Revista Justiça & Cidadania

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EDIÇÃO 64 • NOVEMBRO de 2005

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LIBERDADE DE IMPRENSA

A CERTEZA DA IMPUNIDADE

ORPHEU SANTOS SALLES DIRETOR / EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO

É TEMPO DE ACORDAR

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EDISON TORRES DIRETOR DE REDAÇÃO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DEBORA OIGMAN EDITOR DE ARTE SIMONE MACHADO REVISÃO JULIANA DIAS EXPEDIÇÃO E ASSINATURA CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA,50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-100. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429 CNPJ: 03.338.235/0001-86 SUCURSAIS SÃO PAULO ORPHEU SALLES JUNIOR AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611 FORTALEZA CARLOS MOURA RUA JOAQUIM FERREIRA Nº 1200 BAIRRO LAGOA REDONDA. FORTALEZA-CE TEL(85) 476 -1200 / 9951 - 3773 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED.PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP 90010 272 TEL (51) 3211 5344 BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 - BLOCO E Ed. CENTRAL PARK FONES: (61) 3327-1228 / 25 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL (61) 9968 - 5926

revistajc@revistajc.com.br www.revistajc.com.br ISSN 1807-779X

ENTREVISTA Dr. FLÁVIO D’URSO

32 SUMÁRIO EDITORIAL

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OUVIDORIAS JUDICIAIS

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CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa aurélio wander bastos Arnaldo Esteves Lima antonio carlos Martins Soares Antônio souza prudente

A TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO 14 GARANTIAS DOS DIREITOS: EXIGÊNCIA DEMOCRÁTICA 16

Bernardo Cabral carlos ayres britTo

A GRATUIDADE NOS TRANSPORTES COLETIVOS 18

Carlos mário Velloso carlos antônio navega

DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL PELA POSSE - TRABALHO 22

Darci norte Rebelo denise frossard

INDEPENDÊNCIA, SERENIDADE E EXATIDÃO 26

Edson Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA

A PROMOÇÃO DOS JUÍZES E O BEIJA-MÃO 28

fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins josé augusto delgado José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel Carpema Amorim Marco Aurélio Mello Miguel Pachá maximino gonçalves fontes Paulo Freitas Barata

O ESTÁGIO ATUAL DA “DELAÇÃO PREMIADA” 30 NO DIREITO PENAL BRASILEIRO A REBELIÃO DAS ELITES E A DEMOESCLEROSE ESTADO LAICO- SEUS EXATOS LIMITES NO BRASIL A EDUCAÇÃO ALÉM DOS NÚMEROS A EXCLUSÃO E O DIREITO à SEGURANÇA ALIMENTAR INFORME

thiago ribas filho

CAMPANHAS MACIÇAS DE EDUCAÇÃO NO TRÂNSITO BREVES CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO VICIADO E SEUS CRIMES FÓRUM

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A CERTEZA DA IMPUNIDADE Bernardo Cabral Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Estado do Rio De Janeiro - Unirio, Membro do Conselho Editorial

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país vem assistindo – graças ao clamor da sociedade – um espetáculo inimaginável há tempos atrás, qual seja os comentários que tomaram conta de todos os segmentos sobre a corrupção que atingiu os três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. A propósito, merece ser lembrado o famoso ensaio “Mirabeau ou o Político” de José Ortega y Gasset, o genial pensador espanhol, naquela linguagem rica de beleza e de significado, que até hoje faz o deleite daqueles que têm a felicidade de se dedicar à leitura de seus escritos; nesse precioso ensaio, o iluminado autor das “Meditações do Quixote” empreendeu, ou tentou empreender, a tarefa sem precedentes de traçar, com tintas fortes, os traços distintos do que para ele seriam os homens intelectuais e os homens políticos. Imaginava ele poder estremar as duas espécies, como se a Natureza, rica e caprichosa, energizada pelos desígnios do Criador, não pudesse eleger alguns para cumular com as virtudes que o filósofo entendia irremediavelmente separadas. O intelectual – afirmava o compatriota de Cervantes – não sente a necessidade da ação, de ser ocupado com coisa alguma, e isso é a sua glória e, talvez, a expressão da sua superioridade. E destacava: em última instância, ele se basta a si mesmo, e vive de sua própria germinação interior, de sua magnífica riqueza íntima, não precisando, a rigor, de nada, nem de ninguém. Numa palavra, o intelectual é um microcosmo, uma síntese do universo. O político, diversamente, deve ser o homem da ação, aquele que responde prontamente às necessidades do mundo

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circundante, aquele em que o primeiro impulso conduz ao fazer, e ao fazer já, aquele, enfim, de quem não se pode exigir contemplações inibidoras, mas apenas que se arrependa depois da ação realizada, se errou, porque só então lhe será dado refletir sobre os deslizes perpetrados ou os erros cometidos. Daí o quadro atual por que passa o Brasil, com as instituições caminhando para o descrédito, o desânimo e a desesperança, a motivar o grito, o protesto e a reprovação da sociedade. Claro que esse movimento reivindicatório da sociedade – com a punição a ser feita dos envolvidos no esbulho dos dinheiros públicos – está a irromper com a mais ampla ressonância porque é ele de redenção nacional, operando dentro de critérios de ordem moral e ética. Não há como deixar de reconhecer que a atual crise política é grave e poderá atingir contornos imprevisíveis, a ponto de resvalar para influências no campo econômico, dada a fusão existente entre a economia e a política. Ora, é imprescindível que a sociedade demonstre a sua força – como já vem fazendo – ao clamar contra essa postura criminosa de apropriação indébita dos dinheiros públicos, solapadora das reservas cívicas de um povo, destruidora da essência da seriedade e ultrajadora daqueles que se preocupam com o engrandecimento da Nação, antes que a mortalha da corrupção atinja os brios da soberania nacional. Nesse sentido, é imperioso que se assegure ao nosso país um futuro sem os acessos e os golpes recidivos perpetrados por corruptos e corruptores, criando mecanismos que os conduzam à cadeia e, conseqüentemente, pondo um basta definitivo na chamada certeza da impunidade.


EDITORIAL

O RONCO DAS URNAS

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infeliz propósito do governo, ao programar o inútil além de absurdamente custoso e inconseqüente plebiscito, veio resultar numa clara e insofismável demonstração de protesto e aversão popular aos infaustos acontecimentos que se tem abatido sobre o país nestes anos de iníqua administração, resultando na incrível provação que passa a Nação, em conseqüência da irresponsabilidade do governo contemporâneo. O desmesurado gasto de meio bilhão de reais, despendidos com a realização imbecil e despropositada da consulta popular, cujo resultado já era antecipadamente previsto e esperado - em face da violência e criminalidade desenfreada que grassa em todo o país, deixando a população inerte e desprotegida de garantias e salvaguardas de segurança - foi indiscutivelmente o fato que propiciou o revide da população, com o retumbante NÃO, cujo sentido é a evidente repulsa do povo contra os governantes. O surto de aftosa que explodiu nos estados produtores de gado, cujo malefício já estava banido e debelado há quase uma década, retorna por plena e completa incúria da administração pública, que, irresponsavelmente aplicou menos de 2% da verba orçamentária de R$ 143 milhões, destinada ao controle sanitário nas áreas de risco, principalmente regiões fronteiriças. Além deste fato escandalosamente incrível, temos ainda, as deficiências notórias de atendimento às populações carentes, principalmente na área de saúde, com a estagnação das obras de saneamento básico, propiciando o incremento de moléstias já proscritas, alarmando a população que se queda desamparada do poder público. Temos por igual, como agravante absurdo, a eclosão de atos de corrupção que enlameiam e emporcalham os Poderes e Executivo e Legislativo. Os atos de salvaguarda das instituições, que ensejavam através das CPIs instaladas no Congresso Nacional, já demonstram claramente o abafamento corporativista, propiciando o desprezo com que a população assiste o já abjeto espetáculo a mexer com a reprimida paciência do povo. Que o resultado das urnas seja tomado como lição aos governantes para despertar da realidade, para se possível ainda, evitar aqui no Brasil, o enfurecer da turba, como está acontecendo na França e outros países da Europa. Esse é o alerta. A seguir, é aguardar o ronco das urnas.

Orpheu Santos Salles Diretor-Editor

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CAPA

OUVIDORIAS JUDICIAIS Carpena Amorim Corregedor - Geral da Justiça

O Poder Judiciário é um prestador de serviços e só estaremos bem diante da nossa consciência, se a população estiver bem servida.

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oi certamente a redemocratização do país, consubstanciada na Constituição de 1988, chamada de Constituição cidadã, e depois o Código de Defesa do Consumidor, que restaurou o compromisso da Administração Pública com a população. A exemplo das empresas privadas que se preocupam com os seus clientes para fins de aumentar os seus lucros, o Poder Público passou a se preocupar também com a satisfação dos seus “súditos”, para usar uma expressão histórica. Como já se disse alhures “foi com o fortalecimento da defesa do consumidor iniciada com a inscrição, na Constituição Federal de 1988, deste princípio, expressamente colocado no inciso V, do artigo 170, e culminada com a promulgação da Lei nº 8078, de 11 de setembro de 1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor - CDC, que as empresas passaram a adotar a figura do Ombudsman”. A idéia sobre um cargo similar ao de ombudsman data da década de 1660, “quando o rei da Suécia buscara um súdito que controlasse as atividades dos juízes do reino, tal busca só teve fim em 1809, quando foi implantada a figura do justi ombudsman, resultante da promulgação da Constituição, instalada pelo governo da pós-revolução burguesa. A implementação do cargo de ombudsman, desde seu surgimento, teve ligação à produção dos direitos particulares. O cargo de ombudsman não ficou restrito a Suécia, em 1919 a Finlândia, e em 1946 a Dinamarca, adotaram-no. A partir de 1950 mais de setenta países implementaram o cargo, destes doze na América do Sul e Caribe. Em geral, o ombudsman tem um mandato com duração de quatro a seis anos, podendo ser renovado sem limites (a única exceção é a França, onde o mandato de seis anos não pode ser renovado). O ombudsman entra primeiramente nas empresas de jornalismo, depois no setor bancário, e para outros segmentos posteriormente, sendo no varejo onde se tem notado uma melhor atuação. (Giagrande e Figueiredo, 1997)”. “Desde a época da Colonização Portuguesa, conforme relata o acervo histórico, período marcado pela divisão territorial do Brasil em Capitanias Hereditárias, os Governos Gerais possuíam em suas estruturas Ouvidores, indicados pelo Rei de Portugal e que já naquela época, possuíam poderes de: Lavrar e promulgar leis; -Estabelecer Câmara de Vereadores; -Atuar como Comissários de Justiça; -Ouvir reclamações e reivindicações da população sobre improbidade e desmando por parte dos Servidores do Governo. Depois disso, na Suécia, em 1809, registra-se a implantação constitucional do ombudsman Sueco, cuja missão era verificar a observação das leis pelos tribunais tendo o poder de processar aqueles que cometessem ilegalidades e/ou negligência no cumprimento de seus deveres”. No Brasil, um ano após a Independência, inicia-se uma série de tentativas visando regulamentar, através de Lei, o Ombudsman Brasileiro. A primeira ocorreu em 1923, por

Ouvidoria, na nossa compreensão deve sobrepor-se a quaisquer estruturas, devendo situar-se, senão de maneira absolutamente independente, ou pelo menos, no nível administrativo mais alto. iniciativa do deputado constituinte José de Souza Mello e a última em 1998, em proposta apresentada pela Comissão de Notáveis, grupo coordenado pelo jurista Afonso Arinos, de incorporar o Instituto ao texto Constitucional. Apesar de todas as tentativas não existe a regulamentação da figura do Ouvidor na Constituição. “A presença do Ouvidor na Administração Pública devese a iniciativa independente dos Gestores Públicos que, no desenvolvimento do processo de modernização de cada Instituição e dentro do seu universo de atuação, identificaram a Ouvidoria como o melhor canal de comunicação para se relacionar com a sociedade”. “A Ouvidoria de Paranaguá foi instalada em 24 de agosto de 1724 e, de acordo com o termo de divisão das ouvidorias de São Paulo e Paranaguá, de 10 de fevereiro de 1725, compreendia todo o sul do Brasil até o Rio da Prata, incluindo a República do Uruguai. Antonio Alves Lanha Peixoto foi nomeado o primeiro ouvidor pós-capitania, mas até novembro daquele ano ainda não havia tomado posse, face às diversas atribuições que lhe foram ordenadas pelo Capitão General da Capitania de São Paulo”. “Em 20 de novembro de 1749, foi criada a ouvidoria de Santa Catarina e, dessa forma, dividido o imenso território sob o domínio de Paranaguá”. “Foram criadas várias comarcas em 1812 e pelo alvará de 19 de fevereiro daquele ano deu-se a transferência da sede da Ouvidoria de Paranaguá para a Vila de Curitiba, com a denominação de Ouvidoria de Paranaguá e as primeiras notícias sobre a instituição do ombudsman nos países nórdicos chegaram ao Brasil no início do século XIX. É interessante citar que, um ano após a independência do Brasil, em 1823, um deputado do Parlamento Imperial apresentou um projeto de lei propondo a criação da “figura” do ombudsman nacional.” “Curiosamente, somente 14 anos após a implementação constitucional do ombudsman na Suécia, em 1809, tal inovação pioneira já era proposta no então bizarro e exótico país tropical. A proposta de criação de um ombudsman brasileiro comungava das mesmas intenções do sueco. Tal proposta, contudo, não foi aceita pelos membros do Parlamento naquela época”. A discussão sobre o tema retornou apenas em 1960, quando se iniciaram os debates para o estabelecimento de 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


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uma instituição similar dentro do governo. O momento político era propício e, assim, várias agências governamentais implantaram a figura do ombudsman, principalmente nas áreas de saúde e previdência social. Foi identificado também no ombudsman um importante canal de comunicação direta com o consumidor, que conferia uma maior transparência às suas atividades. A empresa obteria uma presença mais satisfatória e diferenciada junto ao seu mercado, aperfeiçoando a qualidade de seus produtos e serviços. Muito recentemente estivemos em Brasília, na sede do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, onde, em parceria com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, realizou-se o 1º Simpósio de Ouvidorias Judiciais. No encontro das Ouvidorias daqueles dois Tribunais, pioneiros na implantação dos serviços, os participantes puderam relatar as suas experiências bem sucedidas sobre a atuação do referido Órgão. No Rio de Janeiro, estamos trabalhando muito para formatar o nosso Órgão Ouvidor, criado recentemente pela reforma administrativa levada a efeito sob a égide da Fundação Getúlio Vargas. No nosso Estado, a Ouvidoria foi colocada na estrutura da Corregedoria, o que, na verdade não está de acordo com a sua natureza institucional. Ouvidoria, na nossa compreensão deve sobrepor-se a quaisquer estruturas, devendo situar-se, senão de maneira absolutamente independente, ou pelo menos, no nível administrativo mais alto. É verdade que, ainda em fase de formatação final, a nossa Ouvidoria já vem executando as 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005

funções que lhe são inerentes, através dos diversos canais existentes no nosso Tribunal há muitos anos. “O Disque Justiça” e o “fale com o Corregedor” são manifestações legítimas daqueles trabalhos. Os números são impressionantes, revelando intensa atividade fiscalizadora . A par dos canais convencionais referidos, estamos vivendo presentemente no Estado do Rio de Janeiro, um momento excepcional: a criação do projeto “Encontro da Administração do Tribunal com as Comunidades”. Isto é, amiúde a Corregedoria e a Presidência têm se deslocado para as diversas Regiões do Estado, que chamamos de NURCS (Núcleos Regionais da Corregedoria do Estado do Rio de Janeiro). São 11 Regiões para onde temos ido, principalmente para ouvir as comunidades locais, respondendo as suas angústias e equacionando aquelas que não podemos resolver imediatamente, para numa 2ª etapa darmos à questão levantada a resposta devida. Hoje, no Rio de Janeiro não tratamos da questão jurisdicional de forma empírica. O Tribunal de Justiça do Rio está totalmente informatizado, o que não quer dizer que temos computadores para todos os juízes ou para todas as serventias. Não. Aqui se trata de um sistema de controle da Atividade Jurisdicional. A Presidência e a Corregedoria dispõem todos os dias dos números referentes aos mais diversos setores de atividade judicante e administrativa. Esses encontros a que vinha me referindo são feitos de forma técnica, em verdadeiras reuniões de trabalho, voltadas para o atendimento de nossa clientela. Antes de qualquer encontro, os nossos juízes auxiliares, em atividade precursora, deslocam-se para a sede dos Nurcs, onde, levantam os dados referentes ao movimento judiciário e às questões administrativas correlatas. Disso resulta um minucioso relatório que servirá de suporte para o diálogo que o presidente e o corregedor vão manter com a população, os serventuários e os juízes locais. Desconheço melhor maneira de gerir o serviço. A isso se pode chamar de gestão integrada, em que a população participa ativamente dos nossos problemas e das suas soluções. Data vênia, não há nada que se compare a isso sob o ponto de vista da Administração compartilhada. Agora podemos somar aos “Disque Justiça” e os “Fale com o Corregedor” esse canal aberto para a discussão dos grandes problemas que nos afligem. É com essa Ouvidoria que nós sempre sonhamos. O Poder Judiciário é um prestador de serviços e só estaremos bem diante da nossa consciência, se a população estiver bem servida. O nosso êxito na Administração depende, fundamentalmente desse feed back. Sem essa pesquisa de satisfação do público, ninguém pode afirmar que o trabalho vem sendo desenvolvido no caminho certo. A idéia evidentemente não é nova. Na Antiguidade Clássica, na Grécia e em Roma, era nas audiências públicas que o povo exigia os seus direitos perante as autoridades.


É TEMPO DE ACORDAR Antônio Ermírio de Moraes Empresário

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ntramos novamente no horário de verão. Na primeira semana de sua implantação, ouvi mais lamentos do que aplausos. É compreensível. O relógio biológico precisa de tempo para se ajustar. O Brasil também precisa de tempo para gerar a energia que venha a sustentar o seu crescimento. As obras nesse setor são demoradas. Tudo correndo bem, a construção de uma usina elétrica leva de quatro a cinco anos. E pouco tem sido construído. Mas esse tempo está se esvaindo. O novo apagão tem data marcada. Os otimistas prevêem falta de energia só em 2010. Os pessimistas acham que a eletricidade pode faltar a qualquer momento, basta a economia crescer mais de 5% ao ano. Fico no meio dessas projeções. Penso que o problema ocorrerá em 2008. Baseio-me em estimativas do Operador Nacional do Sistema (ONS), que leva em conta um crescimento da demanda energética da ordem de 5% ao ano. Ocorre que, nos últimos 3,5 anos, nenhuma usina hidroelétrica de grande porte entrou em operação. É uma tristeza assistir um quadro como esse em um país continental que tem uma incontida fome de energia. Muitos põem toda fé nas usinas termoelétricas, mas estas enfrentam o problema da escassez de gás natural. O Gasoduto Bolívia-Brasil pode ser ampliado para 30 milhões de metros cúbicos diários. Contando com 12 milhões de metros cúbicos diários que virão da Bacia de Santos a partir de 2008, a escassez

continuará, pois as atuais usinas térmicas requerem mais 40 milhões de metros cúbicos de gás por dia. As fontes alternativas de energia como a biomassa (bagaço de cana-de-açúcar) podem ajudar, é verdade, e tem a vantagem de provocarem pouca poluição. Mas elas também não têm condições para resolver o problema do país. É difícil conseguir economias de escala nesse terreno mesmo porque as safras são oscilantes. O diesel pode acionar as usinas termoelétricas. Entretanto, esse energético custa cinco vezes mais do que o gás. Não adianta rodear. No Brasil, a grande maioria da eletricidade tem origem hídrica. E temos muito a explorar nesse campo. Dispomos de muita água. E, ao contrário das usinas a carvão, petróleo ou gás, o custo de operação das hidroelétricas é muito baixo, com pouquíssima poluição. Nos últimos anos, São Pedro tem colaborado para encher os reservatórios das atuais usinas hidroelétricas. Não podemos nos queixar. Ele está fazendo a sua parte. Compete a nós construirmos novas usinas. Esse problema exige providências imediatas. Os leilões de energia futura, apesar de muito festejados, não são suficientes para garantir o abastecimento do país. O Brasil precisa construir aproximadamente uma Usina de Tucurui por ano para garantir o equilíbrio. Estamos muito longe disso. A inércia do presente é a condenação do futuro. Já é tempo de acordarmos. 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


LIBERDADE DE IMPRENSA Ministro Edson Vidigal Presidente do Superior Tribunal de Justiça

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HABEAS CORPUS Nº 49.517 - PI (2005/0183881-3) IMPETRANTE: THYAGO RIBEIRO SOARES IMPETRADO: DESEMBARGADOR RELATOR DO HC NR 05002559-7 DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PIAUÍ PACIENTE : JOSÉ ARIMATÉIA DE AZEVEDO DECISÃO Vistos, etc. O juiz José Bonifácio Júnior, da 6ª Vara Criminal de Teresina, PI, decretou a prisão preventiva do jornalista José de Arimatéia Azevedo. E ainda mandou fechar o seu “Portal AZ”. O Jornalista está preso sob a acusação de crime de imprensa, (Lei nº 5.250/67, Arts. 21 - difamação e 22 – 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005

Nota do Editor: Com satisfação publicamos a judiciosa decisão prolatada pelo ministro Edson Vidigal, presidente do Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus concedido ao jornalista Arimatéia de Azevedo, que se encontrava preso sob acusação de crime de Imprensa, além de sofrer a medida arbitrária de fechamento do seu “PORTAL AZ”. A medida libertária do eminente ministro Edson Vidigal, repercutiu na Câmara dos Deputados, merecendo aplausos e congratulações dos deputados Paes Ladim, Nazareno Fonteles e Costa Ferreira. Nos vários pronunciamentos havidos naquela casa do Congresso, foram feitas pesadas recriminações em face das arbitrariedades cometidas contra a liberdade de imprensa. Como membro do Conselho de Liberdade de Imprensa da ABI, e ainda, com pleno apoio e participação do presidente, jornalista Maurício Azedo, foram enviadas congratulações ao consagrado jurista, ministro Edson Vidigal, e oxalá, medidas arbitrárias como a acometida ao colega Arimatéia de Azevedo não tornem a se repetir, desrespeitando frontalmente o disposto no artigo 66 da Lei de Imprensa e os princípios empossados na Constituição Federal.

injúria). A outra acusação é coação no curso do processo (CP, Art. 344). Matérias veiculadas no portal, numa seção de humor, assinada por Chico Pitomba, espécie de Macaco Simão, da “Folha de S.Paulo”, referiam-se “às peripécias de uma fogosa advogada na Bahia” . Em outros comentários, Pitomba deslizou e escreveu – “Incrível, gente, como a bonita advogada Audrey Magalhães está se especializando em ser advogada contra o chefinho. Obsessão pura”. O chefinho, no caso, é o jornalista Arimatéia Azevedo, dono do portal e agora preso. A advogada, realmente, patrocina ações judiciais contra o dono e editor do “AZ”. Daí para isso tudo virar querela na Justiça é cabível no Estado de Direito Democrático. Houve tempo no Nordeste em que jornalista era obrigado a engolir, literalmente, o que escrevia. Agora, não. Na democracia, eventuais abusos hão que ser resolvidos na Justiça, observados rigorosamente o devido processo legal,


o amplo direito de defesa, o contraditório, a presunção da inocência. O humorismo de Pitomba no portal de Arimatéia logo se ectoplasmou, também, no crime do Código Penal, Art. 344 – coação no curso do processo. CP, Art.344 - “Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio contra a autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral. Pena – reclusão de um a quatro anos e multa de dois a dez mil cruzeiros, além de pena correspondente à violência”. Ao fundamentar seu decreto mandando prender o Jornalista, escreveu o Juiz: “Trata-se a toda evidência de delitos, em tese, de imprensa (Arts. 21 e 22) em concurso formal com o delito do Art. 344 do CP – coação no curso do processo, como se infere do seguinte julgado: “Para a plena caracterização do delito previsto no Art.344 do CP, é indispensável que o agente tenha a intenção de favorecer interesse próprio ou alheio em processo”. (Ap Crim – Quarta Câmara Criminal. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – Rel. Constantino Lisboa de Azevedo. Julgamento em 01.09.2005) No caso em apreço, o Sr Arimatéia Azevedo é parte querelada (ré) em Queixa Crime, que lhe promove o jornalista Rivanido Feitosa, cuja advogada é a Dra. Audrey Martins Magalhães, por conseqüência, caracteriza-se o delito, pelo menos em tese, do interesse do ora querelado Arimatéia Azevedo em favorecer interesse próprio. (...) É certo que o ordenamento pátrio consagrou o direito de liberdade de expressão e comunicação (Art.5º, IX da CF/88), mas tal prerrogativa deve ser cotejada com o resguardo da vida privada, observado o princípio da proporcionalidade entre as normas constitucionais. Ainda que se considere reconhecido o direito à divulgação dos fatos que são considerados públicos, da vida externa da pessoa humana, essa divulgação deve observar os limites da vida privada do indivíduo, sem o que a paz social é impossível. Dessa forma, os direitos individuais não podem ser exercidos de forma absoluta e ilimitada, na medida em que a sua prática danosa à ordem pública ou ao direito alheio a preservação da intimidade, notadamente de uma mulher, pode e deve ser considerada ilícita. Assim, o requerido Arimatéia Azevedo, na qualidade de editor do “Portal AZ”, ao publicar a notícia supra na internet (um tópico de seis linhas sob o título “Derrubadona”, na coluna de Chico Pitomba, digo eu), ao alcance do grande público, nos termos em que foi posta, evidentemente, provocou desnecessária e violenta agressão moral irreparável, a ora querelante e ofendida, demonstrando por outro lado, o querelado, conforme os indícios acostados extraídos da internet, que o seu objetivo era atingir a imagem da querelante/vítima, seja

como mulher, seja como advogada no desempenho do seu mister. Por essas razões e pela periculosidade ostentada pelo agente, no uso do “Portal AZ”, que demonstra o nexo entre a notícia incriminada e o fato de ser ele réu em ação penal, nesta 6ª Vara Criminal, em que é advogada a querelante/ vítima, caracterizado o crime denunciado de coação no curso do processo (Art. 344 do CP), punido com reclusão, recomenda tal circunstância, a medida cautelar requerida pela Querelante e pela Representante do Ministério Público, com o objetivo de manter a ordem pública e a paz social, abaladas pela notícia degradante. Havendo assim a prova material do crime pelos documentos de fls. 64/71 (cópias dos textos veiculados, digo eu) e indícios suficientes da autoria do delito do Art. 344 do CP c/c os Arts. 21 e 22 da Lei nº 5.250/67 (lei da ditadura, lembro eu), e tratando-se de competência deste Juízo, delineada pelos Arts. 76, III e 83 do CPP, acolho as alegações da Querelante e Requerimento do Ministério Público, para decretar a prisão preventiva de Jose de Arimateia Azevedo, nos termos dos Arts. 311, 312 e 313, I do CPP. Decreto, ainda, o trancamento do “Portal AZ” a requerimento da ofendida, respaldado pelo Ministério Público, até posterior deliberação, bem como, determinar a proibição da veiculação do nome da Querelante ou qualquer nota que a identifique”. E com estes fundamentos, o jornalista está preso há três dias. O pedido de habeas corpus, providenciado junto ao Tribunal de Justiça do Piauí, distribuído um dia depois, ainda não foi apreciado porque o Relator, desembargador Luis Fortes do Rego, pediu informações no prazo de dez dias, “não obstante já estar o mesmo instruído com as razões das quais valeu-se o juiz de 1ª instância para decidir”, registra a defesa. Daí este habeas corpus aqui, no Superior Tribunal de Justiça, com pedido de liminar. O pedido de informações, sustenta a defesa, tornou: “(...) totalmente inócuo um agravo regimental, porquanto o tribunal não funcionará nos dias 31, 01 e 02 de novembro próximos, ou seja, o julgamento de eventual agravo regimental apenas poderia acontecer no dia 08 de novembro, data da próxima sessão, e caso possível adentrar em pauta. Não julgado naquele dia, o que não se revela improvável, apenas aos 22 dias do mês de novembro haverá novel oportunidade, vez que o dia 15 é, notoriamente, feriado nacional. Mesmo ciente de tais percalços o Desembargador relator negou-se a decidir acerca do pleito liminar. Vê-se, portanto, através dos fatos, que se engendra um abuso sem precedentes contra o paciente, o qual já está durante todo este iter processual preso e, mesmo sem o desembargador relator ciente da flagrante ofensa ao direito fundamental ora ventilado, permanece a patrocinar a medida restritiva da 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


liberdade, que se deu sob o fundamento cautelar e, nem ao menos acurado olhar, poderia subsistir”. A petição aqui sob meu exame argumenta que o ato omissivo do Desembargador Relator, não apreciando o pedido de liminar, não obstante as notórias dificuldades para o julgamento, em tempo razoável, do mérito da impetração, há que ser considerado como indeferitório, de modo a justificar a intervenção do Superior Tribunal de Justiça. O óbice do entendimento firmado no STJ, segundo o qual não cabe liminar em habeas corpus contra despacho indeferitório de liminar, estaria superado pelo Supremo Tribunal Federal, que também editou súmula no mesmo sentido e, no entanto, a harmonizou com mandamentos constitucionais que não admitem flagrante ilegalidade. O decreto de prisão preventiva, aqui atacado, não se sustenta, no entender da defesa, porque: “(...) 1. carece de qualquer fundamentação acerca da necessidade da cautelaridade exarada, 2. inexiste, ainda, qualquer possibilidade de prejuízo à instrução processual, 3. não houve indício de prova de que tenha sido o paciente, sequer, o autor do fato; 4. o fato imputado é atípico e, 5., ainda, caso crime houvesse (o que se admite apenas no resguardo argumentativo), carece o delito, mesmo em tese, de potencialidade lesiva, vez que cominação de pena mínima é de apenas 01 (um) ano, sendo, pois, desarrazoada, desproporcional, ilegal e abusiva a subsistência da vertente ordem de prisão preventiva”. Ademais, acrescenta, nem há indício de autoria, até porque os textos incriminados não foram escritos pelo dono e editor do portal e, sim, alguns enviados por leitores e outros de colaboradores do site (sendo um deles, digo eu, o Chico Pitomba). Aduz, ainda, a inicial: “O que nos causa estranheza, entretanto, é que, mesmo ciente de tal fato, limitou-se o Ministério Público, ao realizar sua denúncia, a determinar a prisão de editor chefe do portal, sem realizar qualquer sorte de investigações a fim de identificar os reais agressores e, ainda, fundado na falsa perspectiva de que a responsabilidade por crimes de imprensa fossem, sempre, do editor chefe. A verdade é que a responsabilidade penal nestes delitos deve ser apurada na forma do Capítulo V, Seção I, da Lei de Imprensa, onde a mesma declina: ‘Art. 37. São responsáveis pelos crimes cometidos através da imprensa e das emissoras de radiofusão, sucessivamente: I – O autor do escrito ou transmissão incriminada, sendo pessoa idônea e residente no País, salvo tratando-se de reprodução feita sem o seu consentimento, caso em que responderá como seu autor quem a tiver reproduzido;’ Ora, o autor não é o Sr. Arimatéia Azevedo, que é inclusive colunista político. Noutra face, se até agora não se identificou o real autor das notas, não foi por outro motivo que não a omissão do próprio órgão ministerial em solicitar a realização das investigações pertinentes e limitando-se, de 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005

modo abusivo, a requerer a prisão do ora paciente, em franco desacordo com a disciplina legal. Ademais, absurda se faz a prisão cautelar do paciente ante as vedações expostas na própria lei de imprensa, art. 66: ‘Art. 66. O jornalista profissional não poderá ser detido nem recolhido preso antes da sentença transitada em julgado; em qualquer caso, somente em sala decente, arejada e onde encontre todas as comodidades. Parágrafo único. A pena de prisão de jornalista será cumprida em estabelecimento distinto dos que são destinados a réus de crimes comum e sem sujeição a qualquer regime penitenciário ou carcerário’. Mais uma vez – continua a defesa – revela-se claro o engendramento de uma situação que, não se sabe por qual fundamento, e ao constante arrepio legal, tem por escopo único levar à prisão um jornalista político, que não oferece qualquer sorte de lesividade ou ofensividade a que a esfera seja do meio social. Em verdade, a denúncia de coação processual é parte de uma armadilha que visa escapar a questão do foco que deveras existe, ou seja, a existência em tese de delito de imprensa. É isto que se julga e é isto que motivou toda queixa e decisão. A prisão do jornalista por coação e, bem assim, a determinação de lacrar-se o portal de notícias é totalmente desproporcional, casuística e, em hipótese alguma, contempla a luta por valores maiores que não os refletidos nos crimes de imprensa. Busca, então, o nobre órgão ministerial afastar-se da delituosidade vinculada a atividade de imprensa, que em tese pode existir e através da qual não se permitiria, juridicamente, a execução da coação ilegal que se perpetra e, a par disto, fundamenta-se, forçosamente, a existência de coação no curso de um processo que, inclusive, já está instruído, ou seja, inexiste razão por completa para a decisão segregativa (...)” Decompondo o dispositivo do Código Penal, Art. 344, (coação no curso do processo), a defesa lembra que o mencionado dispositivo tem como tipo objetivo as condutas de usar “violência ou grave ameaça”. Relata, também, que: “A violência, frise-se, deve ser física, como bem assinala o prof. Damásio, Curso de Direito Penal, 4.vol.10ª ed., p.280) ao discorrer sobre o tema: ‘trata-se de violência física, exercida contra pessoa’ Já a grave ameaça é consubstanciada na promessa de causar mal futuro, sério e verossímil, requisitos que, em nenhum momento, restaram evidenciados, inclusive pela narrativa da própria representante. (...) Simples notas de fofocas não têm o condão de infligir a pecha de grave ameaça. Noutro flanco, inexiste um mal futuro a ser suportado eventualmente pela queixosa.” Depois de rebater a invocação dos requisitos do CPP, Art.312, para a prisão preventiva, sustentando sua inaplicabilidade ao caso, a defesa pede, ao final, concessão da liminar para reformar a decisão e, in continenti, determine-se a expedição de alvará de soltura, revogando o mandado de prisão preventivo expedido em desfavor


do ora paciente, José Arimatéia de Azevedo; seja ouvida a autoridade coatora; seja ouvido o representante do Ministério Público; seja, ao final, confirmada a ordem para, em definitivo, determinar-se a ilegalidade do mandado de prisão expedido, julgando-se procedente a presente ordem de habeas corpus e, ainda, determinando-se o trancamento da ação penal onde se apura o alegado crime de coação no curso do processo. Decido. Há entendimento reiterado neste Superior Tribunal de Justiça de que o não conhecimento de um pedido ou sua postergação injustificada, sendo omissão, configura denegação, o que por si atrai a nossa competência para conhecer. Nesse sentido: HC 40.414-SP, Rel. Min. Paulo Medina, DJ de 03.02.05. É o caso aqui. O Desembargador Relator, mesmo tendo em mãos cópia do inteiro teor do processo do primeiro grau, portanto, com todos os elementos da convicção do juiz apontado como autoridade coatora, ainda assim, deixando de examinar o pedido de liminar, deu prazo de dez dias para as informações. Na prática, inviabilizou a prestação jurisdicional mediante o habeas corpus, que constitui providência urgente, de rito sumário, direito constitucional individual do cidadão. A informação comprovada de que, com muita sorte, o Jornalista que está preso só poderá ter o seu pedido de soltura apreciado por volta do fim do mês de novembro, diz mais que qualquer outro argumento. A Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal afirma não competir àquela Corte “conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão de relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere liminar”. Esta Corte também partilha do mesmo entendimento, ressalvando a possibilidade de impetração de habeas corpus em casos tais somente na hipótese de flagrante ilegalidade ou de decisão teratológica. A propósito: “PROCESSO CIVIL - HABEAS CORPUS - LIMINAR - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - BUSCA E APREENSÃO DE AUTOMÓVEL - CONVERSÃO EM DEPÓSITO - PRISÃO CIVIL - WRIT CONTRA ATO DE DESEMBARGADOR - CABIMENTO - CONCESSÃO DA ORDEM. 1 - Quando manifesta a ilegalidade da decisão, tem-se admitido o processamento do writ contra decisão liminar de relator em habeas corpus anterior, evitando, destarte, a ocorrência ou manutenção da coação ilegal (v.g. HC 35.221/GO, Rel. ministro CESAR ASFOR ROCHA, DJ 25.10.2004; HC 13.878/DF, Rel. ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, DJ 11.12.2000; HC 15.782/MA, Rel. ministra NANCY ANDRIGHI, DJU de 23.04.2001) (...)”. (HC 38125, Rel min. Jorge Scartezzini, DJ de 25.05.05). Recentemente, inclusive, esclareceu a Eg. Corte, sob a relatoria do ministro Carlos Veloso, no HC 86.864-9 São Paulo, que “o enunciado 691 não impede o conhecimento

do habeas corpus, se evidenciado flagrante constrangimento ilegal”. Não há, prima facie, a menor dúvida, de que estamos aqui diante de um manifesto constrangimento ilegal. Na democracia, não se prende um jornalista pelo que escreve ou pelo que fala. A força, qualquer que seja, tem que obedecer à idéia. A imprensa livre é essencial para a democracia, ainda que livre demais, até para os excessos. A Constituição da República ordena o que fazer nessas situações – direito de resposta proporcional à ofensa, direito à indenização por dano moral, afora as outras sanções previstas na lei penal. Prender jornalistas; censurar redações; apreender jornais, livros, revistas; tirar rádios do ar, portais ou televisões só configura violação ao direito da sociedade à informação. A sociedade tem o direito de ser bem informada. Se essa informação não é de boa qualidade a própria sociedade a rejeita, a recusa, a condena. A nenhuma autoridade é permitido interpretar a lei a seu modo para constranger o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações que a lei estabelecer. Dois comandos constitucionais chamam aqui a atenção diante deste caso: “CF, Art. 5º. LXVI - Ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança. LXI – Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada a autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar.” A liberdade é a regra no Estado de Direito Democrático; a restrição à liberdade é exceção, que deve ser excepcionalíssima. O decreto de prisão preventiva deve ser devidamente motivado, surgindo como resultado da análise de fatos concretos. É imprescindível que se demonstre, através de elementos objetivos, o periculum libertatis, ou seja, tem que restar claro que a liberdade do réu poderá causar grandes danos à paz social, à instrução criminal ou à realização da norma repressiva. Padece de razoabilidade a decisão que impõe o sacrifício da liberdade individual com base em referência genérica aos pressupostos determinados no dispositivo procedimental. Assim, presentes os pressupostos ensejadores da medida liminar pleiteada e, consoante o entendimento recente da Excelsa Corte, defiro o pedido liminar e suspendo em seu inteiro teor a Decisão ora atacada, da lavra do Dr Juiz da 6ª Vara Criminal de Teresina, PI. Determino a imediata expedição do alvará de soltura em favor do ora paciente, José Arimatéia de Azevedo. Publique-se. Intime-se. Brasília, 29 de outubro de 2005. Ministro Edson Vidigal 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


A TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO Ives Gandra Martins Advogado e Membro do Conselho Editorial

P

reocupa-me, sobremaneira, a forma açodada como tem o governo federal trabalhado para impor um projeto de alto risco e que pode agravar a doença do Rio São Francisco, já padecendo, na foz, de recuo das águas, por insuficiência de vazão. A ANA (Agência Nacional de Água), encarregada expedir o certificado de sustentabilidade hídrica e de conceder a outorga de uso definitiva, demitiu-se de colher os dados para elaboração do balanço hídrico indispensável para aferir se a obra é técnica e economicamente viável. Passou essa incumbência para o Ministério da Integração Nacional, que, por sua vez, oficiou os próprios estados para que enviassem demonstrativos dos valores de demanda e de oferta hídricas em seus territórios. Ocorre que tal solicitação foi dirigida, exclusivamente,

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aos estados das bacias receptoras, ou seja, às unidades da Federação pretensamente beneficiárias da eventual transposição, sem consultar os estados integrantes da bacia doadora da água, certamente os únicos prejudicados pelo projeto de transposição, da forma como elaborado. Ora, embora não seja técnico na matéria, parece-me evidente que a falta de demonstrativos relativos à demanda e oferta hídricas dos estados doadores inviabiliza a elaboração de um balanço hídrico minimamente confiável, o que pode lançar o país em desastre ambiental e econômico sem precedentes. Ademais, do ponto de vista jurídico, nada justifica o tratamento diferenciado que o Ministério da Integração Nacional deu aos estados beneficiários em relação aos estados doadores. Por outro lado, a obra foi orçada para permitir,


Arquivo excepcionalmente, a captação da vazão máxima diária de 114,3 m3/s e instantânea de 127m3/s, - a depender de um nível de água do reservatório de Sobradinho que se verifica de 7 em 7 anos - e para permitir a captação de uma vazão normal de 26,4m3/s, deixando claro que se trata de obra superdimensionada! Note-se que os dados que vêm sendo coletados pelo Ministério da Integração Nacional junto aos Estados integrantes das bacias receptoras carecem de consistência em relação àqueles constantes do Estudo de Impacto Ambiental (EIA RIMA) - que já haviam sido aprovados - e a outros dados apresentados por esses mesmos estados em publicações oficiais. A falta de consulta aos estados doadores poderá levar Minas e Bahia a adotar, em relação aos rios estaduais que alimentam o São Francisco, critérios de utilização em benefício exclusivo de sua população, tornando a obra absolutamente inútil. Enfim, a transposição afigura-se obra desnecessária - até porque órgãos técnicos nacionais e internacionais já demonstraram que os estados das bacias receptoras dispõem de oferta de água suficiente - que poderá aumentar a doença do ‘’Velho Chico’’, provocar uma catástrofe ambiental, concorrer para uma drástica redução da oferta de energia no Nordeste, sem falar no previsível risco de prejuízos aos cofres públicos federal, estaduais e municipais. Passa, por outro lado, sobre a legislação que instituiu o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos (Lei 9984/00), ao desrespeitar as prioridades, limites e critérios de outorga para uso das águas estabelecidos no Plano Hídrico da Bacia do São Francisco, elaborado pelo respectivo Comitê. Aliás, a competência do Comitê da Bacia do São Francisco - que já vinha elaborando projeto de transposição, respeitados os parâmetros do plano de recursos hídricos por ele elaborado - foi usurpada pelo Conselho Nacional para aprovação do projeto do governo federal. É de se lembrar que os chineses levaram 50 anos para decidir a transposição do Rio Amarelo, enquanto o governo Lula pretende dar início à obra de tal envergadura - e de resultado tão duvidoso - nos poucos meses que ainda lhe restam. Estou convencido de que matéria dessa magnitude só poderia ser deflagrada em início de mandato, com ampla discussão, coleta e análise dos dados de todos os estados envolvidos, inclusive os dos doadores - que decididamente não foram colhidos - e após a revitalização do rio. O governo Lula precisa, de rigor, não se deixar seduzir por medidas de palanque, mas que são capazes de prejudicar grandemente o país e pôr em xeque o pacto federativo. Ele é presidente do Brasil, não devendo tratar os estados diferentemente, de modo a privilegiar alguns em detrimento de outros e de toda a federação.

A falta de consulta aos estados doadores poderá levar Minas e Bahia a adotar, em relação aos rios estaduais que alimentam o São Francisco, critérios de utilização em benefício exclusivo de sua população (...)

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Garantia dos direitos: exigência democrática Dalmo de Abreu Dallari

Jurista

Arquivo

O

direito é uma necessidade essencial dos seres humanos, sendo indispensável para que as pessoas convivam pacificamente, mantendo-se livres dentro de certas regras básicas, procurando conciliar os interesses individuais de cada um e aqueles que são de todos. No Estado moderno, a partir do século 18, ficou estabelecido que para maior certeza e segurança dos direitos às leis, nas quais estão registrados os direitos vigentes, deverão ser escritas impondo-se à obediência de todos, inclusive governantes e governados, sem que nenhuma pessoa e nenhum órgão do Estado fique isento da obrigação de respeitar a lei. Tudo isso vem à lembrança num momento crítico da vida política brasileira, em que legisladores pretendem que a independência do Legislativo signifique que estes não precisem respeitar a lei e estão imunes ao controle da legalidade de seus atos. Tudo começou com a instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito, que, nos termos do artigo 58 da Constituição, podem ser criadas nas Casas do Congresso Nacional para investigar fato determinado’’. Desde o início chamou a atenção e foi objeto de comentários e advertências a imprecisão quanto ao objeto da investigação. Logo em seguida ficou evidente a falta de preparo de muitos membros das Comissões, pois além de decisões arbitrárias, dando às testemunhas, com absoluta evidência, o caráter de acusados, 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005


foi sendo muito alargado o âmbito das investigações, com desprezo da exigência constitucional de precisão quanto ao fato a ser investigado, além da prática de muitas arbitrariedades, convertendo-se os inquéritos em processo inquisitorial, não faltando agressões verbais, às vezes de extrema grosseria, aos depoentes e às depoentes. A par disso, ficou também patenteada a parcialidade de muitos dos participantes, assim como de vários dos depoentes, que assumiram desde logo a postura de acusadores irresponsáveis e levianos, pois se foram acumulando as afirmações do tipo eu fiquei sabendo disso, mas não tenho como provar, não tenho provas, mas foi assim que aconteceu, quem me contou foi um amigo que já morreu há dois ou três anos, ou foi um colaborador da pessoa que estou acusando e que, infelizmente, morreu num acidente, além dos eu acho que..., ou tenho a impressão de que, ou ainda não posso provar, mas não acredito que tenha sido diferente’’. Agravando ainda mais as arbitrariedades houve cerceamento do direito de defesa dos acusados, inclusive com ameaças e tentativas de impedir que os acusados tivessem a assistência de um advogado, não faltando atitudes agressivas contra os advogados legalmente constituídos, além da denegação da possibilidade de produzir provas que poderiam deixar evidente a inconsistência das acusações. Foi freqüentemente ignorado o direito assegurado expressamente pelo artigo 5º, inciso LV, da Constituição, segundo o qual aos acusados, em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes’’. Como era facilmente previsível e inúmeras vezes foi lembrado por profissionais da área jurídica, esse procedimento arbitrário levaria, fatalmente, a pedidos de proteção judicial dos direitos, o que não poderia deixar de ser atendido pelo Judiciário tendo em conta a evidência das ilegalidades. E foi o que aconteceu, pois diversas vezes as vítimas dos abusos recorreram ao Supremo Tribunal Federal, que é o Tribunal competente quando o ofensor dos direitos for um órgão do Congresso Nacional. Em várias oportunidades o Supremo Tribunal concedeu a proteção solicitada, sendo oportuno assinalar que em nenhum dos casos o Tribunal decidiu quanto ao mérito das acusações, afirmando a inocência ou culpa do acusado. Longe disso, as decisões judiciais limitaram-se a determinar que sejam cumpridos os preceitos constitucionais, especialmente quanto ao direito de ampla defesa. Inconformados com essas decisões, alguns parlamentares acusaram o Supremo Tribunal de estar invadindo a esfera privativa do Legislativo, afrontando o princípio da separação dos Poderes. Na realidade, por ignorância ou conveniência esses parlamentares não sabiam ou não se lembraram do inciso XXXV do artigo 5º da Constituição, que expressamente dispõe que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’’. Nem a lei nem preceito regimental ou qualquer outro ato normativo poderá impedir que a vítima de uma lesão ou ameaça a um direito peça a proteção do Judiciário. Num Estado Democrático de Direito ninguém está autorizado a ofender a lei e a praticar atos arbitrários.

O DIREITO É UMA NECESSIDADE ESSENCIAL DOS SERES HUMANOS, SENDO INDISPENSÁVEL PARA QUE AS PESSOAS CONVIVAM PACIFICAMENTE (...)

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A GRATUIDADE NOS TRANSPORTES COLETIVOS Miguel Reale Jurista

Arquivo

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gratuidade nos transportes coletivos , levantada em face da leviana iniciativa de legisladores estaduais e municipais, visando a obtenção de prestígio político-eleitoreiro, - sem medir as conseqüências do fato - , tem e vem causando na justiça inúmeras controvérsias, além de despertar a frustração nos beneficiários das despropositadas iniciativas. Não deixa de causar pasmo e revolta que políticos queiram formar “clientela eleitoral” mediante o irresponsável artifício de prometer e oferecer aos eleitores a gratuidade indiscriminada nos transportes coletivos, olvidando intencionalmente o parágrafo 2º do artigo da 112 da referida Constituição, in litteres. “ 2º - Não será objeto de deliberação proposta que vise conceder gratuidade em serviço público prestado de forma indireta sem a correspondente indicação da fonte de custeio.” Por oportuno e lembrança aos legisladores interessados, transcrevemos o convincente parecer do grande e consagrado mestre do direito, o jurista e professor Miguel Reale quanto à gratuidade para os idosos: “Art.230 – A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindolhes o direito à vida. Parágrafo 1º - Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares. 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005


Fotos cedidas pelo jornal O Transporte

Parágrafo 2 – Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos”. À primeira vista, pode parecer que esta última determinação não comporta dúvida a tal ponto que alguém poderia invocar a superada parêmia: interpretatio in claris, mas estariam, a meu ver, em irrecusável erro de hermenêutica, quer sob o ponto de vista lógico-sistemático, quer sob o prisma teleológico-político de fundamental importância na interpretação dos textos constitucionais. Se não vejamos. Em sucinto trabalho, dedicado à “Hermenêutica jurídica estrutural” – que considero a mais condizente com as exigências ético-politicas de nosso tempo – lembro de algumas diretrizes que me parecem, hoje em dia, dominantes em matéria de interpretação do Direito, pedindo vênia para lembrar aqui três desta notas características, a saber: a) A interpretação das normas jurídicas tem sempre caráter unitário, devendo as suas diversas formas ser consideradas momentos necessários de uma unidade de compreensão (unidade do processo hermenêutico); b) Toda interpretação jurídica é de natureza axiológica, isto é, pressupõe a valoração objetivada nas proposições normativas (natureza axiológica do ato interpretativo); c) Toda interpretação jurídica dá-se necessariamente

num contexto, isto é, em função da estrutura global do ordenamento (natureza integrada do ato interpretativo). (Filosofia e Ciência do direito, São Paulo, 1978, P.81) Esta última diretriz vincula-se à chamada “interpretação sistemática”, que resulta da natureza da mesma experiência jurídica, tal como Carlos Maximiliano, em obra até hoje não superada, soube expressar de maneira admirável, com esta sábia advertência: “Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma: acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e se restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em campos diversos. Cada preceito, portanto, é membro de um grande todo; por isso de exame em conjunto resulta bastante luz para o caso em apreço”. (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª ed., Rio de Janeiro, 1979, p. 128) 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


O que o legislador constituinte teve em vista foi evitar o desamparo do idoso, não havendo necessidade de invocar mestres da língua para reconhecer-se que “amparo” significa auxílio ou ajuda a quem esteja em estado de necessidade.

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É a razão pela qual o mesmo jurisconsulto já escrevera, páginas antes, como que antevendo a hipótese examinada no presente parecer: “Nada de exclusivo apego aos vocábulos. O dever do juiz não é aplicar os parágrafos isolados (sic) e, sim, os princípios jurídicos em boa hora cristalizados em normas jurídicas”. (Op. Cit. P. 119) Em sintonia com tais conceitos, lembro a lúcida advertência de Francesco Ferrara, em conhecida monografia: “As palavras hão de entender-se na sua conexão, isto é, o pensamento da lei deve inferir-se do complexo das palavras usadas e não de fragmentos destacados, deixando-se no escuro uma parte da disposição. Deve-se partir do conceito de todas as palavras têm no discurso uma função e um sentido próprio, de que neste não há supérfluo ou contraditório, e por isso o sentido literal há de surgir da compreensão harmônica de todo o contexto”. (Interpretação e Aplicação das Leis, 2ª ed., Ed. Saraiva, 1940, tradução de Manuel A.D. de Andrade, p.35) É em se tratando de interpretação de normas constitucionais que mais se impõe a subordinação do intérprete às razões decorrentes dos processos teleológico e sistemático, sempre de maneira conjugada, a fim de que a finalidade ética, política, social ou econômica da regra constitucional seja realizada no contexto unitário da previsão legislativa. Apreciando, preliminarmente, o objeto da consulta à luz do “processo sistemático”, observo que este se impõe quer no exame isolado do artigo 230, quer em referencia à totalidade do texto constitucional. Efetivamente, analisando-se o citado art. 230 como norma autônoma, verifica-se que a mens legis atende a evidente finalidade assistencial às pessoas idosas, estabelecendo o dever de ampará-las, exigível da família, da sociedade e do Estado, tal como é enunciado no caput da norma, sendo sabido que é nele que reside o valor básico da regra jurídica. O que o legislador constituinte teve em vista foi evitar o desamparo do idoso, não havendo necessidade de invocar mestres da língua para reconhecer-se que “amparo” significa auxílio ou ajuda a quem esteja em estado de necessidade. Ora, como os parágrafos devem ser necessariamente interpretados em função da norma principal, por visarem a especificar ou excepcionar algo em razão do disposto naquela, parece-me imperativo concluir-se que a gratuidade dos transportes coletivos urbanos, declarada no parágrafo 2º, somente se refere aos idosos carentes de amparo. A bem ver, ao proclamar o princípio da solidariedade familiar, social e estatal para com as pessoas idosas desamparadas, a fim de assegurar-lhes “participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantir-lhes o direito à vida”, o legislador, no parágrafo 2º “antecipa uma das possíveis formas de amparo por parte do Poder Público”, consistente na isenção de pagamento do transporte coletivo urbano, que é da competência dos Municípios. Não se trata, em suma, de um direito universal, assegurado a todo e qualquer idoso. Se tivesse essa desmedida amplitude, a disposição não seria reduzida a parágrafo de um artigo de incidência restrita, mas iria integrar a numerosa lista dos direitos e


garantias fundamentais que compõem o título II da Constituição, no minucioso artigo 5º, ou não menos detalhado artigo 6º relativo aos “direitos sociais”, Donde resulta que também do ponto de vista sistemático global, cabe levar em conta a estrutura e o espírito da nova Carta Magna, a qual, em mais de um tópico, se revela fiel à regra de igualdade, tal como foi definida por Aristóteles, e que consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualem. Por outras palavras, o parágrafo 2º do artigo 230 “não consagra um privilégio a favor das pessoas idosas abandonadas, desnecessitadas do amparo do Estado”. Por outro lado, nota-se que a interpretação lata e indiscriminada do parágrafo 2º do artigo 230 viria redundar prejuízo para a comunidade, visto como a isenção concedida a todos os idosos, abstração feita de sua condição econômica, não poderia deixar de ter efeitos tarifários, onerando os demais usuários do transporte coletivo urbano, a maioria formada de pessoas de modestos recursos. Desse modo, o privilégio concedido injustificadamente a indivíduos desnecessitados de amparo redundaria em ônus para a classe média em geral, o que positivamente ninguém dirá ter sido objetivo do legislador constituinte, nem resulta da disposição constitucional interpretada segundo suas verdadeira finalidade ético-social. Outro argumento em abono da interpretação estrita do parágrafo 2º, é que, em regra as concessionárias ou permissionárias de serviço público, por uma razão primordial de política tarifária, devem auferir um quantum que lhes permita oferecer “serviço adequado”, atendendo-se ao caráter especial de seu contrato, como previsto no parágrafo único do artigo 175 da Constituição. Nem se diga que a nova Carta exclui a referência preservação do equilíbrio econômico do contrato permitido ou concedido, porque essa exclusão decorre do fato de tratar-se de um princípio de per si inerente a esse tipo de contrato, tal como é reconhecido pela unanimidade dos mestres de Direito Administrativo. Ninguém de bom senso poderá, em verdade, exigir “serviço adequado” sem que haja correspondência e proporcionalidade entre seu custo e a importância indispensável à sua manutenção, bem como a remuneração devida ao capital, uma vez que a Constituição, erigindo a livre iniciativa a princípio fundamental do Estado brasileiro, logo no artigo 1º, somente condena os “lucros arbitrários”, conforme reza o parágrafo 4º do artigo 173. Não tem cabimento, por conseguinte, a interpretação isolada e aberrante de um parágrafo, destacado de seu contexto que importaria, outrossim, em prejuízo inegável a um serviço público permitido, ex vi de competência conferida ao Município. Como se vê, seja pela força de interpretação sistemática, seja em razão dos valores sociais e econômicos em jogo (elementos essenciais da interpretação teleológica), a única conclusão que se impõe é no sentido que gratuidade nos transportes coletivos urbanos somente foi assegurada aos idosos necessitados de amparo, sendo manifestos os absurdos a que nos levaria a interpretação contrária. É o caso de lembrar a velha e sábia parêmia interpretatio illa sumenda quai absurdum eviatatur.

(...)o privilégio concedido injustificadamente a indivíduos desnecessitados de amparo redundaria em ônus para a classe média em geral (...)

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DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL PELA POSSE – TRABALHO José Carlos Zebulum Juiz Federal Substituto da 27ª Vara Federal/SJRJ Mestrando em Direito Civil Pela Uerj

Arquivo

Este trabalho analisa o direito de propriedade e sua evolução, notadamente diante previsão constitucional que impõe o atendimento de sua função social. A abordagem segue para uma análise do artigo 1.228 do Código Civil, notadamente seus parágrafos 4ª e 5º, que instituem uma nova modalidade de aquisição da propriedade, que alguns autores já vêm chamando desapropriação judicial pela posse – trabalho.

N

ão é de hoje a preocupação da doutrina e dos aplicadores do Direito com o princípio da função social da propriedade e da posse. O princípio, no entanto, evoluiu de mero temperamento ao individualismo que marcou o tratamento do direito de propriedade na codificação oitocentista, para a concepção que se tem hoje, segundo a qual o princípio “passa a integrar o conceito jurídico de propriedade, (...) de modo a determinar profundas alterações estruturais na sua interioridade”1. De fato, a função social não pode ser vista como mero apêndice do direito de propriedade, sendo muito mais que isso, eis que, como afirma Zavascki, “por função social da propriedade há de se entender o princípio que diz respeito à utilização dos bens, e não à sua titularidade jurídica, a significar que sua força normativa ocorre independentemente 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005

da específica consideração de quem detenha o título jurídico de proprietário. Os bens, no seu sentido mais amplo, as propriedades, genericamente consideradas, é que estão submetidas a uma destinação social, e não o direito de propriedade em si mesmo”2. A idéia de que a propriedade deve cumprir a sua função social insere-se em um contexto maior, mais abrangente, que diz respeito ao movimento de funcionalização dos direitos subjetivos, a partir do qual, desde o final do século XIX, vem-se promovendo a reconstrução de institutos centrais do Direito moderno, tais como a propriedade e o contrato. Adere-se, desde então, ao entendimento de que os poderes do titular de um direito subjetivo estão condicionados pela respectiva função, rejeitando-se a visão clássica da prevalência da vontade do titular, voltada exclusivamente para a defesa de seus próprios interesses. A perspectiva da funcionalização


do direito subjetivo envolve a atribuição de um poder tendo em vista certa finalidade, ou ainda, a outorga de um poder para a satisfação de interesses não meramente próprios ou individuais, mas de terceiros. O artigo 1.228 do novo Código Civil estabelece que “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Expõe-se, assim, o núcleo interno ou econômico do domínio (faculdades de usar, gozar e dispor) e o núcleo externo ou jurídico (a tutela do domínio), que compõem o aspecto estrutural da propriedade. Mas o novo Código trouxe importantes inovações, destacando-se, inicialmente, o § 1º, pelo qual “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. Passa, assim, o novo o Código, a abordar o aspecto funcional da propriedade, matéria até então absolutamente estranha ao direito civil codificado pátrio. Persegue, desta feita, a tutela da função social da propriedade privada, já delineada na Constituição Federal de 1988, vinculando o exercício do direito de propriedade às suas finalidades econômicas e sociais.  Inovou o Código de 2002, no entanto, de forma mais veemente, nos parágrafos 4º e 5º do artigo 1.228, instituindo o legislador uma forma peculiar de desapropriação por ato judicial, fundada na utilidade social da posse e na destinação do bem expropriado. Extrapola-se, assim, a idéia de função social da propriedade, para se chegar à função social da posse, instituto que, no novo Código, não se prende mais à concepção abstrata de Von Jhering, veiculada, inclusive, no artigo 485 do Código de 19163. Adota o legislador, desta feita, uma interessante postura de conferir uma tutela especial à “posse qualificada” ou “posse-trabalho”, ou seja, aquela enriquecida pelos valores do trabalho, “que se traduz em trabalho criador, quer este se corporifique na construção de uma residência, quer se concretize em investimento de caráter produtivo ou cultural”4. Estabelece, assim, um discrime em relação à “posse simples”, aquela que se caracteriza como um simples poder manifestado sobre uma coisa, ou ainda, o poder de fato sobre coisa própria ou alheia, exercido com estabilidade e autonomia, e tutelado juridicamente pelos interditos. Estas singelas considerações pretendem, justamente, tratar da importância da inovação trazida pelo novo Código, inspirada no sentido social do direito de propriedade e no conceito de posse-trabalho. A adoção desta nova modalidade expropriatória pelo Código Civil de 2002, que tem na sua essência a tutela da posse-trabalho, é, sem dúvida, bastante oportuna, tendo em vista que a questão fundiária no Brasil apresentase problemática e mal resolvida, o que se comprova

A idéia de que a propriedade deve cumprir a sua função social insere-se em um contexto maior, mais abrangente, que diz respeito ao movimento de funcionalização dos direitos subjetivos (...)

pela freqüência e intensidade de movimentos sociais deflagrados em busca de soluções para a difícil situação em que se encontra grande parte da população brasileira, que ainda luta para conquistar na prática, um direito que a Constituição Federal já lhe outorgara: o direito à moradia. Atribui-se à doutrina e à própria jurisprudência a importante tarefa de identificar a real natureza jurídica desta nova modalidade de aquisição e conseqüente perda da propriedade imóvel estabelecida na lei civil, sem perder de vista o regramento constitucional da matéria. Devem ser estabelecidos os contornos básicos do instituto, evidenciando as características que o aproximam de outras formas afins já previstas na legislação pátria, tais como a usucapião e a desapropriação, ressaltando os aspectos que as diferenciam. O instituto deve ser estudado no contexto das profundas transformações introduzidas pela Constituição Federal de 1988 na disciplina da propriedade, a partir das quais tem-se por superado o caráter meramente estrutural com que era tratado pela legislação civil até então vigente, reconhecendose, assim, o aspecto funcional e instrumental do direito de propriedade. Abandona-se, assim, o modelo proprietário estabelecido pelo Code Napóleon e pela Pandectística, voltado exclusivamente para a idéia do direito subjetivo, reconstruindo-se o direito de propriedade à luz de uma concepção que se debruça também sobre os deveres, os ônus e os encargos que efetivamente compõem a situação subjetiva complexa que caracteriza o exercício do direito de propriedade. Os parágrafos 4º e 5º do artigo 1.228 do novo Código devem ser analisados no contexto de sua compatibilidade material com a Constituição Federal, abordando-se, ainda, as diversas cláusulas abertas veiculadas na referida norma, e as conseqüências que advêm da técnica adotada pelo legislador. A regra em destaque já recebeu inúmeros ataques, sendo 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


A distribuição da terra revelase profundamente desigual, verificando-se a existência de elevadas porções de terra nas mãos de poucos, e um grande contingente de pessoas excluídas do acesso à terra e à propriedade.

evidente o intenso debate doutrinário que já se estabeleceu sobre a matéria. Postulou-se, inclusive, fosse reconhecida a inconstitucionalidade da norma, por atentatória ao direito de propriedade. Neste sentido, a Emenda n.º 135, do senador Gabriel Hermes, que foi rejeitada. Já Caio Mário da Silva Pereira entendia que tais normas eram inconstitucionais por vislumbrar na espécie uma modalidade de desapropriação não prevista na Constituição, sendo esta uma matéria necessariamente constitucional. Argumenta, ainda, a inconstitucionalidade das normas em destaque pelo fato de estabelecerem hipótese de desapropriação sem “prévia indenização”, além de não definirem quem deverá pagar a indenização, destacando que não seria razoável condenar-se o Estado, já que este não integra a relação processual5. O tema, no entanto, foi objeto de análise ao longo da Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal no período de 11 a 13 de setembro de 2002, sob a coordenação científica do ministro Ruy Rosado, do STJ. Na oportunidade, ressaltou-se que “é constitucional a modalidade aquisitiva de propriedade imóvel prevista nos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do novo Código Civil” (Enunciado n.º 82, aprovado na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal). Revela-se, em verdade, bastante louvável a iniciativa do legislador, já que o panorama da atual estrutura fundiária brasileira não é dos melhores. A distribuição da terra revelase profundamente desigual, verificando-se a existência de elevadas porções de terra nas mãos de poucos, e um grande contingente de pessoas excluídas do acesso à terra e à propriedade. Prevalecem, em verdade, os latifúndios, com terras sub-aproveitadas, e a intensa exploração do solo brasileiro por multinacionais6. Revela-se imprescindível que a natureza jurídica do instituto seja bem definida, uma vez que este apresenta pontos em comum com a desapropriação e com a usucapião, sendo identificado por alguns autores como expropriação privada 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005

ou desapropriação judicial. Já temos na doutrina significativa controvérsia a respeito do tema. Sustenta-se que o art. 1228, em seus §§ 4º e 5º, traz uma novidade legislativa que na prática representa um efeito da teoria sociológica da posse, que ressalta a importância da posse-trabalho, derivada da função social da propriedade. Estabelece o dispositivo a perda da propriedade para aquele que não exerce o direito em harmonia com as exigências impostas pela função social atribuída à propriedade. Beneficiam-se, por outro lado, aqueles que desempenham uma posse qualificada, ou seja, a posse-trabalho. Defende-se que não se trata de desapropriação de iniciativa do poder público, prevista na CF, nem de hipótese de usucapião. Trata-se, isto sim, do direito à aquisição de propriedade imóvel com base na posse social, desde que presentes os seguintes requisitos: extensa área de terra, sendo esta uma cláusula aberta; posse ininterrupta por mais de 5 anos; que essa posse seja coletiva, exercida por considerável número de pessoas, hipossuficientes ou não; que seja uma posse de boafé, assim entendida em seu aspecto subjetivo, ou seja, no sentido de que os possuidores ignoram o vício possessório; e, por fim, que além da boa-fé, haja posse social, ou seja, que os possuidores, em conjunto ou separadamente, tenham realizado na área expropriada obras ou serviços considerados, pelo julgador, de relevante interesse social ou econômico (por exemplo, acessões e benfeitorias). Zavascki defende, no entanto, que não se trata de uma forma de expropriação, assemelhando-se, antes, a uma forma de usucapião: “A desapropriação é ato de natureza administrativa e, no caso, o ato do juiz é tipicamente jurisdicional: ele simplesmente resolve um conflito de interesses entre particulares, decidindo num sentido ou em outro, segundo sejam atendidos ou não os pressupostos legais. O juiz não poderá desapropriar sem que os interessados o peçam expressamente, até porque eles é que sofrerão os ônus correspondentes de pagar o preço e serão eles, e não o Poder Público, que adquirirão a propriedade. O Estado sequer é parte no processo, atuando nele como órgão jurisdicional. Se fôssemos comparar com algum instituto já formado e sedimentado em nosso sistema, haveríamos de fazê-lo, não com o da desapropriação, mas com o da usucapião.”7. Marco Aurélio Bezerra de Melo apresenta entendimento contrário, salientando que “inova o Código com essa previsão de relevante interesse social, mormente para grandes cidades e em áreas de notória ocupação (...). A nova previsão legal se assemelha demais com a usucapião, mas com a mesma não se confunde. Como sabido, não existe possibilidade de usucapião sem a presença do elemento subjetivo animus domini (...) e se observarmos atentamente, constataremos que o artigo não exige o referido requisito. Se para alguns, o referido requisito já está implícito na norma quando esta exige que se tenha realizado no imóvel obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante, difícil é ultrapassar a possibilidade que a lei cria, para por fim ao conflito, de pagamento do preço”8.


Quanto ao requisito da posse de boa-fé, cumpre observar que, em princípio, nenhum invasor é possuidor de boa-fé, já que todo invasor sabe ou deveria saber, principalmente se tiver alguma instrução, que está se utilizando de um bem sobre o qual não tem título jurídico. No entanto, é possível, especialmente em casos de comunidades carentes, desprovidas de cultura e de meios materiais, alegar a existência de posse de boa-fé, com base, justamente, nas condições sócio-econômicas dos interessados, e no direito social de moradia (art. 6º, CF). Cumpre observar que durante a Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal no período de 11 a 13 de setembro de 2002, sob a coordenação científica do ministro Ruy Rosado, do STJ, foi aprovado o Enunciado n.º 83, estabelecendo que “nas ações reivindicatórias propostas pelo Poder Público, não são aplicáveis as disposições constantes dos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do novo Código Civil.” Verifica-se, portanto, que o Enunciado restringe a aplicação do permissivo apenas a litígios entre particulares. Não se justifica, no entanto, tal restrição. Em que pese seja vedada a usucapião de imóveis públicos (arts. 183, §3º e 191, § único, CF; Súmula n.º 340 do STF e artigo 102 do código Civil), o instituto em destaque não se confunde com a usucapião. Deve ser lembrado que a expropriação privada tem como finalidade preservar o cânone constitucional da função social da propriedade (art. 5º, inciso XXIII, CF), princípio que deve prevalecer ainda quando violado pelo próprio Poder Público, que deve zelar pelo cumprimento

das normas que estabelece. Assim, comungamos com o entendimento de Marco Aurélio Bezerra de Melo9, pelo qual mostra-se viável tal defesa, ainda quando o Poder Público é autor da ação reivindicatória. Durante a mesma Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal foi também aprovado o Enunciado n.º 84, estabelecendo que “a defesa fundada no direito de aquisição com base no interesse social (art. 1.228, §§ 4º e 5º, do novo Código Civil) deve ser argüida pelos réus da ação reivindicatória, eles próprios responsáveis pelo pagamento da indenização” Em outras palavras, diz-se que esse direito de aquisição da propriedade com base no interesse social, que deve ser argüido pelos próprios réus, só se materializaria com o pagamento da indenização, não através do Poder Público, e sim pelos próprios réus, ou seja, é a comunidade que deverá pagar o preço. O preço, como estabelece o § 5º do art. 1.228, será fixado pelo juiz, que não poderá levar em conta, na sua fixação, eventuais acessões e benfeitorias realizadas pelos invasores. A sentença que julga improcedente a reivindicatória, reconhece o direito de propriedade dos réus. A sentença, no entanto, não transfere a propriedade, devendo ainda ser realizado o pagamento do preço e feito o devido registro. Estas as nossas breves considerações a respeito de um tema que está por merecer a atenção de nossos estudiosos civilistas, haja vista a relevância e o sem-número de questionamentos que envolvem a matéria.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

BEZERRA DE MELO, Marco Aurélio, Novo Código Civil Anotado, Volume V, Direito das Coisas, Lumen Júris, 2004. DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, 1º Volume, Teoria Geral do Direito Civil, Editora Saraiva. DUGUIT, Leon, El derecho subjetivo y la función social, in Las transformaciones Del derecho (público y privado). Trad. Carlos Posada. Buenos Aires: Ed. Heliasta, 1975. GRAU, Eros Roberto, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 5ª Edição, São Paulo: Malheiros Ed., 2000. MALUF, Carlos Alberto Dabus, Reflexões sobre mudanças ocorridas no novo Código Civil, no condomínio e na propriedade. Informativo Incijur 38/ 12, set. 2002. PERLINGIERE, Pietro, Il diritto civile nella legalità costituzionale. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1991. REALE, Miguel, O Projeto de Código Civil – situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo, Ed. Saraiva, 1986. SENADO FEDERAL. O Projeto do Código Civil no Senado, Brasília, Senado Federal, 1998, t.II. SILVA PEREIRA, Caio Mário, Crítica ao anteprojeto do Código Civil. RF 242/ 21-22, abr-jun, 1973. TEPEDINO, Gustavo, Temas de Direito Civil, Ed. Renovar, 2004. _________ . A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional, Rio de Janeiro, Renovar, 2002. VARELA, Laura Beck, A Tutela da posse na Constituição e no projeto do novo Código Civil, in MARTINS-COSTA, Judith (coord.), A reconstrução do direito privado. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002. ZAVASCKI, Teori, A Tutela da posse na Constituição e no projeto do novo Código Civil, in MARTINS-COSTA, Judith (coord.), A reconstrução do direito privado. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002.

1 GRAU, Eros Roberto, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 5ª Edição, São Paulo: Malheiros Ed., 2000, p. 260. 2 ZAVASCKI, Teori, A Tutela da posse na Constituição e no projeto do novo Código Civil, in MARTINS-COSTA, Judith (coord.), A reconstrução do direito privado. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002. 3 VARELA, Laura Beck, A Tutela da posse na Constituição e no projeto do novo Código Civil, in MARTINS-COSTA, Judith (coord.), A reconstrução do direito privado. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002. 4 REALE, Miguel, O Projeto de Código Civil – situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo, Ed. Saraiva, 1986, p. 178. 5 SILVA PEREIRA, Caio Mário, Crítica ao anteprojeto do Código Civil. RF 242/ 21-22, abr-jun, 1973. 6 Pinto Ferreira, Comentários à Nova Constituição Brasileira, citado por Gustavo Tepedino, in Temas de Direito Civil, Ed. Renovar, 3ª edição, 2004, p. 308, fornece dados impressionantes: “As multinacionais controlam 401.752 km2 do solo nacional, numa área equivalente aos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina.” 7 ZAVASCKI, Teori, A Tutela da posse na Constituição e no projeto do novo Código Civil, in MARTINS-COSTA, Judith (coord.), A reconstrução do direito privado. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002. 8 BEZERRA DE MELO, Marco Aurélio, Novo Código Civil Anotado, Volume V, Direito das Coisas, 3ª Edição, Lumen Júris, 2004, pp. 57 e 58. 9 BEZERRA DE MELO, Marco Aurélio, Novo Código Civil Anotado, Volume V, Direito das Coisas, 3ª Edição, Lumen Júris, 2004, pp. 58 e 59.

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Independência, serenidade e exatidão Arquivo

A desembargadora federal Liliane Roriz é a mais nova integrante do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Ela tomou posse na vaga do desembargador Walmir Peçanha. Na solenidade de posse ela foi saudada pelo procurador Celso Albuquerque, que relembrou os tempos em que ambos freqüentavam juntos os bancos escolares no curso de mestrado em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

“É dessa época que vem a profunda e sincera admiração que nutro por V.Exa., e acrescento, tanto no plano profissional quanto no plano pessoal. Reconheço que tive até certa dificuldade em expressar essa admiração, dadas as qualidades morais de V.Exa., pessoa firme em seus princípios, mas igualmente serena, humilde, mansa. Sempre disposta a ajudar aqueles que porventura necessitem. São tantas as razões que se fosse enumerá-las todas por certo em muito se estenderiam essas breves palavras. Dadas as minhas próprias limitações, procurarei resumir minha opinião. V.Exa. é daquelas pessoas que naturalmente se destacam no meio onde convivem, sem, entretanto, obnubilar as demais. Refulge sem apagar os demais, o que a nosso sentir é uma rara qualidade. Relembro particularmente de uma situação vivenciada no curso de mestrado. A matéria era tópicos de direito constitucional, oferecida pela Professora Doutora Gisele Citadino, onde se estudava a jurisdição constitucional alemã. 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005

Pois bem: foi nos repassado um texto do Jungen Habermas para discussão na aula seguinte. Era o meu primeiro contato com o autor alemão. Li o texto não entendi nada. Reli continuei sem entender. Li uma terceira vez, mas era impossível para eu compreender o seu sentido. Embora escrito em espanhol o texto era alemão para mim. Alemão é pior do que grego para mim. Cheguei na aula tenso. E se a professora me questionasse sobre o texto? Como eu – pensava de certa forma prepotentemente – sendo um Procurador da República diria que não tinha entendido nada do texto? A aula iniciou-se e a professora perguntou se alguém poderia começar a discutir o texto. Como ninguém se aventurou, a professora – e nós também somos professores – fez o clássico: procurou refúgio no aluno mais preparado, no caso V.Exa., e pediu para que expusesse suas conclusões sobre o texto. Aí, cândida e tranqüilamente, V.Exa. disse: “Não entendi nada do texto”. Simples não? E eu anteriormente


tenso e preocupado, agora aliviado, imediatamente acresci. Graças a Deus, pois já estava pensando que era analfabeto, mas se a Dra. Liliane disse que não entendeu o texto, então estou desde logo absolvido. Porque me sentia absolvido? Fosse outro, não teria tido a mesma reação. A absolvição decorre da superioridade moral mencionada por Piero Calamandrei em sua obra “ Eles os Juízes, vistos por nós os advogados”. Dizia o jus filósofo italiano: “No juiz a inteligência não conta. Basta que seja normal e que ele possa chegar a compreender, encarnação do homem médio. O que principalmente conta é a superioridade moral, que deve ser tamanha a ponto de poder perdoar ao advogado ser mais inteligente do que ele”. Foi essa qualidade, tão importante para quem exerce o ofício da judicatura, que V.Exa. demonstrou com a sua serena resposta. Não tentou enrolar o que talvez eu teria tentado – pois havia colegas recém saídos da graduação, mas, como disse o apóstolo Paulo em sua carta aos hebreus – da fraqueza tirando força – perdoou uma possível inteligência superior de outros colegas bem mais novos e muito mais inexperientes. Para mim foi simplesmente sensacional, uma lição de vida e um exemplo a ser seguido”. Os Três Pilares Agradecendo as homenagens, a desembargadora Liliane Roriz assim se pronunciou: “Ao tomar posse no cargo de Desembargadora Federal prometi cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis. Nos dias que se seguiram à minha nomeação e posse, pensei muito no compromisso que assumira. Não podia ser essa promessa um enunciado puramente abstrato ou positivista em excesso. Buscando melhor compreendê-lo, deparei-me com o art. 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura que estabelece ser dever do magistrado cumprir e fazer cumprir as disposições legais com independência, serenidade e exatidão. Assim, a observância à lei contida no compromisso assumido há de ser temperada por essas três qualidades: independência, serenidade e exatidão. Para alguns, pode parecer paradoxal a determinação de cumprir a lei com independência. Mas é que o juiz não é um mero aplicador de textos legais. Para isso, um programa de computador resolveria a questão. Aplicar a lei de forma independente significa não ficar preso aos estritos limites de sua interpretação gramatical. Significa extrair do texto legal sua melhor aplicação e aplicálo com impessoalidade, com neutralidade. O cumprimento da lei deve-se dar também com serenidade, o que envolve equilíbrio e sensatez, qualidades sempre desejáveis para aquele que se dedica a resolver problemas de seus semelhantes. Para uma decisão serena, é necessário apreciar a questão com isenção, bom-senso e eqüidistância das partes, sem preconceitos ou partidarismos. O terceiro requisito contido na LOMAN diz respeito a

cumprir as leis com exatidão. Quem se propõe a julgar precisa conhecer exatamente o conteúdo e o alcance da lei. Mas não são apenas essas características legalmente impostas que são desejáveis para um julgador. A idoneidade e o comportamento ético são também qualidades mais do que desejáveis para o juiz; são verdadeiros pressupostos de seu cargo. A ausência de um comportamento moral e ético, em um julgador, não abala somente sua imagem. Afeta mais do que isso, pois corrói a credibilidade da própria instituição democrática. É interessante observar que, etimologicamente, a palavra ética vem do grego ethos e possui um correlato em latim, que é a palavra morale. Ambos os termos têm o mesmo significado, consistindo em palavras sinônimas. Um choque ético é, pois, imprescindível e indispensável, em todas as camadas sociais, desde o cidadão, que deve respeitar o sinal de trânsito ou evitar apropriar-se indevidamente do espaço público, até o agente público que deve se dedicar a uma prestação de serviço público com qualidade e presteza, aperfeiçoando e consolidando uma cultura de respeito à ética. Enfim, deve haver harmonia e compatibilidade entre o que se requer, o que se pode e o que se é, agindo sempre com transparência, sinceridade e ética, na vida privada, no convívio social e na gestão da coisa pública. A propósito de como proceder com ética na vida pública, não poderia deixar de manifestar a honra que é para mim suceder a um magistrado do quilate do Desembargador Federal Valmir Peçanha, uma das maiores referências morais e intelectuais do Judiciário brasileiro. É esta, para mim, uma responsabilidade extraordinária. Gostaria também de agradecer a confiança que me foi depositada pelos membros desta Corte, ao incluir-me na lista tríplice para promoção, especialmente em companhia de dois Juízes Federais da categoria e da competência dos Drs. Guilherme Couto e Guilherme Calmon, aos quais homenageio. Para encerrar, em recente entrevista publicada na revista Veja, o advogado alemão Peter Eigen, presidente da ONG Transparência Internacional, defendeu a formação do que ele chamou de um Sistema de Integridade. Segundo ele, o formato desse Sistema deveria ser semelhante ao de um templo grego cuja cobertura é escorada por pilares, montados de tal forma que, se um ruir, os outros permanecem firmes, até a reparação daquele que falhou. Esses pilares são: um Poder Executivo a salvo de interesses menores, um Parlamento representativo e um Judiciário independente. A cada momento em que um desses pilares encontrar-se abalado, os outros dois devem reforçar-se, a fim de garantir a sustentabilidade do templo grego, isto é, do Sistema de Integridade. Senhor Presidente, sei que sou apenas uma pequena peça em um desses pilares. Mas sou uma peça. E é nesse sentido que orientarei minha passagem no honroso cargo que estou assumindo neste Tribunal”. 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


A promoção dos juízes e o “beija-mão” Paulo Cesar Salomão Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

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ntes da Constituição de 1988, a promoção e remoção dos juízes estaduais - para ser mais específico - se davam por escolha do Tribunal composto pelo Órgão Especial, isto é, os 25 desembargadores mais antigos, que submetiam três nomes ao governador do estado. Mesmo aqueles que ultrapassavam um concurso dificílimo, como é o caso da minha turma de 1982, dependiam do governador para efetivação da nomeação. O sistema da Constituição anterior vulnerava e humilhava as funções judicantes. Basta tentar imaginar a interferência dos políticos (no mal sentido) nas sentenças e acórdãos. Houve um caso que ficou tristemente famoso de um juiz escolhido cinco vezes para integrar uma lista de promoção - o que ensejaria a obrigatoriedade da escolha - que foi rejeitado pelo governador porque proferira uma decisão que não lhe agradara. O juiz só conseguiu ser promovido quatro anos depois através de um mandado de segurança julgado no Supremo Tribunal Federal. Com a Constituição de 1988, os juízes ficaram livres dessas pressões políticas externas, uma vez que a promoção e remoção se dão por procedimento interno do próprio Tribunal e termina com um ato do presidente. No entanto, prevalecia - e tentam fazer prevalecer ainda - o velho sistema do voto secreto. Na verdade, esse método faz com que os juízes que queiram ser promovidos ou removidos se sujeitem ao chamado “beija-mão’’. É que, para ser escolhido, é costume antigo que o juiz percorra todos os gabinetes dos desembargadores votantes e “peça’’ o voto. 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005


Embora haja critérios objetivos previstos em lei, como não pode deixar de ser no sistema secreto, a escolha se dá, na maioria dos casos, por critérios subjetivos, e, às vezes, sem qualquer critério. Os juízes estranham no início, mas passam a conviver com este método até certo ponto hilário, pois baseado na hipocrisia e acabam por aceitá-lo como normal. Em certas situações, pelos votos prometidos, os mais inexperientes têm certeza que vão atingir o número de vinte e cinco. Fechada a votação, recebem um ou dois votos ou, em algumas ocasiões, nenhum. As minhas promoções (e de centenas de colegas) sempre ocorreram por este método, mas se submeter a ele não significa concordância. Em pesquisa recentemente divulgada pela Associação dos Magistrados Brasileiros, constatou-se que mais de 80% dos magistrados de todo o Brasil são favoráveis ao voto aberto. Ora, se os magistrados durante a vida toda são obrigados a conviver com os mais variados problemas, com bandidos perigosíssimos, julgando causas milionárias e, mesmo assim, têm como dever a fundamentação e publicização de suas decisões, por que não pode um desembargador antigo e experiente expor as razões do voto ou da recusa à promoção de um magistrado? Isso sem mencionar o disposto no artigo 93 da Constituição Federal, que é de clareza solar: “as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública’’. Salta aos olhos as vantagens da votação aberta e fundamentada e, em contrapartida, a posição humilhante a que é submetido o magistrado quando o voto é secreto, pois é obrigado a percorrer os gabinetes dos desembargadores “pedindo’’ votos, e, mesmo assim, nunca fica sabendo ao certo as razões para o sucesso ou para o fracasso. Além do mais, é antidemocrático, uma vez que o poder fica concentrado nas mãos de uma minoria que domina o Tribunal. O voto secreto impera em quase todos os tribunais do país. Daí porque se impõe a adoção imediata do sistema definido pela Emenda Constitucional nº 45, a fim de que as votações sejam abertas e conhecidas do público e dos magistrados. Se um juiz ostentar em seu currículo motivos sérios que levem à rejeição de uma promoção ou remoção, deve ele responder administrativamente ou com processo que pode levar a perda do cargo. Pode, também, acontecer que a rejeição se dê por pouca produtividade, urbanidade, dentre outros motivos. O Tribunal poderá adotar as medidas necessárias para corrigir as distorções. Assim, para a sociedade e para o juiz, deve ser saudada com euforia a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, que dispõe sobre a publicidade dos votos quando ocorrer promoção ou remoção de magistrados e a decisão do Conselho Nacional da Justiça, que, por maioria de votos, acolheu no dia 30 de agosto último, requerimento da Associação dos Magistrados Brasileiros solicitando que as promoções passem a ser realizadas por meio de voto aberto, fundamentado e nominal.

O voto secreto impera em quase todos os tribunais do país. Daí porque se impõe a adoção imediata do sistema definido pela Emenda Constitucional nº 45, a fim de que as votações sejam abertas e conhecidas do público e dos magistrados.

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ESTÁGIO ATUAL DA “DELAÇÃO PREMIADA” NO DIREITO PENAL BRASILEIRO Damásio de Jesus Ex-membro do Ministério Público do Estado de São Paulo,Doutor Honoris Causa em Direito pela Universidade de Estudos de Salerno (Itália).

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remonta às Ordenações Filipinas, cuja parte criminal, constante do Livro V, vigorou de janeiro de 1603 até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830. O Título VI do “Código Filipino”, que definia o crime de “Lesa Magestade” (sic), tratava da “delação premiada” no item 12; o Título CXVI, por sua vez, cuidava especificamente do tema sob a rubrica “Como se perdoará aos malfeitores que derem outros a prisão” e tinha abrangência, inclusive, para premiar, com o perdão, criminosos delatores de delitos alheios. Em função de sua questionável ética, à medida que o legislador incentivava uma traição, acabou sendo abandonada em nosso Direito, reaparecendo em tempos recentes. 3. Previsão legal Há uma série de diplomas, atualmente, cuidando da “delação premiada”: a) Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90, art. 8.º, par. ún.); b) Lei do Crime Organizado (Lei n. 9.034/95, art. 6.º); c) Código Penal (art. 159, 4.º – extorsão mediante seqüestro); d) Lei de Lavagem de Capitais (Lei n. 9.613/98, arts. 1.º e 5.º); e) Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei n. 9.807/99, arts. 13 e 14; f ) Lei Antitóxicos (Lei n. 10.409/2002, art. 32, 2.º).

1. Conceito Delação é a incriminação de terceiro, realizada por um suspeito, investigado, indiciado ou réu, no bojo de seu interrogatório (ou em outro ato). “Delação premiada” configura aquela incentivada pelo legislador, que premia o delator, concedendo-lhe benefícios (redução de pena, perdão judicial, aplicação de regime penitenciário brando etc.). A abrangência do instituto na legislação vigente indica que sua designação não corresponde perfeitamente ao seu conteúdo, pois há situações, como na Lei de Lavagem de Capitais (Lei n. 9.613/98), nas quais se conferem prêmios a criminosos, ainda que não tenham delatado terceiros, mas conduzam a investigação à “localização de bens, direitos ou valores objetos do crime”. 2. Origem do instituto no Brasil A origem da “delação premiada” no Direito brasileiro 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005

4. Valor probatório A delação (não-premiada) de um concorrente do crime por outro, em sede policial ou em juízo, denominada “chamada de co-réu” ou “confissão delatória”, embora não tenha o condão de embasar, por si só, uma condenação, adquire força probante suficiente desde que harmônica com as outras provas produzidas sob o crivo do contraditório (STF, HC n. 75.226; STJ, HC n. 11.240 e n. 17.276). Esse entendimento, objetado por parte da doutrina, ganhou reforço após o advento da Lei n. 10.792/2003, a qual garantiu à acusação e à defesa a possibilidade de solicitar ao juiz o esclarecimento de fatos não tratados no interrogatório, conferindo-lhe natureza contraditória e, conseqüentemente, maior valor e credibilidade (art. 188 do CPP). O mesmo raciocínio deve ser aplicado à “delação premiada”: não se pode dar a ela valor probatório absoluto, ainda que produzida em juízo. É mister que esteja em consonância com as outras provas existentes


nos autos para lastrear uma condenação, de modo a se extrair do conjunto a convicção necessária para a imposição de uma pena. 5. Voluntariedade x espontaneidade Voluntário é o ato produzido por vontade livre e consciente do sujeito, ainda que sugerido por terceiros, mas sem qualquer espécie de coação física ou psicológica. Ato espontâneo, por sua vez, constitui aquele resultante da mesma vontade livre e consciente, cuja iniciativa foi pessoal, isto é, sem qualquer tipo de sugestão por parte de outras pessoas. Pergunta-se: a “delação premiada” deve ser decorrente de um ato voluntário ou espontâneo? Se a autoridade policial ou o órgão da acusação propuserem o benefício, ainda assim poderia o juiz concedê-lo? Depende. A legislação brasileira, lamentavelmente, não trata o assunto com uniformidade. Assim, enquanto a Lei do Crime Organizado, a Lei de Lavagem de Capitais e a Lei Antitóxicos expressamente exigem a espontaneidade, a Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (aplicável a qualquer delito), contenta-se com a voluntariedade do ato1. Desse modo, não faria jus ao prêmio quem, sugerido por terceiros (autoridades públicas ou não), delatasse seus comparsas em crimes praticados por organização criminosa ou lavagem de capitais. Ressalve-se, contudo, a possibilidade de aplicação subsidiária da Lei n. 9.807/99 a esses crimes, dado o seu caráter geral. Vale dizer: diante de uma colaboração voluntária, embora não espontânea, torna-se possível o perdão judicial ou a redução da pena para delitos tratados pelas Leis n. 9.034/95 e 9.613/98 somente com base na Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas, desde que preenchidos os requisitos de seus arts. 13 e 14. 6. Traição de concorrentes por crimes diversos Suponha-se que uma pessoa que não integre bando ou quadrilha esteja sendo processada pela prática de determinado delito. Ao ser interrogada, delate quadrilheiros co-autores de outro crime, do qual não participara e que não se relaciona com o ilícito por ela praticado. Sendo eficaz a colaboração, pode ser beneficiada pela “delação premiada”? Entendemos que não, uma vez que as normas relativas à matéria exigem que o sujeito ativo da delação seja participante do delito questionado (co-autor ou partícipe)2. Em nosso ordenamento jurídico, essa possibilidade somente era possível quando da vigência das Ordenações Filipinas (título CXVI). Agora, não mais. 7. “Delação premiada” após o trânsito em julgado da sentença condenatória A análise dos dispositivos referentes à “delação premiada” indica, em uma primeira análise, que o benefício somente poderia ser aplicado até a fase da sentença. Não se pode excluir, todavia, a possibilidade de concessão do prêmio após o trânsito em julgado, mediante revisão criminal. Uma das

hipóteses de rescisão de coisa julgada no crime é a descoberta de nova prova de “inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial de pena” (art. 621, III, do CPP). Parece-nos sustentável, portanto, que uma colaboração posterior ao trânsito em julgado seja beneficiada com os prêmios relativos à “delação premiada”. O argumento de que não seria cabível em fase de execução, por ser o momento de concessão dos benefícios (redução de pena, regime penitenciário brando, substituição de prisão por pena alternativa ou extinção da punibilidade) o da sentença, não nos convence. O art. 621 do CPP autoriza explicitamente desde a redução da pena até a absolvição do réu em sede de revisão criminal, de modo que este também deve ser considerado um dos momentos adequados para exame de benefícios aos autores de crimes, inclusive em relação ao instituto ora analisado. Exigir-se-á, evidentemente, o preenchimento de todos os requisitos legais, inclusive o de que o ato se refira à delação dos co-autores ou partícipes do(s) crime(s) objeto da sentença rescindenda. Será preciso, ademais, que esses concorrentes não tenham sido absolvidos definitivamente no processo originário, uma vez que, nessa hipótese, formada a coisa julgada material, a colaboração, ainda que sincera, jamais seria eficaz, diante da impossibilidade de revisão criminal pro societate. 8. Conclusão A polêmica em torno da “delação premiada”, em razão de seu absurdo ético, nunca deixará de existir. Se, de um lado, representa importante mecanismo de combate à criminalidade organizada, de outro, parte traduz-se num incentivo legal à traição. A nós, estudiosos e aplicadores do Direito, incumbe o dever de utilizá-la cum grano salis, notadamente em razão da ausência de uniformidade em seu regramento. Não se pode fazer dela um fim em si mesma, vale dizer, não podem as autoridades encarregadas da persecução penal contentaremse com a “delação”, sem buscar outros meios probatórios tendentes a confirmá-la. A falta de harmonia em seu regramento, ademais, pode gerar alguma dificuldade na sua aplicação. Questões como a incidência do benefício quando a “delação” é sugerida por autoridades públicas, a viabilidade de sua aplicação em sede de revisão criminal, entre outras, mereceriam um tratamento expresso em nosso Direito Positivo. Esses obstáculos poderiam ser ultrapassados mediante a elaboração de uma legislação específica, de modo a evitar discrepâncias normativas e suprir possíveis lacunas acerca do tema.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS No art. 159, 4.º, do CP, pela omissão da Lei, é indiferente seja o ato espontâneo ou voluntário. Exige-se, apenas, a eficácia da delação. 2 Nesse sentido: JESUS, Damásio de. Temas de direito criminal. 2.ª série. Saraiva: São Paulo, 2002. p. 30-31. 1

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ENTREVISTA

Presidente da OAB/SP Dr. Flávio D’Urso:

ADVOGADO - SERVIDOR DA CIDADANIA

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presidente da OAB/SP, Flávio D`Urso nessa entrevista concedida ao nosso diretor Tiago Salles disse que o papel do advogado foi e é fundamental: “ A missão do advogado é objeto do Art. 133 da Carta Magna. Ele deixa de ser simples mandatário de um cliente que busca defender seus direitos para se transformar em servidor da cidadania. A história comprovou isto. Desde a instalação dos cursos jurídicos no Brasil, especialmente, em São Paulo, os bacharéis se tornaram grandes políticos, burocratas do Estado e defensores das liberdades civis e políticas”. presidente da OAB/SP esclarece com clareza de detalhes o que é o honorário do advogado, a polêmica em torno do assunto, a autonomia e a independência do advogado, o papel do juiz na fixação dos honorários e a advocacia pública que tem sido discutida no Conselho Federal.

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O que o Senhor entende por honorários de advogado? É um fixo remuneratório mensal, é um percentual sobre o valor da causa, as duas coisas ou, ainda, um percentual de êxito? É a remuneração advinda do trabalho do advogado. A modalidade pode amplamente variar. Poderá ser uma quantia fixa, um porcentual sobre o valor do trabalho, seja decorrente de em uma questão judicial, na redação de um contrato, assessoria jurídica em uma operação mercantil etc. Nada impede que seja um valor fixo, ou mesmo salário advindo de vínculo empregatício. Sobre o percentual de êxito, apenas deve-se evitar a chamada quota litis (pacto pelo qual o direito aos honorários fica exclusivamente dependente do resultado obtido na questão e em virtude do qual o constituinte se obriga a pagar ao advogado parte do resultado que vier a obter). Nada impede, ainda, a livre fixação dos honorários pactuados entre o advogado e o cliente. Por que existe tanta polêmica em torno dos honorários do advogado?  No tocante aos honorários contratados praticamente inexistem dúvidas, é muito difícil vermos casos de discussão entre advogados e clientes por esse motivo. Entretanto, nos chamados honorários de sucumbência, realmente existe certa polêmica.   A lei 8.906/94 modificou o critério anterior que determinava ser a honorária de sucumbência da parte, atribuindo-a ao advogado, que passou, portanto, a ser o titular dos honorários. Acontece que o legislador procurou apenas ajustar a norma à realidade. O que estava acontecendo no mercado de serviços jurídicos? Ao longo de tempo, com o advento da condenação de sucumbência nos idos da década de 1960, parte e advogado passaram, cada vez mais, ao acerto de honorários em torno dessa verba;   isto é, ao invés do acerto clássico de um terço no início, um terço com sentença e um terço no final, passou-se ao pagamento de um valor inicial, parcelado ou não, e a maior parte  em função da sucumbência, ao final atribuindo-a na prática ao profissional (que se tornou cada vez mais dependente desse valor).   Para o particular esse fato torna menos custoso o acesso à Justiça, sem prejuízo de afastar muitos litigantes oportunistas, por medo da sucumbência. O legislador não só foi atento a isso,  como também procurou evitar uma prática indesejável, que era a da parte – mormente grandes empresas, sindicatos em causas coletivas, bancos, construtoras etc – lucrarem com o trabalho do advogado. Para muitos desses,   o departamento jurídico dava-lhes lucro. Um incentivo ao litígio, sem dúvida.Ocorre que, parece-me que a Jurisprudência ainda não teve essa percepção dos objetivos  e benefícios da lei com toda clareza. Os honorários têm sido atribuídos com excessiva e injustificável parcimônia.

(...) honorários em geral, são fixados normalmente na faixa de 10% a 20 % do valor econômico ou benefício da questão. Pode ser maior ou menor e até consistir em valor míniMo, mas sempre ajustados tomando como referência o critério usual

Como evitar atritos entre o cliente e o advogado? Deixando bem claro como os honorários estão sendo fixados, estipulando o tipo do serviço nos procedimentos preliminares, judiciais e conciliatórios, para que novas despesas não venham ser confundidas com o honorário inicial, causando dúvidas ao cliente. O ideal é fazer um contrato por escrito sobre a prestação de serviços profissionais, fixando o reajuste e condições de pagamento. É comum recebermos representações no Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem contra advogados, porque a parte considerou elevado o valor acordado inicialmente. O Senhor diferencia honorários remuneratórios de honorários de sucumbência? Sim, honorários em geral, são fixados normalmente na faixa de 10% a 20 % do valor econômico ou benefício da questão. Pode ser maior ou menor e até consistir em valor mínimo, mas sempre ajustados tomando como referência o critério usual. Mesmo na chamada taxa fee 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


(...) Estatuto da Advocacia, no Art.18 é claro: “a relação de emprego, na qualidade de advogado, não retira a isenção técnica nem reduz a independência profissional inerentes à advocacia”

na sua aferição total, no contencioso, leva-se em conta esses parâmetros. Os honorários de sucumbência existem não só para exercer um saudável freio nas demandas temerárias, mas também para tornar o custo da ação mais barata para o vencedor da causa. É por força da sucumbência que se permite negociações com menor custo para o cliente do advogado, pois ela é levada em conta no ajuste profissional, principalmente nas lides de grande vulto econômico. Os honorários de advogados são um acordo livre entre o cliente e o advogado, ou ele está sujeito a normas processuais ou estatutárias? Como o Senhor vê a questão da regulamentação de honorários no estatuto?  Devem ser livremente acordados, com destaque das condições das custas e encargos judiciais e extrajudiciais e demais despesas ter de ser suportadas pelo cliente, ao 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005

qual o advogado deverá prestar contas. O Cap. VI do Estatuto da Advocacia estipula de forma clara as linhas gerais para cobrança dos honorários convencionados entre o advogado e cliente. Também prevê que um terço dos honorários, preferencialmente, seja devido no início do trabalho, outro até decisão de primeiro grau e o restante no final. Estes valores deverão ser atualizados. Quais os critérios para a fixação dos honorários pelos advogados?   São variáveis. Devem levar em conta a relevância e complexidade da ação, o trabalho necessário, a possibilidade da dedicação exclusiva do advogado, as condições econômicas do cliente, o valor da causa, o perfil do cliente (avulso ou habitual), o lugar da prestação do serviço, a competência do profissional e a praxe do foro sobre trabalhos semelhantes.


O fee (taxa por hora) tem proteção legal, fere o princípio contratual ou é um contrato tácito?  O critério de fee visa estipular o valor da hora trabalhada, o que é perfeitamente possível e até indicado em alguns casos. Não fere qualquer princípio contratual. Não é tácito, tem de estar expresso.   O Senhor vê diferença entre o que se convencionou denominar honorários do advogado liberal e os salários do advogado empregado? Seria o salário do advogado empregado uma forma fixa de honorário? Sendo uma forma fixa de honorário como o Senhor justifica a subordinação hierárquica do advogado? Não há qualquer diferença, pois no caso do advogado empregado, ele obedece uma relação trabalhista, não é um profissional liberal.A esmagadora maioria dos escritórios de advocacia segue o clássico modelo da advocacia liberal. A despeito da adoção, por vezes, de alguns parâmetros próprios da racionalidade empresarial, ou mesmos até de constituírem-se na forma de sociedades profissionais, majoritariamente, mesmo nestas, o exercício efetivo da profissão dá-se através da atuação individual do profissional ou associando-se em casos específicos a outros especialistas. A independência sobre a condenação da causa é exclusiva do profissional em qualquer dos casos. A autonomia e a independência do advogado nos seus estatutos clássicos estão superadas pelo aparecimento dos vínculos contratuais?   Não, o Estatuto da Advocacia, no Art. 18, é claro: “a relação de emprego, na qualidade de advogado, não retira a isenção técnica nem reduz a independência profissional inerentes à advocacia”. Os honorários de sucumbência, geralmente, devidos ao advogado empregado, tem a mesma natureza que a cláusula de êxito do advogado liberal ou autônomo? Sendo a sucumbência princípio idêntico ou semelhante ao êxito, ela também não caracteriza o direito do advogado empregado?  Os honorários de sucumbência – valor pago pela parte perdedora ao advogado da parte contrária –devem ser arbitrados pelo juiz no caso de não haver condenação nessa verba. Por exemplo, quando se discute a anulação de uma assembléia de acionistas. Criticamos quando esse arbitramento é dissociado do valor econômico da questão, fugindo do parâmetro tradicional de 10% a 20% do valor da causa ou de seu benefício. Em São Paulo já aconteceu

o caso de um juiz estadual arbitrar os honorários em 0,03%, quando a ação era de R$ 20 milhões. Tais decisões criam uma limitação antinatural no mercado de serviços jurídicos e esvazia os efeitos econômicos e jurídicos pretendidos pelo legislador ao instituir a sucumbência Esses percentuais já estão previstos no Art. 20, parágrafo 3, do Código de Processo Civil, porém a regra vem sendo mantida apenas para ações que envolvam algum tipo de condenação e o valor deve incidir sobre o total da condenação. Alega-se que 60% dos advogados brasileiros, principalmente em São Paulo, tem vínculo de trabalho e são protegidos pelo estatuto presidido pelo princípio da autonomia. Como o Senhor vê a convivência entre o princípio da subordinação hierárquica e o princípio da autonomia e independência do advogado, apesar do estatuto referir-se diretamente à matéria?  O advogado empregado no exercício profissional goza de total autonomia no exercício profissional. Como o Senhor define o papel do juíz na fixação do honorário? É uma intervenção na liberdade de contratar, ou é uma forma de equilíbrio no contrato?  O juiz deve observar a regulação e prática em torno da matéria. Deve intervir quando a participação do advogado envolver bens particulares do cliente, sem condições pecuniárias. E deve evitar o aviltamento de valores dos serviços advocatícios. O Senhor acha que o juiz deferindo na fixação dos valores de sucumbência, não estaria contribuindo para evitar a subordinação ou a submissão do cliente ao advogado?  Insisto que o juiz deve observar o que diz o regramento, ou seja, fixar os honorários de acordo com a convenção, sendo que estes não devem ser inferiores à Tabela de Honorários da OAB, que varia de Estado para Estado. A interferência do juiz na delimitação dos honorários não estaria ferindo a liberdade de contratar e, por conseqüência, o princípio da isonomia entre contratantes?  Não, desde que respeite os termos do contrato e parâmetros legais. O Presidente do Conselho Federal, Dr. Roberto 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35


O advogado público deveria ter direito a receber honorários de sucumbência para evitar que o Estado venha se enriquecer com o trabalho alheio, isso seria uma espécie de mais-valia

Busato declarou em entrevista na edição passada que as seccionais da OAB são orientadas a dar assistência aos advogados que sofrem decisões que fixam os honorários sucumbênciais em percentual inferior a 10%. O que a OAB de São Paulo tem feito e como se posiciona sobre o assunto?  A OAB/SP propôs um anteprojeto para regulamentar a matéria, estipulando que a remuneração deve ficar entre 10 a 20% do valor econômico da ação, restringindo a margem subjetiva que envolve o processo. Não cabe aos magistrados achar que determinado percentual é pouco ou muito. Deve, por força da lei, fixá-los dentro desse parâmetro. Quando um cliente destitui o advogado para celebrar acordo com os devedores sem pagar os honorários devidos, quais são as medidas que o advogado deve tomar?  O advogado pode executar esses honorários nos mesmos autos da ação de cobrança que atuou. O mais novo fenômeno da advocacia brasileira é a advocacia pública, cujo assunto tem sido muito discutido no Conselho Federal. O Senhor acha 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005

que o estatuto do advogado, da mesma forma que regula o advogado empregado, deve tratar também do advogado público?  Sim, diferenciando a situação de cada um. O advogado público já está mais próximo do advogado empregado do que do advogado liberal. Deve-se reconhecer legalmente que o advogado público tem o direito a receber honorários de sucumbência e continuar vinculado à OAB? Ou melhor, seria manter os recursos em poder da União, como está, ou criar um fundo de apoio à advocacia pública? O advogado público deveria ter direito a receber honorários de sucumbência para evitar que o Estado venha se enriquecer com o trabalho alheio, isso seria uma espécie de mais-valia.   Como o Senhor vê o papel do advogado, seja o advogado liberal, seja o advogado empregado, seja o advogado público, no processo de desenvolvimento e garantia da democracia brasileira? Foi e é fundamental. A missão do advogado é objeto do art.133 da Carta Magna. Ele deixa de ser simples mandatário de um cliente que busca defender direitos para se transformar em servidor da cidadania. A história comprovou isso. Desde a instalação dos Cursos Jurídicos no Brasil, especialmente em São Paulo, os bacharéis se tornaram grandes políticos, burocratas do Estado e defensores das liberdades civis e políticas. Todas as grandes causas da vida brasileira, da abolição da escravatura à proclamação da República foram endossadas pelos bacharéis de Direito. Esta tradição da Advocacia foi mantida com a criação da Ordem dos Advogados do Brasil. A Seccional de São Paulo, criada em 22 de janeiro de 1932, pelo Decreto 19.408, de 18 de novembro de 1930, pode orgulhar-se de ter contribuído, através de uma atuação efetiva, para ajudar a consolidar as instituições no País. Iniciou sua trajetória na defesa das liberdades democráticas e dos direitos humanos com os acontecimentos políticos de 1935, marcados pelas medidas de exceção que resultariam no Estado Novo, em 1937. Participou da luta contra a ditadura militar, em 1964; do Movimento pela Anistia geral e irrestrita e do Movimento pelas Diretas-já, em 1984 e pelo impeachment do então presidente Fernando Collor, em 1992. Atualmente, lidera o Movimento pela Legalidade contra o Arbítrio e a Corrupção, integrado por várias entidades da sociedade civil, que faz a defesa das instituições da República, do Ministério Público e das Polícias. Também defende a continuidade de todas as investigações em curso no país, de forma profunda, transparente e rápida, dentro dos princípios constitucionais e dos limites da lei. Enfim, os advogados e advogadas, agentes da paz, cumprem esse importante papel.


A REBELIÃO DAS ELITES E A DEMOSCLEROSE Celso Guedes Desembargador Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do RJ

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hristopher Lasch, em “A Rebelião das Elites”, argumenta que a democracia está hoje ameaçada não pelas massas, mas pelos extratos econômicos denominados elites. Estas elites – móveis e com perspectivas cada vez mais globais – recusam-se a aceitar limites ou vínculos com nação ou lugares. Lasch sustenta que, ao se isolar em suas redes e enclaves, elas abandonam a classe média, dividem a nação e traem a idéia da existência de uma democracia para todos os cidadãos. O autor mostra como a meritocracia – a elevação altamente seletiva da elite – gradualmente substituiu o ideal democrático de competência e respeito por todos os homens. Entre outras tendências culturais, ele critica com vigor a moda do sucesso alcançado por meio da auto-estima como um falso remédio para problemas sociais mais profundos, e ataca o pseudo-radicalismo superior da esquerda acadêmica. Brilhantemente, ele revela por que não surpreende o fato de os americanos estarem apáticos quanto à sua cultura comum e não virem sentido em discutir política ou votar. Na última parte, Lasch traça a crise espiritual da democracia. As elites tendo se descartado das normas morais e éticas que a religião lhes proporcionava, agarram-se à crença de que através da ciência é possível dominar seus destinos e escapar dos limites mortais. Na busca desta ilusão, eles ficaram fascinados pela economia global. Sua rebelião, alerta, está acabando com tudo que vale a pena na vida, no caso a americana. Grande parte dos trabalhos mais recentes do autor volta, de uma forma ou de outra, à questão de sabermos se a democracia tem futuro, ou não. Penso que muita gente tem se perguntado a mesma coisa. Estamos menos otimistas quanto ao futuro do que antes, e com razão.

O declínio das indústrias, com a conseqüente diminuição de empregos; o encolhimento da classe média; o número cada vez maior de pessoas pobres; a ascensão do índice de criminalidade, com ênfase naquele de “colarinho branco”; o florescente tráfico de drogas; a decadência das cidades – as más notícias não param aí. Ninguém tem uma solução plausível para esses problemas incuráveis, e quase tudo que passa por discussão política nem mesmo se refere a eles. Travam-se violentas batalhas ideológicas em torno de questões periféricas. As elites que definem as questões, perderam o contato com o povo. O caráter artificial e irreal da nossa política reflete o seu isolamento da vida comum, junto com uma secreta convicção de que problemas reais são insolúveis. Seriam tais ocorrências além do que fenômenos espontâneos de mudanças, protagonizados por nossas elites, verdadeiros fatos portadores de algum futuro divergente do atual? Estaria a própria democracia, ou seu exercício, em estágio de mutação? Vivenciaríamos uma contemporaneidade que fundamenta a possibilidade de uma esclerose no mais tradicional sistema político idealizado ainda na Grécia antiga? Estaria em curso a demosclerose? Teria sido esta prenunciação a prova de acusação de Sócrates? Estaríamos vivendo o momento previsto pelo filósofo condenado à morte por identificar rumos divergentes daqueles dos seus contemporâneos, como muito bem comprova o jornalista americano Isidor Stone? Nossa democracia está em perigo? Considerações histórico-filosóficas à parte nos preocupamos com a possibilidade de assistir, com imensuráveis prejuízos para parcela considerável da população, em pleno regime democrático (em claro processo esclerótico) e com surpreendente aplauso de respeitáveis figuras de homens públicos, ao declínio do Direito Constitucional, ao desprestígio de seus mandamentos e, em especial, ao menoscabo de suas cláusulas imutáveis: a do respeito ao direito adquirido, à coisa julgada e ao ato jurídico perfeito. Quem viver verá. 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


Estado Laico, Seus exatos limites no Brasil Luiz Felipe da Silva Haddad

Arquivo

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os últimos tempos, neste país, como também em muitos outros, vê-se incrementada a chama da continuada polêmica acerca das fronteiras exatas do “temporal” e do “espiritual”, do “religioso” e do “secular”. De relevo nos Estados Democráticos, que o são, ao menos formalmente, todos neste início de século e milênio, avançam na opinião pública correntes de pensamento que pretendem o completo isolamento dos princípios religiosos, ou fundados em religião, do regramento jurídico. Algumas chegam a ponto de abranger, na desconsideração, ditames morais básicos, no reduzir do “jurídico” ao “utilitário puro”, sem periferia valorativa. Já pelo lado oposto, em determinadas nações, radicais fundamentalistas desejam impor suas crenças a todos, ou por pressão psicológica e violência física, ou pelo utilizar, em parcialidade intensa, do aparelho estatal, como um todo ou em áreas mais sensíveis. Dando-se mais destaque à realidade pátria, mas em paralelo a outras, em maior junção, observa-se que na era 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005

Desembargador TJ/RJ

colonial, a teor do ocorrido na “Ibero-América”, havia a total predominância da Igreja Católica Apostólica Romana, com exclusão de qualquer outra confissão ou posição. Naqueles tempos, não saudosos da Inquisição, prestigiada pelo absolutismo monárquico, discrepar-se da religião oficial significava atentado à ordem pública, no sancionar de extrema severidade. Embora, no rigor normativo não fosse crime o simples fato de “pensar contra”, na prática o era, e com base em denúncias investigadas e julgadas pelo mesmo órgão. Tal ocorreu, para mais ou para menos, em todos os territórios submetidos às coroas espanhola e portuguesa. Assinalando-se que, na “América Britânica”, de predomínio protestante, havia parcial tolerância, não total. É que, para suas terras, mudaramse católicos ou evangélicos de denominações perseguidas que, em maioria, o faziam para fugir da prepotência da reformada Igreja da Inglaterra. No caso dos primeiros, foi criada a colônia, e atual estado, de Maryland. Já no período do Império, por força dos ventos liberalizantes


emanados das revoluções francesa e estadunidense, e da evolução da monarquia britânica, foi mitigado tal quadro de tirania. A Constituição de 1824, outorgada por Pedro I, e inspirada na Carta Francesa da “restauração” pósnapoleônica, declarou o catolicismo romano religião oficial, porém “tolerando” as outras crenças, com imposição de não poderem seus adeptos reunir-se em casas “com forma de templo”. Estatuiu a nomeação dos bispos pelo Imperador, no referendo papal, e o placet do monarca para a eficácia de bulas e documentos correlatos, do Pontífice. Exigiu a fé católica para os deputados, e, por presumida distração, não a exigiu para os senadores. Tal sistema foi o mesmo, na época, com poucas variações, adotado nas cartas constitucionais da Argentina, do Chile, da Colômbia, do Peru, do México etc. E aliás, coincidiu aqui com o começo das levas imigratórias no Brasil e uma das quais, a alemã, fez exsurgir, a partir das províncias gaúcha e catarinense, sólida minoria protestante luterana, que antecedeu a batista, a metodista, a presbiteriana e, tempos depois, a pentecostal. Nas últimas décadas do reinado de Pedro II, leis ordinárias já abarcavam o registro civil de nascimento, independente do batismo sacramental, e já se debatia sobre a legalização do “matrimônio dos acatólicos”. Proclamada a República, e tendo como uma das causas de relevo a questão religiosa, na revolta de clérigos contra o reputado favorecer governamental à entidade maçônica, foi por quase todos saudado o decreto de separação “IgrejaEstado”, consolidado pela Constituição de 1891, de moldura americana. Todas as religiões e crenças obtiveram liberdade e igualdade. O ordenamento jurídico não mais era subordinado a ditames eclesiais de qualquer tipo. E, não por coincidência, no âmbito católico, moderado progresso qualitativo superou longo tempo de estagnação a propósito. Conflitos ocorreram, mas de baixa intensidade, causados por “integristas”, de um lado, e por exacerbado “positivismo”, de outro. A situação referida alterou-se com a 2ª Carta Republicana de 1934 de inspiração mais eclética, e persistiu, com mudanças de leveza, até o atual Pacto Político de outubro de 1988. O regime de separação, com liberdade e igualdade dos cultos e posições correlatas, deixou de ser absoluto pela norma da colaboração estatal em assuntos de público interesse, pela assistência religiosa às corporações militares e pela obrigação do ensino religioso nas escolas públicas, facultada a participação dos alunos por vontade de seus responsáveis, ou deles, se maiores. Porém, não se pode deixar de comentar que, na prática, e sobretudo nas regiões interioranas, as autoridades católicas eram, como antes, reverenciadas pelas “civis” em bem maior dimensão do que as de outros credos ou denominações. Na fase mais dura do ciclo autoritário pós-1964, poderosos oficiais de altas patentes proclamavam sua admiração por conhecida associação tradicionalista, que faz da intolerância, no increpar das diferenças, o ideal a ser alcançado. Mas, no viés reverso, a grande renovação da Igreja Católica pelo Concílio Vaticano II abriu grande espaço para o entendimento com suas congêneres e em abrangência universal. Dissertação a respeito, inclusive nas variantes tais

como “social libertadora” e “renovadora em espiritualidade”, por certo, descabem aqui. No regime constitucional hodierno, ao mesmo tempo em que se garante a liberdade de religião, crença, filosofia ou pensamento concernente, frisa-se o respeito às liturgias e outros elementos inerentes. Acentua-se a neutralidade do ensino oficial, permitido o ensino religioso aos que o desejem. Mantém-se a colaboração limitada, tal qual delineada nas Cartas pretéritas. Pelo resumo histórico contido supra, e que foi semelhante ao de outros Países da América Latina; alguns dos quais, como Argentina, Paraguai e Colômbia, mantém proteção estatal ao catolicismo; e outros, como México e Cuba, passaram ou ainda passam por sistemas normativos de hostilização; e em se abstraindo do campo “papista” para abranger os demais, temse que, no Estado Democrático de Direito, quer republicano, quer monárquico-constitucional, o laicismo é imprescindível desde que não extrapole para o indiferentismo e para a agressão ao sentimento da maioria. Essa observação é cabível na plenitude, diante do que temos verificado, aqui e alhures. Sendo o povo brasileiro, pode-se dizer, 90% cristão declarado no somatório dos católicos, evangélicos e espíritascardecistas, não se podem conceituar como democráticas propostas de eliminação da tipicidade criminal em qualquer modalidade de aborto provocado. Nem outras, na esfera biológica ou genética, implicando em sacrifício intenso da vida embrionária. Nem algumas mais recentes, de proibição de cruzes em dependências judiciais. Para que o posicionar da maioria não seja dominado pelo da minoria, faz-se mister que o delicado problema das uniões homossexuais seja solucionado em ponderação; ou seja, admitindo-se normatividade analógica às uniões de fato “homem-mulher”, e consectários múltiplos. Mas não o casamento, cujo grande relevo, cultural e espiritual, não permite que fuja do padrão básico para a imensa maioria cidadã. Em verdade, dos textos constitucionais contemporâneos, o que trata da matéria de modo mais preciso e justo é o da Espanha(1978), que se seguiu a longo tempo de penosidade nos quase 40 anos de ditadura franquista, e que se seguiu a horríveis massacres de um lado e de outro do “muro” na guerra civil entre 1936 e 1939. Proclama a nova Carta, a par da liberdade de culto e consciência, que nenhuma religião terá caráter estatal. Mas, também, que o Estado levará em conta a crença da maioria da população e, em conseqüência, terá relações com a Igreja Católica e as demais confissões. Aliás, tais ditames parecem não terem sido observados quando da recente legalização, naquele País, dos referidos casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Sobre isso, todavia, melhor dirá o Tribunal Constitucional que, salvo engano, já foi provocado a propósito. Sendo tal matéria inerente ao bom senso-elemento impostergável no interpretar de qualquer norma de direito- soa como dispensável, no regramento pátrio, norma semelhante à do País de Cervantes. A Constituição Nacional, como está redigida na parte das “garantias de 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39


Há, no presente, conflitos em áreas sociais de exclusão entre evangélicos e umbandistas (ou profitentes do candomblé e cultos “afro-brasileiros” em geral). Mas, na generalidade, prepondera o respeito mútuo. pedra”, atende, perfeitamente, ao interesse majoritário e minoritário no que tange ao estamento confessional positivo, negativo ou de indiferença. Isto, ademais, pela tradição brasileira de tolerância, que fez sentir sua força, inclusive, nos tempos de antanho acima descritos. Episódios sinistros, como a Noite de São Bartolomeu, na França de fins do Século XVI, sempre foram, em nossa realidade, de grande distância. Houve sim, em áreas interioranas, ataques a igrejas reformadas incentivadas por clérigos católicos, mas não de intensidade. Houve, já em tempos bem próximos, agressão à imagem de Maria Aparecida, em programa televisivo, por presbítero evangélico de denominação fundamentalista. Há, no presente, conflitos em áreas sociais de exclusão entre evangélicos e umbandistas (ou profitentes do candomblé e cultos “afro-brasileiros” em geral). Mas, na generalidade, prepondera o respeito mútuo. Dentro da, hoje assaz festejada, lógica do razoável, ensinada por Recasens Siches na Espanha dos conturbados anos 30, e no cotejo de nossa Lex Legum, vistos os elementos descritos acima, podem ser extraídas conclusões, no espancar de quadro dubitativo, que dá margem às “invasões de espaços” por uns e por outros, e por fas e nefas; de grande risco à paz pública e à própria estabilidade democrática. Na objetividade de modelo americano, ousa este autor aduzi-las pelos tópicos que se seguem: 1) A garantia constitucional da liberdade e igualdade entre as entidades religiosas ou, de qualquer forma, pertinentes à religião, mesmo por negação ou indiferença, não pode ter o condão desconsiderativo da fé em Deus professada pela grande maioria do povo brasileiro, e, aliás, insculpida na Carta Magna em termos invocativos, no Preâmbulo. Nem igual condão, quanto ao relevo, aceito por nove entre dez brasileiros, da figura redentora de Jesus, “o Cristo”. 2) Logo, expressões teístas ou cristãs, em discursos ou escritos oficiais, desde que sem detalhes confessionais, e sem ofensas ou ironias aos que pensem diferente, são cabíveis. Como o são, outrossim, as cruzes em repartições públicas dos três poderes estatais. No que tange às imagens ou ícones da Virgem Maria e de Santos, inerentes à denominação católica, hoje majoritária na majoritária profissão de fé cristã, vê-se recomendável que, nas ditas repartições, sejam restritos a gabinetes de autoridades que os queiram. 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005

Quanto aos crucifixos, também do catolicismo, mas de grande tradição histórico-cultural, faz-se mister analisar-se de local em local, “caso a caso”. 3) Eventos religiosos, de qualquer tipo, que sejam promovidos pelos poderes públicos, se não for possível o efetivar ecumênico, devem ser desmembrados em parte cristã-católica e parte cristã-evangélica, segundo os sentimentos que hoje atinam à maioria e à maior minoria de nosso povo. Aqui dizendo respeito ao “Dia da Justiça” e datas assemelhadas. 4) O ensino religioso nas escolas públicas, de primeiro e segundo graus, desde que facultativo e desprovido de avaliação aprobatória ou classificatória, deve ser ministrado por docentes indicados pelas confissões da maioria ou maiores minorias dos discentes. Contudo, na vedação de incentivo à intolerância, a preconceitos pessoais, ao ódio ou a meios ilícitos de modificação do ordenamento jurídico. 5) Qualquer atitude, em nome de fé religiosa ou assemelhada, no prejudicar da saúde física ou psíquica de qualquer pessoa, ou que afaste criança ou adolescente do convívio dos pais, ou tenha escopo, comprovado quantum satis, de enriquecimento material, deve ser repudiada e punida como crime ou contravenção. 6) Normas jurídicas propostas que, v.g, reduzam o casamento a um nada, permitam-no entre pessoas do mesmo sexo (estas, devendo ser protegidas pela união estável, pura e simples), desprezem a instituição familiar monogâmica, permitam o aborto fora de casos bastante excepcionais, autorizem “clonagem humana” ou sacrifício de embriões como regra; por afrontarem o sentimento da grande maioria da população pátria, não devem ser aprovadas. Isto, sob pena de lesão ao regime democrático, em seu espírito. 7) O direito, e até o dever, das Igrejas (e congêneres) de lutar pela justiça social, pelo desenvolvimento sustentado e integral e pela ética no trato da res publica, não pode extrapolar para identificações com partidos políticos ou lideranças políticas. Este autor ousa também propor que legislação eleitoral renovada ou emenda constitucional, estatua inelegibilidade de presbíteros (padres, pastores, rabinos e correlatos), salvo se licenciados de seus ministérios religiosos e, após investidos, durante toda a extensão dos mandatos. E que seja considerada infração a propaganda em igrejas, templos, sinagogas, centros e “terreiros”, durante missas, cultos e celebrações, de partidos políticos ou de candidaturas. Também, durante tais atos, por divulgação radiofônica ou televisiva, ou por formas “midiáticas” de força semelhante. Finalizando e esperando o autor que sua opção confessional e denominacional não tenha prejudicado a necessária isenção; salienta que, para os que crêem em algo transcendente ao material e tenham consciência cidadã, o Reino de Deus e o Reino de César jamais podem ser confundidos. Mas, para todos, crentes, indiferentes e descrentes, que combatam pela felicidade humana, em todas as dimensões, no espírito de universalidade e no perseguir da utopia que um dia será realidade, nesse dia tudo se agregará em convergência.


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A Educação além dos números Ricardo Drummond Marsicano Ribeiro Diretor de pós-graduação, pesquisa e extensão da UniverCidade

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percepção da importância da educação no fortalecimento de toda e qualquer nação há muito faz parte do cotidiano das reflexões sociais, encontrando-se presente nos planos de governos, nas dissertações e teses das áreas respectivas e, principalmente, no senso comum da população. Objetivando o futuro-presente e centrando nossas observações nas lições do passado, cujos frutos hoje colhemos, podemos dividir a abordagem desta reflexão em duas dimensões: a primeira, relacionada à anatomia do problema, com uma rápida incursão nos números estatísticos, e a segunda, focada na fisiologia, com âncoras vinculadas ao aspecto da percepção qualitativa. No campo quantitativo lembramos o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) de 2004 (publicado para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD), que atribui ao Brasil um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que o posiciona na 72ª colocação entre os 177 territórios apresentados. O IDH serve como ponto de medida da qualidade de vida de um país, analisando educação, saúde e renda das pessoas. Desta forma, nosso país mantém-se na parte superior do grupo dos países com desenvolvimento humano médio. Ressaltamos que a educação vem sendo a dimensão em que o Brasil tem seu melhor desempenho, com uma marca superior à média latino-americana e, de forma interessante, proporcionalmente mais próxima dos valores dos países desenvolvidos. Por exemplo, a taxa de alfabetização informada pelo governo brasileiro indica que a tendência de queda no analfabetismo manteve-se no decorrer dos anos. Se considerássemos apenas a dimensão educação, o Brasil ficaria em posição bem acima da que ocupa no geral. Já no que se refere ao subíndice de renda, outra dimensão de nosso interesse, o país aparece igual à média mundial e ligeiramente superior ao da América Latina. Focando a atenção no ensino superior, encontramos significativa expansão neste segmento, fato que, contudo, não deve ser considerado como realização plena. Apesar de todo o esforço de ampliação, estamos muito aquém de nossas necessidades. Deveríamos observar exemplos no mundo moderno, como o da Coréia do Sul, que vem apresentando resultados dignos de elogios, o que demonstra uma postura

muito mais sensata do que visionária, tendo em vista tudo o que já se sabe quanto à importância da educação. Na Coréia, reflexo desta ação na área da Educação e de outras mais, as exportações alcançaram em 2000 quase três vezes mais que o Brasil. Sem sentido escatológico, mas apenas transcendendo à simplicidade numérica e retomando o foco da reflexão à funcionalidade do sistema, nos remetemos aos questionamentos e anseios populares: porque, afinal, com mais escolas e tecnologia, mais renda e investimento, ainda temos tantas desigualdades? Porque, apesar do relativo crescimento, perceptível nos indicadores, o desemprego assusta tanto? Permitindo-nos um breve retorno aos índices, nos deparamos com interessante paradoxo: em comparação à sua classificação geral, na dimensão renda o país encontrase várias posições acima da que ocupa no ranking do IDH geral, diferença de colocação que percebemos como uma inequívoca dificuldade do Brasil em transformar sua riqueza em bem estar para a população. Atestamos este fato ao nos depararmos com outra dimensão de análise, a esperança de vida ao nascer do brasileiro, onde ocupamos posição muito inferior àquela que ocupamos pelo IDH geral. Não é a toa que em várias passagens ao longo dos últimos relatórios o Brasil vem sendo citado como paradigma de iniqüidade. Enquanto nos aproximamos mais dos países ricos na dimensão educação, ficamos ainda mais distantes na dimensão renda. O país não tem conseguido resolver suas desigualdades, continua sendo um país de médio desenvolvimento humano, encontrando-se atrás, por exemplo, da Argentina, Chile, Uruguai, México e Cuba. De uma forma em geral, apesar de todos os esforços, é ainda alta a desistência escolar e, sem dúvida alguma, o rendimento fica aquém do desejado. Emerge, enfim, a realidade de que a questão passe, sempre, pelos aspectos qualitativos. Certamente vivemos uma crise de qualidade. É inegável o grande valor da criança e do jovem na escola, e não nas ruas. Mas tão ou mais importante do que um aluno a mais nos bancos escolares, é o cidadão que preparamos para a vida. Educação é o que precisamos. Educação com qualidade é o que não podemos prescindir. 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


A exclusão e o direito à segurança alimentar Cristiane Lisita Jornalista, advogada e escritora

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onforme nos diz o prêmio Nobel da Paz John Boyd Orr “a fome tem sido através dos tempos a mais perigosa das forças políticas”. A propósito, foi ela que precipitou a Revolução Francesa, em outubro de 1789, quando uma multidão de mulheres invadiu a Bastilha bradando por pão e incitando uma nova ordem social. Nos anos de 1840, a fome e a peste instigam, da mesma forma, o clamor do movimento cartista na retórica do “pão ou sangue”. A fome se revela como algo universal, um quadro sombrio. No século XIX, na China, ela matou cerca de 20 milhões de pessoas. Nos últimos 80 anos do século passado outros milhões de vidas foram destruídas, na Índia, sob o 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005

flagelo da fome. Em 1996, divulgando relatório da CIA, o jornal Washington Post, revelou casos de canibalismo na Coréia do Norte, praticados por camponeses na falta de ter com que se nutrir. Cerca de 90% da população, naquele ano, teve alimentação racionalizada em 600 calorias diárias, enquanto se estima que o necessário para o ser humano deva estar na faixa de 2.400 calorias. Denúncias de desaparecimento de gatos e pombos viraram manchetes dos meios de comunicação no ano seguinte na Coréia. Um jornal de Hong Kong noticiou a execução de várias pessoas condenadas sob a acusação de vender carne humana no mercado negro. Segundo o relatório da FAO, em 1996, havia 800 milhões de famintos nos países em desenvolvimento, sendo


O Mapa da fome no mundo revela a decadência humana na falta de solidariedade, nos desperdícios alimentares que crescem a cada dia, na distribuição injusta de terras e de rendas.

que deste total 215 milhões estavam na África subsaariana. Nicholas D. Kristof correspondente do jornal New York Times tem seu artigo reproduzido no jornal Estado de São Paulo, no dia 28 de maio de 2003, com o título O que foi feito contra o holocausto africano? dizendo a respeito de Eritréia: “ esta encantadora nação foi saudada nos anos 80 como uma das mais brilhantes esperanças da África, um símbolo de renascimento africano. Sua economia crescia até que Hillary Clinton apareceu por aqui... Eritréia agora está se transformando numa ditadura de bandidos: encarcera evangélicos, prende mais jornalistas que qualquer outro país do continente, e o regime que antes deu poderes às mulheres agora as estupra...o líder que libertou seu povo há uma década agora o está matando de fome”. O jornal Estadão noticiou no dia sete de outubro de 2002 que a fome chegou a ameaçar 15 milhões de pessoas na Etiópia e Eritréia. Segundo dados da FAO, 5 a 10 milhões de pessoas são vítimas da fome no Afeganistão. No Sudão, a fome mata de 20 a 50 pessoas por dia. As pesquisas revelam que na África são encontrados 38 milhões de famintos. Deste total, 18 milhões estão na Etiópia, Sudão, Eritréia. Outros 16,4 milhões em sete países da África e 2,7 milhões de pessoas na região dos Grandes Lagos, enfrentando problemas parecidos. Na Zâmbia, cerca de um quarto da população, ou seja, quase dois milhões e 300 mil pessoas estão em situação caótica em função da seca nos últimos três anos. O êxodo para as cidades fragiliza ainda mais a agricultura. As pessoas se alimentam mais de raízes e animais silvestres. A extralimitação de valores, a se entender a exclusão social, e neste caso por meio da fome, avança os continentes africano e asiático. Na Coréia do Norte, aproximadamente 70 mil crianças desnutridas podem fenecer de fome em breve. De acordo com a UNICEF, as reservas alimentares estão chegando ao fim. Seria preciso mais de um milhão de toneladas em alimentos para suprir as necessidades apenas este ano. Nos últimos dez anos três milhões de pessoas não sobreviveram à fome. O Mapa da fome no mundo revela a decadência humana na falta de solidariedade, nos desperdícios alimentares que crescem a cada dia, na distribuição injusta de terras e de

rendas. Segundo a FAO, a fome está destruindo a vida de 5 a 20 milhões de pessoas por ano no mundo. Cerca de 100 milhões de indivíduos estão sem teto. Os dados mostram que 1,1 bilhão de indivíduos estão na pobreza; deste, 630 milhões são extremamente pobres. São aproximadamente 150 milhões de crianças subnutridas com idade inferior a cinco anos, uma para cada três existentes no mundo. As pesquisas da FAO têm as consecutivas perspectivas do percentual da população subnutrida para o ano de 2015 no mundo: Oriente médio e Norte da África, 7%; Sul da África, 23%; Sul da Ásia, 12%, Leste da Ásia, 12%; e , América Latina e Caribe, 6%. No Sul da Ásia, nos anos de 1990-1992, tivemos 290 milhões de subnutridos; em 1997-1999, 300 milhões; em 2015 a previsão é de 190 milhões, enquanto para 2030 a expectativa chega a 120 milhões. No Leste da Ásia, nos anos de 1990-1992, os subnutridos chegaram a 270 milhões, que, em contrapartida, diminuíram em 1997-1999. Os índices para 2015 são de 130 milhões de indivíduos. Para o ano de 2030, teremos cerca de 75 milhões de pessoas subnutridas ou desnutridas. No Sul da África, em 1990-1992, tivemos 160 milhões de pessoas vítimas da subnutrição; em 1997-1999, 190 milhões. No ano de 2015 a tendência é que os índices cresçam alcançando 200 milhões de subnutridos, voltando a cair em 2030, para 180 milhões. O Oriente Médio e Norte da África contavam em 19901992, com 20 milhões de pessoas nesta situação, e em 19971999, os índices subiram para 25 milhões. A estimativa para 2015 é que aumente para 30 milhões os subnutridos e que em 2030, eles baixem para cerca de 27 milhões. Quanto à América Latina e o Caribe foram encontrados, segundo as pesquisas, 60 milhões de subnutridos nos anos de 1990-1992, e 55 milhões nos idos de 1997-1999. As expectativas são de que estes números sejam reduzidos em 2015 alcançando a casa dos 45 milhões de subnutridos e caia para 20 milhões em 2030. O órgão oficial de dados estatísticos nos EUA, Escritório do Censo, revela que o número de pobres aumentou de 11,3% em 2000, para 11,7% dos 281 milhões de habitantes em 2001. Enquanto o orçamento 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


de defesa absorve 400 bilhões de dólares, o setor social fica com 16 milhões. Para a FAO, os indigentes no Brasil superam a casa dos 50 milhões de habitantes, ou seja, um número maior que toda a população da Argentina, que é de 38 milhões de cidadãos. O Jornal da Paraíba, do dia 27 de janeiro de 2002, na reportagem de Luciana Oliveira e Elizangela Monteiro divulga os dados da Fundação Getúlio Vargas: a região Nordeste ocupa um dos primeiros lugares na questão de miséria e indigência no país. No Maranhão, 63% das pessoas são consideradas indigentes; no Piauí, 61,7%; no Ceará, 55, 7%; em Alagoas, 55,4%; na Bahia, 54%; em Pernambuco, 50,9%; na Paraíba, 50, 2%; Em Sergipe, 50,14%; e, no Rio Grande do Norte, 46,9% são indigentes. No Centro-Oeste, a exemplo de Goiás, estes números caem para 25, 46%; Minas Gerais, 26,79. Os menores índices estão na região de Santa Catarina ocupando a casa de 14,40% e São Paulo, com 10,40%. O artigo 5° da Carta Magna brasileira garante, entre outros direitos, o da alimentação. Vejamos o conceito de Segurança Alimentar para a FAO, concebido em 1988: “assegurar que todas as pessoas tenham, em todo momento, acesso físico e econômico aos alimentos básicos que necessitam. Assim, esta política deverá ter três propósitos específicos: assegurar a produção alimentar adequada, conseguir a máxima estabilidade no fluxo de tais alimentos e garantir o acesso aos alimentos disponíveis por parte dos que os necessitam”. A Segurança Alimentar deve ser percebida como um instrumento capaz de promover o desenvolvimento socioeconômico via agricultura sustentável, que gere riqueza e maior distribuição de seus frutos. A Segurança Alimentar deve garantir o acesso aos alimentos a baixo custo. O governo brasileiro, em pronunciamento presidencial, no prefácio do Relatório do Brasil para a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e DesenvolvimentoECO 92, articula: “Temos reiterado que a pobreza e a miséria, que impõem a milhões níveis de vida incompatíveis com a dignidade humana, são óbices a serem superados para a construção de uma ordem ambiental mundial mais justa, saudável e equilibrada”. O modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil tem acelerado as desigualdades sociais, engendrado misérias extremas e levado à degradação ambiental, que, de certo modo, já acena a sua vulnerabilidade. Há poucos dias, o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, alertou para o fato de que o Brasil enfrenta a maior crise dos últimos tempos no setor agrícola e que pode vir a importar produtos como o milho, devido ao cambio, taxas de juros, e falta de recursos orçamentários. Segundo ele, a crise na agricultura tem efeito muito maior para o setor do que o impacto da crise política. A previsão é de que haja uma queda de aproximadamente 5% na plantação de grãos no país, além de queda do superávit comercial. Se chover regularmente, a safra para 2006 pode chegar a 120 milhões de toneladas de grãos, caso contrário, cairá para cerca de 110 milhões, 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005

enquanto se esperava 132 milhões de toneladas. Assim, poderá haver aumento do preço dos alimentos, o que acarretará também uma maior inflação. Neste quadro caótico, a Segurança Alimentar torna-se mais uma vez comprometida. Não basta produzir alimentos em quantidades suficientes via agricultura sustentável. É preciso, todavia, permitir o acesso a estes alimentos por meio de sua distribuição eqüitativa entre as várias regiões do país. Conforme o Relatório do Brasil para a Conferência

A Segurança Alimentar deve ser percebida como um instrumento capaz de promover o desenvolvimento socioeconômico via agricultura sustentável, que gere riqueza e maior distribuição de seus frutos.

da ONU já mencionado o nosso país apresenta os piores indicadores de qualidade de vida da população. Isto se deve ao fato de que os recursos públicos ou subsidiam os grandes agricultores com financiamentos e créditos agrícolas, ou estes não são empregados de forma adequada. A Segurança Alimentar foi definida nos seguintes termos na I Conferência Nacional de Segurança Alimentar, em Brasília, em julho de 1994: “ Um conjunto de princípios, políticas, medidas e instrumentos que asseguram permanentemente o acesso de todos os habitantes em território brasileiro aos alimentos, a preços adequados, em quantidade e qualidade necessárias para satisfazer as exigências nutricionais para uma vida digna e saudável, bem como os demais direitos da cidadania!” Diz-nos Tristão de Athayde, no seu texto O Fiat e o Caos, “onde há riqueza exagerada há pobreza exagerada, isto é, miséria (...). A passagem da força à violência é uma conseqüência dessa perda de noção e da vigência do conceito de limite (...) que só pode ser resolvida na medida em que os donos do poder e da riqueza não se decidirem a limitar-se a si próprios, no seu poder e na sua riqueza, se pretendem evitar que as vítimas de sua falta de riqueza recorram a meios irracionais, como a violência, para cercear ou agravar situações irracionais. Pois, qualquer que seja o fim da peleja, o Salmista continuará cantando sob os rios da Babilônia- o abismo chama o abismo. Só o Amor vence o Amor.”.


INFORME

TRIBUNAL DE JUSTIÇA TERÁ ACESSO AO SISTEMA DA CEG

Da esquerda para a direita, Daniel Lopez Jordá(Dir. Presidente da CEG), Sergio Cavalieri Filho(Presidente do Tribunal de Justiça do Est. RJ), Armando Laudorio (Dir. de Relações Institucionais e com Investidores da CEG), Jorge Antonio de Souza Rocha (Dir.Geral de Tecnologia da Informação do Trib. Just. Estado RJ), Antonio Carlos Botelho Martins(Gerente de Assuntos Jurídicos da CEG).

A

Companhia Distribuidora de Gás do Rio de Janeiro – CEG e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ/RJ) assinaram no dia 14 de setembro, um convênio que permitirá que os Juízes acessem o sistema de gestão de clientes da CEG para verificar informações cadastrais em tempo real.  O convênio foi assinado pelo presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Sérgio Cavalieri Filho, pelo Country Manager do Grupo Gás Natural (operador técnico da CEG), Daniel López Jordá e pelo Diretor de Relações Institucionais e com os Investidores da CEG, Armando Laudorio.  A iniciativa reduzirá em até 80% o volume de ofícios enviados pelo TJ/RJ à CEG, que chegará a oito mil neste ano. Através de senha, os juízes terão acesso ao sistema da Companhia e poderão conferir as principais informações cadastrais, como nome, endereço e telefone. Assim, a Justiça do Rio ganha mais agilidade para localizar e convocar testemunhas, réus e autores de processos judiciais.  A CEG é a primeira concessionária de Serviço Público a firmar um convênio dessa natureza. A medida visa reduzir o volume de ofícios processados e expedidos pelo Judiciário, propiciando, além de economia de gastos para o Tribunal e à Concessionária, maior agilidade aos trâmites processuais. 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


CAMPANHAS MACIÇAS DE EDUCAÇÃO NO TRÂNSITO

Fotos Alex Viana

Rodrigo Terra Promotor

É

cogente, com certeza, conter a infração de trânsito em suas várias modalidades e garantir a ética como referencial coletivo, preocupação que motivou a aprovação do projeto de lei de número 3.710-E que, detalhista e inovador, passou a constituir a Lei n.º 9.503/98, o Código de Trânsito Brasileiro. Os abusos de circulação cometidos anteriormente à aprovação de referido Diploma, com graves implicações para o direito à vida e à integridade física de milhões de seres humanos, fomentaram a conscientização de todos quanto à necessidade de corrigi-los, elegendo-se, sobretudo, a educação no trânsito como meta para aperfeiçoar o funcionamento do Sistema Nacional de Trânsito. A inteligência do Diploma em questão, para o renomado Diógenes Gasparini, in ‘Novo Código de Trânsito: os Municípios e o policiamento’, verbis, “(...) sustenta-se no seguinte tripé: legislação ou esforço legal, engenharia e educação, sendo esta, na nossa opinião, a principal”. Para implementar a política referida, o Sistema passou a ser coordenado pelo Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), órgão superior normativo e consultivo e, também, integrado pelos Conselhos Estaduais de Trânsito (CETRAN) e o Conselho de Trânsito do Distrito Federal (CONTRANDIFE), órgãos normativos, consultivos e coordenadores, assim como dos órgãos e entidades executivos de trânsito e as Juntas Administrativas de Recursos de Infração. Entretanto, a atuação prática da vontade popular que motivou o legislador do Estatuto da Circulação tem sido desviada pela sobreposição da perspectiva de arrecadar à de educar, o que, infelizmente, acaba por amesquinhar o ideal de punir com legitimidade, comprometendo a função intimidatória da penalidade e, especialmente, a possibilidade de alteração do comportamento responsável por acidentes. A questão relativa ao julgamento das autuações e penalidades a cargo dos órgãos de trânsito é um exemplo desta indesejável inversão de valores. Até, pelo menos, julho de 2004, no Rio de Janeiro, procedia-se à notificação do condutor para cumprir a penalidade sem antes julgar a consistência do auto da infração respectiva, punindo independente da constatação da existência da infração. 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005

Assim é que, com fundamento em mera suspeita de haver sido cometida uma infração de trânsito, antes de garantir ao autuado a oportunidade de se defender, o Estado, açodadamente, pune-o, aplica-lhe a penalidade e o notifica para, desde já, efetuar o pagamento da multa respectiva, relegando a plano secundário o dever de verificar se a infração de fato ocorreu e se a punição é legítima. Em razão da omissão referida, perde o autuado a oportunidade de atacar diversas causas flagrantes de nulidade de autos de infração e a Administração, de avaliá-las, por, precipitadamente, considerá-los consistentes e aptos a fundamentarem a aplicação da penalidade. Pululam casos de imputações teratológicas, como a de conduzir automóvel sem capacete, assim como a de avançar sinal onde não há sinal ou a de parar em ponto de ônibus lavrada contra coletivo com parada regulamentada. Estes e tantos outros são paradigmas da irresponsabilidade de gerir o Sistema de Trânsito em desconformidade com o Texto Constitucional (art. 5º, LIV, CR). A falta de controle (rectius, defesa prévia) por parte do suposto infrator quanto à aplicação de multas indevidas combinada com o precipitado ingresso das mesmas no banco de dados respectivo, como se devidas o fossem, para ali figurar até o registro de seu pagamento, se prestam a constranger o proprietário, vulnerável juridicamente, a quitá-las para legalizar a circulação de seu automotor, gerando fantástica melhora do desempenho financeiro do Estado. Entretanto, a imediata verificação da inconsistência da autuação teria o condão de cancelar a eficácia de todo auto de constatação defeituoso, determinando o seu arquivamento (art. 281, I, CTB). Discorrendo acerca da implicação do desvio de finalidade da punição, o justamente renomado ministro do STJ, Luiz Fux, decidiu, ao relatar o REsp n.º 511.202-RS, que, verbis,


“(...) o cumprimento do devido processo legal, antes de conspirar contra os interesses das autoridades de trânsito, legitima-lhes a atuação, evitando que, açodadamente, abocanhem valores que, da forma como obtidos, serão inexoravelmente restituídos, (...) desmoralizando o poder público e, o que é pior: dando ensejo a que motoristas irresponsáveis persistam na trilha da inconseqüência, motivados implicitamente, pela deletéria sensação de impunidade”. Outro aspecto da forma de gerência do Sistema que compromete a eficácia protetiva da Lei n.º 9.503/98 e é corolário da garantia do exercício do direito de defesa trata-se da violação ao dever de motivação das decisões administrativas exaradas para rejeitar os recursos opostos contra as respectivas autuações, fazendo tábula rasa de outro preceito constitucional (art. 93, X, CR). A intenção deliberada de, indiscriminadamente, negar provimento à irresignação individual manifestada contra a constatação de infração de trânsito é materializada em formulários de que a Administração lança mão para, com expressões padrão, demitir-se da tarefa de efetivamente conhecer o motivo da irresignação para julgar a consistência dos autos atacados. Com o mesmo formulário, o Poder Público pode considerar consistente qualquer auto, independente da qualidade da defesa ou da espécie de infração do registro atacado. Ocorre que, sem revelar ao administrado a lógica da rejeição de seu recurso, motivando suas decisões, o órgão de trânsito não rebate os argumentos apresentados contra a consistência do auto de constatação de infração de trânsito. Em suma, a forma inadequada e, com maior razão, inconstitucional de atuação oficial alija o suposto infrator do acesso aos elementos capazes de convencê-lo da justiça da punição. Nestas condições, confirma, o apenado, a suspeita de que a punição sofrida não tem a finalidade de educá-lo, pois o tratamento meramente formal conferido a garantias individuais fundamentais esvazia a razão de ser do direito de recorrer e cria as condições para mais inconformismo, reduzindo a função do Sistema Nacional de Trânsito à arrecadação divorciada do objetivo inicial de transformar a realidade da circulação. Não se promove a ética violando seus preceitos mais elementares, com a exposição da coletividade ao risco de conviver com a possibilidade de satisfazer interesse patrimonial indevido da Administração a pretexto de contribuir para a educação no trânsito, valor cuja promoção pelo Estado passa a ser desacreditada pela população. O legislador do moderníssimo Código de Trânsito sabia que a punição pela punição não poderia corresponder ao anseio da sociedade por menos acidentes e mais segurança nas vias públicas. É necessário estudar a realidade para conhecê-la, conhecê-la para compreendê-la e compreendê-la para julgá-la, definindo estratégias. Para isso, é fundamental, pela letra da Lei, reunir dados concretos e concluir estatísticas que alimentarão

campanhas maciças de educação no trânsito, financiadas com o recurso auferido com o pagamento da multa. Pela lógica deste “ciclo virtuoso”, para controlar o número de acidentes, o papel que a punição do infrator desempenha é complementar ao da educação: o Estado recorre à educação para inverter os índices de infração e, posteriormente, pune quem não assimilou a lição, limitando, finalmente, a aplicação do recurso que arrecada com a punição ao financiamento de mais campanhas educativas. Comparando a política de trânsito com a de outros países, breve navegação pelo sítio http://www.thinkroadsafety.gov. uk/ renderia elementos eloqüentes ao administrador público legitimamente preocupado em reverter índices de acidentes e dar vida real à Lei do Trânsito. Campanhas destinadas a, através do esclarecimento maciço, chamar a atenção para a importância de não cometer infrações, advertem, por exemplo, que quem dirige falando ao celular amplia quatro vezes o risco acidente ou que uma criança atropelada a 40km/ h tem 80% de chance de sobreviver. Referidos índices, por sua vez, dão o enredo a filmes publicitários de altíssima qualidade acerca das conseqüências da imprudência no trânsito que, com inserções no horário nobre da televisão britânica, têm conseguido despertar a consciência do condutor acerca da responsabilidade que o simples e aparentemente inofensivo ato de conduzir implica para toda a coletividade, revertendo as estatísticas, em prazo razoável, para níveis plenamente aceitáveis. Por estas paragens, além da falta que a publicidade faz em prol de um trânsito seguro, a prioridade de punir para arrecadar compromete o resultados desejados até porque o produto do recolhimento de multas é desviado, por decreto, para finalidades incógnitas (ao arrepio do art. 320 do CTB), em vez de, obrigatoriamente, as inseguras vias públicas, esburacadas e com sinalização deficiente, receberem o investimento público devido para alcançarem melhores condições de trafegabilidade e contribuírem para aplacar a ocorrência de acidentes. E até o condutor que não seja infrator é freqüentemente induzido a pagar multa indevida, pois, mesmo que seja notificado para oferecer defesa prévia, esta será rejeitada sem qualquer motivação. Repita-se: sem efetuar o pagamento, não poderá renovar a documentação do seu veículo e, se não o mantiver legalizado, fechará o ciclo vicioso da eterna punição. Quem tem o poder de reverter as estatísticas de morte e mutilação no trânsito é, sobretudo, o próprio administrador. Sem reavaliar a lógica de funcionamento do Sistema (quanto menos educação, mais infração; quanto mais infração, mais arrecadação), restituindo à educação o objetivo prioritário do legislador, o trânsito continuará sendo uma das principais causas de morte. Finalmente, o desastre só poderá ser evitado com investimento pesado em campanhas maciças de conscientização, reservando à punição justa o seu papel complementar. Ainda há tempo de poupar as vidas que essa inversão de prioridades tem sacrificado. 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


BREVES CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO VICIADO E DO CRIME Dra. Soraya Taveira Gaya Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro

Arquivo

Parece já existir uma unanimidade quanto à patologia do viciado, só não se tem um consenso médico e jurídico de como tratá-lo e nem uma legislação específica a respeito, já que, a rejeição das pessoas assim “doentes” começa em casa com as brigas, o desamor, a revolta etc.

N

ão se trata evidentemente de um trabalho aprofundado sobre o tema, mas apenas algumas reflexões a respeito do assunto. Falamos do viciado – dependente - daquela pessoa que já caiu numa situação tal que pensa não haver retorno, que se sente acorrentada e absolutamente aprisionada pelo vício. Falamos ainda sobre o crime, sobre a violação da norma jurídica penal por aquele que não se encontra mais sob o seu juízo perfeito, não é mais senhor de sua personalidade normal, está com toda a representação da vida comprometida por intoxicação exógena. Crime cometido por dependente de substância entorpecente. O emprego de substâncias tóxicas como as beberagens alcoólicas fermentadas remontam a muitos milhares de anos antes de Cristo, parece ter-se originado da Índia e daí ganhou o mundo. A fabricação do vinho ganhou a máxima difusão no Império Romano, assim como as

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substâncias euforísticas, acompanhando o curso e o ciclo da civilização. Está provado cientificamente a existência de uma constante necessidade humana, como uma espécie de apetite profundo e irresistível, para as drogas euforizantes e onirizantes. Para tal fato explicava o grande médico e professor de psicopatologia forense J. Alves Garcia que “Os bebedores e os toxicômanos são, em geral, indivíduos bem constituídos mentalmente, inteligentes, sensíveis, ternos”. A volúpia tóxica corresponde, segundo ele, a uma necessidade de natureza puramente instintiva e afetiva, intimamente ligada à vida sentimental, na qual ela desempenha papel compensador e de substituição. (In Psicopatologia Forense, 2a. Ed.Irmãos Pongetti). Não se pode dizer que o viciado em substancias tóxicas – qualquer que seja ela: álcool, maconha, cocaína e outras – esteja no seu juízo perfeito, salvo os que fazem uso eventual


dessas substâncias. Aqui trataremos apenas daqueles que já se encontram dominados pelo tóxico, dependentes dele, sem forças para lutar contra a droga, que consome lentamente os seus dias, minando toda a sua estrutura familiar, profissional e individual, acabando por chegar aos crimes. Deve ser distinguido o sujeito que faz uso de entorpecente, sem ser dele dependente, daquele que já se tornou um toxicômano com conseqüências na sua vida social e individual. Este último, que vamos chamar aqui de viciado, é objeto de nossas considerações, sendo absolutamente patológica a sua disposição de ser escravo do tóxico. Tais pessoas acabam cometendo crimes em nome do prazer ou do hábito de se drogarem, pois perdem a noção de moral, de cidadania, de solidariedade, de família, de amor próprio, enfim, de tudo; descem todos os degraus da depravação e da inadaptação social/profissional. Mulheres e homens chegam à prostituição sem pudores, contando que dela venha a droga almejada. O viciado começa então a partir para pequenos delitos dentro de sua própria casa, furtando objetos para transformálos em tóxicos e, dali para crimes maiores é um pequeno passo. Alguns chegam aos roubos, latrocínios, homicídios, estupros e por aí vai, tudo porque estão sob o efeito doentio da droga. Os pais, muitas vezes, sem alternativa, acabam entregando os filhos à polícia, onde são tratados como presos comuns e não como doentes, assim o viciado tende a piorar, saindo dali mais doente do que quando entrou. Em outros casos, o viciado acaba assassinando quem ele mais ama, num momento de querer eliminar qualquer obstáculo que possa dificultar o prazer de drogar-se, naquele momento ele sequer reconhece a pessoa que está destruindo, seu intelecto está tão comprometido que podemos dizer que não é ele – pessoa dotada de personalidade normal – quem está ali, e sim um doente. Numa outra vertente temos os parentes que acabam “matando” o viciado, até para não serem mortos por ele, mortos em todos os sentidos, não só o de perecer fisicamente, como também psicológica, moral e materialmente. É um problema grave porque o viciado não é um criminoso, mas acaba se tornando um para poder chegar ao tóxico. Muitos pais acabam até sustentando o vício dos filhos – e com isso cometendo também um crime - para que eles não cheguem à delinqüência, segregando-os do mundo. Muitas vezes o fim dessas pessoas é a morte prematura em decorrência de complicações de saúde por causa dos males da droga ou por erro de dosagem no uso da mesma. Por todos esses motivos, temos que, de lege ferenda, quando um viciado cometesse um crime qualquer seria ideal a realização obrigatória de exame médico a fim de que se apurasse a sua higidez mental, se ele é um intoxicado e se tem necessidade de tratamento, elucidando o estado mental daquele criminoso no momento da ação ou omissão, para que se pudesse ter um julgamento justo com aplicação das medidas corretas.

Quem pode afirmar estar no estado psíquico normal um filho que mata a própria mãe porque esta se recusara a lhe dar numerário para compra de entorpecente? É claro que um crime desta espécie é repugnante, mas não podemos esquecer que foi cometido por alguém que não está mentalmente são. Parece já existir uma unanimidade quanto à patologia do viciado, só não se tem um consenso médico e jurídico de como tratá-lo e nem uma legislação específica a respeito, já que, a rejeição das pessoas assim “doentes” começa em casa com as brigas, o desamor, a revolta etc. Muitos sequer percebem que o filho mudou os hábitos e está se iniciando no consumo das drogas, quando percebem a “doença” já está em estado avançado, sendo mais fácil repudiá-lo do que tentar curá-lo. O Código Penal não prevê nenhuma atenuante para o caso do crime ter sido cometido em estado que resolvemos chamar de perturbação toxicológica. Por outro lado, não se pode perder de vista que o viciado tende a desenvolver doenças mentais como as psicoses, paranóias, esquizofrenias e outras. Talvez, a perícia devesse partir daí primeiramente, ou seja, apurar a integridade mental sob o ponto de vista das diversas doenças mentais, para depois perquirir da ação do tóxico no desencadeamento de tais doenças ou perturbações. A causa primeira de tais resultados danosos é o tráfico e precisa ser combatida com veemência e energia, pois dali saem a maioria dos crimes. É uma ramificação sem limites, cria-se cada vez mais viciados e, por conseqüência, mais criminosos. É como se eles fossem robôs, o doente comete crimes como um autômato, sem consciência alguma da letalidade ou das conseqüências de seus atos, são como animais irracionais usados pelos traficantes para os mais variados fins. Concluindo, os viciados que cometem crimes deveriam receber tratamento diferenciado posto que portadores de patologia que reclama cuidados especiais. Agrava as condições de saúde do dependente o fato dele ser tratado como um criminoso comum e colocado para cumprir pena junto com delinqüentes das mais diversas categorias. Ainda que o exame pericial conclua pela sanidade do viciado, já que não poderá ser atestado se momento exato do crime praticado possuía ele perfeito discernimento mesmo tendo agido sob o efeito de substancia tóxica, sua condição de dependente não pode prejudicá-lo e sim servir como atenuante. O criminoso dependente de drogas é uma pessoa especial e como tal deve ser tratada. Caso não seja desde o primeiro delito, o que acontece geralmente no início de sua debilidade, dificilmente se poderá contê-la e tratá-la quando já tiver chegado a crimes mais graves, pois o perigo social que apresenta torna-se cada vez mais potente. Paralelamente a isso, cada membro da sociedade, ao invés de dar as costas para o problema deve procurar fazer a sua parte para que não surjam novos viciados e isso pode começar em casa. Vale aqui um ditado bem apropriado: quando a família não cuida satisfatoriamente do seu filho, um traficante o adota. 2005 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49


FÓRUM

Voto aberto na escolha de novos juízes

O

bedecendo a resolução do Conselho Nacional de Justiça, o órgão especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro realizou a primeira votação para a nomeação de juízes através do voto aberto e juramentado. Foram promovidos o juiz Fernando Foch de Lemos da Silva, titular da 23ª Vara Cível da capital, por antiguidade e o juiz da 9ª vara de órfãos e sucessões, Roberto Luiz Felinto de Oliveira, este por merecimento. Fernando Foch ingressou na magistratura em outubro de 1984, trabalhando como juiz da Região Judiciária. Foi promovido em 1987 a juiz de direito da 2ª entrância, indo atuar na 1ª Vara Cível de Itaguaí. Em 1993, promovido a juiz de Entrância Especial, atuou na 1ª Vara Cível de Santa Cruz. Fernando Foch entrou na vaga deixada pela aposentadoria do desembargador Flávio Nunes Magalhães. Roberto Luis Felinto de Oliveira entrou na vaga do desembargador Humberto de Mendonça Manes, que se aposentou. Felinto foi nomeado juiz de direito da 1ª entrância em 1988, indo trabalhar na Comarca de Santo Antônio de Pádua. Promovido a juiz de 2ª entrância, atuou na 2ª Vara de Resende. Passou para a entrância especial em 1996, indo para a Vara de Família de Bangu.

TJ presta homenagem a Humberto de Mendonça Manes

Arquivo

O

desembargador Humberto Manes do Tr i b u n a l de Justiça do Rio de Janeiro, aposentado compulsoriamente, recebeu significativa homenagem do órgão especial dessa Corte. Com quase 40 anos de atuação na magistratura, Manes que presidiu o TJ/RJ de 1999 a 2001, foi juiz substituto titular da 10ª Vara Cível do Estado da Guanabara e juiz do Tribunal de Alçada Cível. É professor universitário da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Na sessão em sua homenagem, o desembargador Marcus Faver disse: “Há aqui neste silêncio do Tribunal, uma reverência ao caráter de um justo”.O desembargador Álvaro Mairink referindo-se, também ao homenageado: “É um grande Magistrado e um homem raríssimo”. O desembargador Éderson de Mello Serra também se manifestou declarando que “graças a Humberto Manes, o Tribunal de Justiça entrou no século XXI com o pé direito, sendo o mais eficiente Poder Judiciário da Federação”.

Arquivo Ministra Eliana Calmom

A

Direção e a Editoria da “Revista Justiça & Cidadania” se associa com entusiasmo às homenagens que se prestam a renomada jurista Eliana Calmom, ilustra e culta Ministra do Superior Tribunal de Justiça, visando a sua premiação no concurso patrocinado pela Revista Forbes Brasil. A participação e votação pode ser feita pelo endereço eletrônico da Revista: www.forbesonline.com.br(foto) A ministra Eliana Calmom concorre ao prêmio “As mulheres mais influentes do Brasil” como personalidade feminina de maior destaque nos meios jurídicos do País.

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