Revista Justiça & Cidadania

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2ª DE CAPA IGUAL A EDIÇÃO 66


EDIÇÃO 69 • ABRIL de 2006

15 CERTEZA E SEGURANÇA

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GÊNERO, POLÍTICAS PÚBLICAS E AÇÕES REGULATÓRIAS

JURÍDICA NO ESTADO DEMOCRÁTICO

Foto: Acervo STF ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO EDISON TORRES DIRETOR DE REDAÇÃO JOSÉ LUIZ COSTA PEREIRA DIRETOR DE MARKETING

A RESPONSABILIDADE DO ESTADO PELA VIOLAÇÃO DO DIREITO CONSTITUCIONAL

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AÇÕES AFIRMATIVAS SISTEMAS DE COTAS

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DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DEBORA OIGMAN EDITOR DE ARTE SIMONE MACHADO REVISÃO

CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa

VINÍCIUS GONÇALVES EXPEDIÇÃO E ASSINATURA

ANDRÉ FONTES

CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO

Antônio souza prudente

EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA,50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-100. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429 CNPJ: 03.338.235/0001-86

aurélio wander bastos

SUCURSAIS SÃO PAULO ORPHEU SALLES JUNIOR AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611

antonio carlos Martins Soares Arnaldo Esteves Lima Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso Darci norte Rebelo denise frossard

SUMÁRIO EDITORIAL

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MINISTRA ELLEN GRACIE NA PRESIDÊNCIA DO SUPREMO

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O FUTURO DO PODER JUDICIÁRIO

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CUMPRIMENTO DA SENTENÇA

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A LUTA DAS MULHERES PELOS SEUS DIREITOS

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A MULHER E A SOCIEDADE

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TRIBUTAR As EMPRESAS É UMA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL?

36

globalização - respeito ao consumidor no domínio das agências reguladoras

40

FERTILIZAÇÃO IN VITRO

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UM SOPRO DE MUDANÇA

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Novas possibilidades: Terceirização de serviços prisionais como uma das alternativas

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CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS DISCRICIONÁRIOS

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INSTITUTO DA UNIÃO ESTÁVEL

52

A SOCIEDADE SOMOS TODOS NÓS, CIDADÃOS

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A DETERMINAÇÃO E A VONTADE FAZEM PARTE DA CONDIÇÃO FEMININA

58

INTERRUPÇÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA

60

Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA

FORTALEZA CARLOS MOURA RUA JOAQUIM FERREIRA Nº 1200 BAIRRO LAGOA REDONDA. FORTALEZA-CE TEL(85) 3476-2518 / 8829-6363

fernando neves

PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED.PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP 90010 272 TEL (51) 3211 5344

Humberto Gomes de Barros

BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 - BLOCO E Ed. CENTRAL PARK FONES: (61) 3327-1228 / 29

luis felipe Salomão

Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Ives Gandra martins josé augusto delgado José Eduardo carreira Alvim Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio DE FARIAS Mello MAURICIO DINEPI

CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL (61) 9968 - 5926

maximino gonçalves fontes

revistajc@revistajc.com.br www.revistajc.com.br

Paulo Freitas Barata

ISSN 1807-779X

Sergio Cavalieri filho

Miguel Pachá nEY PRADO SEBASTIÃO AMOÊDO thiago ribas filho

2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 3


EDITORIAL

A CHEFIA DO PODER JUDICIÁRIO

N

a perspectiva dos mais céticos, depois das agruras até aqui vividas, nem a esperança deveria sobejar na Caixa de Pandora Brasileira. Somos, no entanto, por natureza e convicção um povo otimista e por isso logo tratamos de vislumbrar, num horizonte próximo, algum acontecimento promissor, de modo a sempre contarmos com a possibilidade de confirmar essa inata certeza num porvir grandioso que tanto acalenta o mito recorrente de “País do Futuro”.

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“Uma geração de mulheres lutadoras vem mudando o panorama profissional do Brasil, principalmente na seara jurídica (...)”

No Judiciário, não precisamos eleger acontecimentos de papel. À vista, está confirmada, a celebração de uma data em si mesma auspiciosa não só para a comunidade jurídica, senão para toda a República: consolidando a tradição salutar de renovação, a cada dois anos, do comando da Corte Suprema do País, chega à Presidência, à Chefia do Poder Judiciário, a ministra Ellen Gracie, magistrada cuja atuação sempre se distinguiu pelo descortino, retidão e temperança. Quem prima em destacar a fidalguia com que os pares, mesmo em meio aos mais acalorados debates, desvia o foco da determinação que lhe norteia os passos desde os primórdios da triunfal carreira. Formada no ambiente austero da gente do Sul, com apenas três anos de bacharelado já vencia os rigores que alicerçam o concurso para o cargo de Procurador da República, idôneo passaporte para, após pouco mais de quinze anos, integrar o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em cuja Presidência exercida oito anos mais tarde priorizou a racionalização dos serviços e praxes judiciários, além da ampliação e interiorização da Justiça Federal, de Primeira Instância, metas que bem revelam o perfil administrativo de Ministra – racional, objetivo, a enfatizar a eficiência, os resultado, de modo a alcançar da forma mais definitiva possível a solução dos problemas que lhe são apresentados.

Toda a magistratura vibra quando um dos seus alça ao topo do judiciário para chefiar-lhe com a competência já demonstrada pela Ministra, o que inclui, além da aguerrida defesa do respeito às leis e à Constituição, o apego a liturgia do cargo, a exigir a eqüidistância necessária das paixões cotidianas que tanto assediam aqueles que detêm o poder, tentando aliciá-los. Em novos tempos, a missão sublime de julgar há de estar sempre desvinculada de qualquer coloração política, assentando-lhe na primazia das leis, da qual depende todo e qualquer avanço cultural de uma sociedade. Essa é a razão de toda república render homenagens ao biênio presidencial que se avizinha no Supremo. Se o exemplo deve vir de cima para cintilar como norte, luz condutora aos demais, estamos todos – e não só o judiciário – bem representados. Uma geração de mulheres lutadoras vem mudando o panorama profissional do Brasil, principalmente na seara jurídica, com a firmeza e aplicação que lhes são peculiares, conforme os leitores poderão constatar nesta edição especial da revista. É ler, admirar e aplaudir, acompanhando, passo a passo, a administração da primeira Ministra do Supremo, da primeira Chefe do Poder Judiciário. Ministro Marco Aurélio de Farias Mello Membro do Conselho Editorial 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5


Foto: Divulgação

CAPA

Ministra Ellen Gracie na presidência do Supremo

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nova presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Ellen Gracie é a primeira representante do sexo feminino a ocupar aquele posto. No seu extenso currículo de magistrada há que se destacar os 15 anos de atuação no Ministério Público Federal, uma experiência que ela mesmo definiu recentemente como “extremamente rica”. Formada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pós-graduada em Antropologia Social, a ministra Ellen Gracie foi diretora-fundadora da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS, vice-presidente do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, presidente do Tribunal Regional Federal da 4º Região e ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral, cargos que ocupou entre os anos de 1986 e 2001. O ingresso de mulheres na cúpula do judiciário nacional – uma ministra no STF, quatro no STJ e uma no TST - mais do que o rompimento de uma barreira, significa que elas venceram um preconceito que prevaleceu durante muitos anos contra as mulheres em posições de destaque em todas as áreas. Por exemplo, quando a nova presidente do Supremo se formou em Direito, as mulheres não eram admitidas a prestar concurso para a magistratura. Corrigida essa lacuna, o panorama mudou e hoje, segundo pesquisa, a justiça de primeira instância conta com 30% de mulheres e 26% na de segundo grau. Nesse grupo estão aquelas que integrarão no futuro o quadro dos tribunais superiores. Aprimoramento do Poder Judiciário Assumindo a presidência da mais alta Corte de justiça do país, a ministra Ellen Gracie pretende dar continuidade aos projetos e as iniciativas que visem o aprimoramento do Poder Judiciário brasileiro. E a celeridade com menos burocracia da justiça do país é necessária, mas precisa em primeiro lugar que se proceda alguma alteração legislativa nos textos que dizem respeito ao direito processual, para reduzir o número de recursos. Numa entrevista concedida à revista Réplica, da Associação do Ministério Público do Rio Grande do Sul, em dezembro do ano passado, a ministra declarou que “não há país no mundo que contemple a quantidade e multiplicidade de recursos em cascata como existe no processo brasileiro. Em outras nações, as decisões interlocutórias geralmente são irrecorríveis”. Charme, elegância e beleza Eleita no dia 15 de março passado pelo plenário do STF, a ministra Ellen Gracie, que também ocupará o cargo de presidente do Conselho Nacional de Justiça, criado no ano passado dentro da reforma do judiciário, terá como vicepresidente o ministro Gilmar Mendes. O presidente que saiu, ministro Nelson Jobim, ao cumprimentar sua substituta observou que desde a instalação do Supremo Tribunal Federal, em decorrência da Constituição de 1891, esta é a primeira vez que uma mulher presidirá a

mais alta Corte da justiça brasileira. “Vossa Excelência saberá contribuir (com o poder Judiciário), todos os colegas sabem disso, com a sua autoridade, a sua obsessão, a sua capacidade administrativa, mas fundamentalmente com seu charme, elegância e beleza”. Jobim acrescentou esperar que a Corte venha a ter a contribuição de outras mulheres. “Mas surge um problema grave para as futuras e eventuais integrantes da Corte: foi fixado um padrão de charme e beleza que tem que ser obedecido e respeitado”, ressaltou o ex-presidente.

“não há país no mundo que contemple a quantidade e multiplicidade de recursos em cascata como existe no processo brasileiro. Em outras nações, as decisões interlocutórias geralmente são irrecorríveis”.

O procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, também se manifestou sobre a eleição da ministra Ellen Gracie. “Quero deixar consignado a minha satisfação de participar desse momento da vida nacional, um momento histórico, quando se elege a primeira mulher para presidente do Supremo e o faz merecidamente por quem também já integrou os quadros do Ministério Público”. Agradecimento A ministra Ellen Gracie disse na ocasião que o cumprimento da tradição da casa e a previsibilidade do resultado não tiram a solenidade do momento, “nem o tornam menos comovente a quem recebe a suprema honra de conduzir os destinos do Supremo Tribunal Federal. Eu agradeço, do fundo do coração, o voto de confiança dos colegas e recebo esse voto de confiança, senhor presidente, senhores ministros, também como um compromisso de Vossas Excelências de solidariedade com a presidência, a que não faltarão com certeza, com seu aconselhamento fraterno, com o apoio e o incentivo necessários a uma boa gestão”. 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


O FUTURO DO PODER JUDICIÁRIO Delza Curvello Rocha

Ilustração: Debora Oigman

Subprocuradora-geral da República

Princesa Isabel: deu os primeiros passos para a modernização política do Estado.

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i “Caminharão, assim, lado a lado, ambos sob a Presidência de Ellen Gracie Northfleet, o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça.”

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História do Brasil tem registrado, ainda na monarquia, a presença forte da mulher no equacionamento e solução de problemas enfrentados por nossa sociedade. Refiro-me, principalmente, à Isabel Cristina Leopoldina de Bragança, que, na condição de Regente do Império, sancionou, em 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre, e em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea, que extinguiu a escravidão em todo o Brasil. Foi a decidida intervenção dessa mulher corajosa e esclarecida na questão da escravatura, que propiciou que fosse extirpado esse flagelo de nossa sociedade, abrindo caminhos para a derrubada da monarquia em 1889. Devem, assim, os brasileiros, à coragem de uma mulher, os primeiros passos rumo à modernização política do Estado. Hoje, seis anos após ser a primeira mulher nomeada ministra do Supremo Tribunal Federal, cumprindo trajetória de brilho previsível, assume a Presidência da Suprema Corte, a ministra Ellen Gracie Northfleet, tornando-se, assim, a primeira mulher a presidir um dos Poderes da República. Ellen Gracie Northfleet ingressou nos Quadros do Ministério Público Federal em 1973, após se submeter às provas do Segundo Concurso Público para o ingresso na Carreira de Procurador da República. Na Instituição permaneceu durante 16 anos, enriquecendo-a e projetando a imagem do Ministério Público. Passou a integrar, a partir de 1989, pelo quinto constitucional, a composição originária do Tribunal Regional Federal da 4º Região, onde permaneceu até dezembro de 2000 quando foi nomeada Ministra do Supremo Tribunal Federal. Essa nomeação, sem dúvida alguma, alargou, e em muito, a presença da mulher no mundo jurídico, visto que integrada ao órgão central do Poder Judiciário. Sua cuidadosa formação acadêmica, aliada ao raciocínio ágil e direto, à dedicação ao justo, à notável e discreta afabilidade, que lhe é inerente, e em especial à sua capacidade de trabalho, fazem da ministra Ellen Gracie a pessoa talhada para conduzir o Poder Judiciário

em momento tão delicado por que passam os Poderes e as Instituições da República. Ao desprezarem, os homens públicos, no processo de tomada de decisão, valores fundamentais, dignos de contínua observância e permanente tutela (para que se não percam no tempo e na memória dos homens), passaram a colocar em risco as instituições, desencadeando situação de crise. Não ficou imune o Poder Judiciário. Enfrenta, esse Poder da República, as conseqüências de uma reforma Constitucional, levada a efeito e tendo como pano de fundo a busca de soluções para a morosidade em que é ofertada a prestação jurisdicional, e a necessidade de aplicação, em todos os setores do Poder Judiciário, dos princípios inscritos no artigo 37 da Constituição Federal. Impôs, assim, o Constituinte derivado, à estrutura do Judiciário, um órgão de controle externo, de constituição heterogênea, com competências direcionadas ao zelo pela sua autonomia, embora, antagonicamente, exerça, cumulando com outros órgãos desse Poder, e sobrepondose a eles, funções disciplinares, revisoras e de planejamento estratégico. Assim é que esses diversos órgãos que compõem o Poder Judiciário dos Estados e da União foram submetidos à força atrativa do Conselho Nacional de Justiça, que por eles se propaga como se não previstos constitucionalmente o pacto federativo e a autonomia administrativa do Poder Judiciário. É certo que esses aspectos já foram questionados junto ao Supremo Tribunal Federal e já definidos em favor do Conselho Nacional de Justiça, inclusive, quanto a autoexecutoriedade de suas competências, afastada, na espécie, a incidência do princípio da reserva legal, inscrito no artigo 5º da Constituição Federal. Caminharão, assim, lado a lado, ambos sob a Presidência de Ellen Gracie Northfleet, o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça. E no exercício das presidências desses dois elevados órgãos será definido o futuro do Poder Judiciário. 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


i “O tradicional equilíbrio, o discernimento, a isenção sempre presentes são predicados que jamais faltaram a essa qualificada magistratura, e que, como nunca, vêm sendo de cada um dessa Suprema Corte de Justiça exigidos.”

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Nessa honrosa empreitada, acha-se Sua Excelência na companhia de ilustre colega, o excelentíssimo ministro Gilmar Ferreira Mendes, também egresso do Ministério Público Federal, que será certamente o colaborador eficiente, colocando à serviço da Corte todos os seus méritos, que não são poucos. O cidadão e a sociedade brasileira têm no Supremo Tribunal Federal plena confiança. Na plêiade de ministros que o integram, depositam suas esperanças de realização de Justiça. O tradicional equilíbrio, o discernimento, a isenção sempre presentes são predicados que jamais faltaram a essa qualificada magistratura, e que, como nunca, vêm sendo de cada um dessa Suprema Corte de Justiça exigidos. No momento atual, muitas vezes não basta a técnica jurídica para dirimir a controvérsia. É necessário extremar os fatos da paixão, ou do tão propalado “clamor popular”, ou mesmo do que se convencionou conceituar como “politicamente correto”, todas essas situações formadas à margem dos fatos, e capazes de conturbar o juízo sereno e técnico dos julgadores, e que se transformam em mecanismo corrosivo e demolidor do Estado Democrático de Direito, por espelhar um retrocesso visível do processo civilizatório, conduzindo à culpa presumida, diametralmente oposta ao magno princípio da presunção de inocência. O cidadão e a sociedade confiam na habilidade da atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, e de seus ilustres pares, na contenção dos excessos. As instituições necessitam ser fortes, coesas. Mas essa fortaleza e essa coesão só se concretizarão sob o domínio pleno da lei, cabendo ao Poder Judiciário balizar a exata medida das ações por elas desenvolvidas, pois a ele é confiada a interpretação e a aplicação da Lei Maior, à qual devem se submeter os Poderes constituídos da União. Tarefa muito mais árdua, entretanto, encontrará a ministra Ellen Gracie na implantação do sistema de controle externo, cujas ações nesse sentido, até hoje, têm se mostrado bastante traumáticas, com sérios abalos à imagem do Judiciário. É certo que correções de rumos deverão ser encetadas na administração do Poder Judiciário, quer estadual, quer federal, como aliás em toda a administração pública, abrangidos nessa expressão os dois outros Poderes, o Executivo e o Legislativo e o próprio Ministério Público. Entre outros fatores, a crise porque passa o Poder Judiciário é institucional, e encontra raízes no fato de que seu processo de modernização depende, necessariamente de uma mudança de postura dos Poderes Executivos – estaduais e federal - responsáveis por cerca de 70 % dos processos que tramitam pelas diversas varas federais ou fazendárias instaladas no território nacional. Entretanto essa crise institucional, originada em grande parte por fatores exógenos, poderá ser agravada se forem buscadas soluções centradas no personalismo e no imediatismo. Aliás, nessa linha, Samuel Huntington, em sua histórica obra “A Ordem Política nas Sociedades em Mudança”, aborda as conseqüências derivadas da preponderância desse binômio


no momento de decisão, quando os homens públicos, movidos por sentimentos pessoais ou imediatistas, deixam de respeitar o fato de que as instituições possuem vida própria, dissociada da existência dos que detêm o poder. Observa ele que as instituições têm interesses próprios, divergentes dos interesses daqueles que, eventualmente, se encontrem no poder. Essa dissociação é decorrente do fato de o interesse do indivíduo se identificar com o interesse próprio, ou de seu grupo, e os interesses das instituições unicamente se ajustarem ao interesse público. Analisando a relação instituições políticas e interesses públicos, em face dos diversos períodos por que passou a Corte Suprema americana, exemplifica: “O dirigente que tenta maximizar o poder ou outros valores a curto prazo, quase sempre enfraquece a sua instituição a longo prazo. Os ministros da Corte Suprema podem, em termos de seus desejos individuais imediatos, querer declarar inconstitucional um ato do Congresso. Mas ao decidirem se isso é ou não de interesse público, provavelmente devem perguntar-se se, a longo prazo, fazer isso é também do interesse institucional da Corte Suprema. Os estadistas do Poder Judiciário são os que, como John Marshall na questão Marbury vs. Madison, maximizam o poder institucional da Corte de tal forma, que se torna impossível ao Presidente ou ao Congresso ameaçá-lo. Em contraste, os ministros da Suprema Corte na década de 1930 chegaram muito perto da expansão de sua influência imediata, em detrimento dos interesses a longo prazo da Corte como instituição”. Diante dessas considerações, em um país onde o Estado de Direito encontra-se limitado a alguns, pois o império da lei ainda não foi estendido a todos os habitantes, onde os nãocidadãos aguardam o acesso à cidadania, pois dela apenas arcam com o solitário e solidário ônus da injusta e crescente desigualdade sócio-econômica-cultural, a Reforma do Poder Judiciário necessita ser implementada tendo os olhos fixos no respeito às Instituições. A Presidência é um cargo solitário. Poderoso, e essencialmente solitário (Samuel Huntington - A ordem política nas sociedades em mudança). A autoridade que detenha a Presidência - seja de um Poder, de um Órgão, de uma Instituição – tem em suas mãos um feixe de poderes que a tornam poderosa. Mas carrega em seus ombros a responsabilidade de não falhar na defesa desse Poder, desse Órgão, dessa Instituição. A solidão denunciada por Huntington encontra-se na exata medida da responsabilidade de, no momento de decisão, a autoridade pública aferir e prestigiar o interesse público, apartando-o de todo e qualquer interesse pessoal ou grupal; e na determinação e no desassombro dessa autoridade de levar a efeito, a qualquer custo, o seu compromisso institucional. Nesses momentos de exercício do poder – na realidade de solidão - a ministra Ellen Gracie certamente saberá optar pelo melhor caminho a ser percorrido, porque sua história institucional assim sugere.

i “O cidadão e a sociedade confiam na habilidade da atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, e de seus ilustres pares, na contenção dos excessos.”

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GÊNERO, POLÍTICAS PÚBLICAS E AÇÕES REGULATÓRIASS Eliana Calmon

Ministra do Superior Tribunal de Justiça

Foto: Arquivo

“(...) não se transforma uma classe social apenas com o acesso aos meios de satisfação primária. A verdadeira mudança se faz nas cabeças, na transformação individual, porque nela se assenta a mudança coletiva.”

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ual é a diferença entre um homem e uma mulher? Neste século, essa questão deve ser respondida pela Biologia, pela Bioética e, ainda, pela sociedade econômica, que se utiliza do trabalho de homens e mulheres, sem a mística da fragilidade do sexo feminino, em torno da qual existem crenças que, com o passar do tempo, vão caindo no vazio como castelos de areia. Antiga crença afirmava que o poder ganharia, com as mulheres, uma dose de compaixão, capaz de conter a violência que lhe é inerente. Também se dizia que o homem, com a valorização da mulher rumo ao poder, perderia a autoridade e se fragilizaria aos olhos da sociedade. Qualificar ou desqualificar ideologicamente o gênero tem um efeito contrário ao que se busca – o verdadeiro equilíbrio social, o qual repousa em um pensamento que deve nortear a modernidade: repor o valor da igualdade substancial dos cidadãos, homens ou mulheres. E isso porque se concluiu, já no século XX, que não há diferença alguma entre homens e mulheres, em termos de atuação, trabalho, responsabilidade ou sentimentos. Uma executiva em uma empresa atua diferente de um executivo? Uma maestrina, à frente de uma orquestra, conduz os músicos de forma diferente de um maestro? Uma juíza julga diferente de um juiz? O STJ tornou-se melhor ou pior depois de 1999, quando começaram a chegar as ministras? Daí a conclusão do articulista Roberto Pompeu de Toledo, em um velho artigo de jornal: “Imaginar que uma mulher pode produzir resultados diferentes dos de um homem, só por ser mulher, seria o mesmo que imaginar que os homens produziriam efeitos diferentes no vinco das calças ou no colarinho das camisas, quando se dispusessem a passar a ferro”. EVOLUÇÃO POLÍTICA A igualdade formal outorgada pela lei, diante da autonomia da vontade, dentro do princípio aristotélico de que o que é igual deve ser tratado de igual forma, e o que é diferente deve ser tratado diferentemente, levou o mundo a mergulhar em uma discriminação absurda, na qual os grupos minoritários, sem representatividade ou espaço de defesa política, passaram a ser alvo da exploração econômica, servindo para encobrir uma só verdade: a igualdade formal levava à desigualdade substancial, conduzindo à obtenção de mão-de-obra barata dos grupos iguais a todos os outros, porém, diferentes em razão do gênero, da idade, da nacionalidade, da raça etc., diferenças que os igualava pela falta de poder de pressão. O Estado Liberal cedeu espaço para o Estado Social, cuja tônica foi a proteção às minorias, na tentativa de equilibrar a sociedade desigual, que tanto desgaste provocava na condução das políticas públicas, consumindo formidáveis somas em assistencialismo paliar. O assistencialismo, benéfico às políticas demagógicas e deletérias, deu lugar às políticas pautadas nas ações

afirmativas, ou de medidas compensatórias, direcionandose à criação de um clima para igualar as oportunidades. Essas políticas, também chamadas de discriminação positiva ou discriminação benigna, alavancaram o surgimento dos direitos sociais e coletivos, a partir da identificação de grupos minoritários. Após a Segunda Guerra, intensificaram-se as políticas de discriminação positiva. Afinal, o mundo enfrentava os problemas da descolonização, quando foi a Europa invadida pelos alienígenas, vindos das colônias, sem preparo suficiente para enfrentar o mercado de trabalho nas cidades européias que se reconstruíam. Nos Estados Unidos, o problema racial, existente desde a época da guerra civil, atingiu níveis de intolerância alarmantes. E as mulheres americanas que foram obrigadas a deixar o lar, doce lar, para assumirem os empregos nas fábricas que abasteciam a indústria bélica, desfalcadas pelos homens que foram para o front, recusaram-se a retornar ao lar ao final da guerra. Dentro desse quadro, acentuaram-se as ações afirmativas na tentativa de serem criadas oportunidades aos que se mostravam excluídos do processo produtivo da Nação, abolindo-se assim o princípio da neutralidade, ou seja, não bastava uma simples obrigação de não discriminar, era preciso discriminar positivamente para incluir. Nessa política, saíram os Estados Unidos na ponta, sendo criado, em 4 de junho de 1965, na Universidade de Harvard, o dia do movimento das ações afirmativas. A Suprema Corte Americana foi o primeiro organismo judicial a adotar a discriminação positiva em relação ao racismo. Embora muito se tenha avançado no século XX, em relação às políticas públicas que visam à não-exclusão, chegamos ao século XXI, com a pós-modernidade, sem termos conseguido completar o quadro de equilíbrio das minorias. A par disso, constatou-se que as políticas discriminatórias, mesmo quando afirmativas, causam,

“O Estado Liberal cedeu espaço para o Estado Social, cuja tônica foi a proteção às minorias, na tentativa de equilibrar a sociedade desigual (...)”

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muitas vezes, efeito contrário ao esperado, quando mal dimensionadas. É o que se chama de disfunção da norma protecionista. Como exemplo, podemos citar algumas leis de proteção às minorias trabalhadoras (mulheres, idosos e crianças) que, freqüentemente, são a causa determinante para o desemprego dessas minorias ou para a drástica queda na remuneração. A conclusão a que se chega é a de que cabe ao Estado insistir com as políticas de ações afirmativas, dentro de um estudo sério, dinâmico e de revisão periódica, porque, em uma sociedade capitalista, é impossível falar de relações que não sejam marcadas pelo interesse do lucro, que forma as leis de mercado, e o mercado que, por sua vez, estrutura a política de emprego.

de estarem os excluídos dissociados do processo produtivo, por via oblíqua, exigem da população economicamente ativa maior participação na carga tributária, induzem maior insegurança pública e atrasam o desenvolvimento). Dentre as minorias, a inserção da mulher na vida econômica da Nação tem efeito multiplicador. Com ela se integra a classe mais pobre da sociedade, visto que o maior contingente de pobreza no Brasil é o de mulheres; com elas também se integram os menores e os adolescentes, pois são elas hoje chefes de família em um percentual superior a 52% (cinqüenta e dois por cento). Por fim, ainda, integra-se com a mulher um expressivo contingente da raça negra, já que as mais pobres são as negras. Para se ter uma idéia do universo feminino, dados da Organização Internacional do Trabalho, do ano 2000, indicam que representa ela metade da força de trabalho do mundo, embora continue a compor um percentual de 70% (setenta por cento) dos miseráveis do planeta. E adverte a OIT que, se não houver políticas públicas efetivas para acelerar o processo de inclusão social do gênero, a igualdade só será alcançada daqui a 460 anos. Dentre as políticas de inclusão, recomenda-se que: a) no movimento de reforma agrária, a alocação dos lotes e a sua titulação sejam feitas em nome da mulher, pois hoje esse universo é de apenas 12,5% (doze e meio por cento) dentre os titulados; b) sejam erradicadas, dos livros didáticos, histórias ou figuras que sugiram preconceitos de gênero, classe, etnia, passando-se, dessa forma, a mudar a cabeça não apenas de uma geração, mas das gerações seguintes; c) se dê maior assistência à maternidade, acesso aos métodos contraceptivos, aceitação do aborto como preventivo à mortalidade materna, dentre outras sugestões.

POLÍTICAS PÚBLICAS DENTRO DA REFORMA DO ESTADO A gestão pública moderna tem como substrato imprescindível a eficiência e a eficácia, cujo resultado positivo relaciona-se com a credibilidade da Administração Pública, obtida por intermédio de seus gestores. Daí a diferença entre as empresas do setor público e as do setor privado, o que pode ser distinguido pelas características seguintes: a) poder de coerção do Estado; b) no setor privado, visa-se ao lucro econômico. No setor público, é considerado lucro tudo o que possa equacionar solução para o setor social, em interesse para a sociedade; c) o setor público deve manter um aparato humano interessado e incentivado a atender aos interesses da sociedade. Dentro desse contexto, vem se tentando, a partir da década de 90, reformar o Estado com enfoque de gênero. Para quê? Para que se obtenha como resultado, dentre outros: qualidade de vida, integração das minorias no desenvolvimento do Estado e diminuição do peso econômico da exclusão (além

CONCLUSÕES As políticas de ações afirmativas são imprescindíveis, mas devem ser devidamente dosadas, avaliadas e periodicamente reavaliadas. E isso porque as medidas que pretendem aliviar a exclusão social podem se tornar medidas assistencialistas, de desastrosas conseqüências. Afinal, não se transforma uma classe social apenas com o acesso aos meios de satisfação primária. A verdadeira mudança se faz nas cabeças, na transformação individual, porque nela se assenta a mudança coletiva. O movimento de inclusão de gênero, dentro da reforma do Estado, deve ter o cuidado de não servir de apanágio a reivindicações ideológicas radicais ou a oportunistas que, para fins eleitoreiros ou pessoais, nada sabem, nada fazem e nada deixam de positivo para uma sociedade que hoje precisa da aliança entre homens e mulheres. Assim, é possível evitar os males de uma civilização globalizada que, em verdade, ignora o gênero, sem cerimônia de dar continuidade a uma sociedade machista, na qual se jogam homens contra mulheres para, ao final, obter mão-deobra mais barata, quando o objetivo é o lucro.

“Embora muito se tenha avançado no século XX (...) chegamos ao século XXI, com a pós-modernidade, sem termos conseguido completar o quadro de equilíbrio das minorias”.

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CERTEZA E SEGURANÇA JURÍDICA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BREVE REFLEXÃO Diva Malerbi

Foto: Arquivo

Presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região

H

á certas teses básicas da tradição jusfilosófica ocidental revificadas com a incorporação da fórmula político-jurídica do Estado Democrático de Direito – como cerne da ordem jurídica brasileira inaugurada pelo texto constitucional de 1988 - proporcionando a transposição, para o plano do direito posto, da problemática relativa aos direitos humanos desenvolvida nos quadrantes do ideal do Estado de Direito e arquitetada pelo ideal democrático. Esta comunicação pretende ser breve reflexão sobre o problema central, projeção daquela premissa, de como compatibilizar essa

visão do Estado Democrático de Direito com os ideais de segurança jurídica. Vem da tradição jusfilosófica ocidental a concepção de que a elaboração do direito positivo é fundada em juízos de valor, não sendo possível entender o direito posto senão como um dado de realidade que guarda um sentido ético. Então, quando se trata de analisar o trabalho de ordenação jurídica da vida social, há que se distinguir entre o conteúdo que se ordena e a forma de ordená-lo. O que se ordena, o conteúdo, é constituído pelos elementos da vida social, na realidade dada de um determinado tempo. 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


A idéia de justiça constitui a forma universalmente válida para ordenar juridicamente qualquer situação fática da vida coletiva; sendo, portanto, um critério formal, um princípio ordenador de materiais contingentes e variáveis. Já à razão compete dar a forma de ordenar aquela matéria social. Com relação à problemática relativa aos valores superiores que o direito posto persegue, cabe sublinhar que a elaboração do direito tem por função primordial conferir certeza e segurança na organização da vida social. É imprescindível que a ordem social implantada pelo direito positivo corresponda a certas exigências de justiça e dos demais valores superiores por ela implicados. A segurança

“Na história destes últimos séculos e na atualidade, o ponto de referência de todos os direitos que se reconhecem às pessoas, nas ordens jurídicas constitucionais vigentes, constitui-se na dignidade humana”

jurídica é, portanto, em relação à justiça e aos demais valores superiores, que lhe servem de orientação, a condição e o meio disponível nos quais o direito pode realizá-los. Exatamente por isso o problema crucial de nosso tempo, com relação à problemática relativa aos direitos humanos, é dos meios disponíveis para sua realização, ou seja, o das suas garantias. Ainda com relação à problemática relativa aos valores superiores que o direito posto persegue e, especificamente, aquele da justiça, cabe ressaltar que ao homem não importa qualquer certeza ou segurança, senão certeza e segurança no que entendem com pautas de justiça cujos valores superiores estão imbricados com as exigências de dignidade, liberdade e igualdade. Nesse contexto, o importante é saber o que deve ser 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2006

estabelecido pelo direito como ordem certa e segura. A própria construção jurídica da doutrina dos direitos básicos do homem, desenvolvida ao longo dos tempos, não deixa dúvida de que é ao homem, como pessoa, a quem se dirige o direito posto, na busca da certeza e segurança da ordenação da vida social. Na história destes últimos séculos e na atualidade, o ponto de referência de todos os direitos que se reconhecem às pessoas, nas ordens jurídicas constitucionais vigentes, constitui-se na dignidade humana. Quanto à temática da segurança no direito, ora suscitada, não é demais renovar aqui outra dimensão funcional do direito, que reside justamente na resolução dos conflitos sociais, o que se viabiliza por meio de normas e decisões necessitando assim contar não só com critérios valorativos adequados, como também estar apoiado no poder político, que se faz representar pela entidade Estado. Esta função do direito, que consiste na organização jurídica do poder político numa série de órgãos, poderes e atividades do Estado (e dos demais entes públicos que os integram) somente estará justificada se apoiar-se no conjunto de poderes sociais mais representativos da sociedade (princípio da soberania popular). Esta organização do poder político do Estado, por meio do direito, repercute, ao mesmo tempo, em dois outros temas caros à construção jurídica da doutrina dos direitos básicos do homem. Ao submeter a atuação estatal a determinados procedimentos juridicamente regulados para a elaboração da norma e da decisão jurídica, dotando-a de maior previsibilidade e estabilidade, trouxe, em conseqüência, o desenvolvimento do Estado de Direito; e por outro lado, representa uma limitação jurídica desse poder frente aos direitos fundamentais do homem. Ainda quanto à temática suscitada em torno do que deve ser estabelecido como ordem certa e segura, cabe sublinhar que o fenômeno da incorporação dos direitos fundamentais aos textos constitucionais não é novo. Em primeiro lugar, por entender-se que a constituição do Estado em termos de Estado de Direito é assim a garantia do ser humano da sua segurança jurídica. O Estado de Direito é garantia necessária da segurança pessoal, mas não é garantia suficiente. Daí ser necessária uma garantia adicional consubstanciada na constituição federal. Em segundo lugar, porque as declarações de direitos de 1776 e de 1789 trouxeram, ao plano do direito, uma nova forma de organização política e a gênese do Estado constitucional. As declarações de direitos tornaram os homens cidadãos em documento pré-constitucional. As constituições positivas unicamente constituíam em sua garantia viabilizada pela tripartição do poder estatal. A constitucionalização dos direitos fundamentais do homem deu-se pelo instrumento jurídico da reforma da Constituição Federal de 1789, para incluir, por emenda, o reconhecimento e a garantia dos direitos fundamentais do homem. Foi, portanto, esta constituição, baseada no princípio da soberania popular, que tornou os direitos fundamentais do homem indisponíveis, não só para


um poder constituído como é o poder legislativo, como também cercou os direitos fundamentais do homem da garantia constitucional de sua proteção frente aos atos do poder legislativo pelo poder judiciário. A partir daí dá-se a troca da natureza dos direitos fundamentais do homem. Deixam de ser naturais por adquirir a condição de normas constitucionais. Isso mostra, de modo suficiente, que é a pauta dos direitos fundamentais da pessoa o que denuncia, em confronto com um dado sistema político-jurídico, o seu caráter autoritário ou democrático, liberal ou social. Esta a razão pela qual o significado da fórmula político-jurídica do Estado Democrático de Direito – com base na qual é erguida a nossa ordem jurídica vigente – não deixa margem de dúvida de que os direitos fundamentais das pessoas ocupa papel central no modo de conhecer e de aplicar o direito brasileiro, especialmente na ordem constitucional vigente a partir do texto fundamental de 1988. É importante salientar que a incorporação dos direitos básicos do homem aos textos constitucionais não é novo fenômeno, já as chamadas declarações de direitos de 1776 e de 1789 – ou bill of rights – configuram, desde o início do constitucionalismo, em elemento constitutivo das constituições que juntamente com aquele que estabelece e organiza a forma de governo, integra a lei fundamental. O que se verifica, quanto ao tema, no século XX e na atualidade, é a progressiva ampliação dos direitos reconhecidos e o conseqüente esforço no sentido de garantir sua proteção. Com a transposição dos direitos fundamentais do homem do campo dos direitos naturais para o plano constitucional, de onde se irradia para os mais diversos setores do direito, faz-se das constituições contemporâneas uma autêntica teoria para toda a criação do direito e de sua atividade judicial. É que, transpostas as declarações de direitos ao plano do direito constitucional, e tendo elas nos últimos séculos convertidos os direitos fundamentais em elementos constitutivos das constituições contemporâneas, há uma perspectiva renovada do que vem a ser a chamada lei fundamental de uma ordem jurídica, por ela inaugurada. Já se sabe hoje que é insuficiente ver a constituição como mero instrumento de defesa ou proteção de direitos fundamentais das pessoas, membros de uma sociedade política, frente ao poder estatal, sob a garantia de uma tripartição de poder. O ideário da segurança jurídica envolve um esforço em ver numa constituição as linhas gerais para guiar a atividade estatal e social, promovendo o bem-estar individual e coletivo dos integrantes desta comunidade, que soberanamente a estabelece. E, por outro lado, esse ideário recolhe da constituição, na atualidade, a referência explícita a uma teoria substancial do direito que responde acerca do que é, em última instância, suas pautas de justiça, cujos valores superiores estão imbricados com as exigências de dignidade, liberdade e igualdade. Nesse contexto, a constituição federal de 1988 não

“O ideário da segurança jurídica envolve um esforço em ver numa constituição as linhas gerais para guiar a atividade estatal e social, promovendo o bem-estar individual e coletivo dos integrantes desta comunidade, que soberanamente a estabelece.”

pode mais ser vista e entendida apenas como um corpo normativo despido de conteúdo e de funcionalidade: ela configura a razão ordenadora do Estado e da sociedade, constituindo, também, limite para a tarefa governamental, na medida em que impede que o Estado agrida ou viole os direitos fundamentais. Além disso, também contém normas para possibilitar, em todo e em qualquer caso, a aplicação de outras normas para a solução dos problemas jurídicos, ainda que estas normas procedimentais não contenham referência direta à espécie de fatos e sim a princípios, como é o caso das normas constitucionais que articulam os direitos fundamentais, princípios estes conformadores do modo como o Estado, que os consagra, deve organizar-se e atuar. Do exposto se extrai que às constituições cabe fornecer o fundamento último da ordem jurídica por ela instaurada, bem assim que os valores fundamentais sob os quais é erigida esta ordem jurídica integram-na ao serem inscritos no texto constitucional. No entanto, a consecução desses valores requer, ainda, a intermediação de procedimentos. Esta comunicação buscou apenas colocar em evidência as novas direções em teoria e filosofia do direito, no sentido de apontar a importância da reflexão da dimensão processual das constituições contemporâneas – como a nossa – onde exsurge como resposta à exigência de certeza e segurança, a preocupação em estabelecer os parâmetros de justiça e racionalidade com os quais deverão ser balizados os procedimentos de realização dos valores e princípios no direito positivo. 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17


A RESPONSABILIDADE DO ESTADO PELA VIOLAÇÃO DO DIREITO CONSTITUCIONAL À RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO Nancy Andrighi

Foto: Arquivo

Ministra do Superior Tribunal de Justiça

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“(...) o conceito de “razoável duração do processo” constitui uma cláusula em branco, aberta, que a jurisprudência deverá caracterizar com conteúdos concretos, a fim de definir em cada processo se a respectiva duração foi razoável ou a excessiva (...)”

A

Emenda Constitucional n.º 45, de 31 de dezembro de 2004, implantou diversas alterações na Constituição Federal de 1988, dentre elas, de especial interesse aqui, a inclusão do inciso LXXVIII ao art. 5.º, assim redigido: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Como se percebe, a Emenda Constitucional n.º 45 inseriu entre os direitos e garantias fundamentais, o direito à razoável duração do processo. Mas, afinal, o que é razoável duração do processo? O conceito de duração razoável do processo foi eficazmente sintetizado pela Corte Européia de Direitos Humanos, em Estrasburgo, no recurso Guillemin x França, em 21.02.97, no seguinte sentido: “o caráter razoável da duração de um processo se avalia segundo as circunstâncias da causa, que demanda à ocorrência uma avaliação abrangente e tendo em vista os critérios consagrados pela jurisprudência da Corte, em particular a complexidade da causa, o comportamento dos recorrentes e das autoridades competentes”. Todavia, a rica experiência jurisprudencial da Corte de Estrasburgo, de indiscutível validade para os fins da interpretação do indeterminado conceito de “razoável duração do processo” e de aplicação dos mencionados critérios, nos leva à conclusão que o dado cronológico da duração do procedimento não tem valor absoluto, seja porque não existem parâmetros temporais preestabelecidos e uniformes, seja porque a razoabilidade ou a excessividade da duração de um processo por si só não se prestam a uma rígida avaliação em abstrato, mas exigem uma específica apreciação a ser feita segundo as circunstâncias concretas de cada causa individual e à luz dos mencionados critérios de avaliação da “razoável duração do processo”. Diante dessa brevíssima exposição, podemos concluir que o conceito de “razoável duração do processo” constitui uma cláusula em branco, aberta, que a jurisprudência deverá caracterizar com conteúdos concretos, a fim de definir em cada

processo se a respectiva duração foi razoável ou a excessiva e, assim, se o direito assegurado pelo inciso LXXVIII, do art. 5.º, da Constituição Federal foi violado ou não. No que diz respeito à responsabilização do Estado pela violação da duração razoável do processo, cabe passar os olhos rapidamente sobre a Lei Italiana de n.° 89 de 24.03.2001. Com efeito, prevê o art. 2.° da referida lei, que “Quem sofreu um dano patrimonial ou não patrimonial decorrente da violação da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, recepcionada pela lei n.° 848 de 4 de agosto de 1955, sob o aspecto do desrespeito à duração razoável do processo, prevista no artigo 6°, § 1°, da mencionada Convenção, tem direito à uma reparação eqüitativa.” Essa mesma lei previu, para custear o ônus financeiro decorrente da sua própria aplicação, o estabelecimento de um fundo especial do erário público (Ministero del tesoro).1 Fica aqui, portanto, a nossa sugestão aos legisladores brasileiros, pois certamente surgirão demandas por violação ao direito constitucional à “razoável duração do processo”, cabendo à jurisprudência decidir se realmente houve a violação e ao Estado Brasileiro arcar com o pagamento das indenizações, nos casos em que ela se verificar. Ressalve-se, por fim, que não se está a falar da responsabilização do Estado pelas decisões jurisdicionais finais errôneas, mas se está sugerindo a meditação no sentido de ser ampliado o espectro da responsabilização, qual seja, assegurar a responsabilidade do Estado pelos danos causados pelo violação ao direito constitucional à razoável duração do processo. Não se está aqui buscando localizar ilícitos, mas sim e principalmente o funcionamento anormal e deficitário que é motivado, dentre outros elementos, pelo aparelhamento da máquina estatal que produz atraso no processo jurisdicional. Nota 1

Cfr. o art. 7.° da Lei. 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


Cumprimento da sentença Ada Pellegrini Grinover

Foto: Arquivo

Professora Titular de Direito Processual da Universidade de São Paulo

Caminho evolutivo No sistema processual civil brasileiro poucos eram os casos de cumprimento da sentença condenatória independentemente de um processo de execução ex intervallo. A tradição romana da actio iudicati, recepcionada pelos sistemas continentais europeus, deixava pouco espaço para a aglutinação das fases de conhecimento e de execução no mesmo processo. Isso ocorria, por exemplo, nas ações possessórias e na ação de despejo, ou no mandado de segurança, dando margem ao surgimento de uma classificação quíntupla das demandas, que colocava, ao lado da sentença 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2006

condenatória, a executiva lato sensu e a mandamental. Mas é fácil verificar que essa classificação, acrescentando duas espécies no gênero processo de conhecimento, ao lado das demandas condenatórias, constitutiva e declaratória, não significa que a sentença executiva lato sensu e a mandamental não sejam condenatórias, indicando somente um tipo diverso de efetivação (qual seja, a ausência de um processo autônomo de execução). E tanto é assim, que outra classificação – desta feita, de acordo com o cumprimento da sentença condenatória – passou a chamar aquela que demandava execução ex intervallo de condenatória pura, para distinguí-la das condenatórias sem processo de execução (ou seja, a executiva lato sensu e a mandamental). Em tempos mais recentes, coube a Kazuo Watanabe a ampliação da categoria das sentenças condenatórias mandamentais, em que as atividades de cognição e de execução se aglutinam no mesmo processo de conhecimento, quando sugeriu a redação do art. 11 da Lei da Ação Civil Pública (lei n. 7.347, de 24.07.85): Artigo 11: “Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica, ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor.” A seguir, ainda por influência de Kazuo Watanabe, a mesma idéia foi detalhada no Código de Defesa do Consumidor (lei n. 8.078, de 11.09.1990), por seu art. 84: Artigo 84: “Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado . Par. 1º. A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível quando por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente. Par. 2º. A indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287 do CPC). Par. 3º. Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu. Par. 4º. O juiz poderá, na hipótese do par. 3º ou na


sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito. Par. 5º. Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial”. Do Código de Defesa do Consumidor, a disposição passou para o Código de Processo Civil que, pela lei n. 8.952/ 94, adotou, no art. 461, a mesma técnica para as obrigações de fazer e não fazer. Finalmente, o art. 461-A do CPC, acrescentado pela lei n. 10.444/02, estendeu o cumprimento da sentença condenatória, sem necessidade de execução ex intervallo, às obrigações de entregar coisa certa1. Assim, nas obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa certa, a sentença deixou de ser condenatória pura, sendo efetivada no próprio processo de conhecimento. Faltavam as obrigações de pagar. E o círculo fechou-se pela lei n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005, ora em comento. O cumprimento da sentença na lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005 Decorrente de projeto de Athos Gusmão Carneiro, amplamente debatido no Instituto Brasileiro de Direito Processual e, depois, com a comunidade jurídica, a lei n. 11.232/05 traz profunda modificação em todo o direito processual brasileiro e em seus institutos. A principal característica da lei – denominada de cumprimento da sentença – consiste na eliminação da figura do processo autônomo de execução fundado na sentença civil condenatória ao pagamento de quantia certa, generalizando o disposto nos arts. 461 e 461-A do CPC. Agora, a efetivação dos preceitos contidos em qualquer sentença civil condenatória se realizará em prosseguimento ao mesmo processo no qual esta for proferida. A unidade processual é determinada pelas disposições segundo as quais a provocação do juízo para as medidas de cumprimento da sentença se fará mediante um requerimento do credor (arts. 461, par. 5º e 475-J do CPC, na redação da lei) e não mais pelo exercício de uma ação (ação executiva). O obrigado não será citado, justamente porque não existe um novo processo, mas simplesmente intimado na pessoa de seu patrono (art. 475-J, par. 1º). A nova lei denomina cumprimento da sentença, em sentido genérico, as atividades destinadas à efetivação do preceito contido em qualquer sentença na qual se reconheça a existência de uma obrigação a ser cumprida pelo vencido. Quando se trata de dar cumprimento a uma obrigação de fazer ou não fazer ou de entregar coisa certa, a efetivação se faz mediante o cumprimento da sentença em sentido estrito, e quando se trata de obrigação de pagar, mediante a execução (execução por quantia certa contra devedor solvente – art. 475-I). Assim, o cumprimento da sentença (lato sensu) é o gênero, que tem como

“(...) a lei n. 11.232/05 eliminou do processo civil brasileiro a categoria das chamadas sentenças condenatórias puras, ou seja aquelas que demandavam um processo de execução autônomo”

espécies o cumprimento da sentença stricto sensu (obrigações específicas) e a execução (obrigações de pagar). O conceito de execução não se estende ao cumprimento das obrigações específicas, o qual continua regido pelos arts. 461 e 461-A. Como conseqüência dessa unidade do processo (cogniçãoefetivação), não faria sentido manter o conceito de sentença como “ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa” (art. 162, par. 1º, do CPC). Daí sua nova redação, pela qual sentença passou a ser o “ato do juiz que implica (rectius, configura) alguma das situações (rectius, hipóteses) previstas nos arts. 267 e 269 desta lei” 2. Assim, haverá uma sentença sempre que houver julgamento do mérito da causa (art. 269) e sempre que o juiz determinar a extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267). Mas, em função da unidade cognição-efetivação, a sentença de mérito só porá fim ao processo em casos excepcionalíssimos, ou seja quando não restar obrigação alguma a ser cumprida, sequer por custas ou honorários da sucumbência. O resultado disso é que não haverá mais um processo de execução autônomo fundado em sentença proferida no processo civil (art. 475-N, inc. I). Quando a sentença reconhecer a existência de uma obrigação específica a ser cumprida pelo réu (obrigação de fazer, de não fazer, de entregar coisa certa), a efetivação do preceito se fará mediante as atividades qualificadas como cumprimento da sentença (s.s.); e, quando a obrigação for em dinheiro, mediante a execução, tudo no mesmo processo aglutinado de cognição-efetivação (art. 475-I). Resulta daí que a disciplina do processo de execução, contida no Livro II do CPC, só se aplicará: a) quando o título executivo for extrajudicial, sendo que os preceitos do processo de execução se aplicam apenas em caráter subsidiário ao cumprimento da sentença, incluindo a execução por quantia (art. 475-R); ou b) quando a sentença houver sido proferida fora do processo civil estatal (sentença penal condenatória, laudo arbitral, sentença estrangeira homologada e acordo extrajudicial homologado). 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


“(...) a principal característica da lei consiste na eliminação da figura do processo autônomo de execução fundado na sentença civil condenatória ao pagamento de quantia certa (...)” Abolição das sentenças condenatórias puras Parece, assim, que a lei n. 11.232/05 eliminou do processo civil brasileiro a categoria das chamadas sentenças condenatórias puras, ou seja aquelas que demandavam um processo de execução autônomo. Como visto, todas as sentenças portadoras do reconhecimento de uma obrigação a ser cumprida pelo réu comportarão efetivação mediante o prosseguimento do mesmo processo e, portanto, sem um processo executivo distinto e autônomo (sine intervallo). E essas sentenças, às quais a lei outorga eficácia de título executivo (art. 475-N, inc. I), serão: a) mandamentais, quando afirmarem a existência de uma obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa certa; ou b) executivas lato sensu, quando se referirem a uma obrigação em dinheiro. No primeiro caso, elas serão efetivadas mediante as atividades englobadas no cumprimento da sentença s.s. (arts. 461 e 461-A); no segundo, mediante a execução por quantia certa, que também se faz em prosseguimento ao processo. Não sobra espaço, pois, no âmbito do novo sistema processual civil brasileiro para as sentenças condenatórias puras, restritas agora ao processo trabalhista. Sentenças declaratórias A sentença declaratória, que continua regulada pelo art. 4º do CPC, é positiva quando acolhe a demanda do autor e lhe concede a tutela jurisdicional postulada; e é negativa quando rejeita a demanda, concedendo tutela ao réu. Na tradição de qualquer sistema processual, incluindo o brasileiro, para exigir a satisfação do direito que a sentença declaratória tornou certo, o autor deve propor nova ação, de natureza condenatória: a sentença declaratória positiva vale apenas como preceito, tendo eficácia imperativa exclusivamente no tocante à declaração da existência ou inexistência da relação jurídica entre as partes e a seu modo de ser. Teria a lei 11.232/05 atribuído agora à sentença declaratória positiva eficácia de título executivo, dispensando a demanda destinada a obter o título? É o que passamos a examinar. 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2006

Uma nova classificação das sentenças Examinem-se o art. 475-N e inc. I da nova lei: Art. 475-N: “São títulos executivos judiciais: I – a sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia.”3 Sentença que reconheça a obrigação parece, à primeira vista, sentença declaratória. Confronte-se, então, esse dispositivo com o art. 4º do CPC: Art. 4º: “O interesse do autor pode limitar-se à declaração: I – da existência ou inexistência de relação jurídica; II – da autenticidade ou falsidade de documento. Parágrafo único. É admissível a ação declaratória, ainda que tenha ocorrido a violação do direito.” Assim, pela interpretação literal do art. 475-N, inc. I, na redação da lei 11.232/05, c/c o art. 4º do CPC, teríamos agora, no ordenamento brasileiro, duas espécies distintas de sentença declaratória: a) a que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia, que constituiria diretamente título executivo, dando margem ao cumprimento da sentença ou à execução por quantia certa, sem necessidade de propositura de nova demanda destinada a obter o título; e b) as demais sentenças declaratórias, que não reconheçam a existência das obrigações acima mencionadas, e que se esgotam em si mesmas, por não dependerem de uma prestação a ser realizada pelo obrigado (por ex., declaratória negativa), ou que exigem nova demanda para obtenção do título executivo (por ex., declaratória de paternidade.).4 Mesmo nessas sentenças, entretanto, haverá normalmente um capítulo dependente de efetivação posterior, que é aquele atinente às custas e aos honorários da sucumbência. No primeiro caso (art. 475-N, inc. I), a sentença seria ao mesmo tempo declaratória e mandamental (obrigações de fazer, não fazer e de entregar) ou declaratória e executiva lato sensu (obrigações de pagar quantia certa). No segundo caso (art. 4º), teríamos uma ação declaratória pura, com a ressalva dos honorários advocatícios e das custas. E o sistema brasileiro teria acabado com a sentença condenatória no processo civil ... Todavia, pode-se dar ao art. 475-N, inc. I, interpretação mais flexível e sistemática, que não rompa com o caminho evolutivo acima traçado e melhor se afeiçoe ao ordenamento brasileiro (particularmente às tradicionais categorias das sentenças mandamentais e executivas lato sensu, como espécie de sentenças condenatórias, e às sentenças meramente declaratórias, previstas no art. 4º do CPC), afeiçoando-se, ainda, à clássica conceituação de Andréa Proto Pisani, no sentido de que sentença condenatória é a que se executa”5. Assim, entendemos que a expressão “sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia” indica não apenas uma declaração, mas também a condenação, mantendo-se conseqüentemente a categoria da sentença condenatória,


mandamental ou executiva lato sensu e, a seu lado, a da declaratória tradicional. Conclusões O certo é que a interpretação de uma nova lei, especialmente quando inovadora como a que estamos comentando, é tarefa difícil. E as primeiras interpretações correm sempre o risco de virem a ser desautorizadas pela doutrina e pela jurisprudência posteriores. Mas alguém tem que deitar a primeira pedra: e nós, aceitando o repto, tivemos a ousadia de fazê-lo. Numa análise, que poderá ser provisória, entendemos, em síntese, que a Lei do Cumprimento da Sentença (lei 11.232, de 22.12.2005) trouxe as seguintes transformações ao sistema processual brasileiro: a – a principal característica da lei consiste na eliminação da figura do processo autônomo de execução fundado na sentença civil condenatória ao pagamento de quantia certa, generalizando o disposto nos arts. 461 e 461-A do CPC; b – a efetivação dos preceitos contidos em qualquer sentença civil condenatória se realizará em prosseguimento ao mesmo processo em que for proferida; c – não mais haverá processo de execução autônomo fundado em sentença proferida no processo civil. Quando a sentença reconhecer a existência de uma obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa certa, a efetivação do preceito se fará mediante as atividades qualificadas como cumprimento da sentença s.s; e quando a obrigação for de pagamento em dinheiro a efetivação se dará mediante a execução, tudo no mesmo processo que aglutina cognição e efetivação; d – conseqüentemente, não havia mais como definir “sentença” como “ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa” (art. 162, par. 1º do CPC), sendo que, na nova redação, haverá sentença sempre que houver julgamento do mérito da causa (art. 269) e sempre que o juiz determine a extinção do processo sem julgamento do mérito (art.267); e – a disciplina do processo de execução, contida no Livro II do CPC, só se aplicará: d1 – quando o título executivo for extrajudicial; d2 – quando a sentença houver sido proferida fora do processo civil estatal (sentença penal condenatória, laudo arbitral, sentença estrangeira homologada, acordo extrajudicial homologado); f – parece, assim, que a lei eliminou do processo civil brasileiro a categoria das chamadas sentenças condenatórias puras, ou seja aquelas que demandavam um processo autônomo de execução, com exceção das sentenças proferidas fora do processo civil estatal (supra, e.2); g – as sentenças serão mandamentais, quando afirmarem a existência de uma obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa certa; e serão executivas lato sensu, quando se referirem à obrigação de pagar quantia em dinheiro; h – no primeiro caso, serão efetivadas mediante cumprimento da sentença s.s. e no segundo, mediante execução sine intervallo;

i – na interpretação literal do art. 475-N, inc. I, da lei, a sentença, nos casos apontados supra (“g”) surgiria como declaratória; j – nessa interpretação, teríamos, no ordenamento brasileiro, duas espécies distintas de ação declaratória: j1 – a que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa certa ou pagar quantia, que constituiria diretamente título executivo, dando margem ao cumprimento da sentença (s.s.) ou à execução sine intervallo; j2 – as demais sentenças declaratórias (art. 4º do CPC), que não reconheçam a existência das obrigações acima mencionadas, esgotando-se em si mesmas, por não dependerem de uma prestação a ser realizada pelo obrigado (como na sentença declaratória negativa) ou que exigem nova demanda para obtenção do título executivo (por. ex., declaratória de paternidade). Mesmo nessas sentenças, entretanto, haverá normalmente um capítulo dependente de efetivação posterior, que é aquele atinente às custas e honorários da sucumbência; k – aceita a interpretação literal, teríamos assim sentença declaratórias que constituem título executivo, ao lado de sentenças declaratórias puras; l – entretanto, uma interpretação mais flexível e sistemática do art. 475-N, inc. I, leva a afirmar que a expressão contida no dispositivo não se refere apenas à declaração, mas também à condenação, mantendo-se conseqüentemente as categorias das sentenças condenatórias mandamentais e executivas lato sensu. m – esta última interpretação parece afeiçoar-se melhor às linhas do caminho evolutivo indicado no texto, à sistematização das sentenças mandamentais e executivas lato sensu como pertencentes ao gênero de sentenças condenatórias, e ao próprio art. 4º do CPC, aderindo, ainda, ao conceito doutrinário de que sentença condenatória é a que se executa. NOTAS

1 - O Código Civil subseqüente não revogou a disciplina das obrigações de fazer, não fazer e de entregar coisa do Código de Processo Civil, conforme afirmamos no estudo “A inafastabilidade do controle jurisdicional e uma nova forma de autotutela: arts. 249 e 251 do Código Civil”, in Princípios Constitucionais Fundamentais, Ed. Lex, 2005. 2 - Na redação original, aprovada pela Câmara dos Deputados, a redação do dispositivo era mais precisa, conceituando sentença como o ato do juiz proferido nos termos dos artigos 267 e 269. A redação senatorial é devida à assessoria parlamentar. 3 - Também essa redação é inovação do Senado, devida à Assessoria parlamentar. 4 - Cumpre observar que o STJ tem considerado como provida de força executiva as sentenças declaratórias que reconhecem a existência de uma obrigação. Acompanhando nosso raciocínio, desenvolvido a seguir, consideramos essas sentenças condenatórias, e não meramente declaratórias, apesar do rótulo que for dado à ação. 5 - Daí porque entendemos que as sentenças referidas na nota supra têm natureza condenatória.

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A luta das mulheres pelos seus direitos Rosinha Matheus Garotinho

Foto: Divulgação

Governadora do Estado do Rio de Janeiro

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“(...) não custa lembrar que só em 1879 o Brasil abriu as instituições de ensino superior às mulheres! Ainda que as jovens que seguiam esse caminho ficassem sujeitas à desaprovação social.”

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s mulheres operárias do século XVIII eram submetidas a um sistema desumano de trabalho, com jornadas de até 16 horas diárias, espancamentos e ameaças sexuais. A partir da Revolução Industrial, em 1789, reivindicações de melhores condições de trabalho e igualdade entre os sexos tomaram vulto. No dia 8 de março de 1857 tecelãs de uma fábrica de Nova York decidiram paralisar suas atividades reivindicando redução da jornada de trabalho. A polícia reprimiu a manifestação e 129 operárias acabaram morrendo queimadas, depois de terem sido trancadas na fábrica que se incendiava. Nada mais justo, portanto, do que eleger aquela data como dia internacional da mulher. Com isso celebramos a continuada luta de nós mulheres pelo espaço e pelos direitos que devemos ter em todos os aspectos da vida social. Desde então muitos avanços foram alcançados. Sejam quanto aos direitos da mulher na sociedade contemporânea, sejam na ampliação de sua participação na política e na sociedade. Por exemplo: não custa lembrar que só em 1879 o Brasil abriu as instituições de ensino superior às mulheres! Ainda que as jovens que seguiam esse caminho ficassem sujeitas à desaprovação social. Foi um caminho difícil, se lembrarmos que até o início dos anos 30 a mulher brasileira sequer tinha direito ao voto. Mas estamos vencendo os obstáculos, com a competência, a sensibilidade, a paciência e o espírito prático que nos caracterizam. Portanto, no mês de março tivemos muito o que festejar. No campo da política, por exemplo, cada vez há mais vereadoras, prefeitas, deputadas estaduais e federais e senadoras. Já temos a primeira e única mulher a ingressar no Supremo Tribunal Federal, a ministra Ellen Gracie, que esta revista em boa hora decidiu homenagear, que também será a primeira a presidir a mais alta corte do país. Como segunda governadora eleita diretamente para o cargo na História do Brasil, ao lado de Wilma Faria, do

Rio Grande do Norte – estado que nos deu a primeira prefeita, Alzira Soriano, de Lajes -, não poderia esquecer as mulheres durante a minha gestão. A política do Governo do Estado do Rio para o setor se dá basicamente no âmbito do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, o Cedim. Entre os programas do Cedim está o Centro Integrado de Atendimento à Mulher, o Ciam, que dá atendimento e orientação, especialmente na luta contra a violência doméstica e sexual. No interior, essa assistência é prestada pelos Núcleos Integrados de Atendimento à Mulher, os Niams, em parceria com as prefeituras. Mas há outros instrumentos nos demais órgãos do governo, como as Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher, as Deams, e programas voltados para a saúde como a assistência no período pré-natal. No entanto, o programa mais simbólico da atenção do governo do estado com as mulheres é o Morar Feliz. Ele não é específico para elas, porque beneficia toda a família. Mas os títulos de propriedade são entregues às mulheres, não só para evitar que elas sejam exploradas pelos homens, mas também porque cada vez mais são as chefes de família, particularmente entre a população menos favorecida. Mesmo com tantas iniciativas de políticas públicas, aliado ao trabalho destacado do Cedim com suas mais variadas ações, fiz questão que meu governo homenageasse a mulher. Quer pela expressão de seu trabalho e sua influência na nossa sociedade. Quer seja por intermédio de sua inserção no cenário político, cultural e social no nosso estado. Por isso, criamos, por intermédio do Decreto 34.925, a Medalha do Mérito da Mulher. A medalha é conferida anualmente e a indicação de nomes é de uma comissão constituída pelo secretário de Estado de Cultura; pelo secretário de Estado de Direitos Humanos e pela presidente do Cedim. Essa é mais uma forma de homenagearmos todas as mulheres de nosso estado e de nosso país. 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


AÇÕES AFIRMATIVAS SISTEMA DE COTAS Neuza Maria Alves Desembargadora Federal Tribunal Regional Federal – 1ª Região

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om o presente trabalho, pretendo fazer sucinta incursão na matéria que serve de título, sem preocupação de exaurir a análise por qualquer que seja o ângulo, mas demonstrando como encaro as políticas afirmativas, do ponto de vista de quem vivenciou o estigma da exclusão e constatou, na prática, os malefícios impingidos aos que são abandonados à própria sorte. Percebendo a vastidão de enfoques que a matéria comporta contive as possibilidades de desdobramentos, sabendo de antemão que haveria de ser sucinta para concentrar a análise e não permitir divagações que pudessem trazer a discussão apenas para o campo do sentimentalismo, pois o assunto merece, antes, uma abordagem essencialmente técnica. Não é que a emoção deva ser alijada do contexto, já que estamos tratando de direito, da vida de seres humanos interferindo uns com os outros... O que quero dizer é que vou fazer a defesa do sistema de cotas para negros nas universidades públicas, sem aporte puramente emocional ou meramente protecionista, como se tratasse de pedintes a necessitar de esmolas dos poderes constituídos. “Não hei de pedir pedindo, mas reivindicando!” O tema referente às ações afirmativas nos circuitos acadêmicos e na sociedade, enquanto se manteve no plano das idéias, não gerou controvérsias. Entretanto, quando postas as ações na direção de sua concretização gerou grande polêmica, precipitada pela adoção do sistema de cotas para negros por algumas universidades. As ações afirmativas, entendidas como o cabedal, ainda em formação, de medidas inclusivas efetivas, que o Poder Público adota para privilegiar o acesso de negros aos meios fundamentais de progresso social e econômico, como forma de promover gradual erradicação dos efeitos deletérios da histórica discriminação racial de que foram e continuam sendo vítimas, são o reconhecimento oficial do racismo no Brasil. Não obstante, o mito da democracia racial brasileira ainda 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2006

permanece vivo. Cumpre seu papel de ocultar o racismo, seja o existente de forma aberta, seja aquele que se verifica em uma de suas formas mais perversas: a dissimulada. O movimento negro, entretanto, mais consciente das condições objetivas e subjetivas de mudanças, tem empreendido intensa pressão no sentido de que o Estado, por meio de políticas públicas diretas, combata a desigualdade racial institucionalmente. Essa postura decorre da constatação de que, sem a intervenção estatal, dificilmente o preconceito, secularmente arraigado na sociedade, será afastado. O Sistema de cotas para negros na universidade, um dos meios de efetivação das ações afirmativas, foi, até hoje, a medida concreta mais contundente do Estado para compensar a discriminação negativa, com a discriminação positiva. O anúncio da medida, por si só, pelo impacto nos meios acadêmicos e nos setores conservadores da sociedade, revolveu a questão do preconceito racial e pôs o assunto na ordem do dia. A discussão, contudo, travada quase que exclusivamente por meio da mídia, não provocou demandas judiciais em volume considerável, embora tenha aberto espaço à reflexão da situação do negro e a dívida social gerada pela escravidão e seus nefastos reflexos. Os que se posicionam contrariamente às medidas argumentam que os negros são injustiçados por serem, como a maioria da população, pobres, não por serem de cor. Estão na vala comum dos menos favorecidos. O sistema também é combatido por aqueles que o consideram violador do critério meritório próprio da justa concorrência, que desaguaria na queda da qualidade da produção acadêmica e formação profissional. Como corolário desses efeitos, estar-se-ia transgredindo princípio constitucional da igualdade. De tanto baterem na mesma tecla, já estão perdendo força de argumentação, mas nem por isso desistem. Colhi do artigo de Luis Nassif, denominado “Inclusão Meritória”, informação de que em um estudo realizado pela


Foto: Arquivo

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“O Sistema de cotas para negros na universidade, um dos meios de efetivação das ações afirmativas, foi, até hoje, a medida concreta mais contundente do Estado para compensar a discriminação negativa, com a discriminação positiva.” UNICAMP, partindo-se de levantamento de vestibulares passados, para análise do desempenho dos alunos, concluiuse que todo excluído vem da escola pública, que entre os mais excluídos desse grupo estão os pretos, os índios e os pardos, entre outras tanto quanto óbvias, pelo menos para meu conhecimento. Mas a conclusão a meu ver mais fantástica é a de que, no curso, entre grupos de alunos que alcançaram a mesma nota nos vestibulares, os que vieram da escola pública tiveram desempenho superior. Em igualdade de condições, no curso, saíram-se melhor. Daí se extrai que, mesmo havendo diferença de preparo no ensino médio, contanto que não seja aberrante, excessiva e disparatada, essa diferença será fatalmente compensada ao longo do curso. E essa constatação simplesmente cala a boca de quem esgrime, com tremenda força negativa, com o argumento de que permitir o acesso de quem não está tão “preparado” como os não cotistas, será investir na mediocrização do ensino superior. Ouvi depoimentos de quem disse com todas as letras que as universidades públicas iriam falir, que os professores eméritos iriam migrar para as universidades particulares, que jamais se tratariam com médicos que foram aprovados no vestibular pelo sistema de cotas e sandices parecidas. Logo se vê que não têm razão na aposta que estão a fazer. Faço referência, nesse passo, aos questionamentos judiciais que estão sendo feitos, em momento subseqüente aos resultados dos concursos vestibulares onde o sistema de cotas é adotado, a exemplo do ocorrido no Paraná, que teve soluções diferentes: uma negando a liminar a aluno que ficaria classificado não fora o sistema de cotas, outra concedendo. A primeira, relativa ao vestibular para Engenharia Química, devido à reserva de vagas de 20% para negros e 20% para egressos das escolas públicas. O aluno acionante logrou êxito para ser matriculado de acordo com o quadro geral de notas, independentemente das cotas. A Universidade recorreu e só no Agravo Regimental o Desembargador Relator suspendeu a liminar concluindo pela licitude e necessidade das medidas praticadas, para que se alcançasse a sociedade justa, igualitária e solidária que a Constituição apregoa. Para ele “não se trata de reparar uma injustiça passada ou de uma 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2006

compensação pelas agruras da escravidão: a injustiça aí está presente; as universidades, formadoras das elites, habitada pela esmagadora maioria branca”. Continuando, disse ainda o Relator, que ver a disparidade atual e aceitá-la comodamente “é uma atitude racista em sua raiz”. Na minha pesquisa fiz contato com quem disse ser contra o sistema de cotas porque o que deve prevalecer é puramente a questão meritória, não importando a condição étnica ou social... A resposta a essa visão de antolhos foi estampada na segunda decisão de um juiz federal à qual me referi linhas atrás, que indeferiu a liminar buscada por quem se disse prejudicado pelas cotas, nos seguintes termos: “É verdade que a Constituição também prevê que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da produção artística, segundo a capacidade de cada um (art. 208,V) (...). O artigo 208 da Constituição, no inciso apontado, deve ser interpretado em conjunto com os demais dispositivos. Ora, como referi anteriormente, a República promete igualdade material. Se promete, é porque sabe que existe a desigualdade. Portanto, a capacidade de cada um para acessar o ensino superior não pode ser avaliada como se todos fossem iguais no sentido material, como se todos tivessem o mesmo tratamento, as mesmas oportunidades, as mesmas prerrogativas sociais. Caso fosse assim interpretado o artigo constitucional, haveria evidente violação ao princípio da isonomia, previsto com primazia pela própria Constituição. Dessa forma, o sistema de cotas para negros não viola o artigo 208, V, da CR; visa, na verdade, a viabilizar o estrito cumprimento do preceito, a partir do momento que promove a igualdade substancial, permitindo que se crie um universo social em que negros e brancos poderão, igualmente, adquirir a mesma capacidade intelectual.” Outro argumento apresentado como barreira à execução do sistema de cotas, de ordem subjetiva e ainda sem satisfatório deslinde, está relacionado com a definição dos parâmetros para classificar um indivíduo como negro. Muitos, aproveitando-se da incipiente experiência do mecanismo, têm se identificado como negro para receber o benefício. No primeiro momento, despem-se da qualificação racial por motivos variados, até temendo desqualificação social, esta sim, decorrente da condição imposta pela sua negritude. No segundo momento, verificando que podem usufruir alguma benesse, igualmente por serem portadores de características visuais típicas dos descendentes de nossos irmãos africanos, reconhecem-se negros e pleiteiam o benefício. Quando rejeitados, ingressam em juízo com fundamento na ausência de parâmetros objetivos para desclassificá-los. O embuste, contudo, tem encontrado freios em abalizados exames fisionômicos, ainda que não científicos. Retiro ainda da decisão por último referida, que indeferiu a liminar requerida pelo candidato do Paraná, o seguinte trecho:


–“E não me impressionam, nesse momento de cognição, os argumentos quanto às dificuldades para a definição de quem é negro para o fim de ocupação de cotas, dada a acentuada miscigenação do povo brasileiro. O Brasil sempre soube quem é o negro para fins de escravização. Deverá sabêlo, agora, no momento de reparar sua dívida histórica”. E eu acrescento, que no momento da inscrição o candidato aderiu ao Edital, sem ressalvas... Na hora do resultado, vem o inconformismo. Injustificado e tardio. A questão do racismo não se resume em diferenças de classe social dissociada da questão étnica. O negro, que compõe a base piramidal da sociedade é duplamente injustiçado, por ser pobre e por ser negro. O mérito pessoal, diante do imperativo da igualdade material, tem de ser conjugado com os pressupostos da igualdade de oportunidades. Quem freqüenta as melhores escolas ou goza de melhor situação que o negro, sem ter que suportar o peso da discriminação, não pode opor ao sistema de cotas, o princípio da igualdade formal. A solução propalada para excluir o tratamento diferenciado do negro são as chamadas ações universalistas, como ampliação e melhoria da escola pública gratuita em todos os níveis, especialmente no ensino fundamental e na prestação de serviços básicos de saúde. O negro se encarregaria, com esse apoio geral, de se promover. Oculta-se, nesse passo, que a perspectiva de colheita de resultados, em se aguardando o desenrolar dos acontecimentos, envolve alguma coisa em torno de mais cem ou duzentos anos. Essas ações universalistas, conquanto inegavelmente positivas, não asseguram igualdade material, pois o negro continuaria sendo preterido. É justamente para combater a igualdade puramente formal, traduzida em desigualdade, que as ações afirmativas são implementadas. Reflexos externos do desnivelamento social pela cor são palpáveis, materialmente aferíveis. Os internos, que repercutem nos externos, visíveis apenas à sensibilidade humana, são os mais graves. Atingem a personalidade, debilita a auto-estima, desestimula o crescimento pessoal, apaga a esperança e pode conduzir à marginalização. Mais que social, a desmontagem do preconceito de raça é moralmente impositiva. Ainda que deixe de interessar a algumas camadas da população, essas que não sofrem na pele, nem no bolso, os rigores da exclusão, há de ser implementada! A sociedade brasileira, com a consolidação e expansão das ações afirmativas, fortalecerá a diversidade cultural, produto da ampla miscigenação de raças, com ênfase para o resgate dos valores culturais que têm suas origens na mãe África e legados em todo o mundo. Isso permitirá à Nação encontrar sua genuína multicolorida identidade, sem preconceitos que a cinda. A Constituição Federal tem entre seus princípios fundamentais o compromisso de reduzir as desigualdades sociais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, incisos III e IV), e enuncia como um

“A luta pela superação do racismo é contra um poderoso inimigo que se acha profundamente instalado no psiquismo coletivo. Não se eliminam idéias incutidas na formação da consciência do povo, apenas com palavras.” dos direitos fundamentais do cidadão, o da igualdade (art. 5º, inciso I). Para o reconhecimento da igualdade como princípio do estado democrático de direito preconizado na Lei Maior, há que se identificar a existência de duas igualdades: uma formal e outra material. Se a formal é conforme a lei, a material é a própria lei em sua pura essência, entendida como princípio gerador da outra: a igualdade-mãe. Esta corrige aquela de acordo com as deformações congênitas ou adquiridas no curso da dinâmica social. É nesta igualdade material que reside o fundamento para justificar o remédio da discriminação para compensar os desnivelamentos no tecido social. A correção é sempre tópica e se perfaz por meio de políticas públicas específicas, no caso temporárias, em lapso não mais que o necessário, pois o concurso individual, em real igualdade de oportunidades, é a justa regra. Nesse sentido, devem as políticas públicas, no estado democrático de direito, implementar ações efetivas de valorização de determinados grupos para promoção da justiça social. Formalmente, estar-se-ia diante de uma excludente de desigualdade para salvaguardar a igualdade. Nos Estados Unidos, recebeu a denominação de ações afirmativas. Na Europa, discriminação positiva. Aqui se conhece por essas denominações e outras como ação política compensatória ou política de reparação. A constitucionalidade dessas medidas está precisamente no cumprimento do princípio da igualdade para afastar a discriminação incompatível com a vida em sociedade e a razão humana. Isso talvez não fosse possível no estado liberal, em que predomina o individualismo exacerbado. No estado democrático de direito, entretanto, que privilegia a justiça social, é uma exigência. Note-se que não se trata simplesmente de corrigir qualquer desigualdade. A de que se fala tem fundamento historicamente comprovado e decorre de um passado escravocrata que produziu e reproduziu gravíssimas desigualdades, inafastáveis sem a intervenção estatal. Conquanto a igualdade seja a regra, a norma estabelece desigualdades formais para assegurar a igualdade material. É o caso da aposentadoria com tempo diferenciado entre 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29


“Os negros foram arrancados de suas longínquas terras e subjugados para produzir a riqueza de muitas nações. Sua escravização foi um crime contra a humanidade. Isso é irreparável.”

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homens e mulheres; a proteção à mulher no mercado de trabalho; cotas de vagas para deficientes no serviço público, nas empresas privadas, em estacionamentos, vias de acesso e instalações sanitárias adaptadas; cotas para candidaturas de mulheres em eleições político-partidárias. São, genericamente, discriminações positivas, ações afirmativas ou compensatórias. Todas visam à integração e à busca da real igualdade, que deixará o campo virtual para se tornar efetiva, na prática. Mas as ações afirmativas de cunho racial, como antes dito, são um conjunto de medidas em construção. Aos universitários afro-descendentes devem ser garantidas condições de permanência, como integração ao corpo discente sem nenhum estereótipo, participação ativa em pesquisas, extensões e produção intelectual. Em anúncios publicitários, nas atividades de expressão artístico-culturais, a presença negra também deve ser assegurada, como atuações proporcionais em propagandas, filmes, novelas e programas de entretenimento em geral. Um verdadeiro processo de indução, de estímulo à multiplicidade cultural e democracia racial, que venha como resposta à famigerada e secular indução à crença de que o negro é inferior, incompetente, incapaz. A par disso, indispensáveis investimentos em políticas universalistas para evitar que a ampliação da pobreza e o acirramento da luta de classes encontrem algum pretexto nas medidas afirmativas, para maculá-las. A luta pela superação do racismo é contra um poderoso inimigo que se acha profundamente instalado no psiquismo coletivo. Não se eliminam idéias incutidas na formação da consciência do povo, apenas com palavras. O sujeito, para desvencilhar-se do condicionamento racista precisa conhecer suas injustas raízes e, reconhecendo-as, rechaçar sua manutenção por processo de convencimento subjetivo e externar objetivamente esse sentimento em práticas e ações que valorizem a pessoa humana independentemente do seu traço fisionômico ou da cor de sua pele. Os negros foram arrancados de suas longínquas terras e subjugados para produzir a riqueza de muitas nações. Sua escravização foi um crime contra a humanidade. Isso é irreparável. No entanto, políticas públicas de ações afirmativas poderão minimizar os efeitos herdados por aqueles que, por ostentarem na pele evidentes sinais ou traços da descendência africana, são vítimas, no Brasil, de velada discriminação racial. Integrados econômica e socialmente, o negro terá condições de viver com dignidade e será um dos grandes aliados na edificação de um mundo mais fraterno e solidário. Aos que laboram contrariamente às ações afirmativas, pode se afigurar paradoxal que eu, mulher e negra, nordestina, criada sem pai, de origem humílima, sem a ajuda de um sobrenome tradicionalmente importante que, sem depender de cotas, consegui ser Juíza do Trabalho, Juíza Federal, Juíza de Tribunal Regional Eleitoral da Bahia e, agora, Desembargadora Federal no TRF da 1a. Região, venha defender o sistema de cotas. Sim!. Só eu sei a troco de quanto sacrifício pessoal! Como foi doloroso o meu caminhar! Como foi difícil transpor os obstáculos! Como foi grande a minha renúncia!


Se no meu período mais fértil, na minha idade mais tenra tivesse recebido algum tipo de ajuda dos poderes constituídos, além da escola pública de qualidade, teria sido muito mais feliz, teria chegado muito mais longe. Quem sabe teria conseguido conciliar meus deveres de mãe, esposa, dona-de-casa, profissional, com o desejo de cursar um mestrado ou doutorado, freqüentar curso de línguas aprimorando-os no exterior, teria me tornado pesquisadora, diplomata, ministra, ou quem sabe até uma excelente professora universitária... Sou feliz hoje com o cargo que ocupo, com a profissão que exerço, com o nome que construí, mas certamente seria menos desgastante, menos sofrida a trajetória, caso não estampasse a cor negra, e só por isso, sofrido a dor da discriminação. A questão da pobreza também influiu, mas pelo menos na Bahia, é fácil perceber a estreita ligação entre ser negro e ser pobre. Em grande parte, o que me fez perseverante foram as singelas, mas profícuas lições de minha mãe. Dizia que jamais me deixasse abater pelos fracassos: haveria de me recuperar e insistir, forte. Ao encontrar uma barreira, deveria estudar formas de ultrapassá-la: que a contornasse, escalasse, cavasse um túnel, que a dinamitasse! Mas que nunca pisasse em ninguém ou usasse pessoas como trampolim para atingir meus objetivos. Agindo assim, meu empenho seria sempre válido, eficaz e naturalmente reconhecido. Assim fiz. E assim segui meu caminho... Não escondo que naquele São João longínquo, quando tinha treze anos e meio, fiquei frustrada pelo fato de que, apesar de ser da equipe de organização da festa junina, não ter conseguido par para dançar a quadrilha. Era a única negra do grupo, que era composto de pessoas de classe média baixa e de algumas tão pobres quanto eu! Determinada a superar a tristeza e a conter o abalo, reagi com altivez. E disso eu me orgulho até hoje: decorei em poucos dias um monólogo de várias lendas e abri os festejos teatralizando o texto, para surpresa de todos. A cena, protagonizada por mim, fez a noite memorável! Depois da festa, os comentários foram todos para o “Lá vem compadre Pindoba!”. A quadrilha, que seria o ponto alto do evento, ficou à margem dos festejos... Não vou esconder também minha dor, no primeiro momento, quando já Juíza Federal deixei de ser convidada para comemorações particulares ou coletivas em residências, ocasiões nas quais os outros pares foram chamados, ou ainda quando fui ignorada num restaurante de luxo por operadores do direito que já ali se encontravam com familiares, tendo ficado surpresa, para dizer o mínimo, quando nossos olhares se cruzaram e o cumprimento foi evitado. Isso prova que o preconceito não é só social! É antes de tudo e acima de tudo, racial! Entendo que a inclusão social é apenas um caminho para debelar o racismo, chaga que mancha de sangue e de dolorosas lágrimas, a história do nosso país. Que o reconhecimento da dignidade do negro nunca dependa exclusivamente de ato seu, extraordinário ou heróico! Conclamo a todos a abraçar a causa da abolição do racismo, sob qualquer forma, e a promover a cidadania, a solidariedade entre os seres humanos e a justiça social!

“Conclamo a todos a abraçar a causa da abolição do racismo, sob qualquer forma, e a promover a cidadania, a solidariedade entre os seres humanos e a justiça social!”

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A Mulher e a Sociedade Tania de Melo Bastos Heine

Desembargadora Federal Tribunal Regional Federal – 2a Região

Foto: Arquivo

“A desigualdade e a exclusão social, produzindo uma polarização crescente da riqueza entre as nações, acarretou um fenômeno de pauperização da classe média, que é exatamente onde a consciência do papel da mulher prepondera.”

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arço de 2006. A ministra Ellen Gracie Northfleet é eleita Presidente do Supremo Tribunal Federal, um fato aparentemente dentro da praxe daquela Corte. Para que possamos dimensioná-lo, porém, temos que recuar no tempo. Voltemos aos primórdios da civilização, onde, desde a Idade da Pedra, identificamos claramente a identidade dos sexos pela rígida definição dos papéis masculinos e femininos. Ao homem cabia a subsistência da família e, à mulher, os cuidados com a prole, atividades ligadas basicamente à maternidade, conceitos que ainda subsistem. Uma das primeiras feministas, Christine de Sison, tenta afirmar, no final da Idade Média, que o sexo é culturalmente formado, não sendo exclusivamente um fator biológico. Podemos imaginar as reações violentas que se apresentaram contra essa tese. No Século XVIII, surgiram vozes a sustentar que a masculinidade e a feminilidade seriam convenções sociais, que poderiam ser alteradas pela educação. Durante o Século XIX, foram feitos ataques à autoridade patriarcal, através de médicos, filantropos e humanistas, tentando, com isso, fortalecer a posição da mulher. No Brasil, ainda no final do século XIX, Myrtes Gomes de Campos, apesar de ter se formado em Direito, não conseguiu ingressar no Instituto dos Advogados Brasileiros, sob a alegação de que não bastava o diploma, pois a mulher casada não poderia advogar sem a licença do marido. Em novembro de 1899, a Dra. Maria Coelho da Silva impetrou um habeas corpus em favor de uma paciente que sofria constrangimento ilegal. O Subprocurador-geral do Distrito Federal opinou em sentido contrário assim se manifestando: “Dotando a mulher de qualidades quase divinas, que são para a humanidade como reflexos da bondade infinita, o destino providencial reservou-lhe uma missão augusta, suavizante e civilizadora que não pode ser transferida do regaço sereno da família para os cimos alcantilados da vida pública, sem se perverter, em sua essência, em seus estímulos e em seus resultados. Afinal, já são bastante os germes de dissolução introduzidos em nosso organismo social, e fortes demais os pampeiros da anarquia, que invadem todos os redutos da felicidade comum: não deixem os Tribunais que coopere na obra da desorganização geral esse novo elemento de desordem, com que a inexperiência feminina pretende impulsioná-la”. Nessa época, em 1894, nascia em São Paulo Berta Maria Julia Lutz, figura relevante na luta pelos direitos da mulher. Formada na Sorbonne, em Paris, em Ciências Naturais, foi convidada para trabalhar no Museu Nacional, em 1919, fato de grande repercussão, por ser caminho praticamente vedado ao sexo feminino. Em 1922, representou o Brasil na Assembléia Geral da Liga das Mulheres Eleitoras, nos Estados Unidos da América, tendo sido eleita Vice-Presidente da Sociedade Pan-Americana.

“Não se fala mais em guerra entre os sexos, como no século passado. As mulheres avançam em áreas antes dominadas exclusivamente pelos homens.” Iniciou, então, o marco da sua trajetória, que foi a luta pelo direito de voto feminino, criando a Federação Brasileira para o Progresso Feminino. Vitoriosa nessa campanha, com o advento do decretolei de Getúlio Vargas, de 1932, que reconheceu esse direito às mulheres, foi eleita para suplente do cargo de deputado federal, tendo assumido a titularidade em 1936. Batalhou, então, arduamente, por direitos trabalhistas em relação ao sexo feminino e ao menor, como a redução de jornada de trabalho ( que era de treze horas ), licença maternidade e igualdade salarial. Sua trajetória política se encerrou com o Estado Novo, que dissolveu os órgãos legislativos brasileiros, em 1937. Na década dos anos sessenta, o movimento mundial toma maior impulso. Não por mera coincidência foi quando surgiu a pílula anticoncepcional, permitindo à mulher decidir quanto à conveniência ou não da gravidez, podendo gerir o fator que sempre foi o marco essencial do papel principal que a sociedade e a religião lhe reconheciam: a maternidade. Na sociedade norte americana, talvez pelo puritanismo que até hoje impregna o american way of life, fruto da colonização inglesa iniciada pelos pilgrims, não se podia falar, na prática, em igualdade de direitos entre os sexos. Foi nesse país que surgiu o movimento mais violento contra a discriminação da mulher, na voz de Betty Fridman, autora de “A Mística Feminina”, escrito em 1963, uma das marcas do movimento feminista. Na década de setenta, a defesa dessas idéias e ideais não foi abandonada. No Brasil, porém, a mobilização maior, principalmente da juventude, era em relação à repressão política. Após as perseguições de 1964, com a edição do Ato Institucional n.1, que levou muitas pessoas ao exílio, veio o famoso ano de 1968. Não apenas no Brasil, onde o Congresso tinha sido fechado e medidas duríssimas vieram através do Ato Institucional n.5. Em Paris, assistimos ao famoso movimento dos estudantes nesse mesmo ano, unindo ambos os sexos na defesa do ideal de Liberdade e Democracia. Mais de vinte anos depois, Betty Friedman volta às manchetes da imprensa, afirmando que “a mulher conquistou seu lugar na sociedade e deve, agora, unir-se aos homens contra a crise econômica que afeta a ambos”. Conclui, com 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


“Neste início do Século XXI a eleição de uma mulher, para ocupar a cúpula do Poder Judiciário, não deveria ser vista como uma excepcionalidade.”

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a experiência que a idade lhe trouxe, que: “Para alcançar a igualdade social e a segurança financeira para todos temos que nos mover em direção à aliança entre os sexos”, para que as mulheres possam batalhar por posições de igualdade com os homens, no trabalho e na sociedade, em geral. A Constituição Federal de 1988, chamada por Ulisses Guimarães de Constituição Cidadã, por ter sido a primeira após o fim da ditadura que aqui se implantou por cerca de quinze anos, e sucessora da anterior, que foi uma Emenda Constitucional outorgada em 1969 pelos chefes militares, tentou preservar ao máximo os princípios democráticos, inserindo-os no texto constitucional, especialmente no tópico das garantias individuais. Assim, dispôs no seu artigo 5, inciso I: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Imaginou o constituinte que essa seria a solução para resolver, em definitivo, a isonomia de gênero, pois, tratandose de institucionalização de direitos humanos, portanto fundamentais, é vedada a sua alteração pelo processo legislativo ordinário ( art.60 parágrafo 4o da Constituição federal ). A questão em tela pode ser eliminada simplesmente por um artigo inserido na Constituição? É óbvio que não. A imposição normativa, porém, tende a alterar a cultura e os costumes no decorrer do tempo. A maior disparidade ainda se encontra na área da remuneração. No serviço público, onde o ingresso se dá por concurso, a discriminação somente surge muito eventualmente em relação a chefias. No setor privado, porém, a mulher tem que se destacar sobremaneira, para que possa galgar o ápice da carreira. Pesquisa realizada pelo Grupo Catho, no período de 2004 a 2005, concluiu que, no Brasil, quinze por cento das mulheres ocupam a Vice-Presidência e dezesseis por cento a Presidência das empresas. A mulher hoje tem plena consciência da importância do seu papel no desenvolvimento econômico do país. A desigualdade e a exclusão social, produzindo uma polarização crescente da riqueza entre as nações, acarretou um fenômeno de pauperização da classe média, que é exatamente onde a consciência do papel da mulher prepondera. Não se fala mais em guerra entre os sexos, como no século passado. As mulheres avançam em áreas antes dominadas exclusivamente pelos homens. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento ( PNUD ) criou dois índices para medir diferenças de gênero: o Índice de Desenvolvimento por Gênero ( escolarização e renda ) e o Índice de Poder por Gênero ( participação da mulher no mercado de trabalho e na política). Na primeira análise realizada, em 1997, a conclusão foi que a disparidade existia em todas as sociedades. Na área jurídica esse movimento se torna evidente, diante do número elevado de mulheres aprovadas nos concursos públicos. Na Justiça Federal, a primeira juíza federal foi a Dra Maria


Rita Soares de Andrade, nomeada em 1967, quando essa justiça foi recriada, após a sua extinção no Estado Novo. A participação feminina foi se ampliando lentamente nos anos seguintes. Atualmente o percentual de juízas no segundo grau de jurisdição é de cerca de 24% e no primeiro grau de 33%. Recentes pesquisas realizadas por diversas entidades, entre elas a Associação dos Magistrados Brasileiros, em 2005, visando traçar o perfil de seus componentes, com base em aspectos demográficos e sociológicos ( como gênero, região geográfica de origem, nível de escolaridade dos pais, posicionamento em relação aos problemas sociais e políticos ) têm trazido resultados surpreendentes, sinalizando os novos rumos que norteiam os juízes, especialmente os mais jovens. Uma das características que foi ressaltada é o aumento significativo do número de juízas federais e estaduais, que alcança, em média, o patamar de quase 40% do total dos magistrados brasileiros. Saliente-se que esses números se alteram freqüentemente, com a realização de concursos e a mudança na composição dos Tribunais, No topo da pirâmide da carreira, entretanto, ainda é marcante a maciça presença masculina. No Superior Tribunal de Justiça, somente em junho de 1999 ingressou a primeira ministra, Eliana Calmon, oriunda do Tribunal Regional Federal da 1a Região. No Supremo Tribunal Federal, a primeira ministra, Ellen Gracie Northfleet, tomou posse em 14 de dezembro de 2000. Ambas foram nomeadas pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso. Pioneiras, elas abriram caminho para que, posteriormente, outras viessem a integrar os Tribunais Superiores. O Tribunal Penal Internacional, instalado há três anos, criado pelo Estatuto de Roma,( Rome Statute of International Criminal Court), aprovado em 17/07/1998, com natureza de tratado internacional, prevê, no artigo 8 letra “a” inciso III, “a representação justa de juízes do sexo feminino e do sexo masculino”, evidenciando que essa preocupação já atinge nível mundial. Os avanços e as conquistas são enormes, mas ainda se enfrenta o preconceito, onde os homens retomam a idéia de luta entre os sexos, quando querem desqualificar posições. Por vezes, ao contrário, utilizam argumentos que pretendem ser elogiosos, na tentativa de enaltecer a mulher profissional competente, sem perceber que, na verdade, o que as palavras evocam é exatamente aquele preconceito. As mulheres devem refletir para não destruir árduas conquistas de nossas antepassadas. A luta pelas liberdades individuais não pode se pautar por versões estereotipadas, valorizando-se a liberdade de cada uma escolher o seu futuro, como profissional, mãe ou, até mesmo, dona de casa, bem como os caminhos que irá trilhar, sem culpas nem arrependimentos. O preconceito ainda existe, mesmo que inconscientemente, mas bem menor do que antes, graças às lutas das diversas gerações. Neste início do Século XXI a eleição de uma mulher, para ocupar a cúpula do Poder Judiciário, não deveria ser vista

“O preconceito ainda existe, mesmo que inconscientemente, mas bem menor do que antes, graças às lutas das diversas gerações.”

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TRIBUTAR AS EMPRESAS É UMA “VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE INICIATIVA ECONÔMICA” ? Salete Maccalóz

Foto: Marco Rodrigues

Juíza Federal e Professora

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A

matéria tributária na Justiça Federal, atualmente, quase se resume a pedidos de certidão positiva com efeitos de negativa, esdrúxula ficção que até sigla possui: CPEN (lê-se “cepem”). Como o sistema de arrecadação está todo no computador, as certidões negativas “saem” automaticamente, mas quando o débito (obrigação principal) ou algum problema de cadastro, documentos, declarações etc. (obrigação acessória), o contribuinte não obtém a pretendida certidão e ingressa em juízo, amparado no artigo 206, do Código Tributário Nacional. Por esse novel artigo a certidão positiva tem efeitos de negativa se existir uma garantia para os créditos vencidos ou esteja suspensa a sua exigibilidade. É um direito do contribuinte que vem sendo exercido através da melhor advocacia escrita e falada. Para tanto, usam muitos argumentos. No primeiro, negam sempre a existência da obrigação, contrariando o texto legal (artigo 206) e depois passeiam por todos os princípios constitucionais, adequados ou não, talvez, por estarem as teses prontas no computador, pouco tempo para reler sessenta páginas, entregar a tarefa aos

ele impõe comportamentos, obviamente é um limitador. Para responder a este argumento é preciso retomar as lições elementares do Direito. O princípio constitucional da liberdade ganha efetividade no ordenamento jurídico com um outro princípio, dada a sua amplitude: “só somos obrigados a fazer ou deixar de fazer em virtude de lei”, resumido na expressão princípio da legalidade, também conhecido como princípio da anterioridade da lei. Para compreender o princípio deve-se lembrar sempre do famoso Contrato Social, de Rousseau, segundo o qual a vida em sociedade obriga o cidadão a “aceitar” regras de conduta, mesmo que não sejam as suas preferidas, como forma de manter as relações sociais em razão dos interesses coletivos. Quando o indivíduo nasce, esse pacto já está em vigor e a sua adesão será ao longo de sua existência pela adaptação, convívio e interação (possibilidade de interferir politicamente no contexto e nas suas regras, com vistas a sua evolução e aperfeiçoamento). É dessa época (período pré-Revolução Francesa), o ensinamento político-filosófico de que as leis, modalidade

“Na prática poucos regimes respeitaram a proposta original da democracia, principalmente o brasileiro com os decretos e agora com as medidas provisórias.”

estagiários, acreditar que os juízes não lêem as petições iniciais e, assim por adiante. De todos os princípios constitucionais invocados, o escolhido para este artigo está no argumento: “negar a certidão ... é uma violação à liberdade de iniciativa econômica ...” previsto no artigo 170, parágrafo único, da CRFB/88. A princípio, parece risível ou um princípio em uso deslocado. Nos tempos em que a cidadania perde espaço e consideração para o econômico, pode parecer “justo” as empresas não recolherem os impostos indiretos (porque elas pagam apenas o imposto de renda), pois isso cercearia as suas iniciativas econômicas. Então o assunto é sério... Invocando pronunciamento do Presidente da República no escândalo da privatização das bandas de telefonia, onde lembrou que palavras e frases destacadas de seu contexto podem significar o que se deseja, aqui a liberdade de iniciativa econômica pode ser tudo e também a imunidade tributária plena. Não é preciso ir muito longe, o ordenamento jurídico como um todo é um obstáculo à liberdade de iniciativa econômica, e não apenas a ela é um obstáculo à liberdade de todos, inclusive dos cidadãos, visto pelo ângulo de que

exclusiva de regulamentação social, serão elaboradas através de uma sistemática com ampla participação popular, pois todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido; donde a lei não é mais a expressão subjetiva da vontade do soberano, mas o consenso da representatividade, surgida do debate, da análise técnica e constitucional, da necessidade coletiva, dos diferentes interesses políticos. A grande lição dos “enciclopedistas” estava na mudança significativa de que nenhuma lei surgiria da noite para o dia, o processo legiferante deve ser transparente, os projetos devem ser conhecidos a priori, o povo participa de sua finalização através de seus representantes eleitos. Na prática poucos regimes respeitaram a proposta original da democracia, principalmente o brasileiro com os decretos e agora com as medidas provisórias. Como a lei deve ser feita antes para condicionar um comportamento posterior, as mais conhecidas, porque estão em permanente incidência e materializando o princípio da liberdade, são as leis penais e as leis tributárias. As leis penais obrigam a permanente abstenção, o “não fazer” (“só somos obrigados a fazer ou não fazer em virtude de lei”). O constante “não fazer” diz respeito a situações de agressão 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


“(...) o tributo é a imposição legal mais antipopular, agravado pelo fato evidente de aquele que mais tem, menos quer pagar; aproxima-se do governo para conseguir essa benesse, financia a eleição de seus representantes para impedir o imposto sobre fortunas.”

ao próprio sujeito, às outras pessoas e ao patrimônio alheio. A legislação tributária é o exemplo lídimo de “obrigado a fazer”; ninguém gosta de pagar imposto, ninguém o faz espontaneamente, o tributo é a imposição legal mais antipopular, agravado pelo fato evidente de aquele que mais tem, menos quer pagar; aproxima-se do governo para conseguir essa benesse, financia a eleição de seus representantes para impedir o imposto sobre fortunas. O comportamento dos ricos, difundido através dos meios de comunicação faz com o pobre, que só paga o imposto indireto, isento nos gêneros de primeira necessidade, também tenha a sua aversão ao imposto. Os outros ramos do Direito também obrigam a fazer ou não fazer, mas existe um momento anterior onde a pessoa pode decidir se assume ou não aquela responsabilidade, por exemplo: o imenso universo da contratualidade; já nos casos dos Direitos Penal e Tributário não se cogita de uma escolha prévia, o primeiro obriga a permanente consciência de abstenção e, quanto ao segundo, o contribuinte paga, quase sempre sem saber, no que diz respeito aos impostos indiretos, e a dedução prévia no caso do imposto de renda (único imposto direto, sob a responsabilidade quase unânime do trabalho assalariado ou da prestação de serviços). Porque a legislação tributária obriga o cidadão e as empresas a um pagamento, independente de sua vontade e querer; porque é o ato de tributar que dá ao Estado todo o poder, faculta-lhe toda a instrumentalidade para subjugar os inimigos, adversários e os próprios correligionários, a Constituição expressa, como vontade da soberania popular, um dos capítulos mais democráticos e pedagógicos de todo o seu conteúdo: Limitações ao Poder de Tributar (princípios limitadores do poder de tributar). É uma lição de democracia porque ensina que o maior poder do soberano também, e principalmente, deve ter 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2006

limites. É pedagógico porque concretiza a idéia de que a cidadania só é possível quando existem limites ao poder, por isso a Constituição, mais do que a simples estruturação de poderes, é o escudo de defesa da pessoa contra os abusos e desmandos das autoridades públicas. Como instrumento de defesa do cidadão deve ser oposta a todo o ato de arbítrio, demonstrando claramente que o desrespeito à Constituição significa a ausência de democracia, a ausência de cidadania e o império do autoritarismo. As limitações do artigo 150, da Constituição, consagram o princípio da anterioridade da lei em respeito ao princípio a liberdade e da soberania popular. Reafirmam o princípio da isonomia e da igualdade de tratamento, da liberdade de ir e vir, da anualidade e proíbem o bis in idem, entre outros que se dividem em princípios decorrentes. Assim, se a ninguém é dado se defender invocando a ignorância da lei, em matéria tributária tal defesa é impossível, não só porque nenhum tributo pode ser exigido ou aumentado sem lei que o estabeleça (princípio da legalidade), mas principalmente porque ele não poderá ser cobrado no mesmo exercício “em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou” (princípio da anterioridade da lei). Respeitados, portanto, todos os princípios constitucionais, limitadores do poder de tributar, a legislação tributária é validamente constitucional, cogente e coercitiva, submetendo a ampla liberdade de iniciativa econômica aos seus comandos, sem que isso seja uma ofensa ou restrição. A cogência da norma tributária é a impossibilidade das partes alterarem o seu conteúdo ou disporem diferentemente, como ocorre no direito privado; ela efetiva a indisponibilidade e a inalterabilidade da norma tributária, significando para o contribuinte a tranqüilidade e certeza que nada além, ou diferente, da matéria legal incidente lhe será cobrado. Para o Fisco significa o limite de sua atuação e o controle funcional, pois não poderá despender tratamento personalizado, por mais significativos que sejam os argumentos apresentados. Serve também para demonstrar que a manutenção de uma lista de maiores devedores, sem a correspondente execução, é um tratamento privilegiado de alta implicação política, criminal e funcional, revelando apenas os “parceiros” na espoliação do bem comum. A aplicação do Direito Tributário obedece todas as regras da eficácia do Direito Público, com um adicional relativo ao fato de estabelecer um pagamento forçado, obrigação de dar parte da renda, dos ganhos de capital. Até aqui se tratou como obrigação de fazer em razão do princípio da anterioridade da lei, posto na expressão “obrigado a fazer ou deixar de fazer em virtude de lei”. Se o valor maior da sociedade, agasalhado pelo Direito, é a propriedade, o Direito Tributário precisa das regras específicas, podendo significar uma agressão ou contradição, motivo por que é visto, por muitos, como excepcional. Por outro lado, o tributo é a forma mais antiga de remuneração do Estado, perdendo-se no passado as suas expressões mais remotas, e, ao longo da história da


humanidade, não foi concebida outra situação alternativa que o pudesse substituir. Ao contrário, foi melhorado o seu mecanismo de funcionamento, tanto na arrecadação, como na aplicação, mas longe ainda do razoável, porque os que mais ganham são, ainda, os que menos pagam, ofendendo uma de suas finalidades sociais: a redistribuição de rendas. Sem cumprir todos os seus objetivos, por simples vontade política dos governantes, ele é apenas a primeira das quatro formas de remuneração do Estado, justificado nas funções que este exerce nos campos da saúde, educação, segurança, transporte, administração etc. Negar a existência do tributo é matar o Estado enquanto gestor da res publiquae; é anular o seu papel no concerto das nações, bem como a instauração do trabalho escravo para todos quantos não possuem “capital próprio”. “Quem precisa do Estado é o pobre”, disse o cientista político Mangabeira Unger, em palestra da UERJ, assim todas as medidas que significam restrições na sua atuação rebatem como concreta diminuição de cidadania. São as finalidades sociais e políticas do tributo que justificam não só a sua existência, mas principalmente, a eficácia de seu mecanismo de funcionamento, as regras e os princípios de aplicabilidade e interpretação. A interpretação da norma tributária, saindo daquela reservada às leis em geral, é equivalente ou semelhante, àquela do Direito Penal, onde é impossível o exercício de analogia, a leitura extensiva e/ou exemplificativa, posta na expressão pro lege. É pelo ângulo do Direito Tributário como excepcional que se retoma a sua interpretação literal ou estrita, como forma de salvaguardar os interesses dos contribuintes, pois o que não está previsto e regulamentado não obriga a ninguém. Se a interpretação é assim tão restritiva, condicionando a aplicação aos estreitos limites de sua incidência, não deveria permitir dúvidas ou dupla interpretação, caso aconteça, adotase o in dubio pro contribuinte, embora não seja a corrente de maior aceitação nos meios públicos. A eficácia da legislação tributária repousa em coercibilidade comum, obrigação de dar (pagar o imposto) e de fazer (lançamentos, declarações, guias etc); e, especial: cadastro geral de contribuintes, credenciamento para atividades empresariais, atos da vida civil etc. O regular pagamento do tributo não impede a pessoa de praticar todos os atos jurídicos possíveis, todavia o inadimplemento desencadeará a sanção, as penalidades, sendo essas de natureza econômica: multa, juros e correção monetária; de natureza restritiva: descredenciamento para os atos da vida civil. O pagamento regular do tributo parte de um ato voluntário, isso significa o esforço de estar em dia com a obrigação, que nem sempre é realizado por todo o devedor, sujeitando-o às penalidades já elencadas. A trajetória da cobrança forçada, aquela fora do seu vencimento, pelas peculiaridades do lançamento, cobrança amigável, parcelamento, gigantismo da máquina administrativa, burocracia, registro na dívida ativa, ajuizamento (não

necessariamente nesta ordem), é bastante longa, motivo por que além da penalidade pecuniária existem as de natureza restritiva: momentos em que o interesse do contribuinte está voltado para certos atos civis, comerciais e financeiros, onde a presença do Estado se manifesta para exigir o pagamento do tributo como critério de validade desse ato. Se toda a cobrança de tributos dependesse apenas da execução fiscal, grande parte dos impostos indiretos seriam apropriados indevidamente e os diretos não seriam pagos. É pela coercibilidade restritiva que a Fazenda Pública traz o devedor para a confissão de dívida, o parcelamento, a negociação, a compensação etc. A arrecadação tributária tem um custo grande, diminuindo o seu impacto econômico na remuneração do Estado, assim a existência de penalidades restritivas se justifica no próprio mecanismo do Direito Tributário, está regulamentada na legislação, segundo os princípios já expostos e não é original do sistema tributário brasileiro. Entre as penalidades de natureza restritiva estão a certidão positiva de débitos fiscais, a não inscrição no Cadastro Nacional de Contribuintes e a impossibilidade de participar de concursos licitatórios. Todas estas situações previstas no ordenamento jurídico, cuja interpretação vista tão pacientemente, impedem o contribuinte de alegar “violação ao princípio constitucional da liberdade de iniciativa econômica”. Ele, como todos os que se propõem às atividades econômicas, sabem aprioristicamente da existência desse mecanismo coercitivo, portanto a sua liberdade de negociar pode ser exercida nos limites da lei tributária, ela só existe no imenso espaço que esses limites resguardam, a sua reivindicação fora deste espaço é demagógica, porque sem base técnica e fora do contexto político-jurídico. Pode ser impactante, num primeiro momento, para os desavisados, e, serviu apenas para uma recapitulação elementar.

“Se toda a cobrança de tributos dependesse apenas da execução fiscal, grande parte dos impostos indiretos seriam apropriados indevidamente e os diretos não seriam pagos.”

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GLOBALIZAÇÃO - RESPEITO AO CONSUMIDOR NO DOMÍNIO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS Letícia Sardas Desembargadora do TJ/RJ

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O Muro de Berlim A globalização teve na sua gênese dois fundamentais acontecimentos: o advento e a rápida expansão das novas tecnologias da comunicação e, no campo político, um acontecimento marcante, que emocionou o mundo pela força de seu simbolismo: a queda do muro de Berlim. Este inesquecível episódio que acabou com a guerra fria, transformou o mundo bipolar em um grande terreno somente dominado pelos E.U.A. Foram abolidas as fronteiras econômicas entre os povos dos diversos continentes e o capitalismo ganhou força no mundo moderno, comandado por modernas e poderosas empresas multinacionais com sedes nos países integrantes do bloco do primeiro mundo. A superpotência expandiu seus limites, rompendo as barreiras dos países subdesenvolvidos. O poder político dos E.U.A., alicerçado na tecnologia, que possibilita a troca instantânea de informações e a manipulação de grandes capitais, desencadeou a vulnerabilidade de todos os mercados, traço que se agravou nos países do denominado “terceiro mundo”. Neste contexto, restou seriamente prejudicada a capacidade de se concretizarem políticas econômicas diferentes e autônomas nos diversos países. O novo mundo unipolar assistiu, perplexo, o desenvolvimento do poderio econômico das grandes empresas, o desaparecimento das fronteiras, a adulteração cultural dos povos, a forte pressão do consumo, a massificação dos estereótipos sociais do primeiro mundo imposta pela avançada tecnologia da comunicação social. Surgiram novas realidades sociais em decorrência dos grandes acordos comerciais selados em nível mundial. A União Européia, assim como a América do Norte, transformou-se num palco de emigração massiva, fruto da procura da mão-de-obra pouco qualificada, de baixo custo, capaz de melhor atender a ganância especulativa das grandes potências econômicas. Neste quadro, vozes começaram a pedir o fim da “globalização capitalista”. Na constatação da irreversibilidade da globalização, o mundo clama por uma globalização solidária, num anseio de se colocar a tecnologia a serviço de uma maior regulação do mercado, capaz de produzir uma mais adequada distribuição de riquezas. A Regulação no Brasil Durante o período militar o governo brasileiro era o único responsável pela distribuição de energia elétrica, petróleo, gás e telefone. Estas atividades eram realizadas através das empresas estatais, que operavam sem fiscalização independente. O próprio governo militar, através de seus ministérios, monitorava o trabalho das companhias. Neste quadro, sobressaiam fatos conhecidos e sempre destacados: a ineficiência dos serviços; a desenfreada inflação; o assustador crescimento da dívida pública; os

“No modelo atual, as agências reguladoras brasileiras são departamentos autônomos que criam regras e fiscalizam o funcionamento das concessionárias de serviço público”

abafados casos de enriquecimento súbito e sem causa. As empresas estatais eram entregues aos apaziguados do círculo do poder, e eram vigiadas segundo critérios puramente políticos e não por critérios técnicos. A privatização, tal como uma pílula dourada, foi ofertada como a grande solução deste processo. A iniciativa privada assumiu as atividades que vinham sendo realizadas pela administração pública, deixando que o Estado se preocupasse somente com educação e saúde. O governo abandonou o papel de fiscalizador das companhias privadas, que passou a ser exercido pelas agências reguladoras. Com posse de Luiz Inácio Lula da Silva, as agências reguladoras passaram a ser alvo de críticas por parte dos integrantes da alta esfera do governo. No modelo atual, as agências reguladoras brasileiras são departamentos autônomos que criam regras e fiscalizam o funcionamento das concessionárias de serviço público. Uma das mais importantes atribuições das agências reguladoras brasileiras é monitorar as tarifas praticadas pelas concessionárias. É também atribuição das agências reguladoras a concessão de autorização para correção das tarifas e a fixação de parâmetros de qualidade para os serviços prestados. Os presidentes das agências reguladoras têm o nome escolhido pelo governo, necessitam de aprovação do Senado e cumprem um mandato de prazo certo, o que visa evitar a interferência do Estado nas empresas privadas. As agências reguladoras funcionam com verbas do orçamento da União, previamente aprovadas pelo Congresso Nacional, mas ficam sujeitas à liberação do governo. Um típico “torniquete orçamentário” vem sendo utilizado 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


Tenha um ou outro significado, há evidente receio do setor empresarial privado, desconfiado com a crescente e manifesta hostilidade demonstrada pela equipe governamental contra as agências reguladoras. Neste clima, os indexadores utilizados nos contratos das concessionárias sequer tem escapado das severas críticas da equipe econômica alçada ao poder no governo petista e um fato, neste contexto, tem se mostrado evidente: o rápido crescimento do “risco regulatório” no mercado brasileiro.

como forma de controle das agências reguladoras e as que não atuam da forma aprovada pelo governo, têm mais dificuldade em receber o repasse de suas verbas. Tal como no restante do mundo, a sociedade brasileira vem discutindo o papel das agências reguladoras, chegando à conclusão que seria um terrível retrocesso desfigurar o papel que vêm exercendo. A criação das agências reguladoras no Brasil marcou o diferencial, eliminando o uso do poder regulatório de forma politiqueira, eleitoreira e demagógica. De recente memória as concessões de rádio e de TV promovidas pelo Ministério das Comunicações no governo de José Sarney, como forma de barganhar os cinco anos de mandato presidencial. No modelo que serviu de inspiração ao brasileiro, as agências reguladoras prestam contas ao Parlamento, o que ainda não acontece no Brasil, vez que há um projeto de lei neste sentido tramitando no Congresso brasileiro. Um termo novo, de significado um tanto ou quanto obscuro, tem sido utilizado com freqüência no meio econômico brasileiro. Fala-se no PPP, como parceria-públicoprivada. Pode ser sinônimo de “privatização prudente”, ou, quiçá, de “privatização pactuada”, mas os críticos do governo lulista já começam a falar de “privatização petista”.

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Respeito ao Consumidor Brasileiro A proteção do consumidor é, sem dúvida, um dos maiores desafios da nossa era e tem representado, em todo mundo, um dos mais atuais e discutidos temas do direito. Não se pode esquecer que o homem, a partir do século XX, com a Revolução Industrial, vive um novo modelo associativo, que tem sido denominado de sociedade de consumo. Se nas sociedades primitivas o fornecedor e o comprador comerciavam através da barganha, numa evidente situação de equilíbrio das partes; o fornecedor passou a exercer a figura do mais forte, o que dita as regras, desestruturando e desequilibrando a balança da estabilidade social. Tornou-se necessária a intervenção do Estado nas suas três esferas, nestas relações típicas do direito privado. O Legislativo para formular as normas reguladoras das relações de consumo. O Executivo para implementar as normas. O Judiciário para dirimir os conflitos decorrentes da implementação das normas. Tema que sempre suscita debate é o relativo à caracterização do perfil do consumidor, vez que há flagrante diversidade entre as noções nas variadas ordens jurídicas. Sabe-se que consumidor não é uma mera atribuição de um status jurídico, mas o sujeito de uma relação jurídica, em decorrência do caráter dinâmico deste personagem da relação consumerista. Importante destacar, outrossim, a finalidade ou destino do bem ou do serviço, que não pode ser aquele que tenha uso profissional. Por fim, merece realce a qualidade daquele que ocupa o pólo passivo da relação consumerista, vez que a pessoa que fornece o serviço ou transmite o bem, deve fazê-lo com finalidade profissional. As normas consumeristas, seguindo tendência mundial, consubstanciam um arcabouço, formando uma “sobreestrutura jurídica multidisciplinar”, aplicável a todos os segmentos do mercado de consumo, não podendo ser afastado das demais relações jurídicas, mesmo que disciplinadas por leis especiais. Como lei mais nova e da mesma hierarquia das anteriores que disciplinam a matéria, as normas elencadas no Código de Defesa do Consumidor prevalecem sobre as leis anteriores e se aplicam às relações que envolvem a prestação de serviços, sejam eles serviços essenciais ou não, públicos ou privados, prestados por empresas públicas ou por empresas privadas ou privatizadas.


Tratando-se de relação de serviços ou de consumo, as leis consumeristas são as que recebem do legislador maior, através do expresso de comando constitucional, a incumbência de estabelecer uma disciplina única e uniforme para todas relações, prevalecendo naquilo que inovaram. O professor Pinto Monteiro apreciando a questão da extensão das normas consumeristas às pessoas coletivas, colocou, com propriedade, uma interessante questão: “será consumidor de serviço de telecomunicações a sociedade comercial que dispões de um serviço telefônico? E o advogado que se serve do telefone do seu escritório para contactar clientes?”. A questão não é tão simples como possa parecer aos mais desavisados estudiosos do tema, pois, como ressaltado pelo mestre de Coimbra, busca-se saber se a proteção assegurada aos utentes dos serviços de telecomunicações deverá ficar subordinada a um conceito puramente técnico, como o de consumidor final, ou se a proteção deve abranger todo e qualquer utente dos serviços de telefonia. O desembargador Sérgio Cavalieri Filho, um dos mais respeitados comentaristas dos direitos dos consumidores no Brasil, em acórdão proferido no julgamento da apelação cível n. 2002.001.10966, abordou o tema, ao se referir aos “bens de consumo intermediário”, dispondo: “Pessoa jurídica. Prestação de serviços. Incêndio acidental. Caso Fortuito. Dano material. Prova segura. Recurso não provido. Consumidor. Pessoa Jurídica. Bens de consumo intermediário a pessoa jurídica é consumidora porque utiliza como destinatário final e não como mera intermediária ou insumidora. É, pois, de consumo, regida CDC a relação jurídica existente entre fornecedora de serviços telefônicos e seus usuários, ainda que pessoas jurídicas (...) Desprovimento de ambos os recursos. Sentença Confirmada”. Uma excelente distinção entre definição de consumidor “geral” e consumidor “por equiparação”, pode ser encontrada no julgamento do agravo de instrumento n. 2002.002.07090, sendo relatora a desembargadora Maria Heleno Salcedo: “Agravo de instrumento. Exceção de incompetência. Ação declaratória. Processual Civil. CDC. Entendimento do juízo agravado de que estaria caracterizada relação de consumo entre as partes, facultando o ajuizamento da ação no domicílio da autora. Impossibilidade. A regra do art. 29do CDC, que estabelece mais um conceito de consumidor por equiparação, refere-se, tão somente, à caracterização da relação consumerista, independentemente da existência de qualquer aquisição ou utilização. Ao contrário da definição do consumidor geral, constante do caput do art. 2º da mesma lei, aquela norma contenta-se com a simples exposição abstrata às práticas comerciais e contratos nela previstos, mas nem por isso tem a amplitude de alcançar relações nãoconsumeristas de âmbito civil ou comercial, nos moldes da teoria maximalista. Pessoa jurídica que não é destinatária final dos produtos comercializados pela vendedora agravante.

“A criação das agências reguladoras no Brasil marcou o diferencial, eliminando o uso do poder regulatório de forma politiqueira, eleitoreira e demagógica”

Conquanto na relação jurídica travada entre as partes esteja presente o elemento objetivo produto e o subjetivo fornecedor, não há o outro elemento subjetivo, o consumidor, pelo que incide a regra do art. 100, IV, a , do Código de Processo Civil. Agravo o que se dá provimento. Decisão unânime”. Relevante ressaltar,em tempo de remate, que a liberalização do mercado, devido à sua estrutura e às características próprias do processo de liberalização, assim como em decorrência das tecnologias utilizadas e da natureza dos serviços prestados pelas empresas submetidas à regulação pública, impõe aos operadores e aos prestadores de serviços regulados, certas e determinadas obrigações, que devem ser cumpridas, exigidas, cobradas, não só pelas autoridades reguladoras nacionais, como pelo usuários dos serviços e, principalmente, por todos os que se preocupam com o maior dos males desta época de globalização, a “concorrência selvagem” que visa somente o lucro, distanciada dos direitos das classes desprivilegiadas. A advertência de Noam Chomsky é plenamente adequada: “Em qualquer país, há alguns grupos detêm o verdadeiro poder. (...) Ele está basicamente concentrado nas mãos de pessoas que determinam as decisões de investimentos – o que é produzido e o que é distribuído. Eles em geral formam a equipe do governo que escolhe as estratégias e fixam as condições gerais do sistema doutrinário”. “Uma das coisas que eles mais querem é uma população passiva e aquiescente. Então, uma das coisas que se pode fazer para lhes tornar a vida incômoda é não ser passivo e aquiescente”. 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


FERTILIZAÇÃO IN VITRO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS Roseli Nalin

Foto: Arquivo

Juíza Titular da 2ª Vara de Órfãos/RJ e Sucessões do Rio de Janeiro

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novo Código Civil em seu art.1.597 trouxe inovações quanto ao direito à sucessão legítima e testamentária, contemplando situações decorrentes do progresso científico, relativas à presunção de concepção no casamento. Dispõe neste particular que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido (inciso III); havidos a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga (inciso IV); e os havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido (inciso V). 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2006

A técnica de procriação quando homóloga utiliza-se exclusivamente de gametas masculinos e femininos do marido e mulher. Quando heteróloga utiliza-se do sêmen de outro homem, mediante prévia concordância do marido, mantendose sigilo sobre a identidade de doadores e receptores, hipótese que gera presunção absoluta de paternidade socioafetiva, pelo que, insuscetível de ser impugnada. Questão que está a gerar debates na doutrina é a inexistência de prazo para a concepção da inseminação artificial post mortem, eis que além dos direitos pessoais, há efeitos de ordem patrimonial a demandarem solução. O art.1.798 do novel Código Civil estipula como legitimados á sucessão “as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”. Ocorre que diante dos três últimos incisos do art.1.597 aqueles que ainda não foram concebidos, decorrentes de inseminação post mortem, também estão legitimados a suceder em face de presunção legal. No campo da sucessão testamentária prescreve o art.1.799, I que podem ser chamados a suceder “os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão”. Ainda, o art.1.800, § 4º dispõe que “se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberá aos herdeiros legítimos”, estipulando, assim, prazo para eventual prole (dois anos). Do contexto apresentado é certo que o legislador procurou que a sucessão fosse de pronto resolvida com o partilhamento da legítima. A dificuldade se apresenta na interpretação dos novos dispositivos do art.1.597 quanto à inseminação post mortem. Estando legitimados à sucessão somente os nascidos, concebidos ou, se ainda não concebidos, até dois anos após a abertura da sucessão, qual seria então a situação sucessória daqueles filhos havidos mediante inseminação homóloga ou heteróloga, ou de embriões excedentários, havidos a qualquer tempo? Na doutrina e legislação comparada o posicionamento é no sentido de que os filhos nascidos da inseminação post mortem não estão legitimados à sucessão, afastando a indefinição da partilha da legítima.  A posição doutrinária formada por estudiosos brasileiros da envergadura de Eduardo Oliveira Leite e Silvio Venosa é


no sentido de que, embora a pessoa nascida de inseminação post mortem seja filho, não sucede em razão da transmissão já ter ocorrido com a morte. Com efeito, em nosso sistema a lei vigente ao tempo da abertura da sucessão é que regula a capacidade para suceder, acabando por afastar da sucessão aquelas pessoas geradas após a morte do doador pelo meio conceptivo assistido. Preleciona o art.1.784 que “aberta a sucessão, a herança transmite-se desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”. De se ressaltar que o sêmem do marido há de ser utilizado após sua morte somente se houver manifestação do mesmo neste sentido, afora isto, deverá ser eliminado. Muito ainda se debate quanto aos embriões excedentários, ou seja, aqueles concebidos através da manipulação genética, mas que ainda não foram implantados na mulher. Seriam eles sujeitos de direito por reconhecidos como nascituros? Uma corrente sustenta que a lei não faz distinção quando se refere a “pessoa já concebida” e que, sendo assim, há de ser entendido tratar-se o embrião como sujeito de direito. Outro posicionamento, ao qual nos filiamos, é no sentido de que embora se trate de embrião, permanecendo em laboratório in vitro, não teria a mínima chance de progredir e nascer, a não ser quando implantado no útero materno, resultando que não poderá ser considerado sujeito de direito, eis que não se equipara ao nascituro. Soluções para as questões têm sido apresentadas pelos doutrinadores. Uma delas seria a desconsideração dos incisos do art.1.597, eis que no caput há presunção de concepção na constância do casamento, e aqueles incisos estariam fora das disposições insculpidas nos arts. 1.798 e 1.800. Aqui, necessário consignar que não obstante a lei referir-se a “constância do casamento” por certo que a família constituída pelo matrimônio nos dias atuais não é mais a única a merecer a proteção do estado. Devemos então entender que também aos filhos havidos por fecundação artificial, tratando-se de união estável, devem ser aplicadas as presunções de paternidade e maternidade inseridas na nova norma (art.1597). Uma outra hipótese seria de considerá-los herdeiros desde que o testador estipulasse neste sentido, pelo tempo que assinalasse, considerando o permissivo do art.1.800, §4º, situação que certamente geraria indefinição na partilha definitiva, e por conseqüência afetaria a segurança das relações jurídicas. Sugere-se também a alteração do art.1.798 para acrescer quanto àqueles que nascerem por inseminação artificial no prazo de até dois anos após a abertura da sucessão. Talvez esta a melhor orientação visando conjugar as normas com a seguridade jurídica. Lançada a polêmica questão que certamente em futuro próximo será objeto de inúmeros debates em Varas de Órfãos e Sucessões, essencial neste quadro apresentado, onde lei e doutrina buscam adequação às inovações da ciência, temos a convicção de que à pessoa gerada nas circunstâncias aqui apresentadas deverá ser preservado o direito ao conhecimento de sua descendência genética, resguardando-se todos os

“Devemos então entender que também aos filhos havidos por fecundação artificial, tratando-se de união estável, devem ser aplicadas as presunções de paternidade e maternidade inseridas na nova norma (art.1597).”

direitos fundamentais da pessoa humana, protegidos pela Magna Carta. O tema além de novo é bastante abrangente, sendo que cada dispositivo invocado lança outras inúmeras questões que não nos permite agora debater pela singeleza da exposição. Concluindo, estamos convencidos de que o sentimento mais próximo à verdade daqueles havidos pela inseminação post mortem está nas palavras da Dra.Renata Raupp Gomes, Professora assistente da UFSC, que abordando o tema na obra Bioética e Biodireito (Editora Forense, pág.353) assevera:  “... o que se propõe é que o parâmetro biológico prevaleça apenas na insuficiência de outro melhor, já que a consangüinidade não é garantia de amor incondicional ou de afeto automático”. Venham as inovações científicas e estaremos aqui, legisladores, doutrinadores e aplicadores do direito, conjugando o legal e o justo para que nossa sociedade venha a ter por referência neste novo campo de estudo a responsabilidade pela dignidade da existência do ser humano. 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


Um sopro de mudança Carmen Fontenelle

Foto: Arquivo

Vice-presidente da OAB/RJ

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ue momento especial estamos vivendo! De forma irreversível as mulheres despontam em todo o mundo como líderes ou futuras líderes, num compasso sucessivo e impactante. Chegam aos mais altos postos sem o uso de força, negociatas ou trocas, lançando mão apenas de sua capacidade. A sensibilidade e a franqueza da mulher seduzem cada vez mais no sentido de se buscar novos tempos. Hoje, a ascensão feminina representa um sopro de mudança. Esta esperança na renovação e na expectativa de que as mulheres sejam capazes de imprimir ao exercício do poder algo diferente é fato que se demonstra em qualquer estatística: a Organização das Nações Unidas apresentou em 2005 um estudo que mostra o crescimento, em progressão geométrica, da participação da mulher nos postos de liderança. Segundo a pesquisa da ONU, a média mundial de mulheres em

o que possibilitou às mulheres modernas um avanço das trincheiras e a conquista de espaços até então inacessíveis. Todo o esforço dos últimos anos ajudou a construir o que faltava, ou seja, identidade e referências próprias. Cada vez que a sociedade se depara com uma mulher no comando, soa menos estranho. Quem sabe não chegará o dia em que isto será comum, afinal somos mais de 50% da população. Hoje já possuímos nossos próprios referenciais, ou seja, mulheres que se destacam no mundo, independentemente de qualquer figura masculina. Como esquecer o caso da ministra Ellen Gracie, eleita para comandar a mais alta corte do país. Ou ainda, de algumas que alcançaram cargos de líderes de nações, como Angela Merkel, na Alemanha, e Ellen JohnsonSirleaf, na Libéria, entre outras. Mas considero o emblema desta nova era a recém-empossada presidenta do Chile,

“Se a natureza fez das mulheres as geradoras de vida, chegou a hora de assumirmos o nosso papel na sociedade e nas instituições para conceber esta nova era.”

cargos eletivos de primeiro escalão é de 9%, quase o dobro dos cerca de 5% do início do século XXI e bem superior à marca registrada nos anos 90, que não ultrapassava os 2%. Os avanços são notórios, mas certamente ainda há um longo caminho a percorrer. Caminho que começou a ser trilhado numa época de poucas combatentes, que venceram inúmeras barreiras a um alto custo, pago até mesmo com vidas. O feminismo era, então, repudiado principalmente pelas próprias mulheres, insatisfeitas com um estereótipo criado para o movimento, de perfil masculinizado. Isso acabou. A luta feminista de longa jornada se divorciou das atitudes agressivas e de confronto, para assumir um comportamento alicerçado essencialmente na competência e dedicação. A maioria das mulheres hoje é feminista por essência, fazendo de suas escolhas as armas para atingir seus objetivos. Nossas antepassadas conseguiram diluir o preconceito,

Michele Bechelet, que chegou ao Poder com personalidade e feminismo autênticos, pavimentando um caminho novo para todas nós. Elas personalizam todas as mulheres contemporâneas e a possibilidade de sermos as protagonistas e não assistentes da história. Podemos, sim, superar o preconceito e a discriminação, que apesar de muitas vezes subliminares estão lá para nos impedir de galgar postos mais altos. Com competência e trabalho, sem perdermos as nossas características. Nossa essência feminina é capaz de oferecer a perspectiva de um mundo melhor. Se a natureza fez das mulheres as geradoras de vida, chegou a hora de assumirmos o nosso papel na sociedade e nas instituições para conceber esta nova era. Cada vez mais fica evidenciada a possibilidade de mudança, de fazer com que os sonhos se tornem realidade. É isso que comemoramos no Dia Internacional da Mulher: a realização e o sucesso de nossas lutas. 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


NOVAS POSSIBILIDADES: terceirização de serviços prisionais como uma das alternativas  Elizabeth Sussekind Pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, Membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Ex-Secretária Nacional de Justiça

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odos concordamos que a custódia de presos consiste em um dos serviços públicos mais complexos, difíceis de prestar e cujos resultados têm estado sempre muito aquém do desejável. A constatação independe do montante de recursos aplicados e dos esforços de muitas das autoridades e profissionais envolvidos. Inequivocamente, a prisão fechada significa modelo esgotado, que reúne em si as condições de sua própria ineficiência e incapacidade. Deve ser utilizada o mínimo possível, sendo reservada somente a casos graves

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de criminosos que precisem ser mantidos isolados do convívio social.   A possibilidade de obtenção de resultados positivos no setor demanda a implementação rígida de conjuntos de medidas, ao longo de alguns anos. Refiro-me a políticas públicas que incluam serviços de diferentes Secretarias de Estados e Municípios e Ministérios (Saúde, Educação, Trabalho, Previdência Social). Qualquer possibilidade de redução de problemas na área prisional depende diretamente de política integrada, embora suas


possibilidades de concretização e sucesso estejam adstritas à adesão e as condições de cada unidade da Federação.   A expansão do uso de serviços terceirizados no sistema prisional insere-se na necessária busca de modelos que superem impasses conhecidos e representem evolução na concepção da custódia de condenados. Entendo que cabe aos estados e ao Governo Federal, através do Ministério da Justiça, procurar imediatamente estratégias que viabilizem o cumprimento das funções atribuídas ao sistema e reguladas pela Lei de Execuções Penais.     Entretanto, ainda que a área seja objeto de críticas contundentes constatamos freqüente e forte reação contra mudanças propostas, quando estas pretendem mais que o imediato e o superficial. Várias instituições, e a população, recusam-se a aceitar inovações. Cada proposta que se afasta da receita tradicionalmente utilizada provoca insegurança; alega-se elevado risco político, insuficiência de recursos, necessidade de tempo e “preparo”. Como se fosse possível alterar significativamente o sistema prisional a que chegamos, neste país, sem a implementação de medidas radicalmente diferentes das que vimos utilizando. O que vem sendo feito descontenta a todos – todos, repito – que conhecem, são responsáveis, trabalham, submetem-se, têm parentes, estudam ou militam no universo prisional.  Portanto, por que deveríamos continuar na mesma direção? É imprescindível que outros modelos sejam concebidos e testados, sabendo-se que alguns deles serão descartados após a experiência da implementação. Temos condição de afirmar que este modelo que adotamos deve ser descartado e substituído.   O tema tem permanecido em aberto e polêmico, notadamente por algumas razões que merecem menção.    Primeiramente, devido à desinformação. A quase totalidade das pessoas que se apresentam ou são chamadas a opinar não conhece estabelecimentos cujo conjunto de serviços esteja terceirizado. Opinam em tese. Citam dados contidos na Internet, referentes a outros países. Portanto, não analisam, concretamente, o desempenho de um modelo em implantação em dez cidades do país.  Ainda, é fato que a terceirização assusta os profissionais mais conservadores, que se defendem da idéia argumentando, simplesmente, ser dever do Estado a custódia de presos. Acrescente-se o fato de que alguns profissionais do sistema prisional não desejam e não toleram mudanças. E isso por várias razões, mas detenho-me apenas na que implica em concorrência, na demonstração de que é possível a prestação dos serviços de forma muito melhor. A criação de um novo padrão de eficiência vai evidenciar a baixa qualidade dos serviços ora prestados; a situação é fruto de falta de investimento, baixos salários e inadequadas condições de trabalho, ausência de planejamento, estratégia, metodologia, renovação, controle e cobrança por parte dos Estados.   A maior parte dos críticos à introdução de outros modelos de custódia entende que o Estados devem continuar

a executar os serviços por serem estes privativos do poder público. Não reconhecem o Estado quando gestor de um contrato que regula a prestação dos serviços. Contradizem a tendência moderna presente em aeroportos, estradas de rodagem, hospitais, bancos, dentre outros, em que a prestação de serviços é repassada a empresas especializadas e entidades da sociedade civil.  Não são funcionários públicos que devem, necessariamente, cozinhar, medicar, advogar, limpar, guardar presos. No sistema de todo o país estão montadas estruturas pouco funcionais, que jamais contemplam a totalidade dos serviços previstos em lei e que dependem de concursos, vagas, aprovação de leis estaduais, recomendações políticas e tantas outras circunstâncias. Ouso acrescentar, ainda, que os administradores dos Estados não recebem instrução regular que os permita desenvolver todas as atribuições a que estão incumbidos. Falham na administração desse complexo conjunto de atividades tão diferenciadas, o que é compreensível e até esperado. Outra crítica é provocada pelo desconhecimento do modelo, provocando confusão entre terceirização do conjunto dos serviços e a privatização da custódia de condenados. A privatização significa o Estado cedendo sua obrigação e o direito de guardar presos à iniciativa privada, como está sendo implantado em dez estabelecimentos do Chile, para manter o exemplo na América Latina. Não existe no Brasil. Com as informações de que disponho até o momento, não recomendaria tal modelo, caso houvesse demanda por aqui, por entender que pode provocar pressão por aumento de pena, dentre outras questões. De qualquer modo, não é este o modelo ora analisado.   A terceirização do conjunto dos serviços, que o Estado não tem sabido e desejado prestar, significa o repasse dos mesmos a empresas especializadas. Não há redução de prerrogativas ou obrigações. A inteira responsabilidade pela custódia continua com o Estado. Ele será acionado diante de problemas das áreas criminal ou civil. A execução da pena continua sendo acompanhada e conferida pelo Judiciário.  Não vejo necessidade, ou interesse para o contribuinte e para a população prisional, de que a situação de caos que nos persegue seja mantida, por mera declaração de supostos princípios e reiterado desconhecimento. Como se fosse de escolha, e adequada e positiva para a sociedade. A divulgada prática atual – e os elevadíssimos índices de reincidência - exemplificam muito bem a que me refiro.  Neste momento todos – e todas – rendemos justifica homenagem à primeira mulher no comando do mais elevado tribunal do Brasil, reconhecendo a evolução do Direito e dos costumes culturais e políticos. Cabe esperar que a evolução seja estendida a outras áreas do convívio social, incluindo a que regula a convivência dos criminosos que são presos, e que outras possibilidades sejam seriamente consideradas. 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49


CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS DISCRICIONÁRIOS DAS AGÊNCIAS REGULADORAS Vanuza Vidal Sampaio

Foto: Rafael Magalhães

Advogada MBA em petróleo e gás pela COPPE/UFRJ

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discricionariedade dos agentes do poder público, diferentemente do entendimento daqueles que o exercem, não se dá graças ao seu juízo pessoal quanto ao que pode ou não ser feito, uma vez que seus atos são só aqueles alçados à nomenclatura de “permitidos por lei”. Conforme leciona Maria Helena Diniz1, discricionariedade administrativa é o poder do agente público de agir ou não 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2006

agir, de avaliar ou de decidir atos de sua competência, dentro dos limites legais, com vistas ao interesse público. É, na lição de Celso Antonio Bandeira de Mello2, “a margem de liberdade conferida pela lei ao administrador para que este cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica diante do caso concreto”. A aplicação da norma deve ser feita mediante sua


interpretação. E é importante que a inteligência interpretativa seja lógica e razoável, além de cautelosa, pois é dever do agente administrativo ser cauteloso especialmente ao lavrar qualquer autuação devido aos efeitos advindos com esta. Nesta diretriz hermenêutica, não cumpre à pública administração prejudicar seus administrados com excessivos rigores e atitudes desmesuradas e desmedidas por parte daqueles que são os emissários fiscais das entidades fiscalizadoras. A atividade administrativa, dessa forma, deve desenvolverse no sentido de dar pleno atendimento ou satisfação às necessidades a que visa suprir, em momento oportuno e de forma adequada. Impõe-se, portanto, aos agentes administrativos, em outras palavras, o cumprimento estrito do “dever de boa administração”. O processo administrativo, apesar de não ser procedimento judicial, deve seguir a norma constitucional do devido processo legal. O artigo 5.º, LV, diz, expressamente, que o contraditório e a ampla defesa são assegurados aos litigantes tanto nos processos judiciais quanto nos administrativos. Por outro lado, O artigo 5.º, LIV, com fundo à Carta Magna do Rei João Sem Terra vem dizer que ninguém se poderá privar de seus bens sem o devido processo legal (due process of law). Quando se trata de processo administrativo no âmbito das Agências Reguladoras, tem-se que o imenso poder a estas concedido de simultaneamente normatizar, fiscalizar e julgar os recursos efetuados leva, como em qualquer outra situação parecida, a exageros. O Brasil não mais é uma ditadura. Não cabe mais em seu ordenamento jurídico a imposição de normas “de cima para baixo” sem apreciação judicial nem devido processo legal. Indubitavelmente, o princípio funcional e regulatório das referidas agências se deu em face de um mercado desigual, promovendo amplos poderes conjuntamente com o CADE às Agências Reguladoras, para desmantelar os verdadeiros cartéis, prestigiando os princípios norteadores do direito econômico. Por óbvio, o fim precípuo da instituição das agências reguladoras foi o de diminuir o aparato estatal em prol da melhoria da qualidade dos serviços públicos ofertados aos administrados. Há aqui inequívocos contornos de políticas públicas inerentes à materialização do direito regulatório de que é expressão o poder normativo das agências reguladoras. Por essa razão, as agências detêm o poder/dever de editar atos administrativos de regulação, por constituírem fundamentalmente veículos de políticas públicas. Neste diapasão, ao baixarem seus atos administrativos de regulação, as agências reguladoras devem respeitar os princípios da legalidade, igualdade, moralidade, publicidade, e eficiência consagrados pelo art. 37, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil, bem como os princípios da finalidade, da motivação, da razoabilidade e da proporcionalidade expressamente previstos no art. 2°, caput,

da Lei n° 9.784/99. Portanto, a incorporação das agências reguladoras no ordenamento jurídico brasileiro é possível, como exigência de descentralização administrativa, para maior celeridade e eficiência na prestação e fiscalização dos serviços públicos, desde que, porém, respeite os princípios e preceitos constitucionais e as regras básicas fixados pelos Poderes Executivo e Legislativo, na lei de sua criação (centralização governamental). Logo, a Administração Pública que incorrer em desvio de poder estará sempre sujeita a reprimenda do Poder Judiciário. Em preciosa monografia, Miguel Reale3 já admitia o exame de mérito administrativo, para quem “Digna de encômios é, por conseguinte, a jurisprudência que, vencendo preconceitos inspirados por falha compreensão do princípio da distinção dos Poderes, salvaguarda não só a faculdade, mas o dever que tem o magistrado de ‘apreciar a realidade e a legitimidade dos motivos em que se inspira o ato discricionário da Administração4’ por ser possível o controle judicial do ato administrativo também pelo seu aspecto intrínseco (motivos e razões) para se evitarem os abusos e injustificáveis lesões de direitos individuais.” Sob a inspiração de Mostesquieu, desde os primórdios do século XX, é inadmissível em um Estado Democrático de Direito a existência de atos praticados pelo Poder Executivo que não possam ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário. Nesse sentido, corroborando com a tese acima exposta, de grande valia artigo5 da Ministra Eliana Calmon do Superior Tribunal de Justiça, onde afirma: “O Judiciário é insubstituível na solução dos conflitos e, constitucionalmente, tem garantia do monopólio da Jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF/88). Seu limite está na lei – princípio da reserva legal. O princípio da reserva legal está sendo, modernamente, relativizado ao permitir ao julgador imiscuir-se nas razões de conveniência e oportunidade dos atos administrativos, a fim de examiná-los pela finalidade, razoabilidade e moralidade.” Conclui-se nestas singelas linhas que a discricionariedade administrativa foi instituída para o bom funcionamento da Administração Pública, mas o controle de sua legalidade não pode refugir ao Poder Judiciário, inclusive quanto a análise de seu mérito. Não devem os operadores de direito admitir que a realidade prática distancie a discricionariedade dos estritos lindeiros da legalidade, buscando-se acabar com seu movimento pendular de dilatação e contração proporcional ao maior ou menor grau de intervenção do Estado na ordem social e econômica. Notas: Dicionário Jurídico, vol. 2, Saraiva, 1998, pág. 190 Discricionariedade e Controle Jurisdicional, 2ª ed, Malheiros, 2003, pág. 48 3 Revogação e Anulamento do Ato Administrativo, pág. 94, Forense 4 Assim proclamou o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 17.126 5 Palestra proferida, no dia 04 de abril de 2003, no Seminário sobre a Justiça, promovido pelo Conselho da Justiça Federal, em Brasília. 1 2

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DO PARADOXO DA REGULAMENTAÇÃO DO INSTITUTO DA UNIÃO ESTÁVEL Maria Regina Nova

Foto: Arquivo

Advogada

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nserido no Código Civil Brasileiro, em vigor desde janeiro de 2003, o instituto da união estável passou a fazer parte do corpo organizador das disposições legais da sociedade civil, consolidada, de maneira pragmática, essa forma de família no nosso ordenamento jurídico. Considerando-se o lapso temporal da vigência da referida disposição normativa, já se mostra possível proceder a uma análise de sua conseqüência no campo social e jurídico,

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destacando os conflitos advindos da regulamentação desse tipo de união, surgida e estabelecida de maneira absolutamente livre, desprovida, portanto, de qualquer formalidade. Com efeito, a normatização estabelecida na Lei Civil para balizar a existência de uma relação que tem como opção o desejo de um outro tipo de conjugalidade, afastado daquele preestabelecido pelo Estado, acabou,


naturalmente, por esbarrar em contradições. Afinal, é o Estado adentrando num espaço do não instituído por sua própria natureza. Se por um lado, é certo que o reconhecimento do Estado a esse tipo de união mostrava-se necessário, sua regulamentação, entretanto, revela-se contestável. Afinal, passou-se a questionar se é justo impor ao Estado regras de conduta para um tipo de relação que tem como essência exatamente não estar sob a égide das normas legais. Vislumbra-se, na regulamentação da união independente, uma tendência moralista (equivocada) do Estado, como se não conseguisse aceitá-la como uma forma de família, deixando implícito o desejo de resgatá-la da “imoralidade”. E aí reside o excesso e a contradição, criando um paradoxo inerente à essência do tema, que, repita-se, buscava a proteção do Estado, mas não parece comportar uma rígida regulamentação que acabou por tornar a união livre símile ao ato formal do casamento civil.

estabelecidas sem formalidades desde aquela época, esse tipo de união afetiva era vista como uma “relação desonesta”, desprovida, portanto, de consideração. Com a evolução dos costumes, e a conseqüente alteração dos valores basilares da vida em sociedade, passou-se a olhar a relação informal sob uma ótica mais respeitosa. Destaque-se que não se está aqui referendando o concubinato adulterino, instituição mantida até os tempos atuais e normatizada no Código Civil brasileiro como qualificação das relações constituídas com pessoa casada de direito e de fato, geradora, porém, de efeitos patrimoniais pela sociedade efetivamente celebrada. A proteção que se requer do Estado é, assim, para o “concubinato” não adulterino pelo princípio da monogamia ordenador das relações afetivas no Brasil.

DA ORIGEM DO TEXTO NORMATIVO Primeiramente, relembre-se que o texto normativo foi objeto de projeto datado de 1975, e que, por isso, revelouse significativamente defasado diante da própria e natural evolução dos costumes da nossa sociedade. Desse modo, sua regulamentação acabou efetivada com embasamento em situações já bastante ultrapassadas, inobstante todas as alterações procedidas, não se mostrando em sintonia com a realidade atual diante da dinâmica da vida moderna. Analisando-se a regulamentação da união estável pelo aspecto legal, pondera-se o fato de somente ter sido ela efetivada quando já instituído o divórcio sem restrições no Brasil. Afinal, o reconhecimento, de forma ordenada desse tipo de união, mostrava-se necessário quando eram os conviventes impedidos de casarem-se por força da impossibilidade de desfazer-se, legalmente, o vínculo do matrimônio. Nesses casos, muitas injustiças eram sem dúvida cometidas, pois era inevitável a existência de relacionamentos entre pessoas que conviviam afetivamente ostentando uma comunhão de vida com a efetiva intenção de constituir uma família, mas que não podiam concretizar o desejo, presos que estavam ao liame do matrimônio anterior, já, de fato, desfeito.

A denominação “união estável”, afinal empregada para as relações tidas como honestas, surgiu, por isso, plenamente justificado pela necessidade de expurgar-se a carga negativa, pejorativa e, portanto, preconceituosa que o termo concubinato carregava. A união estável se caracteriza, enfim, como o concubinato não adulterino.

DA EVOLUÇÃO DAS RELAÇÕES AFETIVAS INFORMAIS Fazendo-se um breve retrospecto a respeito das relações afetivas não cobertas pelo manto do ato oficial do casamento, é de ser lembrado que constituem elas uma instituição jurídica já bastante antiga, remontando à história da Grécia antiga. No Direito romano, o concubinato passou a ser considerado como um “casamento inferior”, qualificado de “2º grau”, já contando, entretanto, mesmo que de maneira acanhada, com o reconhecimento do Estado. Na realidade, embora freqüente a existência de relações

DA REGULAMENTAÇÃO LEGAL A primeira disposição normativa sobre esse tipo de relação informal foi elaborada na França em 1912, considerada, por isso, como “a pátria do direito concubinário”. No Brasil, o reconhecimento legal da união estável como entidade familiar, ocorreu com a Constituição Federal de 1988, após, é certo, já ter o Supremo Tribunal Federal, através das Súmulas 380 e 382 (que já estabeleciam direitos para a concubina), plantado o esteio para a evolução desse instituto. Como entidade familiar, a questão foi, então, transportada do campo do Direito das Obrigações para o Direito de Família.

“Com a evolução dos costumes, e a conseqüente alteração dos valores basilares da vida em sociedade, passou-se a olhar a relação informal sob uma ótica mais respeitosa.”

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“Conclui-se, de seu exame na prática, que o texto normativo caracterizador da união estável incorreu no equívoco de igualizar a relação afetiva estabelecida de forma livre e que assim pretendia se manter, à instituição do casamento.”

A Constituição Federal de 1988 já encontrou a questão bastante maturada pelas decisões jurisprudenciais proferidas a respeito, como acontece, em geral, com a criação de um sistema de relações jurídicas. Em conseqüência, surgiram as disposições específicas para a regulamentação do assunto, o que foi feito em primeiro lugar, com o advento da Lei 8.971 em 1994 e, posteriormente, com a Lei 9.278 de 1996. Afinal, é, sem dúvida, sobre as vigas mestras da Constituição Federal que repousa a estrutura do ordenamento jurídico. Porém, também é certo que, enquanto não chamadas a atuar na vida cotidiana através dos instrumentos processuais, as normas constitucionais permanecem numa região periférica. Comparando-se a norma legal elaborada em 1994, de forma bastante acanhada, ao Código Civil atual, verifica-se o quanto expressiva foi a evolução dessa matéria no sentido de equipará-la ao instituto do casamento, tornando-a, afinal, uma união cravada de direitos e deveres, ou seja, acabou-se formalizando uma união estabelecida, por opção, afastada de convenções. DA INSERÇÃO DO TEMA NO CÓDIGO CIVIL ATUAL O Código Civil atual, dedicando um título ao instituto da união estável como entidade familiar, incorporou-o ao livro do “Direito de Família”(Livro IV) - composto dos artigos 1723 a 1727, consolidando, repita-se, esse tipo de família no nosso ordenamento jurídico. Artigo 1723: 54 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2006

“É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Do conceito acima transcrito, extrai-se, sem o menor esforço, a absoluta vulnerabilidade a que estão expostos os parceiros que mantêm uma união afetiva informal. Com efeito, a princípio, vislumbra-se um limiar bastante estreito entre essa forma de união e o relacionamento afetivo qualificado de namoro nos dias atuais, pois esse tipo de relacionamento também pode caracterizar-se por uma “relação pública, contínua, duradoura”, mantendo-se os companheiros leais um ao outro e terem a pretensão de, “um dia”, constituir uma família. Por outro lado, constata-se que a caracterização da união estável ficou restrita ao julgamento do subjetivo valor da “intenção” das partes, o que se revela extraordinariamente frágil diante dos rígidos direitos e obrigações estabelecidos pela lei, que, paradoxalmente, tornou-a semelhante ao casamento civil. No § 1º do referido artigo, o Código Civil, mantendo o conceito instituído na lei 9.278/1996, estendeu, expressamente, o reconhecimento legal da união estável para a relação entre os separados de fato (situação já considerada através de decisões jurisprudenciais). No seu artigo 1724, consolidou a Lei Civil a imposição de obediência dos companheiros aos deveres de respeito e assistência, guarda, sustento e educação dos filhos, ampliando-os com a inserção do termo lealdade, o que é interpretado, por analogia ao casamento, como dever de fidelidade (com efeito na assistência alimentar), pois não se admite, como união estável, a relação promíscua. E, na esteira da evolução das decisões jurisprudenciais, instituiu a lei um regime de bens para a união estável - o da comunhão parcial de bens – artigo 1725, que compreende a divisão de aquestos, ou seja, dos bens adquiridos onerosamente durante a convivência (equiparando-se ainda mais essa relação à instituição do casamento). A questão dos bens, assim, não se refere mais à presunção do direito à comunhão, pois não se questiona o esforço comum dos conviventes na aquisição do patrimônio a ser considerado partilhável (aplicando-se, é certo, as exceções estabelecidas para o ato civil da união legal). Também à similitude do casamento (pacto ante-nupcial), restou mantida a ressalva da possibilidade de convenção entre as partes, agora através de contrato escrito, dispondo de forma diversa sobre a questão patrimonial (“pacto da união estável”). Consolidou a Lei Civil a facilitação para a conversão da união “livre” em casamento através da disposição contida no artigo 1726, (fazendo-se uso de prova testemunhal, com dispensa de proclamas). E, por fim, como já mencionado, o Código Civil acabou por diferenciar, expressamente, o concubinato da união estável, normatizando aquele tipo de relacionamento através


da norma inscrita no artigo 1727, como relações adulterinas: estabelecidas entre homens e mulheres impedidos de contraírem matrimônio. Não restou estabelecido o dever de coabitação; Não exigiu a norma legal, para seu conceito, a existência de prole; Não inseriu a Lei dispositivo exigindo um prazo mínimo de convivência, ficando de vez abandonado o critério temporal previsto na Lei 8.971 de 1994; Primordiou, a Lei, a intenção dos conviventes. O Código Civil assemelhou a situação do companheiro também no campo do Direito sucessório, previdenciário, no processo de adoção, submetendo os que convivem de forma “informal” à quase todos os preceitos legais instituídos para o cônjuge. DA EVOLUÇÃO DO INSTITUTO DA UNIÃO ESTÁVEL Traçando-se um paralelo entre o regramento instituído na Carta Magna e os estabelecidos na Lei Civil, constatase, insofismavelmente, sua evolução no sentido de estender à união estável, repita-se, a formalidade do ato civil do casamento. A união afetiva acabou, assim, eivada por normas, que a acompanham, conseqüentemente, até o momento de sua dissolução diante do comprometimento com as severas disposições que traçam seus contornos e limites, a ponto de alcançar, a Lei, a presunção da vontade dos que mantêm esse tipo de relação. Do conceito da união estável preconizado no Código Civil extrai-se, sem esforço, a vulnerabilidade a que ficaram expostos os conviventes no Direito brasileiro, restringindo o Estado um dos princípios fundamentais do direito individual, ao conceder ao Judiciário o poder de interferir na liberdade de ação do sujeito, avaliando seus desejos e delimitando um modo de agir dentro de um valor absolutamente subjetivo, mostrando-se, por isso, premente a necessidade de normas complementares, de modo a proteger e garantir ao indivíduo seu direito constitucional de livre arbítrio, certamente que no sentido honesto da expressão. DA AUSTERA REGULAMENTAÇÃO ESTABELECIDA DA CONSEQUENTE EXTINÇÃO DAS UNIÕES INFORMALMENTE ESTABELECIDAS Analisando-se os efeitos da regulamentação da união estável, conclui-se, impositivamente, que, da maneira como acabou instituída, representou, sem dúvida, um paradoxo. Afinal, a característica básica desse tipo de união é exatamente a de fugir das solenidades, sendo certo que, após a instituição do divórcio livre no Brasil, as pessoas só não se casam se não desejarem formalizar a relação. Na realidade, testifica-se que, na prática, houve um comprometimento das relações afetivas informais diante do receio de verem os conviventes sua vontade, sua liberdade

de sentimento, delimitada, subjugada a austeros direitos e deveres, aos quais impunham eles resistência. Afinal, não parece ser mais permitido estabelecer-se uma simples união afetiva de forma pública, duradoura, leal, afastada dos pragmas do casamento civil. E, daí, eclodiu, conseqüentemente, a expressiva procura de clientes aos escritórios de advocacia temerosos com as conseqüências que possam advir de relacionamentos estabelecidos, por natureza, diferente dos instituídos por Lei, onde não há a intenção de constituir uma família normatizada pelo Estado. Na busca por orientação sobre a forma de descaracterizar a relação afetiva que se tornou notória, contínua e se estende por largo período, considerando-se o constrangimento que causa a imposição do contrato convencionando normas distintas das legalmente estabelecidas (pacto da união estável), não são poucos que concluem por ser mais seguro realizar-se um casamento, onde as regras já estão solidificadas e indene de dúvidas, do que viver um relacionamento cuja essência mostra-se absolutamente vulnerável à interpretação dos julgadores (não se olvidando, é certo, dos instrumentos probatórios). Por parte dos que não pretendem formalizar a situação vivenciada, nem se submeterem ao regramento legal, surge, não raras vezes, o questionamento sobre a possibilidade de realizar-se um “pacto de namoro”! Diante da inexistência desse procedimento, muitos decidem por alterar o modus procedendi nas relações que se encontram na fase da experiência da paixão, pondo, por vezes, fim a uma afetividade que poderia tornar-se uma verdadeira comunhão de sentimentos! Clama-se, por isso, pela urgente necessidade de normas complementares à Lei Civil, de modo a que, sem deixar o Estado de respeitar e proteger, quando se mostrar necessário, todas as relações afetivas estabelecidas de forma honesta, ressalvar as garantias dos que não pretendem viver o amor sob a ótica do sistema jurídico convencional, preservando, assim, o direito constitucional do indivíduo à liberdade de ação. Conclui-se, de seu exame na prática, que o texto normativo caracterizador da união estável incorreu no equívoco de igualizar a relação afetiva estabelecida de forma livre e que assim pretendia se manter, à instituição do casamento. Da maneira genérica como acabou sendo regulamentado o instituto da união estável, silogiza-se que houve uma indiscutível e expressa ingerência do Estado na liberdade de ação do sujeito, o que poderá provocar, presume-se, a extinção desse tipo de relação. Mostra-se, portanto, inconteste, que a regulamentação da união livremente constituída, da forma consolidada na Lei Civil, está inibindo sobremaneira as relações informais, fazendo com que as pessoas se preocupem mais com a maneira “legal” de se relacionarem, do que com a essência do amor que deve nortear as uniões afetivas, conceituado pelo inesquecível Carlos Drumond de Andrade, como “a razão de ser”. 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 55


A SOCIEDADE SOMOS TODOS NÓS, CIDADÃOS Elizabeth Maria Gomes de Souza Oliveira

Secretária de Justiça e Assistência Judiciária Municipal de Campos dos Goytacazes/RJ

“Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço”.

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a presteza de quem defende interesses pessoais, por mais escusos se apresentem. Exemplo típico: o chamado crime passional em que o indivíduo a pretexto de “lavar a honra”, comete brutal assassinato, recusando-se a avaliar a enorme distância entre a natureza do mal que sofreu e o mal que está produzindo, algo como jogar uma bomba na casa do vizinho porque seu carro esbarrou em nosso muro. Normalmente, mesmo aqueles que cogitam apenas do bem, convivem pacificamente com o mal e até se envolvem com ele por fraqueza de múltiplas formas: O cigarro é um flagelo social. Provoca variados distúrbios de saúde abreviam existências, ... No entanto, milhões de pessoas fumam, após a iniciação feita geralmente na idade escolar. É que ao adolescente pesa o constrangimento de sentir-se diferente

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al tendência está tão arraigada na criatura humana que as pessoas parecem não perceber que agem com maldade. Os piores facínoras encontram amplas justificativas perante si mesmos, para seus atos antisociais. Al Capone considerado o inimigo público nº 1 nos Estados Unidos afirmava não saber porque era perseguido pelas autoridades, já que proporcionava prazeres ao povo, ajudando-o a divertir-se. Mafiosos sanguinários referem-se aos crimes que praticam como “circunstanciais”, próprios de seus negócios, sem nenhuma intenção dolosa. Tiranos cometem atrocidades proclamando defender o bem-estar social e o progresso da nação... O egoísmo sempre encontra justificativas para toda a sorte de inconseqüências, desenvolvidas e consumadas com

(Paulo – Romanos – 7.19)


entre os companheiros fumantes. Então ele assume o vício, tornando-se prisioneiro dele, por imitação. Há um acidente de trânsito. Prejuízos consideráveis são provocados por um motorista imprudente. E ele procura distorcer os fatos, de modo a furtar-se às suas responsabilidades. As pessoas prejudicadas procuram testemunhas, que tendo presenciado o acontecimento, disponham-se a depor em juízo, a fim de que se faça justiça. No entanto, ninguém se habilita. Há o medo de envolver-se. A ganância de ganhar dinheiro induz muitos industriais ao desprezo por elementares medidas de preservação do meio ambiente, por dispendiosas. Poluem a atmosfera, matam rios, intoxicam a população e semeiam enfermidades. O movimento ecológico vem sendo articulado com o propósito de defender a Natureza, os progressos, entretanto, são lentos, porquanto, pouca gente se dá ao trabalho de participar, em absoluta indiferença. Grande parcela da população permanece alheia, não por descrença, mas simplesmente por comodismo. Vivemos num mundo de relatividade, condicionados pelo ambiente em que nos situamos, o que determinará que cada indivíduo, tenha suas próprias idéias. Há indivíduos indolentes e indisciplinados que vivem em situação difícil por sua própria culpa. Mas há também os que experimentam amargas privações decorrentes de circunstâncias, situações alheias à sua vontade (o doente sem recursos, o operário desempregado, a criança abandonada). Imagina-se que as providências a respeito do assunto são de alçada exclusiva do governo chamado ao atendimento da população carente e à erradicação da miséria. No entanto, a sociedade somos nós, cidadãos que a compomos. O governo, na verdade, é apenas uma representação. Não podemos portanto, debitar-lhe inteiramente a solução desses problemas, A sociedade, como um todo, formada pelos cidadãos que a compõem pode e deve exercitar essas faculdades, na medida que, diante das misérias humanas, sempre haverá alguém capaz de fazer algo, ao passo que a interferência de prepostos governamentais vai depender de os encontrarmos, de estarem dispostos a fazê-lo e desfrutarem de disponibilidade para tanto. Há outro aspecto importante: O governo representa não apenas a sociedade, mas também suas tendências. Ele se vincula à história da Nação, suas características, sua maneira de ser. A Alemanha de Adolfo Hitler foi a materialização da belicosidade e das pretensões de hegemonia racial de grande parte do povo alemão. A sociedade legítima deve ser construída de baixo para cima. Não há fórmulas mágicas para isso. É apenas uma questão de trabalho, muito trabalho no esforço do Bem. Muitos delinqüentes são formados na dura escola da miséria da necessidade mais premente como opção de sobrevivência, por falta de uma orientação adequada de um amparo efetivo.

Nas grandes cidades brasileiras, há multidões de menores abandonados a perambular pelas ruas. Até aos 10 anos pedem esmolas. Depois, meninos e meninas se prostituem, transformam-se em trombadinhas, convertendo essas cidades em autênticas selvas, cheias de perigos e tentações. Ninguém desfruta de tranqüilidade em suas ruas. Poderá o governo resolver essa grave situação? Talvez em parte sim. Mas os habitantes dessas cidades sitiadas pela violência poderiam modificar radicalmente a situação. Se cada uma dessas crianças tivesse uma família que se interesse por ela, que a ajudasse, que a orientasse, que trabalhasse em favor de sua promoção; se cada uma das famílias de classe média ou abastada, fosse ao encontro do menor carente, prodígios seriam realizados em favor da solução do problema, favorecendo a edificação de uma sociedade mais justa. Mas, programas dessa natureza devem estender-se a todas as faixas da população carente beneficiando idosos, doentes, desempregados, presidiários... Todos ansiamos pela lei e pela ordem. Queremos viver em paz, exercer nossas atividades profissionais, cuidar da família, construir um futuro melhor. Mas tememos por ele, em face da escalada da violência urbana. Esperamos que o governo imponha a ordem. Que se aumentem os efetivos policiais, que se ampliem as prisões, que sejam mais severas as leis. Imperioso reconhecer, entretanto, que só há uma lei capaz de acalmar os ânimos e impor a ordem no mundo, harmonizando indivíduos e coletividades. É a lei do Amor, insistentemente preconizada por Jesus, a explicar que cumpri-la é fazer ao semelhante o bem que desejaríamos nos fosse feito. A coerção, a repressão, a prisão, a ação policial, porque todos os recursos de força com os quais se pretenda conter os impulsos criminosos do homem o atingirão sempre de fora para dentro, como um ato de violência, provocando reações semelhantes e exarcebando sua agressividade. É por essa razão que os reformatórios são escolas de delinqüência, e o criminoso sempre sai mais endurecido da prisão. Há que ser um trabalho que opere de dentro para fora, que atinja o indivíduo em sua intimidade, que contenha os seus impulsos inferiores, que desperte dentro dele o processo de sua própria renovação e a partir daí, possamos renovar a sociedade para a construção de um mundo melhor. Por isso, o grande desafio a que somos convocados, talvez seja vencer a inconseqüência e a nossa imaturidade política e social. Precisamos amadurecer buscando um comportamento mais consciente e disciplinado, a fim de cumprirmos nossa destinação; ajudando-nos a superar a inércia e o acomodamento, demonstrando que é preciso assumir nossos compromissos diante da vida e reconhecer nossos deveres diante do próximo. 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 57


A determinação e a vontade fazem parte da condição feminina Ângela Costa

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Vice-Presidente da Firjan Membro do Conselho do Sebrae

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s mulheres sempre olharam para si mesmas pela ótica masculina, que lhes incutiu preconceitos e determinou um certo sentimento de inferioridade em relação a seu papel na sociedade. Nossas avós e até mesmo nossas mães acostumaram-se a se ver sem capacidade de sobrevivência se não tivessem a seu lado o pai, o marido, o irmão ou o mesmo o filho homem. A consciência da sua importância é bem recente no mundo moderno e aos poucos a mulher conquista espaço e ajuda a construir um mundo sem discriminação. A mulher participativa, economicamente ativa, desejando igualdade com os homens nas responsabilidades sociais, dividindo com eles, cada vez mais, essas responsabilidades, é fenômeno das sociedades contemporâneas mais evoluídas e, quando penso nestes conceitos, tão genéricos, é para mim difícil não pensar em minha própria experiência pessoal. Na minha própria vida. Posso dizer que lutei, sempre e da forma renhida, para conquistar lugar num mundo culturalmente masculino, para me livrar de estigmas e para provar competência nas tarefas a que me dediquei. Filha de um motorista de lotação que prestava serviços no transporte escolar, tive a oportunidade de estudar, por uma condescendência das freiras, num bom colégio, pertencente a uma ordem religiosa e onde estudavam as filhas da elite econômica e política de todo o país. A enorme diferença social entre eu e as outras me foi mostrada logo de início e enquanto freqüentei o Colégio Santa Marcelina tive de provar, a cada dia, que podia ser tão boa, ou melhor, do que qualquer uma das minhas colegas. Tendo de enfrentar o tipo de perseguição quase cruel de que são capazes as crianças e os adolescentes para com os que julgam pertencer a uma classe inferior. Foi minha primeira guerra pela sobrevivência, embora eu guarde, apesar de tudo, ternas lembranças desse período. Quando terminei o Curso Normal, fiz vestibular em Belas Artes, classificada em primeiro lugar. Escolhi a especialização em Desenho Industrial, determinada a me dedicar a uma profissão ligada ao mundo moderno. Fiz também os cursos de Direito e de Economia. Vieram o casamento e a alegria dos filhos, jovens hoje muito bem sucedidos, dedicados e talentosos. Com a morte do meu pai, assumi o seu pequeno negócio de ônibus de transporte escolar, uma firma cheia de dívidas e problemas que, em quatro anos, transformou-se na maior empresa do seu setor no Rio de Janeiro. Reuni então as empresas de transporte escolar e fundei, junto com os companheiros do setor, a Associação do Transporte Escolar, para prestar serviços e defender os interesses desses pequenos negócios. Isto foi em 1979, quando senti que não tinha mais oportunidade de crescimento trabalhando no transporte escolar, a não ser canibalizando os concorrentes, algo que não me apetecia porque se tratava de pequenas empresas pertencentes a pessoas que tinham se tornado minhas amigas. Foi também quando meu casamento terminou em separação.

“(...) a questão da igualdade da mulher com o homem passa pela consciência da sua situação e também pela determinação, pela força e a vontade que são inerentes à condição feminina.”

Apesar da separação, dolorosa como costumam ser todas as separações em que o amor não deixou totalmente de existir, recebi o convite do sócio do meu ex-marido para organizar a empresa que pertencia aos dois, em troca de 33 por cento do capital da sociedade, uma indústria de papelão e embalagens de papelão. Dediquei-me com paixão a essa tarefa, disposta a provar, mais uma vez, minha vontade de vencer os desafios que a vida apresentava. Adorei a atividade industrial, prepareime para um novo desafio, deixei a firma do meu ex-marido e fundei, com 12 funcionários, a Papillon, que começou produzindo 2 toneladas mensais de papelão e hoje, com 160 funcionários, produz 700 toneladas por mês. Enfrentei desavenças, preconceitos, maledicências. Entrei para o Sindipapel, o Sindicato de Artefatos de Papel e Papelão do Rio de Janeiro e fui a primeira mulher, já como presidente desse Sindicato, a participar da Firjan, a poderosa Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro. Eu era a única mulher num universo composto exclusivamente por homens. Nesta entidade, sou vice-presidente e presidente do Conselho de Gestão Estratégica para a Competitividade, cujos documentos são os que apresentam o maior número de downloads do site institucional da Firjan. Por achar que o papel da mulher é de fundamental importância para a sociedade, não só como educadora e formadora mas também como empreendedora, assumi um novo desafio, o de presidir o Banco da Mulher Rio, o BMRIO, entidade que capacita, faz microcrédito produtivo e dá suporte à iniciativa empresarial das mulheres. Quando relaciono estes dados da minha própria biografia, não estou procurando louvar a mim mesma, pois não tenho mais do que a vaidade natural das mulheres. Mas a minha própria experiência de vida me faz concluir que a questão da igualdade da mulher com o homem passa pela consciência da sua situação e também pela determinação, pela força e a vontade que são inerentes à condição feminina. 2006 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 59


Interrupção do Fornecimento de Energia Elétrica decorrente de Caso Fortuito: Excludente de Responsabilidade da Concessionária Ana Claudia Gonçalves Rebello Diretora Jurídica da Ampla Energia e Serviços S.A.

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responsabilidade civil das concessionárias de serviços públicos equipara-se à do Estado e encontra-se estabelecida no § 6.º do artigo 37 da Constituição Federal, o qual dispõe que: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.” A Constituição Federal adotou a responsabilidade civil objetiva do Estado, fundamentada na Teoria do Risco Administrativo, segundo a qual, na prestação do serviço público a obrigação de indenizar nasce independentemente da configuração de dolo ou culpa. Há apenas a necessidade de comprovação de nexo de causalidade entre a ação ou omissão do agente administrativo e o dano efetivamente causado. Entretanto, é importante observar que a Carta Magna restringiu a responsabilidade objetiva do Estado aos danos que tiverem sido causados pelos seus agentes. Logo, na hipótese de danos oriundos de culpa concorrente ou exclusiva da vítima, ato de terceiro ou fato da natureza, a responsabilidade do Estado passa a ser subjetiva, respeitando a regra geral do 60 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2006

Código Civil, respondendo apenas quando comprovada a culpa do agente, seja por imperícia, imprudência ou negligência. A Teoria do Risco Integral da Administração, adotada em outros países, não encontrou acolhimento em nossa legislação nem amparo na Jurisprudência, de forma que nem todas as ocorrências de dano implicam dever de indenização por parte do Estado ou de seus concessionários. Reproduzimos a linha de entendimento do STF, citada por Antonio Elias de Queiroga em “Responsabilidade Civil e o Novo Código Civil”: “Esta Corte tem admitido que a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito público seja reduzida ou excluída conforme haja ou não relação de causalidade. Nas hipóteses de ato de terceiro ou fato da natureza, a situação é bem diversa, pois a responsabilidade civil do Estado passa a ser subjetiva. A obrigação de ressarcir o dano fica condicionada à existência de prova de culpa do ente público”. Adicionalmente, já advertiu o STF, por meio do RE 109615-2/RJ, que: “O princípio da responsabilidade objetiva não se reveste


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“As concessionárias têm o dever de prestar um serviço adequado ao consumidor, mas não podem ser responsabilizadas por fatos para os quais não concorreram.”

de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias – como o caso fortuito e a força maior – ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima”. Assim, nos casos de danos causados por atos de terceiro ou por fenômenos da natureza, o Estado ou seu concessionário somente devem responder se ficar comprovado que concorreram com culpa para a ocorrência do evento ou ato danoso, seja mediante ação ou omissão de seus agentes. Por exemplo, no caso de dano causado por enchente, o Estado somente irá responder se ficar comprovado que poderia ter evitado o infortúnio com medidas preventivas. No caso específico das Concessionárias de Energia Elétrica, vários fatores externos, alheios à vontade e ao controle das distribuidoras, concorrem para interrupções na prestação do serviço. As redes de distribuição são sujeitas a intempéries climáticas, tais como ventanias, tempestades ou outras manifestações da natureza e, portanto, o fornecimento de energia elétrica pode sofrer interferências, ainda que a concessionária atenda aos padrões de qualidade contratados. Por serem predominantemente aéreas, as redes são vulneráveis a acidentes, manipulações, interceptações por pipas, atos de vandalismo e ações de violência por parte de terceiros, o que, na grande maioria das vezes, não pode ser previsto ou evitado pelas distribuidoras. O serviço de fornecimento de energia elétrica é afetado ainda por queda de árvores sobre a rede de baixa tensão, por derrubada de postes em decorrência de choque de veículos, por atos de vandalismo contra os equipamentos de distribuição e pelo acesso desautorizado à rede elétrica. Tais situações se configuram claramente em hipótese de caso fortuito, devendo ficar excluída a responsabilidade da concessionária por não ter concorrido com culpa para o evento. Este é um caso típico de responsabilidade subjetiva do Estado e de seus agentes em que somente a comprovação de culpa pode gerar o dever de indenizar. As concessionárias têm o dever de prestar um serviço adequado ao consumidor, mas não podem ser responsabilizadas 62 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2006

por fatos para os quais não concorreram. Não seria razoável exigir das distribuidoras de energia elétrica a permanência de um técnico em cada poste de sua área de concessão e ainda que - por absurdo - isso fosse possível, não eliminaria a ocorrência dos eventos de caso fortuito. A rede elétrica é projetada em toda a área de concessão para suportar eventos da natureza com níveis de intensidade regulares, atendendo às normas técnicas pertinentes. Seria possível projetar uma rede com estrutura que suportasse eventos da natureza de qualquer intensidade, porém o seu custo seria extremamente elevado. Como os investimentos realizados pela concessionária são repassados para a tarifa, não é economicamente viável ou vantajoso para o consumidor que se construa uma rede para suportar eventos da natureza com maior constância e gravidade, quando, na realidade, acontecem apenas de forma eventual em cada região. Da mesma forma, a demora no restabelecimento da energia deve ser analisada sob o ponto de vista da dimensão do evento ocorrido, pois este pode ser de tal ordem que inviabilize uma solução imediata ou em curto prazo de tempo. A ocorrência do caso fortuito pode dificultar o acesso dos técnicos às áreas afetadas ou à identificação exata do ponto da rede elétrica danificado. A existência de caso fortuito é motivo para excluir ou abrandar a responsabilidade da concessionária, tanto pelos danos causados com a interrupção, quanto pelos danos causados pelo decurso de tempo até a sua religação. Interpretação diferente desta, além de estar em dissonância com a legislação vigente e assentamento jurisprudencial, imporia um ônus ilimitado às concessionárias de energia, em prejuízo do equilíbrio econômico-financeiro da concessão e conseqüentemente de toda a sociedade. É fato que as decisões judiciais têm impacto direto no campo econômico e social e que onerar demasiadamente as concessionárias pode contribuir para afugentar os investimentos da iniciativa privada, os quais são especialmente necessários no Setor Elétrico Brasileiro. É importante ter em mente que este é um setor estratégico, por ser determinante para o desenvolvimento industrial e social do país, necessitando de investimentos intensivos, com longo prazo de maturação. O Setor Elétrico necessita de investimentos anuais da ordem de 20 bilhões, dos quais necessariamente 11 bilhões virão do setor privado, porque o setor público não detém de recursos dessa monta para investimento setorial. Assim, em virtude do ordenamento jurídico vigente, a responsabilidade objetiva das concessionárias de serviço público deve restringir-se aos atos praticados por seus agentes, não abarcando obrigação de indenizar danos causados por culpa exclusiva da vítima, atos de terceiros e fatos da natureza. Caso contrário, as concessionárias estarão diante de risco econômico ilimitado e vulneráveis à quebra do equilíbrio econômico-financeiro da concessão, deflagrandose um cenário de insegurança jurídica. Vale lembrar que a segurança jurídico–regulatória é um dos fatores decisivos para direcionamento dos recursos pelos investidores privados.


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52 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2005


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