Revista Justiça & Cidadania

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2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006


EDIÇÃO 67 • FEVEREIRO de 2006

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DESAFIOS DA JUSTIÇA PAULISTA

SINAL VERMELHO PARA AS DESPESAS

Foto: Arquivo

ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO

UTOPISMO CONSTITUCIONAL

UMA DECOLAGEM PARA O FUTURO

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EDISON TORRES DIRETOR DE REDAÇÃO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DEBORA OIGMAN EDITOR DE ARTE SIMONE MACHADO REVISÃO VINÍCIUS GONÇALVES EXPEDIÇÃO E ASSINATURA CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA,50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-100. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429 CNPJ: 03.338.235/0001-86 SUCURSAIS SÃO PAULO ORPHEU SALLES JUNIOR AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611 FORTALEZA CARLOS MOURA RUA JOAQUIM FERREIRA Nº 1200 BAIRRO LAGOA REDONDA. FORTALEZA-CE TEL(85) 3476-2518 / 8829-6363 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED.PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP 90010 272 TEL (51) 3211 5344 BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 - BLOCO E Ed. CENTRAL PARK FONES: (61) 3327-1228 / 25 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL (61) 9968 - 5926

revistajc@revistajc.com.br www.revistajc.com.br ISSN 1807-779X

CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa

SUMÁRIO EDITORIAL

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ENTREVISTA - dr. Celso Limongi

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ANDRÉ FONTES antonio carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima

a eficácia jurisdicional depende da instruçÃo 14

aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso Darci norte Rebelo denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Francisco Viana Frederico José Gueiros Humberto Gomes de Barros

o congresso e o cálculo da vergonha 16 o projeto da lei antidrogas 18 a união civil entre pessoas do mesmo sexo 20 dívida astronômica 22 abc da transposição 24 sem problemas para as empresas 26 JUSTIÇA QUALIFICADA, RÁPIDA E ACESSÍVEL 28

Ives Gandra martins josé augusto delgado

CONFLITO ENTRE LIBERDADES 30

José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão

AS FACES PERVERSAS DO MERCADO ILEGAL 38

Manoel Carpema Amorim Marco Aurélio Mello

tURISMO: SEGMENTO IMPORTANTE 40

MAURÍCIO DINEP maximino gonçalves fontes Miguel Pachá nEY PRADO Paulo Freitas Barata SEBASTIÃO AMOÊDO thiago ribas filho

da antigüidade à internet, comunicar 42 é sempre um desfio Aspectos jurídicos da transferência de direitos 46 sobre títulos precatórios fórum 50

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EDITORIAL

BUROCRACIA ESCLEROSADA

“Ao contrário do que alguns pretendem, a Economia está infensa à crise política. Infelizmente, não está infensa à incompetência governamental.”

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crise brasileira tem demonstrado que os anticorpos da democracia são fortes, nada obstante a desfiguração dos detentores do poder. Juridicamente, a Constituição tem demonstrado possuir mecanismos capazes de controlar os anseios totalitários do governo de imitar Fidel Castro e Chavez pela tentativa de desqualificação dos adversários, assim como alguns arroubos da parte mais radical – não a maioria da oposição de afastar o presidente, por conduta indigna de membros do alto escalão, no Executivo e no Legislativo, quanto ao manuseio do dinheiro público. O primeiro grande teste da Lei Suprema brasileira está demonstrar sua capacidade de resistência e da existência de instrumentos legais parta administrar a crise. A oposição – em face deste desventrar de podridões partidárias da situação - chama o governo de corrupto. Este, por estar a oposição descobrindo, todos os dias, novos sinais de malversação do dinheiro público, chama-a de golpista. Mauro Chaves, no O Estado de São Paulo de 10/12/05, sem receio, declara que “nunca tantos roubaram tanto de tanta gente em tão pouco tempo”! 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

Neste quadro, as instituições garantem o fluir econômico, que, a meu ver, não foi abalado pela maior crise política da história brasileira, após a saída do regime de exceção de 1964/85. Ao contrário do que alguns pretendem, a Economia está infensa à crise política. Infelizmente, não está infensa à incompetência governamental. A má performance da Economia no 3º trimestre não decorreu da crise política, mas de um mau gerenciamento do presidente, incapaz de definir uma linha e alimentador, por palavras dirigidas à imprensa, de um deletério debate entre dois de seus principais ministros, Dilma e Palocci, ora prestigiando um, ora prestigiando outro, mas sem definir ele mesmo sua própria posição. Pior que isto, em 2005 o governo elevou os gastos com despesas da burocracia esclerosada, ou seja, 10,2% dos gastos da União com pessoal (com o que), como sinaliza Raul Velloso (O Estado de São Paulo, 06/12/05, p. B3), sem um “novo aumento da carga tributária”, corremos o risco de voltar à espiral inflacionária. Declara, ainda, que o país está “à beira do precipício”.


Arquivo

De rigor, com carga tributária confiscatória, juros elevados e máquina administrativa ineficiente, a manutenção de um superávit primário elevado para garantir administrabilidade das contas públicas, termina por reduzir qualquer aspiração de crescimento, sendo estes efetivamente os fatores da má performance governamental e não a crise política, que se desenrola em outro plano e sem influenciar os agentes econômicos. Estou absolutamente convencido que só há uma maneira de o País voltar a se desenvolver, qual seja, fazer com que a sociedade cresça e a máquina burocrática – esclerosada, inoperante e prenhe de amigos (correligionários do rei – presidente) diminua. No governo Lula, os gastos com pessoal e administração pública – despesas correntes - só aumentaram, sem que, infelizmente, a máquina aumentasse sua qualidade operacional. Tenho receio de que o ano de 2006 poderá ser ainda pior, visto que a proposta orçamentária da União prevê um salário mínimo de 321 reais, ou seja, um reajuste de 7% e, por ser um ano eleitoral, poderá o governo relaxar o controle severo das contas públicas - já que não controla a ineficiência da

máquina - para tentar conquistar eleitores. E, a ser verdade a declaração presidencial que o salário mínimo será de 350 reais, o descompasso tornar-se-á incontrolável. E o afrouxamento do único setor que ainda funciona – controle da inflação - poderá, realmente, acarretar o desarranjo das contas públicas e da economia, apesar da solidez das instituições. Se isto ocorrer, aí sim a crise política poderá ser um fator de desagregação dos fundamentos econômicos e o país ingressar no populismo social, na demagogia eleitoral e no retrocesso institucional. Em 2005 fomos o país que menos cresceu na América Latina e no mundo emergente. Se não houver correção de rumos nos gastos públicos - o grande vilão do governo Lula -, certamente teremos um 2006 - como disse Raul Velloso - em que o país ficará à beira do precipício.

Ives Gandra da Silva Martins Membro do Conselho Editorial 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5


ENTREVISTA

Presidente do TJ de São Paulo Dr. Celso Limongi:

“O Estado não paga e não cumpre suas obrigações ” Arquivo

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desembargador Celso Limongi, como novo presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, revelou a Revista Justiça & Cidadania que o Estado é “exatamente aquele que mais se beneficia com as falhas e com a morosidade da justiça, mas lamentavelmente não cumpre suas obrigações. O Poder Público trata de forma humilhante os seus credores e isso se explica pela nossa cultura de total desrespeito ao cidadão”. Entrevistado pelo nosso diretor Tiago Salles e por Francisco Viana, em seu gabinete na capital paulista, o desembargador Celso Limongi disse, entre os vários assuntos abordados, que em seu mandato pretende acelerar a informatização do Tribunal para acabar com a lentidão que considera absurda na distribuição de processos.

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Como será sua atuação na presidência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que é tido como uma instituição muito conservadora, tendo em vista seu passado de magistrado independente e progressista? Não vou mudar minha personalidade, vou agir sempre na busca da participação conjunta dos desembargadores. Democracia significa não só todos votarem como também que tenham todos uma grande participação nessa administração. De onde vem a maioria dos processos no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo? O Tribunal de Justiça de São Paulo recebe a cada mês 45 mil processos que são distribuídos aos 360 desembargadores que compõem a Côrte. São processos de toda natureza, uma grande massa oriundos de conflitos de família, mas a grande maioria envolve o Poder Público, seja como autor ou réu. O Poder Público se tornou nosso maior cliente, porque quando o poder executivo - nos seus três níveis: federal, estadual e municipal - não cumpre suas obrigações, redunda numa enorme massa de processos para o Judiciário. Mas isso não acontece só em São Paulo, é um problema enfrentado por todos os tribunais do País. Em relação às empresas prestadoras de serviços públicos, qual o panorama? A demanda tem aumentado? Tem aumentado sim, e, inclusive, foi colocado em prática um projeto chamado “Expressinho”, onde o Tribunal de Justiça disponibiliza para as concessionárias conveniadas, um espaço no Fórum João Mendes Jr. para que antes do ajuizamento de uma ação haja uma tentativa de conciliação. É realizada uma mediação e em 70% dos casos o problema é resolvido ali mesmo, sem a necessidade de processo. Tem sido muito útil para a população e tem desafogado um pouco os juizados especiais. A que o senhor atribui o fato de que a maioria dos processos tem origem no Poder Público? Lamentavelmente o Poder Público não quer cumprir suas obrigações. O titular do cargo do poder executivo joga para seu sucessor o pagamento das dívidas, e este, por sua vez, transfere para o próximo e assim por diante. Temos precatórios que devem ser cumpridos e que infelizmente são desconsiderados e nada acontece nada com o Poder Público, não há uma punição. Quando o Tribunal de Justiça decreta a intervenção em um município e comunica ao chefe do Executivo estadual, a este cumpriria intervir, mas não há interesse para tal, então não acontece nada. O Poder Público não paga e não sofre nenhuma conseqüência.

“Lamentavelmente o Poder Público não quer cumprir suas obrigações. O titular do cargo do poder executivo joga para seu sucessor o pagamento das dívidas, e este, por sua vez, transfere para o próximo e assim por diante.” E como se explica isso? Isso se explica pela nossa cultura de total desrespeito ao cidadão. O Poder Público trata de uma forma humilhante, ignominiosa os seus credores. Esse tipo de prática é recente ou tem se agravado? Sempre foi assim, acho até que piorou, porque antes ainda se decretava a intervenção e às vezes era cumprida, mas hoje nem isso acontece. Há uma mera comunicação ao governador e não há interesse em intervir. O que poderia ser mudado para que fossem cumpridas as intervenções? Dependeria de uma solução em tema constitucional, onde se punisse a omissão do poder executivo. Toda lei que não prevê punição, todos nós sabemos que é uma lei que não foi feita pra ser cumprida. Há um desprezo total do Poder Público em relação a essa situação. Agora há a possibilidade de seqüestro de rendas do Poder Público, e isso tem assustado um pouco e movimentado o Executivo para atender aos precatórios. Por exemplo, se o pagamento de um precatório violar a precedência desse, está previsto o seqüestro de rendas, mas isto só na hipótese de violação, no mais, não há um meio adequado para o Judiciário exigir um cumprimento dessas obrigações. Em outros países, como isso funciona? Em outros países também encontramos essas dificuldades, principalmente na Espanha. A administração não gosta de cumprir suas obrigações, há sempre uma resistência. O Estado não paga e não cumpre suas obrigações.

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Como o senhor analisa o fato do Estado ser quem mais se beneficia da lentidão do Judiciário? O Estado é exatamente aquele que mais se beneficia com as falhas e com a morosidade da justiça. Agora nós temos visto que o Poder Público pode protestar títulos da dívida liquida. Os Tribunais ainda vêem com alguma divergência, mas temos visto decisões que permitem os protestos desses títulos. É mais uma coação do Estado contra o indivíduo, por que o inverso não acontece nunca. O cidadão que não paga vai sofrer todas as conseqüências, multas altas, juros, correção monetária e se for uma empresa provavelmente quebrará. Com o Poder Público, além dos prazos que são especiais quando da defesa de seus pseudo-direitos, não se pode penhorar um bem do Estado, então não existe um instrumento em favor do cidadão, contra ele tudo, a favor nada, essa é a situação que vivenciamos em relação ao Poder Público. O Judiciário também precisa tomar uma posição mais forte, interpretando as leis, para podermos minimizar esses descompassos que existem na sociedade. Como o senhor pretende resolver a lentidão absurda que ocorre na distribuição de processos que alcançam até cinco anos de espera? Temos que atacar em várias frentes, uma delas, e a mais imediata e principal, é acelerar a informatização do nosso Tribunal. É evidente que não se pode falar em celeridade no andamento de processos se não tivermos um sistema de excelência em termos de informatização. Outro ponto é relativo à assistência aos desembargadores, que contavam com apenas um único assistente, agora são dois, mas nós precisamos de três no mínimo. Essa iniciativa vai melhorar muito o prazo de julgamento em segundo grau. Os assistentes podem recorrer a pesquisas que vão ajudar muito os desembargadores, 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

como acontece há muito tempo no Rio Grande do Sul e em outros estados. Uma terceira solução virá do Poder Legislativo, precisamos modernizar os nossos códigos de processo civil e processo penal. Nosso direito, baseado no direito romano, é atrelado a formalidades que impedem o juiz de dar uma seqüência no andamento do processo. Outra questão vital para o Judiciário de São Paulo é fixar na Constituição do Estado um índice mínimo no orçamento destinado a ele. Um Poder que não tem autonomia financeira não pode ser considerado Poder e nós dependeremos sempre da boa vontade do Poder Executivo e do Poder Legislativo. O Tribunal pediu R$ 8 bilhões para este ano, mas o Executivo liberou R$ 3,9 bilhões. Estamos em contato com aqueles dois poderes para tentar reverter essa situação. Em São Paulo, felizmente, pelo menos nesses últimos anos, temos contado com a boa vontade desses dois poderes, mas isso não é garantia para o futuro, não sabemos como e quem governará daqui por diante. Nos últimos anos tem se falado muito sobre reformas, inclusive a do Judiciário, mas que não têm saído do papel. A que o senhor atribui essa lentidão de se reformar o país? Uma delas é a falta de estrutura do Judiciário por falta de verba, eu sei que no Rio Grande do Sul, por exemplo, 7,11% do orçamento é destinado ao Poder Judiciário, aqui em São Paulo não ultrapassa 4%. Sem a estrutura adequada, sem leis que permitam aos juizes decidirem com mais rapidez, nós não podemos fazer muita coisa. Todo o Brasil depende da modificação da legislação processual. Precisamos compreender que um processo civil é feito para pessoas de carne e osso que têm suas necessidades, e nós juízes também temos os nossos anseios, que são coincidentes com os anseios da sociedade. Todos queremos promover


“Não corresponde a verdade quando se diz “a polícia prende e o juiz solta”. O que o juiz faz é agir tecnicamente, mas até a sociedade compreender isso leva tempo, a maturidade da sociedade e da imprensa não chegou ainda a esse nível.” uma justiça útil, rápida, séria e que mostre resultados, mas não dispomos de instrumentos legais e nem de estrutura física nem humana. De onde vem essa herança? Aqui no Brasil, pelo nosso sistema de colonização de capitanias hereditárias, nosso Judiciário sempre foi dependente, sofria de injunções políticas. O nosso código civil, de 1916 por exemplo, era excelente até a metade do século passado, quando era muito bom para o Brasil agrário, mas não era um código que já satisfizesse as grandes necessidades da sociedade atual tais como: trabalho, moradia e saúde. Então, se o código não trata das angústias da sociedade não tem o Judiciário como resolvê-las, a não ser improvisando, indo à frente da lei, e nesse ponto é preciso louvar o que o Judiciário já fez e vem fazendo no Brasil. No direito de família, por exemplo, ele sempre foi precursor, sempre trouxe novas idéias, sempre adaptando soluções às novas realidades apresentadas. Em diversas questões o Judiciário apresentou solução antes mesmo da legislação, como a questão da união estável, onde a lei surgiu da experiência e da jurisprudência dos tribunais. Vemos isso também em outros exemplos como a promoção de registros, a prisão albergue e, principalmente, no direito do consumidor. Muitas leis são elaboradas baseadas nas jurisprudências afirmadas nos Tribunais, mas o Tribunal de São Paulo, em função do tremendo acúmulo de serviços, não tem tido mais essa oportunidade de inovar. Como será financiada a informatização do Tribunal de Justiça de São Paulo? Através de um convênio com o Banco Nossa Caixa, que tem proporcionado recursos para a extensão da informatização no Estado. A Ordem dos Advogados de São Paulo, muito preocupada com a situação que vive o Tribunal, propôs o financiamento da informatização pelo Banco Mundial e não há porque não aceitá-lo desde que não haja nenhuma contrapartida por parte do Tribunal. Estamos às vésperas de uma campanha presidencial, o que o senhor considera essencial, em relação ao Judiciário, na plataforma de governo do próximo presidente da República? Em primeiro lugar o respeito absoluto pela

independência do Judiciário, da mesma forma que o presidente da República tem que ter respeito absoluto pela imprensa e pela informação. Esses são pilares intocáveis da democracia. Todos esses acontecimentos que foram noticiados pela mídia somente puderam vir a público em razão da sua liberdade de imprensa, que deve ser sempre preservada. Recentemente tivemos tentativas de reduzir essa independência com a possibilidade da formação de um Conselho Federal de Jornalismo. Existe a preocupação em relação ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Nacional do Ministério Público. Esses Conselhos, incluindo o Conselho Federal de Jornalismo, que acabou não sendo criando, é uma forma de se reduzir independência, já que eles detêm poderes muito fortes. A administração de um Tribunal, citando um caso, pode sofrer intervenção desse Conselho. E abstratamente, num Conselho Nacional de Justiça, dado os poderes que lhe foram conferidos pela Constituição, fico temeroso que haja uma forma de desbordar-se da esfera de sua atribuição, pois não há como fiscalizá-lo. É preciso que o próprio Conselho se fiscalize e não há essa possibilidade. Sob essas perspectivas, onde o senhor diria que o Judiciário errou ao se posicionar no momento da abertura política? Os juízes sempre foram inibidos, eles não davam entrevistas, não se manifestavam e ainda hoje não é muito comum que eles falem a imprensa. O grande equívoco do Judiciário foi não manter um diálogo com a sociedade. A mídia, no meu entender, serve de elo entre a sociedade e o Judiciário, porque se eu consigo falar com a sociedade poderei mostrar a ela quanto o juiz trabalha, quanto nós temos de serviços e volume de processos, quais são nossas angústias e anseios. É comunicando-se que teremos perfeito conhecimento do que a sociedade quer e necessita, porque estaremos mantendo diálogo, a sociedade nos ouvindo e nós a ela, aumentando assim a confiança nos juízes. No Brasil todas as decisões são contestadas, não há uma decisão que alguém diga que seja justa. Se um preso é libertado é porque tecnicamente ele não deveria estar preso, mas em seguida vêm as criticas: “foi solto porque era rico”, “está preso porque é pobre”, as críticas são sempre dessa natureza. A sociedade não compreende como o juiz 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


“Todos queremos promover uma justiça útil, rápida, séria e que mostre resultados, mas não dispomos de instrumentos legais e nem de estrutura física e NEM humana.”

julga, nunca ninguém disse para ela como o juiz pensa ou age. É difícil até para a própria imprensa perceber que o juiz tem que julgar pelo o que está escrito no processo e não pelo o que se diz na rua, há prazos que têm que ser cumpridos, ninguém pode ficar provisoriamente preso indefinidamente, se o prazo legal de 81 dias for ultrapassado por um tempo razoável o juiz o mantém preso, mas se ficar 200 dias já deixou de ser razoável e o juiz tem que conceder a liberdade. Não corresponde a verdade quando se diz “a polícia prende e o juiz solta”. O que o juiz faz é agir tecnicamente, mas até a sociedade compreender isso leva tempo, a maturidade da sociedade e da imprensa não chegou ainda a esse nível. Nesse caminho do diálogo com a mídia o que o senhor pretende fazer? O Tribunal está aberto para a sociedade e para a mídia, o que eu preciso é abrir ainda mais as portas do Tribunal, mostrar quais são as nossas dificuldades, porque os processos não andam, porque existe essa lentidão nas decisões, porque as decisões são tomadas num sentido ou noutro. E como presidente, eu posso explicar em tese como o juiz raciocina e precisamos passar isso para a sociedade. Dizer como o juiz decide num processo civil, penal ou em qualquer outro, mostrando que ele tem a obrigação de examinar tecnicamente. Essa falta de informação faz com que suas decisões não sejam compreendidas pela sociedade. O senhor afirmou que “O Tribunal se ressente de uma administração mais profissional”, afirmou inclusive, da necessidade da criação de um ombusdman. O que mais está faltando? Essa forma de administração profissional já se iniciou com o desembargador Tâmbara, a quem eu tenho honra de suceder, pois é preciso que se realizem estudos para buscar a eficiência, fazendo com que as etapas do processo sejam 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

vencidas rapidamente e isso depende de poucas providências. São questões de administração que só o técnico consegue enxergar e não o profissional de direito. O juiz é preparado para julgar, não para administrar. Como o senhor vê os projetos que tramitam no Congresso Nacional, que transferem a responsabilidade da indicação de Ministros do STF para as corporações de advogados, como acontece nos Tribunais Estaduais e Superiores, e para as corporações de Magistrados e do Ministério Público? Alguma coisa precisa ser modificada. É preciso que haja redução desse poder do presidente da República de indicar quem ele considere de notável saber jurídico e de ilibada reputação. A forma precisa ser estudada, não vejo como boa perspectiva a indicação por corporações, o mandato eletivo também é um pouco perigoso, porque politiza demais e essa votação teria que ser feita no Brasil todo. Então seria melhor que os candidatos indicados pelo Executivo se submetessem a uma verdadeira sabatina pelo Senado federal, e a posição dessa casa não seria somente a de homologar aquilo que o presidente da República indicou, mas ele teria sim uma função de aferir as qualidades desse candidato, se ele merece ou não merece ser nomeado. Muitos Tribunais não vão atender a exigência da Emenda nº 45/2004 relativa à composição dos Órgãos Especiais. Como o senhor percebe essa postura e como será aqui em São Paulo? Existem argumentos ponderáveis para defender uma ou outra solução. Eu, particularmente, busco respeitar a vontade da grande maioria dos desembargadores de São Paulo, é uma questão que ainda necessita de regulamentação, o que nósfizemos foi antecipar e por isso vejo como uma imposição a eleição de metade do Órgão Especial.


SINAL VERMELHO PARA AS DESPESAS Antônio Ermírio de Moraes Empresário

“Qualquer chefe de família que esteja endividado sabe que jamais sairá do sufoco se continuar gastando mais do que ganha.”

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or que o Brasil não cresce? Afinal, nossas exportações explodiram. O superávit comercial é enorme. A inflação está sob controle. Temos a Lei de Responsabilidade Fiscal. E, acima de tudo, o governo economizou 4,84% do PIB - quase R$ 100 bilhões em um ano. Não seria esse um bom quadro para o país crescer? Ao destrincharem esses argumentos, os economistas revelam, porém, que o enorme superávit primário foi obtido com base em um brutal aumento de arrecadação de impostos e não com base em corte efetivo nas despesas do governo. Ao contrário, no âmbito federal, estas subiram mais de 10% em termos reais, sem contar os gastos com juros. A gastança foi maior do que a economia. Resultado: não sobrou dinheiro para os investimentos públicos, especialmente para a infra-estrutura que, afinal, é a base do crescimento econômico. Em 1987, a União investia cerca de 2,5% do PIB nessa área, o que já era irrisório. Hoje, investe menos de 0,5%. O Brasil estará condenado a crescer pouco por muitos anos se esse quadro não mudar. Todos sabem, por exemplo, que a falta de investimentos em energia nos dias de hoje condenará o país nos dias de amanhã. O que vale para a energia vale para as rodovias, ferrovias, portos, armazenagem e tantas outras necessidades de infra-estrutura. O resultado do nosso sacrifício foi desanimador. Qualquer chefe de família que esteja endividado sabe que jamais sairá do sufoco se continuar gastando mais do que ganha. Esse é o caso do Brasil. O atual ajuste das contas

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públicas é de má qualidade, pois se baseia exclusivamente no aumento de arrecadação. Para quem analisa a economia desse ângulo, os sinais são preocupantes. Os investidores que têm vocação produtiva, com raras exceções, ficam desconfiados de um governo que economiza tanto e se endivida cada vez mais. Poucos desenvolvem o interesse em investir em empreendimentos que demandam um longo período de maturação ao intuírem que o desequilíbrio das contas públicas será atacado com mais impostos. Poucos se animam a investir quando vêem que, com a produção contida e a gastança aberta, o governo terá de manter juros estratosféricos para controlar a inflação. Nessas condições, os capitais vão para as operações especulativas ou procuram outros países. Em 2005, o fluxo de investimentos produtivos no mundo cresceu 29%. No Brasil, diminuiu 15%. O Instituto de Finanças Internacionais prevê a mesma situação para 2006. Estamos em um ano eleitoral. A economia ocupará o centro do debate nas campanhas. O uso da parafernália técnica será abundante. Os eleitores ouvirão muito economês. Seria bom se, no lugar dos sofisticados argumentos, o governo tomasse medidas concretas para inverter os sinais atuais e, com isso, estimular grandes massas de capitais a se orientarem para a produção. Afinal, quem olha o nosso país no globo sabe muito bem que o mundo continuará precisando do Brasil por muitas décadas. Vamos tirar proveito disso e criar empregos para nossa gente.

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Luiz Flávio Borges D´Urso

foto: OAB/SP

DESAFIOS DA JUSTIÇA PAULISTA Presidente da OAB/SP

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expectativa em torno da gestão do desembargador Celso Luiz Limongi à frente do Tribunal de Justiça de São Paulo é das mais positivas por ser ele detentor de todas as qualidades técnicas de liderança e de gestão para presidir o maior Tribunal de Justiça do país, estando apto a atender às expectativas da Magistratura, da Advocacia e da sociedade. A despeito de suas inúmeras qualidades como magistrado e administrador, é grandioso o desafio que espera o desembargador Limongi. O Judiciário Paulista figura entre os mais importantes do Brasil, pela qualidade de sua produção jurisprudencial, 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

pelos seus membros, muitos dos quais ocupando cargos nos Tribunais Superior do país , pelo seu vanguardismo, porque nele repousa o princípio da aplicação e cumprimento das leis. A importância da Justiça reside no fato de que, sem ela, ninguém pode exercer a cidadania plena, não há como reparação direitos e garantias que, por ventura, tenham sido violados. Para cumprir sua missão, contudo, a Justiça precisa ser eficiente.Sabemos todos que o Poder Judiciário necessita, com urgência, ser reaparelhado, para que seja capaz de desempenhar com plenitude e agilidade seu


papel constitucional. Somos testemunha do empenho do ex-presidente, desembargador Luiz Elias Tâmbara e dos demais dirigentes para se conseguir tal intento. Precisa de investimentos para promover uma modernização estrutural e ampliação de seus quadros funcionais e de Magistrados. Temos, também, uma série de gargalos para vencer, sendo um dos mais urgentes a informatização. Precisamos trabalhar pela completa informatização do Judiciário como forma de vencer a morosidade da Justiça que tantos danos trazem ao jurisdicionado, ao advogado e aos magistrados. É fundamental dispormos de consulta eletrônica dos processos para, no passo seguinte, chegarmos ao peticionamento por e-mail. Atualmente, os advogados ainda precisam fazer consulta no balcão, enfrentando filas e o difícil deslocamento pela cidade de São Paulo, que implica em perda de tempo e recursos.Outro passo importante é a possibilidade da conservação dos autos - total ou parcialmente - por meio eletrônico. No estado de São Paulo, a destruição de autos de processos antigos está em discussão no STJ, digitalizados, estariam preservados. Todos esses fatores contribuem para adiar a solução de litígios esperada pelo jurisdicionado. Atento às prioridades da Justiça Paulista, o desembargador Celso Limongi já elegeu a modernização do Tribunal como sua prioridade, uma demanda da Advocacia já havia colocado ao novo presidente, quando ainda candidato, numa audiência realizada na OAB SP com todos os candidatos, no intuito de ampliar o diálogo e debater projetos no interesse da Justiça. Aliás, a OAB SP já disponibiliza aos seus inscritos da Certificação eletrônica. Atualmente , no Judiciário Paulista - que recebe o maior volume de ações do País - um processo demora, em média, 7 anos, enquanto nas Justiças do Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, a tramitação de um processo , entre 1º e 2º, leva em média 1 anos e 6 meses. Somente para ser distribuído, um recurso em São Paulo aguarda 4 anos, prazo que em Minas Gerais e Rio Grande do Sul é de 3 meses e no Rio de Janeiro de 6 meses. É o que chamo de “tempo morto do processo”, período no qual ele não tramita. O déficit de julgamento do Judiciário paulista também vem aumentando nos últimos dois anos. Em 2002, 5,1 milhões de ações foram ajuizadas e 4,6 milhões, julgadas. O ano passado foi mais crítico: entraram 5,8 milhões de processos e foram julgados 4,5 milhões. Somados apenas os dois anos, 1,8 milhões ações não tiveram solução. Estes são exemplos de problemas que precisam ser revistos e solucionados. A Advocacia também possui demandas pontuais para o novo presidente do TJ, como respeito às prerrogativas profissionais do advogado e de reavaliação das Câmaras Extraordinárias, criadas para tentar desafogar a distribuição de 550 mil recursos pendentes em segunda instância. Na verdade, a implantação das Câmaras foi uma alternativa em caráter excepcional e, hoje, avaliando o trabalho até aqui realizado, chegamos à conclusão de que pouco estão contribuindo para desafogar a Justiça paulista, além de criar possíveis ilegalidades. Uma delas é a nomeação de juízes voluntários de primeiro grau de jurisdição para atuar na segunda instância. Dessa forma,

“Precisamos trabalhar pela completa informatização do Judiciário como forma de vencer a morosidade da Justiça que tantos danos trazem ao jurisdicionado, ao advogado e aos magistrados.” cria-se uma violação das regras da Lei Complementar 35/76, pois os julgamentos da Câmaras Extraordinárias retiram do cidadão o direito de ter o seu recurso julgado, em Segunda Instância, por magistrados capazes de ascender aos cargos de desembargadores e não por juízes substitutos de Primeiro Grau, que formam as chamadas Câmaras Especiais para fins de mutirão. Viola-se nessa composição o preceito do juiz natural, o que compromete a heterogeneidade de opinião que deve vigorar num órgão colegiado. Entendo que o Judiciário deva ser fortalecido, recebendo verbas condizentes com suas necessidades para que possa cumprir seu dever constitucional e ajudar no avanço e modernização da sociedade brasileira . Dessa forma, OAB SP defende que toda a arrecadação obtida através das custas judiciais seja integralmente repassada para o Tribunal de Justiça. Defende, ainda, a proposta do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de tirar dos bancos públicos a exclusividade de administrar mais de R$ 50 bilhões em depósitos judiciais, como parte de uma nova política financeiro-administrativa para o Judiciário, com fontes autônomas de receitas e diretrizes comuns para todos os tribunais do país. Os depósitos judiciais são recursos das partes e deveriam ser remunerados de forma adequada, por valores de mercado. É um capital do Judiciário que pode ser empregado para ampliar seus recursos, limitados pela Lei de Responsabilidade Fiscal. A OAB SP também está encaminhando anteprojeto para alteração da LRF, ampliando para, no mínimo, 8% o percentual que cabe à Justiça Paulista no orçamento do Estado. Magistratura e Advocacia possuem um compromisso institucional de contribuir para construir um Judiciário que garanta a adequada aplicação da Justiça a todos os cidadãos, que seja forte, independente e criativo, que saiba responder a todas as necessidades de um mundo cada vez mais complexo e de sua crescente litigiosidade e que vença todos os desafios de um país que busca ser mais justo, mais ético e dotado de um espírito público mais consistente. A OAB SP e a população esperam muito do Judiciário paulista que, sob a presidência do desembargador Limongi e devidamente reaparelhado, terá condições de atender a contento a sede de justiça do povo paulista. 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


A eficácia jurisdicional depende da instrução Celso Guedes Desembargador, 3º Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

Arquivo Pessoal

“Tem e pode o Tribunal de Justiça, de imediato, dar grande contribuição à formação desses nossos jovens oficiais e policiais civis.”

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m sua edição de janeiro “Justiça e Cidadania” traz valiosos textos, dentre eles dois dos mais expressivos magistrados da contemporaneidade. O ministro Carlos Velloso e o desembargador Sergio Cavalieri Filho. Ao falar da “falência do Estado diante da violência” o desembargador Cavalieri, que ora preside o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, reconhece uma certa “ociosidade das varas criminais” apresentando como uma das causas predisponentes a isso “o baixo número de inquéritos que são levados ao juízo, porque nada se apurou”. Lamenta então a baixa capacidade de apuração da nossa polícia e identifica a necessidade de melhorar a competência de investigação. 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

No mesmo tom o ministro Velloso, que se aposenta como Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, afirma que “o sistema que temos, hoje, do inquérito policial não é adequado”. Ao lembrar o modelo francês, praticamente adotado em toda a Europa, de juizado de instrução, sugere a fórmula “apresentada a acusação, o Ministério Público, com a Polícia, avaliaria a sua plausibilidade. Plausível a acusação, ofereceria a denúncia perante o juiz de instrução. Concluída esta, o juiz daria a sentença”. Já foi dito antes que as soluções mais inteligentes são aquelas mais simples. As propostas de suas excelências vêm ao encontro do anseio de toda a sociedade, com ênfase para aqueles operadores do direito que desejam uma justiça cada vez mais eficaz.


Não podemos apresentar o sistema judiciário como panacéia de todos os problemas, principalmente quando todos sabemos que a criminalidade tem como fonte inspiradora e multiplicadora a distorção social. Por outro lado, também não podemos creditar às polícias integral responsabilidade pela segurança, quando esta inexiste nos sistemas mais elementares de sustentação da vida, como a saúde, a educação, a habitação e o transporte. Polícia não é solução para problemas sociais. É onde transbordam os problemas sociais não resolvidos que, cumulativamente, geram a desvalorização da vida humana e a banalização do crime. As polícias Civil e Militar do Estado do Rio de Janeiro estão cumprindo a sua dura missão coercitiva. Nos últimos dois anos, realizaram mais de 45 mil prisões, retiraram de circulação 75 líderes do tráfico e apreenderam mais de 30 mil armas nas mãos de criminosos. É inadiável o reconhecimento de que, além de ações policiais, a segurança pública exige intervenções econômicas, políticas e sociais que promovam a redução dos níveis de miséria e o aumento das oportunidades na educação e no trabalho. Não cabe ao Poder Judiciário Fluminense estar isento neste longo processo de restauração de valores e instauração da ordem pública. Longe disso, o Rio de Janeiro sempre representou a vanguarda nas grandes decisões nacionais e não é tempo de abdicar da importante missão de liderar uma ação coletiva contra o crime, nela engajando-se todos aqueles que vivem ou amem o Rio. Esta é a motivação que nos faz propor que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro faça sedimentar um grande e profícuo trabalho de aglutinação, integração e harmonização de todos os órgãos operadores do Direito, estabelecendo não apenas o diálogo institucional, mas aquele profissional, onde as partes interajam falando a mesma linguagem técnica e operacional. Os sistemas operacionais do Tribunal de Justiça, do Ministério Público, da Defensoria Pública, das Procuradorias, das Secretarias de Segurança e de Justiça, da Polícia Federal e da Receita Federal precisam se compatibilizar para a troca permanente de informações seguras, fornecendo agilidade à execução das decisões judiciais. Ao mesmo tempo em que a tecnologia da informação irá apresentar o suporte necessário ao bom desempenho das diversas operações do direito, será necessário um esforço emergencial de instrução, no sentido de habilitação, daqueles operadores que estão na base da pirâmide gestora do processo jurisdicional. Não há necessidade de inventar a roda. Como já lembramos as idéias mais simples são as mais inteligentes. Não se passaram tantos anos assim desde que a Escola de Formação de Oficiais da Polícia Militar e a Academia de Polícia tinham convênios com universidades, v.g. a

Universidade Gama Filho, propiciando a seus egressos ingressar no quinto ano, ou atual nono período do curso de Direito. Lamentavelmente, tal prática foi descontinuada e nossos oficiais perderam a oportunidade de agregarem conhecimentos jurídicos em tal magnitude que lhes propiciasse melhor desempenho operacional na instrução de processos, vai daí a “ociosidade das varas criminais” citada pelo desembargador Sergio Cavalieri Filho, Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Tem e pode o Tribunal de Justiça, de imediato, dar grande contribuição à formação desses nossos jovens oficiais e policiais civis. A magistratura fluminense é impar

“Não podemos apresentar o sistema judiciário como panacéia de todos os problemas, principalmente quando todos sabemos que a criminalidade tem como fonte inspiradora e multiplicadora a distorção social.”

em prática forense e acadêmica. São 838 magistrados, muitos deles com pós-graduação, atuando em todo o território estadual. A maioria pode dar importante contribuição docente, instruindo nossos agentes da lei e da ordem a bem instruir os processos criminais, a um custo operacional muito abaixo de qualquer crítica.Pela vital importância para a sociedade de tal empreendimento, recursos não faltarão. Sem dúvida não estaremos mudando tudo. Muito há o que se fazer e o bem comum não se faz apenas com polícia e tribunais. A justiça social sempre dependerá de outros fatores. Nossa consciência, no entanto, estará em paz por termos dado alguma contribuição e, como o apóstolo Paulo em carta a Timóteo poderemos exultar: “combati o bom combate, terminei a minha carreira”, cumpri o meu dever. Não me acovardei. 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


O Congresso e o cálculo da vergonha Candido Mendes Membro da Academia Brasileira de Letras

“Quanto demorarão, o país e os movimentos sociais, a entrar com ações populares frente à esbórnia dos dutos e contradutos, do voto contratado, e de cravo certo nos placares do Congresso?”

Arquivo

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final, qual é a hora de o Congresso mostrar a cara diante do país, depois da absolvição do deputado Queiroz, de todos os alcances, tamanho família, no valerioduto? Quem será o primeiro pescoço a baixar no alfanje, ciente o Legislativo de que o facilitário de dezembro não pode prosperar, nem vai o país esquecer o bolero do mensalão em todos os seus arranjos? Levado pelo roldão da opinião pública a Câmara passa a outra estratégia com Vanderval, Roberto Brant, Professor Luizinho e agora, de forma menos nítida, com Pedro Correa, o próprio presidente do PP. De saída, se dá pela condenação contrafeita na Comissão de Ética. E é por um só voto que Brant vai ao hipotético abate pelo plenário. Nem é menos apertada a promessa do cutelo ao Professor Luizinho. Mas o cenário aí está para que o primeiro cálculo de enfrentamento da vergonha não fuja dos trilhos, e vá à sabedoria final do acórdão,

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de todos os estuários. Os processos saem de pauta, voltando a todo exame, sem prazos, pela Comissão de Constituição e Justiça, preguiçosos na última procrastinação. E Roberto Brant não tem dúvida quanto aos novos precedentes, que em maiorias lustrais levarão sua casa a perdoá-lo, corrigindo as hesitações da Comissão de Ética. É como se prevalecesse a biografia sobre a traquitana a querer-lhe a companhia, e manter-lhe o mandato. E, por ele, a permitir que a fila que se lhe segue saia do patíbulo. A laxidão é tão generosa quanto democrática. E aí se desenha o vencer-se o pesadelo do julgamento de Eduardo Azeredo, senhor do latifúndio da integridade, na melhor nobiliarquia do tucanato de todas as plumas. Deixou o cocar da Presidência do PSDB, mas, dificilmente, pode ficar, agora, nas dobras do esquecimento e da aposta do Brasil de memória curta, depois das provas do sangue derramado, de Roberto Jefferson e José Dirceu. Na verdade, a assombração inédita baixada sobre os inconspurcados varões da República, confia ainda que as CPIs não perderam os freios do “deixa-disso’’, de todos os tempos, e do controle final, pelos próprios deputados, do seu desfecho e deu seu sair de cena. A diferença do governo Lula é o da passagem das averiguações para a polícia, paralelamente ao tatibitate das comissões com os dossiês, de álibis e culpas que não mais se abafam nos tapetes da Câmara. Atingem tucanos e pefelistas, ao lado dos aliados do governo. E o valerioduto tilintou à abundância nos cofres da campanha do ex-governador de Minas, reiteram seus auxiliares de então. Ou nos trocados de larguíssimo prazo, em que o deputado João Hermann no apoio a Azeredo foi um dos protobeneficiários do esquema, até como babá do carro de campanha. Quanto demorarão, o país e os movimentos sociais, a entrar com ações populares frente à esbórnia dos dutos e contradutos, do voto contratado, e de cravo certo nos placares do Congresso? E como qualquer partido, mesmo completados os vexames das comissões, se alinhará para explicação

“Nos consensos, habilíssimos, do acordão em marcha, se pode começar a descrer até, de fato, do mensalão.”

“Os processos saem de pauta, voltando a todo exame, sem prazos, pela Comissão de Constituição e Justiça, preguiçosos na última procrastinação.”

aos eleitores, sem as cabeças degoladas dos indigitados beneficiários do comércio do mandato? Sorte, de toda forma, e morna, da tepidez enojada, tem esse Congresso, que não enfrentou liderança emergente, capaz, em verdade, de tomar a palavra pelo “virar de página’’ de uma época, e a exposição de todos os dígitos, no voto escorrido pelo valerioduto. Esta recidiva do velho moralismo não permitiu, voz comparável a de Lacerda, ou de fala análoga, que a tanto se levantasse - nos debates em que os velhos plenários, de Afonso Arinos, ou Aliomar Baleeiro, poderiam cobrar, hoje, a impostação tateante, ou o olhar para as câmaras da cozinha mediática, do soslaio para casa, ou para apoteose das CPIs nos instantes invasores de suas pseudofalas cívicas. Nos consensos, habilíssimos, do acordão em marcha, se pode começar a descrer até, de fato, do mensalão. Não é outro o sentimento, aliás, da polícia, no caso de José Dirceu, a pesquisar, até agora em vão, qualquer prova da denúncia. Mesmo que, a partir de julho último, se tenham afrouxado as fidelidades ao governo, e os fazeres das antigas maiorias. Mal começa, entretanto, a CPI do governo FH e do tucanato, a partir da denúncia da cornucópia da emenda constitucional pró-reeleição e do lusco-fusco das privatizações. O PT, novato na liça e neopecador, sabe que os velhos profissionais, da mais antiga tentação parlamentar, não podem, a esta altura, tirar do bolso o petardo para atingi-los. A mensagem que sobreviva de Lula, para além do partido, não passa, entretanto, pelo “tudo bem’’ de sempre. Seu cálculo da vergonha é de uma credibilidade, ainda, à frente. Não o de um Congresso que, nesta altura, dizem as pesquisas, só reelegeria 6% dos atuais deputados.

2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17


O projeto da Lei Antidrogas Áurea Pimentel Pereira

ilustração: Debora Oigman

Desembargadora, Membro do Conselho de Vitaliciamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

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m recente Seminário, realizar pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, foram submetidas a discussão as propostas contidas no Substitutivo, apresentado na Câmara Federal, ao Projeto de Lei 7134-A de 2002, do Senado Federal, elaborado para disciplinar o Sistema Nacional Antidrogas. Naquela oportunidade, noticiou-se que, dito Substitutivo, já com parecer final do Relator da Comissão de Assuntos Sociais, Senador Sérgio Cabral, estaria em vias de ser submetido à votação pelo Congresso Nacional. A matéria relacionada com a prevenção e repressão ao tráfico ilícito e ao uso indevido de substâncias entorpecentes, ou que determinem dependência física ou psíquica, encontra-se disciplinada em duas leis: Lei 6368/76 e Lei 10409/2002. Na primeira delas, dispôs o legislador a respeito dos crimes relacionados com o porte, para uso próprio, tráfico e associação para prática de tais crimes, prevendo para o primeiro dos delitos citados (porte para uso próprio), a pena de seis meses a dois anos de detenção, para aqueles outros crimes, mais graves, fixando penas maiores, respectivamente 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

de três a quinze anos de reclusão (no caso do tráfico) e de três a dez anos, quando caracterizado o delito de associação para a prática dos crimes na referida lei previstos. No corpo do referido diploma legal, o legislador, além de definir os crimes, fixar as penas a eles relativas e definir o procedimento criminal adequado, inseriu normas enunciadoras dos mecanismos destinados à prevenção, repressão à prática dos crimes, tratamento e recuperação dos usuários e dependentes. Já na Lei 10.409/02, editou o legislador normas, algumas delas meramente programáticas, de conscientização dos responsáveis, nas áreas militar, de polícia civil, ensino, saúde, justiça, enfim de todos segmentos da sociedade, objetivando a erradicação, prevenção do uso e tráfico das substâncias já referidas, incluindo algumas normas reguladoras da instrução criminal e providências relacionadas com a apreensão e posterior alienação dos bens apreendidos em poder de réus condenados por tráfico de drogas. É bom lembrar que, antes que editada fosse a Lei 10.409/02, por força do que se dispôs na Lei 10.259/01, que criou os Juizados Especiais Federais – diploma legal que,


em certos pontos pecou pela atecnia com que foi redigido – passou-se a considerar de pequeno potencial ofensivo os crimes cujas penas, no máximo, não ultrapassassem a dois anos, do que resultou ter o crime de porte de entorpecente, cuja pena é de seis meses a dois anos de detenção – que antes não era considerado de pequeno potencial ofensivo, tendo seu procedimento submetido ao rito especial da Lei 6368/76, perante as Varas Criminais – ter passado à competência dos Juizados Especiais Criminais, o que garantiu aos autores de tais delitos o tratamento extremamente permissivo da Lei 9099/95 (artigos 69 e 76), que embora razoável para aplicação a crimes mais leves, parece inadequado no caso do delito previsto no artigo 16 da Lei 6368/76 (porte de entorpecente), cujo potencial ofensivo, na verdade, é muito grande, na medida em que põe em risco toda a sociedade. No Projeto de Lei 7134-A de 2002, com a redação dada pelo Substitutivo apresentado, embora o legislador tenha tido o talento de, acertadamente, exacerbar convenientemente as penas privativas de liberdade para os casos de tráfico de entorpecentes (art.32 § 1º), permitiu-se no art.28, instituir sanções verdadeiramente simbólicas para os usuários de drogas, a saber: advertência. Prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas e cursos educativos, de duração reduzida (cinco meses), transmudando a repressão a tais práticas delituosas em verdadeira farsa contribuindo, destarte, para despertar no espírito dos infratores, verdadeiro sentimento de impunidade, que há de funcionar como incentivo para que continuem a praticar, sem maiores riscos, tão grave delito, que alimentando o tráfico põe em risco toda uma sociedade. A forma pela qual está sendo conduzida, no Congresso, a discussão do Projeto de Lei 7134-A, é profundamente preocupante, dando inclusive a impressão primeira de que os legisladores estariam caminhando para uma proposta futura de discriminalização do uso de drogas no país. Não é de hoje, aliás, que se tem supreendido nos legisladores uma clara tendência no sentido de tornar as leis penais cada vez mais brandas e permissivas, distanciando-as do quadro realístico do momento em que uma verdadeira escalada de violência assola o país. Essa tendência,guarda harmonia com proposta anterior de afrouxamento do exercício do ius puniendo do Estado, que felizmente não prosperou , que foi ensaiado quando, em 1999, constituiu-se uma comissão para o estudo da reforma das leis penais para a introdução do chamado Direito Penal Mínimo, ocasião em que chegou-se a preconizar a revogação da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8072/90). Naquela oportunidade, ao se defender a reforma, em tais termos proposta, argumentou-se que a aplicação dos princípios do chamado Direito Penal Mínimo funcionaria como solução salvadora, já que teria o talento de permitir a libertação de cerca de 100.000 (cem mil) presos, ou seja, de metade de população carcerária de então, resolvendo, assim, o grave problema da superlotação dos estabelecimentos penais,

“Não é de hoje, aliás, que se tem supreendido nos legisladores uma clara tendência no sentido de tornar as leis penais cada vez mais brandas e permissivas, distanciando-as do quadro realístico do momento, em que uma verdadeira escalada de violência assola o país.”

questão que os governos não tiveram, até a presente data, competência para resolver. Esquecem-se, porém, os arautos de tais propostas – que agora vêm preconizar a inserção, na lei penal, de tantas benesses em favor dos usuários de drogas – que estes são, na verdade, os únicos e reais responsáveis pela alimentação do maldito comércio das drogas que assola o nosso país. Olvidam, os que abraçam tais propostas, os compromissos assumidos pelo Brasil, quando signatário de Declaração Conjunta dos Chefes de Estados, presentes à Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas de 07/06/98, compromissos esses sacramentados pelo Decreto Federal 4345 de 26-08-02, quando então proclamou-se que: “O uso indevido de drogas constitui, na atualidade, séria e persistente ameaça à humanidade e à estabilidade das estruturas e valores políticos, econômicos, sociais e culturais de todos os Estados e sociedades. Suas conseqüências inflingem considerável prejuízo às nações do mundo inteiro e não são detidas por fronteiras: avançam por todos os cantos da sociedade e por todos os espaços geográficos, afetando homens e mulheres de diferentes grupos étnicos, independentemente de classe social e econômica ou mesmo de idade”. O quadro que se delineia, caso mantido, no Projeto de Lei 7134-A de 2002, o texto do artigo 28, é preocupante. É de se esperar que o bom senso predomine ou os alicerces da sociedade brasileira já tão abalados pelos primeiros sinais de corrosão, fatalmente ruirão. 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


União civil entre pessoas do mesmo sexo Sergio Couto

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homossexualidade é um fato social que vem se perpetuando séculos afora. Sempre existiu nos povos primitivos. E sempre existirá, não cabendo à sociedade contemporânea a tentativa de padronizar o comportamento dos agentes, à luz daquilo que “ela acha” que seja o correto. Sabemos que não se pode fechar os olhos para determinadas situações que existem na sociedade e que não são reconhecidas pela norma jurídica, como a relação entre homens ou entre duas mulheres. Mesmo não existindo lei que regulamente essa forma de conviver, a Justiça, quando é convocada para resolver problemas que surgem de tal situação, aplica, buscando solucionar, os princípios legais que regem o Direito das Obrigações. Não se pode permitir, e isso vem de longe, o enriquecimento sem causa; a exploração de um pelo outro. Os companheiros têm que provar que atuaram de forma solidária em vista de uma finalidade comum (artigo 981, do Código Civil, de 2002). Na ordem do dia tupiniquim discute-se o reconhecimento, no atual regime constitucional, sobre a possibilidade jurídica da união estável entre os parceiros(as). Será possível? Duas correntes se contrapõem: a que representa a maioria esmagadora dos tribunais, considerando impossível dita união, por ferir o artigo 226, § 3º, da Carta Constitucional que define como entidade familiar a união entre pessoas de sexo distinto. O óbice, portanto, é intransponível. A outra, isolada, instalada no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que vem dando ganho de causa aos casais que pretendam regularizar a situação, com as bênçãos do Estado. Tornou-se emblemática a frase que inspirou a decisão gaúcha, segundo a qual a união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar, e não apenas a diversidade dos sexos. A palavra de ordem é o afeto, venha de onde vier! “União estável” (que vocábulo infeliz) é apenas uma forma de concubinato, e a origem deste se perde nas brumas de um passado distante e que estará sempre presente na vida social. Repilo a expressão porque ela dá margem a estelionatos sentimentais visando cifras imerecidas que os tribunais 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

ilustração: Debora Oigman

Pesquisador jurídico

registram em profusão. É o “modismo legislativo”, fundado em pretensões eleitoreiras. Mero engodo ou mistificação, mas que tem o condão de causar turbulências sociais, que vêm ocorrendo desde 1988. A intenção do constituinte não era confundir concubinato (ou união estável) com o casamento, o que acabou acontecendo. A idéia corrente, sem exagero, é: “Apertou a mão, deve-se pagar a pensão!” Precisamente com base nessas premissas, têm merecido críticas, é que surgiu o movimento para que a união estável alcançasse com o “seu manto protetor” os não heterossexuais. Ninguém considerou as sábias advertências do prof. Arnoldo Wald, relator da Comissão nomeada pelo ministro de Justiça, para apresentar projeto regulamentando a União Estável pela Portaria nº 355, de 28-5-96, ao assinalar, com precisão: “Estabelece a Constituição duas finalidades distintas: a) proteger a união quando estável, constituindo uma entidade familiar; e b) facilitar a sua conversão em casamento (sempre que possível e desejado pelas partes). Não se deve identificá-la com o casamento, no qual poderse-á, eventualmente, transformar.” Vivemos num clima de insegurança jurídica que decorre de critérios subjetivos. Cada um age, pensa e decide como quer. Não há parâmetros na lei que possam oferecer garantia de estabilidade jurídica nas relações. Curioso que essa questão sempre mereceu tratamento jurídico adequado no STF tanto que editou a Súmula 380, segundo a qual: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível sua dissolução judicial com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. Questão de prova, apenas. O efeito jurídico imediato que resulta da união é a partilha dos bens, quando comprovado o esforço dos conviventes na formação do patrimônio comum. Essa regra tanto vale para o concubinato (união estável), ou para o casamento, não havendo divergências entre os tribunais. Há uma outra questão instigante. Saber se é possível convencionar doação recíproca de um imóvel adquirido pelos parceiros(as), na proporção de 50% para cada um.


Sem problemas, desde que não haja herdeiros necessários. a questão em novo processo. Uma questão formal impediu o Inocorrendo, com a morte de um deles, poderá ser obtida a exame. adjudicação da totalidade da herança, em favor do parceiro As entidades autoras da ação queriam a declaração da sobrevivente. inconstitucionalidade do art. 1º da Lei 9.278/96, que ao regular Em verdade, a família brasileira vive desassossegada há o § 3º do art. 226 da Constituição, reconheceu, unicamente, quase duas décadas, exigindo dos poderes constituídos uma como entidade familiar, “a união estável entre o homem e a resposta definitiva sobre assuntos relacionados com a “união mulher, configurada na convivência pública, contínua e estável”. São milhares de interesses. Um desconforto para os duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de operadores do Direito quando chamados a se pronunciar; família”. afinal, a união estável entre pessoas do mesmo sexo é Só que a norma legal em questão, segundo o ministro constitucional ou não? E o que é mais tormentoso: quem irá Celso de Mello, resultou derrogada em face da superveniência julgar a matéria? O STF, desde a vigência da Constituição, do novo Código Civil, cujo art. 1.723, ao disciplinar o tema jamais se pronunciou em questões de “união estável” da união estável, reproduziu, em seus aspectos essenciais, o quando deveria fazê-lo, porque se trata de delicadíssima mesmo conteúdo normativo no art. 1º da Lei nº 9.278/96. questão de família erigida a cânon constitucional e, inserida, Assinalou que a jurisprudência do Supremo Tribunal portanto, nos títulos próprios da Carta. No entanto, o STJ Federal firmou-se no sentido de não admitir, em sede de vem interpretando, na prática, normas constitucionais, fiscalização normativa abstrata, o exame de constitucionalidade embora não o diga expressamente, dirimindo os conflitos de uma norma constitucional originária, como o é aquela submetidos a seu julgamento. Faz o que pode. inscrita no § 3º do art. 226 da Constituição. Sobre a questão da Embora a ação fosse competência não se pode deixar arquivada, revela o relator de registrar o pensamento do em sua decisão, aspectos “Um desconforto, para Prof. Miguel Reale, autor do interessantes que hão de os operadores do Direito Projeto do Código Civil de influenciar a questão de mérito, 2002, que põe o pingo nos ao asseverar: quando chamados a se “is”, ao proclamar: “Não obstante as razões de “...Essa matéria não é pronunciar; afinal, a união ordem estritamente formal, de Direito Civil, mas sim que tornam insuscetível de estável entre pessoas do de Direito Constitucional, conhecimento a presente ação porque a Constituição criou mesmo sexo é constitucional direta, mas considerando a a união estável entre um extrema importância jurídicoou não? E o que é mais homem e uma mulher. De social da matéria – cuja maneira que para cunhar-se tormentoso: quem irá julgar apreciação talvez pudesse aquilo que estão querendo viabilizar-se em sede de a matéria?” – a união estável entre argüição de descumprimento homossexuais – em primeiro de preceito fundamental lugar seria preciso mudar a Constituição” (O Projeto do – cumpre registrar, quanto à tese sustentada pelas entidades Novo Código Civil, São Paulo, Saraiva, 1999, p. 14). autoras, que o magistério da doutrina, apoiando-se em Se a mens legis do instituto da união estável foi exposta com valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia precisão científica pelos notáveis juristas mencionados, como e invocando princípios fundamentais (como os da dignidade duvidar de suas assertivas? Como entender que casamento e da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da união estável são a mesma coisa? Como se tirar a ilação que igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação a matéria não tem feição constitucional, o que pré-exclui o e da busca da felicidade), tem relevado admirável percepção exame pelo Órgão Supremo a quem caberia, portanto, dizer do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento a última palavra! do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, Tantos anos passados, e não temos ainda um norte a seguir quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união nessa questão de família tão relevante. homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a Engano meu, agora temos! No momento em que essas permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, considerações estavam se “fechando” aconteceu um fato relevantes conseqüências no plano do Direito e na esfera das superveniente auspicioso. O ministro Celso de Mello, do STF, relações sociais”. relator da ADI nº 3.300 MC/DF, determinou por decisão Uma vez definida, embora implicitamente, a de 3-2-2006, o arquivamento da ação em que se discutia o competência constitucional para o caso (união estável entre tema das uniões estáveis entre parceiros do mesmo sexo, homossexuais), remanesce a dúvida sobre os heterossexuais. embora reconhecesse que se tratava de “relevante questão Quem irá julgá-los? constitucional”, assinalando ainda que o STF poderá apreciar 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


DÍVIDA ASTRONÔMICA Impunidade E Falta De Credibilidade Na Inadimplência Do Pagamento Dos Precatórios, Quando O Estado É Réu. Cármine Antônio Savino Filho Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

“Longa mora nostra pectora torpuerant” (A longa demora entorpeceu meu coração). Ovídio

ilustração: Debora Oigman

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o criar o mundo, Deus – em sua infinita sabedoria concedeu a cada animal uma qualidade especial, um trunfo para competir, uma vantagem na competição pela sobrevivência. Deu à frágil lebre a velocidade para fugir de seus predadores. E revestiu a lenta tartaruga com um pesado casco impenetrável. Já os homens, falhos que são, ao criar a Justiça, se equivocaram: conferiram a ela a resistência da lebre e a velocidade da tartaruga. Daí o conhecido adágio: “A Justiça tarda, mas não falha”, provando que a sabedoria popular também se equivoca. Justiça não é como a Liberdade, “ainda que tardia”, como disse Vergílio. Justiça que tarda não é Justiça. Justiniano assinala: Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuens – “A justiça é a vontade constante e perpétua de conferir a cada um o seu direito”. E Cícero complementa: Nihil honestum esse potest, quod justitia vacat. – Nada pode ser honesto, quando falta a justiça. A lentidão da Justiça tornou-se um fato histórico, tão corriqueiro que parece já existir um sentimento de aceitação, como se a morosidade fosse inelutável, algo entranhado em nossa cultura e nossos costumes, no quotidiano social desde séculos. As causas desta morosidade são múltiplas, entrelaçadas, inter-relacionadas, o que retro-alimenta a cada uma delas. Esta lentidão judiciária se agrava quando a causa envolve


pessoas ou entidades privadas de um lado como Autor e o Poder Público de outro, como Réu, e não somente pela obrigatoriedade do duplo grau de jurisdição. As entidades de direito público, federais, estaduais e municipais, alegam simplesmente não dispor de recursos para cumprir as decisões judiciais. Desta forma, a lentidão se transforma em virtual descumprimento. Ao vencer a ação judicial contra uma entidade pública que resulte em compensação financeira, deve ser expedido o precatório, que é a carta de sentença remitida pelo juiz da causa ao Presidente do Tribunal de Justiça para que este requisite ao Poder Público, mediante previsão orçamentária anual, o pagamento da quantia certa para satisfazer obrigação decorrente de condenação de pessoas públicas, suas autarquias e fundações. Contudo, os poderes públicos, impunemente, incluem apenas uma verba simbólica, que não chega a satisfazer 1/50 avos do necessário. A Constituição Federal, em seu artigo 100, caput, ao tratar do pagamento dos precatórios, impõe a estrita observância da ordem cronológica de apresentação. O parágrafo 1o., do mesmo artigo, torna “obrigatória à inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1o. de julho, data em que serão atualizados seus valores, fazendo-se o pagamento até o final do exercício do ano seguinte,”. Ora, estamos em face de duas esferas de morosidade: uma, para obter a concessão do precatório em si; outra, para se fazer cumpri-lo. Apesar de obrigatória a inclusão da verba nos orçamentos das entidades públicas, seu valor é irrisório. O Estado do Rio de Janeiro deve 1 bilhão e seiscentos milhões de reais, uma soma estratosférica que não pára de crescer ano após ano e que se tornou literalmente impagável, se não forem tomadas providências drásticas, decisivas, corajosas e urgentes. Estudos recentes indicaram que o Estado do Rio poderia, sem prejuízo da saúde das finanças estaduais, pode incluir em seu orçamento, durante dois anos, verba mensal de R$ 80 milhões para pagamentos dos precatórios em atraso, sem contar com os novos. Não é por falta de legislação penalizante que os precatórios não são pagos. A alegação, em todos os níveis da administração, é de que não há verba disponível. Provavelmente é verdade, principalmente porque os administradores, durante anos a fio, varreram os precatórios para debaixo do tapete, permitindo o crescimento espantoso desta dívida. Enquanto isto, muito dinheiro é mal gasto com compras e obras faraônicas, mal direcionadas com shows milionários, ou com a propaganda enganosa etc. Isto quando não se esvai pelas artérias da corrupção. O art.100 da Constituição Federal prevê em seu § 2º, o seqüestro de quantia necessária para satisfação dos precatórios. Não somente a administração pode sofrer seqüestro de bens, como já têm procedido alguns juízes. O “Presidente de Tribunal, que por ato comissivo ou omissivo, retardar

“O descaso com que milhões de brasileiros têm sido tratados induz os cidadãos honestos à descrença nas instituições democráticas. A falência generalizada do Estado alimenta as justificativas da corrupção e ajuda a compor os pretextos da sonegação, que no Brasil já alcança a 40% do PIB.”

ou tentar frustrar a liquidação de precatórios, incorrerá em crime de responsabilidade”. Existe ainda possibilidade de intervenção federal. O descaso com que milhões de brasileiros têm sido tratados induz os cidadãos honestos à descrença nas instituições democráticas. A falência generalizada do Estado alimenta as justificativas da corrupção e ajuda a compor os pretextos da sonegação, que no Brasil já alcança a 40% do PIB. Enfim, a imprevidência dos gestores da coisa pública e o desleixo com a questão dos precatórios têm-se arrastado durante décadas deixaram acumular uma dívida astronômica, um triste exemplo de como não se deve administrar. Ignoraram suas responsabilidades legais, como se o Estado estivesse acima das leis. O embate entre um devedor forte, o Estado, contra um credor fraco, o cidadão, decretou o naufrágio da universalidade e da coercitividade da norma legal. 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


ABC da transposição Paulo Gadelha

foto: TRF 5ª

Desembargador Federal do TRF da 5ª Região

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gora, o processo é irreversível. O Governo vai iniciar, dentro de poucos dias, os trabalhos de transposição/integração do Rio São Francisco com as bacias hidrográficas do Nordeste setentrional. É um sonho acalentado desde o Império, quando o monarca, sentindo o sofrimento do povo nordestino, jurou que venderia a última jóia de sua coroa, mas nenhum sertanejo morreria de fome. Hoje, o tema é prioridade nacional. Toda esta saga redentora começou em 1868, portanto vinte e um anos antes da Proclamação da República, quando o engenheiro cearense Tristão Franklin Alencar de Lima preparou o primeiro estudo mostrando a transposição das águas do Velho Chico. Meditei muito sobre o projeto de transposição do Rio São Francisco e fiquei feliz por, além de reconstruir o Nordeste, é o mais sério, o mais técnico e o mais transparente programa de transposição em todo o mundo. 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

Depois, confesso, não vejo nenhum argumento contra a transposição que mereça respeito. Tanto isso é verdade que eles, os adversários do projeto, fogem dos debates, como o diabo corre da cruz, por uma razão óbvia: não têm como contestar a sua verdade técnica e o discurso ético de sua proposta. Tentam, por isso, a todo custo, evitar a realização das audiências públicas, ora tumultuando-as, ora buscando na Justiça a sua proibição. Logicamente, se tivessem um naco de fundamentação, iriam para o confronto das idéias, civilizadamente. Todos os pontos que balizam o desenho da transposição foram medidos e pesados. Tudo tecnicamente incontestável. Vejamos: a) O rio não será desviado e apenas uma pequena parte – 1,5% da água que ele joga no mar – vai ser captada para garantir o consumo humano e animal, bem como para mudar a fisionomia agrícola do Nordeste.


Nesta área, por onde vai correr o Rio da Unidade Nacional, vivem 12 milhões de brasileiros; b) Não haverá qualquer impacto ambiental, já que o Eia/Rima foi produzido entre as maiores empresas do mundo neste segmento – a Jaako Pöyry, da Finlândia, e a Tahal, de Israel. Depois de 2 anos de estudos, atestam a saúde ambiental do rio; c) Por último, o problema de revitalização não oferece qualquer laivo de dúvida. O procedimento já vem acontecendo a contempla “ações voltadas para o reflorestamento de áreas críticas, a construção de barragens entre os rios afluentes, a melhoria da calha navegável, o tratamento de esgotos e vilas localizadas nas suas margens, o controle da irrigação e a educação ambiental”. É bom lembrar que nesta rubrica, o Governo Federal,

em 2004, “investiu 26 milhões nas ações de revitalização do rio”. Façamos, pois, rapidamente, a transposição. É política socialmente justa, economicamente indispensável e juridicamente correta, amparada pela Carta Magna e pela Lei nº 9433/97 – A Lei de Recursos Hídricos – ambas garantindo a democratização do uso das águas. O Governo, muito em breve, vai licitar a obra. Começa a caminhada da redenção. É bíblica a lição: a fé que remove montanhas, transpõe rios. Agora é, fé em Deus, confiança no Governo e pé no São Francisco, para juntos fazermos a grande revolução pelas águas que vai reconstruir o Nordeste.

O projeto de transposição do São Francisco O projeto de transposição das águas do São Francisco consiste na transferência de águas do rio para abastecer pequenos rios e açudes da região Nordeste que possuem um déficit hídrico durante o período de estiagem. As obras são prioritárias para o governo no setor de infra-estrutura em 2006 e devem custar R$ 2 bilhões.A transposição do rio São Francisco é uma discussão antiga no governo federal. O projeto foi concebido inicialmente em 1985, ainda no âmbito do extinto DNOS - Departamento Nacional de Obras e Saneamento. Em 1999, o projeto foi transferido para o âmbito do Ministério da Integração Nacional. Atualmente, vários ministérios acompanham as ações do projeto, assim como o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco – formado pela sociedade civil e pelas três esferas de governo. O projeto em discussão pelo Executivo, porém, vai além da transposição das águas do Velho Chico. A transferência de água está incluída no Programa de Desenvolvimento Sustentável para o SemiÁrido e a Bacia do Rio São Francisco. A prioridade, para o governo federal, é melhorar as condições de vida da população que vive às margens do rio ou têm no São Francisco o seu meio de sobrevivência. O orçamento de 2005 encaminhado ao Congresso prevê recursos da ordem de R$ 1 bilhão para a revitalização do rio este ano. Na avaliação do secretário-executivo do Comitê do São Francisco, Luiz Carlos Fontes, o grande desafio do

governo é conciliar a revitalização do rio com a sua transposição. “Precisamos ter uma medida justa para revitalização, um compromisso que assegure que isso não vai ficar apenas restrito a um primeiro momento. Acredito que o governo tenha mecanismos de nos dar um conforto que essa obra não ficará sujeita a variações anuais e que valores serão aprovados no orçamento da União. Entendo que o valor apresentado nesse momento é uma sinalização, mas não é nem de longe o valor que a gente precisa para revitalização da bacia”, diz. Pela proposta de transposição em estudo pelo governo, o rio São Francisco doaria cerca de 60 metros cúbicos por segundo de vazão aos açudes e pequenos rios da região. Para o presidente Lula, a água armazenada vai permitir a interligação de açudes e manter o nível de água em cada um deles – uma forma de garantir o sustento de famílias que vivem na região. Os estados mais beneficiados seriam a Paraíba, o Rio Grande do Norte e o Ceará. O rio São Francisco possui 2,8 mil km de extensão, nasce em Minas Gerais, na Serra da Canastra, e desemboca no Oceano Atlântico, entre Sergipe e Alagoas.

Fontes: Governo da Bahia, Minas Gerais, IBAMA e Radiobrás

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SEM PROBLEMAS PARA AS EMPRESAS Marcelo Harger Advogado, Mestre em Direito Administrativo, doutorando em Direito do Estado

Mesmo sendo um ato de boa-fé, substituir o vale-transporte por dinheiro pode acarretar passivos trabalhistas e previdenciários para as empresas.

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que a convenção coletiva não retira a imperatividade da lei. vale-transporte é um direito consagrado pela O pagamento em espécie desnatura o caráter indenizatório legislação aos trabalhadores, uma prática da referida verba trabalhista. Ela passa a ter caráter salarial disseminada em todo o país, notadamente nos com todos os seus reflexos em férias, 13º salário etc., e com grandes centros urbanos. isso torna-se fato gerador das contribuições previdenciárias. O vale-transporte não tem caráter salarial, mas, sim, Isso significa dizer que incide contribuição para o Instituto indenizatório. Por essa razão, o ato de uma empresa de Nacional do Seguro Social (INSS) sobre o valor pago em fornecer vales-transporte aos seus funcionários não acarreta dinheiro a título de vale-transporte. O não-recolhimento das o fator gerador das contribuições previdenciárias. Algumas, contribuições previdenciárias pode acarretar, inclusive, multa no entanto, procurando beneficiar os seus funcionários, no valor de 100% do tributo não recolhido concedem o vale-transporte mediante o termos do parágrafo 5º do artigo 32 da pagamento do valor a ele equivalente em “O pagamento nos Lei 8.212/91. dinheiro. Essa atitude, embora seja feita de em espécie Esse é o conteúdo de recente decisão boa-fé, pode gerar sérios problemas para do Superior Tribunal de Justiça (STJ) as empresas. O pagamento em dinheiro é desnatura acerca do tema. Diante dessa decisão, fazexpressamente vedado pela legislação que o caráter se necessário que as empresas repensem o disciplina o expediente. A esse respeito, o de pagamento do vale-transporte, artigo 5º do Decreto 95.247/87 estabelece: indenizatório modo pois a boa-fé não pode ser alegada em face “É vedado ao empregador substituir o valetransporte por antecipação em dinheiro ou da referida verba do Fisco. O contribuinte não pode deixar de pagar tributo utilizando a alegação qualquer outra forma de pagamento”. O trabalhista. de que agiu de boa-fé, tendo em vista o artigo 6° reza: “O vale-transporte, no que se refere à contribuição do empregador: I – Ela passa a ter teor do artigo 136 do Código Tributário Nacional, que dispõe: “Salvo disposição não tem natureza salarial, nem se incorpora à remuneração do beneficiário para caráter salarial de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe quaisquer efeitos; II – não constitui base de com todos os da intenção do agente ou do responsável incidência de contribuição previdenciária ou do Fundo de Garantia do Tempo de seus reflexos em e da efetividade, natureza e extensão dos Serviço (FGTS); III – não é considerado férias, 13º salário efeitos do ato”. Isso pode parecer injusto, mas a lei para efeito de pagamento da Gratificação etc (...)” tributária brasileira, embora nem sempre de Natal (Lei 4.090/1962, e artigo 7° seja um paradigma de justiça, é lei e, como do Decreto-lei 2.310/1986); IV – não tal, deve ser cumprida. configura rendimento tributável do beneficiário”. Procurando contornar o dispositivo legal, empregados e trabalhadores celebram convenções coletivas autorizando o pagamento em dinheiro a título de vale-transporte. Ocorre Transcrito do jornal Estado de Minas

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ilustração: Debora Oigman

Vale-transporte: 20 anos

Os trabalhadores brasileiros comemoraram em dezembro do ano passado os 20 anos da instituição do vale-transporte, um benefício social criado para melhorar as condições de vida da população brasileira. Segundo pesquisa, a Lei nº 7.418 de 16 de dezembro de 1985 instituiu que o empregador poderia antecipar o valetransporte ao trabalhador depois de celebrado acordo coletivo ou convenção coletiva de trabalho e na forma que o Poder Executivo regulamentasse os contratos individuais de trabalho, o que significava dizer que o fornecimento desse beneficio era facultativo por parte das empresas. O seu uso obrigatório entrou em vigor somente após a promulgação da Lei nº 7.619 de 30 de setembro de 1987: “Fica instituído o vale-transporte que o empregador, pessoa física ou jurídica, antecipará ao empregado para utilização efetiva em despesas de deslocamento residência-trabalho e vice-versa, através do sistema de transporte coletivo público urbano ou intermunicipal e/ou interestadual com características semelhantes aos urbanos, geridos diretamente ou mediante concessão ou permissão de linhas reguladoras e com tarifas fixadas pela autoridade competente, excluídos os serviços seletivos ou especiais”. No dia 17 de novembro de 1987, o decreto nº 95.247 foi assinado pelo então presidente da República, José Sarney regulamentando a Lei nº 7.418/85 com a alteração da Lei nº 7.619/87 que tornava obrigatório o vale-transporte. Desde que foi regulamentado, esse benefício vem contribuindo para a receita do setor, mas também enfrenta dificuldades com o comércio ilegal e o pagamento em dinheiro aos trabalhadores na forma do auxílio-transporte. Sobre isso, o STJ já decidiu que o pagamento do vale-transporte em espécie contraria o estatuído no artigo 5º do decreto que estabelece que “é vedado ao empregador substituir o vale-transporte por antecipação em dinheiro ou qualquer outra forma de pagamento”. Depois de 20 anos de sua instituição, o vale-transporte passa por um processo de modernização tecnológica com a implementação do sistema de arrecadação automática. A bilhetagem eletrônica hoje é uma realidade trazendo vantagens como a eliminação do comércio paralelo de vales, a diminuição de fraudes e falsificações em sua comercialização, além do controle efetivo do uso do beneficio por parte das empresas compradoras.

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JUSTIÇA QUALIFICADA RÁPIDA E ACESSÍVEL Pierpaolo Cruz Bottini

ilustração: Debora Oigman

Secretário de Reforma do Judiciário

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s problemas que envolvem a Justiça brasileira são conhecidos e sentidos pelos operadores do direito e pela população em geral. Todos aqueles cidadãos que já buscaram, no Poder Judiciário, resolver seus conflitos ou solucionar controvérsias, perceberam as dificuldades para fazer tramitar uma ação, para acompanhar a produção de atos processuais e para executar, concretamente, uma sentença ou uma ordem judicial. A morosidade, a dificuldade de acesso e os custos da prestação jurisdicional afetam a credibilidade da Justiça e do próprio poder público, como instância de pacificação social, e implicam inúmeros prejuízos para a estabilidade social e para o desenvolvimento econômico do país. A lentidão nos julgamentos é visível nos números e indicadores desenvolvidos pelo próprio Poder Judiciário. Há uma taxa de congestionamento no sistema judicial de 60%, o que significa que de cada dez processos em tramitação e entrados em um ano, apenas quatro são finalizados, e seis passam para o ano seguinte, criando uma bola de neve que aumenta progressivamente. O acúmulo de feitos é superior à capacidade de vazão do sistema judicial, e esta situação 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

prejudica em muito a tarefa de distribuir Justiça de maneira célere e eficaz. O enfrentamento deste problema é urgente. A morosidade do sistema judicial não afeta apenas a legitimidade das instituições públicas, mas também reflete na intensidade das relações econômicas e financeiras. A insegurança e a baixa expectativa de soluções rápidas para litígios comerciais ou similares inibe e desestimula as transações, reduz o volume de negócios e afasta investimentos de maior monta. O custo para a recuperação de créditos via judicial afeta diretamente o volume de financiamento no mercado e, conseqüentemente, aumenta os juros na proporção em que aumenta o risco de ter que resolver eventuais casos de inadimplência através de instâncias lentas e burocráticas. No entanto, é preciso cautela para não transformar a ânsia por reverter o atual estado de coisas em propostas imaturas e simplistas. Tornar a Justiça mais eficiente não significa reduzir prazos ou recursos, nem exigir que o magistrado profira sentenças em série, sem maior reflexão sobre os impactos de suas decisões. Não significa, ainda, macular os espaços de defesa ou criar incidentes de uniformização de jurisprudência


automáticos, que não aceitem revisão ou reavaliação diante das transformações naturais da sociedade. O que se faz necessário é uma transformação consistente no sistema judicial brasileiro, que agregue alterações no plano legislativo e no plano administrativo, que dotem os órgãos jurisdicionais de capacidade para enfrentar o problema da alta litigiosidade e do grande volume de processos. Tais alterações devem ser construídas com a participação de toda a sociedade, com a contribuição de entidades e instituições que operam o direito e de membros da sociedade que utilizam e dependem da prestação jurisdicional para solucionar problemas e lides. Seguindo esta linha e estes princípios, o Ministério da Justiça, através da Secretaria de Reforma do Judiciário, em conjunto com o Supremo Tribunal Federal, com o Instituto Brasileiro de Direito Processual, e com associações de magistrados, de advogados, de promotores, de defensores públicos, de procuradores e de cidadãos, apresentou ao Congresso Nacional inúmeros projetos de lei que tratam do processo civil, penal e trabalhista. Todas as proposituras vieram de constatações de pessoas e profissionais que atuam no dia a dia forense, e que lidam com os problemas, com os gargalos e com os obstáculos cotidianamente. Por isso, por mais que sofram críticas por um ou outro aspecto isolado ou particular, tais projetos representam o anseio de parcela da sociedade por uma Justiça mais racional e eficiente. No campo do processo civil, três projetos já foram aprovados e transformados em lei, sendo um deles a respeito do regime de agravos (com importantes reflexos no volume de agravos regimentais nos tribunais), outro sobre processos repetitivos e um último que trata do processo de execução civil. Este último merece destaque pela extensão e pela profundidade das mudanças que apresenta. A nova Lei 11.232/05, que trata da execução de títulos judiciais, é de fundamental importância, como assinalam alguns juristas responsáveis pela elaboração do anteprojeto de lei que resultou no texto aprovado, como Ada Pellegrini Grinover, Athos Gusmão Carneiro e Petrônio Calmon. Os novos dispositivos do Código de Processo Civil que regulamentam a execução civil conferem maior racionalidade aos procedimentos e, por isso, permitirão a satisfação das demandas em tempo mais rápido. Isso porque, pela nova legislação, o processo de conhecimento deixa de estar separado do processo de execução, ou seja, agora o desenrolar da ação é um só, unificado. Desta forma, o devedor só precisará ser citado do início do processo de conhecimento, no qual atuará apresentando sua defesa, apontando provas, argüindo matérias de fato e de direito, para convencer o juiz de sua argumentação. O processo de execução, sendo agora mera etapa de um processo já iniciado, não demanda nova citação, mas apenas a forma regular de comunicação do réu, como é feito em relação aos demais atos praticados no andamento da ação. Outra inovação importante é a imposição de uma multa de 10% do valor da condenação para o réu que não cumprir a obrigação de pagar no prazo de quinze dias, a partir da sentença.

“O que se faz necessário é uma transformação consistente no sistema judicial brasileiro, que agregue alterações no plano legislativo e no plano administrativo, que dotem os órgãos jurisdicionais de capacidade para enfrentar o problema da alta litigiosidade e do grande volume de processos.” Esta medida é importante para desestimular manobras meramente protelatórias, como o oferecimento de bens à penhora sem condições de satisfazer a dívida. Evidentemente que esta multa não impede o devedor de apresentar todos os recursos inerentes ao processo de execução, especialmente a impugnação, se entender presente algum vício descrito no art. 475-L do Código de Processo Civil. Não resta dúvida que o sucesso no recurso afasta a incidência da multa, logo, fica garantido o contraditório, a defesa, mas cria-se um ônus, um risco que deve ser sopesado nos casos de manobras com finalidade protelatória. Seguramente, apenas as mudanças trazidas pelos novos diplomas normativos não são suficientes para garantir uma prestação jurisdicional excelente, mas são passos relevantes que apontam os rumos de uma efetiva reforma legislativa. Outros projetos de lei em tramitação devem ser aprovados, instituindo a súmula impeditiva de recursos, a declaração da prescrição de ofício, a regulamentação dos pedidos de vista nos tribunais, o procedimento de adjudicação, e assim por diante. Ademais, é importante tratar da administração da Justiça, dos modelos de gestão dos cartórios e das formas de tramitação dos processos. A utilização de novas tecnologias, de insumos de informática, de comunicação digital para a prática de atos judiciais é uma realidade que vem se impondo no cotidiano da Justiça, e deve ser incentivada, para criar estruturas com condições de organizar e sistematizar as demandas e seu andamento. Desta forma, a multiplicidade de atos e ações que compõe a reforma do Judiciário demonstra a heterogeneidade dos setores afetados e dos planos desenvolvidos. O denominador comum que une todas estas atividades, no entanto, deve ser o objetivo de alcançar uma Justiça qualificada, rápida e acessível, que exerça suas competências sem mitigar direitos estabelecidos de argüição e de defesa. 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29


CONFLITO ENTRE LIBERDADES Darci Norte Rebelo Darci Norte Rebelo Jr.

ilustração: Debora Oigman

Consultores da FETERGS

A régua da proporção É fácil resolver conflitos entre o bem e o mal; a virtude e o vício; o amor e o ódio. Na balança da sensibilidade, seja qual for o critério dos pesos e medidas, os primeiros pesarão mais que os segundos. O problema está quando o conflito surge entre dois valores de igual hierarquia que, postos nos pratos da balança, tenham pesos iguais. Nesta hipótese, o conflito há de ser resolvido de modo que ambos os valores sejam preservados. A medida para dar a justa solução data da Ética de Nicômacos onde se aprende que a Justiça se aplica com a régua da proporção1. “O justo é o proporcional” – diz 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

Aristóteles a seu filho - “enquanto a injustiça se relaciona com os extremos”2. O tema foi retomado, hoje, pelo chamado neoconstitucionalismo3 que consagrou a técnica da ponderação que nada mais é do que o princípio da proporção visto pela tríplice ótica da adequação ou idoneidade do meio escolhido; pela necessidade da fórmula proposta e, finalmente, pela relação entre custos e benefícios, vale dizer, entre as vantagens e as desvantagens da medida, denominada regra da proporção em sentido estrito. A isso se chama razoabilidade conforme o lado do Atlântico em que esteja o jurista 4


“Essa solução envolve diversas questões constitucionais e legais que, até agora, pelo menos, parecem não ter sido objeto de maior reflexão para os autores do megalomaníaco projeto da adaptação de 100.000 ônibus e sucateamento de outros tantos que terão de ser abandonados como ferro-velho.”

Direitos dos usuários de cadeiras de rodas A Constituição assegurou a pessoas portadoras de necessidades especiais de transporte a eliminação de barreiras arquitetônicas e urbanísticas no exercício de sua liberdade de locomoção. Nisso se inclui a acessibilidade aos meios de transporte através da adaptação dos veículos respectivos. Nenhum país do mundo, mesmo os grandes produtores de guerras, mutilados e cadeiras de rodas, porém, chegou ao extremo de adaptar a integralidade de seu transporte às necessidades especiais dessas pessoas. E ninguém o fez porque o número de destinatários dessa adaptação é muito pequeno e os custos da adaptação, elevados, além dos problemas operacionais provocados pelo manejo dos elevadores. Mas o direito vem sendo assegurado com a prudência da proporção. A administração pública brasileira, contudo, com total indiferença aos custos da medida e seus reflexos no bolso dos usuários, determinou que toda a frota de ônibus do País, começando pelos ônibus urbanos e metropolitanos - 100.000 veículos - fosse adaptada, com elevadores, num período de dez anos, através do redesenho da frota nacional para introdução de elevadores5. O INMETRO está com norma elaborada e a indústria já esta alterando a linha de produção para produzir ônibus com esse tipo de adaptação. Ônibus sem elevador, daqui para o futuro, não servirá para coisa alguma, pela perda do valor de uso e do valor de troca. Os custos e desperdícios da determinação de tal magnitude fazem duvidar da sanidade mental da solução governamental. Mas é a que está em curso.

(isto é, em 5 de outubro de 1.988, há dezessete anos) a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência, conforme o disposto no art. 227, parágrafo 2º”. É bom dizer que os veículos existentes em 1.988 já não existem.

Problemas constitucionais envolvidos Essa solução envolve diversas questões constitucionais e legais que, até agora, pelo menos, parecem não ter sido objeto de maior reflexão para os autores do megalomaníaco projeto da adaptação de 100.000 ônibus e sucateamento de outros tantos que terão de ser abandonados como ferrovelho. Tudo o que está ocorrendo, segundo os órgãos da administração pública, deriva da própria Constituição. O Governo, humildemente, alega curvar-se ao mandado constitucional e, dezessete anos depois, resolve cumprir o comando da adaptação dos ônibus, transformando a indústria dos elevadores no mais promissor negócio das próximas décadas. As normas constitucionais que, segundo os intérpretes oficiais, autorizam a ensandecida idéia de adaptar tudo são basicamente duas, as do art. 227, parágrafo 2º e a do art. 244, estas das Disposições Constitucionais Gerais. Dizem o seguinte: Art. 227, parágrafo 2º: “A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir o acesso adequado às pessoas portadoras de deficiências”. Já a do art. 244 tinha o caráter de norma transitória ao dispor: “A lei disporá sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes

Como foram interpretadas essas normas A quem fez uma refletida e equilibrada leitura dessas normas não ocorreu que elas contivessem um comando de adaptação de toda a frota de transporte do País. O recado constitucional, o mandado de otimização, como diria Robert Alexy, tinha como objetivo assegurar a acessibilidade de deficientes físicos aos meios de transporte e aos edifícios públicos. E foi isso que veio sendo feito no curso destes dezessete anos, desde a Carta de 88. Os Municípios e os Estados, responsáveis pelos serviços urbanos e metropolitanos, vieram aplicando a diretiva constitucional aos veículos existentes de acordo com a realidade específica de cada cidade. Há pequenas cidades do Interior em que não existe um “cadeirante” sequer e o sistema, pela escassez de recursos, não comporta efetuar adaptações para não serem usadas 6. Há cidades que usam veículos de menor porte com elevadores e há até mesmo serviços agendados, todos eles gratuitos. Não é muito diferente no exterior: Nova York usa ônibus adaptados, enquanto Washington, serviços sob agenda. Não passou pela cabeça de pessoas sensatas, contudo, que toda a frota de ônibus do País devesse ser adaptada em função da minoria de usuários que as utilizam. O direito destes, não obstante, deve ser assegurado. E ninguém contesta, hoje, direitos de minorias. Já foi o tempo em que a democracia era sinônimo 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31


Arquivo pessoal

Darci Norte e Darci Norte Rebelo Jr.

de maioria. As minorias têm vez. Mas em termos, de acordo com a regra da proporção. O início da paranóia A primeira lei regulamentadora das normas constitucionais acima referidas, a Lei 10.048, de 8 novembro de 2.000, determinou que os “proprietários” de veículos tinham 180 dias para adaptar sua frota e a indústria, depois de doze meses, só podia produzir veículos adaptados. Uma lei delirante, completamente alheia à realidade do País. Esse desvario durou trinta dias, pois, em dezembro, diante da absoluta e total impossibilidade de cumprimento dessa norma, o Congresso editou a Lei 10.098 e, no art. 16, sem dizer expressamente que estava revogando o inexeqüível art. 5º, prescreveu: “Art. 16. Os veículos de transporte coletivo deverão cumprir os requisitos de acessibilidade estabelecidos nas normas técnicas específicas”.Quatro anos depois, o Decreto 5.296, dizendo regulamentar a Lei 10.048 (a dos 180 dias...) e a 10.098, determinou que a indústria tinha vinte e quatro meses, a contar da edição das normas técnicas do INMETRO, para que todos os modelos e marcas de veículos de transporte coletivo rodoviário para utilização no País fossem fabricados acessíveis (isto é, com elevadores) e, ainda, que “a frota de veículos de transporte coletivo rodoviário e a infra-estrutura dos serviços deste transporte deverão estar totalmente acessíveis no prazo máximo de cento e vinte meses a contar da data de publicação deste Decreto”.O Decreto é de 2 de dezembro de 2.004. O prazo final, 1º de dezembro de 2.014. 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

A inconstitucionalidade por invasão de atribuições do Executivo no Legislativo A Lei 10.098, ao regulamentar o “mandado de otimização” do art. 227, reafirmado na norma transitória do art. 244 da Carta, tão-somente estabeleceu que a adaptação far-se-ia de acordo com as normas técnicas e nada mais. Não cuidou de prazo. O Decreto, portanto, ao prescrever a regra de que todos os modelos de ônibus deverão ser adaptados no prazo de dez anos, assumiu o papel de legislador e afrontou o princípio da separação dos poderes. Criou lei para todos os níveis da Federação, sem a participação do Legislativo e sem suporte constitucional. Indiretamente, produziu uma nova modalidade de desapropriação, pois os ônibus desativados, sem elevadores, perdem o valor de troca, gerando um prejuízo incalculável à economia do País e às concessionárias de serviços públicos em particular. Aos usuários restará o encarecimento das tarifas, já que a hipótese de subsídio não passa de uma declaração de intenções dos órgãos públicos. Ademais, o subsídio teria de sair de algum lugar do orçamento. Da saúde? Da Segurança Pública? Das estradas? Despiria um santo para vestir outro. Duraria quanto tempo? No ano eleitoral? E após? A inconstitucionalidade por vício de competência A Constituição dá à União competência tão somente para estabelecer diretrizes para os transportes urbanos [CF, art. 21, XX] e para os transportes em geral [CF, art. 22, IX]. A questão da adaptação dos ônibus para facilitar a acessibilidade


dos portadores de necessidades especiais de transporte é uma diretriz certamente. Mas cada município brasileiro é que vai aplicar essa “diretriz” de acordo com suas necessidades. Adaptando os ônibus necessários. Não todos. A determinação para que a totalidade da frota urbana, mais a metropolitana, intermunicipal, interestadual e internacional seja adaptada ultrapassa os limites da competência da União para editar diretrizes do transporte urbano [CF, art. 21, XX] e de transporte em geral [CF, art. 22, IX]. A inconstitucionalidade é flagrante. Cada um dos níveis da administração possui competência constitucional específica para organizar o seu serviço público de transporte coletivo: a União [CF, art. 21, XII, “e”]; os Estados e o DF [CF, art. 25, parágrafo 1º] e os Municípios, para os quais o transporte urbano recebe, da Carta, a nota máxima de essencialidade [CF, art. 30, V]. A inconstitucionalidade vista pelo ângulo da competência concorrente Mesmo quando cuida da competência legislativa para estabelecer regras de proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência, a Constituição meramente autoriza a União a estabelecer regras gerais [CF, art. 24, XIV e parágrafo 1º], sem excluir a competência suplementar dos Estados [CF, art. 24, parágrafo 2º] e a dos Municípios quando se tratar do interesse local [CF, art. 30, I e II], especialmente sobre os essenciais transportes coletivos [CF, art. 30, V]. Ao fixar que todos os poderes concedentes terão de adaptar toda a frota sob sua jurisdição, o Decreto Federal 5.296 não editou uma norma geral, mas uma determinação administrativa, como se houvesse hierarquia entre a União e os Municípios, entre a União e os Estados. Uma ordem simplesmente para ser cumprida e sem qualquer liberdade de suplementação, pela total impossibilidade de ser suplementada. Assim, adaptar tudo não é lei, não é normal geral. É norma administrativa de natureza técnica, ilegal e inconstitucional por resultar de defeituosa leitura e compreensão da Constituição, controlável pelo metro da razoabilidade. O conflito das duas liberdades Há, ainda, nessa desastrada solução, aberto conflito que se desenvolve no plano do direito de ir e vir, o qual envolve os deficientes físicos, que utilizam cadeiras de rodas, e os usuários comuns dos transportes públicos, os que pagam a conta dos que não pagam. O conflito se dá entre a acessibilidade física, de alguns, e a acessibilidade financeira, da maioria. Trata-se, sem dúvida, de dois respeitáveis direitos e o problema deve ser resolvido como vinha ocorrendo: na medida da necessidade e na proporção dos interesses envolvidos. Pelo Censo do IBGE de 2.000, o País possui 14,5% de deficientes, sendo 48,1% deficientes visuais; 22,8%, deficientes motores; 16,7%, deficientes auditivos; 8,3%, deficientes mentais e 4,1%, deficientes físicos 7. Destes últimos, não se conhecem estatísticas de quantos, dentre eles, utilizam cadeiras de rodas. A estimativa é a de que não tenhamos mais de 1% de usuários com esse tipo de restrição 8. Dir-se-ia, assim,

“O direito dos deficientes físicos deve ser assegurado, mas há várias maneiras de fazê-lo. Sem transformar o programa constitucional num cemitério de ônibus inservíveis e num monumento à falta de lucidez da administração pública.” provisoriamente, para não errar, até sabermos os números certos, que 99% dos usuários do transporte coletivo não utilizam cadeiras de rodas. Não obstante, a liberdade da minoria deve ser assegurada e não há ninguém contra. O problema está, repita-se, na proporção em que a adaptação deve ser feita a fim de preservar ambos os direitos, da maioria sacrificada pelo alto preço dos transportes e da minoria dos usuários de cadeiras de rodas. A solução dada pelo Governo – geradora de custos desnecessários e perdas irreparáveis - cria um conflito entre essas duas liberdades, constitucionalmente asseguradas, a de pessoas portadoras de necessidades especiais de transporte e a da grande maioria de pessoas portadoras de necessidades convencionais de transporte. Estas são as que vão pagar a conta, já que os deficientes a favor dos quais a medida é estabelecida, são beneficiados por gratuidades em quase todo o País, mais seus acompanhantes 9. Está mais do que claro que a medida adotada não obedece aquilo que os alemães chamam de “princípio de proibição do excesso” ou da proporcionalidade e que os americanos, e nós mesmos, vemos pela ótica da razoabilidade. A fórmula – adequação (da adaptação), necessidade (da adaptação), proporção (da adaptação) – aplicada à hipótese – conduz a uma inevitável censura de inconstitucionalidade da medida que manda adaptar toda a frota do País. Como disse o Estagirita, “a injustiça está nos extremos”. A concretização dos direitos constitucionais Há, portanto, nessa medida única no mundo – a mudança do perfil de toda a frota de ônibus do País e o sucateamento dos que forem substituídos, por não poderem ser utilizados para transporte coletivo – um inequívoco sinal de alheamento da realidade, de tal grandeza, que permite imaginar a existência de um surto de esquizofrenia na administração pública 10, onde a idéia teve nascedouro e cresce assustadoramente. Discursando sobre a concretização da Constituição, a prof. Anabelle Macedo Silva mostra 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


que a efetividade dos direitos consiste “no refinamento da relação normatividade-facticidade” 11 de modo que “os métodos concretistas de interpretação promovem o amalgamento da realidade e da normatividade” 12 em que o “texto da norma funciona como diretiva e limite da concretização possível” 13. O direito é síntese, história e mediação – diz o emérito professor Clemerson Merlin Clève 14. É a mediação que conduz a ações afirmativas em favor da existência de um mínimo existencial nessa dialética dos direitos constitucionais e da facticidade “necessários à sobrevivência digna” 15. Assim, as políticas corretas e dignas de aplauso, de ações afirmativas em favor dos deficientes que utilizam cadeiras de rodas não podem conduzir a uma decisão desastrosa no plano econômico que, mais dia menos dia, vai afetar o bolso dos usuários que pagam. Os princípios são mandados de otimização que admitem “aplicação mais ou menos intensa de acordo com as possibilidades jurídicas existentes, sem que isso comprometa a sua validade” 16. “A Constituição é uma norma diretiva fundamental” 17 “que indica uma determinada direção a seguir” 18 “que conduz a

una exigencia de proporcionalidad que implica establecer un orden de preferencia relativo al caso concreto” 19. Mensagem final A adaptação da frota de ônibus do País deve ser efetuada dentro das possibilidades fácticas e jurídicas, ao critério de cada cidade, de cada poder concedente, subordinada à cláusula da “reserva do possível” e nos limites aceitáveis da realidade econômica do País. Assim é que vem ocorrendo. A adaptação total, porém, é uma determinação que oscila entre os limites de uma ilegalidade mínima e a máxima da inconstitucionalidade. Mas, mesmo sem pronunciamento judicial sobre o tema, ainda é tempo de a administração pública recuar do seu irrefletido projeto de sermos o campeão do mundo em matéria de elevadores. Há milhões de pessoas sendo alijadas do transporte coletivo em razão dos seus altos custos. O direito dos deficientes físicos deve ser assegurado, mas há várias maneiras de fazê-lo. Sem transformar o programa constitucional num cemitério de ônibus inservíveis e num monumento à falta de lucidez da administração pública.

NOTAS Ética a Nicômacos, Edit. UNB, Brasília, 1.999,p. 96: “O justo...é uma das espécies do gênero “proporcional” [Nota 1131 b].. Ética a Nicômacos, Edit. UNB, Brasília, 1.999, p. 101. 3 Neoconstitucionalismo y ponderación de valores, de Luís Prieto Sanchis, professor de Filosofia do Direito da Universidade de Castilla-La Mancha, in Neoconstitucionalismo, org. por Miguel Carbonell, Editorial Trota,Madrid, 2.005, p. 139. 4 “O princípio da razoabilidade é um mecanismo para controlar a discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: [a] não haja adequação entre o fim perseguido e o meio empregado; [b] a medida não seja exigível ou necessária, havendo caminho alternativo para chegar ao mesmo resultado, com menor ônus a um direito individual; [c] não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida tem maior relevo do que aquilo que se ganha” –in “A Nova Interpretação Constitucional, org. pelo prof. Luís Roberto Barroso, ed. Renovar, Rio, 2.003, p. 37. 1 2

Nesse número não se incluem os ônibus intermunicipais e interestaduais. De momento apenas. Mesmo em Porto Alegre, cidade com um milhão e meio de habitantes, o uso de veículos adaptados, segundo pesquisa recente, é de 4,5% por cento, isto é, em cada cem viagens, o elevador é utilizado apenas em 4,5 % delas. 7 Assis, Queiroz Olney e Pozzolik, Lafayette. Pessoa Portadora de Deficiência – Direitos e Garantias. Ed. ienDamásio de Jesus, 2ª ed. SP, 2005, p. 31. 8 O número deve ser bem menor que 1% pela observação empírica colhida em várias cidades. 9 A Constituição, ao contrário do que fez com os idosos de idade igual ou superior a 65 anos, não concedeu gratuidade nos transportes urbanos aos deficientes, mas assegurou, no art. 203, inciso V, uma renda social de um salário mínimo ao deficiente que não possuir meios de promover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, matéria regulada pela Lei da Assistência Social [LOAS], de modo que, em rigor, as necessidade de transporte estão previstas na renda assegurada ao deficiente. Não obstante, o custo do transporte dessas pessoas é transferido para os demais usuários com infração do disposto no art. 195, parágrafo 5º, da Carta de 88. 10 O prof. Flávio Galdino, da Universidade do Rio de Janeiro, costuma advertir seus alunos sobre o “elevado grau de esquizofrenia” de certos estudos jurídicos, em que a “realidade [é] simplesmente ignorada” produzindo soluções “artificiosas” [Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos, Lúmen Júris Ed., Rio, 2.005, p. 333. Ele mesmo lembra que Mário Henrique Simonsen utilizou a mesma imagem para referir-se “a determinadas promessas jurídicas irrealizáveis”, in Sarmento, Mário Henrique Simonsen – textos escolhidos, p. 164. 11 Concretizando a Constituição, ed. Lúmen Júris, Rio, 2.005, p. XV] 12 Op. cit., p. 28] 13 Op. cit., p. 35]. 14 O Direito e os Direitos – Elementos para crítica do direito contemporâneo, ed. Max Limonad, SP, 2001, p. 212. 15 Op. cit., p. 215. 16 Alexy, Roberto. Teoria de los derechos fundamentales, p. 81. 17 Fioravanti, Maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituiciones. Madrid. Trotta. 2000, p. 97]. 18 Barroso, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional – Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, ed. Renovar, Rio, 2003, p.31. 19 Neoconstitucionalismo y ponderación de valores, de Luís Prieto Sanchis, profesor de Filosofia do Direito da Universidade de Castilla-La Mancha, in Neoconstitucionalismo, org. por Miguel Carbonell, Editorial Trota,Madrid, 2.005, p. 143. 5 6

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Ney Prado Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia

foto: FAESP

Utopismo Constitucional

“A Constituição, não obstante seja parte essencial da democracia, não é em si bastante para produzi-la”.

Giovanni Sartori

1. Conceito Etimologicamente, utopia deriva de au-topos. Significa “lugar nenhum”, lugar que não existe em parte alguma e, mais estritamente, o tipo de sociedade que não se estabeleceu em nenhum lugar.1 Foi inicialmente título de uma obra célebre, escrita por Thomas More, que descreve a sociedade perfeita e o governo ideal. Atualmente a palavra serve designar um sonho de perfeição social impossível de se atingir, uma concepção imaginária e irrealizável de organização política, econômica e social. Embora haja uma grande multiplicidade de abordagens do termo utopia, os autores parecem concordar que sua definição não será encontrada pela Filosofia. O conceito mais célebre é o de Karl Mannheim, quando diz que “um estado de espírito é utópico quando está em incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorre”2 Outros procuram na utopia um referencial futuro, realizável, portanto, em certas condições. Neste sentido, a sociedade poderia ser condicionada a trilhar um caminho que levasse à utopia. Na idéia se sente o germe da ideologia:

“a vida caminha para a utopia”, está na epígrafe de Nicolau Berdiaef que Aldous Huxley celebrizou no seu Brave New Word (1932). Esta segunda posição é, entretanto, firmemente refutada por Giovanni Sartori porque, despojando a palavra utopia de sua conotação original de “irrealizável”, ficaria o vocabulário político privado de um termo para indicar o politicamente impossível. Uma constituição será utópica em qualquer dos dois sentidos: quando se divorcia totalmente da realidade, não tendo condições práticas de reger a vida política, econômica e social da Nação a que se refere, ou quando pretenda projetar uma sociedade de valores ideologizados como objetivos para uma evolução orientada. Mas, em ambos os casos, utopia é indesejável: no primeiro, porque inócua, e no segundo, porque desumana. A utopia irrealizável, longe de se apresentar como um ideal, como um princípio a ser perseguido, mesmo sem que seja possível alcançá-lo, é uma fábrica de expectativas e, portanto, de frustrações, desservindo a sociedade. Os valores, sim, podem servir de guia; não as projeções utópicas que sobre eles se construam. 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35


Por outro lado, a utopia, como meta de transformação social, é uma forma de autoritarismo: quem afirma que determinado projeto será bom no futuro, amanhã ou agora, para que seja imposto a gerações, como uma espécie de “programa constitucional”? Por ambos os motivos, o utópico pode caber na especulação filosófica, na inventiva literária e na imaginação artística, em geral, mas deve ser evitado na ciência, notadamente na Ciência Política e na Ciência do Direito. 2. Constituição e Utopismo Uma Constituição, como de resto todo o ordenado jurídico, mas ela, de maneira especial, deve buscar a conciliação entre “o sistema tendencialmente estático de suas normas originárias” e “a dinâmica das forças sociais”. Para alcançar esse equilíbrio, duas técnicas têm sido empregadas. Numa primeira, o texto constitucional se restringe ao essencial, aos grandes princípios e à organização superior do Estado, deixando à legislação e à construção jurisprudencial o trabalho de adaptá-lo “à dinâmica das forças sociais”: é a técnica sintética. Noutra, o texto constitucional procura estabelecer um equilíbrio pela imposição de maior número de princípios e de regras à própria evolução das forças sociais; é a técnica analítica. A Constituição sintética, portanto, não se impõe aos fatos sociais. Há uma adaptação permanente. A analítica, diferentemente, procura condicionar e regrar os fatos sociais. A adaptação deve ser da sociedade ao texto. A sintética é, por isso, mais duradoura, enquanto que a analítica é mais vulnerável às crises políticas. Escolher entre uma e outra técnica, entretanto, é um problema de doutrina juspolítica. Há, todavia, um outro tipo de Constituição, rotulado de “dirigente”, que a primeira vista estaria configurado como modalidade analítica. Mas ao refugir da matéria propriamente constitucional e descer às explicações reservadas à legislação ordinária, o que realmente esse modelo pretende é produzir mudanças radicais na sociedade, principalmente nos campos econômico e social, com viés socializante e com força vinculante em relação aos legisladores e governantes futuros. Um dos inúmeros problemas das Constituições dirigentes é não distinguirem entre “garantias não onerosas” e “garantias onerosas”. “Pode haver ampla generosidade no tocante às primeiras – liberdade de voto, de opinião, de associação e de locomoção, direito à vida e processo judicial. São proteções essencialmente negativas, a saber, são vedadas as leis que restringem o exercício das liberdades humanas. Ao datá-las, ninguém está usando aquilo que John Randolph, estadista americano, descrevia como o mais delicioso dos privilégios, ‘o direito de dispender o dinheiro alheio’. A coisa é diferente quando se trata de ‘garantias onerosas’, como os salários, aposentadorias, educação, saúde e meio ambiente. Essas garantias devem ser objeto de regulação infraconstitucional, por que é necessário medir os custos e especificar quem vai pagar a conta. Os financiadores e os beneficiários podem 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

variar no curso do tempo, e cabe aos partidos políticos, em seus programas, demonstrar à sociedade que a relação custo-benefício é favorável e assim se credenciarem para o exercício do poder. Inseri-las no texto constitucional é tornálo inexeqüível ou irrelevante”.3 Poder-se-ia argumentar que as garantias onerosas propostas são de cunho meramente programático e que muitas delas costumam vir inseridas em algumas constituições, tanto brasileiras como estrangeiras. Acontece, no entanto, que o utopista vai muito além do esperado. Por um passe de mágica, pela crença desmedida no poder das fórmulas escritas, decreta que todas as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Mas, afinal, que razões poderiam explicar o utopismo? Em que pese a dificuldade de se elaborar uma única classificação para os diversos tipos de utopia, a razão básica para justificar esse fenômeno, reside na mentalidade racionalista e visão cultural idealística, da qual as elites, mesmo as mais intelectualizadas, ainda não se desvencilharam. De fato, “essa tendência de não distinguir bem a ordem do ‘dever-se’ da ‘do ser’, chega até a instituir, no comum, uma inversão ou uma distorção no processo no entendimento do mundo. Evita-se auscultar os fatos, a realidade, seu caráter íntimo, dinâmico ou profundo. Ao invés disso, segue-se muitas vezes a atitude de projetar sobre esta mesma realidade os conceitos a priori, sobre como deveria ser o mundo. Ou melhor, como se desejaria que fosse, partindo de certos esquemas mentais, ou de certos acervos de valores, projetados, assim, sobre um mundo que não se conhece e até que se desdenha de conhecer”. “Adota-se aqui o vício psicológico central, advertido por Jung, de projetar no ‘não eu’ o nosso próprio ‘eu’. Isto é, de não sentir o mundo ou a vida como são, porém antes como um produto de nossa própria concepção abstrata. Em outras palavras, deixa-se de auscultar a vida como se apresenta e, em lugar disso, se erigem concepções teóricas do mundo. Como este, obviamente, comporta-se de maneira diversa, temos sempre a tendência para ficar perplexos”.4 A utopia resulta, assim, da teimosa postura racionalista que sempre tem insistido em tentar mudar a realidade através da norma; na lição de Sartori, “uma atitude irrealista acompanha o racionalismo”.5 O traço mais distintivo dessa mentalidade é a crença no poder das fórmulas escritas. “Para esses sonhadores, pôr em letra de forma uma idéia é, de si mesmo, realizá-la. Escrever no papel uma Constituição é fazê-la, para logo, cousa viva e atuante: as palavras têm poder mágico de dar realidade e corpo às idéias por ela representadas”.6 Para os que assim pensam, as palavras substituem os fatos, o sonho substitui a realidade. O espírito racional parte da suposição de que é possível condicionar a realidade à norma, enquanto que o espírito empírico (ou realista no caso) quer condicionar a norma à realidade. Na visão racional, na formulação de soluções normativas para “disciplinar a realidade” passam a proliferar as “normas


programáticas”, em oposição àquelas, testadas pela experiência, que são as “normas pragmáticas”. Essa distinção foi evidenciada por Sartori, no estudo da hipótese da democracia, para estremar o tipo anglo-saxônico da democracia do tipo francês. A democracia, tal como fruto da evolução inglesa, é um exercício de pragmatismo político, um “produto histórico”, que se institui e se mantém com assento na realidade. A cultura, lato sensu, é a condição dessa democracia. Por outro lado, a democracia, tal como fruto de revolução francesa, é um exercício de racionalismo político, um produto intelectual, que se institui e se mantém com assento em fórmulas e formas idealizadas. A norma no caso, é a condição dessa democracia.7 Os legisladores de mentalidade utópica, por considerarem a idéia a essência da realidade, subordinam o pensamento e a forma de proceder a um ideal. Por isso, não conseguem se liberar da noção de democracia senão como um ideal abstrato. Confundem fins democráticos com a própria democracia, ou seja, a mitologia da democracia com sua existência real. Exatamente como os perfeccionistas sonhadores gostam: “algo pronto, acabado, imaginário, no qual tudo parece simples e coordenado, uniforme, justo e racional”. A democracia, enquanto idéia, não é um fato, mas apenas um conceito. A evidência histórica nos ensina que o verdadeiro modelo de democracia é o possível, aquele usado para uma sociedade real, conflituosa, desigual, constituída de homens imperfeitos e não de deuses. Sua implantação e o seu florescimento, em qualquer das suas adjetivações, não é apenas uma questão de vontade ou determinação pessoal. Em sendo um produto histórico, a democracia só se torna possível na medida em que existam, principalmente, as condições e os pré-requisitos objetivos para o seu bom funcionamento. 3. Conclusão O sonho é um atributo do homem e nada há nele de negativo. Ao contrário, inspira e eleva o seu comportamento. Nesse sentido, a utopia se assimila ao sonho e sua formulação pode ser inspiradora e motivadora. Há um tipo de utopia, no entanto, que nos transporta e nos lança a um mundo imaginário, totalmente distanciado da realidade, que utilizamos como modelo para transformar a sociedade. Nesse caso, a utopia que não se satisfaz em ser um sonho para ser um pesadelo.

Do fascínio da primeira aproximação, a utopia passa ao tormento da sua realização. No fundo, é o desejo de justiça imanente ao homem que o força a realizar o impossível, até mesmo consciente de que no processo sacrificará outros valores e afinal, para nada lograr, senão piorar, ainda mais, o mundo em que vivemos. É exatamente essa utopia negativa, que preocupa. “O erro destes espíritos teorizadores, ou antes, a ilusão deles, está na convicção, em que todos eles vivem, de que uma reforma política só é possível por meios políticos. Eles não concebem que haja outros meios capazes de modificar as condições da vida política de uma sociedade, senão a modificação das suas instituições de direito público (...) os idealistas românticos, os racionalistas, os metafísicos desdenham as leis do desenvolvimento social, fazem das sociedades simples matéria plástica que eles presumem facilmente modelável à feição de sua vontade, segundo os módulos engenhados por sua imaginação”.8 Na verdade, as grandes reformas, as reformas profundas, de caráter social, antes que legal, só sobrevêm no exercício de um regime democrático, como produto da vivência constitucional e não apenas da letra constitucional, daí o equívoco dos utópicos. Não percebem que o problema de qualquer organização política, econômica e social é muito mais complexo do que parece àqueles que pensam em poder resolvê-lo com simples reformas constitucionais. “A norma facilita ou dificulta o progresso, mais não o gera materialmente. A materialização do progresso pertence à ordem dos fatos, não à dos preceitos” 9 . “Na verdade, uma Constituição não resolve problemas, apenas aponta diretrizes”. Pode-se afirmar que “hoje, nenhum constitucionalista, por mais ardente juspositivista que possa ser, afirmaria que uma Constituição por si própria tem condições de conformar a realidade que a ela não se adapte. Uma Constituição, qualquer Constituição, leva a pior: o poder, antes de concentrar-se na lei, está nos fatos sociais; antes de estar no Estado, está na sociedade”10. Em conclusão, a avaliação crítica de uma Constituição marcada pelo utopismo nos leva, fatalmente a duas conclusões: ao perigo de tornar-se fonte permanente de crises; e ao perigo, ainda maior, de por em risco a estabilidade política e a democracia.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Dicionário de Ciências Sociais, Ed. Fundação Getúlio Vargas,Rio de Janeiro, 1986, p. 1284 2. Karl Mannheim, Ideologia e Utopia, Ed. Zahar,São Paulo, 1968, p. 216 3. Roberto Campos,A lanterna na Popa, Ed. Topbooks, Rio de Janeiro, 1994, p. 1186 4. Pessoa de Moraes, Tradição e Transformação no Brasil, Ed. Civilização Brasileira,Rio de Janeiro, 1973, 2a. edição, p. 287. 5. Giovanni Sartori, Teoria Democrática , Ed. Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1965, p. 61. 6. Oliveira Vianna, O idealismo na Constituição , Ed. Terra do Sol, Rio de Janeiro, 1927, p. 25. 7. Giovanni Sartori, ob.cit., p.61 8. Oliveira Vianna, ob.cit., p.25 9. Helio Jaguaribe, Três Problemas e Seis Cenários, Folha de São Paulo, 21/7/1988, p.A3 10. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Constituição e Revisão, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1991, p. 385 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


AS FACES PERVERSAS DO MERCADO ILEGAL Marcio Eduardo Tenório da Costa Fernandes Presidente da Comissão de Combate ao Mercado Ilegal do Conselho Federal da OAB

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inegável o crescimento da chamada economia informal nos chamados países em desenvolvimento. No Brasil, de acordo com estudo realizado pelo Banco Mundial, já atinge cerca de 40% da renda nacional bruta. De um lado, é preciso identificar as causas do surgimento dessa atividade; de outro, há que se debruçar sobre seu desenvolvimento e conseqüências, em todas as esferas. De início, são levados para a atividade econômica informal os milhares de desempregados do nosso País; pessoas que não conseguem voltar ao mercado de trabalho e passam a se dedicar a ações não reguladas ou no mínimo toleradas pelo poder público, como o comércio ambulante. A complacência com pequenos delitos, como os praticados pelas chamadas “sacoleiras”, cria um caldo de cultura que faz proliferar o comércio clandestino. Engrossam essas fileiras pequenos comerciantes e industriais insolventes, que montam negócios de fundo de quintal para geração de recursos necessários à sua sobrevivência na impossibilidade de manutenção de suas empresas. De outro prisma, ingressam na informalidade profissionais, artesãos, virtuais pequenos empresários, ante as dificuldades burocráticas impostas pela legislação para a abertura, regularização e mantença de empreendimentos legalizados, bem como pela elevadíssima carga tributária existente no Brasil. São profissionais que preferem continuar atuando na informalidade, apesar do relativo tamanho de seus negócios, uma vez que o salto para a formalidade poderia lhes custar a própria existência. Aproveitando-se deste quadro e escudando-se na tolerância e omissão das autoridades públicas, vários oportunistas (sonegadores, contraventores e criminosos de variados feitios) valem-se dessas geratrizes da economia paralela, nela se infiltrando e abastecendo-a de produtos falsificados, contrabandeados, ou elaborados sem a mínima observância de quaisquer cuidados técnicos. Passam a controlá-la como um grande empreendimento. Utilizam-se de mão de obra não especializada, ocupando desempregados, com remuneração vil e total alheamento aos direitos trabalhistas e sociais. Não há recolhimento de tributos, nem se observam exigências de

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ordem ambiental, de higiene e de controle de qualidade. Evidentemente, os preços de tais bens colocados à disposição do público são irrisórios se comparados com os produzidos por empresas que cumprem as regras, onerados pela excessiva carga tributária, pelo cumprimento das normas de fiscalização, pelos direitos sociais e trabalhistas e pelo respeito ao consumidor. Devido às dificuldades econômicas gerais que assolam a maioria da população, os produtos do mercado ilegal são alvo de grande aceitação, sobretudo pelas camadas média e baixa da escala social, causando aumento da procura e,


por conseqüência, incentivando o incremento das atuações marginais. É evidente que o lucro para tais “empreendedores” é incomparavelmente maior do que o auferido pelos comerciantes, industriais e prestadores de serviços legalizados. A sede do lucro fácil se converte, assim, em outra fonte de incremento da informalidade. Contaminam-se até empresários honestos, em dificuldades episódicas, que passam a adotar em seus estabelecimentos ramos paralelos de produção e venda, incidindo na sonegação e até na prática de outras ilicitudes criminais, com o objetivo de vencer a concorrência, oferecendo vantagens competitivas derivadas da inobservância das disposições legais. O mercado paralelo se sofistica, tem grandes redes de distribuição e controle, opera transferências ilegais de numerário, interna e externamente. Os chamados “Caixas 2” e a “lavagem de dinheiro” são ocorrências corriqueiras e contumazes na administração de tais “negócios”. Aliam-se a esse círculo de ilicitudes setores da criminalidade envolvidos com assaltos a veículos de

informalidade. Agravam-se as já calamitosas condições de segurança pública no país. Há inúmeros quistos territoriais dominados pela marginalidade, exercendo em tais áreas verdadeiros poderes de estado, onde praticam julgamentos sumários, execuções, confiscos, impondo restrições ao livre funcionamento do comércio e serviços, toques de recolher e até luto forçado. Os marginais têm regras próprias de sucessão, resolvidas pela lei do mais forte, dispondo de armamento sofisticado, farta munição e um verdadeiro exército, onde empregam desocupados, foragidos da justiça, ex-presidiários não ressocializados, crianças e adolescentes. Ante tal quadro, torna-se imprescindível uma ação conjunta da sociedade civil, de suas entidades líderes e das autoridades em geral. É preciso uma campanha de esclarecimento, que demonstre aos consumidores o risco de consumir produtos de origem duvidosa e que incentive os empresários a respeitar a ética comercial. Indispensável, sobretudo, exigir do Poder Público não só ações rigorosas

“É preciso uma campanha de esclarecimento, que demonstre aos consumidores o risco de consumir produtos de origem duvidosa E que incentive os empresários a respeitar a ética comercial.“ transporte de mercadorias, sobretudo os que levam eletroeletrônicos e alimentos não perecíveis. A carga desviada abastece os distribuidores e é vendida, sem recolhimento de tributos, em autênticas feiras nas áreas mais carentes das cidades. Infelizmente, a polícia tem conhecimento de tais práticas, mas pouco faz para combatê-las, até por envolvimento de sua banda podre nessa lucrativa atividade delituosa. A insegurança do transporte de cargas obriga as empresas à contratação de escoltas armadas, viagens em comboios, aumentando os custos e, por conseqüência, os preços para os consumidores. Os prejuízos causados à economia, como um todo, são gritantes. A perda de arrecadação de tributos é da ordem de US$ 30 bilhões, conforme dados coligidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Congresso Nacional constituída para investigar a pirataria. Incentiva-se, de outro prisma, a adesão às práticas criminosas, criando-se uma cadeia de atuação onde a violência é o meio utilizado para solução dos conflitos. A concorrência e a divergência passam a ser resolvidas à bala, ao invés de serem submetidas à intermediação arbitral ou do Poder Judiciário. Todos perdem: os advogados, as instituições, o erário, inclusive os explorados pela máfia estratificada no comando da

no combate e prevenção às práticas criminosas, como a adoção de medidas de desburocratização e diminuição da carga tributária. O Estado Legal tem de se impor ao Estado Paralelo; têm que ser intensificados a vigilância nas fronteiras, o combate ao tráfego aéreo clandestino, ao contrabando, ao descaminho. Não é possível tolerar a ocupação territorial sob o comando da bandidagem. Com essa visão, valendo-se de seu prestígio e liderança no seio da sociedade civil, constituiu a Ordem dos Advogados do Brasil, através de seu Conselho Federal, a comissão de combate ao mercado ilegal, a qual tenho a honra de presidir. A mencionada comissão agrupa profissionais de notório saber jurídico, especialistas em propriedade intelectual, direito penal, direito tributário, direito regulatório e direito empresarial. Será uma tarefa árdua e de conteúdo multidisciplinar, devendo se engajar com outras entidades classistas da indústria, do comércio, dos setores de serviços e dos trabalhadores em geral. Dentro deste panorama, a ordem dos advogados do Brasil presta mais uma valorosa contribuição para desenvolvimento do Brasil. Seus trabalhos certamente servirão de fomento para uma maior conscientização e entendimento acerca dos problemas causados pela contínua expansão do mercado ilegal em nosso País. 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39


TURISMO: SEGMENTO IMPORTANTE Oswaldo Trigueiros Jr.

ilustração: Debora Oigman

Presidente do Conselho de Turismo Confederação Nacional do Comércio

“Podemos aproveitar a situação nos EUA e a respectiva diminuição do seu turismo europeu, para que estes vejam o Brasil como uma alternativa.”

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lgumas notícias que têm sido veiculadas ultimamente, às vezes trazem análises importantes por parte da imprensa e público, mas notamos que alguns segmentos, não levam a sua voz como é o caso do Turismo para exigir das autoridades um envolvimento maior ou mesmo a correção imediata. Falamos de recentes matérias sobre o estado das estradas federais e estaduais, que chegaram a um nível calamitoso pelo descaso das autoridades, mas não verificamos uma reação 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

dos órgãos de Turismo estaduais e municipais e mesmo da Embratur em exigir do governo algo tão básico e tão importante para o nosso Turismo. Somos um país continente, em que as distâncias entre várias regiões turísticas têm de necessariamente ser cobertas por via aérea. Algumas, no entanto, tem de ser atingidas por via terrestre em sua maior parte e outras via lacuste ou fluvial. Como podemos aceitar que nossas estradas, no caso


“Como podemos aceitar que nossas estradas, no caso do Rio de Janeiro, para a Costa do Sol ou as estradas para a Costa Verde continuem no estado em que se encontram?” Arquivo

do Rio de Janeiro, para a Costa do Sol ou as estradas para a Costa Verde continuem no estado em que se encontram? E as estradas vicinais, as que saem das principais rodovias e chegam até os recantos mais pitorescos, seja no Estado do Rio, Minas, São Paulo ouEspírito Santo. Como faremos com o fluxo natural de ir e vir a estas cidades históricas, balneários, fazendas? O Governo Federal anunciou recentemente a intenção de colocar 26,4 mil estradas no país em recuperação. Só o número assusta e bem sabemos que estas são ainda minimamente as que necessitam de imediata recuperação. E aquelas que estão na fila do transplante? O ministro de Transporte, Alfredo Nascimento, ainda indica que será somente uma recuperação temporária e gastará cerca de R$ 10 bilhões, já adianta que a verba não é suficiente para que tenhamos um tráfego em uma obra definitiva. Isto tudo quando estamos falando de tantos segmentos afetados e que logicamente se defendem arduamente com os normais aumentos de fretes, maiores custos que gerarão um custo ainda maior para o consumidor no final da linha. Mas, e o Turismo? Como podemos fazer nosso transporte entre o Aeroporto do Galeão para Angra dos Reis ou Paraty? Como podemos levar os nossos grupos à Búzios ou a Cachoeiro de Itapemirim? Ou a Tiradentes, ou a São Lourenço? Somente para citar alguns. Como estão estas estradas? A segurança? O conforto? O tempo? O desgaste e o risco de acidentes? Tudo isso ocorrendo com uma indústria que pretende chegar a bilhões de dólares de receita, a milhões de usuários, que pretende buscar mercado nos países do cone sul e que se utilizam de nossas estradas para visitarem os nossos resorts e para gastarem seus dólares.

E o tráfego internacional de longo curso? Vemos hoje uma chance histórica no mundo para o Brasil conseguir um aumento do fluxo de turismo antes que os turistas se dirijam para os países do sudeste asiático. Por razões que todos sabemos, hoje, estes turistas procuram destinos como o Brasil, com clima similar e o tempo de vôo também. Como também notamos um grande afluxo de turistas da Escandinávia, países da antiga União Soviética, que inclusive esta semana estão às centenas lotando os nossos hotéis no Rio de Janeiro. Podemos aproveitar a situação nos EUA e a respectiva diminuição do seu turismo europeu, para que estes vejam o Brasil como uma alternativa. O próprio mercado americano busca o Brasil como destino, por sua diversidade cultural, étnica e social. O Reveillon é uma prova disto. Mercado em seu potencial, navios, aviões desembarcando, milhões de dólares na Cidade do Rio de Janeiro para que estes turistas permaneçam mais dias no país. Imaginem se tivéssemos estradas adequadas para as regiões de praia do estado. A Bahia é um exemplo de luta tenaz para que suas estradas, principalmente as que se dirigem à região litorânea sul, estejam em pleno movimento nesta temporada e por isso comemoram índices cada vez maiores de chegadas tanto em Salvador, Porto Seguro, Ilhéus (no caso de aeroportos maiores e internacionais) e esperam um fluxo de mais de dois milhões de visitantes nesta temporada, distribuídos em várias cidades e sendo transportados pelas estradas entre um local e outro, com natural intercâmbio de culturas e aumentando a permanência na região e no país. Precisamos que todos os representantes do setor de Turismo se indignem com está ocorrendo com as nossas estradas por todo o Brasil e, principalmente, pelo Rio de Janeiro. 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


Da Antiguidade à Internet, Comunicar é sempre um desafio Tiago Salles Jornalista

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o tempo dos deuses como na idade moderna a realidade é a mesma se o tema for a comunicação: onde predomina a liberdade e a qualidade da comunicação, há progresso, democracia e vitalidade econômica. Onde, ao contrário, predomina o controle da comunicação e o cerceamento da liberdade, grassa o atraso e os índices de progresso social são melancólicos. Ou seja, o êxito das sociedades é tão ilusório quanto a fumaça. Esse quadro de contrastes, que sintetiza o alcance da comunicação como elo forte do desenvolvimento e da consolidação das liberdades públicas, surge naturalmente como se o novo livro de Francisco Viana, “Hermes, a Divina Arte da Comunicação”, fosse uma máquina do tempo e pudesse conduzir os personagens da história antiga para dialogar com a sociedade dos dias atuais, com a voz das suas mais valiosas experiências O discurso principal do livro é a divindade da comunicação, isto é, a sua utilidade na mediação do diálogo social, na consolidação da liberdade e, sobretudo, no diálogo entre diferentes culturas, ideologias e visões de mundo. Colorido pelo relato do mito de Hermes, a evolução da comunicação até as Actas Romanas, ainda na Roma Antiga, as cartas até os primeiros jornais, na era de Gutemberg, o rádio, a televisão e, por fim, a Internet, Viana associa, com diferentes variações, a divindade da comunicação à sua utilidade. Francisco Viana recorre ao passado longínquo, os cerca de oito mil anos do ciclo de Hércules, que termina com a morte de Marco Antônio e Cleópatra no ano 30 a.C. para trazer a luz um vasto leque de temas de intensa atualidade: a construção das reputações, a comunicação pública, os limites do marketing político, as denúncias, a arte do diálogo e muitos outros temas. A visão da comunicação como arte, justificada a cada página, a começar pelo título, transpira absoluta rejeição ao vazio das fórmulas de prateleira, à falta de imaginação daqueles que viram as costas para o conhecimento da história

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Quem é Francisco Viana

ou que simplesmente trabalham como laboriosas abelhas operárias, mas não lêem, não estudam, não desfrutam do indispensável ócio criativo. A artilharia pesada é voltada para a crítica dos que tentam manipular a democracia. Escudado na sua vasta experiência como jornalista e comunicador, Viana se insurge contra um dos mais graves problemas da democracia brasileira: a rejeição à transparência e a manipulação da verdade factual pelos magos do marketing político. Em Hermes, comunicação e ambigüidade, verdade factual e rigor ético, a preponderância da reputação sobre a imagem como valor transcendente, a utilidade da informação e a sua divindade não podem ser dissociadas. Por isso, a viagem em torno das múltiplas faces dos mitos, oráculos, poetas, filósofos e suas amplas conexões com o mundo atual e o Brasil moderno dão o tom e o alcance do livro. O prefácio é de Paulo Nassar, presidente da Aberje, entidade que reúne cerca de mil empresas, entre agências que fazem e companhias que investem na comunicação. Hermes, de Francisco Viana, é, em suma, uma espécie de máquina do tempo cuidadosamente elaborada sobre a história, a arte e a técnica da comunicação. Um livro que propõe uma visão abrangente do passado e, assim, tornase indispensável para a compreensão do presente e do futuro do papel do comunicador. O último capítulo brinda o leitor com o saboroso e amplo Dicionário da Moderna Comunicação. Nele, em textos curtos, história e atualidade se fundem em preciosas lições para o dia-a-dia de quem trabalha com comunicação, seja o próprio comunicador, o empresário, o político ou o profissional, de qualquer área, que deseje construir uma base sólida para os seus relacionamentos, a começar pela mídia. Com Hermes, Viana completa a trilogia iniciada em 2002 com “De Cara com a Mídia” e que, em 2004, teve prosseguimento com “Comunicação Empresarial de A a Z”, este último também publicado pela editora CL&A.

Foi editor de reportagens especiais e diretor de projetos institucionais das Revistas Isto É e Carta Capital. Autor de vários livros, entre eles “De Cara com a Midia - Comunicação Corporativa”, Relacionamento e Cidadania e “Comunicação Empresarial de A a Z”, é professor da Faculdade de Campinas – Facamp e, também, da Aberje, entidade que reúne as empresas de comunicação do País. Com grande experiência na área de consultoria a empresas, como a Organização Bradesco, Construtora Andrade Gutierrez, Abiquim (Associação Brasileira da Indústria Química), Grupo Millenium, entre outras corporações, tem atuado também na área de comunicação pública, a exemplo do Ministério da Ciência e Tecnologia e do Ministério da Integração. Atuou também como repórter especial do jornal O GLOBO, colaborador da revista da CNI - Confederação Nacional da Indústria, revista da Bolsa de Valores de São Paulo e editor da Revista Bradesco, além de ter sido autor das coleções Grandes Empresários, com 20 títulos, da Revista Dinheiro. Atualmente, é também colaborador das revistas Imprensa e Justiça & Cidadania e dirige a Hermes Comunicação Estratégica, consultoria com foco em midia training e gestão de crises.

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UMA DECOLAGEM PARA O FUTURO Ozires Silva Empresário

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“A cultura e os valores nacionais, incutidos nos programas educacionais desde os primeiros tempos da vida de cada cidadão, deveriam se constituir elementos básicos para a consolidação da nacionalidade e do nosso perfil como povo e como cidadãos (...)”

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o início da década dos 1940, Stephan Zweig escreveu um livro “Brasil, o País do Futuro”, de grande repercussão na época. Esperávamos, então, que o futuro, preconizado pelo autor, estaria próximo. Que, seria possível que, talvez por obra de algum anjo divino, o Brasil encontraria o caminho da prosperidade e se desenvolvesse rapidamente. Os anos se passaram, em seqüência de crises e de dificuldades. Chegamos a um novo Século e, importante, a um novo Milênio, com a população brasileira registrando nas últimas décadas mais de vinte anos sem grandes progressos econômicos. Claramente, não intencionalmente, acredito, temos vivido, ou sobrevivido, sob o descompasso entre as demandas produzidas pelos índices de crescimento populacional e as necessidades sociais. Lamentavelmente permanecemos atrelados ao estigma do subdesenvolvimento, em que pesem algumas notáveis exceções, justamente para demonstrar que somos um povo capaz. Daqui para a frente os prezados leitores vão me permitir escrever mais como cidadão e como simples engenheiro 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

aeronáutico. Assim, com relativa impunidade, fazer alguns comentários sobre desempenho econômico da nossa nação o qual, e de longe, tem estado abaixo do mínimo indispensável para um contingente de quase 200 milhões de habitantes, vivendo numa área de aproximadamente 8,5 quilômetros quadrados de área, ou seja, num dos maiores países do mundo geograficamente falando e certamente um dos mais promissores. Em 1994, nossas autoridades maiores conceberam uma idéia realmente valiosa: o Plano Real, magistralmente orquestrado e brilhantemente implantado. Foi proclamado que, afastado o iníquo imposto de uma inflação vergonhosa, cerca de trinta por cento da população saltaria para a esfera dos cidadãos, isto é, passariam a produzir, a ganhar e consumir. Entretanto, a partir do momento no qual isto se tornou realidade e a demanda começou a mostrar os primeiros números do crescimento, vozes antigas, sob o pretexto do perigo de retorno aos detestados índices de inflação do passado, preconizaram e conseguiram implementar medidas de restrições econômicas que nos lançaram novamente no


mar da recessão e da estagnação. E assim, diante de uma extraordinária perspectiva de mudanças, voltamos ao passado, onde estamos desde então. Nasceu um novo milênio que no seu primeiro ano mostrou-se difícil, com crises aqui e acolá, inclusive com algo que jamais se pensou no passado. O uso dos pacíficos aviões comerciais como armas do terror, como mísseis e ceifando vidas inocentes, desencadeando uma crise sem precedentes, atingindo praticamente todos os países e todos os setores econômicos. Tudo isto é ruim, claro que sim! Mas não devemos nos permitir, novamente, sucumbir aos tradicionais maus costumes de, achando que outros estão em dificuldades, também teríamos direito e justificativas para nos afastarmos da trilha do crescimento e do sucesso. O que fazer? “Por que algumas nações são bem sucedidas e outras falham na competição internacional e no seu processo de desenvolvimento” – pergunta Michael E. Porter, no primeiro capítulo do seu extraordinário livro “Vantagens Competitivas das Nações”, publicado em 1990. Ele continua e acentua: “A busca de explicações convincentes para a prosperidade das empresas e dos países precisa se iniciar fazendo as perguntas corretas.” E, elas, no caso do Brasil, quais seriam? Comecemos colocando que a cultura nacional deveria se basear no princípio fundamental de que o principal objetivo das nações deve ser o de proporcionar crescentes e altos padrões de vida aos seus cidadãos. As condições para conseguir isto passa pela produtividade global, definida como o valor da produção conseguido pela unidade de trabalho e/ ou de capital, a qual, por sua vez, depende da criatividade, da eficiência e da qualidade dos meios produtivos e do gerenciamento nacional, governamental ou privado. Admitir a participação da população que ainda não se deu, nem se dá, conta de que ela própria pode ter expressiva influência nestas metas, cobrando resultados da classe política, dentro do contexto da nossa crescente democracia. Não querendo ser injusto com o bom povo brasileiro, creio que muitos pais e avós já se cansaram com as perguntas dos filhos e netos: “Como arranjo um emprego?”. A resposta fundamental está numa outra pergunta: “Por que não crescemos e o que nos impede?”. Esta última deveria martelar continuamente nossas cabeças. Nos momentos atuais, aproveitando o ensejo dos novos Século e Milênio, proponho começar com a identificação e o apoio às novas idéias. Buscar fugir de estereótipos do passado que, sabemos, não funcionaram. Olhando à frente - novamente falando o engenheiro aeronáutico – vem a luta, já ganha por outras populações, de colocar como prioridade nacional o crescimento econômico e trabalhar duramente para que ele se torne realidade. Afastarmo-nos do manejo das variáveis econômicas sob a ótica única dos interesses financeiros. Taxas de juros, acesso ao crédito, política tributária, leis e regulamentos etc, além de visar o equilíbrio das contas públicas, deveriam estar a serviço da política do desenvolvimento econômico da nação, claramente explicitada

“(...)a competitividade nacional deve ganhar foros de política permanente, sob uma ótica de prioridade maior para nos transformar em ganhadores e superavitários permanentes no comércio internacional (...)” e sujeita ao crivo e ao debate da sociedade, em particular a produtiva. Buscar o fortalecimento das instituições públicas e privadas como elementos permanentes para o crescimento de nossa maturidade e consistência políticas, tudo voltado para os objetivos fundamentais da educação e do bem-estar geral, priorizando a eficiência e a qualidade dos serviços públicos e da infra-estrutura nacional. Lembrar que a competição mundial hoje ocorre entre países e não mais somente entre empresas ou organizações. Assim, a competitividade nacional deve ganhar foros de política permanente, sob uma ótica de prioridade maior para nos transformar em ganhadores e superavitários permanentes no comércio internacional, além de fortalecer o mercado interno através do aumento da riqueza individual e coletiva. A cultura e os valores nacionais, incutidos nos programas educacionais desde os primeiros tempos da vida de cada cidadão, deveriam se constituir elementos básicos para a consolidação da nacionalidade e do nosso perfil como povo e como cidadãos, cuja posição no panorama político deveria ser enfatizado Em resumo, precisamos buscar novos paradigmas de comportamento, de decisão, de participação e tentar compreender, com humildade, que o mundo mudou. Precisamos aceitar que nem tudo o que se fez ou se fazia no passado poderá ter sucesso no futuro. Enfim, a proposta é de mudanças da cultura e da atitude perante os problemas, lembrando sempre que não deveria ser possível continuar com o processo de agregação de quantidades de desassistidos ou marginalizados na sociedade nacional. Duas décadas de pouco crescimento já afetaram negativamente, e em demasia, a vida de milhões de brasileiros. Uma terceira, uma quarta... estas seriam proposições real e efetivamente não aceitáveis! 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


ASPECTOS JURÍDICOS DA TRANSFERÊNCIA DE DIREITOS SOBRE TÍTULOS PRECATÓRIOS Luiz Gustavo Pereira da Cunha e Daniel Olympio Pereira Advogados Foto de arquivo pessoal

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uito embora tal conceito tenha sido bastante repisado pela doutrina, buscando conferir maior clareza ao presente estudo, convém recordar que o precatório é um título decorrente de um processo judicial de conhecimento, no qual se tenha operado o trânsito em julgado de uma sentença proferida em desfavor de determinado ente de direito público interno, o qual, mediante requisição do presidente do respectivo tribunal, vincula-se a uma ordem

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de pagamento, efetuado por meio de prévia dotação orçamentária1. Ressalte-se que esta sistemática foi implementada em razão de os bens públicos serem inalienáveis, imprescritíveis, não oneráveis e impenhoráveis2, permitindo não somente garantir o pagamento da dívida pública constituída em tempo certo como também resguardar a necessária estabilidade do patrimônio coletivo. Ocorre que, constatando a inexistência de efetivas


sanções hábeis a impor a tempestiva quitação das dívidas judicialmente contraídas, diversos entes públicos passaram a protelar o cumprimento de suas obrigações, mesmo que as prevendo em seus orçamentos. Nada obstante restasse possível aos credores interessados propor a competente medida judicial de seqüestro sobre os valores devidos ou requerer a intervenção federal ou estadual do ente devedor3, novas oportunidades de aproveitamento dos aludidos créditos surgiram, tendo em vista a inexistência de qualquer vedação legal à transferência de sua titularidade para terceiros que pudessem aguardar a malsinada postergação do pagamento ou, ainda, utilizá-los para outros fins, adiante cotejados. Porém, antes de dispor acerca de tais possibilidades, cabe rememorar que, como se faz de sabença correntia, a cessão de títulos precatórios tanto transfere a titularidade sobre a dívida que lhe é atinente quanto pressupõe a sucessão em todos e quaisquer direitos relacionados, inclusive a sucessão processual na demanda que deu origem aos respectivos créditos. Nesse sentido se assentou o posicionamento adotado pela jurisprudência pátria, como se verifica no seguinte aresto, exarado pelo Superior Tribunal de Justiça, in verbis: “PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. EXTINÇÃO. ARTIGO 6º, DO CPC. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. I - Os recorrentes participaram de negócio jurídico bilateral consistente na cessão pelo primeiro recorrente de créditos de precatório alimentar à empresa recorrente. II - Com a transferência do crédito, transmitiu-se também a titularidade na relação jurídica que o cedente mantinha com o Estado do Paraná, investindo-se, a cessionária, em todos os direitos inerentes ao crédito cedido (...).”4 Portanto, perante o cenário político então construído, tornou-se prática comum a negociação entre particulares das dívidas imputadas aos entes públicos, principalmente por permitir ao credor originário a obtenção imediata do pagamento que não fora regularmente promovido e, concomitantemente, ao terceiro adquirente, auferir vantagem financeira através do deságio então aplicado ao respectivo valor de face. Contudo, a tais operações atribuiu-se ainda maior relevância e interesse ao se notar que, mesmo que o ente público devedor não viesse a honrar o pagamento em período próximo à aquisição, o valor do crédito constituído poderia ser utilizado com outros objetivos, veiculáveis pelo detentor originário ou por quem o sucedesse na referida relação jurídica, uma vez que, por afigurarem direitos diretamente acessórios ao título, far-se-iam igualmente transferíveis, como acima expendido. A despeito do advento de algumas alternativas processuais e financeiras aplicáveis aos créditos ora examinados, este trabalho dedicar-se-á às duas mais recorrentes e, por isso, mais exploradas no cenário jurídico nacional, quais sejam a garantia de execuções cíveis ou fiscais propostas pelo mesmo ente público e a compensação com créditos tributários da

“constatando a inexistência de efetivas sanções hábeis a impor a tempestiva quitação das dívidas judicialmente contraídas, diversos entes públicos passaram a protelar o cumprimento de suas obrigações(...)” Fazenda Pública devedora do precatório judicial. A primeira possibilidade decorre do justo entendimento de que, caso determinado credor de título precatório seja demandado em processo executivo pela mesma pessoa de direito público que lhe é devedora, pode oferecer seus créditos como garantia judicial (consoante exigido pelos artigos 652 do Código de Processo Civil e 8º da Lei nº 6.830, de 22/09/1980) e, caso assim pretenda, assegurar o posterior pagamento resultante de eventual sucumbência na referida contenda. Tal premissa advém, de início, do disposto no art. 655, inciso X, do CPC, e no art. 11, inciso VIII, da Lei nº 6.830, de 22/09/1980, os quais elencam, de forma genérica, quaisquer “direitos e ações” como bens a serem nomeados à penhora, desde que, obviamente, plenamente regulares. Nem se fale que os direitos em tela somente revelarse-iam qualificados a garantir montantes exeqüendos quando inexistentes os demais previstos nos incisos anteriores dos artigos mencionados, alegando-se que o legislador os consignou por suposta ordem absoluta de preferência, pois, como asseverado pelo art. 620 do CPC, a execução deve ser promovida “pelo modo menos gravoso para o devedor”. Acrescente-se que tal questão restou pacificada pelas principais Cortes Estaduais5 e pelo STJ, consoante abaixo transcrito: “EXECUÇÃO FISCAL - FAZENDA PÚBLICA PENHORA SOBRE PRECATÓRIO - POSSIBILIDADE - ORDEM LEGAL - ART. 11 DA LEF. 1. Pacificada a jurisprudência da Primeira Seção e das Turmas de Direito Público quanto à possibilidade de penhora sobre crédito relativo a precatório extraído contra a própria Fazenda Pública exeqüente. 2. Firmou-se, por igual, posição afirmativa quanto à relativização da ordem de nomeação de bens à penhora estabelecida nos arts. 11, da Lei 6.830/80 e 656 do CPC. 3. Recurso especial improvido.”6 Ademais, vale destacar que o mesmo Tribunal Superior assentou, inclusive, que a penhora sobre tal direito equivaleria, em virtude de sua liquidez, ao 2006 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


“Mesmo que a matéria ainda seja controvertida, no mesmo diapasão já se firmam as principais Cortes Estaduais, como visto em sessão do Tribunal Pleno e do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (...)” depósito em dinheiro, afastando por completo a pretensa impossibilidade de seu oferecimento em sede de processos executivos, conforme alegado pelos órgãos fazendários. Confira-se: “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. PENHORA. DIREITO DE CRÉDITO PARA COM A FAZENDA PÚBLICA DECORRENTE DE AÇÃO JUDICIAL (PRECATÓRIO). POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. (...) 4. Com o objetivo de tornar menos gravoso o processo executório ao executado, verifica-se a possibilidade inserida no inciso X, do art. 655, do CPC, já que o crédito do precatório equivale a dinheiro, bem este preferencial (inciso I, do mesmo artigo). 5. A Fazenda recorrida é devedora na ação que se findou com a expedição do precatório. Se não houve pagamento, foi por exclusiva responsabilidade da mesma, uma vez que tal crédito já deveria ter sido pago. Trata-se, destarte, de um crédito da própria Fazenda Estadual, o que não nos parece muito coerente a recorrida não aceitar como garantia o crédito que só depende de que ela própria cumpra a lei e pague aos seus credores. Precedentes. 6. Agravo regimental não provido.” 7 Consigne-se que tal argumentação, em absoluta consonância com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, restou amplamente acolhida em função de os títulos ora examinados conferirem maior eficiência e celeridade às contendas executivas, atenuando o impacto sobre as finanças dos executados ao evitar o comprometimento de bens móveis e imóveis ou ao gerar economia quanto às despesas com depósitos judiciais e fianças bancárias, bem como, por outro lado, facilitando o pagamento ao exeqüente em eventual e derradeira condenação judicial, eis que os créditos oferecidos pelos títulos precatórios terminariam convertidos ao patrimônio do ente público por meio de simples procedimento de compensação (encontro de contas). Na hipótese específica da execução fiscal, a relevar 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2006

que tal conseqüência de conversão do título precatório em pagamento dos valores cobrados nada mais é do que a “compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos” (in casu, vencidos) “do sujeito passivo com a Fazenda pública”, como previsto no art. 170 do Código Tributário Nacional8, verifica-se que, mesmo que por uma via transversa, alheia aos procedimentos ordinários traçados pelos demais instrumentos normativos (tais como as Leis Federais nos 8.383, de 30/12/1991 e 9.430, de 27/12/96, e suas regulamentações correspondentes), perfizera-se outra modalidade do instituto da compensação tributária, sujeitando-se às normas do suscitado Codex. Seguindo o mesmo raciocínio decide o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assim prolatando: “EXECUÇÃO FISCAL - PENHORA - NOMEAÇÃO OU SUBSTITUIÇÃO DA CONSTRIÇÃO - CRÉDITO DECORRENTE DE PRECATÓRIO JUDICIAL INDEFERIMENTO PELO JUIZ. - Admite-se a penhora de crédito representado por precatório expedido contra o Estado, que representa crédito vencido, líquido e certo contra a própria credora, compensável com o tributo devido. - É penhora que equivale a dinheiro e mais favorece exeqüente e executada (...).”1 Nessa seara, ingressando na segunda possibilidade ora explorada, consigne-se que há outra espécie de compensação tributária que permite a utilização dos créditos em tela de forma autônoma ao livre alvedrio do ente público inadimplente. Esta assertiva resultou da inclusão do art. 78 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) pela Emenda Constitucional nº 30, de 13/09/2000, que instituiu espécie constitucional de compensação tributária, especificamente destinada a direitos creditórios provenientes de títulos precatórios, fazendo-se necessária sua imediata enunciação: “Art. 78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 30, de 2000) (...). § 2º As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidadas até o final do exercício a que se referem, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.” A assertiva acima defendida decorre exatamente do entendimento de que tal disposição teria eficácia plena, não carecendo de qualquer regulamentação infra-constitucional,


seja por todos os requisitos essenciais ao procedimento de compensação instituído desde então terminarem plenamente tratados seja pela inexistência de qualquer observação condicionando o contrário. Desta forma, partindo-se da nítida premissa de que a hipótese então implementada não se subsume às sistemáticas expressas pelos demais instrumentos normativos (incluindo o art. 170 do CTN) em virtude do princípio da supremacia da Constituição Federal, vislumbra-se a absoluta possibilidade de compensação dos valores referentes aos títulos estudados com créditos de origem tributária. Mesmo que a matéria ainda seja controvertida, no mesmo diapasão já se firmam as principais Cortes Estaduais, como visto em sessão do Tribunal Pleno e do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em recentíssima manifestação, ipsis litteris: “Mandado de Segurança. Decisão administrativa do Exmo. Sr. Presidente do Tribunal de Justiça. Suspensão dos descontos do IR sobre os proventos do impetrante enquanto não forem pagas as parcelas vencidas do precatório. Segundo a regra do § 2º do art.78 do ADCT, não sendo pagas as parcelas anuais dos precatórios, o credor fica liberado do pagamento dos tributos que lhe cabem. Aplicação analógica da exceptio non adimpleti contractus. A regra é de eficácia plena, dispensando interpretação

ou regulamentação. Não pode o Judiciário tolerar, passivamente, a inadimplência do Estado, quando massacra ele o contribuinte, impondo-lhe pesadas sanções diante de sua mora. A regra moral e o princípio da efetividade, que hoje inspiram o nosso direito, exigem a adoção de pioneiros mecanismos de coerção indireta, para que o Estado cumpra o seu dever. Concessão da segurança, por maioria.”9 (grifos não são do original) Com a necessária licença, não poderia ser outro o posicionamento adotado, haja vista que, além de se demonstrar a nitidez com que se apresenta o texto constitucional, impõese perceber que a alteração intentada pela EC nº 30/2000 se deu em função da injusta e desequilibrada situação cominada aos credores de títulos precatórios junto aos mais variados entes federativos, solucionando de maneira efetiva a necessária observância à segurança jurídica, aplicável às obrigações pecuniárias regularmente constituídas, às decisões emanadas do Poder Judiciário e ao cumprimento dos preceitos constitucionais estabelecidos. Sendo assim, em perfeita consonância com o direito vigente, apresentam-se completamente cabíveis as possibilidades de utilização de títulos precatórios acima descritas, objetivando afastar ou ao menos reduzir os prejuízos causados pela malfadada postura de alguns entes públicos, que insistem em se posicionar de forma diametralmente oposta à lei e ao Direito.

NOTAS Agravo de Instrumento nº 379.759-5/1, 7ª Câmara de Direito Público – TJSP, Rel. Des. Guerrieri Rezende, Decisão de 09/05/05. 1

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DA CUNHA, Manoel, “Precatórios”, LTr Editora, São Paulo, 2000, pp. 19-23. 1

BASTOS, Celso Ribeiro, e MARTINS, Ives Gandra da Silva, “Comentários à Constituição do Brasil” – Volume IV, Tomo III, p. 116. 2

Vide Intervenção Federal nº 13/PR, Corte Especial – STJ, Rel. Min. Bueno de Souza, DJ de 08/08/94, p. 19.544 e Intervenção Federal nº 14/PR, Corte Especial – STJ, Rel. Min. Américo Luz, DJ de 10/10/ 94, p. 27.054. 3

4 RMS nº 16034 / PR, Primeira Turma – STJ, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 29/03/2004, p. 171. 5 Vide Agravo de Instrumento nº 200200215891, 10ª Câmara Cível – TJRJ, Rel Des. Ivan Cury, Decisão de 08/04/2003; Agravo de Instrumento nº 70010928679, Segunda Câmara Cível - TJRS, Rel. Des. Arno Werlang, Decisão de 14/09/2005; e Agravo de Instrumento nº 402.327-5/1, 6ª Câmara de Direito Público – TJSP, Rel. Des.

Coimbra Schmidt, Decisão de 18/04/05. 6 REsp nº 546247 / DF, Segunda Turma – STJ, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 17/12/2004, p. 487. AgRg no Resp nº 533844 / RS, Primeira Turma – STJ, Rel. Min. José Delgado, DJ de 19/12/2003, p. 359. 7

“Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda pública.(...).” 8

Mandado de Seguranca nº 2004.004.02270, Tribunal Pleno e Órgão Especial – TJRJ, Des. Rel. Álvaro Mayrink da Costa e Des. responsável pela lavratura do acórdão Dr Sylvio Capanema, DJ de 07/11/2005. 9

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FÓRUM

SENTENÇA Aproximando

a Justiça

do Vistos Povo etc.

É o relatório com a síntese das principais ocorrências Arquivo processuais.

O

desembargador Manoel Carpena Amorim, corregedor-geralDECIDO do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, declarou recentemente que “A corregedoria não é mais que orgão meramente fiscalizador e administrativo. Estamos FUNDAMENTAÇÃO implantando uma nova mentalidade interna e externa com os pés no chão RELATÓRIO e sem alarde. É a verdadeira reforma judiciária que o nosso tribunal está O processo encontra-se suficientemente instruído, fazendo”. possibilitando o seu julgamento, por dispensar a produção de AMERICAN VIRGÍNIA INDÚSTRIA, COMÉRCIO, “Trata-se de um trabalho de aproximação da Justiça com o povo” – qualquer prova ulterior, enquadrando-se a hipótese na fase de IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO DE TABACOS LTDA, argumentou Carpena Amorim – “por isso visitando as comunidades para ouvir julgamento antecipado da lide, prevista no art. 330, inciso I, devidamente qualificada na petição inicial, propôs a presente além dos companheiros do Tribunal, aqueles que tem voz na sociedade, com do Código de Processo Civil. demanda do rito ordinário, com pedido de antecipação dos os líderes comunitários, de associações de moradores e de outros efeitos da tutela, em face dadirigentes UNIÃO FEDERAL, objetivando representantes da aosociedade civil organizada, já fizemos em alguns assegurar o direito livre exercício da atividade como econômica municípios do interior ainda faremos em outros”. Preliminarmente lícita, afastando a aplicabilidade do disposto no art. 2º, inciso Nessa verdadeira maratona em que aquele desembargador enfatiza a sua II do Decreto-lei nº 1.593/77, com a redação dada pela utilidade, estão sempre presentes o presidente do Tribunal de Justiça do Rio Prima facie, rejeito a preliminar de litispendência. Lei nº 9.822/99, que autoriza o cancelamento de registro de Janeiro, desembargador Sergio Cavalieri, a equipe da Corregedoria com seu especial, declarando, ainda, a inexistência de relação jurídica titular e juízes juízes especiais das Comarcas visitadas. “O Nas Poderpalavras Judiciário resposta imediata no grau de doespera ilustreuma processualista Moacyr Amaral que permita à réauxiliares, a cassar osalém doisdos registros da autora, aceitação e compreensão pela sociedade do papel da Justiça”, afirmou Carpena Amorim. Santos, “litispendência significa lide pendente em juízo. Proposta bem como, declarar a inexistência de relação jurídica entre a Uma das mais intensas atividades realizadas pela corregedoria são pela os chamados “mutirões cidadania”, a ação, qual o autor formuladeuma pretensão,quando e citadosãoo pessoa jurídica (autora) e a pessoa física do sócio. concentrados principalmente áreasautorizada mais carentes a emissão de documentos. réu, configura-se uma lide pendente de decisão. As partes estarão Alega que éesforços empresa do ramo de em tabaco, a para O corregedor-geral do Tribunal de Justiça do Rio abordou ainda outros temas: juízes são pessoas sujeitas ao processo e“Os ao que neleleigos for decidido. Dessaqualificadas, sujeição das fabricar, comercializar, importar e exportar produtos derivados alunos de nossa escola de magistratura que atuam junto aos juízes titulares no sentido de acelerar os processos”. os partes ao processo resulta o princípio da unicidade daSobre relação do tabaco, com capital 100% nacional, atuante no mercado juizados especiais: “Eles se transformaram em portas abertas à população”. O disque-Justiça também mereceu um comentário processual pelo qual se vedam dois processos sobre a mesma lide, de tabaco, desde meados do ano de 1996, sendo que, para o do corregedor: “são experiências e que procuramos cada dia para que se grau de entreaperfeiçoar as mesmas apartes. E se vedam a possa fim deavaliar evitarosentenças exercício dessa atividade, exige-se que peloimplantamos Decreto-lei nº 1.593/ satisfação do público com relação aos serviços do Tribunal”. E arrematou: “a procura pelos tribunais em todo o país acontece contraditórias”. 77 o registro especial a ser concedido pela Secretaria da Receita em decorrência de uma falência institucional do Poder Executivo, levando cidadão a buscar seussempre mais elementares direitos Assim, ao litispendência ocorre que se propõe ação Federal. Sustenta que o ato configurador do justo receio da com a proteção do Poder Judiciário”. idêntica a outra que já esteja em curso. Configurar-se-á, pois, aplicação da mencionada lei decorre da intimação feita pela sempre que o autor, invocando o mesmo fato, deduzir contra Delegacia da Receita Federal, datada de 1º de setembro de o réu o mesmo pedido já formulado em outra ação, pendente 2005, pela qual a autora foi compelida a regularizar a situação de decisão judicial. Desse modo, ambas as ações deverão ter fiscal em relação ao disposto na Representação Fiscal que deu as mesmas partes; a mesma causa de pedir, tanto próxima origem ao PA nº 10735.002379/2005-74, no prazo de dez quanto remota; e o mesmo pedido, mediato e imediato. (10) dias, sob pena de cancelamento do registro especial, fotos TCE/AM A ré, em sua peça de bloqueio, alegou a litispendência com fundamento no art. 2º, inciso II do Decreto-Lei nº em razão da impetração de Mandado de Segurança, autuado 1.593/77, motivo pelo qual ajuizou ação cautelar, sob o nº sob o nº 2005.34.00.027391-4, em curso na 9ª Vara Federal 2005.5110005830-5, distribuída a este Juízo. do Distrito Federal. No caso sub examine, não ocorreu a Diz ainda, que o dispositivo supramencionado do Decretolitispendência. Nesta demanda do rito ordinário, postulalei, já indicado, não foi recepcionado pela Constituição se que a ré, Fazenda Nacional, abstenha-se de proceder ao Federal de 1988, e que a sua inconstitucionalidade já foi cancelamento do registro especial, bem como, declare-se a reconhecida pelos nossos Tribunais Federais. inexistência de relação jurídica entre a pessoa jurídica (autora) O pedido veio instruído com os documentos essenciais à e a pessoa física do sócio, enquanto no indigitado mandado propositura da ação (fls. 48/1.508). de segurança, impetrado em face do Coordenador-Geral de Decisão deste Juízo, indeferindo o pedido de antecipação Fiscalização Tributária da Receita Federal, alega-se justo receio dos efeitos da tutela, uma vez que foi deferida a liminar na de que ocorra violação de seus direitos com o cancelamento ação cautelar e prolatada a sentença de mérito, julgando do aludido registro, disposto na legislação infraconstitucional procedente o pedido (fls. 1.511). pertinente. Este foi, inclusive, o entendimento do Egrégio Citada, a União Federal contestou o pedido, argüindo, conselheiro Julio Cabral assumiu em solenidade realizada na última semanaFederal, de dezembro passado, a presidência do Tribunal Regional na decisão monocrática proferida preliminarmente, a litispendência, e requerendo, no mérito, Tribunal de Contas do Estado do Amazonas. Com ele também assumiram os conselheiros Aluízio Humberto Ayres da nos autos do Agravo de Instrumento nº 2005.02.01.012734a sua improcedência (fls. 1.514/1.530). Cruz (vice-presidente) e Raimundo José (corregedor). 8, colacionada aos autos da ação cautelar, às fls. 623/625. Réplica (fls. 1.551/1.573). A peça veio instruída com Em seu discurso de posse, Julio Cabral, que é filho do ex-senador No e membro Editorial desta Revista, Bernardo tocantedoà Conselho alegação de litispendência em relação às documentos (fls. 1.574/1.639). Cabral, disse “tenho a convicção de que a missão é árdua e espinhosa, pois terei que manter bem alto a bandeira da desta demais ações, não merece prosperar, também, vez queCorte a ré, Providências preliminares a tempo e modo. para que todos a vejam e para que esta casa continue a merecer oem respeito que de conquistou no não seio juntou da sociedade”. sua peça resistência, aos autos cópias das

Posse no Tribunal de Contas do Amazonas

O

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