecidos” – mas jamais esclarecíveis– lembrarem agora da ABIN e a apontarem como bode expiatório, para justificar irregularidades, arapongagem ou atos de corrupção. É francamente mais fácil, e politicamente mais cômodo,  atribuir tais responsabilidades à Agência. E,

assim, nesse processo, tais corifeus se postam na condição de vítimas perante a opinião pública. Isso (para dizer o mínimo) sem disporem de quaisquer provas. Pura insídia. Esse tem sido o perverso rosário no caso dos Correios. Sim: é possível até que alguém rotule todo o “imbróglio” de conspiração da ABIN. Quem sabe com suspeita de ajuda da CIA, ou seria de Cuba? É mais fácil também, e talvez lucrativo, que a história seja repassada ou vendida antes de qualquer verificação cuidadosa. Não podemos esquecer que 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


o senso comum é facilmente influenciável e costuma interagir a partir de enredos de novelas e filmes, notícias de jornais e mesmo livros de ficção, repletos de “síndromes de conspiração”. Ingredientes não faltam. Eis, portanto, um rematado roteiro hollywoodiano. A ABIN não é o SNI. Permanece a confusão entre as atividades da ABIN e as do antigo SNI. Confusão essa facilitada (ou estimulada) por gestos teatrais e tiradas mirabolantes. Mas a realidade é bem outra. Sejamos mais profissionais. Basta de detetives amadores! Tudo o que tem sido dito e publicado sobre a participação da ABIN no caso dos Correios não reproduz com fidelidade nosso trabalho. A atuação do Sisbin – Sistema Brasileiro de Inteligência, tendo a ABIN como seu órgão central, tem por finalidade fornecer subsídios ao Presidente da República e a outros órgãos do Governo nos assuntos de interesse nacional. Desse modo, é

realizado amplo e permanente acompanhamento sobre fatos e situações com influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado, ou seja, nossas atribuições vêm sendo desempenhadas exclusivamente, repito, exclusivamente na defesa dos interesses do Estado do brasileiro. O foco, a finalidade, do trabalho da ABIN não é obter provas, mas informações de interesse do Presidente da República. A prova pode ser uma informação. Mas a informação não é necessariamente uma prova. Essa é a grande diferença entre os trabalhos desenvolvidos pela ABIN e os da Polícia Federal. Nós buscamos a informação. Eles, a prova. Na busca dessas informações contatamos fontes, informantes, buscamos o dado negado, trabalhamos no border line da legalidade mas sem ultrapassamos a linha. A ABIN estava agora, como sempre esteve,  na sua missão legal de coleta de informações, inclusive sigilosas, para a produção de

“O que a mídia, e os demais formadores de opinião de nosso país devem se atentar, é em não serem atraídos pelo canto da sereia, de alguém que, no desespero, se utiliza de acusações levianas e irresponsáveis contra uma instituição séria (...)”

conhecimento e, nesse trabalho, conta com a valiosa sinergia de dezenas de instituições integrantes do Sistema. Nesse mister, observamos cuidadosamente nosso papel de produzir subsídios para o processo decisório governamental. Assim, toda a coleta e análise de dados pertinentes não implicou, em momento algum, sobreposição a atividades de investigação policial. Ao contrário: buscamos sempre a cooperação e a parceria com outras instituições. Não existe competição entre o trabalho desenvolvido pela ABIN e pela PF. O que há são casos pontuais de ignorância explícita sobre o real papel de nossa função, constantemente – e erroneamente - rotulada de arapongagem. É nesse escopo que as menções do deputado-ator Roberto Jefferson à ABIN, em seu discurso-show e

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“Quem tenta obscurecer a percepção da realidade é aquele que em passado não muito distante se beneficiava de uma situação amplamente condenada pela sociedade brasileira.”

entrevistas, não merecem atenção. Trata-se da mais pura e cristalina teoria conspiratória. Forjada, com arroubos teatrais de quem conhece a fina retórica advocatícia, para confundir a opinião pública e, em particular, a mídia. É evidente que jogar a culpa na ABIN é uma boa saída. Tudo não passa de armação da Agência: eis o eixo do mal prodigalizado pelo ator-advogado-deputado em seu teratológico depoimento. De fato, eis uma saída engenhosa, um ardil agudo, para desviar a atenção. O que a mídia, e os demais formadores de opinião de nosso país devem se atentar, é em não serem atraídos pelo canto da sereia, de alguém que, no desespero, se utiliza de acusações levianas e irresponsáveis contra uma instituição séria, que se pauta pela irrestrita observância dos direitos e garantias individuais e dos princípios éticos que regem os interesses e a segurança do Estado. Mas falta um detalhe importante. Quem é que está tentando desviar a atenção do foco do problema? É a ABIN? Certamente não. A Agência busca a verdade. Quem tenta obscurecer a percepção da realidade é aquele que em passado não muito distante se beneficiava de uma situação amplamente condenada pela sociedade brasileira. Apesar do “show teatral”, não pactuamos com atitude messiânica utilizada para iludir os incautos sobre a verdade dos fatos. Ele usou a desinformação, que podemos traduzir por atos de defesa que utilizam dados falsos, mesclados com informações verdadeiras, a fim de dar crédito. São as meiasmentiras e meias-verdades. Ardilosa trama. Mas esse tipo de estratagema não configura novidade. Sabe-se, no mundo do processamento de informações de Inteligência, que uma das mais insinuantes feições da trama farsesca consiste justamente neste ardil: erigir um corpo temático, composto de supostas verdades, todas passíveis de serem checadas, e polvilhar rastilhos de mentira ao meio do construto - quase sempre um discurso repleto de histrionismos e bravatas. O

produto final é um prato a ser consumido quente, pela mídia, e um prato a ser servido frio, pelo denunciante, sobretudo porque quase sempre esse tipo de gente resolve abrir a boca porque são sabedores de que, mais cedo ou mais tarde, seriam pespegados metendo os pés pelas mãos. Esse ato radical de teatro impressiona menos pelo seu artificialismo do que pelos efeitos desastrosos que causa na democracia: um país pode assim ser paralisado, até mesmo nas raias da economia, pela ânsia, convertida em anseio popular, e até popularesco, de ver-se checado exatamente o que o denunciante falou. Portanto, desconstituir a calúnia é um ato legítimo de investigação e de Inteligência. É assim que o aparato investigatório, de uma CPI ou da própria polícia e sistema judicial, vê-se ora empenhado em medir a real extensão do que tem se falado por aí. Mas tais denunciantes histriônicos conhecem bem o riscado e o balé da coreografia do poder. Basta uma acusação estar sendo investigada para que o ator lance no ar novas dúvidas e acusações ainda mais agudas. Como disse o filósofo, há dois tipos de mentira: a que não chega até a verdade e aquela que ultrapassa a verdade. Embora nada saibam de filosofia, tais denunciantes conhecem, de instinto, o mister de embaralhar a verdade dentre as cartas marcadas pela falsidade.  Converter uma fricção rotineira numa teoria conspiratória foi o quesito mais premiado à mídia pelo deputado. Pouco faltará para que seja, também, o mais condenável pela lei, pela ética e pelos fatos. Qualquer tolo pode dizer a verdade, mas para mentir é preciso muita imaginação.

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A Justiça no cálculo das tarifas de energia elétrica Jerson Kelman Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Diretor-Geral da Agência Nacional de Energia Elétrica

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erviço público que dependa de equipamentos intensivos em capital e com vida útil medida em décadas, como o de eletricidade, só é prestado adequadamente quando as regras da concessão são claras e estáveis. É por esta razão que a Lei 9.427/96 atribuiu competência à Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL apenas para calcular tarifas que estejam em estrita consonância com o estabelecido no marco legal e nos contratos. Se, por exemplo, ao regulador fosse permitido promover “justiça social com suas próprias mãos”, arbitrando sistematicamente índices de reajuste do exclusivo agrado dos consumidores, poucas empresas permaneceriam interessadas na prestação desse tipo de serviço. Consequentemente, a qualidade se deterioraria e os próprios consumidores sofreriam as conseqüências. Em outras palavras, uma tarifa excessivamente baixa pode ser vantajosa para os consumidores apenas no curto prazo. Cabe à ANEEL zelar por ambos os interesses do consumidor: de curto e de longo prazos. A tarifa ontem De acordo com o Código de Águas (Decreto 24.643/34), as tarifas deveriam proporcionar a cobertura do custo do 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2005

serviço e prover à concessionária a remuneração de 10 a 12% sobre o capital. Essa regra induzia à maximização dos investimentos, resultando num sistema economicamente ineficiente. A situação agravou-se quando o Governo começou a impor tetos aos reajustes tarifários, com o objetivo de controlar a inflação. Como as tarifas não eram suficientes para garantir os percentuais de remuneração, as denominadas insuficiências tarifárias eram contabilizadas na Conta de Resultados a Compensar – CRC, em favor das concessionárias. Em decorrência, ocorreu uma generalizada inadimplência entre empresas do Setor Elétrico que só veio a ser sanada com o advento da Lei n.° 8.631, de 1993, que pôs fim à equalização tarifária e possibilitou a liquidação da CRC, ao custo para o contribuinte de cerca de 25 bilhões de dólares. A tarifa hoje Esgotada a capacidade de endividamento do Estado, o caminho natural foi criar condições que viabilizassem a atração de capitais privados para custear esse setor fundamental da infra-estrutura nacional. Para tanto, foi preciso que o Governo emitisse sinais claros e seguros aos investidores. Nesse contexto é que foram aprovadas as Leis


n.° 8.987/95 e 9.427/96, e, como decorrência, celebrados os contratos de concessões, os quais incluíram condições para reajuste e revisão tarifária. Os reajustes tarifários são efetuados anualmente e dependem da variação do IGP-M, do ganho de produtividade da concessionária (que deve ser compartilhado com os consumidores) e da variação dos custos não gerenciáveis pela empresa distribuidora de energia elétrica, essencialmente compra de energia e pagamento de encargos setoriais e de tributos. As revisões ordinárias das tarifas ocorrem em média a cada quatro anos, quando a ANEEL estabelece a receita necessária para a prestação do serviço, com a confiabilidade estipulada, e manter a concessão em situação de equilíbrio econômico-financeiro. Essa situação é consagrada na Constituição Federal, nas leis e nos contratos de concessão. Na revisão ordinária, a ANEEL estabelece clara distinção entre as necessidades da concessão, que devem atender aos interesses de curto e longo prazos do consumidor, e as da concessionária, que podem estar contaminadas por decisões empresarias equivocadas, cujos custos não devem ser repassados ao consumidor. Como resultado da revisão

A principal alternativa consistia em garantir contratos de venda de energia para empreendedores que investissem em termoelétricas, cujos prazos de construção são inferiores aos das hidroelétricas. Esses investimentos resultariam em tarifas mais elevadas para os consumidores - como de fato está acontecendo - quando estas usinas entrassem em operação, em 2004. Hoje, com os reservatórios das usinas hidroelétricas cheios, o que circunstancialmente dispensa o uso da energia produzida pelas térmicas, há quem advogue, inclusive na Justiça, pelo não cumprimento dos contratos. Como o tema é complexo, há juízes que têm concedido liminares revogando cálculos tarifários feitos pela ANEEL, partindo do pressuposto de que os contratos firmados quatro anos atrás foram lesivos ao interesse do consumidor. Não lhes ocorre que a situação seria diametralmente oposta se tivesse chovido pouco nos dois últimos anos e os reservatórios estivessem vazios. A segunda parcela da conta de luz refere-se aos custos de transmissão e distribuição de energia elétrica, que se mantêm estáveis. É desta parcela que a distribuidora tem de retirar o pagamento dos custos operacionais e a remuneração de seus investimentos.

“Uma revisão extraordinária pode ocorrer quando algum evento imprevisível afetar o equilíbrio econômico-financeiro da concessão.”

ordinária, a tarifa de uma concessionária pode aumentar ou diminuir. Uma revisão extraordinária pode ocorrer quando algum evento imprevisível afetar o equilíbrio econômicofinanceiro da concessão. Grosso modo, o que os consumidores pagam na conta de luz pode ser dividido em três partes aproximadamente iguais. A primeira parcela refere-se ao custo de compra de energia. Em muitos casos tem crescido por conta da substituição de antigos contratos entre geradores e distribuidoras, com tarifas reguladas, por novos contratos livremente negociados às vésperas do racionamento de 2001, inclusive entre partes relacionadas (geradora e distribuidora pertencentes ao mesmo grupo econômico). Com o Novo Modelo do Setor Elétrico, consubstanciado na Lei n.o 10.848/04, não se admite mais esta liberalidade: as distribuidoras não podem mais escolher de qual gerador preferem comprar energia. Agora, são obrigadas por lei a se consorciar com as demais distribuidoras e, por meio de um leilão, celebrar contratos com os geradores que lograrem ofertar os menores preços ao consórcio. Entretanto, na época em que muitos destes contratos foram firmados, a preocupação estava focada em medidas que pudessem evitar ou mitigar o iminente racionamento.

A terceira parcela, que engloba tributos e encargos (apresentados no Anexo), é a que mais tem aumentado. A alíquota e o método de apuração do PIS-COFINS mudaram e diversos Estados revisaram a alíquota do ICMS. Além disto, considerando a decisão do STF que diz que os recolhimentos realizados ao PIS e à COFINS devem compor a base tributária, confirmando a forma de cálculo (por dentro) praticada pelos Estados, temos, por exemplo, que uma alíquota de 25% de ICMS se converte, na prática, em 33%, e, uma de 30% em 43%. No sentido inverso, o que é pago de ICMS é agregado à base de cálculo de PIS e COFINS, constituindo um movimento circular e multiplicativo - uma espécie de vórtice arrecadatório - que traga as economias do consumidor. Os principais encargos são utilizados para subsidiar: (a) a geração térmica na Amazônia Legal (sistemas isolados), que tem crescido muito devido à elevação de consumo, principalmente em Manaus, e do preço do petróleo; (b) os consumidores de baixa renda; (c) o esforço de universalização - levar eletricidade a todos os brasileiros; (d) a geração térmica a carvão na Região Sul; (e) as chamadas fontes alternativas de energia (eólica, bio-eletricidade e pequenas centrais hidroelétricas); (f) a compensação financeira distribuída aos municípios e estados 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


afetados pela implantação de usinas hidroelétricas; (g) as pesquisas científicas e tecnológicas relacionadas à eletricidade e ao uso sustentável dos recursos naturais; e (h) as térmicas “emergenciais” que foram contratadas por ocasião do racionamento de 2001. Quando analisado isoladamente, cada encargo ou tributo, sempre criado por uma lei, pode ser plenamente justificado. Quando somados constata-se que a conta pode estar ultrapassando a capacidade de pagamento do consumidor.

se produzam situações de abuso de posição dominante, derivada da situação de monopólio, e verificar se os níveis de qualidade do serviço são apropriados. Para estabelecer tarifas justas, o regulador desenvolveu metodologias que são utilizadas no processo revisional das tarifas, tais como: empresa de referência que estabelece custos operacionais eficientes; base de remuneração que apura os investimentos prudentes efetuados na concessão, estrutura ótima de capital, que minimiza o custo do capital; e fator X que compartilha com os consumidores os ganhos esperados de produtividade do prestador do serviço.

As competências da ANEEL em matéria tarifária É clara a competência da ANEEL para estabelecer os reajustes e as revisões das tarifas de energia elétrica. O Judiciário e as questões tarifárias Ela decorre diretamente do art. 29, V, da Lei 8.987/95, Recentemente, o que tem ocorrido é a utilização da via combinado com o art. 3º da Lei 9.427/96. A mesma lei, judiciária para a redução dos valores das tarifas por meio da em seus artigos 14 e 15, estabelece o regime econômicoimpugnação dos cálculos tarifários feitos pela ANEEL. São financeiro dos contratos de concessão de energia elétrica, questionados nos processos as opções metodológicas e os lançando diretrizes para o exercício dessa competência, como, critérios técnicos. Esse debate, em verdade, pouco ou nada por exemplo, a apropriação dos tem de controle ou imposição de ganhos de eficiência empresarial legalidade. É trazido ao Judiciário e competitividade. O contrato de com o objetivo de discutir questões “A missão essencial do concessão, por sua vez, estabelece de discricionariedade técnica regulador de um serviço uma fórmula paramétrica apenas adotadas pela ANEEL no estrito para o reajuste anual, sendo exercício de suas competências. monopolista, como no parcimonioso ao tratar da revisão Como se sabe, não é dada ao caso da distribuição de tarifária. Portanto, foi conferida Poder Judiciário a competência de à ANEEL a discricionariedade pronunciar-se acerca do mérito energia elétrica, é garantir técnica para o cumprimento administrativo, sob pena de afrontarque sejam respeitados os desse ofício. se o princípio constitucional da Não tendo a Lei fixado os direitos dos consumidores e independência e harmonia entre os critérios, mas a linha geral, coube Poderes da República. Quando o dos prestadores do serviço ao regulador, especialmente para faz, a reversão da decisão cabe ao de eletricidade que atuam a revisão tarifária, estabelecer a próprio Judiciário. metodologia que contemplasse, A conseqüência desse fenômeno com eficiência e prudência.” entre outros aspectos, a aferição é o surgimento de uma preocupante dos custos eficientes e dos insegurança jurídica, que resulta investimentos prudentes de uma no aumento da percepção do empresa. O objetivo é estimular a eficiência econômica chamado “risco regulatório”. As concessionárias deixam de da concessionária e fazer com que esse avanço reverta em ter a previsibilidade de seus níveis tarifários, que é elemento favor do consumidor, por meio da modicidade tarifária. essencial para uma política de investimentos. A percepção Entre os diversos métodos disponíveis para se chegar a de risco diminui o interesse na prestação do serviço e, esse objetivo, coube à ANEEL, no estrito exercício de suas consequentemente, faz com que as empresas demandem competências, definir aquele que melhor se subsumisse à remuneração mais elevada do capital. Ao final, são os linha dos princípios dos dispositivos legais e contratuais que consumidores que pagam a conta, por meio de tarifas mais disciplinam as concessões de serviços de energia elétrica. elevadas. A missão essencial do regulador de um serviço Não se trata de querer afastar a atuação do Poder monopolista, como no caso da distribuição de energia Judiciário no controle da legalidade dos atos administrativos elétrica, é garantir que sejam respeitados os direitos dos praticados pelas agências reguladoras. No entanto, em se consumidores e dos prestadores do serviço de eletricidade tratando de matéria tarifária, na maioria das vezes, não há que atuam com eficiência e prudência. O consumidor tem o controle de legalidade a ser exercido, vez que se questionam direito de receber o serviço com nível adequado de qualidade opções técnicas discricionárias tomadas no exercício de e de pagar uma tarifa justa. O prestador do serviço, por competências legais. O que tem acontecido, por vezes, são sua vez, tem o direito de obter adequado retorno sobre decisões judiciais que extrapolam o exercício do controle o capital investido. Assim, compete à ANEEL evitar que finalístico dos atos administrativos das agências, invadindo a 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2005


DEMONSTRATIVO DOS ENCARGOS SETORIAIS PAGOS PELOS CONSUMIDORES DE ENERGIA Valor anual estimado R$ Milhões

Encargo

Base de cálculo

Destinação

Gestor (a)

Reserva Global de Reversão – RGR

2,5% do Ativo Reversível Líquido, limitado a 3% da Receita Operacional.

- Indenizar ativos vinculados à concessão - Fomentar expansão e manutenção do setor elétrico

Centrais Elétricas Brasileiras S.A. - ELETROBRÁS

1.200

Taxa de Fiscalização de Serviços de Energia Elétrica – TFSEE

0,5% sobre o benefício econômico; é cobrado 0,5% da Receita Operacional Líquida, deduzida a energia comprada para revenda.

- Prover a ANEEL de recursos para o exercício de suas atividades.

Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL/ Tesouro Nacional

270

Conta de Consumo de Combustíveis – CCC

É cobrada pela quantidade de recursos necessários para as suas finalidades e rateada pelos agentes que fornecem energia a consumidores finais, proporcionalmente a seus mercados.

- Subsidiar custos com geração térmica (óleo diesel), com maior incidência nos sistemas isolados; - fomentar investimentos que substituam geração subsidiada com recursos da CCC - (CCC sub-rogação).

Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – ELETROBRÁS.

3.419

Conta de Desenvolvimento Energético – CDE

Composta de três fontes de receita: - quotas anuais pagas por todos os agentes que comercializam energia com consumidor final (*) - Multas aplicadas pela ANEEL - Multas pelo Uso do Bem Público – UBP, cujos valores para geradoras que migraram da condição de concessionárias de serviços públicos para produtor independente de energia foram estabelecidos nos respectivos contratos de concessão, com base em 2,5% da receita auferida pelo agente, em substituição da RGR. (**)

- Propiciar o desenvolvimento energético dos Estados e a competitividade da energia produzida a partir de fontes eólica, pequenas centrais hidrelétricas, biomassa, gás natural e carvão mineral nacional, nas áreas atendidas pelos sistemas interligados, - promover a universalização do serviço de energia em todo o país - garantir recursos para atendimento à subvenção econômica destinada à modicidade tarifária de fornecimento de energia aos consumidores finais integrantes da Subclasse Residencial Baixa Renda.

MME / ELETROBRÁS

1.816

Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos

É cobrado dos geradores hidráulicos à razão de 6,75% vezes Tarifa Atualizada de Referência – TAR, vezes a Energia Gerada – EG. (6,75% x TAR x EG). Agentes com capacidade instalada até 30 MW são isentos.

- Compensar perdas de terras produtivas pela inundação ocasionada pela construção de barragens para geração de energia hidráulica. Dos 6,75% sobre a base: 0,75% são destinados para a Agência Nacional de Águas; Os 6% restantes são assim destinados 45% para os Estados, 45% para os Municípios e 10% para a União, sendo 3% para o MMA; 3% para o MME e 4% para o MCT/FNDCT.

ANEEL / Tesouro Nacional

1.016

2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17


DEMONSTRATIVO DOS ENCARGOS SETORIAIS PAGOS PELOS CONSUMIDORES DE ENERGIA Valor anual estimado R$ Milhões

Encargo

Base de cálculo

Destinação

Gestor (a)

Royalties Itaipu, incidente sobre a energia gerada de acordo com o Tratado Brasil/ Paraguai

É proporcional ao produto da energia gerada pelo preço do GWh em US$

Min. do Meio Ambiente 3%; Min. de Minas e Energia 3%; Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FNDCT 4%; Estados 45%; Municípios 45%.

ANEEL/Tesouro Nacional.

485

Pesquisa e Desenvolvimento e Eficiência Energética

1% incidente sobre a Receita Operacional Líquida. (Lei nº 9.991/2000; Decreto nº 3.867/2001 e Resolução ANEEL nº 185/2001).

Os recursos são destinados ao MCT/Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FNDCT, ao MME, á Empresa de Pesquisa Energética- EPE e parte permanece com os agentes a serem aplicados em projetos aprovados pela ANEEL.

Ministério da Ciência e Tecnologia, EPE, Agentes e ANEEL

200

Encargo de Capacidade Emergencial - ECE

0,0060 por KWh (Resolução ANEEL 108, abril de 2005).

Prover a CBEE de recursos para garantir disponibilidade de potência para geração de energia térmica com o intuito incrementar oferta de energia no mercado.

Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial -CBEE

1.600

*CDE – Base de cálculo – quotas terão valor idêntico às estipuladas para o ano de 2001, com ajuste anual, a partir de 2002, na proporção do crescimento do mercado de cada agente (quotas de CCC que seria extinta gradualmente Lei nº 9.648/1998), ** Aos agentes que não se enquadram na condição acima mencionada, os valores serão de acordo com o resultado da licitação (quem se dispõe a pagar o maior valor a título de UBP, é vencedor do certame).

seara do mérito administrativo, o que refoge ao exercício da atividade jurisdicional. Essa preocupação com os limites da atuação do Poder Judiciário em matéria tarifária vem ocupando os debates nos meios acadêmicos, envolvendo especialmente membros do próprio Judiciário. Em recente seminário acerca do controle jurisdicional dos atos das agências reguladoras, uma Desembargadora Federal perguntou ao Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal – STF, acerca da possibilidade de revisão judicial dos aspectos ligados aos preços estabelecidos pelas agências reguladoras, sobretudo por envolver “critérios de discricionariedade técnica”. O eminente ministro, embora ressaltando que o nosso sistema é universalmente “judicialista”, ressaltou que a banalização desse tipo de intervenção provoca uma profunda instabilidade jurídica, o que afronta a própria razão de ser das agências reguladoras, que na sua visão é garantir maior estabilidade das relações, com vistas a dar a perspectiva de retorno dos investimentos. E acrescentou que, embora a intervenção busque a redução de preços, esse cenário poderia apontar em médio prazo ao contrário do resultado pretendido. 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2005

Conclusão Encontrar o equilíbrio entre uma tarifa que proporcione a atração de investimentos e a modicidade tarifária é o grande desafio da ANEEL. É difícil imaginar que possam existir interessados em aportar recursos em infra-estrutura, cuja vida útil se mede em décadas, num país que viesse a adotar movimentos pendulares, sinalizando amor e ódio aos investidores, de acordo com a boa ou má vontade de São Pedro no enchimento dos reservatórios. Ao observar a evolução das tarifas é importante reconhecer que a energia mais cara é aquela que não existe por falta de investimentos. Assim, cabe ao regulador estabelecer regras no presente com o olho no futuro, em prol do interesse coletivo. No passado, as regras do Setor Elétrico incentivavam a ineficiência e o desarranjo institucional. De um lado, as concessionárias tinham asseguradas a cobertura do custo do serviço e a remuneração legal do investimento. De outro lado, o Governo estabelecia o controle de tarifas, com objetivo de conter o processo inflacionário. Esta inconsistência custou um passivo, como já dito, de 25 bilhões de dólares, pago pelos contribuintes em 1993. Ninguém quer ver este filme novamente.


A babel tributária Antônio Oliveira Santos Advogado e Presidente da Confederação Nacional do Comércio

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uando chegaram à Mesopotâmia, os descendentes de Noé, por orgulho, vaidade e grandeza, resolveram construir uma torre cujo topo deveria chegar ao céu. Para castigá-los e forçá-los a se espalhar e povoar toda a Terra, Deus introduziu entre eles as diversas línguas, de modo a que um não compreendesse a voz do outro. Confusos e divididos, eles se espalharam por todas as regiões (Gênesis, 11). Desse modo, a Torre de Babel tornou-se símbolo da confusão e da divisão entre os homens. Ainda amargando o insucesso no Congresso Nacional, com o repúdio à Medida Provisória nº 232/04 (a “MP do Mal”) - que aumentava a carga tributária e a burocracia fiscal para as empresas do comércio de bens, serviços e turismo, a par de cercear o direito de defesa nos Conselhos de Contribuintes -, o governo expediu uma nova MP, agora para beneficiar alguns setores empresariais - indústria, exportação, construção civil, operações imobiliárias, pesquisa tecnológica -, além de reduzir o imposto de renda sobre ganhos de capital na venda de imóveis residenciais, permitir o reingresso no Simples de micro e pequenas empresas dele excluídas, estender alguns prazos de pagamento do IR e do IOF e criar, na previdência complementar, fundos de investimento, com patrimônio segregado. Por essas razões, a MP nº 252 vem sendo chamada de “MP do Bem”, para distingui-la de todas as outras, em matéria tributária, que seriam, com raras exceções, MPs do Mal. Ainda assim, há na MP uma gota de maldade: compensação compulsória – e inconstitucional entre créditos do contribuinte e da Fazenda. O comércio de bens, serviços e turismo só pode aplaudir a iniciativa do governo quanto à redução de tributos, mesmo limitada a alguns setores. Todavia, os redatores da MP nº 252 devem ter se inspirado no tema bíblico da Torre de Babel, para lançar os contribuintes em estratosférica confusão e promover a divisão entre a minoria beneficiada e a maioria preterida. Com 283 novas regras tributárias, tidas como urgentes e relevantes e dispostas em 74 artigos, 113 parágrafos, 65 incisos, 26 alíneas e 5 itens, a MP modifica 31 diplomas legais (27 leis,

duas MPs e um decreto-lei), assim dificultando, extremamente, a compreensão de suas normas pelos contribuintes que deverão cumpri-las, advogados que deverão interpretá-las, juízes que deverão aplicá-las e parlamentares, que deverão aprová-las ou rejeitá-las. É uma babel tributária. A concessão de isenções e reduções de tributos é benéfica, mas poucos setores foram beneficiados. Na realidade, o que todos os contribuintes aguardam e a Nação exige são medidas de caráter geral, para reduzir a carga tributária, sem preferências e exclusões. Por exemplo: extinção da Contribuição ao PIS/Pasep, que há muito deixou de constituir patrimônio dos trabalhadores, e da Cofins, CSLL e CPMF, esdrúxulas, anti-econômicas e anti-sociais. A perda de receita poderia ser compensada por reajustes no imposto de renda e no IPI e, sobretudo, por forte redução da despesa pública. A atual tributação dos ganhos de capital, na venda de imóveis, é, incontestavelmente, confiscatória – e, portanto, inconstitucional -, uma vez que o imposto de renda não incide sobre o ganho real, mas sobre o ganho fictício, em face da vedação à atualização monetária do valor de aquisição (custo) do imóvel. Esse absurdo, como é público e notório, tem desestimulado a construção de imóveis e os investimentos privados em imóveis para locação. Todavia, em lugar de corrigir esse monstrengo fiscal, como dispõe o projeto do deputado Francisco Dornelles, em curso na Câmara dos Deputados, a MP cria uma módica redução do ganho de capital fictício apurado, mantendo um confisco parcial. Já a isenção do IR na venda de imóveis residenciais, sob a condição de que o respectivo produto seja aplicado em seis meses, na compra de outros, é medida justa e oportuna. Em tais condições, o empresariado do comércio de bens, serviços e turismo, que congrega cerca de 4,5 milhões de empresas e 20 milhões de trabalhadores, ao tempo em que apóia os benefícios fiscais concedidos a alguns setores, reclama, mais uma vez, a concretização de uma ampla reforma que reduza a carga tributária, socialmente injusta e nociva à atividade econômica, e simplifique e desburocratize todo o sistema. 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


REENVIO PREJU ELO ENTRE O JUIZ Tânia de Melo Bastos Heine Desembargadora Federal do TRF - 2ª Região

INTRODUÇÃO Os processos de integração regional têm especificidades conforme o caminho que os países pretendam trilhar e as fases em que se encontram. A integração para Bela Balassa tem um duplo aspecto: como processo, significa o conjunto de medidas destinadas a abolir discriminações econômicas entre os Estados, e, como situação, significa a ausência de discriminação entre as economias nacionais. A classificação das diversas etapas nos processos de integração feitas por esse autor tem sido amplamente citada, distinguindo, também, os processos de cooperação, caracterizados pela diminuição das barreiras comerciais entre os Estados, dos processos de integração, onde o objetivo é suprimi-las.1 Ultrapassada a etapa da área de tarifas preferenciais, ou de associações de cooperação, onde se busca a coordenação das políticas econômicas e a redução parcial das tarifas alfandegárias, alcança-se a etapa da zona de livre comércio. Nessa fase são abolidas barreiras e restrições quantitativas ou aduaneiras, com o livre trânsito de mercadorias entre os países que integram o grupo. O passo seguinte é a união aduaneira, caracterizada pela tarifa exterior comum em relação a terceiros, “eliminando 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2005


U DICIAL: Z COMUNITÁRIO E O JUIZ NACIONAL

“A União Européia afetou a noção clássica de Estado Nação e de soberania indivisível, intransferível e absoluta legada pela doutrina clássica.”

os complexos problemas nas definições das regras de origem, assim conceituadas como critérios para que se permita identificar se a produção pode ser considerada de determinado país, de acordo com os percentuais de matéria prima, mão de obra etc.”2 Esta é a etapa prevista para o MERCOSUL, que ainda se encontra numa “união aduaneira incompleta”. Na União Européia essa fase foi implantada em 01 de julho de 1968, pela decisão do Conselho nº 66/532. A seguir ingressa-se no mercado comum, objetivo final do MERCOSUL, como previsto no Tratado de Assunção. Sua característica é a livre circulação de fatores de produção, assim considerados pessoas, serviços, bens e capitais, com a eliminação das fronteiras físicas, técnicas e fiscais. Na busca de tais objetivos torna-se imperioso um conjunto de normas supranacionais de aplicação direta e outras que visam à harmonização das legislações nacionais, além de instituições supranacionais das quais emanem essas normas e órgãos que as façam cumprir, dirimindo conflitos de interesses e uniformizando a interpretação dos Tratados. Paulo de Pitta e Cunha distingue o mercado comum do mercado interno, considerando que este se caracteriza pela livre circulação de cidadãos, como tais, e não como agentes econômicos.3

A etapa final do processo de integração é a união econômica e monetária, com adoção de política monetária unificada, bem como a adoção de um padrão monetário comum, fase alcançada pela União Européia com o euro, que vem demonstrando ser uma moeda forte capaz de competir com o dólar norte americano A União Européia afetou a noção clássica de Estado Nação e de soberania indivisível, intransferível e absoluta legada pela doutrina clássica. A idéia de uma Constituição supranacional está provocando os maiores debates entre constitucionalistas que estão assistindo ao surgimento de novas teses doutrinárias opostas ao que sempre defenderam, em inúmeros livros publicados. A União Européia dispõe de quadro institucional próprio, com raízes nas três comunidades: a Comunidade Européia do Carvão e do Aço, criada em 1951, a Comunidade Econômica Européia, criada em 1957 com o Tratado de Roma e que passou a se chamar simplesmente Comunidade Européia, após o Tratado de Maastricht, e a Comunidade Européia da Energia Atômica, também criada em 1957, consideradas os três pilares em que se assenta a União Européia. O Tribunal de Justiça e o Parlamento Europeu são órgãos comuns às três Comunidades, a partir do primeiro 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


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uma norma comunitária que lhe provocou uma lesão. O Tribunal Nacional, se assim entender necessário, suspende o processo e envia ao Tribunal de Justiça da União Européia a consulta sobre a correta interpretação daquela norma, através do denominado “reenvio prejudicial”. A questão prejudicial é uma via indireta de controle da aplicação do Direito Comunitário, como dito anteriormente, suscitada pelo juiz ou Tribunal Nacional de um Estado Membro, nos casos em que se invoca uma questão DIREITO COMUNITÁRIO comunitária controvertida. A medida é provocada de ofício, O Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça de Primeira fundamentadamente, constituindo um procedimento Instância têm sede em Luxemburgo. interlocutório, qualquer que seja o tipo ou a natureza da A função precípua do Tribunal de Justiça é a questão posta em litígio. interpretação autêntica dos Tratados, atuando como um Alguns critérios foram estabelecidos para se qualificar o Tribunal Constitucional. Exerce o controle da legalidade órgão como jurisdicional diante dos atos, jurisdição cível, laboral de diferentes ordenamentos e, segundo parte da doutrina, jurídicos dos países membros também a quase penal. Sua da Comunidade. Devem atuação é primordial para permitir “A questão prejudicial ser verificadas a sua origem que o Direito Comunitário seja legal, seu caráter permanente, aplicado independentemente é uma via indireta de a jurisdição obrigatória, a de considerações políticas, de controle da aplicação existência de contraditório e a maneira uniforme, dirimindo aplicação da regra de Direito, aí controvérsias entre Estados do Direito Comunitário, não se incluindo o conceito de Membros que compõem a União como dito anteriormente, equidade. Européia, bem como entre os A qualificação de órgão seus órgãos. suscitada pelo juiz ou jurisdicional nacional apto a O Tribunal de Justiça é encaminhar a questão prejudicial Tribunal Nacional de um composto por juízes, cidadãos foi se ampliando a partir do dos Estados Membros, de Estado Membro, nos Processo 61/65.5 Nesse caso o notório saber jurídico e reputação reenvio foi encaminhado por ilibada, cumprindo mandatos casos em que se invoca um organismo holandês de pré-estabelecidos, assistidos por uma questão comunitária seguridade social dos mineiros, advogados gerais, que atuam tendo o advogado geral Gand se como Ministério Público. As controvertida.” manifestado no sentido de que: decisões são publicadas nas “Mesmo que a organização línguas oficiais, cabendo ao autor jurisdicional e administrativa escolher a língua a ser adotada dos Estados membros resulte de princípios comuns, durante o julgamento. no seu conjunto ela foi influenciada por contingências Com a expansão da demanda, pela decisão do Conselho históricas ou por concepções jurídicas distintas. Deste nº 88/591, foi criado o Tribunal de Justiça de Primeira modo, pode acontecer que as necessidades de interpretação Instância, que começou a funcionar em novembro de 1989. e de aplicação uniformes do Tratado conduzam o Tribunal Posteriormente, por decisão do Conselho de 08 de junho de a reconhecer a qualidade de jurisdição, com base no 1993, sua competência foi ampliada. artigo 177, a um órgão ao qual a lei interna não atribui Esse Tribunal tem competência mais restrita, julgando expressamente esse caráter.” ações propostas por particulares, visando desafogar o A decisão da relevância é exclusivamente do juiz Tribunal de Justiça. nacional, sendo irrecorrível a nível comunitário, para A diversidade de terminologia e o fato de coexistirem preservar a independência do Poder Judiciário do Estado países da Common Law com países da Civil Law não tem sido Membro. obstáculo ao funcionamento desses Tribunais. No acórdão Hoffmann Laroche6 o TJCE afirmou que a razão de ser da obrigatoriedade do reenvio tem em vista a REENVIO PREJUDICIAL prevenção do aparecimento, em qualquer Estado Membro, Os Tribunais dos Países Membros também funcionam de jurisprudência contrária ao direito comunitário. como primeira instância do Direito Comunitário nos casos Também no acórdão CILFIT7 o TJCE afirmou que em que uma ação neles proposta por um particular invoque Tratado de Fusão, em 1957. Com o segundo Tratado de Fusão, em 1965, o mesmo ocorreu com a Comissão e o Conselho. Maria João Palma salienta que “esta fusão orgânica não implicou uma identidade ao nível das competências: os órgãos, sendo comuns, exercem as suas competências nos termos dos respectivos Tratados”.4

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Afirma José Luis Caramelo Gomes9 que: o objetivo fundamental da obrigatoriedade do reenvio é a prevenção do estabelecimento de divergências “No que respeita à afirmação produzida pelo TJCE jurisprudenciais na Comunidade em relação a questões de em Costa c. ENEL, estamos perante a única alguma vez Direito Comunitário. produzida pelo Tribunal sobre esta matéria e trata-se de Cada vez mais o TJCE vem firmando sua jurisprudência uma afirmação extremamente clara: a obrigação de reenvio no sentido de que não é órgão meramente consultivo, daí estabelecida pelo art. 234 CE impõe-se às jurisdições a necessidade de fundamentação, evitando-se consultas nacionais cujas decisões são, comme en l’espèce, sem recurso. genéricas ou hipotéticas. Assim sendo, parece-nos razoável afirmar que, num texto As questões suscitadas podem ser apreciadas jurídico fundamental como o acórdão Costa c. ENEL, integralmente, reformuladas pelo Tribunal Comunitário em que as questões discutidas eram questões de princípio ou decididas parcialmente, caso alguns aspectos sejam extremamente controversas, dificilmente o Tribunal de considerados irrelevantes. No acórdão Costa c. ENEL, Justiça se permitiria produzir uma afirmação incidental, decidiu o TJCE que, por não responder a qualquer questão tanto mais que o seu conteúdo importa uma afirmação de colocada pelo Tribunal de reenvio, não deverá se entender princípio na interpretação de uma norma do Tratado tão como uma referência incidental, importante como o artigo 234 que não traduziria a sua posição CE”. sobre o assunto. Seguindo essa mesma linha Apreciada pelo Tribunal de de interpretação podemos “Alguns entendem que Justiça, essa decisão vincula o citar, entre outros, Louis J. V. juiz nacional, não se classificando Vandersanden, G. Waelbroeck somente os Tribunais essa obrigatoriedade como Commentaire Megret, Superiores poderiam utilizar M., interferência no processo e na “Le Droit de la CEE”, vol. X, livre apreciação dos fatos e do “La Cour de Justice, Les actes o reenvio prejudicial, (...). direito pelo juiz, já que dele partiu des institutions”, 2a edição, Entretanto, a questão não é a iniciativa para que a matéria Collection Études Européennes, fosse levada ao conhecimento pacífica, pois, especialmente Université de Bruxelles, 1993, p. do Tribunal Comunitário, 232; Barav, Ami, “La Fonction no sistema da Common Communautaire du Juge visando que soluções díspares national”, thèse, Universidade pudessem ser tomadas em casos Law, a assertiva é bem mais de Estrasbourg, 1983 e Kovar, semelhantes por outros Estados. questionável do que no Robert, “Recours préjudiciel en Não existe, portanto, hierarquia interprétation et en appréciation entre o TJCE e o Tribunal sistema jurídico de validité”, JCL Europe, Fasc. Nacional. romano-germânico.” 360. A competência para Segundo Caramelo Gomes10, apreciação do reenvio prejudicial, apesar de não se estabelecer consoante o art. 234 do Tratado, “qualquer diferença no poder/ é exclusivamente do Tribunal dever de reenviar quando estejamos perante um reenvio de Justiça da Comunidade Européia (segunda instância), prejudicial interpretativo ou um reenvio prejudicial interpretando o Tratado e Atos derivados ou apreciando a em apreciação de validade”, a interpretação do TJCE validade dos atos das instituições comunitárias stricto sensu e estabelece significativas diferenças. “Se, no caso do reenvio organismos criados no âmbito da Comunidade. prejudicial interpretativo a jurisprudência do TJCE aponta Esse artigo tem suscitado dúvidas na doutrina, pois no sentido, mais hipotético do que efectivo, de alargamento se refere a decisões que não sejam suscetíveis de recurso dos poderes do juiz nacional, é certo que, no reenvio em judicial no direito interno. apreciação de validade a postura é precisamente oposta”. Alguns entendem que somente os Tribunais Superiores Menciona o acórdão Fotofrost11 “que considerou que o poderiam utilizar o reenvio prejudicial, como João Mota 8 poder das jurisdições nacionais, no que respeita à apreciação de Campos. Entretanto, a questão não é pacífica, pois, especialmente no sistema da Common Law, a assertiva é de validade do ato comunitário se limita à constatação da bem mais questionável do que no sistema jurídico romanovalidade”. Se considerar que o ato é inválido deverá colocar germânico. a questão prejudicial para ser apreciada pelo TJCE, que Outra parte da doutrina, entretanto, sustenta que o reservou para si essa competência. reenvio prejudicial pode ser suscitado em qualquer grau de Outra questão que surge é na hipótese da jurisdição jurisdição que, no caso concreto, se pronuncie em última nacional se recusar a aplicar o Direito Comunitário. Pode o instância. juiz nacional entender que o Direito Comunitário invocado 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


“O reenvio prejudicial é considerado como o mecanismo primordial para que o Direito Comunitário seja aplicado uniformemente, com o seu conseqüente fortalecimento, respeitadas a autonomia e independência dos juízes nacionais.” não é relevante para a solução do litígio e, conseqüentemente, não é a hipótese do reenvio prejudicial. Caso essa decisão não esteja correta, segundo vários doutrinadores, tal fato configura violação do Direito Comunitário, por parte de um órgão do Estado e se insere na hipótese da Ação por Incumprimento. Trata-se de ação cuja legitimidade ativa é da Comissão12 ou de um Estado Membro. Na prática, porém, a questão passa primeiro pela Comissão, que poderá tomar alguma iniciativa, se considerar relevante a matéria. Em caso contrário, dificilmente ela irá prosperar. Paulo J. Canelas de Castro, analisando esse instituto, afirma que: “Do juiz do Luxemburgo se espera que se não deixe seduzir pela tentação de uma superioridade que seria ilusória, porque não reconhecida e até potenciadora de reacções de isolamento e de rebeldia que poderiam pôr em causa o seu próprio fundamento de legitimidade. A este propósito poder-se-ia, aliás, relembrar a lição histórica de Weber, segundo a qual a legitimação se funda, em ‘doses’ variáveis, em três factores: a razão, a tradição e o carisma. Dir-se-á que mal vai a instituição jurisdicional comunitária se aqueles que a compõem julgam que é o terceiro factor que tem o maior peso. Mas, do seu lado, os juízes nacionais também têm que fazer um esforço próprio. A colaboração supõe igualdade,

ela é mesmo exigível da perspectiva dos juízes nacionais, mas a igualdade também é um bem passível de ser conquistado. Os juízes nacionais deveriam para tanto fazer um esforço próprio de compreensão (das dificuldades e razões) do seu interlocutor, aprofundando, em geral, o seu conhecimento de um direito comunitário que os particulares que perante si aparecem já de há muito sabem constituir uma dimensão fundamental do ordenamento jurídico em que se movem e, nomeadamente, atentando nos critérios ou requisitos do reenvio formulados na jurisprudência do TJCE e integrando-os efectivamente na sua prática processual dos reenvios prejudiciais. Parece possível esperar que, se ambos souberem assumir estas responsabilidades, também o valioso patrimônio histórico já constituído pelo mecanismo do reenvio prejudicial, ainda mais se venha a enriquecer, o que, com certeza, não deixará de redundar no benefício dessa outra história de sucesso que o direito comunitário tem sido e, sobretudo, do Homem europeu, a sua primeira e última razão de ser”.13 O reenvio prejudicial é considerado como o mecanismo primordial para que o Direito Comunitário seja aplicado uniformemente, com o seu conseqüente fortalecimento, respeitadas a autonomia e independência dos juízes nacionais.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS BALASSA, Bela. Theory of economic integration. London: George Allen & Unwin, 1961. PAES, João da Motta. Mercosul: das negociações à implantação. In: PALMA, Maria João, ALMEIDA, Luís Duarte d’. Direito Comunitário. 2. ed. Lisboa: Fac. de Direito, 2000. p. 445. 3 CUNHA, Paulo de Pitta e. A união monetária e suas implicações. In: ____________. A União Européia. Coimbra: Fac. de Direito, 1994. p. 48. 4 PALMA, Maria João, ALMEIDA, Luís Duarte d’. Direito Comunitário. Lisboa: Fac. de Direito, 2000. p. 72. 5 Processo 61/65, Vaassen Gobbels, Col. 1966, p. 378 e como paradigma também o processo 138/80 Borker, Col. 1980, p. 1975. 6 Acórdão de 24 de maio de 1977, p. 107/76, Rec 1977, p. 957 7 Acórdão de 06 de outubro de 1982, p. 283/81, Rec 1982, p. 3415 8 MOTA DE CAMPOS, João, Direito Comunitário, Volume II, O ordenamento Jurídico, 4ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1994, p. 456 e sgs. 9 CARAMELO GOMES, José Luis, O Juiz Nacional e o Direito Comunitário. Editora Almedina, Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - 2003, p. 156. 10 CARAMELO GOMES, José Luis, op. cit., p. 161 11 Fotofrost, acórdão de 22 de Outubro de 1987, 314/85, Rec 1987, p. 4199. 12 A Comissão exerce funções distintas. A primeira delas é a iniciativa legislativa, de ofício ou a pedido do Parlamento Europeu (art. 192 do Tratado) ou do Conselho (art. 208 do Tratado). A segunda é ser a “guardiã dos Tratados”, pois, violado o Direito Comunitário por um Estado membro, tem legitimidade ativa para propor ação por incumprimento (art. 226 do Tratado) se a violação partiu de outro órgão, pode propor recurso de anulação (art. 230) ou recurso por omissão (art. 232) ou, se a violação tiver partido de um particular, pode, em certos casos, até aplicar sanções. A terceira é gerir e executar as políticas da União e as relações comerciais internacionais, pois o Conselho delega à Comissão a execução das normas que adota, além de ter poderes para executar o orçamento comunitário e gerir as cláusulas de salvaguarda. 13 CASTRO, Paulo Jorge Canelas de. O Reenvio prejudicial: um mecanismo de integração através da cooperação de juízes. Revista Temas de Integração, Coimbra, p. 153. 1 2

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Falta uma voz na CPMI dos Correios Denise Frossard Deputada Federal - RJ

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as manhãs das terças, quartas e quintas-feiras, quando os relógios vão um pouco além das nove horas, o senador Delcídio Amaral, com voz firme e calma, anuncia o início dos trabalhos da CPMI dos Correios, “com as bênçãos de Deus e havendo número regimental”. Religiosamente, em seguida, abre-se um tumulto de vozes a reclamar “pela ordem”, artifício regimental que permite aos parlamentares firmar posições iniciais, esquentar o clima, inserir pronunciamentos e dar a linha dos procedimentos de investigação. Vencida essa fase, que por lá chamamos de “expediente”, seguimos em direção aos depoimentos e no curso deles indagamos aos depoentes, para, num trabalho artesanal, construir a nossa convicção para, ao final, votar o relatório e sugerir as providências devidas. Ao presidente da CPMI, esta afeta a tarefa adicional de separar as providências de investigação do brilho político que alguns, por vezes, procuram por lá. Mas, afinal, o que estamos buscando com os trabalhos da CPMI? Investigar o comportamento de um funcionário qualquer dos Correios que, de modo público, recebeu dinheiro vivo para facilitar os negócios de agentes privados? Saber quem gravou a cena de corrupção explícita e por que gravou? Evidente que não! Seria fazer pouco das atribuições da CPMI e ocupar os parlamentares com um trabalho que não lhes cabe, porque é própria da força policial e do Ministério Público. A CPMI dos Correios está constituída e em pleno funcionamento para descobrir a extensão política do comportamento do tal funcionário dos Correios, e o que ouvimos e assistimos até aqui já é suficiente para construir um conceito. Já está claro e comprovado que um grupo de pessoas aproveitou-se da influência política que tem sobre os que estão no governo ou próximo dele para capturar as estruturas do Estado brasileiro e imobilizá-lo, para, imobilizando-o, torná-lo presa fácil de um esquema de corrupção. Bem ao exemplo do que fazem os operadores do crime organizado. O episódio do funcionário dos Correios tão somente abriu a oportunidade para que se anunciasse e comprovasse a existência de um plano específico e engenhoso, que tem como objetivo transformar dinheiro público em dinheiro privado

para financiar partidos e políticos, que não por coincidência, estão próximos ao governo ou no interior dele. Resta à CPMI o trabalho de juntar as provas que já possui, buscar outras que sabemos existir por aí, afastar da vida pública os envolvidos e encaminhar o assunto inteiro ao Ministério Público para punir criminalmente os culpados. Será ruim, no entanto, se terminarmos os nossos trabalhos com uma dúvida que, com certeza, está a incomodar a mente de toda a gente brasileira: E o presidente da República? Afinal, ele conhecia os fatos? Autorizou as ocorrências? Exonerou o seu ministro-chefe da Casa Civil porque comprovou que ele estava envolvido? Exonerou os diretores do IRB e de Furnas porque concluiu serem verídicas as denúncias do deputado Roberto Jefferson? Há outras denúncias do deputado que ele julga verídicas? São perguntas que todas as pessoas me fazem por onde passo e intriga-me o silêncio do senhor presidente da República. O calar de um presidente, quando a nação inteira murmura, não é bom sinal. Sinal pior, porque o presidente Lula não é um presidente qualquer. Ele não é o resultado de uma eleição, mas de uma história, como ele mesmo admitiu no discurso de posse. Por que se cala o presidente sobre um assunto que está na boca do povo que o elegeu? Por pouco caso? Por não ter o que dizer? Cala porque prefere que a população não conheça o seu sentimento, que pode ser de decepção com os seus, de angústia, ou mesmo de culpa? Seja por que for, o silêncio do presidente alimenta uma dúvida que, visivelmente, a nação brasileira, preferia não ter. Mas, enquanto cala o presidente da República, nós, na CPMI dos Correios, seguimos a cumprir com a nossa tarefa, sabedores, entretanto, de que de pouco adiantará o nosso trabalho se os nossos motivos pararem na apuração dos fatos e na punição dos culpados. Para evitar a repetição desse quadro que, volta e meia, toma o nosso tempo e um pouco da nossa esperança, precisaremos ir além; construir meios e modos capazes de evitar que, depois da casa arrombada, não fiquemos a procurar os arrombadores e a tentar receber de volta o que nos foi tomado. 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


FONTE DE CUSTEIO DAS GRATUIDADES E O EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO

Maximino Gonçalves Fontes Neto Advogado e Membro do Conselho Editorial

“Como a tarifa técnica, resultante do cálculo tarifário, é historicamente inferior à praticada nos serviços públicos de transporte coletivo de passageiros, a conclusão lógica foi a de que ficou sobre os ombros das transportadoras o peso dessas gratuidades e não do usuário pagante.”

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á certas questões que, por mais sejam discutidas, parece que fica no espírito de algumas pessoas uma certa desconfiança de que ainda faltaria alguma coisa para se persuadi-las e convencê-las, embora no discurso, com a defesa e a justificação de uma determinada posição, haja fortes razões que militam a favor de uma solução. Uma delas diz respeito ao tema: fonte de custeio das gratuidades, intimamente relacionada ao equilíbrio econômico-financeiro das delegatárias, sendo a tarifa a sua expressão material. Nessa faceta, é o exame que, a seguir, se promoverá. Assim, preconizada no art. 112, § 2º, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, sem fonte de custeio idônea, não há como se assegurar o exercício do direito de não pagar

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passagens nos serviços de transporte coletivo de passageiros a determinadas classes, consoante assim reconheceu o Tribunal de Justiça deste Estado, no julgamento de duas representações por inconstitucionalidade de leis do Estado do Rio de Janeiro, fontes de tais benefícios sociais (R.I. nº 37/02 e R.I. nº 60/02). Recorde-se que, no primeiro julgamento, em 2003, o resultado foi de dezessete votos a um; enquanto no segundo, em 2004, foi declarada a inconstitucionalidade por quatorze dos membros do Órgão Especial, contra nove Desembargadores, que entendiam desnecessária a fonte de custeio para a gratuidade, por entenderem que esse benefício social já estaria instituído no texto da Lei Fundamental estadual. Esse resultado poderia soar como um sinal de que


poderia, no futuro, haver mudança de entendimento acerca dessa matéria. Essa impressão, entretanto, se esvai, quando se procura identificar, racionalmente, se esses atos legislativos têm natureza semelhante. Embora ambas assegurem gratuidades, em uma dessas leis havia indicação de fonte de custeio, porém in fraudem legis, ou seja, o suporte desse custo seria o valor correspondente a 10% do lucro do Vale-Transporte. Tratava-se de uma fonte simbólica, para fazer supor que estava presente o que, na realidade, estava ausente, consoante foi demonstrado. Na outra lei, simplesmente inexistia alusão expressa ao custeio dos benefícios sociais nela instituído, ficando implícito que eles haveriam de ser suportados, ou pela delegatária dos serviços, ou pelo usuário pagante.

Como a tarifa técnica, resultante do cálculo tarifário, é historicamente inferior à praticada nos serviços públicos de transporte coletivo de passageiros, a conclusão lógica foi a de que ficou sobre os ombros das transportadoras o peso dessas gratuidades e não do usuário pagante. Portanto, tanto numa, quanto na outra foi demonstrada a necessidade de efetiva fonte de custeio das gratuidades, sendo essa tese acolhida pela maioria dos membros do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, com a discordância da minoria motivada por novos argumentos que, no entanto, não convenceram, nem tampouco impressionaram. Com efeito, não se discute o direito à gratuidade, nem se poderia discutir, pois livre é o legislador para criar o direito. O que se questiona é a ausência de meios para alcançar-se


A questão da gratuidade

“Portanto, são as delegatárias da execução indireta dos serviços de transporte coletivo de passageiros que suportam as gratuidades legítimas e ilegítimas, graças à fraude que hoje campeia, mercê de leis imperfeitas e incapazes de coibi-la.”

um fim: a gratuidade; pois não há mágica capaz de garantir a operação dos serviços, com o comprometimento, no caso do Estado do Rio de Janeiro, de cerca de 40% da receita tarifária com gratuidades, conforme ocorre nas suas linhas intermunicipais. Verifica-se, assim, que iguais não são as omissões nos dois diplomas legais, quanto à ausência de fonte de custeio, conquanto as duas leis padecessem desse mesmo vício. Ora, essa fonte de custeio, já se asseverou, está imbricada no equilíbrio econômico-financeiro do contrato e este tem na tarifa dos serviços públicos o ponto de equilíbrio para a execução plena do contrato administrativo de delegação. Como ocorrera com a Constituição de 1967 (art. 160) e com a Emenda nº 1, de 1969 (art. 167), o princípio do equilíbrio econômico-financeiro foi explicitado na Constituição de 1988, em seu art. 37, inciso XXI, com a expressão: “... mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei”. A manutenção das condições relaciona-se com a preservação das chamadas cláusulas econômicas do contrato, com a conseqüente adequação da tarifa. Segundo Francisco Campos, as questões relativas à tarifa são questões eminentemente técnicas em todos os seus aspectos, envolvendo elementos de especialização de vários domínios, do econômico, do tecnológico geral e, especialmente, da tecnologia própria de cada ramo de serviço. Portanto, com essa acepção, ela será o resultado perfeito da repartição aritmética da totalidade do custo fixo e variável dos serviços entre os usuários, inclusive com a previsão de custo para as gratuidades. No entanto, assim não tem ocorrido, porquanto, além de inexistir na planilha tarifária utilizada pelo Poder Concedente estadual previsão de custeio dessas gratuidades, o valor da tarifa técnica não equivale à tarifa praticada, cujo valor

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pecuniário tem sido sempre inferior àquela, tratando-se, pois, de tarifa social. Tradicionalmente, esse fato tem ocorrido, pois se costuma vincular a tarifa às circunstâncias subjetivas patrimoniais do usuário, em detrimento a dados objetivos, a conduzir ao inevitável sucateamento dos veículos e a conseqüente queda na qualidade dos serviços prestados, conforme aconteceu com os trens e barcas, em passado recente. A própria defasagem do valor da tarifa (política ou social), apesar da notória variação do valor monetário dos insumos componentes do custo tarifário, evidencia, inequivocamente, que ao usuário pagante não é repassada a totalidade dos custos (fixos e variáveis), quanto mais o subsídio para os usuários não-pagantes, beneficiários das gratuidades. Aqui, outra nota identificadora da inexistência de repasse do custo das gratuidades. Portanto, são as delegatárias da execução indireta dos serviços de transporte coletivo de passageiros que suportam as gratuidades legítimas e ilegítimas, graças à fraude que hoje campeia, mercê de leis imperfeitas e incapazes de coibi-la. O equilíbrio econômico-financeiro corresponde a um direito subjetivo de cada empresa delegatária da execução dos serviços, a que corresponde o correlato dever jurídico do Poder Concedente de preservá-lo a todo o tempo. Soam, nesse sentido, na hipótese do Estado do Rio de Janeiro, as regras do art. 10, caput e de seu § 1º, da Lei estadual nº 2.831/ 97, que disciplina o regime das concessões e das permissões no plano estadual c/c a cláusula sexta, inciso IV, do contrato de permissão firmado entre o Poder Concedente estadual e cada uma de suas delegatárias, em 1998. A conclusão é a de que a fonte de custeio, no caso, tem pelo menos dupla função, possibilitar o exercício de um direito e evitar que as gratuidades não coloquem em risco a equação inicial da permissão, ambas, como visto, garantidas pela Constituição Federal.


Nota Ressalte-se, que foi promulgada a Lei Estadual nº 4510/05, de 13 janeiro de 2005 a instituir gratuidades para alunos do ensino fundamental e médio da rede pública estadual, podendo ser estendida à rede municipal e federal; para pessoas portadoras de deficiência física, com reconhecida dificuldade de locomoção e para os portadores de doença crônica física ou mental, cuja interrupção no tratamento possa acarretar risco de vida, a teor do art. 14, da Constituição do Estado. Através do diploma legal foi instituído o vale educação e vale social, ambos com efeito liberatório, relativamente a tributos estaduais incidentes sobre a atividade de transporte público coletivo de passageiros e sobre o patrimônio dos prestadores de tais serviços, admitida a sua compensação e cessão, somente entre contribuintes do setor de transportes (Art.6)

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SOBRE A ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL 342 DO TST Danilo Andrade Maia Advogado

"(...) em REGIME DE TRABALHO DE JORNADA FIXA, essa agressão às normas legais de higiene, saúde e segurança do trabalho pode não existir, como é o caso específico do transporte coletivo urbano e metropolitano, cuja operação está à beira de um colapso por conta do desconhecimento dessa realidade."

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az pouco tempo, o TST editou a Orientação Jurisprudencial (OJ) n° 342, segundo a qual “É inválida cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a supressão ou redução do intervalo intrajornada porque este constitui medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantido por norma de ordem pública (art. 71 da CLT e art. 7º, XXII, da CF/1988), infenso à negociação coletiva”. O detido exame dos acórdãos precedentes que serviram para consolidar a posição do TST revela que todos eles têm uma circunstância comum que não se refletiu na OJ n° 342, qual seja o REGIME DE TRABALHO EM TURNOS DE REVEZAMENTO em cada um dos casos julgados e agrupados para a formação da orientação jurisprudencial em exame. É claro que se tratando de REGIME DE TRABALHO EM TURNOS DE REVEZAMENTO a supressão ou a redução do intervalo intrajornada agride norma de higiene, saúde e segurança do trabalho, em virtude das especiais e prejudiciais condições em que as jornadas são praticadas, conforme ampla literatura de medicina do trabalho. Entretanto, em REGIME DE TRABALHO DE JORNADA FIXA, essa agressão às normas legais de higiene, saúde e segurança do trabalho pode não existir, como é o caso específico do transporte coletivo urbano e metropolitano, cuja operação está à beira de um colapso por conta do desconhecimento dessa realidade. 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2005

O transporte coletivo urbano é aquele operado dentro dos municípios. O transporte coletivo metropolitano é aquele operado entre dois ou mais municípios de uma mesma região. Apenas como exemplo, o transporte urbano de Brasília é aquele que opera as linhas internas da cidade. O transporte metropolitano de Brasília é aquele que opera as linhas que unem a Capital Federal às chamadas cidades satélites e as linhas entre essas mesmas cidades. O transporte coletivo de longo curso é diferente: serve municípios distantes entre si, envolvem ônibus diferentes, trabalho de dois motoristas, maleteiro, apoio em rodoviárias etc. Aqui não se trata de transporte de longo curso. Aqui se trata da peculiar operação de transporte coletivo urbano e metropolitano, de operação e regime de trabalho idênticos, desenvolvidos em jornadas fixas, não em regime de revezamento de turnos, e com singularidade no que diz respeito ao intervalo intrajornada dos motoristas e cobradores que operam o sistema, em todo o país. Em virtude dessa OJ n°342 um renomado médico do trabalho, Dr. Luiz Oscar Dornelles Schneider, titular do IMAT - INSTITUTO DE MEDICINA APLICADA AO TRABALHO, com sede em Porto Alegre-RS, elaborou Parecer Técnico que examina a questão da higiene, saúde e segurança do trabalho em casos de trabalhadores rodoviários que operam linhas de transporte coletivo


urbanas e metropolitanas, submetidos a redução do intervalo intrajornada. Esse interessante trabalho revela que: (a) na maioria das empresas de transporte coletivo a jornada de trabalho tem duração média de 07:20 horas; (b) em cada final de linha há uma espera de, no mínimo, 10 minutos, antes da retomada do trajeto no sentido inverso, destinada ao ajuste logístico do transporte; (c) os horários de passagem nas paradas de ônibus são fixos e respeitam uma tabela, que é registrada junto à autoridade pública responsável pela fiscalização do transporte coletivo; (d) ocorre durante à noite, mas a freqüência de viagens é muito menor, em função do reduzido número de passageiros a transportar nestes horários, o que amplia os períodos de espera nos finais de linha. Adiante, o Parecer classifica os diversos tipos de "pausas de recuperação durante a jornada". Interessa ao caso, as pausas inerentes à natureza do trabalho que são assim qualificadas: “As pausas inerentes à natureza do trabalho são bem características nos casos de se esperar que a máquina complete seu serviço, que uma ferramenta de corte se resfrie, que o equipamento se aqueça, pela chegada de um componente, pelo reparo de uma ferramenta ou de uma máquina. Este tipo de pausa é muito freqüente em áreas de serviços, e também em linhas de montagem, onde os

trabalhadores mais jovens muitas vezes conseguem executar a atividade mais rapidamente (devido a maior destreza) e têm algum tempo entre uma peça e a seguinte”. Este tipo de pausa é inerente à atividade sob estudo, existindo sempre que o veículo chega ao fim de linha, onde os trabalhadores permanecem aguardando, em média, por no mínimo 10 minutos”. Ao final do Parecer: "A leitura dos textos acima reproduzidos permite evidenciar claramente que o trabalho realizado pelos motoristas, cobradores e fiscais de transporte urbano, intermunicipal e metropolitano: •É realizado predominantemente durante o dia; •Não é fisicamente pesado; •Tem pausas inerentes à natureza do trabalho (finais de linha) que representam mecanismo fisiológico de compensação e de prevenção da fadiga crônica; Assim sendo, o regime de trabalho destes profissionais do transporte urbano, intermunicipal e metropolitano não guarda qualquer relação de nexo com os regimes de trabalho considerados para fundamentar a Orientação Jurisprudencial 342”. Tudo isso permitiu que o Dr. Luiz Oscar Dornelles Schneider concluísse: "É nosso parecer que, frente às características peculiares ao trabalho dos transportadores urbanos, intermunicipais e metropolitanos de passageiros, a redução do intervalo de 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31


repouso e alimentação intrajornada não representa risco à saúde ou à segurança dos motoristas, cobradores e fiscais que labutam nesta atividade”. O interessante de tudo isso é que por uma questão de regulamentação dos horários dos ônibus pelo Poder Público Concedente, tais horários sempre são fixados levando em consideração a própria logística do transporte, que precisa prever atraso por engarrafamento, horários de pique de demanda, chuva, acidentes etc, o que faz, de fato, que ao longo da jornada sempre ocorram paradas de espera (e, conseqüentemente, de descanso) nos extremos das linhas. Ora, como são linhas urbanas e metropolitanas, os percursos são curtos ou médios, ensejando maior volume de paradas ao longo da jornada. E a prática revela que são nessas paradas, muitas vezes, que o trabalhador rodoviário alimenta-se e descansa. É disseminada a existência de pequenos comércios, lanchonetes, restaurantes etc, nesses pontos, atraídos pela "clientela" dos usuários do transporte coletivo. Então, o que de fato ocorre são "pausas inerentes à natureza do trabalho" que, de acordo com o Parecer supra referido,

“(...)para a operação do sistema de transporte coletivo urbano e metropolitano, é fundamental o aproveitamento dessas “pausas inerentes à natureza do trabalho" com a conseqüente redução do intervalo legal intrajornada através de acordo ou convenção coletiva.”

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evitam agressões à higiene, saúde e segurança do trabalhador, motivo expressamente invocado na OJ n° 342 para negar validade de cláusula normativa de redução de intervalo intrajornada. Afora essas circunstâncias, existem outras, igualmente peculiares, no transporte coletivo urbano e metropolitano, a justificar a revisão da OJ mencionada. É que a atividade é de interesse público essencial e não existe, operacionalmente, como fazer coincidir os horários de repouso e/ou alimentação, com as partidas e chegadas ao início e fim das linhas. Ora, se tal intervalo precisa ser gozado na forma da lei e sem adequação normativa à realidade do sistema, haveria que se implantar uma "parada" de 1 hora, em pleno percurso do ônibus, durante a qual os passageiros aguardariam o seu final, para seguir adiante (!). Também não é razoável supor a existência de dupla equipe em cada ônibus, só para permitir o intervalo, se esse pode ser gozado de modo reduzido, em virtude da existência de "pausas inerentes à natureza do trabalho". Isso acarretaria dobrar a mão-de-obra embarcada, com enorme

repercussão na tarifa pública, sacrificando a população de usuários. Ademais, justamente para evitar os malefícios do trabalho em turnos de revezamento, os horários contínuos das jornadas fixas dos trabalhadores precisam atender as exigências regulatórias dos horários dos transportes coletivos. Em suma: para a operação do sistema de transporte coletivo urbano e metropolitano, é fundamental o aproveitamento dessas "pausas inerentes à natureza do trabalho" com a conseqüente redução do intervalo legal intrajornada através de acordo ou convenção coletiva. Desde a edição da OJ em questão, o segmento do transporte coletivo de passageiros nas regiões urbanas e metropolitanas estão sem saber o que fazer para seguir operando esse complexo sistema, que depende do cumprimento de horários tabelados pelo Poder Público concedente, de natureza essencial à população, e para o qual o empregador não tem opção de manejo para satisfazer a lei (com mero concessionário de serviço público), salvo mediante o instrumento de negociação coletiva, como é praxe absoluta no setor, desde tempos imemoriais, em relação ao intervalo intrajornada.


De todo o exposto, algumas conclusões: (a) a OJ n° 342 foi editada com base no exame de precedentes que - sem nenhuma exceção - apreciaram regimes de trabalho desenvolvidos em turnos de revezamento, com sabidos malefícios à higiene, saúde e segurança do trabalho, motivo invocado como causa da própria Orientação; (b) a atividade dos trabalhadores rodoviários no transporte coletivo urbano e metropolitano não é desenvolvida em turnos de revezamento; (c) a atividade dos trabalhadores rodoviários no transporte coletivo urbano e metropolitano é marcada por "pausas inerentes à natureza do trabalho", fator benéfico e não agressor à higiene, saúde e segurança do trabalho, consoante parecer médico de profissional qualificado e especializado na área; (d) para servir a população usuária, esse serviço de natureza essencial obedece a horários fixados em tabelas e planilhas que levam em consideração o montante de passageiros, as zonas, os percursos, as distâncias etc, sendo operacionalmente impossível fazer coincidir intervalos

intrajornadas de 1 hora com as "paradas" nos extremos das linhas; (e) também não há possibilidade de interromper o transporte de um ônibus com passageiros, em pleno percurso, para o gozo do intervalo do motorista e do cobrador; (e) por igual, não há viabilidade econômica, nem a mais remota, de duplicar a equipe embarcada para fazer a "dobra" durante o intervalo de 1 hora, pois inviabilizaria o custo da tarifa pública para a população (o transportador é concessionário e, como tal, repassa custos agregados à operação); (f) os órgãos públicos gestores e fiscalizadores do transporte coletivo urbano e metropolitano têm declarado publicamente que não há como operar o sistema de outro modo (ou seja, com redução de intervalo para aproveitamento das "paradas"); (g) como a OJ n° 342 é de junho de 2004, as indispensáveis convenções e acordos coletivos do setor, que sempre contemplaram cláusula de redução de intervalo intrajornada, estão paralisadas - muito embora haja interesse negocial de representantes de trabalhadores e de representantes de empresas - em face da invalidade de tal cláusula, mesmo que nesse específico caso não haja dano à

“A supressão desse intervalo é condição inerente ao desenvolvimento da atividade, sem qualquer ofensa às regras de saúde, higiene e segurança do trabalho. Do mesmo modo, inúmeras outras atividades no Brasil inteiro.”

higiene, saúde e segurança do trabalho, uma vez que a OJ não excepcionou nenhuma situação. O segmento do transporte coletivo é apenas um exemplo entre vários outros que estão desnorteados frente à ampla e irrestrita abrangência da OJ n° 342 do TST. Talvez o caso mais ilustrativo seja o dos vigias noturnos, agora submetidos à mesma regra, impossível de ser cumprida. Essa categoria, sabidamente, vai ao trabalho já tendo feito em casa a sua refeição da noite e não pode abandonar seu posto de trabalho para repouso ou alimentação, sob pena de não estar vigiando. A supressão desse intervalo é condição inerente ao desenvolvimento da atividade, sem qualquer ofensa às regras de saúde, higiene e segurança do trabalho. Do mesmo modo, inúmeras outras atividades no Brasil inteiro. Espera-se que a Comissão de Jurisprudência e de Precedentes Normativos do TST, no uso da faculdade que lhe atribui o inciso III do art. 56 do Regimento Interno do Tribunal Superior do Trabalho, revise a Orientação Jurisprudencial n° 342 para limitá-la às atividades exercidas em turnos ininterruptos de revezamento e demais atividades sabidamente desgastantes, como aquela desenvolvida em contato direto com fornos de altas temperaturas, por exemplo. 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


POLÍCIA FEDERAL NO OLHO DO FURACÃO POLÍTICO Paulo Lacerda Diretor-Geral da Polícia Federal

Edison Torres

A

Jornalista

s cartas estão na mesa. O governo enfrenta uma crise sem precedentes e o Planalto está encurralado como publicou o jornal O Estado de São Paulo. Tudo isto depois que o chamado “homem-bomba”, deputado Roberto Jefferson detonou suas baterias contra o Partido dos Trabalhadores acusando-o de comandar um processo de corrupção em diversos setores da administração Federal. A cúpula do Partido está desmontada. Caíram o seu presidente José Genoíno, o tesoureiro Delúbio Soares, o Secretário-Geral Silvio Pereira e o Secretário de Comunicação Marcelo Sereno. Antes, já havia deixado o cargo de Ministro da Casa Civil, José Dirceu, um dos principais alvos da metralhadora do ex-presidente do PTB. O jornalista Arnaldo Jabour em recente comentário na rádio CBN, disse que “as verdades de José Dirceu são mentiras e as mentiras de Roberto Jefferson são verdades”. Cabe, então, se apurar a veracidade dos fatos que estão deixando a nação estarrecida, e com razão, porque um Partido que sempre

pregou a ética e a moralidade, depois que assumiu o poder, mergulhou num verdadeiro mar de corrupção. Paralelamente aos fatos que estão sendo apurados pela CPMI do Congresso, a Polícia Federal começa a mergulhar fundo no olho do furacão político e, segundo o seu Diretor Geral, Paulo Lacerda, em recente entrevista publicada nos jornais do Rio e São Paulo, “ninguém será poupado mesmo que os suspeitos sejam da cúpula do PT”. Paulo Lacerda que foi o primeiro delegado a investigar e indiciar um Presidente da República – Fernando Collor de Mello – a única limitação da Polícia Federal é a legalidade e lamenta que o Brasil não tenha aprendido a combater a corrupção com o caso PC Farias. E acrescenta: “tudo será apurado”. O Diretor-Geral da Polícia Federal defende o financiamento público para as campanhas eleitorais como instrumento eficaz na redução da roubalheira, porque, segundo ele, “quem faz uma doação privada, vai cobrar na licitação”.


Que mecanismo pode fazer a prevenção à corrupção no Governo? – Os fatos de agora estão relacionados a duas questões: o crime organizado, que a Polícia Federal vem combatendo de uma maneira bem intensa, e a corrupção política. Acho que só uma reforma política muito forte, que inclua o financiamento público de campanha, resolverá a questão. Sou inteiramente a favor da reforma, mas com uma legislação dura, que diga que o particular que der dinheiro para a campanha e o beneficiário devem ser condenados por crime eleitoral grave e presos. O que se sabe hoje é que alguns envolvidos perdem o mandato, mas não conheço ninguém que tenha sido condenado e preso por crime eleitoral. Minha posição é diferente do que anda dizendo o deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ). Ele fala que, se não tem dinheiro para o velhinho da Previdência ou para questões básicas da população, não pode botar dinheiro público em campanhas. Posso até imaginar as razões dele. Tenho certeza absoluta, depois de tanto tempo trabalhando em investigação, que esse é o grande mal e que o País economizaria muito. Quem doa para campanha cobra depois numa licitação ou de alguma outra maneira. É cultural. No caso PC havia um grande ensinamento sobre isso, mas não aprendemos. O Deputado Roberto Jefferson disse que PC Farias é um pinto perto do mensalão. Tem fundamento? - Sobre o caso PC posso falar porque trabalhei nele e fiquei horrorizado com o que vi. Aquilo (a corrupção) estava em praticamente todos os ministérios. Virou um monopólio da corrupção. Esse caso de agora está em fase de apuração. Não podemos nos antecipar. Estamos vendo algumas coisas tristes, mas ainda temos de investigar. O que mais impressiona nas denúncias? - De tudo o que o deputado Roberto Jefferson fala, a grande novidade é que ele também se auto-incrimina. Nesses casos normalmente a pessoa envolvida oculta a sua participação. Ele está se auto-incriminando. Precisamos investigar e ver o tamanho do problema. Qual a diferença entre a corrupção nos Correios e a do mensalão para o caso PC? - Até agora o que vi é a questão da campanha. No caso PC, tinha uma coisa diferente. Eles usavam duas maneiras de agir. Uma era buscar os empresários com o famoso pedido para caixa de campanha. O outro era simplesmente extorquir os empresários de forma continuada. O que a gente está vendo agora são pedidos para campanha e algumas alegações de possível envolvimento de órgãos públicos. A Polícia Federal vai pedir a quebra do sigilo bancário do PT? - Uma coisa que fazemos questão é não partidarizar. Quem apura questão de partido é a Justiça Eleitoral. Se ela entender que existe alguma questão que afeta o partido, vai requisitar que a Polícia Federal apure. Nós apuramos fatos criminosos,

“Podem ter certeza: tudo será investigado. Não há como esses fatos serem jogados para debaixo do tapete.” independentemente de qual é o partido. Isso não é relevante para nós. O presidente do PT, José Genoino, e o deputado Professor Luizinho criticaram a PF pela ação na Caixa Econômica Federal. A polícia tem medo do PT? - Não temos receio de partido nenhum. A polícia respeita, mas não temos relação com partido, nem temor reverencial ou de vínculos partidários. Nós nos preocupamos é com uma apuração isenta, que não se deixe levar por interesses partidários. A Polícia Federal não servirá de instrumento? - A polícia nunca foi instrumento. É muito importante dizer algo de absoluta justiça: desde que assumi, nunca sofri pressão nenhuma. O Ministro da Justiça dá total apoio. Não tenho contato com o presidente da República, mas as manifestações que vejo sempre é de determinar que se apure o que deve ser apurado. Se deixarmos de fazer alguma coisa, foi por incompetência ou por falha humana, não porque alguém nos impediu. Como lidar com os casos envolvendo pessoas importantes? - Tudo que disser respeito a um fato ilícito, criminal, será apurado. Podem ter certeza: tudo será investigado. Não há como esses fatos serem jogados para debaixo do tapete. O publicitário Marcos Valério é o foco das investigações? - Não apuramos pessoa específica, mas o fato criminoso. O Marcos Valério não pode ter cometido crime sozinho. Se ele cometeu, quem esteve com ele, será objeto da apuração e das medidas cabíveis, seja quem for. Não nos interessa se pertence a esse ou àquele partido. A única limitação é a legalidade. Não vamos agir de maneira açodada, que possa criar implicações legais sobre o trabalho. O agravamento da crise política o preocupa? - Não olho o quadro político como algo que possa nos atingir. Procuro ver se estamos no caminho certo. Mas é lógico que, como todo brasileiro, torço para que fique tudo esclarecido e que as instituições funcionem e cumpram suas obrigações. Trechos da entrevista realizada pelo jornalista Fausto Macedo, publicada no Jornal do Commercio, em 10/07/2005.

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No caso Bombril, ganham força os valores do direito e da justiça Francisco Viana Jornalista, escritor e membro do Conselho Editorial

N

a Roma antiga, Catão definia o orador como o homem honesto cuja qualidade primordial seria a arte de falar bem. Desde aquela época entendia-se que a oratória estava a serviço do progresso da sociedade e que, sendo sinônima de persuasão e convencimento, portanto uma virtude superior, certamente só deveria ser exercida por pessoas de elevado sentimento ético. Esse é o tronco ancestral da profissão de advogado. A pergunta que Catão formulava era: como pode um homem desonesto servir à justiça? Mas havia outra peculiaridade típica daqueles tempos. Tratava-se dos honorários dos advogados. De acordo com a lei das XII Tábuas, os salários eram proibidos, mas os honorários não. Assim, a remuneração implicava numa espécie de prêmio ou oferenda concedida livremente pelo cliente. Desde então os serviços do advogado passaram a ter um valor e este geralmente era fixado ou em negociação direta com o cliente ou pelo magistrado de acordo com a importância da causa, o talento profissional de cada advogado e o caráter dos ritos processuais.  Faço essas observações para lançar luzes em torno de uma polêmica surgida na esteira do caso Bombril. Muito noticiado e pouco conhecido na sua profundidade, o conflito societário que envolve a empresa, considerada uma das marcas mais famosas do século XX, acabou trazendo a tona um impasse entre o empresário Ronaldo Sampaio, ex-sócio controlador da 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2005

empresa, e seu advogado, Augusto de Souza Coelho. De acordo com o que circulou na imprensa, Augusto Coelho entrou com processo judicial para elevar seus honorários de 40 milhões de dólares para 50 milhões de dólares, isto é, a bagatela de 10 milhões de dólares à mais. Na prática, aconteceu o contrário. Por contrato, foi fixado honorários de 20% do valor da causa no processo movido por Sampaio contra o grupo Cirio, da Itália, à época controlador da Bombril. O ano de início foi 2002. No final de 2004,  Augusto Coelho ganhou o processo,  um dos maiores  litígios societários da história da justiça brasileira e italiana, mas o juiz reduziu seus honorários para 12% do valor da indenização arbitrada. O advogado concordou, mas os honorários não foram pagos. Eis o que aconteceu. Coelho, impossibilitado de falar à imprensa por força do segredo de justiça, nunca procurou elevar seus honorários. Buscou receber o que lhe é devido, em sintonia com o artigo 20, parágrafo 3, do Código de Processo Civil. Ele apenas contestou o pré-acordo assinado em abril de 2005 pelo ex-controlador da Bombril com a justiça italiana, graças ao seu próprio trabalho, para que pudesse assegurar seus direitos. Nada mais lógico, nada mais justo. Por isso, é que o leilão para venda da Bombril, determinado de forma irreversível pela Justiça, vai ser realizado. O objetivo é honrar pendências financeiras da Cirio e da Cragnotti, entre elas os honorários do advogado.


Contudo, muitas vezes tem se perdido o sentido verdadeiro do centro da questão porque o noticiário tende a misturar o sensacional – e realmente o conflito societário da Bombril é um apelo a tal prática, dado aos lances cinematográficos que protagoniza, a exemplo de paixões clandestinas de personagens, regadas a uísque de excelente qualidade e pasta de apurado sabor, no eixo São Paulo-Roma, contratos heterodoxos para os padrões do mundo dos negócios e, ainda, as sombras das máfias de Roma, Parma e Nápoles – e a imprecisão nas apurações, certamente porque os jornais, de um modo geral, operam com equipes muito pequenas. Mas não é esse o tema aqui em discussão. O direito é base das modernas sociedades, como assinala Max Weber. Sobre seus alicerces foram erguidas as sociedades liberais da Europa e a sociedade americana. O Brasil não é exceção. Indiscutivelmente, o Direito é a espinha dorsal do processo modernizador e, mais do que nunca, é a chave para a grande transição que o País vem vivenciando para construir a democracia. O drama é que sociedades em transição são sociedades marcadas pelo conflito. Mais ainda, o conflito é típico das sociedades democráticas justamente porque, nelas, os direitos do cidadão, da empresa, do poder público, enfim, de todos os agentes sociais são de fato uma realidade, não uma ficção ou letra morta a serviço da elite no poder. O caso da Bombril, nesse contexto, sugere múltiplas reflexões. Em parte, porque a empresa, fundada em 1948, vive desde o inicio da década de 90 uma grave crise societária, que envolve situações dramáticas como a prisão de um dos seus ex-controladores, o empresário Sérgio Cragnotti, acusado pela Justiça italiana de maquiar e fraudar balanços da Círio, aquela que foi a segunda maior empresa de alimentos da Europa. E que comprou a brasileira Bombril, para depois revendê-la, em intrincadas operações que se sucederam nas décadas de 90, e no início desta década. A história também é pouco conhecida. Muitos jornalistas, por exemplo, desconhecem que a empresa se encontra sob o comando de uma bem sucedida administração judicial, que entre outras conquistas pode assinalar a seu favor um resultado 35% maior no faturamento no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo período de 2004, a retomada da produção aos níveis de 22 toneladas mês, um market share de 70, do mercado de lã de aço. No conjunto, se aproxima de uma participação de 80%, cerca de 10 % a mais do que detinha antes da crise. A despeito das dificuldades, a empresa também reestruturou todo o seu passivo. As dívidas com fornecedores, por exemplo, que somam R$ 35 milhões, já estão sendo pagas e estarão totalmente quitadas em 2007. O mesmo ocorre com as dívidas tributárias, estimadas em R$ 230 milhões. Em paralelo, há dividas relativas a multas, em torno de R$ 1,7 bilhão, alvo de discussão na justiça que tendem a ser reduzida a 5% do valor atual, de acordo com cálculos dos advogados. Até dezembro, serão recontratados 300 funcionários e contratados outros 100. Total: 400 pessoas. Destas, 150 já estão trabalhando. A meta é criar 600 vagas, exatamente as que deixaram de existir, logo

“Indiscutivelmente, o Direito é a espinha dorsal do processo modernizador e, mais do que nunca, é a chave para a grande transição que o País vem vivenciando para construir a democracia.” no inicio da administração judicial, em decorrência do plano de demissão voluntária. À época, foram criadas condições, graças ao diálogo construtivo com os sindicatos, para assegurar uma série de direitos aos trabalhadores. Por exemplo, a demissão voluntária foi aberta a todos, sem qualquer tipo de discriminação; assegurou-se a manutenção dos planos de saúde por 12 meses e a cesta básica por seis meses. E, o que foi mais positivo, criou-se espaço para a reciclagem profissional por meio de cursos e palestras. E, finalmente, hoje as ações da companhia estão cotadas a R$ 8,00, enquanto em 2003, o valor médio era de R$ 3,50. Vale ainda ressaltar o cenário anterior, leia-se antes da intervenção dois anos atrás, que exibia contra a empresa 500 títulos protestados, 12 pedidos de falência, fábricas paradas há 20 dias por falta de estoque de matérias-primas e folha de pagamento atrasada a mais de dois meses. As conquistas são inúmeras, mas muito pouco conhecidas. Precisam ser divulgadas porque o objetivo maior da comunicação é restaurar a verdade dos fatos e contribuir para que a sociedade evolua inspirada na negociação e não pelo arbítrio, como acontecia na antiguidade remota, anterior ao instituto do Direito, ou como acontece nos regimes autoritários (um eufemismo que substitui a palavra ditadura). No alvorecer do século XX, o jurista Rui Barbosa escreveu: “A Lei e a liberdade são as tábuas da lei da vocação do advogado. Nelas se encerra, para ele, a síntese de todos os mandamentos. Não desertar a justiça, nem cortejá-la. Não lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho. Não transfigurar da legalidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia...” O mesmo Rui Barbosa ensinava que contra os fatos não há argumentos. E que a imprensa tem seus males e suas virtudes, portando que se deixe às virtudes expulsar os males. É exatamente o que cedo ou tarde irá acontecer. Tanto é assim que os jornalistas começam a buscar entender melhor as razões do advogado Augusto de Souza Coelho no seu legítimo embate em defesa do que lhe é devido. E, também, o ambiente de êxito e entusiasmo que a administração judicial da Bombril, agora completando o seu segundo ano de mandato, conseguiu restaurar na empresa. Esta um autêntico patrimônio brasileiro, um símbolo inequívoco da nossa capacidade realizadora. 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


Financiamento público nas eleições Ivan Nunes Ferreira Advogado e juiz do TRE-RJ

“O país merece uma chance de possuir um modelo eleitoral que privilegie a ideologia partidária e diminua a corrupção eleitoral.”

O

financiamento público das campanhas políticas sempre existiu no Brasil e de forma bastante acentuada, mas só favorece os partidos que compõem a base aliada do governo, como revelado há poucos dias, sem rodeios, pelo deputado Roberto Jefferson, ao protagonizar o programa mais obsceno da televisão brasileira dos últimos anos. Os recentes episódios envolvendo o desvio de recursos públicos por meio de ‘’mesadas’’ a determinados partidos; ‘’fabriquinhas’’, que transferem verbas de empresas públicas para agremiações partidárias, ou, ainda, obras públicas superfaturadas, licitações fraudadas e assistencialismo pago com o dinheiro público confirmam que o financiamento público de campanhas só não é democrático, pois não favorece, também, a oposição. Pondo de lado a ironia, a grande virtude do financiamento público, oficial, de campanhas será permitir uma efetiva fiscalização das prestações de contas eleitorais. Atualmente, cada um dos tribunais regionais eleitorais examina centenas de prestações de contas, pois cada candidato apresenta a sua. Com o financiamento público, a responsabilidade pela prestação de contas será exclusiva de cada partido político, o que permitirá aos TREs uma fiscalização real do uso do dinheiro nas campanhas, podendo

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se valer, inclusive, de auditores especializados, visto que a fiscalização se concentrará no partido político e não mais nos candidatos. Em nosso país vigora hoje o sistema misto de financiamento eleitoral. Os candidatos podem buscar dinheiro na iniciativa privada. O financiamento público oficial ocorre, principalmente, por meio do horário eleitoral gratuito, nas emissoras de rádio e de televisão, as quais descontam no imposto de renda suas perdas com o horário gratuito. Mundo afora, diversas são as modalidades de financiamento público. Nos Estados Unidos, o candidato pode optar entre o financiamento público ou privado, sendo que um exclui o outro. Nas últimas eleições, tanto Bush quanto Kerry optaram pelo financiamento público, mas foram enormemente ajudados pelo chamado soft money, que financia campanhas de grupos de pressão, sobre temas vinculados às plataformas eleitorais. Na maioria dos países, como França, Austrália, Japão, para receberem financiamento público, os partidos devem preencher percentual específico de votos e determinado número de cadeiras no Parlamento. O financiamento, no limite orçamentário, é proporcional a essas performances.


O modelo brasileiro, conforme sugerido no projeto da Comissão Especial de Reforma Política, presidida pelo deputado Alexandre Cardoso, imita o alemão. Por esse sistema, só se poderá fazer campanha com dinheiro público e a parcela do orçamento da União, destinado ao financiamento público, será proporcional ao número de eleitores, ou seja, para cada eleitor serão destinados sete reais (100 milhões de eleitores = R$ 700 milhões). O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) distribuirá os recursos aos órgãos de direção nacional dos partidos da seguinte forma: 1% para todos os partidos registrados no TSE, mesmo sem representantes no Congresso; 14% entre os partidos com representação na Câmara dos Deputados, não importando o tamanho do partido; 85% divididos entre os partidos proporcionalmente ao número de representantes que elegeram na última eleição geral para a Câmara. Esse projeto, entretanto, só fará sentido se alterada a forma de candidatura. Teremos que migrar para o “sistema de listas fechadas’’. Segundo tal modelo, o eleitor não mais votará nos candidatos, mas nos partidos políticos. Estes comporão suas listas fechadas de candidatos. De acordo com o número de cadeiras obtidas pelo partido, ingressarão no Congresso os componentes da lista, na ordem em que

nela situados. Só assim as campanhas serão centralizadas nos partidos e, por conseqüência, a fiscalização do uso do dinheiro público poderá ser efetiva. Quais as maiores vantagens do modelo proposto? Os partidos e os candidatos deixarão de depender dos financiadores das suas campanhas. Haverá maior igualdade entre os competidores. Diminuirá a influência do poder econômico, antes e depois das eleições. Caberá exclusivamente ao partido político toda a movimentação financeira das campanhas, o que facilitará uma fiscalização técnica aprofundada. O sistema proposto, ademais, estimulará uma maior filiação partidária, visando a participação na escolha dos candidatos que comporão as listas. Melhorará, por certo, o nível da representação parlamentar, pois os partidos, até por instinto de sobrevivência, procurarão preencher suas listas com nomes de estatura e projeção. O país merece uma chance de possuir um modelo eleitoral que privilegie a ideologia partidária e diminua a corrupção eleitoral. Mantido o sistema eleitoral vigente, a degradação ética e moral do Parlamento só aumentará. Como no ditado popular, não há situação tão ruim que não possa ficar pior! 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39


INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL EM AÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA DESCABIMENTO DE SUA RECUSA EM LAVRAR PARECER, SOB O FUNDAMENTO DE AUSÊNCIA DE INTERESSE PÚBLICO PRIMÁRIO EM LITÍGIO

Alberto Nogueira Júnior Juiz Federal da 10ª Vara Federal - RJ

T

em se tornado comum, em ações de mandado de segurança, o Ministério Público Federal recusar-se a emitir parecer examinando o mérito da demanda, ou sequer se encontram presentes algumas das situações que autorizam a extinção do feito sem julgamento do mérito, sob o fundamento de não ter restado demonstrada a existência de “interesse público”. “Interesse público” este que seria o primário, atinente à toda, ou à maior parte, da sociedade, em contraste com o secundário, em que o interessado mais direto é o Estado. Ao que se depreende das petições “padronizadas”, em tudo idênticas, juntadas às dúzias, esse entendimento foi aprovado quando do XVI Encontro Nacional dos Procuradores da República realizado em 1999 em Curitiba, e sufragado pelo Procurador Geral da República em Parecer no processo PGR no. 6599/2003-91, datado de 29.7.2003, nos seguintes termos: ”O Ministério Público, na ação mandamental, não tem o dever de, sempre, enfrentar o mérito da controvérsia. Deve, sim, manifestar-se sempre, e motivadamente, em juízo necessariamente prévio, sobre se a demanda posta significa controvérsia sobre interesse social, ou individual, indisponível, ou não. Negada a presença do interesse indisponível, o feito segue sem a sua intervenção, restringendo-se a res in iudicium deducta a litígio estrito entre os que postulam”. Tal posição, a meu ver, incorre em equívoco. Primeiro, histórico. Ao tempo da Lei no. 1.533/51, o Ministério Público não era o que é hoje; não tinha a estrutura administrativa, as largas 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2005

atribuições que a Constituição Federal de 1988 veio a lhe conceder; suas ações muito raramente poderiam dar azo a alguma repercussão social de maior monta. Ao mesmo tempo, a ação de mandado de segurança, filha direta da doutrina brasileira do habeas corpus, instituía um poderosíssimo instrumento de controle da Administração Pública, extremamente célere, com limitação da cognição possível de ser feita aos fatos que pudessem ser comprovados documentalmente, e permitindo-se que as informações fossem prestadas pela autoridade administrativa, independentemente de intervenção de advogado do Estado. Daí a idéia de se colocar o Ministério Público Federal como custos legis, de modo a verificar a regularidade do procedimento, da intervenção da autoridade administrativa e, por que não, do próprio direito que constituía o objeto da ação. A premissa, dentro desse sistema, era que o próprio procedimento do mandado de segurança era bastante para qualificar o interesse nele defendido como “público” e, é de acrescentar-se, interesse público primário, e não, secundário. A correção deste argumento pode ser demonstrada com o exemplo da admissibilidade da ação de mandado de segurança em procedimento licitatório instaurado por sociedade de economia mista. Como ilustrado pela decisão proferida pela Colenda 1a. Turma do Eg. STJ quando do julgamento do RESP no. 299834-RJ, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, dec. um. pub. DJU 25.2.2002, p. 222, cuja respectiva ementa passo a transcrever, em parte: “Ato praticado por sociedade de economia mista em licitação pública expõe-se a mandado de segurança.


“A cada vez que o Ministério Público Federal, em um caso concreto, deixa de motivar seu entendimento de que o interesse público primário não se encontraria presente, atua arbitrariamente.”

É que a incidência do art. 267, VI do CPC pressupõe o reconhecimento de que o pedido enfrenta impossibilidade. Sem a demonstração de tal pressuposto, não há como declararse extinto o processo. (...)”. É o próprio procedimento da ação de mandado de segurança que traz ínsito a qualificadora da existência de interesse público primário. A não ser assim, por que o Ministério Público Federal não propõe Ação Direta de Inconstitucionalidade do disposto no art. 10 da Lei no. 1.533/51, como ofensivo ao art. 129 da CF/88? Não haveria mais necessidade, se julgada procedente tal ação, de remeter-se os autos da ação de mandado de segurança ao Ministério Público, ato processual este que continua a ser obrigatório e sem o qual o Ministério Público inexoravelmente recorre, alegando nulidade por inobservância de formalidade essencial à causa. Mas por que a essencialidade se é o Ministério Público quem escolhe quando haverá interesse público primário digno de ser por ele fiscalizado e defendido, e quando não haverá? Sim, porque se até o Procurador Geral da República adotou aquele entendimento aqui apontado como equivocado, não haveria como o juiz compelir o órgão do Ministério Público de primeira categoria a oficiar. E o pior: jamais os órgãos do Ministério Público esclarecem os critérios segundo os quais entenderam que num caso não haveria interesse público primário a ser defendido, e, em outro, encontrar-se-ia ele presente. A falta de justificação desta seleção importa em violação ao disposto no art. 37, caput da CF/88, tendo

em vista que não é apenas o Poder Judiciário quem está constitucionalmente obrigado a motivar suas decisões, mas todos os órgãos e entidades integrantes da Administração Pública, e isto inclui, como não poderia deixar de ser, o Ministério Público. A cada vez que o Ministério Público Federal, em um caso concreto, deixa de motivar seu entendimento de que o interesse público primário não se encontraria presente, atua arbitrariamente. Quem perde com essa atuação arbitrária é a sociedade, que deixa de conhecer as razões que levaram a instituição encarregada constitucionalmente de defendê-la a decidir abster-se, em uma causa específica. Ainda há tempo para que o Ministério Público reflita melhor sobre sua conduta, e de forma consciente e conseqüente, mude de procedimento, tornando exceção o que já vem se tornando regra geral: sua abstenção imotivada em ação que, ao fim das contas, goza de estatura constitucional. A cada parecer “padronizado” em que atuar burocraticamente, abstendo-se de intervir sem declinar os motivos pelos quais, no caso concreto, não estaria a vislumbrar interesse público relevante e digno de ser defendido, estará passo a passo perdendo sua fonte de legitimidade primeira, que é a sociedade. Porque é nas agruras das pequenas coisas do cotidiano, do dia-a-dia, onde as pessoas carecem mais de profissionais e instituições qualificados para defender seus interesses e direitos, levados tão pouco a sério pelos órgãos e entidades da Administração Pública. 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


O monitoramento dos e-mails no ambiente de trabalho Marcelo Oliveira Rocha Advogado

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om a descoberta da Internet, as relações no ambiente de trabalho vêm sofrendo grandes modificações, ora positivas, ora negativas. Nunca se falou tanto da possibilidade do empregador monitorar os e-mails recebidos e enviados pelos seus empregados para impedir o uso indevido durante o horário de trabalho. Decorre daí a pergunta inevitável: o e-mail usado em ambiente profissional é revestido das garantias de sigilo e inviolabilidade, inclusive perante o empregador que fornece e promove o uso e o acesso ao e-mail? Em que pese a Constituição Federal brasileira de 1988, garantir a inviolabilidade de correspondência e o sigilo de dados, com efeito, o direito brasileiro ainda é escasso para alcançar uma resposta pacífica e certa para esta questão. Por isso, busca-se socorro no direito comparado. Antes de se analisar o monitoramento dos e-mails e suas implicações jurídicas no direito alienígena, importa apresentar conceitos de monitoramento, como se dá aplicação desse recurso, se é legalmente permitido e quais os limites jurídica e socialmente plausíveis. Monitoramento eletrônico consiste na vigilância das atividades on-line dos empregados e é feito através de programas que compilam os dados baseados nas páginas visitadas, tempo gasto em cada página, número de mensagens eletrônicas e seus tamanhos, conteúdo das mensagens e anexos e tempo total gasto em atividades eletrônicas. O que se discute, é a legalidade ou não deste 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2005

monitoramento, com a dificuldade de que inexiste legislação específica acerca da matéria. Com efeito, para justificar legalmente tal monitoração, invoca-se que os empregadores são donos dos computadores e seus programas, bem como das linhas telefônicas e demais meios de comunicação e, ainda, que são os contratantes das provedoras, motivo pelo qual têm o direito de regulamentar como os computadores, que são equipamento de trabalho, devem ser utilizados, inclusive no que pertence à conexão na Internet e envio e recebimento de e-mails (públicos e corporativos), para fins estritamente direcionados ao trabalho, mesmo porque os trabalhadores têm deveres de obediência, de fidelidade, de colaboração e de diligência, dentre outros, na vigência da relação de emprego, decorrentes do caráter de subordinação do empregado. Neste sentido, o correio eletrônico é concebido como ferramenta de trabalho dada pelo empregador ao empregado para realização do trabalho, e sobre ele incide o poder de direção do empregador e conseqüentemente o direito do mesmo fiscalizar seu uso pelo funcionário. Os endereços eletrônicos gratuitos e ou particulares, desde que acessados no local de trabalho, enquadram-se, em tese, no mesmo caso. Entretanto, deve-se analisar com bastante cuidado a conveniência de acesso à Internet pelos funcionários no local de trabalho e, enquanto não há legislação específica, é de bom alvitre que se adote regulamentação interna, de forma bilateral, ou, ainda, que seja regida a questão em contrato ou


norma coletiva. O monitoramento de e-mails pelas empresas existe e estão sendo utilizados cada vez mais. Isso é ponto pacífico. Portanto, a solução seria, não a sua proibição, mas a regulamentação de sua aplicação para que princípios jurídicos não sejam simplesmente ignorados. A questão passa a ser, então, quais seriam os limites da vigilância no trabalho. A principal questão que emerge diz respeito aos exageros no afã de controlar o uso deturpado da Internet no ambiente de trabalho. No direito brasileiro, até a presente data, não se tem consolidação legal tratando do tema. Para piorar a situação, juristas empresários e empregados possuem visões diversas sobre o assunto, dificultando ainda mais soluções pacíficas. Daí a importância da análise e busca de informações e exemplos no direito comparado. Tratando-se, especificamente, de regulamentações sobre monitoramento de e-mails no direito comparado, constatase que nos Estados Unidos, uma pesquisa realizada pela Society of Financial Service, em 1999, apontou que 44% dos funcionários entrevistados declararam que o monitoramento no local de trabalho representa uma séria violação ética. A referida pesquisa de opinião também revelou que somente 39% dos patrões entrevistados reconheceram que o monitoramento dos e-mails é seriamente antiético. Pesquisa similar feita pela American Management Association revelou que aproximadamente 67% das companhias dos Estados Unidos monitoram eletronicamente seus funcionários de

alguma forma. Em virtude dos atos terroristas praticados em Setembro de 2001, o Congresso Americano discutiu, em caráter de urgência, o Projeto de Lei denominado Mobilization Against Terrorism Act, que, dentre outras medidas, amplia o poder das autoridades americanas quanto à fiscalização e a vigilância sobre as informações que trafegarem pela Internet ou por qualquer outro meio de comunicação, sobre a justificativa do combate ao terrorismo e a manutenção da segurança nacional. Na Inglaterra, uma lei aprovada pelo parlamento inglês, que autoriza o monitoramento de e-mails e telefonemas por empregadores, a partir de 24 de outubro de 2000, gerou muita polêmica. Para os grupos de defesa de privacidade, a lei conhecida como RIP - Regulation of Investigatory Powers estaria violando diretamente a lei de Direitos Humanos (Human Rights Act). Outros países, como a Holanda, Rússia e África do Sul, também discutem o direito de se monitorar e-mail. O ordenamento jurídico brasileiro, em tese, proíbe o monitoramento de correios eletrônicos, excetuandose os casos de prévia ciência do empregado e de ordem judicial. Dessa forma, as empresas brasileiras que quiserem interceptar comunicações terão que comunicar previamente aos funcionários, sob pena de serem processados com base na privacidade assegurada ao indivíduo. Nos termos do inciso X, do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, assegura-se à intimidade e a vida privada como direitos fundamentais, sob pena de o infrator ser indenizado pelo dano moral praticado.

“(...) as empresas brasileiras que quiserem interceptar comunicações terão que comunicar previamente aos funcionários, sob pena de serem processados com base na privacidade assegurada ao indivíduo.”

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Não obstante a todas estas considerações, há aqueles Por fim, a atualíssima Constituição da República Boliviana que, ainda assim, não vislumbram como caso de invasão da Venezuela de 1999 refere-se concreta e especificamente de privacidade o monitoramento de e-mails, eis que não se em seu artigo 48 sobre o segredo das correspondências trata de algo privativo do empregado e sim do empresário. dispondo que “será garantido o direito ao segredo e Neste sentido, defendem a propriedade privada do e-mail inviolabilidade das comunicações privadas em todas as suas enquanto instrumento de trabalho de propriedade do formas. Não poderão ser interferidas sem ordem de um empresário. Tribunal competente, com o cumprimento das disposições Para fundamentar este entendimento, na ausência de legais e preservando-se o segredo privado que não guarde legislação específica, existe uma série de normas nacionais e relação com o correspondente processo”. internacionais que dão proteção à inviolabilidade do correio Com a exposição desses exemplos convenções e textos e que podem ser aplicadas ao caso em tela. constitucionais, constata-se que o direito à privacidade, no Nos Estados Unidos, a Constituição não contém que concerne ao envio de correspondência, é regra comum disposição expressa que proteja este direito. No entanto, na grande maioria dos países e, por essas razões, não pode a partir da IV e V emendas tem sido desenvolvido este ser ignorado. direito tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência. A par disso, é imprescindível que as interpretações das Uma das normas mais importantes quanto à proteção normas sejam maleáveis, tendo em vista que o direito nem da correspondência na Internet é a Lei de Privacidade sempre consegue acompanhar a evolução das relações das Comunicações Eletrônicas - ECPA, segundo a sigla sociais, principalmente com as ímpares inovações trazidas em inglês, que protege todas as formas de comunicação pela comunicação eletrônica. Neste sentido, entende-se eletrônica, incluindo a que é tarefa do profissional comunicação telefônica do direito requerer a de voz e as comunicações construção de arcabouços “No direito brasileiro, até a digitais de computador como jurídicos que permitam o correio eletrônico e das a utilização de preceitos presente data, não se tem mensagens armazenadas em velhos sem que os mesmos consolidação legal tratando boletins eletrônicos. sirvam de instrumentos Na América Latina, para a legitimação de do tema. Para piorar a a Constituição Política situações de injustiça e situação, juristas empresários equatoriana, aprovada violação de direitos dos em 1998, reconhece o cidadãos. De outro lado, e empregados possuem direito à inviolabilidade da não se pode ignorá-los, visões diversas sobre o correspondência em seu pois, na maioria das vezes, artigo 23 e item 13. Da mesma secularizam princípios assunto, dificultando ainda forma, a Constituição do Chile arduamente conquistados, mais soluções pacíficas.” de 1980 reza em seu artigo 19 cuja violação redundaria e item 5 que: “a Constituição em desastrosos efeitos e assegura a todas as pessoas: a injustiças. inviolabilidade de violar de toda a forma de comunicação A análise da legislação alienígena serviu para formar privada. A violação só poderá ser feita nas comunicações convencimento no sentido da mensuração das dificuldades e documentos privados interceptando-se, abrindo-se nos enfrentadas e que os problemas emergentes das relações caso e formas determinados pela lei”. Na Colômbia não foi de trabalho na era informatizada não são exclusivos da diferente, eis que o artigo 15 da Constituição colombiana, realidade brasileira. A observação de como os outros países promulgada em 1991 dispõe que “a correspondência e estão resolvendo os problemas pertinentes à monitoração demais formas de comunicação privada são invioláveis. Só de e-mails, serve de fortes subsídios para a elaboração de podem ser interceptadas ou registradas mediante ordem proposta de diretrizes e conseqüente legislação específica judicial, e nos casos e com as formalidades estabelecidas em do tema, sem, no entanto, “copiar” leis alienígenas, que lei”. Por seu turno, a Constituição Política do Peru vigente nem sempre condizem com as relações e cultura peculiares a partir de 1993 consagra o direito à inviolabilidade da do povo brasileiro. correspondência no artigo 10: “o segredo e a inviolabilidade Dessa forma, é possível a utilização justa do correio de suas comunicações e documentos privados. As eletrônico e ao mesmo tempo legitimar procedimentos comunicações, telecomunicações e seus instrumentos só lícitos praticados por empresários, porque além da garantia podem ser abertos, incautos, interceptados ou sofrerem constitucional do direito à privacidade, existe a necessidade intervenção através de ordem judicial motivada do juiz, mundial de uma regulamentação específica voltada ao com as garantias previstas em lei”. monitoramento de e-mails. 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2005


Da Importância de ser Quixote Maria Clara L. Bingemer Teóloga

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elebra-se este ano o quarto centenário de uma obra literária que foi talvez a que mais marcou o Ocidente: o célebre Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra. Escrito em plena passagem do século XVI para o XVII, em pleno período entre o Renascimento e o Barroco, o Quixote - como todo grande texto literário - escapou da intencionalidade de seu autor, criou asas e brilhou com luz própria. Esta preciosa jóia da literatura castelhana soube conquistar o mundo inteiro e é talvez, com a Bíblia, a obra que se traduziu em mais idiomas. Dom Quixote de La Mancha apresenta com a maestria e o gênio de Cervantes um feliz retrato do povo espanhol e, mais ainda, uma descrição bela e certeira da alma ocidental. Seus personagens são verdadeiros arquétipos de categoria universal. A figura do Quixote tornou-se símbolo e paradigma do idealismo que acredita que a realidade é mais do que apenas os cinco sentidos possam tocar e perceber, e sai pelo mundo para resgatar valores como honra, liberdade, grandeza, nobreza e retidão. Seu alter-ego e fiel escudeiro, Sancho Pança - que é tão gordinho e baixo de estatura, próximo ao chão e à terra quanto seu amo é alto e esguio, voltado para as alturas do céu e do grande ideal cavalheiresco - representa o espírito prático, o realismo. A prática bondade e a canina fidelidade de Sancho não deixam que o ideal e a imaginação criativa se percam em estéril ilusão, mas ajuda a que fecundem o mundo, devolvendo ao ser humano a capacidade de sonhar e almejar sempre mais além dos limites que lhe impõem sua carne, vulnerabilidade e mortalidade. O quarto centenário do Quixote nos interpela por alguns caminhos que me parecem ser extremamente importantes nos dias de hoje. Por um lado, relembra a nós, humanos, nossa vocação à nobreza, à plenitude e à liberdade. O engenhoso fidalgo Alonso Quijana, que sai de sua aldeia natal em busca de aventuras acompanhado por seu fiel Sancho Pança, tem um coração maior que o mundo. Aos olhos dos que o acompanham em sua saga, é um louco. Aos olhos afetuosos e fiéis de Sancho, também. Luta com moinhos de vento, afirmando até o fim que são perigosos gigantes. Vê na suja e prostituída camponesa Aldonza

a bela e nobilíssima dama Dulcinéia del Toboso, a quem entrega seu coração e sua espada, jurando defender sua honra e protegêla com a própria vida. Coração e mente sempre estimulados por um ideal maior que o mundo, Dom Quixote expõe sua loucura sem pejo nem timidez, sendo constantemente advertido e moderado por Sancho. Impossível não lembrar de outro ser humano que marcou a história porque um dia, na Galiléia, resolveu sair pelo mundo contando parábolas, fazendo milagres e entregando a vida por todos e todas, sem ter onde reclinar a cabeça. A Jesus de Nazaré também foi impetrado o qualificativo de louco e até aqueles que o acompanhavam mais de perto chegaram a duvidar de sua sanidade mental, declarando-o ‘’fora de si’’. Enquanto Dom Quixote é uma criação literária genial, Jesus de Nazaré é uma pessoa histórica, que marcou o mundo e ao morrer, vítima da fidelidade ao amor que lhe queimava o coração e não o deixava cessar de estar ‘’fora de si’’ no amor e no serviço aos outros, foi visto e reconhecido como ressuscitado, vivo para sempre e Filho de Deus. Aqueles que o seguiram participaram de seu destino de serem considerados loucos. E tão loucos eram e são que isso é para eles e elas motivo de alegria e consolação. O quarto centenário do Quixote nos traz de volta o desafio de Jesus de Nazaré, que no fundo é o desafio inerente à condição humana criada por Deus: ser livre o suficiente para não deixar de desejar, de sonhar, de amar, mesmo sendo tido e havido por nécio e louco aos olhos de todos. Segundo Dom Quixote, vale a pena, pois “a liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que aos homens deram os céus; com ela não podem igualar-se os tesouros que encerra a terra nem o mar encobre; pela liberdade, assim como pela honra, se pode e deve aventurar a vida e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode advir aos homens’’. Que o centenário do Quixote nos relembre a importância de sermos loucos o suficiente para crer que o amor é possível e vale a pena entregar a vida por ele. Que a força desse personagem prototípico nos ajude a sair do marasmo em que nos lança a sociedade neoliberal e não desistir de perseguir moinhos de vento, resgatar a dignidade de oprimidos e acreditar que a loucura é muitas vezes mais razoável que a razão mesma. 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


DIREITO AUTORAL NOS APARTAMENTOS E QUARTOS DE MEIOS DE HOSPEDAGEM Cláudio R. Alves de Alves Assessor Jurídico da Federação Nacional de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares - FNHRBS

Como bem salienta o autor, o tema que aborda – Direito Autoral nos Apartamentos e Quartos de Meios de Hospedagem – tem sido objeto de debates jurídicos tanto na doutrina como na jurisprudência e continua constituindo um grande desafio para os legisladores. Por se tratar de um assunto de grande relevância e complexidade, a Revista Justiça & Cidadania publica, nesta edição de julho, o primeiro de uma série de artigos em que o Dr. Cláudio R. Alves de Alves analisa de forma precisa as questões relacionadas com a legislação, a natureza jurídica dos meios de hospedagem, o ECAD, o posicionamento dos tribunais e as súmulas 61 e 263 do Superior Tribunal de Justiça. O Editor

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Scire legis non hoc est, verba earum tenere, sed vim ac potestatem (“Saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém sua força e poder”, isto é o sentido e alcance respectivos) Celso, Digesto Introdução A cobrança de direitos autorais em apartamentos e quartos de meios de hospedagem (hotéis, motéis e similares) tem sido objeto de acirrados debates jurídicos, na doutrina e na jurisprudência, bem como continua constituindo um grande desafio aos legisladores. Em conseqüência desta indefinição doutrinária e jurisprudencial o segmento econômico dos meios de hospedagem vem sofrendo sensíveis prejuízos financeiros. Buscamos no presente trabalho analisar os aspectos legais, doutrinários e jurisprudenciais da cobrança de direitos autorais pela disponibilização de equipamentos de som e imagem nos estabelecimentos de hospedagem. A exata delimitação de conceitos como “transmissão”, “retransmissão”, “execução pública” e “locais de freqüência coletiva” são fundamentais para perfeita compreensão do tema em análise.


Legislação Até 20.06.1998 os direitos autorais eram disciplinados pela Lei nº 5.988/73 e a partir daí a Lei nº 9.610/98 passou a regular a matéria, revogando quase todos os dispositivos da norma anterior e alterando alguns conceitos básicos, os quais merecem ser analisados, ressaltando sua diferença na lei anterior e atual, para detectar as alterações ocorridas. Constitui preceito comum às duas leis que “os negócios jurídicos sobre direitos autorais devem ser interpretados restritivamente”. A respeito da interpretação restritiva leciona Maria Helena Diniz: (1) “Aquela em que o intérprete e aplicador da norma limita a incidência de seu comando, impedindo que produza efeitos injustos ou danosos, porque suas palavras abrangem hipóteses nelas, na realidade, não se contém. Este ato interpretativo não reduz o campo normativo, mas determina tão somente os limites ou as fronteiras exatas da norma, com o auxílio de elementos lógicos e de fatores jurídico-sociais, possibilitando a aplicação razoável e justa da norma, de modo que corresponda à sua conexão no sentido”. Oportuno trazer à colação aresto que aborda com percuciência a interpretação restritiva prevista em ambos os diplomas legais que disciplinam os direitos autorais: “O hotel é um estabelecimento essencialmente prestador de serviços e fornecedor de produtos. O art. 4º da Lei nº 9.610/98, efetivamente determina que sejam interpretados restritivamente os negócios jurídicos sobre direitos autorais. Portanto, a exegese restritiva dos instrumentos negociais relativa aos direitos autorais nada mais é do que a interpretação exata, verdadeira do negócio, evitando-se a extensão ou a supressão de alguma coisa; a precisão deve ser alcançada com a avaliação dos elementos lógicos do negócio, sem qualquer dilatação do negócio. Ora, na hipótese, cogitase de captação de transmissão de rádio nos recessos dos apartamentos do motel, local que não é público e muito menos de freqüência coletiva”.(2) No que se refere aos conceitos de transmissão e retransmissão apenas o primeiro restou ampliado pela Lei nº 9.610/98, em razão de avanços tecnológicos. Na moldura legal, transmissão é a “difusão de sons ou sons e imagens, por meio de ondas eletromagnéticas, sinais de satélites, fio, cabo ou outro condutor, meios óticos ou qualquer outro processo eletromagnético”, enquanto retransmissão é conceituada como a “emissão simultânea da transmissão de uma empresa por outra”. Assim, ocorre simples transmissão sonora ou de imagens em aparelhos individuais de rádio e televisão, instalados em quarto de hotel ou motel, colocados à disposição dos hóspedes e por eles acionados, com livre escolha das estações ou canais. Ao contrário, configura-se retransmissão quando uma mesa ou equipamento central transfere som e imagem

uniformes para todos as dependências de qualquer meio de hospedagem, ficando a operação, sintonia dos canais e estações ao encargo de um único operador. Nesta situação enquadra-se a sonorização ambiental de hotéis e motéis, inclusive nos aposentos de hospedagem. A Lei nº 5.988/73 estabelecia que “sem autorização do autor, não poderão ser transmitidos pelo rádio, serviço de alto-falantes, televisão ou outro meio análogo, representados ou executados em espetáculos públicos e audições públicas, que visem a lucro direto ou indireto” (artigo 73, caput). O parágrafo 1º deste artigo considerava espetáculos públicos e audições públicas “as representações ou execuções em locais ou estabelecimentos, como teatros, cinemas, salões de baile ou concerto, boates, bares, clubes de qualquer natureza, lojas comerciais e industriais, estádios, circos, restaurantes, hotéis, dentre outros, bem como onde quer que se representem, executem, recitem, interpretem ou transmitam obras intelectuais, com a participação de artistas remunerados, ou mediante quaisquer processos fonomecânicos, eletrônicos ou audiovisuais“. Ressalte-se que a autorização do autor da obra tutelada restringia-se às hipóteses de espetáculos e apresentações públicas, realizados em diferentes locais, que objetivassem o lucro direto ou indireto. Desse modo, a disponibilização de aparelhos de rádio e televisão para os hóspedes não configura espetáculo público ou audição pública e nem objetiva o lucro direto ou indireto. Em realidade, o que incrementa um estabelecimento hoteleiro, de forma certamente a proporcionar-lhe lucro, são as condições atinentes à própria hospedagem, como preço, conforto das instalações, móveis, estilo, limpeza, segurança e outros serviços prestados e jamais por possuir rádios ou televisores.

“A exigência de celebrar contrato de hospedagem enfatiza, ainda mais, que os aposentos hoteleiros não se constituem em locais de freqüência coletiva, ante a individualização dos contratantes.” 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


Considerando que o pressuposto de “lucro direto ou indireto” sempre constituiu motivo de interpretações conflitantes, a lei atual acabou por retirar tal exigência, introduzindo um elemento novo que é a “prévia e expressa autorização do autor ou titular do direito para que a comunicação seja levada ao público” e retirando a expressão “que visem lucro direto ou indireto”. A Lei nº 9.610/98 fixa o conceito de “execução pública” (artigo 68, § 2º) entendida como aquela realizada em locais de freqüência coletiva. No parágrafo seguinte (artigo 68, § 3º) conceituam-se os chamados “locais de freqüência coletiva”, através de texto exemplificativo, o qual enumera diferentes tipos de estabelecimentos, locais e atividades onde incidiria o pagamento de direitos autorais nas hipóteses de representação e transmissão de composições musicais ou litero-musicais. Deste dispositivo legal exsurgem as conclusões de que a enumeração não é exaustiva, constituindo, portanto, números apertus, a englobar qualquer local de freqüência coletiva onde se executem obras musicais. Assim, a nova lei veda o uso desautorizado de obra em representações e execuções públicas e considera hotel como um dos locais de freqüência coletiva. Não há dúvida de que a utilização de obra musical em hotel só é vedada, sem autorização, se for pública, para apresentação coletiva. Dentre os estabelecimentos relacionados na Lei nº 9.610/ 98 (artigo 68, parágrafo 3º), os hotéis e motéis merecem expressa referência como locais de freqüência coletiva. Contudo, deve ser observado que a real intenção da referida norma, ao mencionar a expressão “freqüência coletiva”, é de caracterizar os locais em que há circulação

de público. E tanto assim o é que o caput do artigo 68 veda a utilização de “obras teatrais, composições musicais ou litero-musicais e fonogramas, em representações e execuções públicas”. Ora, a luz da comezinha lógica, não se pode considerar que uma hospedagem hoteleira seja local de freqüência coletiva, sendo, portanto, inviável que nesta dependência haja execução pública de qualquer coisa que seja, descaracterizando, assim, a hipótese de incidência da norma tutelar dos direitos autorais. Tem-se, ainda, que aceitar que uma hospedagem hoteleira seja local de freqüência coletiva, além de violar princípios de Direito, implica conferir interpretação extensiva à legislação de direitos autorais, o que configura violação do artigo 4º da Lei nº 9.610/98. Entretanto, como o texto legal não especifica a dimensão de incidência no âmbito destes estabelecimentos, situação que se constitui ponto nodal da divergência na doutrina e na jurisprudência para discernir se as hospedagens hoteleiras encontram-se inseridas no conceito de locais de freqüência coletiva, necessário se torna fixar a natureza jurídica de tais dependências. Natureza jurídica dos meios de hospedagem Como ponto de partida desta análise, valemo-nos dos ensinamentos de Carlos Maximiliano (3), em sua obra clássica “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, no sentido de que não se acha preceito isolado em ciência alguma, todos estão em perfeita comunhão e de sua interpretação conjunta exsurge luz para a solução da controvérsia. Lembra ainda o saudoso mestre hermeneuta que em Direito interpreta-

“(...) a disponibilização de aparelhos de rádio e televisão para os hóspedes não configura espetáculo público ou audição pública e nem objetiva o lucro direto ou indireto.”

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se inteligentemente, não podendo a exegese conduzir a um absurdo e nem chegar a conclusão impossível. Assinala De Plácido e Silva (4), em seu celebrado “Dicionário Jurídico”, que público, “em sentido geral quer significar o que é comum, pertence a todos, é do povo, pelo que, opondo-se a privado, se mostra que não pertence e não se refere ao indivíduo ou ao particular”. Já no conceito de Pedro Nunes (5), “local público é todo aquele que alcançável ou abrangível pela vista, se acha aberto e franqueado à multidão e onde cada pessoa pode estar e locomover-se livremente”, enquanto “local acidentalmente público é o que, de natureza privada, torna-se às vezes com aparência de público, pelo acesso ou afluência ocasional de muitas pessoas”. Ademais, é sabido e consabido que “público” é o local franqueado a todas as pessoas e onde cada um pode freqüentar e se locomover independentemente de qualquer autorização de quem quer que seja. Ainda de assinalar que “o sentido de público a mens legis reservou para aqueles recintos que estão sempre em movimento, em que a entrada é franqueada, sem vínculo; a freqüência é aberta e duradoura e a programação nasce da obra dos que governam a casa, ordinariamente sem consulta aos freqüentadores. No caso dos apartamentos privados, o seu uso ocorre apenas para quem ali se hospeda e já se acha vinculado a uma determinada prevalência; ou só o hóspede, querendo, é que poderá movimentar a programação, ou jamais usá-la (...) O quarto, ou apartamento, ou suíte, de hotel ou motel (onde está o rádio-receptor) jamais poderá ser considerado ambiente público, uma vez fechadas as portas pelo usuário. Ao contrário, é privadíssimo, ainda que se admita que o estabelecimento é público, isto é, de freqüência coletiva. Se aquilo fosse ambiente público, qualquer um poderia nele adentrar, ainda que outrem já estivesse nele, como acontece, por exemplo, num teatro, num cinema, num clube, numa loja, numa rodoviária, no estádio de futebol, num restaurante etc. No entanto, desde que alguém ingresse e feche a porta, torna-se privadíssimo, tão impenetrável como o “box” de um sanitário ocupado. Logo o toque em aparelho receptor, aí, jamais poderá ser considerado audição ou espetáculo público” (6) Sob esta ótica os aposentos hoteleiros não se constituem local público ou mesmo local acidentalmente público. Neste passo de salientar que a hospedagem hotelaria, enquanto extensão do domicílio fixo dos hóspedes, goza de inviolabilidade conferida pelos ordenamentos constitucional (artigo 5º, XI, da Carta da República), civil (artigo 73 do Código Civil) e penal (artigo 15o do Código Penal), somente podendo ser violada em situação de flagrante delito ou em decorrência de ordem judicial. Por outro lado, constitui fato notório que muitas pessoas residem em quartos de hotel e modernamente muitas residem nos denominados “flats”, “apart-hotel”, “condohotel” ou “hotel-residência”.

“(...) é sabido e consabido que “público” é o local franqueado a todas as pessoas e onde cada um pode freqüentar e se locomover independentemente de qualquer autorização de quem quer que seja.” Vê-se, ainda, que o caráter de privacidade dos aposentos hoteleiros decorre da conceituação conferida pelo Decreto nº 5.406/2005, artigo. 3º: “§ 1º - Serviços de hospedagem são aqueles prestados por empreendimentos ou estabelecimentos empresariais administrados ou explorados por prestadores de serviços turísticos hoteleiros, que ofertem alojamento temporário para hóspedes, mediante adoção de contrato de hospedagem, tácito ou expresso, e cobrança de diária pela ocupação da unidade habitacional”. Os contratos de hospedagem fazem parte da realidade da hotelaria nacional, possuindo todos os elementos de um contrato de adesão, na acepção do Código de Defesa do Consumidor e com “características dos contratos de execução contínua, pois se protrae no tempo, caracterizandose pela prática ou abstenção de atos reiterados, solvendo-se num espaço mais ou menos longo de tempo” (7). A exigência de celebrar contrato de hospedagem enfatiza, ainda mais, que os aposentos hoteleiros não se constituem em locais de freqüência coletiva, ante a individualização dos contratantes. Contudo, repisamos, a interpretação da lei não pode conduzir a conclusões absurdas. Admitir que os aposentos hoteleiros e moteleiros, especialmente estes últimos, constituem local público nos levaria a conclusão absurda de que um casal de hóspedes, em suas intimidades, correria o risco de ter seu comportamento tipificado como o ilícito previsto no artigo 233 do Código Penal: “praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público”. Não bastasse o disposto no Decreto Federal nº 5.406/ 2005, acima referido, outras normas legais confirmam o caráter privado dos aposentos hoteleiros: a Lei Estadual (RJ) nº 1.574/67, que define hotel e motel como residências 2005 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49


“A exigência de celebrar contrato de hospedagem enfatiza, ainda mais, que os aposentos hoteleiros não se constituem em locais de freqüência coletiva, ante a individualização dos contratantes.” transitórias, o Decreto Municipal nº 3.044/81 (Código de Obras do Rio de Janeiro) que reconhece a natureza jurídica dos hotéis como residências multi-familiares transitórias; o Regulamento Geral dos Meios de Hospedagem, estabelecido pela Deliberação Normativa EMBRATUR nº 429/02, a qual, no exercício da competência deferida pela Lei Federal nº 8.181/91, reafirma o caráter privado dos hotéis e motéis ao fixar a obrigatoriedade de celebração de contrato de hospedagem e a Lei Estadual (SP) nº 9.871/97. Igual posicionamento é adotado pela Lei Geral do Turismo, anteprojeto de lei a ser encaminhado ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo. Registre-se, por derradeiro, que o axioma mais fundamental da filosofia encerra o princípio de não-contradição, que afirma a impossibilidade de uma mesma coisa ser e não ser ao mesmo tempo: ou os aposentos hoteleiros possuem privacidade para todos os fins de direito ou, dependendo da norma aplicável, ora são dotados de caráter privado e ora constituem local de freqüência coletiva.

Ressalte-se, mais, a manifestação do ínclito Ministro Aldir Passarinho Júnior (8), atual Presidente da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, já na vigência da Lei nº 9.610/98: “Não me parece que colocação do serviço à disposição do hóspede no quarto do hotel seja efetivamente equiparável a espetáculo público ou audição pública. Entendo que é uma conveniência, porque o quarto do hotel, na verdade tenta reproduzir o lar de uma pessoa quando está fora dele, em que dispõe de uma televisão e dispõe evidentemente, também de um rádio”. Na mesma esteira deste entendimento alinha-se o objetivo e esclarecedor pronunciamento judicial do Ministro Ruy Rosado de Aguiar (9), do Superior Tribunal de Justiça: “Não se considera espetáculo público, nem audição pública a transmissão de música pelo rádio, no recesso do quarto de hotel. A sintonização de emissora, neste caso, não enseja o pagamento de direitos autorais (...) De fato há expressa referência de lei a hotel, como local de representação ou execução de obra intelectual. Hotel é um complexo, que aluga, segundo as mais antigas definições, a hóspedes e não hóspedes, restaurantes, quadras para prática de vários esportes e salões para conferências, congressos e seminários, bem como para festas e recepções em geral. Cumpre então distinguir entre a execução pública e a execução privada, pois, a meu ver, a execução no recesso de um quarto de hotel não é pública, mas eminentemente privada. O que a lei não quer é que haja espetáculos e audição públicos sem autorização do autor da obra. Quando alguém , em sua casa ou residência, liga o rádio e a televisão ou outro meio análogo, para ver e ouvir, em suma, para se deleitar com a imagem ou voz humana não se torna devedor de direito autoral. É que a execução não é pública. O mesmo acontece com relação a quartos e apartamentos de hotel. Aqui a execução também é privada, vez que realizada na esfera de atuação particular do interessado”.

Notas Bibliográficas DINIZ, Maria Helena, Dicionário Jurídico Saraiva, São Paulo, Editora Saraiva, 1998, volume II, pag. 888). (2) FIGUEIREDO, José Carlos de, Relator do Processo Apelação Cível 2003.001.03592, 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, julgado em 25.06.2003. (3) MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, Editora Forense, 1980, 9ª edição. (4) SILVA, De Plácido e, Vocabulário Jurídico, Rio de Janeiro, Editora Forense,1999, 16ª edição, pag. 661. (5) NUNES, Pedro, Dicionário de Tecnologia Jurídica, Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1976, 6ª edição, pag, 577/8. (6) GUIMARÃES, Theodoro, Acórdão do Processo Apelação Cível 107.243.-4/3-00, da 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, julgado em 30.03.1999. (7) DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, São Paulo, Editora Saraiva, 2001 volume III, pags. 87 a 88). (8) PASSARINHO, Aldir Júnior, (Debate no julgamento do Processo ERESP 45.675/RS, Relator para acórdão Ministro Waldemar Zveiter, julgado em 09.08.1999, DJ de 02.04.2001). (9) AGUIAR, Ruy Rosado de, Relator do Processo RESP 68514, da 2ª Seção do STJ. (1)

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