Revista Justiça & Cidadania

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EDIÇÃO 72 • JULHO de 2006

16 SOBERANIA E

10 REVISÃO

ECOLOGIA

CONSTITUCIONAL EM 2007

Foto: Agência Brasil ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO EDISON TORRES DIRETOR DE REDAÇÃO JOSÉ LUIZ COSTA PEREIRA DIRETOR DE MARKETING

LEI DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS

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HÁ MUITOS ERROS DE PORTUGUÊS

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DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DEBORA OIGMAN EDITORA DE ARTE SIMONE MACHADO REVISÃO VINÍCIUS GONÇALVES EXPEDIÇÃO E ASSINATURA CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA,50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-100. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429 CNPJ: 03.338.235/0001-86 SUCURSAIS SÃO PAULO ORPHEU SALLES JUNIOR AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED.PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP 90010 272 TEL (51) 3211 5344 BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 - BLOCO E Ed. CENTRAL PARK FONES: (61) 3327-1228 / 29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL (61) 9968 - 5926

revistajc@revistajc.com.br www.revistajc.com.br ISSN 1807-779X

CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES antonio carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso DALMO DE ABREU DALLARI Darci norte Rebelo denise frossard

SUMÁRIO O MINISTRO DA JUSTIÇA

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EDITORIAL

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NOSSA CRISE É INSTITUCIONAL

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PENSE E VOTE

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O POLINÔMIO DA BOA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA

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SEQÜESTRO VIRTUAL, O CRIME DA MODA

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PRORROGAÇÃO DE CONCESSÕES POR INTERESSE PÚBLICO

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VALORIZAÇÃO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA

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EM BUSCA DO DIÁLOGO

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TEORIA E REALIDADE DOS JUIZADOS ESPECIAIS

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PRIMEIROS PASSOS PARA UM NOVO PROCESSO

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a LEGITIMIDADE DA PROCRIAÇÃO ASSISTIDA

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Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins josé augusto delgado José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes Miguel Pachá nEY PRADO Paulo Freitas Barata SEBASTIÃO AMOÊDO Sergio Cavalieri filho thiago ribas filho

2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 3


OPINIÃO

O MINISTRO DA JUSTIÇA Ives Gandra da Silva Martins Advogado Membro do Conselho Editorial

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onheci Márcio Thomaz Bastos em 1954, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde ingressávamos, minha mulher Ruth, ele, Cláudio Lembo, Sydney Sanches e eu, dando início a uma amizade que, entre os cinco, dura há 52 anos. Fomos companheiros dos movimentos acadêmicos pela liberdade e moralidade pública nos bancos da Escola do Largo São Francisco e voltamos, após um curto período, a de novo batalhar pelos ideais democráticos, na Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Paulista e no Instituto dos Advogados de São Paulo, onde ingressou, ao tempo que presidia eu a instituição e ele o Conselho Seccional da OAB. O companheirismo na luta comum, que sempre nos uniu, fez-nos também amigos acima das convicções ideológicas, que ambos passamos a defender, ele convicto de que as grandes soluções estariam no fortalecimento do Estado, provedor do bem–estar social, e eu, de que a sociedade é melhor instrumento do que o Estado para promover desenvolvimento e paz social, por sua maior capacidade de gerar iniciativas e valorizar a criatividade. Tanto assim é que, muitas vezes, nada obstante as divergências, estamos de acordo quanto ao objetivo de construir uma nação maior. Ficamos, então, juntos na mesma fronteira, por ocasião de congressos nacionais da OAB, quer defendendo teses de abertura política, quer sustentando a utilidade da criação de Conselhos Jurídicos apartidários para colaboração com as prefeituras, como ocorreu por ocasião da administração de Martha Suplicy, em São Paulo. É que para “homens de bem” (como os nossos maiores denominavam), quaisquer que sejam as convicções ideológicas, o país e a pátria estão acima de contradições e posicionamentos tópicos, partidários ou políticos, que possam ocorrer no Estado de Direito. Prova inequívoca de seu bom senso e patriotismo está nas indicações feitas pelo Presidente Lula de seis ministros para o Supremo Tribunal Federal, em que as sugestões de Márcio foram sempre acatadas. São todos professores universitários (César Peluzo, Carlos Ayres Brito, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowsky e Carmen Lúcia Antunes Rocha), em faculdades de renome, dois deles com intensa atuação na magistratura (Cesar Peluzo e Ricardo Lewandowsky). Críticas muitas têm sido feitas ao governo Lula –e eu mesmo não me furtei a fazê-las, na modesta e exclusiva condição de cidadão-, mas nunca aos nomes que Sua Excelência indicou para a Suprema Corte. Pelo contrário, todos os que militam naquele Excelso Pretório, reconhecem 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

que o perfil dos indicados é o perfil de magistrado superior, com o amplo conhecimento jurídico que a função exige. E Márcio foi o principal responsável por essas indicações, a partir de listas apresentadas ao Presidente, contendo, de resto, os nomes de outros notáveis juristas pátrios. Nossas divergências no campo político continuarão, mas as nossas convergências no plano do ideal de construir uma pátria maior e da amizade que nos une, desde os bancos acadêmicos, só tendem a aumentar. Até por que a idade vai nos permitindo separar o joio do trigo. E, ao contrário de Mark Twain, para quem a imprensa, ao separar o joio do trigo, escolhia sempre o joio para publicar- no tempero do tempo, a fraternidade elimina sempre o joio e faz a colheita do trigo cada vez mais esplendorosa. Não sem razão, esta Revista, de cujo Conselho Editorial honra-me participar, houve por bem homenagear o eminente amigo, advogado e ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos.


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esde o início do Governo do Presidente LULA, a presença do advogado criminalista Márcio Thomaz Bastos na chefia do Ministério da Justiça, indicava se teria uma gestão de efetiva transparência, trabalho, eficiência e moralidade pública e administrativa. Assim, em todos os importantes e responsáveis setores a ele subordinados, os trabalhos se conduziram sem percalços e boa continuidade. O primeiro embate, a demonstrar o zelo e cuidado com a defesa da respeitabilidade da instituição, foi a pronta interferência do ministro Márcio Thomaz Bastos, evitando que o presidente LULA e inclusive o Brasil, sofressem constrangimento internacional, face a ordem dada pessoalmente para expulsão de um jornalista correspondente do New York Times que havia divulgado na imprensa estrangeira uma matéria de ofensas pessoais contra o Presidente. Também excepcional foi a sua conduta nas questões que envolveram membros do primeiro escalão do Governo, implicados nos escândalos da improbidade administrativa, notadamente o caso do caseiro Farncenildo, que teve a sua conta bancária na Caixa Econômica Federal exposta por ordem do ex-ministro da Fazenda, Antônio Palocci. Outro fato que demonstra a firme posição do ministro Márcio Thomaz Bastos nas ações do Governo, se reflete nas indicações e nomeações que o presidente LULA, no uso de suas atribuições constitucionais, tem feito no preenchimento dos membros dos Tribunais Superiores, onde a escolha tem recaído sem exceção, em expressivos juristas, os quais na prática jurisdicional tem se portado, como convém o um Magistrado, com plena e inteireza independência. O brilhante e vitorioso advogado criminalista, que granjeou pela ativa participação no Conselho Federal e Seccional da OAB - SP e na luta em defesa dos presos políticos e da abertura política, fazem do ministro Márcio Thomaz Bastos o guardião da ordem jurídica do governo.

Orpheu Santos Salles Diretor-Editor

“Outro fato que demonstra a firme posição do Ministro Marcio Thomaz Bastos nas ações do Governo, se reflete nas indicações e nomeações que o Presidente LULA, no uso de suas atribuições constitucionais, tem feito no preenchimento dos membros dos Tribunais Superiores (...)”

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EDITORIAL

A GARANTIA JURÍDICA DO GOVERNO


ENTREVISTA

Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos:

“NOSSA CRISE É INSTITUCIONAL”

“O Brasil não tem uma crise legislativa. O Brasil não sente falta de leis. Leis nós temos bastante. A nossa crise é institucional, o que dificulta o cumprimento dessas leis. Precisamos avançar no processo de reconstrução das instituições que cuidam da segurança no País e combater fortemente a impunidade, que é o que deixa a população indignada e descrente de que a justiça pode ser igual para todos”. Nessa entrevista exclusiva à Justiça & Cidadania, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, fala sobre o aumento da criminalidade no País, o remédio para combatê-la e anuncia a criação do Sistema Penitenciário Federal que contará com cinco unidades em todo o Brasil para abrigar somente presos de altíssima periculosidade e desarticular a ação do crime organizado dentro das unidades. 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006


As constantes rebeliões de criminosos nos presídios, são reivindicações de natureza pessoal ou reflexos da crise institucional, social e moral brasileira? Há muitos anos vem sendo criada uma espécie de linha de montagem do crime no Brasil.  Ela começa nos centros de recuperação de adolescentes em conflito com a lei, verdadeiras escolas para a formação de bandidos, e chega no sistema prisional. O jovem, quando internado nesses organismos, passa pela experiência das polícias, enfrenta muitas vezes anomalias de um judiciário que necessita de reforma ampla, e vai para prisão, onde fica por alguns anos e acaba se transformando num adulto pós-graduado em criminalidade, seqüestro, crime de extorsão. Nossa idéia é muito clara de que é preciso desmontar esse sistema e remontar um outro, reconstruindo as instituições. É isso que está sendo feito, num processo amplo, que vai desde a Reforma do Judiciário, passando pela reestruturação e fortalecimento da Polícia Federal – um dos pilares do Sistema Único de Segurança Pública – e pela criação do Sistema Penitenciário Federal. O Sistema Penitenciário Federal contará com cinco unidades cobrindo todas as Regiões do País, para abrigar somente presos de altíssima periculosidade e desarticular a ação do crime organizado dentro das unidades. Somente com esse fortalecimento das instituições e a integração dos governos estaduais e federais, questões como esta podem ser enfrentadas adequadamente.

V. Excia. acredita que o sistema penal brasileiro está impondo aos presos condições de sobrevivência que extrapolam aos limites da própria pena? O artigo 3° da Lei de Execuções Penais afirma que “Ao condenado são assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela Lei”. De maneira que todas as restrições a direitos dos presos que não sejam a própria privação de liberdade extrapolam os limites da pena. A pena tem basicamente a função dissuasória de inibir o criminoso, além da função de isolar aqueles que sejam fisicamente perigosos. A violação de direitos não está de acordo com nenhuma dessas funções da pena. É preciso que se acabe de uma vez por todas com o mito de que o rigor com os criminosos é incompatível com o estrito respeito aos direitos humanos. O Sistema Penitenciário Federal pode ser tomado como exemplo de como é possível harmonizar um isolamento absoluto dos bandidos mais perigosos sem qualquer violação ilegal de direitos. Nos estabelecimentos federais, mesmo o preso sendo submetido a um tratamento rigorosíssimo ele terá direito ao uso de um moderno centro médico e a condições dignas. Nossa luta é para que todos os sistemas penitenciários possam conciliar este rigor com um tratamento dentro dos parâmetros da lei. Conseguir isto é fundamental para acabar com as rebeliões e desmontar as centrais criminais instaladas nos presídios.

V. Excia não acha que o Ministério da Justiça deveria evoluir para ser também o Ministério da Segurança Pública com ação efetiva nos Estados? O Ministério da Justiça, em sua concepção atual, atua fortemente na segurança pública. E isso vem sendo acentuado, de acordo com o contexto vivenciado pelo País, num processo de integração com os estados, por meio da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp).  A Secretaria é responsável pela coordenação de uma nova política para a área indutora de integração, uniformização, promoção dos direitos humanos e desenvolvimento de uma solidariedade federativa.  Desde 2003 todos os estados  fazem parte do  Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Ações concretas e objetivas de combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro foram desenvolvidas  a partir da criação desse Sistema, merecendo destaque as operações das Polícias Federal e Rodoviária Federal.  A  atuação conjunta da PF com as polícias dos estados também tem contribuído para a elucidação de crimes, como o caso de Unaí/MJ e o esclarecimento da morte da religiosa Dorothy Stang, em Anapu/PA.

A criminalidade ao invés de ser tratada como crime de natureza comum deveria ser vista como criminalidade social? Para tratar a questão da criminalidade no Brasil é necessário avançar com a reforma das instituições - a polícia, o Poder Judiciário e o sistema prisional. Outro componente essencial nesse processo é o sistema de segurança unificado, onde os padrões sejam obedecidos, onde a racionalização dos serviços seja feita, onde se use inteligência, se use informação e se combata a lavagem de dinheiro. Quando você impede a lavagem de dinheiro você dissuade o sujeito de correr um risco, de entrar numa organização criminosa para depois ficar sem saber o que fazer com aquele dinheiro.

Como Ministro da Justiça e reconhecido criminalista o que lhe parece o exemplo que a Colômbia dá ao Mundo, sobretudo no restabelecimento da ordem pública em Medelim? Como já disse, o caminho mais lógico para se combater o crime organizado é, além das ações diretas de repressão, acabar com a lavagem de dinheiro. Porque ninguém comete um crime para guardar dinheiro embaixo do colchão. A pessoa só corre os riscos porque sabe que pode lavar o dinheiro. Este é o objetivo final do crime organizado. É por isso que elaboramos a Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro, reunindo órgãos como o Ministério Público, a Polícia Federal, a Receita Federal e a Controladoria-Geral da União. O crime tem que ser combatido em todas as pontas. 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


“Como já disse, o caminho mais lógico para se combater o crime organizado é, além das ações diretas de repressão, acabar com a lavagem de dinheiro. Porque ninguém comete um crime para guardar dinheiro embaixo do colchão.”  Como V. Excia vê o papel da OAB, ante ao crescimento de advogados ligados ao crime organizado? O crime é chamado organizado justamente quando coopta colaboradores em todas as estruturas da sociedade, por isso é necessário investir no fortalecimento das instituições, em processo de depuração dos órgãos de polícia e na qualidade do ensino, incluindo na área jurídica. O Ministério da Educação tem feito muita coisa para fiscalizar a qualidade do ensino em novas faculdades. A própria OAB vem fazendo manifestações nesse sentido, assim como as associações de magistrados e do Ministério Público. As entidades devem atuar a favor da ética, a fim de se evitar a ligação com o crime organizado, com o dinheiro fácil.

A OAB não estaria agindo corporativamente ao aplicar penas brandas e não ter agilidade no julgamento de advogados faltosos pela Comissão de Ética?  É preciso enfrentar com determinação a impunidade. Acredito que a Ordem dos Advogados, assim como qualquer entidade que descubra seus membros contribuindo com o crime, está empenhada em combater, expurgar esse tipo de conduta. É preciso, no entanto, ser firme e não hesitar em cortar a própria carne, se for necessário. Creio que podemos ressaltar como um exemplo dessa coragem a conduta da Polícia Federal, que vem passando por um processo de depuração e não relutou em conduzir investigações que 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

resultaram também na prisão de maus policiais. Atualmente o êxito das dezenas de operações contra o crime organizado que vem sendo realizadas pela corporação mostra que o caminho percorrido, apesar de doloroso, foi acertado e não devemos recuar.

V. Excia concorda que as leis penais brasileiras hoje servem mais aos criminosos do que protegem a sociedade? O Brasil não tem uma crise legislativa. O Brasil não sente falta de leis. Leis nós temos bastante. A nossa crise é institucional, o que dificulta o cumprimento dessas leis. Precisamos avançar no processo de reconstrução das instituições que cuidam da segurança no País e combater fortemente a impunidade, que é o que deixa a população indignada e descrente de que a justiça pode ser igual para todos.

Os jornalistas e a ABI temem que no bojo da propalada revisão da Lei do Grampo (Lei nº 9.296/96), venha também  agressões à liberdade de imprensa. O que V. Excia tem a dizer sobre o tema? Hoje é cometida uma série de abusos no que diz respeito á interceptação telefônica.  Não só em relação ao grampo ilegal, mas também quando é feita com autorização judicial. Isso precisa ser normatizado e é essa normatização que está sendo discutida dentro do governo.


Pense e vote Antônio Ermírio de Moraes

N

Empresário

estes tempos de eleições, o Brasil é pintado de rosa pela situação e de preto pela oposição. Isso é próprio de qualquer campanha eleitoral. No meio do tiroteio, o povo fica perdido, recebendo informações manipuladas, todas aparentando verdades. Nesse ambiente, há pouco espaço para análises objetivas. Por isso, antes que comece o massacre das mensagens no rádio e na televisão, alinho alguns dados objetivos que, no meu entender, registram os principais problemas do Brasil de hoje. 1. No período de 1996 a 2005, a economia mundial cresceu 3,8% ao ano; o Brasil cresceu 2,2%. 2. Nesse ritmo, o mundo dobrará a renda per capita em 30 anos; o Brasil levará cem anos. 3. Entre 1995 e 2004, os países emergentes investiram cerca de 30% do PIB em atividades produtivas; o Brasil investiu 19%. 4. O investimento público, que estava em 4% do PIB em 1970, já irrisório, caiu para 0,5% em 2005. 5. Nesse período, a carga tributária quase dobrou, chegando perto de 40% do PIB. 6. Para crescer 3,5% ao ano, os investimentos em energia elétrica, petróleo, gás, telecomunicações e transporte teriam de ser de, no mínimo, US$ 27 bilhões por ano, enquanto, na realidade, não passam de US$ 14 bilhões. 7. Dentre os 127 países estudados pelo Program for International Student Assessement (Pisa), o desempenho dos alunos brasileiros está em último lugar em matemática e penúltimo em ciências. 8. Em pleno século 21, temos 16 milhões de analfabetos e, entre os que sabem ler, mais de 50% não entendem o que lêem. Vários desses dados fazem parte de um artigo publicado na “Revista Indústria Brasileira” em abril de 2006, cujo título já diz tudo: “Sem crescer, não há saída”. O mínimo que se espera é que os candidatos ataquem essas questões de frente, dizendo claramente o que farão para inverter o quadro atual. Isso faz parte da educação dos cidadãos e da construção da democracia. Há tempos, Roger Douglas, ex-ministro da Fazenda da Nova Zelândia, contou-me que, no seu país, toda vez que um candidato diz na televisão o que vai fazer sem dizer o “como”, o seu adversário, no dia seguinte, ocupa o seu espaço na mesma televisão, para desmascarar as promessas vazias. Desde que esse sistema foi implantado, narrou Douglas, a demagogia diminuiu bastante e o povo votou mais consciente. Os problemas estão aí. Cabe aos candidatos dizer “como” resolvê-los. Não seria uma boa idéia para praticar no Brasil?

“O mínimo que se espera é que os candidatos ataquem essas questões de frente, dizendo claramente o que farão para inverter o quadro atual. Isso faz parte da educação dos cidadãos e da construção da democracia.” 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


Revisão Constitucional EM 2007

Parecer com substitutivo O ilustre proponente justifica a medida salientando o caráter analítico da Constituição brasileira que, em face do detalhismo, já exigiu mais de 45 modificações formais. E que, cada Emenda à Constituição é também analítica fazendo com que outras tantas modificações constitucionais sejam necessárias a cada breve espaço de tempo. Invoca Konrad Hesse para quem “sem prescindir das disposições puramente técnico organizativas, a Constituição deve limitar-se, na medida do possível, a uns poucos princípios fundamentais” (Escritos de Derecho Constitucional, Madrid, Centro de Estúdios Constitucionales, 1992, p. 67). Busca “corrigir rumos, adequar instituições, eliminar artificialidades e pormenores, revitalizando o primado de Estado de Direito e a governabilidade do país”. Compete a esta Comissão examinar a preliminar de admissibilidade da Emenda sob os focos da juridicidade, técnica legislativa e constitucionalidade. Saliento, de logo, que a proposta de Emenda Constitucional possui número suficiente de assinaturas conforme determina o art. 60, I. O país vive a normalidade democrática. Não há intervenção federal, estado de defesa ou de sítio (C.F., art. 60 § 1°). Está redigida de acordo com a boa técnica legislativa. Finalmente, quanto à constitucionalidade, algumas considerações. A primeira delas é a de que esta Comissão de Constituição e Justiça adotou como regra a possibilidade de fazer pequenas modificações que pudessem compatibilizar o texto proposto com a Constituição Federal. Serão feitas, mais adiante, para compatibilizá-lo com a Constituição Federal. A Emenda à Constituição é, sabidamente, fruto da competência reformadora que o constituinte originário 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

FOTO: ROSE BRASIL

Opiniões respeitáveis de renomados juristas como Ives Gandra Martins, Ney Prado e Diogo de Figueiredo Moreira Neto, publicadas na edição de junho passado, revelam que é inadiável uma revisão constitucional no próximo ano. O deputado Michel Temer (PMDB/SP), presidente da Comissão Especial, proferiu como relator um parecer à proposta de emenda à Constituição que convoca uma Assembléia de Revisão Constitucional a partir de 2007, de autoria do deputado Luis Carlos Santos (PFL/SP). Segundo o substitutivo de Michel Temer ao projeto de seu colega paulista, a promulgação da emenda será feita pelas mesas da Câmara Federal e do Senado Federal com instalação prevista para o dia 1º de fevereiro de 2007, com duração de um ano e com revisão a cada 10 anos.

Deputado Michel Temer

entregou ao Congresso Nacional. Tudo porque as Constituições se pretendem perenes porém não imodificáveis. Daí as Emendas Constitucionais que visam a adaptar o texto constitucional à dinâmica do tempo. Adaptações são feitas para que as Constituições não sofram modificações radicais dado que estas tendem a instabilizar a ordem jurídica o que, de resto, desestabiliza a ordem social. Em algumas matérias o constituinte pretendeu perenidade e imutabilidade. Tal é o caso daquelas elencadas no art. 60, § 4º: forma federativa de Estado, separação de poderes, voto direto, secreto e universal para todos, direitos e garantias individuais. E, mesmo neste caso, embora tenha pretendido a imodificabilidade não são poucas as vozes doutrinárias que já sustentam a possibilidade de alterações pontuais em cada um desses temas desde que se garanta o princípio por eles estabelecidos. Exemplificando: não há violação ao princípio federativo se houver alteração de competências tributárias entre os entes federativos. Seja: se a autonomia dos entes federativos persiste nada importa que haja uma redução competencial de um deles em favor do outro.


De toda maneira, neste particular, a proposta de Emenda mantém intacto o princípio da “petrificação” de certas matérias (art. 60, § 4º). Modificações No tocante ao processo de revisão constitucional a proposta examinada sugere modificações acentuadas: ao invés de votação em duas Casas do Congresso Nacional que se a faça em sistema unicameral passando a ter, o voto do Senador, o mesmo valor do voto do Deputado ou seja, não haveria Deputados e Senadores no instante da Assembléia Revisional, mas apenas revisores. Ademais, a aprovação da matéria seria pela maioria absoluta dessa Casa unicameral e não por maioria de 3/5 de cada Casa do Congresso Nacional. Sabemos que o processo de modificação constitucional é tido como cláusula implicitamente pétrea e, por isso, imodificável. E com fortes razões: é que se fosse possível alterar o processo de formação das Emendas pelo Congresso Nacional, a Constituição, rígida, poderia passar a flexível, o que contraria frontalmente a vontade do constituinte originário. Como, de resto, são imodificáveis as cláusulas explicitamente pétreas. Exemplificando mais uma vez: no caso das explícitas, seria impossível a proposta de parlamentarismo, no país, se adotada a tese da intocabilidade absoluta da separação de poderes estabelecida no art. 60, § 4º, III. Afinal, a Constituição, ao estabelecer o princípio da imutabilidade da tripartição do Poder estaria aludindo à separação tal como positivada no Texto Magno. Não da separação de Poderes adotada nos E.E.U.U. ou na Argentina. Nem em Constituições anteriores. Mas desta separação, tal como positivada pelo constituinte de 1988, em que Legislativo legisla, Executivo executa e Judiciário julga. No parlamentarismo, sabidamente, parcela da atividade executiva é transferida para o Legislativo. Confesso que já tive simpatia e cheguei a adotar essa tese da invariabilidade absoluta do princípio tripartidor do Poder. Mas a vivência política, o trato com os problemas nacionais, com o cotidiano administrativo e, especialmente com a necessidade de mantença da Constituição, sem a necessidade de convocação de uma Constituinte, levou-me a flexibilizar tal conceituação. Por isto que (estou apenas exemplificando) se um dia optarmos por regime parlamentar de governo, vejo mantido o conteúdo, o princípio, as vigas mestras da separação de poderes e por isso, a intocabilidade do princípio insculpido no art. 60, § 4º, III. Em face da distinção entre cláusulas pétreas explícitas e implícitas e da flexibilização que a elas se deu, passei a adotar a tese do conteúdo conceitual das cláusulas pétreas explícitas (C. F., art. 60, § 4º) ou implícitas. Seja: se no caso das cláusulas explícitas sustento que não há violação principiológica desde que mantido o conceito adotado pelo constituinte, também não vejo, nas cláusulas pétreas implícitas, agressão à rigidez constitucional se o princípio mantiver-se intacto. Tudo isto para salientar que continuará inalterado o processo de modificação constitucional, “petrificado”

implicitamente, se a rigidez, ou seja, o processo especial, qualificado, dificultoso, diferenciado em relação às leis ordinárias e complementares for mantido. Há mais, para ser anotado. A regra do art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal, segundo a qual o poder emana do povo, tem duas significações: uma, a de indicar quem é o titular do poder que fez editar a Constituição; outra, a de indicar um poder constituinte latente que pode ser convocado para convalidar atos regulares, autorizados pela Constituição, ou outros que, embora constantes de cláusulas pétreas, possam ser alterados sem que se revogue o princípio nelas contido. Acrescente-se dado novo da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988. Não adotou, ela, exclusivamente, o princípio da representação popular, ou seja da democracia indireta. As Constituições anteriores adotaram-no. Naquelas, talvez fosse possível argumentar com a impossibilidade do exercício direto do poder e, portanto, a norma (Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes) se esgotaria na afirmação de que o dispositivo apenas indicou quem foi o titular do poder de editar a Constituição. Nas Constituições anteriores, portanto, o povo criou o Estado mas entregou o exercício do poder, por inteiro, aos representantes eleitos. Aqui, não. A Constituição Federal, no art. 1º, parágrafo único, fixou: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Portanto, não apenas a titularidade mas também o exercício do poder está entregue ao povo. Adotou-se a tese das democracias diretas amalgamada com a indireta ou representativa. De um lado, o povo, exercendo diretamente o poder; de outro o representante eleito pelo titular do poder para também exercê-lo. As vias para o exercício direto desse poder são o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular para a apresentação desses projetos. Não é sem razão que esses institutos estão no capítulo que trata da soberania popular (Título I, Capítulo IV, art. 14). Diferença sutil, pouco notada, mas de importância inquestionável. Todo poder emana do povo Nesta fase do parecer, convém relembrar a lição do pranteado jurista Celso Bastos: “Não se pode admitir que a Constituição brasileira fique atrasada e aprisione o desenvolvimento em virtude de uma fragilidade política de determinada época. Se naquele tempo não se pode implementar uma verdadeira revisão, que se faça outra. A necessidade é evidente, haja visto o ritmo de aprovação de emendas (de altíssimo custo político) e o desejo da população de um Estado mais moderno, que seja capaz de atender seus anseios. A reeleição, em primeiro turno, de um Presidente da República compromissado com estas reformas deixa clara a vontade popular acerca do tema. 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


É certo, também, que não se pode descurar dos aspectos jurídicos que tal proposta traz consigo. É comum observar que a doutrina entende como cláusula pétrea implícita a questão do quorum de deliberação de reforma constitucional, e portanto esta não poderia ser alterada. No entanto, em havendo aprovação popular direta, não há nada que não possa ser alterado na nossa Constituição, haja visto que seu artigo primeiro estabelece que todo poder emana do povo. O Poder Constituinte está sempre adormecido nos braços do povo e, a qualquer momento, poderá ele ser despertado. Pontes de Miranda, ao se debruçar sobre o tema, conclui com brilhantismo que “nem a fórmula espanhola nem a brasileira traduzem bem a alemã. O que o art. 1º, segunda alínea, da Constituição de Weimar, quis dizer que a soberania está no povo; isto é, qualquer que seja o poder estatal, inclusive o de constituição e emenda ou revisão da Constituição, está no povo”. Ninguém nega que a Constituição é do povo. Aliás, aqueles que saem em defesa do Poder Constituinte originário, dizem que é preciso defender os ditames estabelecidos por este pois são conquistas populares, obtidas através dos representantes populares reunidos em assembléia. Mas o que dizer quando o povo está clamando por mudanças. Vai querer proteger o produto popular do seu próprio titular? Tal feito é sobretudo ilógico. O argumento que se arrima no fato de a Constituição ser intangível e ter algumas de suas cláusulas petrificadas por respeito à vontade popular acaba por se mostrar fundamentador da posição inversa. Se é a vontade popular que legitima a inalterabilidade de algumas cláusulas constitucionais, ela (e somente ela) pode autorizar alterações. Uma vez aprovada uma nova Revisão, através de consulta popular, não há argumentos que sustentem a ilegitimidade de tal feito. Não se pode opor a Constituição àquele que a legitima. É certo, pois, que o Poder Constituinte originário afastou do Congresso Nacional (poder constituído) a competência para alterar certas disposições constitucionais. Mas isso não significa que também o fez perante o povo. Até por uma falta de perspectiva eficacial, a Carta não retira do povo a possibilidade de alterá-la ou substituí-la. A soberania popular não é um poder constituído e, consequentemente, limitado juridicamente, mas é força anterior a este. Quando a Constituição faz referência a este não está criando-o, mas tão somente reconhecendo-o. Destarte, podemos então simplesmente deixar que a situação piore e vá mais longe, encurtando a vida da nossa Constituição, ou proceder de maneira racional e adaptá-la. Nenhum país vai soçobrar como unidade estatal por apego a um texto constitucional. Sempre que só um puder sobreviver, é o Estado que prevalece, caindo a Constituição. Aliás, recentemente tivemos um exemplo disso: a Constituição de 1967, mediante a edição da Emenda no 26, de 27 de novembro de 1985, foi além do acima ventilado e chegou à convocação de uma Assembléia Constituinte para fazer outra Carta. É, então, tanto por uma interpretação sistemática da 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

Carta, invocando o princípio da soberania popular, quanto por uma realidade lógica e histórica que não se pode acusar de inconstitucional ou ilegítima a propositura de um novo período revisional fundamentado em consulta popular.”(Celso Bastos, “A reforma da Constituição: em defesa da Revisão Constitucional”). Soberania Popular Manoel Gonçalves Ferreira Filho vai mais além: “A superação da crise de ingovernabilidade não prescinde, ao invés, reclama, uma nova Constituição. Para estabelecer nova Constituição, não é indispensável nem uma revolução, nem mesmo um golpe de Estado. Deixese de lado a teoria do Poder Constituinte, utópica e metafísica, que aponta apenas um paradigma (raríssimamente seguido). Pode o Congresso Nacional fazer agora o que fez em 1985: adotar uma Emenda que, alterando o processo de mudança formal da Constituição, permita o estabelecimento de uma outra. Mas que desta vez sejam os mais sábios os incumbidos de estabelecê-la.”. (M. G. Ferreira Fº, Constituição e Governabilidade, Editora Saraiva, pág. 142). O professor Alexis Vargas defendeu dissertação de mestrado na PUC – SP sustentando a soberania popular expressa por referendo para modificar a ordem jurídica do país (O princípio da soberania popular: seu significado e conteúdo jurídico. Tese de mestrado na PUC-SP). Conclui ele: “A consequência da positivação do princípio da soberania popular é a possibilidade deste determinar qualquer coisa no âmbito jurídico, com efeito vinculante. Em especial, destacase a possibilidade de alterar qualquer aspecto material da Constituição, sem que isso represente uma ruptura. Isto ocorre desde que as alterações passem por processos de legitimação ótima, que implicam na participação direta do povo, e de acordo com os mecanismos formais previstos na Carta. A Constituição não limita o povo, só limita o Estado. O povo é soberano”(Obra citada, p. 158). Antes dessa conclusão, escreveu: “A legitimidade da Assembléia Constituinte se esgota com a promulgação da Carta. Entretanto, a legitimidade do povo para decidir sobre seus destinos não se encerra naquele ato. Ela é permanente. (...) Só o povo pode legitimamente aprovar atos que não estão ao alcance do Estado. Neste sentido para alterar uma norma cuja alterabilidade não esteja ao alcance do Estado (poder constituído), somente através de um processo de ‘legitimação ótima’, que significa ser chancelado pelo soberano” (Obra citada p. 109). Tudo a indicar a possibilidade de revisão constitucional, tendo em vista que “o Poder Constituinte originário afastou do Congresso Nacional (poder constituído) a competência para alterar certas disposições constitucionais. Mas isto não significa que também o fez perante o povo. Até por uma


falta de perspectiva eficacial, a Carta não retira do povo a possibilidade de alterá-la ou substituí-la”. O precedente mencionado por Ferreira Filho, a Emenda Constitucional 26, de 27 novembro de 1985) convocatória da Constituinte, é, também, boa lembrança. Tratava-se aquela E. C., contudo, de ato político já que rompia frontalmente com a Constituição em vigor, em época que o povo não exercia diretamente o poder, tal como exerce hoje na Constituição de 1988. Aqui estaremos tentando manter a indenidade do Texto Constitucional, adotando a tese do conteúdo conceitual das cláusulas pétreas explícitas e implícitas. Daí a inafastável necessidade de submeter a referendo popular o resultado da revisão constitucional. Esta é a primeira modificação ao projeto, que proponho em substitutivo, para que o povo, titular do poder constituinte originário, diga se está, ou não, de acordo com o texto revisado. Note-se que não proponho plebiscito. O plebiscito é meramente autorizativo para que alguém faça ou deixe de fazer; no referendo ele é autorizativo-valorativo porque o votante autoriza a aplicação de um preceito após fazer avaliação, após valorar o seu conteúdo material. No referendo, o povo irá convalidar algo que já foi feito, já esta escrito, e não autorizar algo que ainda não conhece. Deverá aprovar um texto pronto, perfeito e acabado. Para fazê-lo, examinará conteúdo. Não dará “cheque em branco” aos eleitos, como ocorre no plebiscito mas examinará o produto do trabalho daqueles que elegeu. E dará, por isso mesmo, maior legitimidade às modificações constitucionais. Sem contar o seu extraordinário apelo cívico-educacional. A campanha pela aprovação, durante o referendo, fará com que todos conheçam a Constituição. Certa e seguramente debates, seminários, campanha por meio da imprensa e pela imprensa (editoriais, artigos) colaborariam nessa tarefa divulgatória. Seria instante de intensa participação popular. Sairíamos, quem sabe, da indesejável e inútil “fulanização” política para o debate temático, muito mais importante para o País, do que saber se o Chefe de Estado ou do Parlamento machucou o tornozelo. O tema da revisão já foi posto, no passado, sob o título de constituinte restrita, pelo nobre deputado Miro Teixeira. Naquela oportunidade ganhou parecer pela constitucionalidade nesta Comissão e parecer favorável, aprovado, na Comissão Especial então criada. Propunha o parecer, na época, a consulta popular para impedir invocação de inconstitucionalidade. Congresso revisor Outra questão é a que diz respeito a composição do Congresso Revisor: pelo projeto, Deputados e Senadores comporiam Casa única e a maioria absoluta seria obtida a partir da soma numérica de ambas as representações. Deputado e Senador, revisores, teriam voto do mesmo valor. Proponho que não seja assim. No processo de mudança constitucional Câmara e Senado Federal devem discutir

conjuntamente, mas votar separadamente. Até por homenagem ao princípio federativo não se pode reduzir o valor do voto dado pelo Senador como representante do seu Estado. Por isso, o substitutivo prevê discussão, em sessão unicameral, ou seja, Deputados e Senadores discutirão conjuntamente a matéria e no instante da votação colher-se-ão separadamente os seus votos e agora sim, por maioria menor do que a exigida no Texto Constitucional. Seja: por maioria absoluta de votos de cada Casa do Congresso Nacional. O projeto, ora em substitutivo, altera o processo de formação de Emenda à Constituição em três pontos: a) a discussão é feita em sistema unicameral; b) finda a discussão, a votação se dá em cada Casa do Congresso Nacional por maioria absoluta de votos; c) o projeto de revisão será submetido a referendo para ser promulgado apenas depois da aprovação popular. Reconheço que as modificações são de razoável monta. Mas o núcleo conceitual da cláusula pétrea implícita, referente à modificação constitucional, continuará intacto. Isto porque adiciona-se ao processo de modificação, ora facilitado, enorme dificuldade: a submissão do projeto de Emenda Constitucional a referendo popular, mantendo-se assim, a idéia de um processo diferenciado para a formação de Emenda. Não posso deixar de registrar que o tema comportará muitas discussões e objeções. Já defendi, formalista que fui na interpretação Constitucional, a absoluta inviabilidade de alteração senão pela via da manifestação Congressual numericamente estabelecida no Texto Magno. Mas todas as lições e concepções aqui expostas voltam a revelar que há um poder constituinte latente no povo que, no caso da Constituição atual não apenas o titulariza mas também o exerce diretamente. Hoje, diferentemente de ontem, as informações chegam ao povo em “tempo real” por todos os meios de comunicação. A ela todos tem o acesso que antes não tinham. Por isso mesmo, deixa de ter sentido, a meu ver, a possível manipulação das “massas” como fizeram o nazismo e o fascismo e que serve de argumento para os adversários desta tese. A informação, hoje, detém a ditadura e promove a democracia, no sentido de participação de todos no processo governativo. Daí porque flexibilizei, como já disse, o meu conceito formal de Constituição que só levará à necessidade de seguidas convocações de Constituinte originária, quando o conteúdo da Carta resvalar para a ingovernabilidade. Confesso que, não fosse a possibilidade de o povo, diretamente, como titular e, agora, exercente do poder Constituinte originário, manifestar-se por meio de referendo, jamais ousaria apoiar a tese da revisão tal como posta no projeto ora em exame. Faço-o pautado, como já registrei, pela experiência adquirida nesta Casa Legislativa, em contato permanente com o cotidiano político e administrativo do país. E na convicção de que temas como o pacto federativo, que inclui a repactuação das competências tributárias são 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


SUBSTITUTIVO DO RELATOR A Mesa da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos da Constituição Federal, art. 60, § 3º, promulgam a seguinte emenda à Constituição: Art. 1º. Será instalada, no dia 1º de fevereiro de 2007, Assembléia de Revisão Constitucional, formada pelos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o objetivo de revisar a Constituição. § 1º. O parlamentar mais idoso instalará a Assembléia de Revisão Constitucional no dia 1º de fevereiro de 2007 e dirigirá a sessão de eleição de seu Presidente. § 2º. A discussão da matéria objeto da revisão será feita no sistema unicameral previsto neste artigo. § 3º. A Assembléia de Revisão Constitucional elaborará o Regimento Interno de seus trabalhos. Art. 2º. A revisão constitucional, consubstanciada em ato único, será promulgada após aprovação do seu texto, em dois turnos de discussão e votação, por maioria absoluta de votos de cada Casa integrante da Assembléia de Revisão Constitucional e de referendo popular a ser realizado no primeiro domingo de junho de 2007. Parágrafo Único. A revisão constitucional observará o disposto na Constituição Federal, art. 60, § 4º e não modificará o seu Título II, Capítulo II. Art. 3º. A Assembléia de Revisão Constitucional terá prazo máximo de 12 meses de duração, contados da data de sua instalação. Art. 4º. A cada dez anos é autorizada Revisão Constitucional nos moldes estabelecidos nesta Emenda Constitucional. Art. 5º. Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação. 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

A Proposta FOTO: Câmara

indispensáveis para a Nação brasileira. Sei, finalmente, que estaremos nos sujeitando a críticas e observações, especialmente dos que vêem o Direito como forma e não como finalidade. Mas vale a pena levantar o tema. Quando menos seja, para debatê-lo. Finalmente, proponho que se autorize revisão constitucional a cada dez anos nos moldes propostos no substitutivo. E mais: que não se altere o capítulo referente aos Direitos Sociais (C.F., Título II, Capítulo II). Estou certo de que, com a aprovação desta PEC 157, observar-se-á a tese da perenidade da Constituição que depende de dois pressupostos aparentemente antagônicos mas que, em verdade, se completam: a manutenção do conteúdo conceitual estabelecido nas cláusulas pétreas (explícitas e implícitas) e a possibilidade de sua alteração, desde que mantido o princípio. O engessamento rigoroso da Lei Magna pode levar a indesejáveis rupturas constitucionais. E a revisão, a cada dez anos, garantirá a sua manutenção. A tese da revisão constitucional patrocinada por esta PEC n.º 157, de 2003, de autoria do Dep. Luiz Carlos Santos, em face dos precedentes mencionados e da doutrina ora exposta estão a autorizar a sua admissibilidade, nos termos do substitutivo que ora apresento.

Deputado Luis Carlos Santos

“(...) a presente proposta tem objetivo instituir regime especial de reforma da Constituição, ofertando ao país nova oportunidade de proceder tão necessária profilaxia constitucional.”


“Art. 1º Será instalada, no dia 1º de fevereiro de 2007, Assembléia de Revisão Constitucional, formada pelos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o objetivo de revisar a Constituição. Art. 2º A revisão constitucional, consubstanciada em apenas um ato, será promulgada após a aprovação de seu texto, em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta dos membros da Assembléia de Revisão Constitucional. Parágrafo único. A revisão constitucional observará o disposto no art. 60, § 4º, da Constituição Federal. Art. 3º A Assembléia de Revisão Constitucional extinguir-se-á no prazo máximo de doze meses contados da data de sua instalação. Art. 4º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação”. Justificando a sua proposta, o deputado Luís Carlos Santos enfatiza que a significativa mudança dos rumos políticos do país, simbolizada pela Constituição de 1988, contrasta com as dificuldades técnicas e políticas que seu texto introduziu. Diz, ainda, o autor: “Seu caráter excessivamente analítico produz evidentes inconvenientes, sobretudo nos Capítulos e Seções formulados com a finalidade de impor diretrizes programáticas à promoção do bem-estar social. O alto nível de detalhamento assumido pelo texto constitucional torna, na prática, imprescindível que seja modificada a Constituição a cada governo que se elege. Não raro, o projeto político do governante eleito guarda incompatibilidades insuperáveis com a orientação programática da Constituição. Filigranas previdenciárias, administrativas e tributárias espraiamse por toda a extensão da Carta, suscitando obstáculos, embaraços e impedimentos de toda ordem. À toda evidência, a Constituição brasileira exacerba da tarefa de impor limites aos poderes públicos, constituindo-se em poderoso instrumento de ingovernabilidade”. Sobre o caráter analítico da Constituição brasileira, é precisa lição de Giovanni Sartori. “O salto Quântico ocorreu em 1950, com a Constituição da índia, que tinha 395 artigos, além de alguns anexos detalhados. Mas a Constituição brasileira de 1988 possivelmente bate o recorde, é uma novela do tamanho de um catálogo telefônico, com 245 artigos, mais 200 disposições transitórias. É uma Constituição repleta não só de detalhes triviais como de dispositivos quase suicidas e promessas impossíveis de cumprir.” (cf. Giovanni Sartori – Engenharia constitucional: como se mudam as Constituições. Brasília. Ed. UnB, 1996, p. 211). Em seguida, arremata o festejado cientista político italiano: “No entanto, estou convencido de que as Constituições não devem conter o que compete à legislação ordinária. E acho que quanto mais se regule

se prometa em uma Constituição, mais esta contribuirá para ser desrespeitada e, portanto, para o mal da nação.” (cf. Giovanni Sartori – Engenharia constitucional: como se mudam as Constituições. Brasília. Ed. UnB, 1996, p. 211) Não fosse suficiente o analitismo da Constituição de 1988, seu texto ainda sofreu, até o presente momento mais de 45 modificações formais. Além das 40 Emendas Constitucionais promulgadas, há também seis Emendas de Revisão, editadas por ocasião da Revisão Constitucional de 1994. Tudo isso em menos de 15 anos de vigência da Carta. O ritmo inflacionário com que se altera a Constituição importa em evidente instabilidade jurídica e em sensível déficit de seu valor e de sua força normativa. Ademais, boa parte das reformas constitucionais já procedidas demonstram clara tendência analítica, disciplinando, entre outras matérias, a composição de fundos, o regime jurídico dos policiais militares de exterritórios federais e não incidência de contribuição sobre contas correntes de companhias securitizadoras. Em voga, nos atuais, as propostas de Reforma da Previdência e de Reforma Tributária que contemplam inúmeras tecnicalidades e minúcias dignas de instrumentos infralegais. O bom andamento das instituições políticas e adequado desenvolvimento social do país passam necessariamente por um saneamento constitucional. É necessário que a Constituição cumpra com sua função de dispor sobre a organização fundamental do Estado, extirpando de seu texto, porém, matérias que comportariam, sem maior, prejuízo, disciplina por instrumentos normativos de hierarquia inferior. Ensina Konrad Hesse, a esse propósito, que “sem prescindir das disposições puramente técnico-organizativas, a Constituição deve limitar-se, na medida do possível, a uns poucos princípios fundamentais”. (cf. Escritos de Derecho Constitucional Madrid, Centro de Estudos Constitucionales. 1992. p. 67). Nesse sentido, a presente proposta tem objetivo instituir regime especial de reforma da Constituição, ofertando ao país nova oportunidade de proceder tão necessária profilaxia constitucional. Mediante a convocação de uma Assembléia de Revisão Constitucional, busca-se corrigir rumos, adequar instituições, eliminar artificialidades e pormenores, revitalizando o primado do Estado de Direito e a governabilidade do país. A instalação da Assembléia de Revisão teria vez no dia 1º de fevereiro de 2007, após as eleições de 2006. a revisão seria consubstanciada em apenas um ato – evitando o fatiamento ocorrido com a Revisão Constitucional de 1994 -, e teria o prazo máximo de doze meses para sua concretização. Observaria, por fim, os limites constantes do § 4º do art. 60 da Constituição Federal. Trata-se da verdadeira reforma política de que o país necessita. 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


SOBERANIA E ECOLOGIA Francisco Peçanha Martins Vice-Presidente do Superior Tribunal de Justiça

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izem alguns que a floresta amazônica é o “pulmão do mundo” e, por isso mesmo precisa ser mantida intacta. E, para tanto, propõe-se a sua internacionalização. Antes,no século XIX, o Tenente Matthew Fontaine Manri, chefe do Serviço Hidrográfico da Marinha norteamericana, sofismando, disse que a Amazônia integraria o complexo natural do Mississipi, defendia a transformação da América meridional numa dependência dos EUA, afirmando que “o mundo amazônico é o paraíso das matérias primas, aguardando a chegada de raças fortes e decididas para ser conquistado cientifica e economicamente”. Em 1853, o imperador Pedro II resistiu ás pressões americanas para a abertura do Rio Amazonas à livre navegação internacional. Na década de 1960, o Hudson Institute formulou o projeto dos “grandes lagos” para produção de energia elétrica e navegação, recusado pelo governo brasileiro por transformar a Amazônia numa variante do canal do Panamá para ser utilizada pelos Estados Unidos, segundo o Cel. Manoel Teixeira Pires. O Secretário de Estado Henry Kissinger, em 1975, propôs a criação de um “Banco Mundial de Matérias Primas”, para o controle global delas, proposta rechaçada por várias nações, inclusive o Brasil. Em 1981, o “Conselho Mundial de Igrejas Cristãs”,com sede na Europa, advogava a transformação de tribos em nações indígenas e contestava a soberania do Brasil sobre a Amazônia. Numa reunião do G-7 a que compareceu, como convidado, o Presidente Sarney foi instado a ceder direitos aos paises ricos para explorarem economicamente a hiléia amazônica. Continuaram na proposição de amortização de parte da nossa divida externa em troca de projetos ditos ecológicos. Candidato à Presidência dos EUA em 1989, George Bush afirmou: “os brasileiros pensam que a Amazônia é deles. Não é. Ele pertence a todos nós”. O Senador Kasten, posteriormente, reproduziu a assertiva, dizendo:”Assim como o ozônio, as chuvas, o oxigênio, etc., a Amazônia deve pertencer a todos”. Mitterand, em 1989, declarou que “o Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia”. Gorbachev defendeu, em 1992, que “o Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais com patentes”. O primeiro Ministro da Inglaterra, John Major, preconizou”: “As nações desenvolvidas devem estender os domínios da lei ao que é comum de todos no mundo. As campanhas de ecologistas internacionais a que estamos assistindo, no passado e no presente, sobre a região amazônica, estão deixando a fase propagandista, para dar início a uma fase operativa que pode definitivamente ensejar intervenções militares diretas sobre a região”. O chefe do órgão Central de Informações das Formas Armadas americanas, o Gal. Hugles enfatizou: “Caso o Brasil resolva fazer uso da Amazônia, pondo em risco o meio

“MANTER A AMAZÔNIA INTOCADA, QUAL UM SANTUÁRIO DA NATUREZA, É UM ABSURDO QUE SOMENTE PODE POVOAR A IMAGINAÇÃO DE SONHADORES OU DE QUEM NÃO TEM COMPROMISSO COM O FUTURO DE NOSSO PAÍS E DE NOSSO POVO.” Bernardo Cabral ambiente nos Estados Unidos, teremos que estar prontos para interromper esse processo imediatamente”. As ONG’s, cuja atuação na Amazônia se faz sob as mais diferentes razões, proclamam a tese da internacionalização, financiadas por organizações ditas cristãs, piedosas, e defensoras do meio ambiente. E não só estrangeiros defendem tal tese. Ilustres ecologistas brasileiros o fazem, imbuídos do propósito de salvar o “patrimônio da humanidade”. Antônio Rezk, coordenador nacional do MGH e Direito do IPSO – Instituto de Projetos e Pesquisas Sociais e Tecnológicas, ressaltando a pretensão das nações ricas e a ingenuidade de alguns brasileiros, sugeriu lhes perguntar porque só a Amazônia deve ser patrimônio da humanidade e não a terra toda? Acrescento, perguntando porque não fazer cessar a destruição da camada de ozônio? Porque não intervir nas nações ditas civilizadas, emissoras de gases destruidores da camada vital de ozônio? As florestas, dizem os cientistas, absorvem oxigênio e desprendem gás carbônico, incompatível com a vida humana. Os arrozais asiáticos, no particular, colaboram com uma percentagem maior que a floresta amazônica. Por outro lado, é também assente na ciência agronômica que a floresta pode e deve ser ecologicamente explorada, mercê do desbaste orgânico, que possibilita maior aeração das árvores facilitando a fotosintese, e assegura menor competição pelos nutrientes do solo. É também verdade absoluta que o fenômeno da fotossíntese impõe a exposição das plantas ao sol. Na sombra, não teremos soja, capim, trigo, leguminosas, feijão, cana de açúcar, enfim, nessa terra em que plantando tudo dá, como disse Caminha a Del’Rei de Portugal e comprova, em nossos dias, a Embrapa, com a criação de novas variedades agrícolas, adaptadas aos trópicos e mais produtivas, desmentindo o trágico vaticínio europeu de que não se desenvolveria civilização abaixo do Equador. 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17


O Brasil se apresenta ao mundo como grande supridor das carências alimentares dos bilhões de habitantes do planeta terra. Transforma-se o país no grande produtor agrícola e pecuário. A agroindústria brasileira está presente na vida de quase todas as nações do mundo. É o maior produtor de soja e de carne do globo. Produzimos grãos, carne bovina, suína, avícola, algodão, frutas, açúcar, enfim, produzimos alimentos e bens indispensáveis á vida humana. Estamos colaborando com a humanidade, e o fazemos comparecendo, discutindo e aceitando as lições aprendidas nas Conferências Internacionais. Assumimos compromissos como nação soberana, livre e democrática. Assinamos o

nível econômico. Mas a mãe natureza impõe que tudo se faça ao sol. Para isso, talvez, haja a necessidade de derrubar árvores na floresta amazônica, em grotões de terra fértil nos estados de Mato Grosso, Tocantins, Pará, Amazonas. Esteja certo, porém, o mundo que o país o fará atendendo as orientações científicas. Promoverá, esteja certa a humanidade, o desenvolvimento ecológico sustentável, seguindo à risca os tratados para os quais colaborou decisivamente, inclusive sediando a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento – a conhecida Rio-92. A nação brasileira jamais se escusou de dar cumprimento à Declaração dos Direitos do Homem e inseriu, na Constituição,

“Esteja certo o mundo que o Brasil está preservando o meio ambiente, promovendo, sim, o desenvolvimento ecológico sustentável a serviço da humanidade, mantida a sua soberania sobre todo o território, inclusive a parte que lhe cabe da Amazônia, o que fará soberanamente, à custa de qualquer sacrifício.”

Tratado de Kyoto, e adotamos todas as práticas recomendáveis á proteção do meio ambiente. Praticamos, sim a coibição das atividades nocivas, punidas severamente pela Lei 9.605, de 12.02.1998. Implementam-se técnicas contemporâneas de desenvolvimento sustentável, expandindo a atividade econômica sem prejuízo das condições ambientais, sociais e culturais preexistente. É certo que foram derrubadas árvores em pequenos bolsões férteis da floresta amazônica, para implantar-se a cultura da soja, da cana de açúcar, algodão e a criação de bois, com benefícios maiores para a humanidade consumidora. Mas, se assim foi feito podemos dizer ao mundo que nenhum país plantou mais árvores que o Brasil, transformado, hoje, no maior produtor de celulose do mundo. Derrubaram-se árvores, é certo, mais se implantou a maior cultura de cana de açúcar do planeta, com o qual adoçamos o paladar do mundo e fabricamos o álcool, que permite reduzir a emissão de gases derivados dos hidrocarbonetos com a adição à gasolina, em substituição ao chumbo tetraetílico, reduzindo a poluição. E estamos prontos a fornecê-lo ao Japão e aos EUA, e a todas as nações civilizadas do mundo. Prepara-se o país para a substituição paulatina dos hidrocarbonetos por óleos vegetais. Planta-se a mamona e girassol e outros tantos vegetais que os produzam em 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

no capítulo VI do Título VIII, que trata da ordem social, com ênfase, que o meio ambiente é “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida” (art. 225). Os parques florestais, criados e mantidos no rigor das leis protecionistas dos ecossistemas, somam maior extensão que alguns paises da Europa. Esteja certo o mundo que o Brasil está preservando o meio ambiente, promovendo, sim, o desenvolvimento ecológico sustentável a serviço da humanidade, mantida a sua soberania sobre todo o território, inclusive a parte que lhe cabe da Amazônia, o que fará soberanamente, à custa de qualquer sacrifício. E sabem todos os credores do Brasil que a Nação sempre foi boa pagadora dos empréstimos obtidos no mercado internacional, na maioria leoninos. A Inglaterra, dentre todos, a quem devemos e pagamos com os olhos da cara, desde a dívida assumida por Portugal. Mas, com os ingleses e americanos aprendemos a viver em democracia, com liberdade e soberana altivez, e não esquecemos as lições de Winston Churchill, quando a sua pátria esteve ameaçada pelo Nazismo. Fará, sim, o Brasil, com altaneria, a melhor utilização dos bens naturais que Deus lhe reservou. Esteja certo o mundo que assim procederá defendendo os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, mas como Nação soberana que é.


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LEI DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS LEI nº 11.101, DE 9 DE FEVEREIRO DE 2005. DO PROCESSO E JULGAMENTO DOS CRIMES FALIMENTARES. Paulo Roberto Leite Ventura Desembargador Diretor-Geral da EMERJ

“crime falimentar é um crime concursual, pois o seu reconhecimento depende de um fato exterior à sua própria conceituação típica. Além da integração dos elementos constitutivos da sua figura típica, de concorrer à declaração da quebra“.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

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entre as leis especiais ou extravagantes, no campo do Direito e do Processo Penal, está a Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, em cujo conteúdo revogou, às expressas, o Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, como também os artigos 503 a 512 do Código de Processo Penal que regulam o processo e o julgamento dos crimes de falência, ressalvando o artigo 192 da nova lei, como regra geral, que “não se aplica aos processos de falência ou de concordata ajuizados anteriormente ao início da sua vigência”, os quais deverão ser concluídos à luz do referido Decreto-Lei nº 7.661/45. Contudo, e curiosamente, no parágrafo 4º, do referido artigo 192, o legislador dispôs que, no caso de sentença de falência decretada depois da entrada em vigor da lei nova, quer resultante de convolação, de concordatas ou de pedido de falência anteriores, observase o que dispõe o seu artigo 99, ou seja, nesse caso, muito embora incida o Decreto-Lei 7.661/45 até a sentença, a partir desta e posteriormente, aplica-se a nova lei. 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

A Lei nº 11.101/2005, diferentemente do Decreto-Lei nº 7.661/45, ao tratar incisivamente muito mais da preservação da empresa em momento de crise do que propriamente de sua falência, dá extraordinário realce a este pioneiro instituto da recuperação (artigo 47, da Lei nº 11.101/2005). Esta lei, que à primeira vista causa perplexidade ao desavisado leitor, é inovadora no campo do direito, à medida em que visa, como regra, à recuperação do crédito e, como alternativa extrema, à falência. Falir, juridicamente, quer dizer faltar ou suspender os pagamentos no âmbito do comércio. Assim, sob este ponto de vista, falência quer dizer o estado do comerciante que suspende ou falta aos seus pagamentos. Foi no Código Napoleônico de 1807 que a falência foi disciplinada como instituição peculiar à classe dos comerciantes e a esse código se filiou o nosso Código Comercial de 1850. Por ele, o interesse principal da falência estava na apuração da responsabilidade criminal do falido.


Propõe-se aqui, sob ciência das limitações doutrinárias que cercam o tema no âmbito do direito falencial, diante deste novo instituto legal, analisar o processo e julgamento dos crimes falimentares, que contêm tipos penais próprios e características processuais com rito bem diferenciado dos demais procedimentos. O procedimento falimentar se inicia, como quer o artigo 180 da lei nova, com a sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou concede a recuperação extrajudicial, sentença essa que, para alguns, é meramente declaratória e, para outros, além de declaratória é também constitutiva. Partindo-se desta premissa, a conclusão a que se chega é a de que a sentença declaratória da falência, ou a que concede a recuperação judicial ou extrajudicial, confere existência jurídica aos crimes falimentares e se converte, por conseqüência, em condição objetiva da sua punibilidade. A respeito, a nova lei não trouxe significativas novidades dentro da dogmática, tanto que o saudoso e mestre de todos nós, Nelson Hungria, incluía os crimes ante-falimentares no quadro dos crimes condicionados, nos quais a punibilidade é subordinada a um acontecimento extrínseco e ulterior à consumação (condição objetiva de punibilidade). O crime falimentar é, por excelência, concursual, face à correlação existente entre a falência e o crime falimentar, razão por que é de se aproveitar a lição do professor Manoel Pedro Pimentel, quando afirmou alhures que a existência do crime falimentar está a depender da declaração da quebra, aduzindo, ainda, que o “crime falimentar é um crime concursual, pois o seu reconhecimento depende de um fato exterior à sua própria conceituação típica. Além da integração dos elementos constitutivos da sua figura típica, de concorrer à declaração da quebra” e, hoje, pela nova lei, de decisão que concede a recuperação judicial ou extrajudicial. O sempre lembrado professor Oscar Stevenson, em sua obra sobre Crime Falimentar, lecionou: “chamam-se crimes concursuais ou concursais aqueles que concorrem com outros fatos jurídicos estranhos à esfera do Direito Penal, incluindose entre eles, sem dúvida, o crime falimentar”. Importante salientar que o crime falimentar tem por objetivo atentar contra o comércio, sendo o crédito público o bem jurídico tutelado pela lei, gerando causas que venham a atingir a esfera penal, decorrentes da conduta criminosa do comerciante. Correta, a meu juízo, a posição do jovem professor Arthur Migliari Júnior, ao prelecionar que “das várias definições estudadas, sentimos que os crimes falenciais têm natureza híbrida, posto que ferem mortalmente o crédito público e a economia pública, gerando a instabilidade nas relações comerciais e econômicas. São situações que abalam a credibilidade daqueles que negociam, além das perdas naturais do relacionamento comercial. Dentro desta linha de raciocínio, entendemos que o crime de falência tem natureza pública, gerando a instabilidade ao crédito público e à economia pública”. Este conceito, já sedimentado desde o advento do Decreto-

Lei nº 7.661/45, não foi inteiramente modificado pela nova Lei nº 11.101/2005. Quanto ao seu elemento subjetivo, o crime falimentar é eminentemente doloso, podendo ele ser de dano, quando resulta uma lesão, total ou parcial, e de perigo, quando sobrevém a possibilidade de uma ameaça lesionadora de um bem ou interesse. Assim, à luz da Lei 11.101/2005, todos os delitos nela previsto são punidos a título de dolo, realçandose que, em algumas hipóteses, ocorre o dolo específico, como mais adiante analisarei. Cumpre ressaltar que, por força do disposto no artigo 12 do Código Penal, “as regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”. Assim, contrariamente do que dispunha o artigo 199 caput do Decreto-Lei 7.661/45, que estabelecia o prazo prescricional de dois anos para o crime falimentar, hoje, com o advento da Lei 11.101/2005, consoante dispõe o seu artigo 182, a prescrição dos crimes previstos nesta lei reger-se-á pelo Código Penal, começando a fluir do dia da decretação da falência, da concessão da recuperação judicial ou da homologação do plano de recuperação extrajudicial. Assim, restabelecendo o legislador, em boa hora, as diretrizes traçadas pelo Código Penal, a prescrição passa a ser calculada com base na pena cominada ou aplicada ao delito, advertindose, contudo, para o seu marco inicial, que não é a data do cometimento do crime, mas sim a data da decretação da quebra ou da sua recuperação judicial ou extrajudicial (art. 182). Os crimes falimentares ou falenciais, partindo-se do sujeito ativo, classicamente estão divididos em crimes próprios e impróprios, pontuando a nova lei, aliás, não discrepando da tradição, que os crimes falenciais próprios são aqueles cometidos pelo próprio comerciante que incorre em falência, e impróprios, os praticados quando decorrentes de um concurso de agentes, ou seja, sempre que pessoa estranha ao mundo do comércio pratica com o comerciante ou possibilita que este pratique atos que venham a gerar falência, para o que se impõe uma conexão, não só instrutória como probatória. Em resumo, os crimes falenciais impróprios ocorrem relacionados àqueles que participam da relação processual, direta ou indiretamente (Juízes, Promotores, Contadores, Gestores, Administradores etc), conforme prevêem os artigos 168, parágrafo 3º, 169, 170, 174, 175, 177 e 179, todos da Lei 11.101/2005. Curioso ressaltar que, por um equívoco do legislador, a figura do depositário restou esquecida e não figurou no elenco daqueles que podem cometer um crime falencial impróprio, contudo, por aplicabilidade absoluta do artigo 12 do Código Penal, poderá ele sofrer imputação, à luz do que dispõe o artigo 29 do Código Penal, ao cuidar do concurso de pessoas, o mesmo ocorrendo com aquele que exerce a função de preposto. Quanto ao sujeito passivo, da relação processual penal falencial, tem-se o Estado especialmente, como regra, e, secundariamente, a comunidade de credores, estes habilitados ou não e, ainda, como novidade trazida pela nova lei, o 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


“Outro aspecto interessante é reconhecer-se que, uma vez iniciado o processo de recuperação, interrompese automaticamente o prazo prescricional, que, frustrada (a recuperação), pode ser retomado o lapso prescricional com o advento da sentença declaratória da quebra.” devedor, especialmente nos crimes definidos nos artigos 169 e 170 da LRE. O crime falimentar ou falencial, quanto ao momento da execução, será ante-falimentar, ou seja, quando praticados atos criminosos antes da declaração judicial da falência (art. 168, parágrafo 1º, incisos I a V; 169, 171, 172). O crime, contudo, será pós-falimentar (próprio) quando os atos tipificadores da conduta criminosa ocorrerem após a sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar plano de recuperação extrajudicial (art. 172 da LRE). Do procedimento criminal O crime falencial ou falimentar, em regra, segundo dispõe o artigo 184 da LRE, é de ação pública incondicionada, muito embora o legislador tenha previsto, no parágrafo único do referido artigo, a possibilidade de ser proposta ação penal privada subsidiária quando decorrido o prazo a que se refere o artigo 187, parágrafo 1º, sem que o representante do Ministério Público ofereça denuncia, o suficiente para legitimar qualquer credor habilitado ou o administrador judicial para deflagrar a percecutio criminis, dando, assim, uma redação diversa daquela prevista no artigo 503 do Código de Processo Penal, ora revogado. A ação penal privada subsidiária, contudo, fica adstrita a um prazo decadencial de 6 meses e o prazo para o Ministério Público oferecer a denúncia é aquele previsto no artigo 46 da lei processual penal, ou seja, 5 (cinco) dias se o réu estiver preso e 15 (quinze) dias se estiver solto, conforme estatui o parágrafo 1º do artigo 187 da LRE, ressalvada a hipótese de, estando solto ou afiançado o réu, decidir o Ministério Público por aguardar a apresentação da exposição circunstanciada de 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

que trata o artigo 186 da lei especial em comento, devendo, nesta hipótese, oferecer a denúncia seguidamente em 15 (quinze) dias. Este prazo, como lógico, será contado a partir da data em que o Ministério Público receber novamente os autos. Com o advento da Lei nº 11.101/2005, ex-vi do seu artigo 200, restaram revogados os artigos 503 a 512 do Código de Processo Penal que disciplinavam o processo e julgamento dos crimes de falência e, assim, como prelecionou o professor Arthur Migliari Júnior, em aula proferida na EMERJ, durante o período de vacatio da nova lei, haveria vários momentos “destinados à apuração dos crimes falenciais, não se cingindo ela ao inquérito judicial, como era no modelo do Decreto-Lei 7.661/45”. Prossegue o eminente professor: Assim, podemos observar que o primeiro momento de apuração dos crimes falenciais se dá com a decretação da falência, ou da concessão da recuperação judicial, sendo intimado o Órgão do Ministério Público (artigo 187, caput), ao qual incumbirá observar se age desde esse instante, ou não, dentro de seu juízo de discricionariedade.(...) O segundo momento de apuração dos crimes falenciais se dará quando da apresentação do relatório do administrador (art. 22, III, “e”, c/c 186, caput), quando este mostrar as responsabilidades civis e penais dos envolvidos nos processos falenciais e de recuperação de empresa (ao mesmo estilo do que acontecia com o relatório do síndico na legislação anterior).(...) O terceiro momento se resume a uma forma pouco comum de apuração de quaisquer delitos, eis que se dará em qualquer fase processual, desde que haja indícios de prática de delitos (art. 187, parágrafo 2º)”. Importante ressaltar que o legislador buscou, com a nova lei, acabar de vez com aquele anacrônico procedimento processual do inquérito judicial, prestigiado por tantos anos pelo Decreto-Lei nº 7.661/45, em seu artigo 103, cujo desenvolvimento corria no juízo falencial, até que a denúncia fosse recebida por despacho fundamentado, pelo qual o Juiz da falência se despojava da sua competência e determinava a imediata remessa dos autos ao Juízo Criminal para posterior prosseguimento da ação penal que, a partir de então, deveria obedecer às diretrizes traçadas pela lei processual penal, previstas nos artigos 503 a 512 do Código de Processo Penal, o que, aliás, já não vinha sendo efetivamente observado. Hoje, por força do que dispõe o artigo 187 da LRE, ao ser intimado da sentença, quer daquela que decreta a quebra ou da que concede a recuperação judicial, o Ministério Público, se verificar a prática de crime previsto na nova lei especial ou mesmo a existência de indícios sérios e concludentes dos delitos, estará legitimado para, imediatamente, como quer a lei, deflagrar ação penal ou, se assim não entender, em razão de ausências de documentos capazes de revelar um suporte mínimo acusatório, poderá requisitar a instauração de inquérito policial, este disciplinado pelos artigos 4º a 23


do Código de Processo Penal, consoante dispõe o artigo 188 da LRE. Averbe-se, entretanto, por disposição expressa do artigo 192, parágrafo 1º da LRE, ainda restou preservada a figura do inquérito judicial, cuja conclusão deve ser aguardada, por não se aplicar a nova lei aos processos de falência ou concordata, desde que ajuizados anteriormente à sua vigência, os quais deverão ser concluídos em conformidade com o estatuído pelo Decreto-Lei 7.661/45. Por outro lado, como a Constituição Federal legitima plenos poderes ao Ministério Público para promover ações em defesa dos interesses difusos e coletivos, pode também o “Parquet” ajuizar ação civil pública, quer por meio de inquérito civil (art. 8º da Lei 7.437/85), ou, ainda, por peças de informações (art. 129, I, III, VI, VIII e IX, da Carta Constitucional Federal), podendo ser este mais um momento ou meio para também se apurar prática de crimes falenciais, isto porque “a ação civil de responsabilidade dos danos patrimoniais abrange tanto os interesses difusos quanto os coletivos, neste último aspecto, a comunidade de credores habilitados ou não”, como se infere, aliás, do artigo 186 da LRE, que faz expressa referência ao artigo 22, III, “e”, da aludida nova lei especial. Rematando, segundo dispõem os artigos 183 a 188 da LRE, o rito procedimental do crime falimentar ou falencial é de natureza sumária, previstos nos artigos 538 a 540 do Código de Processo Penal, uma vez que, a partir da Constituição de 88, o procedimento judicialiforme restou sepultado, tendo em vista a norma expressa do artigo 129, I, da CF, que assegura somente ao Ministério Público, como uma de suas funções institucionais, a legitimidade privativa para promover ação penal pública. Entendamos, pois, o rito procedimental do crime falimentar. 1. É da competência do juízo criminal da jurisdição, onde tenha sido decretada a falência, conhecer e julgar a ação penal proposta por infração dos crimes previstos nos artigos 168 a 178 da LRE; Esta regra expressa no artigo 183 da referida lei estabelece o princípio da unidade do juízo falencial, criando uma exceção ao princípio da competência ratione loci, contemplado no artigo 69 do Código de Processo Penal, isto é, permite a nova lei que o fato de longe seja julgado na jurisdição da falência. Quero dizer que, apesar da primeira regra definidora da competência em matéria penal se situar exatamente no lugar da infração, ditando o artigo 6º do Código Penal que “considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde produziu ou deveria produzir-se o resultado”, segundo a nova lei, ainda que a ação criminosa venha a ser praticada em local outro, a teor de seu artigo 183, prevalece o princípio da universalidade que previne a competência do juiz criminal da jurisdição onde tenha sido decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação extrajudicial, para conhecer da ação penal pelos crimes nela

previstos. Na verdade, a nova lei construiu uma derrogação da regra do julgamento no distrito da culpa, quando se sabe que onde o crime foi praticado, onde a ordem social foi violada, aí deve haver a manifestação do jus persequendi e aí deve realizar-se o jus puniendi, isso porque o lugar da infração é o mais indicado para o processo, por vários motivos, dentre os quais, sobressaem dois: o primeiro está atrelado ao princípio da prevenção geral, pois a pena, dentre suas diversas finalidades, tem a de prevenir o crime e o castigo imposto ao delinqüente é exemplo a ser edificado na comunidade onde o fato se passou; o outro é que aí existem, em regra, as provas do delito, pois elas, em sendo colhidas, geralmente no local do crime, por tal razão e conseqüentemente, poderão ser melhor pesadas e apreciadas pelo julgador da localidade onde ele foi perpetrado. 2. Firma a regra da ação penal pública incondicionada e suprime a figura do assistente de acusação; 3. Estabelece o rito sumário, a teor dos artigos 538 a 540 do Código de Processo Penal, após recebida a denúncia; 4. Recebida a denúncia, regularmente citado o réu, será ele interrogado, deferindo-se-lhe prazo para oferecer alegações preliminares e arrolar até cinco testemunhas, ex-vi do artigo 539 do Código de Processo Penal. Inquiridas as testemunhas, passa-se aos debates orais, seguindo-se a sentença, que pode ser prolatada na audiência, caso o Juiz se julgue habilitado para decidir a questão. Caso contrário, a teor do disposto no artigo 538, parágrafo 3º do Código de Processo Penal, o julgador poderá determinar que os autos lhe sejam conclusos para decidir no prazo de 5 (cinco) dias. Em verdade, com esta nova lei, o legislador buscou dar maior celeridade para o julgamento dos crimes falimentares ao estabelecer o rito sumário, que se aplica a todos os feitos, 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


ainda àqueles em que o andamento tenha sido iniciado à luz do Decreto-Lei 7.661/45, por se tratar de regra de direito processual, de incidência imediata, como previsto no artigo 2º do Código de Processo Penal, descabendo, portanto, qualquer alegação de afronta a princípio constitucional. Desprezado, assim, o rito mais lento, o legislador buscou impedir que a maioria dos crimes falimentares prescrevessem, dada a complexidade da apuração do tipo penal, muitas vezes desdobrada em inúmeros estágios no curso da investigação falencial para se chegar até a decretação da quebra, esta como condição objetiva de punibilidade. Visou, em verdade, o legislador a uma rápida entrega da prestação jurisdicional. Dos tipos penais A nova lei pune com mais gravidade os crimes contábeis e, na medida em que fomenta a pena, faz com que o comerciante reflita e pense mais um pouco na cautela que deve ter no desempenho da sua atividade comercial, não porque a pena em si só possa intimidar, mas sobretudo, porque a lei encerra, aliás com muita evidência, a certeza da punição e as conseqüências dela decorrentes. A regra da prescrição, como novidade, passou a ser regulada pelo Código Penal, conforme expressamente dispõe o artigo 182 da LRE. Por outro lado, a respeito das causas interruptivas do lapso prescricional, a nova lei, no parágrafo único do artigo 182, apenas estatui que a decretação da falência do devedor interrompe a prescrição cuja contagem tenha sido iniciada com a concessão da recuperação judicial ou com a homologação do plano de recuperação extrajudicial. Importante realçar, contudo, apesar do silêncio da lei falencial, também interrompem o curso da prescrição o recebimento 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

da denúncia, a sentença condenatória recorrível, o início ou continuação do cumprimento da pena e a reincidência, ex-vi do artigo 117, I, IV, V e VI do Código Penal, c/c o artigo 182, parágrafo único da LRE. A respeito, pela Súmula 592, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que “nos crimes falimentares aplicam-se as causas interruptivas da prescrição previstas no Código Penal” e, com o advento da nova lei, nada restou alterado no entendimento sumulado. Incide, também, na nova lei, a redução dos prazos prescricionais, conforme disposto no artigo 115 do Código Penal, que disciplina: “são reduzidos de metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de vinte e um anos de idade, ou, na data da sentença [aqui entendida condenatória] maior de setenta anos de idade”. Importante aclarar que, fugindo à regra do tempus regit actum, o prazo da prescrição da pretensão punitiva não começa a correr do dia em que o crime se consumou, como previsto no artigo 111, I, do Código Penal, mas da data da decretação da falência, da concessão da recuperação judicial ou da homologação do plano de recuperação extrajudicial. Uma outra questão, é importante comentar, diz respeito à suspensão do prazo prescricional, em face do absoluto silêncio da nova lei. Assim é que, decretada a falência e havendo interposição de recurso, até que a instância superior julgue, não há a menor dúvida de que está suspenso o prazo prescricional por incidência, na hipótese, do artigo 116 do Código Penal, até que seja pacificada ou não a validade da sentença recorrida. Outro aspecto interessante é reconhecer-se que, uma vez iniciado o processo de recuperação, interrompe-se automaticamente o prazo prescricional, que, frustrada (a recuperação), pode ser retomado o lapso prescricional com o advento da sentença declaratória da quebra. O artigo 168 da LRE cuida da fraude contra credores, figura delituosa que não é nova, visto que já contemplada no artigo 187 do Decreto-Lei 7.661/45, agora, entretanto, punida com pena mais severa e que oscila entre 3 a 6 anos de reclusão, e multa, sendo que anteriormente a pena era de 1 a 4 anos de reclusão. A novidade, contudo, é a imposição cumulativa da pena reclusiva com a pecuniária, esta com previsão no artigo 49 do Código Penal e seus parágrafos. Outra novidade trazida pelo legislador reside no elemento subjetivo. Agora a título de dolo específico ou direto, à medida em que contrariamente à previsão contida na legislação revogada, estabeleceu-se que o ato fraudulento há que ter fim específico e finalístico voltado para obter ou assegurar vantagem indevida, para si ou para outrem, ao passo que, à luz do revogado artigo 187 do Decreto Lei nº 7.661/45, o fim visado pelo agente não era obter, mas criar ou assegurar injusta vantagem para si ou para outrem. Por outro passo, o legislador, nos parágrafos primeiro, e incisos, segundo e terceiro do suso mencionado artigo 168


da LRE, criou tipos subordinados que geram causas especiais de aumento da pena. Como novidade, passou a punir com agravamento da pena de 1/3 até a metade, se o devedor manteve ou movimentou recursos ou valores em contabilidade paralela àquela exigida pela legislação, admitindo, mais adiante, no parágrafo terceiro do mesmo artigo 168, o concurso de pessoas, estendendo uma malha para alcançar os contadores, técnicos contábeis ou outros profissionais que, direta ou indiretamente, de qualquer modo concorreram, na medida da sua culpabilidade, para as condutas criminosas descritas no seu parágrafo primeiro, incisos, I a V e parágrafo segundo. Sensível ao funcionamento das microempresas ou de empresas de pequeno porte, o legislador, no parágrafo quarto, do artigo 168 em testilha, criou causa especial de diminuição da pena, admitindo, também, a possibilidade da substituição da mesma, sempre que não se constatar prática habitual de conduta fraudulenta por parte do falido. Na hipótese, a redução oscilará de 1/3 até 2/3, ou, se satisfeitas as diretrizes do artigo 44 do Código Penal, o Juiz poderá, também, substituir a pena privativa da liberdade por restritivas de direitos, pelas perdas de bens e valores ou pela prestação de serviço à comunidade. Também punido, a título de dolo direto, está o crime de violação de sigilo empresarial, previsto no artigo 169 da LRE, repousando o atuar injusto do agente na contribuição consciente para (o fim de) conduzir o devedor a estado de inviabilidade econômica ou financeira. No mesmo sentido, o crime de divulgação de informações falsas, previsto no artigo 170 da LRE, cujo elemento subjetivo do tipo reside na ação de divulgar ou propalar, por qualquer meio, informações sabidamente falsas sobre o devedor em recuperação, visando a levá-lo à falência ou, ainda e alternativamente, para obter vantagem (vantagem essa que só pode ser econômica ou financeira, é a conclusão a que se chega em face do silêncio do legislador). Impende ressaltar, ainda, que somente a divulgação sabidamente falsa é que integra o tipo penal em tela. Estas duas modalidades de crime representam, sem dúvida, uma novidade da nova lei, cujo escopo é o de proteger os devedores. O artigo 171 da LRE cuida do crime de indução ao erro, delito que se assemelha ao de fraude processual, previsto no artigo 347 do Código Penal. Aqui, diferentemente daquele, o tipo penal contempla uma hipótese específica de fraude direcionada ao processo de falência, de recuperação judicial ou de recuperação extrajudicial, que se pune a título de dolo e se especifica pelo fim de induzir a erro o Juiz, o Ministério Público, os credores, a assembléia geral de credores, o Comitê ou o administrador judicial. Trata-se, como se infere do próprio tipo, de crime formal ou de mera conduta, cujo summatum opus ocorre desde que ultimada a sonegação ou a omissão de informação, ou, ainda, prestadas informações falsas, pouco importando que se siga ou não o engano do juiz, do Ministério Público etc, ou, ainda, que por motivo superveniente, o processo não chegue à fase de julgamento, desde que o artifício articulado mostre-se idôneo a enganar.

“Sensível ao funcionamento das microempresas ou de empresas de pequeno porte, o legislador, no parágrafo quarto, do artigo 168 em testilha, criou causa especial de diminuição da pena, admitindo, também, a possibilidade da substituição da mesma, sempre que não se constatar prática habitual de conduta fraudulenta por parte do falido.” Este crime, entretanto, é autônomo e não subsidiário, admitindo-se, contudo, cúmulo material com outro delito mais grave (p. ex., art. 168 da LRE). O artigo 172 descreve tipos de crime ante e pós-falimentar. O primeiro, se a conduta antecede à sentença declaratória da quebra ou que concede a recuperação judicial ou homologa plano de recuperação extrajudicial. O segundo, se a conduta criminosa é posterior. Em qualquer hipótese, o sujeito ativo pode ser próprio ou impróprio, visto que o legislador não distinguiu quem pode praticar o ato de disposição ou oneração patrimonial, ou gerador de obrigação, destinado a favorecer um ou mais credores, em prejuízos dos demais. No parágrafo único do artigo 172, o legislador previu a mesma pena de 2 a 5 anos de reclusão e multa para aquele que recebeu os bens, desde que comprovado um nexo subjetivo de conluio com aquele que praticou a conduta prevista no caput do mesmo artigo, demonstrado que se beneficiou em detrimento dos demais credores. A novidade trazida pelos artigos 173 e 174 da LRE repousa no uso dos bens. Notam-se, contudo, duas imperfeições do legislador. A primeira, no artigo 173, quando deixou sem punição aquele que ainda não teve a falência decretada e não estava em recuperação, apesar de o referido dispositivo legal falar em “massa falida”, a concluir-se pela existência já sedimentada da universalidade de direito, ao passo que, na dicção do artigo 174, o legislador optou por não punir aquele que praticou crimes contra bens da empresa em recuperação, privilegiando tão-só os bens pertencentes à massa falida. No artigo 175 da LRE, o legislador repristinou a figura delituosa contemplada no artigo 189, II, do Decreto-Lei 7.611/45, à medida em que cuida da habilitação ilegal de crédito. 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


Já no artigo 176, está prevista a hipótese de exercício ilegal de atividade, visando a punir aquele que desrespeita decisão judicial que inabilita ou incapacita alguém para o exercício do comércio. Esta figura delituosa também tem previsão no artigo 359 do Código Penal, que pune, com pena de detenção, aquele que desobedece decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito. Vê-se, pois, que a intenção do legislador foi a de assegurar penalmente o cumprimento de pena restritiva de direito. O que se incrimina, bom é realçar, é o fato de exercer atividade para a qual foi inabilitado ou incapacitado e, conforme expressamente declara o tipo penal, é preciso que a inabilitação ou incapacidade de que se cuida decorra de decisão judicial, definitiva ou em caráter provisório. O elemento subjetivo é o dolo genérico e o crime se consuma com a efetiva prática de qualquer ato que implique violação da decisão judicial, no tocante à inabilitação ou incapacitação para a atividade comercial. O artigo 177 da LRE descreve um crime falencial impróprio e de consumação antecipada, porque a conduta se exaure antes de qualquer prejuízo para a massa falida. O que se pune na espécie é a mera especulação, quebrando o princípio da boa-fé. Vê-se, pois, que, quando o legislador cuida da especulação, está, em verdade, punindo a mera intenção do agente. Nota-se, assim, neste dispositivo, mais uma falha do legislador à medida em que deixou de fora o depositário de bens, exatamente aquele que, mais do que qualquer outra pessoa, melhor conhece os bens da massa falida. Na hipótese, se conceituada a conduta nos limites do crime meramente formal, ou seja, crime que descreve um resultado que efetivamente não se precisa verificar para a ocorrência da consumação, bastando, tão-só, a ação meramente volitiva do agente, in casu, esta isolada especulação de lucro para a concretização de seu intento, desde que manifestada, à evidência, no atuar reprovável do agente, é o suficiente para configurar um dano em potencial. Na verdade, em crimes desta natureza que, à primeira vista, parece buscar-se punição em razão de mera cogitatio, impõese entender que o legislador visou a definir um tipo penal de consumação antecipada, satisfazendo-se com a mera conduta que antecede, ou, em última análise, alheia-se por completo ao eventus danni, segundo a lição de Hungria. Há que se ressaltar, contudo, que, na parte final do artigo 177 da LRE, quando o legislador fala da “especulação de lucros”, está ele descrevendo tão-somente o comportamento do agente, sem se preocupar com o resultado, satisfazendo-se, como se pode concluir com a sua mera volição. Contudo, comprovado, em decorrência da especulação de lucro, a existência de um efetivo eventus danni, capaz de tipificar autonomamente outro injusto, definido nesta lei especial ou no Código Penal, é de se recepcionar na capitulação a figura do concurso de crimes. O artigo 178, por derradeiro, descreve um tipo de crime subsidiário, comissivo por omissão, sendo o único, na nova 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

legislação falencial, que permite a suspensão condicional do processo, porque elencado no rol daqueles crimes de menor potencial ofensivo, cabendo, portanto, aplicação do artigo 89 da Lei 9.099/95 e artigo 2º da Lei 10.259/01. Infere-se que o agente, ao deixar de elaborar, escriturar ou autenticar os documentos de escrituração contábil obrigatórios, pratica uma conduta omissiva imprópria ou comissiva por omissão, certo que a omissão no seu atuar reflete o meio pelo qual o agente produz o resultado, cabendo lembrar que, em crimes desta natureza, o que a lei pune não é a omissão em si, devendo o agente responder tão-somente em razão do resultado decorrente da sua deliberada conduta omissiva, conduta esta a que está obrigado a impedir. Esta é a conclusão lógica a que se chega em razão da regra que soa do parágrafo 2º do artigo 13 do Código Penal, ao dispor, verbis: “A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem tenha por lei obrigação de cuidado, proteção e vigilância; de outra forma assumiu a responsabilidade de impedir o resultado ou com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”. O legislador, como se infere, dá especial relevo à figura do garantidor, destacando a relevância da omissão. Como leciona o professor Cezar Roberto Bitencourt a respeito do tema: “Na omissão ocorre o desenrolar de uma cadeia causal que não foi determinada pelo sujeito, que se desenvolve de maneira estranha a ele, da qual é um mero observador. Acontece que a lei determina-lhe a obrigação de intervir nesse processo, impedindo que produza o resultado que se quer evitar. Ora, se o agente não intervém, não se pode dizer que causou o resultado, que foi produto daquela energia estranha a ele, que determinou o processo causal”. E prossegue o eminente professor: “Na verdade, o sujeito não o causou, mas como não o impediu, é equiparado ao verdadeiro causador do resultado. Portanto, na omissão não há o nexo de causalidade, há o nexo de não impedimento. A omissão relaciona-se com o resultado pelo seu não impedimento e não pela sua causação. E esse não-impedimento é erigido pelo Direito à condição de causa, isto é, como se fosse a causa real. Dessa forma, determina-se a imputação objetiva do fato”. Contudo, a omissão só integrará o elemento do crime falencial no momento em que ocorrer o advento da sentença de quebra ou de recuperação, isto porque a simples omissão, solta no mundo exterior, sem que tal ocorra, pode, quando muito, caracterizar um tipo contravencional previsto no artigo 49 da LCP, ainda vigente, ou, quiçá, o tipo do artigo 297, parágrafo 2º, do Código Penal. Na hipótese de ocorrer a prática do crime previsto neste artigo, a competência se firmará em favor do Juizado Especial Criminal, observando o que dispõe o artigo 183 da LRE. Com estas breves considerações, espero contribuir para que todos possamos viver mais intensamente esta nova e revolucionária lei.


ELEIÇÕES 2006

A Lei Eleitoral em perguntas e respostas

E

ste livro é uma ferramenta de trabalho para candidatos, dirigentes partidários, advogados, estudantes, enfim, para todos que, de uma maneira ou de outra, têm interesse nas eleições de 2006. São duzentos e quarenta e oito perguntas respondidas objetivamente, a respeito de dúvidas mais comuns e freqüentes que ocorrem aos que lidam com o Direito Eleitoral. As respostas são fundamentadas nos textos legais e nas decisões dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Supremo Tribunal Eleitoral permitindo ao leitor uma visão geral das regras do processo eleitoral e suas interpretações. Além disso, neste livro estão incluídos o Calendário Eleitoral 2006, as principais resoluções do TSE para as eleições deste ano, o texto integral da Lei nº 9.504/97. _ O tio e o primo do Governador são inelegíveis? _ Qual o prazo para o funcionário público que preten-

de concorrer às eleições, requerer o seu afastamento? _ Quantos candidatos cada partido ou coligação podem registrar para concorrer à Deputado Federal? _ Qual o valor máximo que cada candidato pode despender com gastos eleitorais? _ É permitido o uso de camisetas, bottons e bonés no dia da eleição? _ Como é feito cálculo da divisão de tempo de propaganda eleitoral para cada partido nas eleições 2006? _ O Governador que teve suas contas rejeitadas pelo Tribunal de Contas torna-se, automaticamente, inelegível? Essas dezenas de outras perguntas são respondidas neste livro de maneira clara e objetiva. São duzentas e quarenta e oito questões sobre inelegibilidade, coligações, registro de candidatos, financiamento de campanha, propaganda eleitoral, fiscalização entre outros assuntos relativos às eleições do ano de 2006. Além disso, no livro estão os textos integrais de leis e resoluções.

CARLOS SIQUEIRA Advogado com larga experiência no campo do Direito Eleitoral. Foi coordenador do Núcleo Jurídico do GAJOP (entidade de defesa dos direitos humanos); exerceu diversas funções públicas, tais como: Procurador-Geral da Superintendência Nacional do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), Chefa de Gabinete da Secretaria de Trabalho e Ação Social do Estado de Pernambuco, Secretário-Adjunto da Secretaria de Justiça do Estado de Pernambuco, e Chefe de Gabinete dos Ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnologia. Atualmente é o primeiro Secretário Nacional do Partido Socialista Brasileiro.

MURILO SÉRGIO Advogado, Analista Legislativo, atualmente é Consultor-Chefe do Núcleo Jurídico da Câmara de Deputados, em Brasília-DF. Foi Secretário de Governo da Prefeitura de Palmas-TO. Secretário-Chefe da Casa Civil em Tocantins, Assessor Jurídico do Governo do Distrito Federal (GDF), além de ter exercido diversas outras funções de assessoramento legislativo na Câmara Federal.

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O Polinômio   da Boa Administração da Justiça Ética . Competência . Participação . Transparência . Efetividade José Carlos Schmidt Murta Ribeiro Desembargador do TJ/RJ

“A lógica mostrou que, para que cada um esteja bem, é preciso que todos estejam bem. E isto é mais do que suficiente para demonstrar a importância da prevalência da ética.”

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ós, membros do Poder Judiciário Nacional, vivemos hoje momentos de mudanças e perplexidades, isto, proveniente de uma “Reforma Judiciária” que, data vênia de qualquer outra visão mais otimista sobre o tema, pouca efetividade trará para a solução dos conflitos entre as partes litigantes e a propalada moralização da sociedade brasileira. Em realidade, fala-se - e fala-se muito -  de ÉTICA, sem contudo que se lhe dê o seu conteúdo verdadeiro. Na verdade, confunde-se seu conceito para então aplicá-la em vão em toda e qualquer situação de retórica, e, até mesmo, em comezinhas discussões de torcidas de futebol. Recentemente a Revista Cultural “O Prelo” da Imprensa Oficial do Estado e Órgão do Conselho Estadual 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, publicou excelente artigo do acadêmico e secretário estadual de cultura, Arnaldo Niskier, intitulado “Os Valores da Ética, onde, através da história,  fez estudo valoroso sobre o tema  e nos revela seu conceito filosófico próprio. São do ilustre acadêmico as seguintes assertivas que nos levam a definir este princípio fundamental na vida dos homens, princípio muito discutido, mas, infelizmente, pouco vivenciado, verbis: “Há uma pergunta no ar e uma palavra no dicionário: ética.Sintetizada oficialmente como a ciência da moral, o estudo dos juízos de apreciação referentes a princípios de conduta humana, o equilíbrio no contato entre as pessoas. Na verdade, ética é uma espécie de ‘grade’ separando posses, confortos, vaidades,


egoísmos, pantufas, vantagens, jeiti-nhos, justificativas etc. Entre todas as muitas e variadas definições, há quem defenda a tese segundo a qual, para se conhecer a alma dessa palavra, uma evidência não pode ser deixada de lado é a reciprocidade interpessoal que estabelece a ‘eticidade’ de nossos comportamentos e ações.(sem grifos no original). Não foi à toa que Emannuel Kant, em seus ‘Fundamentos da Metafísica dos Costumes’ definiu a ética como o respeito à dignidade do outro. Aliás, o filósofo francês E. Levinas reforça a idéia, dizendo que o apelo ético é o rosto do outro. O rosto do outro me interpela e pede reconhecimento e respeito.Uma con-cepção que, segundo o professor Olinto Pegoraro, tornaria a ética, objetiva. Ou seja, somos éticos em relação a alguém e não porque obedecemos a determinadas normas. No livro ‘Introdução à Ética Contemporânea’, ele procura comprovar que não é a norma que torna a ética objetiva, mas a pessoa. E o rosto do outro. Dessa reciprocidade nasceram os grandes trabalhos sobre o assunto. Por exemplo, a ética aristotélica teria seus fundamentos na relação justa entre as pessoas e a ética agostiniana, seria uma relação de amor entre as pessoas. Karl Marx, aliás, já tinha escrito que a essência humana é o conjunto de suas relações sociais. Foi na segunda metade do século XX, com a dilapidação da natureza, que a poluição do meio ambiente e, sobretudo, os fantásticos avanços da biotecnologia, que a ética teria alcançado abrangência mais ampla e importância maior. Ainda de acordo com o professor Pegoraro, a ética contemporânea seria a ética da solidariedade antropocósmica, que abrangeria não mais só os seres humanos, mas todos os seres naturais, e mais, os artefatos científicos também. Porque não se trata de alguma coisa inventada, mas surgida do convívio das pessoas e das coisas nesta grande comunidade planetária em que estamos. A ética é relacional, interrelacional. Quer dizer, é a reciprocidade interpessoal que estabelece a ética em nossos comportamentos.” Portanto, devemos ser éticos, verdadeiramente éticos, para podermos construir uma sociedade mais justa e solidária. É ainda este mesmo articulista de escol que nos traz a lição de Ruy Martins Altenfelder Silva, vice-presidente do Centro de Integração Empresa-Escola e da Academia Paulista de História, presidente do Instituto Roberto Simonsen, e ex-Secretário de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo, que ao se debruçar sobre este mesmo tema em “O Pressuposto da Ética”, sintetiza seu pensamento: “indiscutivelmente, a ética é o bem mais importante e o mais rentável, de uma sociedade. Se um dia todos se tornassem éticos, sobrariam recursos. Porque o relevante para a sobrevivência não são os bens materiais, mas os bens sociais, o ‘ativo social’. O desenvolvimento já não pode mais ser encarado em termos meramente materiais ou sob o prisma do consumo. Saber organizar-se é o segredo de uma sociedade. A lógica da ganância e do egoísmo levava empresas a acumular riquezas em poucos lugares e pobrezas em muitos outros, querendo ganhar sozinhas, mas já estão começando a descobrir que melhor mesmo é enriquecer também o seu entorno. A lógica mostrou que, para que cada

“(...) neste momento histórico de reformas que atravessamos, a mais das vezes, nós, os Juízes, somos apresentados como ‘vilões de todos os males da Nação’, quando a toda evidência isto não é real (...)”

um esteja bem, é preciso que todos estejam bem. E isto é mais do que suficiente para demonstrar a importância da prevalência da ética.” Nós operadores do direito temos que ter como pressuposto básico de nosso atuar, sem sombra de qualquer dúvida, a eticidade de nossa conduta, para então alcançarmos a almejada e necessária boa distribuição da Justiça. De outra forma, também será preciso desmistificar o conceito corrente que “direito é bom senso”. Sim, direito é também bom senso, mas, não só isto. É uma ciência que exige estudo e competência. Assim, para a segurança jurídica é indispensável que os Juízes aqueles que prestam a jurisdição em qualquer grau ou Tribunal tenham a garantia de sólida formação cultural, que adicionada a eticidade de suas condutas, decidam conforme a Constituição e as Leis. Tal desideratum há que estar presente na pessoa do novel Juiz recém-empossado na carreira da Magistratura até ao mais alto membro do Poder Judiciário, porquanto os Desembargadores dos Tribunais Estaduais, os Desembargadores dos Tribunais Regionais e os Ministros dos Tribunais Superiores em ultima ratio são mesmo Juízes e, de conseguinte, imbuídos do mesmo ideal de servir à Justiça e dizer do direito com ética e competência. De sorte que, se nos apresenta como um fator adverso a boa prática jurisdicional a ora existente dissensão entre colegas mais jovens e mais antigos, fruto sem dúvida da recém combalida “Reforma do Judiciário Nacional” que, como de início ressaltado não agilizará a resolução dos feitos colocados nos Tribunais, estes a depender da reforma das Leis do Processo e, não, da mera composição de Juizados e Tribunais. É verdade que muito já se caminhou neste sentido com a criação das Escolas Estaduais de Magistratura e, mais recentemente, da Escola Nacional da Magistratura, que mereceu o incentivo de todos nós operadores do direito e cuja atuação há de servir de valoroso impulso para que esta segunda face do Polinômio da Boa Administração da Justiça: A COMPETÊNCIA, se faça presente. A competência de seus integrantes é um objetivo presente e permanente em qualquer instituição, máxime do Poder Judiciário. Outra interface do 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29


“Assim, quando em passado  recente se falou em ‘caixa preta do judiciário’, o que se viu, logo a seguir, foi o descalabro do ‘mensalão’ que praticamente paralisou o Congresso Nacional por muitos e muitos meses.”

polinômio que se está a descrever neste artigo quanto ao desempenho de nossa Justiça Estadual ou Federal em vista do bem comum, é sem sombra de dúvida a necessidade da PARTICIPAÇÃO de todos; querendo isto dizer não apenas “estar junto”, ou “conviver no mesmo ambiente”, mas, sim, dividir responsabilidades e atuar conjuntamente para o fim colimado. Todos sabem que é muito fácil criticar, mas, muito difícil, construir. De sorte que, quando nos defrontarmos com uma situação de erro, equivocada mesmo, não devemos simplesmente, como Pilatos, lavar nossas mãos, mas, ao contrário,  comunicar a quem de direito àquele que está na direção da Instituição o que está acontecendo e, se possível, nesta mesma hora apresentar uma idéia, um caminho, um estudo que entenda cabível para solucionar a questão. De certa feita, ouvi de dileto colega que, indiretamente, colaborou com a correta localização das máquinas de informação eletrônica nos corredores do nosso Foro Central. Tal comportamento pró-ativo é um pequeno exemplo de como todos nós podemos participar, querendo, da administração. A participação de todos é indispensável para atingirmos o bem comum. Outro aspecto relevante deste polinômio da boa administração da Justiça é a TRANSPARÊNCIA de nossos atos, os quais, até por disposição legal, são públicos, e, ao demais, de comunicação obrigatória pelo Diário Oficial. No entanto, neste momento histórico de reformas que atravessamos, muitas vezes, nós, os Juízes, somos apresentados como “vilões de todos os males da Nação”, quando a toda evidência isto não é real, a começar pelo pequeno número que somos em relação à população do País e ao gasto que representamos frente ao PIB Nacional.Desta forma, ao invés de se esclarecer, por exemplo, o número geral dos processos resolvidos (e são muitos!!), destaca-se aquele um que por circunstâncias várias ficou esquecido no arquivo ou extraviou-se: um em milhões. Ora, é mais que conhecida, e verdadeira, a expressão “é certo que só não erra quem não trabalha”. Outro exemplo recorrente que me vem a lembrança nesse passo diz respeito a previdência social de cujo “déficit permanente” fomos nós, os Juízes, co-responsabilizados, 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

quando, até a edição da Reforma, para ela não contribuíamos e dela não recebíamos nossas aposentadorias. Aqui uma contraditio in terminus absoluta. Logo, todos nós Magistrados, apesar das dificuldades inerentes à nossa função precípua de dizer do direito, devemos contribuir com ações pró-ativas para que as informações sobre o nosso hercúleo trabalho de exercer a jurisdição e agir com ética seja corretamente passado à mídia escrita, falada e televisiva. Assim, quando em passado  recente se falou em “caixa preta do judiciário”, o que se viu, logo a seguir, foi o descalabro do “mensalão” que praticamente paralisou o Congresso Nacional por muitos e muitos meses.  Na verdade, os atos judiciais são públicos e editados pela Imprensa Oficial. Sendo certo que o Poder Judiciário não edita leis, mas, as aplica no estrito exercício de sua competência. Por fim, ao concluir este breve articulado, gostaria de tornar presente que para uma justa e boa distribuição da Justiça, é igualmente indispensável a EFETIVIDADE  das medidas judiciais. Assim, inexiste o “Estado democrático de direito” – outra expressão usada de forma abusiva por vários e vários seguimentos de nossa sociedade Civil e Política  se  não atinarmos para seu significado próprio, qual seja: “que para  a existência do Estado Democrático de Direito  se pressupõe que as Instituições e os Três Poderes do Estado: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, cumpram suas funções específicas e que as decisões judiciais tenham sua efetividade garantida.” Ainda nestes tempos de reformas, o que estamos assistindo com perplexidade absoluta é que todos afirmam a existência deste pré-falado “Estado democrático de direito” ainda que não saibam na oportunidade o que estão dizendo, pois, ao mesmo tempo agem em sentido oposto ao que alegam gratuitamente. Vejamos um exemplo: o não pagamento dos precatórios judiciais. Realmente assistimos perplexos que o próprio Estado em seus três níveis Federal, Estadual e Municipal, não cumprem o decidido nos Tribunais, em total desrespeito à coisa julgada. Por igual, por outro lado, não se editam leis ordinárias função precípua do Poder Legislativo para que então a governabilidade do País não se faça através de Medidas Provisórias, exceção das exceções, e que infelizmente entre nós se transmudou em regra. Em realidade, a verdadeira “Reforma do Judiciário” só se fará, como já inicialmente referido, através  da reforma das Leis do Processo, para além de  se viver da edição de Medidas Provisórias, estas, a tomar conta das pautas do Congresso Nacional e a impedir seu desempenho Constitucional. Tenho para mim que se pudéssemos empreender as políticas necessárias para a aplicação dos princípios aqui e agora destacados, e com a priorização da ÉTICA - princípio maior norteador de nossa conduta como Juízes de qualquer Grau de Jurisdição - teríamos, sem sombra de dúvida, um Poder Judiciário mais respeitado e admirado e não criticado por seus erros, erros que sabemos que existem e não podem ser escondidos, mas que são superados de muito por seus acertos. Não falemos, pois, somente de ÉTICA, mas, ao revés, vivamos com ÉTICA.


Seqüestro virtual, o crime da moda Eliseu Visconti Jornalista

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tecnologia da informação tem as suas vantagens e produz os seus milagres. A Wireless Intelligence, em parceria firmada entre a empresa de pesquisa Ovum e a GSM Association, divulgou um número quase inacreditável: dois bilhões de conexões em telefonia móvel no mundo inteiro. Se os celulares trouxeram aos usuários um conforto antes não imaginado, passaram a representar, por outro lado, um perigo latente à sua segurança pessoal e de seus familiares. Estamos falando da mais nova modalidade de crime, que é o seqüestro virtual. Ao contrário dos seqüestros tradicionais, em que as vítimas são mantidas em cativeiro, sofrendo ameaças e privações, e não raro, maus tratos e até mesmo ferimentos fatais, os seqüestros virtuais são “limpos”, por não envolverem o contato físico. O que ocorre, nestes casos, é que os bandidos, de posse de informações sobre as suas vítimas, escolhem a dedo o momento certo de lhes telefonar, para dizer que um filho, cônjuge, ou parente encontra-se sob o seu domínio, e que sofrerá as conseqüências, caso seus responsáveis não depositem, nas

contas bancárias informadas na ocasião, uma determinada quantia. Contando com a surpresa e o medo, e agindo com extremo oportunismo e rapidez, logram os bandidos, em boa parte das vezes, obter sucesso na sua empreitada. Este tipo de delito traz aos bandidos muitas vantagens: em caso de serem pegos, seu crime pode ser classificado, no máximo, de extorsão, face à ausência de dano físico, e as penas são muito menores. Um outro atrativo para os meliantes é o fato de não haver necessidade de manter local para cativeiro e de infraestrutura, e nem tampouco de grandes equipes, com quem dividir o butim. Basta um celular, uma conexão telefônica e de internet e presto! Dinheiro no bolso! Em países como México, Brasil e Taiwan, esta forma de seqüestro tem sido mais usada. Em Taiwan, por exemplo, os bandidos, ao simularem o seqüestro de uma criança, tocam uma gravação de fundo, com choro e grito de uma outra qualquer. Os pais tenderão a pagar o resgate, sem questionamento, apenas movidos pelo medo. A técnica de intimidar um familiar da vítima é muito eficiente, por contar com o fator surpresa e a dúvida de que se trate de um seqüestro de verdade. O sucesso desta nova maldade depende em grande parte da capacidade em obter informações sobre o alvo. Um dos truques mais usados é criar um site que prometa a jovens desavisados a chance de ganhar prêmios, mediante o fornecimento de alguns dados como endereço, escola em que estuda, nome dos pais etc. Existem outras formas, como telefonemas de pseudo-vendedores, hackers etc. Os seqüestradores seguem os seus alvos, esperam que eles entrem em algum local onde não possam ser rapidamente contatados e dão o bote. Os pais, tomados pela surpresa, ficam sem ação e acabam por pagar o resgate. No nosso triste Brasil atual, da impunidade e da lassidão de controles e supervisão, tais telefonemas têm sido orquestrados a partir de dentro dos presídios, locais onde não deveriam entrar celulares, e as exigências de depósitos em contas são feitas para proveito de organizações criminosas. Contra este tipo de crime é preciso, antes de tudo, sangue frio por parte dos responsáveis. Não ceder ao terror psicológico é o requisito primordial. Deve-se procurar um contato imediato com a pseudo vítima, ou com alguém que lhe possa estar próximo. O diálogo é importante. Familiares devem conhecer mutuamente os passos, para que este tipo de pressão possa ser aliviado, sem que os responsáveis cedam ao impulso de fazer o pagamento exigido. A polícia já tem alertado a população para os falsos seqüestros, com ameaça de extorsão. É claro que a proibição de celulares nos presídios servirá para amenizar a situação, mas há bandidos à solta capazes de prosseguir. Cabe à população manter-se alerta e preparada para enfrentar este novo tipo de criminalidade.

2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31


PRORROGAÇÃO DE CONCESSÕES POR INTERESSE PÚBLICO

AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2004.002.08804

Agravante: Auto Lotação INGÁ LTDA Agravado: DETRO – Departamento de Transporte Rodoviário do Rio de Janeiro e Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro RELATOR: Des. Marco Antonio Ibrahim Vistos, relatados e discutidos estes autos de Agravo de Instrumento nº 2004.002.088404 em que é Agravante: Auto Lotação Ingá Ltda. E Agravados: Detro – Departamento de Transporte Rodoviário do Rio de Janeiro e Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, acordam, por unanimidade os Desembargadores da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Desembargador Relator. Relatório Trata-se de Agravo de Instrumento oposto contra decisão do r. Juízo da 5ª Vara de Fazenda Pública, que, em Ação Civil Pública, deferiu, medida antecipatória de tutela determinando que em 180 dias fosse iniciado processo licitatório referentemente às linhas intermunicipais exploradas pela parte agravante. Em síntese, alega a recorrente que o contrato de concessão que envolve a transportadora teve seu prazo prorrogado pela Lei Estadual 2.831/97, o que, por si só, revela a boa fé da concessionária. Por outro lado, sustenta que não há trânsito em julgado do acórdão do colendo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que, liminarmente, cassou os efeitos da parte final do art. 6º da Lei Estadual 2.831/97, cuja decisão operou efeitos, meramente, 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

ex nunc. Diz, ainda, que a lei em comento goza de presunção de constitucionalidade, sendo incabível antecipação de tutela por inexistir periculum in mora e, além de tudo, haver risco de irreversibilidade da medida. Houve pedido de concessão de efeito suspensivo ao recurso, deferido por decisão do Relator, a qual foi alvo de Agravo Regimental desprovido pela unanimidade desta colenda Terceira Câmara Cível. A parte agravada apresentou resposta, salientando que o dispositivo legal com base no qual foram prorrogadas as concessões de linhas intermunicipais teve sua inconstitucionalidade declarada por liminar em Representação de Inconstitucionalidade nº 137/2002 do colendo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Alega que a eficiência no serviço público se verifica, também, pela opção de competitividade, que só pode ser atendida com observância do princípio constitucional da licitação, sendo certo que o art. 175 da Constituição Federal está regulamentado pelas Leis Federais 8987/95 e 9074/95, aplicáveis à espécie. Entende a parte agravada, que a parte final do art. 6º da Lei Estadual 2831/97 ofende o princípio da moralidade ao autorizar a prorrogação por 15 anos às permissões que estavam vigendo por ocasião da promulgação da referida lei, isto é,


deixando de submeter a concessionária ao processo licitatório e constitucional, o que implica em afronta ao princípio da impessoalidade e da moralidade previstos no art. 37 da Carta Constitucional. Por fim, sustenta que o princípio da segurança jurídica não há de servir para engessar a Administração e que estão presentes os pressupostos para manutenção da decisão de 1º grau. VOTO Em que pese ter sido, a decisão agravada, prolatada por uma das mais brilhantes Magistradas do Estado do Rio de Janeiro, Dra. Márcia Capanema de Souza, o recurso está a merecer provimento. Conforme já exposto na decisão que concedeu efeito suspensivo ao recurso, há, como se sabe, especiais condições que legitimam a concessão de tutela antecipada sem as quais a providência torna-se dissonante do sistema processual em vigor. A liminar deferida pela exemplar Juíza se ressente, data vênia, dos requisitos aludidos no art. 273 do Código de Processo Civil. Desde logo se percebe que a tutela antecipadamente concedida é de todo modo irreversível, porque, a vingar o conteúdo de tal decisão, promover-se-á licitação de mais de mil linhas de transporte intermunicipal (considerada a totalidade dos processos que envolvem as dezenas de empresas de ônibus que operam estas linhas), o que fatalmente desaguará na concessão de tais linhas intermunicipais a outras empresas que deverão fazer vultuosos investimentos para poder operar os respectivos transportes coletivos. Assim, no caso de eventual decaimento da pretensão autoral do Ministério público, o retorno ao status quo ante será impossível ou, pelo menos, de dificílima concretização. Quem indenizará a vencedora da licitação pelos investimentos que fez? Como calcular seus expressivos lucros cessantes e a perda da expectativa de emprego fixo de seus empregados? O mesmo se diga em relação à agravante, que experimentaria enorme prejuízo, bem assim, seus empregados, que seriam demitidos aos milhares. Com isso não se quer dizer que a irreversibilidade sempre e sempre há de obstaculizar o deferimento de tutela antecipada ou mesmo de cautelares, dês que isso, em regra, só deve ocorrer quando não estão em jogo interesses de expressiva magnitude, tais como direito à vida ou à liberdade. Nestes casos, se mostra necessário ponderar os respectivos direitos em conflito, o que se deve fazer através de um critério de proporcionalidade por via do qual o juiz deve sacrificar um interesse relativo a direito que pareça improvável. Cabe como luva, aliás, a observação feita pelo afamado jusprocessualista Ferrucio Tommaseo, muito ilustre Professor da Universidade de Trieste, no histórico Colóquio Internacional sobre as Medidas Cautelares em Processo Civil – Milão, 1984: Se non vi è altro modo per evitare um pregiudizio irreparabile a um diritto soggetivo che appaia probabile, si deve ammettere

“(...) parece evidente o risco de dano inverso, porque, ocorrendo a licitação e adjudicado seu objeto, milhares de trabalhadores e suas famílias serão diretamente atingidos (...)” che il giudice possa provocare um pregiudizio anche irreparabile al diritto che gli paia improbabile. Mas quando aqui se diz direito improvável, está-se a afirmar que não há – como pretende o Ministério Público – verossimilhança do direito alegado na inicial, porque os contratos administrativos, tornados írritos pela decisão agravada, foram firmados de boa fé e com base em lei plenamente vigente no ato de suas respectivas efetivações. Por outro lado, parece evidente o risco de dano inverso, porque, ocorrendo a licitação e adjudicado seu objeto, milhares de trabalhadores e suas famílias serão diretamente atingidos, sem falar que licitações deste porte não podem ser feitas no exíguo prazo alvitrado na decisão interlocutória. Nem parece disfarçável o risco que toda a população corre de ficar de um dia para o outro sem acesso a transporte coletivo, bastante para isso que algum problema de ordem jurídica, política ou administrativa emperre eventual adjudicação do objeto da licitação. São tais situações que a lei quis, propositadamente, evitar. A propósito, a doutrina de J.J. Calmon de Passos, que, em seus comentários ao Código de Processo Civil, precisa o sentido que se deve dar a danos de difícil reparação, em lapidar ensinamento: “A dificuldade e incerteza da reparação pedem, também alguns esclarecimentos. Elas podem dizer respeito ao tempo, aos meios ou aos agentes. É difícil e incerta a reparação que reclama posterior e demorado processo; a que exige meios custosos ou de manipulação anormalmente trabalhosa; também difícil e incerta a que exige o envolvimento de 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


“(...) são corriqueiros os atos que autorizam a prorrogação de concessões, à mingua de licitação. A União Federal o faz de forma sistemática estando tais prorrogações condicionadas a um único motivo: o interesse público.” pessoas especialmente qualificadas cujo recrutamento seja problemático ou demasiadamente oneroso. O critério mais adequado, a nos ver, para se aferir a dificuldade e incerteza da reparação é considerar a possibilidade de ressarcimento dos danos do próprio processo a curto prazo ou com meios expeditos. Se isso ocorrer é válido entender-se a lesão como de difícil ou incerta reparação”. (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. X, tomo I, p. 98, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1978). Nesse passo, cabe destacar que uma atenta leitura da inicial da ação proposta pelo Ministério Público (que se houve, aliás, dentro da grandeza dessa essencial instituição da qual me orgulho de um dia ter pertencido) demonstra que não há, na verdade, risco, sequer mediato, para o erário público, o que, de certa forma, motivou outras decisões deste e. Tribunal, como aquela prolatada pelo Professor e Desembargador Sérgio Cavalieri Filho (Agravo de Instrumento nº 4190/2004), que deferiu efeito suspensivo em caso idêntico ao dos autos. Tem-se admitido antecipação de tutela contra a administração pública, mas em casos especialíssimos, como no caso de fornecimento de medicamentos para pessoa que sofra de doença grave; para obstaculizar medidas lesivas ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, histórico e artístico ou ao erário público. E aqui não se trata de nenhuma destas hipóteses. Tais evidências, por si só, já seriam suficientes para a desconstituição provisória da liminar deferida pelo Juízo a quo, mas há outros motivos que a revelam, de todo, inconveniente – mesmo do ponto de vista do interesse público. Se é verdade que a Lei Estadual nº 2831/97 teve seus efeitos parcialmente suspensos por liminar concedida pelo colendo Órgão Especial Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, não menos verdade é que esta decisão não opera efeitos retroativos, vindo atingir atos jurídicos perfeitos e situações há muito consolidadas. Decerto que, em caso de decisão passada em julgado declarando a inconstitucionalidade 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

da referida lei, os contratos administrativos que sob sua égide foram firmados poderão ser anulados, mas esta é uma circunstância que apesar de possível, não se apresenta concreta na atualidade. A mais moderna doutrina constitucional brasileira, na esteira do que vem ocorrendo em diversos países europeus, tem revelado adesão às normas e princípios que vêm mitigar os efeitos da nulidade das leis inconstitucionais e isto tem sido feito levando em consideração valores constitucionalmente relevantes e, especialmente, o princípio da segurança jurídica. Entre nós já não é mais novidade que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei possa ser decretada com efeitos prospectivos, ex nunc, havendo diversos precedentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal neste sentido. Aliás, a própria Lei Federal nº 9868/99 prevê que Art. 27 – ao declarar a inconstitucionalidade de lei do ato normativo, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tem eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. Compreende-se o cuidado do legislador na edição da referida norma porque só assim se podem proteger relações jurídicas há muito constituídas, bem assim albergar aqueles que de boa fé contraíram obrigações e adquiriram direitos com base na legislação, então, vigente. A regra, bem de ver, traz à baila um dos mais importantes princípios da hermenêutica constitucional, qual seja, o da ponderação de interesses a reconhecer que existem princípios de igual relevância (vis a vis o principio da moralidade) que só poderiam ser preservados mediante a atribuição de eficácia prospectiva à declaração de inconstitucionalidade. Este próprio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro tem produzido diversos julgados sobre esta questão constitucional com acolhimento – quanto à matéria relativa a IPTU – da tese que defende a eficácia da prospectiva da declaração de inconstitucionalidade do art. 67 do Código Tributário do Rio de Janeiro com a redação dada pela Lei Municipal 2080/93 Insta observar, outrossim, que há, ainda, um outro argumento invencível em prol da tese sustentada pela agravante. Trata-se da evidência de que, ainda que houvesse trânsito em julgado da decisão declaratória de inconstitucionalidade da Lei Estadual 2831/97, sua exclusão do mundo jurídico implicaria em repristinação da legislação anterior, sendo certo que o Decreto Lei nº 276/75 concedera permissão para exploração de linhas intermunicipais à agravante por prazo indeterminado. Vale observar, ademais que são corriqueiros os atos que autorizam a prorrogação de concessões, à mingua de licitação. A União Federal o faz de forma sistemática estando tais prorrogações condicionadas a um único motivo: o interesse público. Nem se descure de relembrar que os Estados têm


competência suplementar para legislar sobre esta específica matéria, transportes, a teor do § 2º do art. 24 e 25 da Constituição Federal, motivo pelo qual parecem inaplicáveis os art. 42 e 43 da Lei 8987/95. A possibilidade da ocorrência de vultosos prejuízos para as empresas que atualmente operam as linhas, como, também, para aquelas que vençam eventual licitação, não são hipotéticos, mas reais. Quem há de negar que a desconstituição de prorrogação das permissões importaria em grave prejuízo para a empresa de transporte que, de boa fé, e escudada por lei estadual, efetuou investimentos dada a expectativa da prorrogação da permissão longi temporis? Igualmente enormes seriam os prejuízos da empresa que vencesse a licitação porque para iniciar suas operações, obrigatoriamente teria que fazer grandes investimentos, que poderiam se perder em caso de insucesso do Ministério Público quando do desfecho da respectiva Ação Civil Pública. Outrossim, não é tão evidente (como parece ao MP)

a inconstitucionalidade do dispositivo da lei estadual que autorizou a prorrogação. Em primeiro lugar, a questão da moralidade pertine, efetivamente, ao mérito da causa. Por outro lado, prorrogações idênticas são constantemente autorizadas pelo poder público, muitas das quais por mero Decreto. Assim, a concessão outorgada à VARIG, por exemplo, vem sendo prorrogada por 15 anos por força do Decreto 95.910 de 11/04/88. Já o Decreto nº 4856 de 09/ 10/03 prorrogou a concessão da VARIG até 31/10/2010. Na mesma toada, a ANATEL prorrogou por 20 anos os contratos de seis concessionárias de telefonia fixa (EMBRATEL, TELEFONICA, BRASIL TELECOM, TELEMAR, SERCONTEL e CBTC TELECOM) e o fez por antecipação, já que os respectivos contratos estavam em vigor até 30/12/2005. No mais, a Medida Provisória nº 144 de 10/12/03, já convertida em lei, deu nova redação ao art. 4º da Lei nº 9074, autorizando prorrogação de 20 anos para as concessionárias de energia elétrica.

LEI Nº 9.074, DE 07 D E JULHO DE 1995 Estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos e dá outras providências. Art. 1º Sujeitam-se ao regime de concessão ou, quando couber, de permissão, nos termos da Lei nº 83987, de 13 de fevereiro de 1995, os seguintes serviços e obras públicas de competência da União: I – (VETADO) II - (VETADO) III - (VETADO) IV – vias federais, precedidas ou não da execução de obra pública; V – exploração de obras ou serviços federais de barragens, contenções, eclusas, diques e irrigações, precedidas ou não da execução de obras públicas; VI – estações aduaneiras e outros terminais alfandegados de uso público, não instalados em área de porto ou aeroporto, precedidos ou não de obras públicas. VII –os serviços postais. (Incluído pela Lei nº 9.648, de 1998) § 1º Os atuais contratos de exploração de serviços postais celebrados pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT com as Agências de Correio Franqueadas – ACF, permanecerão válidas pelo prazo necessário à realização dos levantamentos e avaliações indispensáveis à organização das licitações que precederão à delegação das concessões ou permissões que os substituirão, prazo esse que não poderá ser inferior a de 31 de dezembro de 2001 e não poderá exceder a data limite de 31 de dezembro de 2002. (Renumerado pela Lei nº 10.684, de 2003)

§ 2º O prazo das concessões e permissões de que trata o inciso VI deste artigo será de vinte e cinco anos, podendo ser prorrogado por dez anos. (Incluído pela Lei nº 10.684, de 2003) § 3º Ao término do prazo, as atuais concessões e permissões, mencionadas no § 2º, incluídas as anteriores à Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, serão prorrogadas pelo prazo previsto no § 2º. (Incluído pela Lei nº 10.684, de 2003) .... Art. 4º As concessões, permissões e autorizações de exploração de serviços e instalações de energia elétrica e de aproveitamento energéticos dos cursos da água serão contratadas, prorrogadas ou outorgadas nos termos desta e da Lei nº 8.897, e das demais. § 1º As contratações, outorgas e prorrogações de que trata este artigo poderão ser feitas a título oneroso em favor da União. § 2º As concessões de geração de energia elétrica anteriores a 11 de dezembro de 2003 terão o prazo necessário à amortização dos investimentos, limitado a 35 (trinta e cinco) anos, contado a data de assinatura do imprescindível contrato, podendo ser prorrogado por até 20 (vinte) anos, a critério do Poder Concedente, observadas as condições estabelecidas nos contratos. (Redação dada pela Lei nº 10.848, de 2004). Diante do exposto, voto no sentido do provimento do agravo.

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VALORIZAÇÃO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA E FLEXIBILIZAÇÃO DAS NORMAS LEGAIS TRABALHISTAS Ives Gandra da Silva Martins Filho Ministro do Tribunal Superior do Trabalho

Roteiro da palestra dada no XIII Ciclo de Estudos de Direito do Trabalho promovido pela Febraban no Blue Tree Park Hotel de Cabo Santo Agostinho (PE), no dia 29 de abril de 2006.

A

valorização da negociação coletiva a ser levada a cabo no Brasil decorre do fracasso da reforma trabalhista tão prometida e tão frustrada até o momento, aliada à incapacidade do Judiciário Laboral compor satisfatoriamente todos os conflitos que lhe chegam diariamente, quer individuais, quer coletivos. Conforme já dizíamos alhures: “O processo legislativo, num regime democrático, conduz necessariamente ao processo judicial. Os representantes eleitos pelos vários grupos de interesses debatem sobre como deverão ser as regras de conduta na sociedade. Quando não há um grupo que seja francamente majoritário, há necessidade 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

de composição, o que implica em que os textos legais, que deveriam ser claros e evitar controvérsias, passem a ser dúbios, para atenderem aos interesses dos vários grupos, cada um dos quais considerando que é possível dar ao produto final legislativo a interpretação que mais o favoreça. Assim, a ausência de vitória clara de um grupo no processo legislativo faz com que o jogo apenas se transfira para o Judiciário, que deverá interpretar as leis criptograficamente redigidas. Quando se discute a necessidade de reformas na legislação trabalhista e sindical, esquece-se que um consenso em torno dos pontos essenciais de mudança é praticamente impossível, pois se as condições forem boas para os patrões, não o serão


para os empregados, e se forem boas para o grupo sindical, que ora goza de benefícios estatais (reconhecimento e contribuição sindical), combaterá a mudança quanto puder”1. Tomando como exemplo apenas os últimos 12 anos (dois governos FHC e um governo Lula), muito se falou de reforma trabalhista, que se daria com uma revisão global da CLT, revogando-se os dispositivos que entravassem a contratação formal e modernizando-se os mecanismos de proteção do trabalhador. No entanto, os resultados foram quase nulos: a) governo FHC – as inovações, que não deram resultado prático significativo, foram o trabalho a tempo parcial (MP n. 1.709/98) e o banco de horas; b) governo Lula – criou-se o Fórum Nacional do Trabalho, para uma “ampla” discussão sobre todos os principais problemas trabalhistas, resultando no encaminhamento ao Congresso Nacional de um projeto de reforma sindical cuja paternidade é negada tanto por empresários e sindicatos quanto pelo governo, tornando-o natimorto (sem falar na anunciada “reforma trabalhista” por medida provisória, limitada ao reconhecimento das centrais sindicais, transformação do Conselho Nacional do Trabalho e um tímido projeto de regulamentação das cooperativas de trabalho). Os recentes dados econômicos (2005) mostram como a ausência da referida reforma mantém a assustadora taxa de quase 60% da população economicamente ativa na economia informal e que, na ausência da intervenção estatal, as categorias profissional e econômica vão se arranjando satisfatoriamente, com índice de 72% dos acordos e convenções coletivas trazendo ganho real para o trabalhador (com reajustes acima da inflação, sendo que 88% dos acordos ao menos zeraram a inflação)2. Por um lado, verifica-se que a economia se move à margem da lei e não é com mais leis que se vai resolver o problema da informalidade e da empregabilidade no Brasil (há uma verdadeira incapacidade imaginativa para encontrar soluções para o problema). Por outro, nem a redução do Poder Normativo da Justiça do Trabalho, levada a cabo pela EC n. 45/04 foi capaz de reduzir o número de dissídios coletivos ajuizados, quer pela interpretação dada pela SDC-TST, no sentido de se admitir o acordo tácito para o prosseguimento do processo coletivo deflagrado pelo sindicato, quer pelo paternalismo enrustido na mentalidade nacional, esperando sempre do Estado a solução de seus problemas3. No final do governo FHC, o ministro do Trabalho Francisco Dornelles empenhou-se na aprovação do Projeto de Lei 5.483/01, que admitia uma flexibilização mais ampla da legislação trabalhista, dando nova redação ao art. 618 da CLT, fazendo prevalecer o negociado sobre o legislado, ressalvados os direitos constitucionais mínimos e as normas de medicina e segurança do trabalho. O texto aprovado pela Câmara dos Deputados, tinha a seguinte redação: “Art. 618. Na ausência de convenção ou acordo coletivo firmados por manifestação expressa de vontade das partes e observadas as demais disposições do Título VI desta

Consolidação, a lei regulará as condições de trabalho. § 1º A convenção ou acordo coletivo, respeitados os direitos trabalhistas previstos na Constituição Federal, não podem contrariar lei complementar, as Leis nº 6.321, de 14 de abril de 1976 (relativa ao programa de alimentação do trabalhador), e nº 7.418, de 16 de dezembro de 1985 (relativa ao vale-transporte), a legislação tributária, a previdenciária e a relativa ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, bem como as normas de segurança e saúde do trabalho. § 2º Os sindicatos poderão solicitar o apoio e o acompanhamento da central sindical, da confederação ou federal a que estiverem filiados quando da negociação de convenção ou acordo coletivo previstos no presente artigo” (parênteses explicativos nossos). O objetivo da alteração do art. 618 da CLT foi o de explicitar melhor o que já se encontrava latente na Constituição Federal de 1988, quando admitiu a flexibilização de direitos trabalhistas mediante negociação coletiva em relação a salário e jornada de trabalho (CF, art. 7º, VI, XIII e XIV). Conforme já havíamos sustentado, se os dois principais direitos trabalhistas são passíveis de flexibilização, todos aqueles que deles decorrem, ou seja, parcelas de natureza salarial ou decorrentes da conformação da jornada de trabalho, também podem ser flexibilizados por acordos e convenções coletivas. Os próprios incisos do art. 7º da Constituição, a nosso ver, não são cláusulas pétreas, uma vez que o art. 60, § 4º, IV, da Constituição, ao limitar o poder de emenda aos direitos e garantias individuais, não abrangeu nem os direitos coletivos do art. 5º, nem os direitos sociais do art. 7º, cingindo a sua proteção a parte dos incisos do art. 5º da Constituição. Ademais, aquilo que é passível de flexibilização pelas partes, através de negociação coletiva, não pode ficar à margem de alteração pelo legislador. Portanto, se a reforma proposta seria possível por via de emenda constitucional, quanto mais pela via da lei ordinária e de forma menos abrangente. No entanto, a resistência de parlamentares e sindicalistas à prevalência do negociado sobre o legislado foi de tal ordem, que muitos distúrbios se verificaram, quer dentro do Congresso Nacional, quer nas ruas, com passeatas em defesa da CLT em sua integralidade. Com efeito, no dia 4 de dezembro de 2001, foi aprovado pela Câmara dos Deputados o referido projeto de Lei nº 5.483/01, sendo sua aprovação noticiada na abertura da Revista LTr de dezembro/2001 nos seguintes termos: “O projeto tem sido objeto de acirrada polêmica, quer nos meios de comunicação geral ou especializados, quer no próprio Congresso Nacional, onde o debate da matéria na Comissão de Trabalho da Câmara foi acompanhado de invasão de sindicalistas, quebra de portas, manifestações de repúdio por parte de trabalhadores, culminando com a falha do painel eletrônico do Plenário da Câmara na primeira votação, que levou ao adiamento do embate para uma semana depois. Os adversários do projeto sustentam que a filosofia da flexibilização nele inserida constituiria verdadeira derrocada de conquistas trabalhistas obtidas a duras penas, fragilizando2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


se o sistema protetivo insculpido na CLT. Ademais, num país de sindicalismo fraco, onde apenas algumas categorias melhor organizadas poderiam fazer frente à pressão econômica do setor patronal, seria uma temeridade abandonar os trabalhadores nas mãos de entidades sindicais que não têm condições de defender seus interesses de forma satisfatória. Já os defensores do projeto têm sustentado que o princípio da flexibilização já tinha sede constitucional (CF, art. 7º, VI, XIII e XIV), limitando-se a alteração a permitir a flexibilização de normas infra-constitucionais, sem deixar de respeitar as conquistas obtidas com a Constituição de 1988, mas possibilitando que em contexto econômico de desemprego crescente e de competitividade maior entre economias globalizadas possam ser preservados postos de trabalho, em benefício do próprio trabalhador, a par de trazer de volta à economia formal os quase 50% da força de trabalho brasileira, que se encontram atualmente na informalidade. Além disso, a reforma busca a prestigiar a negociação coletiva, dando cumprimento à Convenção n. 154 da OIT e seguindo na esteira da Reforma do Judiciário, que está reduzindo o Poder Normativo da Justiça do Trabalho (PEC 29/00, que altera a CF, art. 115, §§ 2º e 4º), para estimular a negociação direta das partes” (Revista LTr 65-12/1413). Com a eleição do Presidente Lula, o PLC 134/01 (número que recebeu o PL 5.481/01 no Senado Federal) foi retirado pelo novo governo, na esperança de que se conseguisse, com o “Fórum Nacional do Trabalho”, um consenso quanto à reforma tópica da CLT. Assim, a questão da flexibilização e de seus limites foi deixada para ser resolvida pelo Judiciário Laboral, esperando-se que a jurisprudência pudesse superar os impasses decorrentes do fracasso na reforma trabalhista. No entanto, o TST, como órgão de cúpula do Judiciário Trabalhista e uniformizador da jurisprudência laboral, não tem dado sinalização unívoca a respeito da matéria, por não ofertar parâmetros claros e seguros capazes de distinguir o que seja flexibilização e o que seja precarização de direitos trabalhistas. Daí a flutuação da jurisprudência, que, ora plácita, ora cassa cláusula de acordo ou convenção coletiva que adota parâmetros diversos dos legais para disciplinar as condições de trabalho no âmbito de uma determinada empresa ou categoria profissional. Assim, as hipóteses em que se tem admitido a flexibilização dos direitos trabalhistas mediante negociação coletiva são: a) pagamento proporcional do adicional de periculosidade ao tempo de exposição ao agente de risco (Súmula nº 364, II, do TST); b) redução do intervalo intrajornada para a categoria dos motoristas (conforme precedente jurisprudencial da SDCTST4); c) limitação do pagamento de horas in itinere a uma diária, independentemente do tempo efetivamente gasto pelo empregado em condução fornecida pelo empregador (precedentes da Corte5); d) no que diz respeito aos minutos residuais, tolerância de 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

15 minutos antes e 15 minutos depois da jornada de trabalho sem o pagamento de horas extras (precedentes da Corte6). No entanto, tem sido rejeitada a flexibilização nas hipóteses de: a) turnos ininterruptos de revezamento, quando não demonstrada a compensação com vantagem substitutiva (a matéria se encontra aguardando definição do Pleno do TST em Incidente de Uniformização de Jurisprudência em torno da Orientação Jurisprudencial nº 169 da SBDI-1 do TST7); b) regime 12x36 horas, determinando-se o pagamento como horas extras das 11ª e 12ª horas (precedentes da Corte8); c) não redução do intervalo intrajornada fora da hipótese de motoristas (Orientação Jurisprudencial n. 342 da SBDI-1 do TST); d) redução do período de estabilidade da gestante (precedentes da SDC-TST9). Parece-nos que os fundamentos para se afastar jurisprudencialmente a flexibilização seriam, em essência, os mesmos da fracassada alteração do art. 618 da CLT, não se admitindo a desregulamentação legal em matéria de medicina e segurança do trabalho, legislação tributária e previdenciária. Quanto ao mais, sendo as categorias profissional e econômica em cada setor produtivo as que melhor conhecem as condições da atividade em si e nas circunstâncias concretas de tempo e espaço, nada mais natural do que atribuir a elas a fixação das condições de trabalho e remuneração, respeitados os parâmetros mínimos já referidos. Com isso se estará, efetivamente: a) valorizando o art. 7º, XXVI, da Constituição Federal, que reconhece os acordos e convenções coletivas como fonte do direito trabalhista; b) prestigiando o princípio da boa-fé que norteia as relações negociais e a interpretação dos negócios jurídicos, sob pena de se desacreditar tal princípio com o acolhimento de ações anulatórias de cláusulas que, flexibilizadas em compensação de outras vantagens comparativas concedidas, acabam sendo anuladas e as vantagens já concedidas mantidas, com duplo ganho para o trabalhador; c) propiciando o fortalecimento dos sindicatos, pondo fim ao eterno paternalismo que, sob o argumento de que os sindicatos são fracos, mantém indefinidamente um regime de tutela estatal das relações trabalhistas; d) dando segurança jurídica aos jurisdicionados, que se conscientizarão de que o pactuado vale e é respeitado pela jurisprudência (ela própria não flutuando ao sabor de maiorias ocasionais); e) modernizando as relações trabalhistas, na medida em que é mais racional se admitir eventual flexibilização de norma legal trabalhista em caráter transitório (período de vigência da convenção ou acordo coletivo), voltando-se à regência legal caso a flexibilização não tenha contribuído para gerar empregos e melhorar as relações laborais, do que proceder a um “enxugamento” da CLT, revogando-se todos


os dispositivos tidos por anacrônicos e comprometedores do mercado de trabalho, com a conclusão posterior de que a redução de normas não garantiu o nível de empregabilidade nem contribuiu para a formalização do emprego ou a geração de novos postos de trabalho, com a difícil tarefa de se restaurar, via processo legislativo (sempre lento e incerto), as garantias anteriormente existentes; f ) dando vida ao princípio da subsidiariedade, básico no campo da filosofia política e social, segundo o qual o Estado apenas ajuda o indivíduo a atingir os seus fins existenciais, não o substituindo e não tendo competência para fazer o que o indivíduo ou comunidades menores podem fazer por

sua iniciativa e recursos (reserva que entra em ação apenas quando o ente menor não tem forças para desempenhar sua missão). Assim, diante da indefinição legislativa quanto aos limites e parâmetros da negociação coletiva, caberá à Justiça do Trabalho como um todo e ao TST em particular, como seu órgão de cúpula e intérprete máximo da legislação laboral, assinalar o norte para a negociação coletiva. Espera-se que não o faça mantendo uma tal rigidez, em nome da proteção ao trabalhador, que acabe criando o que já se denominou de “protecionismo às avessas”: protege tanto o trabalhador brasileiro que gera empregos na China!

NOTAS: 1 Ives Gandra Martins Filho, “O Bélico e o Lúdico no Direito e no Processo”, in “Os Novos Horizontes do Direito e do Trabalho – Homenagem ao Ministro José Luciano de Castilho Pereira” (LTr – 2005 – São Paulo, pgs. 487-488; Coordenação Cristiano Paixão, Douglas Alencar Rodrigues e Roberto de Figueiredo Caldas) 2 Fonte: Dieese (Departamento Intersindical de Estatística), in Folha de S. Paulo 10/03/06. 3 O TST tem assegurado, na prática, reajuste salarial em percentual perto do integral da inflação nas sentenças normativas que profere. Nesse sentido, temos, por exemplo, o precedente TST-RODC-655/2003-000-12-00.3, Rel. Min. Barros Levenhagen, in DJ de 17/02/06 (a inflação acumulada era de 18,32% e o TST concedeu 18% de reajuste). 4 “NEGOCIAÇÃO COLETIVA. INTERVALO INTRAJORNADA. VALIDADE. Quando a norma coletiva estabelece condições que não implicam, necessária e objetivamente, ofensa à saúde, à segurança e à dignidade do trabalhador, não se pode concluir que ela a norma ofende o § 3º do art. 71 consolidado. É o que acontece com a negociação que prevê o intervalo intrajornada fracionado, isto é, composto de vários intervalos menores. É sob essa ótica que deve ser examinado a teoria do conglobamento, que, como se sabe, não autoriza a ampla e restrita negociação. Mas, no caso concreto, o negociado deve ser preservado, pois ele não colide com normas fundamentais e indisponíveis. Neste caso, portanto, não se decide com ofensa à Orientação Jurisprudencial nº 342/SBDI-1” (TST-ROAA-141.515/2004-900-01-00.5, Rel. Min. José Luciano de Castilho Pereira, SDC, “in” DJ de 11/04/06). 5 TST-RR-414.174/1998.9, Rel. Juiz Convocado Aloysio Corrêa da Veiga, 1ª Turma, “in” DJ de 28/06/02; TST-RR-451.673/1998.2, Rel. Min. José Simpliciano Fernandes, 2ª Turma, “in” DJ de 07/03/03; TST-RR-1.616/2000-031-15-00.2, Rel. Juíza Convocada Terezinha Célia Kineipp Oliveira, 3ª Turma, “in” DJ de 14/02/ 03; TST-RR-225/2003-023-09-00.1, Rel. Min. Antônio José de Barros Levenhagen, 4ª Turma, “in” DJ de 17/03/06; TST-RR-1.064/2002-092-09-00.7, Rel. Min. João Batista Brito Pereira, 5ª Turma, “in” DJ de 10/03/06 6 “DIFERENÇAS DE HORAS EXTRAS PELA CONTAGEM MINUTO A MINUTO PREVISÃO, EM INSTRUMENTO COLETIVO, DE DESCONSIDERAÇÃO DOS QUINZE MINUTOS QUE ANTECEDEM E SUCEDEM A JORNADA LABORAL - VALIDADE DA NORMA COLETIVA. O direito às horas extras decorrentes do critério de contagem minuto a minuto (OJs 23 e 326 da SBDI-1 do TST) é conseqüência de construção jurisprudencial e, embora recentemente transformado em dispositivo consolidado (art. 58, § 1º), não se insere dentre os direitos trabalhistas irrenunciáveis, de modo que não há óbice para que o referido direito seja objeto de negociação coletiva. Com efeito, a previsão em norma coletiva, no sentido de desconsiderar os quinze minutos que antecedem e sucedem a jornada laboral, constitui hipótese típica de prevalência do negociado sobre o legislado, em flexibilização autorizada pela própria Constituição Federal. Isso porque a possibilidade de inserir período de tolerância para a marcação dos cartões de ponto encontra respaldo no princípio da razoabilidade e nas hipóteses de flexibilização autorizadas pela Constituição Federal, pois, se a Carta Magna admite a redução dos dois principais direitos trabalhistas, que são o salário (CF, art. 7º, VI) e a jornada de trabalho (CF, art. 7º, XIII e XIV), todos aqueles que deles decorrem também são passíveis de flexibilização. Nesse contexto, a decisão recorrida, ao desconsiderar a norma coletiva em comento, vulnerou o disposto no art. 7°, XXVI, da Constituição Federal, que determina o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho, razão pela qual deve ser reformada para que seja aplicada a norma que instituiu a cláusula de tolerância de quinze minutos no tempo que antecede e sucede a jornada de trabalho” (TST-RR-126.174/2004-900-04-00.1. Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho, 4ª Turma, “in” DJ de 11/02/05). 7 IUJ-E-RR-576.619/99, Rel, Min. João Batista Brito Pereira, suspenso em 23/05/05, na SBDI-I. 8 “JORNADA DE 12X36 HORAS - NÃO-CONCESSÃO DE INTERVALO INTRAJORNADA HORA NOTURNA REDUZIDA - PREVALÊNCIA DOS PRECEITOS DE ORDEM PÚBLICA PREVISTOS NA CLT E DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS QUE RESGUARDAM OS DIREITOS INDISPONÍVEIS DO TRABALHADOR SOBRE A AUTONOMIA DA VONTADE DAS PARTES NO ÂMBITO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA. Embora já pacificado nesta Corte o entendimento de que é válida a jornada especial de 12X36 horas, quando prevista em acordo ou convenção coletiva de trabalho, consoante art. 7º, XXVI, da CF, não se pode reputar como lícito o ajuste que suprime ou prevê a não-concessão de intervalo para repouso e alimentação. Sem prejuízo do instrumento negocial, prevalecem os dispositivos das Seções III e IV do Capítulo II do Título II da CLT, em que se inserem os artigos 71, caput e § 2º, e 73 da CLT, que cuidam dos períodos de descanso e da hora noturna reduzida, preceitos esses de ordem pública e, portanto, de natureza congente, que visam resguardar a saúde e a integridade física do trabalhador, no ambiente do trabalho. E, como normas de ordem pública, estão excluídas da disponibilidade das partes, que sobre elas não podem transigir. À luz dos princípios que regem a hierarquia das fontes de Direito do Trabalho, as normas coletivas, salvo os casos constitucionalmente previstos, não podem dispor de forma contrária às garantias mínimas de proteção ao trabalhador previstas na legislação, que funcionam como um elemento limitador da autonomia da vontade das partes no âmbito da negociação coletiva. A negociação coletiva encontra limites nos direitos indisponíveis do trabalhador, assegurados na Carta Magna, e, assim, a higidez física e mental do empregado, ou seja, a preservação da saúde no local de trabalho, é princípio constitucional que se impõe sobre a negociação coletiva. Recurso de revista provido” (TST-RR-785.721/2001.1, Rel. Min. Milton de Moura França, 4ª Turma, “in” DJ de 25/06/04). Acordo de compensação. Regime de 12x36. Horas extras além da 10ª diária. O empregado submetido ao regime de compensação de 12 por 36 horas previsto em acordo ou convenção coletiva faz jus ao pagamento do adicional por trabalho extraordinário sobre as horas trabalhadas além da 10ª diária (TST-E-RR-666.554/2000.1, Red. Designado Min. João Oreste Dalazen, SBDI-1, julgado em 27/03/06). 9 “DISSÍDIO COLETIVO - ESTABILIDADE DA GESTANTE - ARTIGO 10, INCISO II, ALÍNEA “B”, DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS. O fato de a norma coletiva dispor de forma menos benéfica que a regra insculpida no artigo 10, inciso II, alínea b , da Constituição Federal de 1988 é capaz de justificar a sua exclusão do ajuste celebrado entre as partes. Com efeito, por se tratar de norma cogente e de caráter eminentemente social, que visa à proteção da maternidade e do nascituro, não há como se concluir pela validade de transação que reduza a mencionada garantia. A Constituição Federal de 1988 admite a flexibilização do salário e da jornada dos trabalhadores, desde que garantida a manifestação desses por intermédio de assembléia devidamente convocada. Todavia, em se tratando de normas relacionadas à proteção da maternidade (e do nascituro), estão fora da esfera negocial dos sindicatos, por serem de ordem pública, inderrogáveis pela vontade das partes e revestirem-se de caráter imperativo para a proteção do hipossuficiente, em oposição ao princípio da autonomia. Recurso Ordinário conhecido e provido” (TST-RODC-796.714/01, Rel. Min. Rider Nogueira de Brito, SDC, “in” DJ de 07/06/02).

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HÁ MUITOS ERROS DE PORTUGUÊS Arnaldo Niskier Membro da Academia Brasileira de Letras

O filólogo Evanildo Bechara, com 73 anos, é imortal da Academia Brasileira de Letras. Considerado um dos maiores especialistas em filologia e gramática portuguesa do mundo, sua opinião sobre os nossos professores deve ser avaliada com muita atenção. Somos obrigados a admitir que a situação é assustadora. É parte de um depoimento do Prof. Evanildo Bechara à repórter Valéria Martins, do Jornal de Letras. “Os professores, mesmo de nível universitário, não conhecem bem a língua e ensinam errado aos alunos”. Quando a jornalista lhe pediu que justificasse a denúncia em relação aos professores, afirmou: “Outro dia me mostraram uma prova para a quinta série, ou seja, para alunos de 10 ou 11 anos, que era errada até do ponto de vista pedagógico. Trazia um texto da carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em português antigo. Dizia assim: ‘mandamos em terras batéis e esquifes’. No final do texto, havia um glossário onde ‘esquife’ aparecia como sinônimo de ‘caixão fúnebre’. Ora, ‘batéis’ são barcos grandes e ‘esquifes’, barcos pequenos. ‘Esquife’ é uma palavra estrangeira, um empréstimo que recebemos das línguas nórdicas. Ou seja, o professor não leu corretamente a carta de Pero Vaz de 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

Caminha, não conhece o vocabulário da língua portuguesa e está passando noções erradas aos alunos numa prova. É gravíssimo.” E disse mais: “Há muitos erros de português. O nível diminuiu muito, mesmo nos meios onde se deveria saber escrever corretamente. Mas esses profissionais são vítimas do mau ensino da língua, que já está institucionalizado. Hoje mesmo, eu estava analisando algumas provas de vestibular da PUC e da UFRJ. As interpretações que os próprios professores fazem nas questões são verdadeiros absurdos. São interpretações pessoais, nas quais os alunos não conseguem penetrar facilmente. Na parte de gramática, também há erros.” Quem gostaria que seu filho aprendesse, na escola,


noções erradas de gramática e textos com interpretações e municipais de educação, que aprenderam a não mentir. dúbias? São os desafios que se colocam para os cursos Não há ganhos concretos em exercícios demagógicos. de formação de professores, na esperança das necessárias Comemora-se a quase universalização do ensino providências. fundamental, mas há um grande silêncio sobre as saídas O profissional de educação precisa ser vocacionado. (evasão) de crianças depois de matriculadas. Por que houve Entretanto, a remuneração dos professores é um problema, o aumento de matrículas e uma diminuta inauguração de ainda insolúvel, o que vem afastando do magistério aqueles novas escolas? A resposta é simples: coube todo mundo que fizeram excelentes cursos de formação e se preocupam porque muitos não ficaram, a merenda prometida era pífia com a atualização constante. Estes, certamente, optam (quando chegava) e os livros didáticos distribuídos, depois por outros trabalhos. Não se pode deixar de registrar que dos mistérios da escolha dirigida, muitas vezes não saíram os baixos salários impedem que o professor reserve uma de depósitos ou das próprias escolas. Era comum, nesse verba para a compra de livros e pagamento de cursos de período, ouvir reclamações do tipo “não sei o que fazer reciclagem – mal dá para comer e para vestir. E morar desses livros”, “os professores não foram treinados para dignamente, então, nem se fala. utilizá-los”, “uso um método que prescinde de livros”etc. O investimento na melhoria dos recursos humanos dos Ou seja, em termos de qualidade, quando se pode medir profissionais da educação, principalmente em relação ao o aperfeiçoamento de um sistema, a educação nunca esteve domínio da língua, é imprescindível tão ruim, no conjunto. É possível que e urgente. Seja professor de existam bons alunos, na rede pública. “Seja professor física, química ou qualquer outra Graças a professores dedicados e disciplina, todos têm obrigação competentes, que também os há. Mas de física, química de falar e escrever corretamente o dizer que o conjunto melhorou é um ou qualquer outra exercício ficcional de mau-gosto. português. O exemplo é o maior aliado da educação. Isso para não Não se trata de má vontade disciplina, todos citar a precariedade registrada nos com o ex-ministro. Ele também têm obrigação de cursos de Direito em relação ao destruiu o ensino médio, que vernáculo. agora está sendo recomposto falar e escrever Para que as autoridades assumam pelas atuais autoridades. Se corretamente o a responsabilidade de manter cursos, quiserem números, recorram aos promover oficinas, seminários e do Saeb 2003 (MEC). Só português. O exemplo dados encontros para os professores, a fim a língua portuguesa melhorou é o maior aliado da pouquíssimo, mas ainda ficou na de tê-los atualizados é preciso que este ponto seja considerado prioritário no faixa da reprovação dos técnicos. A educação. planejamento de qualquer governo matemática piorou (para onde vai municipal e estadual e as verbas, a nossa ciência da informação), o destinadas a esse programa, sejam de fato utilizadas para o mesmo ocorrendo com ciências. Crianças da quarta série crescimento pessoal e profissional do professor. mal sabem ler, escrever e contar jovens da oitava série não Há uma história popular que é bem elucidativa. conseguem interpretar o que lêem. São dados oficiais, sem Quando, numa cidade do interior, foi feita empiricamente manipulação, cadê a explicação? uma pesquisa sobre a popularidade do seu prefeito, um Sobre o ensino superior, qualidade virou exceção. O sábio local manifestou a sua opinião: aqui a população número de cursos criados nos últimos anos do Governo está bem dividida. Metade acha que ele é um prefeito FHC foi uma barbaridade, sob a pressão desmesurada de medíocre, a outra metade acha que ele é um medíocre políticos de todos os calibres. Depois, imputaram a culpa prefeito. no pobre do Conselho Nacional de Educação, apenas uma Recordo o fato para lembrar os oito anos de gestão na vítima de toda essa orquestrada insanidade. Só nos resta educação do Governo Fernando Henrique Cardoso. Que mesmo o protesto. confusão: O seu então ministro sistematicamente vem a Enquanto se pode estimar o futuro, nas grandes nações, público, com sua notória atração pela mídia, para criar a cada vez mais beneficiadas pela propagação da globalização, mais impressionante bateria de factóides do país. Uma fértil para nós não resta outra alternativa que não seja a adesão imaginação. completa à prioridade educacional. A formação de professores Escreveu um longo artigo, afirmando peremptoriamente e o seu treinamento constante gozam de absoluta prioridade, que “a educação brasileira está melhor.” Como vivemos devendo entusiasmar os que se encontram sacrificados numa democracia, apesar da arrogância neoliberal, temos pelo desânimo. Se o futuro aponta para a Sociedade do o direito de questionar essas afirmações, com base no Conhecimento, não podemos estar fora disso. que vemos objetivamente em sucessivas visitas a escolas Ganharemos todos: os professores, os alunos e a educação – e no que afirmam os sacrificados secretários estaduais brasileira. 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


Em busca do diálogo Francisco Viana Jornalista Membro do Conselho Editorial

Foto: Arquivo

“A imprensa tem suas virtudes e seus males.” Deixemos que as suas virtudes expulsem os males. Ou seja, é na liberdade que se assegura a afirmação da verdade, à luz dos fatos e do diálogo.”

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Ministério Público do Estado do Pará é uma estrela da mídia: todos os meses são mais de uma centena de pedidos de entrevistas e, todos os dias, seus promotores são fontes de algo como cinco notícias nos jornais, rádios e televisão. É fácil explicar: há muito conflito no ar. Conflito de terra, conflito com madeireiros, conflito envolvendo o meio ambiente, conflito de concorrência ilegal - pirataria, contrabando, sonegação de impostos. Como em todo o Brasil, o cidadão no Pará se movimenta em busca da Justiça e da garantia dos seus direitos. Por isso, o Ministério Público está sempre sob a luz dos refletores. Não é essa, porém, a novidade. O dado novo é que o MP do Pará está em busca de uma melhor compreensão de como funciona a mídia. Quer trabalhar melhor, e com mais eficiência, a comunicação com os jornalistas e a sociedade. Por estas razões organizou no último dia 31 o I Encontro de 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

Comunicação da Região Norte. Mais de 70 promotores de todo o Estado do Pará, que é algo como cinco vezes maior do que o Estado de São Paulo, vieram a Belém para discutir quatro temas principais: 1. A necessidade das instituições se adequarem aos impactos positivos da democracia, isto é a liberdade de expressão e a liberdade de organização. 2. A importância do diálogo construtivo com a mídia, a partir de fatos e mensagens alicerçadas na realidade objetiva, tendo como ponto de partida a mudança de postura dos responsáveis pelo funcionamento das instituições. 3. Os trunfos e impasses a serem superados pelo Ministério Público nesse momento de transição da sociedade brasileira. 4. A imprensa no Pará e, como desdobramento, a região Norte, hoje centro de atenções da mídia internacional. Os debates foram mediados por mim, que falei da comunicação em âmbito nacional, e pelo experiente jornalista


Carlos Mendes, do jornal O Liberal e correspondente do Estado de São Paulo, que abordou o tema da mídia regional. Discutiu-se, em especial, o candente tema da reputação e a imperativa necessidade de aproximação do Poder Judiciário com a mídia. A reputação porque é o terreno onde se constrói a confiança, a credibilidade e dá amplitude ao importante trabalho desempenhado pelo Ministério Público. O interesse da platéia foi constante. Com entusiasmo e curiosidade os participantes queriam saber como funcionam as redações, quais os critérios de verdade para os jornalistas, como é feita a apuração das matérias, se os donos dos veículos de comunicação interferem no que é editado, o que é notícias e, em especial, como são feitos os títulos, a edição e os limites éticos da profissão. Houve ainda interesse em avaliar a influência da mídia no Brasil - a terceira instituição a desfrutar da credibilidade da população, depois da Igreja e do Exército, segundo recente pesquisa do Ibope -, o critério de escolha das fontes de informação jornalística, o lugar ocupado pelo Ministério Público e como harmonizar o tempo de uma instituição como o Ministério Público, que defende o cidadão e precisa ser muito criterioso, e o tempo da opinião pública, mais veloz e, portanto, mais dinâmico quanto as exigências de informação. Outro foco de atenção foi a superexposição. Quais os seus reflexos? Como atender, por exemplo, as demandas da mídia no interior, sem que o MP se exponha excessivamente? O interesse pelo debate foi tanto que o Seminário foi prorrogado por cerca de uma hora de modo a não deixar questões sem respostas. Como a Justiça no Brasil é muito lenta, o julgamento da opinião pública passa a ser decisivo para compensar a lentidão da aplicação da lei. Assim, tudo que o MP faz e divulga tem um caráter educativo. Soa como um alerta para aqueles que se imaginam acima da lei e dos limites éticos. Nesse particular, o relacionamento do MP com a mídia passa a ser crucial. Sobretudo no que se relaciona aos fatos. Quanto mais trabalhar com fatos e quanto mais precisa for a comunicação, maior será a sua contribuição para a modernização brasileira. Em paralelo, o melhor entendimento de como funciona a Justiça pelos jornalistas tende a ser determinante para fazer avançar a reforma do Judiciário, permanentemente adiada. Carlos Mendes falou amplamente do significado desse diálogo. Inclusive para suprir a falta de jornalistas especializados na região. A conclusão dos participantes: o saldo foi dos mais positivos. Positivo, sobretudo, porque mostrou que a liberdade de expressão mais do que um patrimônio dos jornalistas é um patrimônio da sociedade. Não existe imprensa livre se a sociedade não for livre. Assim, a imprensa, como assinalou Tocqueville, está sempre a praticar a difícil missão de proteger o cidadão daqueles que agem contra a democracia ou ferem os interesse público. O encontro - certamente o primeiro do gênero no País contribuiu, na visão dos participantes, para dissolver temores quanto às entrevistas e eventuais erros de imprensa. E mais do que isso, tornou visível para o MP o valor de definir políticas

Palestra proferida por Franscico Viana no Iº Encontro de Comunicação da Região Norte

de comunicação com vistas a uma maior ênfase ao trabalho da instituição e, conseqüentemente, a multiplicação dos seus porta-vozes. Em outras palavras, caminha-se no Pará para que mais e mais promotores públicos tomem a iniciativa de falar com a imprensa, deixando de lado o temor de que suas palavras sejam distorcidas e, melhor, procurando ser mais claros e mesmo didáticos com jornalistas que não tenham conhecimento dos temas que são levados a divulgar. A iniciativa do MP do Pará vem somar-se a um grande mutirão de entidades públicas e empresas no sentido de compreender esse hieróglifo que é a mídia e sua influência junto à opinião pública. O dado animador é que, ao contrário do passado, não existe a compulsão à censura e à restrição de liberdades, mas, sim, a convicção de que o caminho seguro está no entendimento e no diálogo. Pois, na essência, a liberdade de expressão é fruto da liberdade da sociedade. A mídia, nesse contexto, a despeito dos muitos erros - que, aliás são comuns a todos num momento de transição e mudança tão amplo como o que hoje vivem as instituições brasileiras - , exerce o indispensável papel de proteger o cidadão e a sociedade contra os males do autoritarismo, da corrupção e da ausência de ética. Nesse particular, é que a comunicação afirma-se como um valor. Útil e indispensável à consolidação, entre nós, do Estado de Direito. No final, duas frases ficaram como mensagem e tema de reflexão aos participantes. A primeira, de Proust, alerta para a necessidade dos descobridores olharem o mundo com novos olhos e não apenas pelo ângulo das novas descobertas. A segunda do jurista Rui Barbosa, e também grande jornalista, que ensina: “A imprensa tem suas virtudes e seus males.” Deixemos que as suas virtudes expulsem os males. Ou seja, é na liberdade que se assegura a afirmação da verdade, à luz dos fatos e do diálogo. 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


TEORIA E REALIDADE DOS JUIZADOS ESPECIAIS Bruno Calfat Advogado do Escritório Sérgio Bermudes

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processo civil não interessa simplesmente ao acadêmico. Sobre ele, não se debruçam apenas teses, mas vidas. Qualquer cidadão, quando ocorre a violação de um dos seus direitos, deve ter garantido pelo Estado o acesso ao Poder Judiciário, para que este assegure a reparação dos direitos violados ou sob ameaça de lesão. Assim estabeleceu a Constituição Federal, em seu art. 5º, XXXV, que deve ser respeitada por todos os brasileiros. Movida por esse espírito de assegurar direitos essenciais, a Constituição Federal de 1988 incorporou às suas disposições expressiva preocupação com a efetividade e instrumentalidade do processo, tratando, em dois dispositivos, dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (indistintamente chamados também de juizados de pequenas causas): leiam-se, a respeito, o inciso X do art. 24; e o inciso I do art. 98. Por força do comando presente na Carta Política (C.F., art. 98, I), bem como atendendo aos anseios dos mais diversos setores da sociedade civil, adveio, então, a Lei 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

9.099, de 26.9.95, instituindo os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, no âmbito da Justiça Estadual (os juizados federais ainda demorariam mais), regidos pelos critérios de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, destinados às ações de menor complexidade e valor. Assim, a combinação durante a década de 90 de uma legislação consumerista protetiva (Lei 8.078, de 11.9.90/ CDC) aliada a um instrumental processual célere, de fácil acesso e sem maiores ônus e formalidades, produziu um verdadeiro boom judicial, até então jamais visto pelos operadores do direito. Com efeito, o crescimento exponencial do número de ações propostas, sobretudo nos Juizados Especiais Cíveis, fez surgir uma verdadeira indústria de indenizações, fruto de ações pouco criteriosas e, não raras vezes, temerárias. Em outras palavras, a propositura de ações nos conhecidos “JEC´s” tornou-se quase uma profissão para alguns que, sem pudor, chegam a figurar como parte demandante em dezenas


“(...) a propositura de ações nos conhecidos “JEC´s” tornou-se quase uma profissão para alguns que, sem pudor, chegam a figurar como parte demandante em dezenas e dezenas de casos, na esperança de enriquecer às expensas das empresas.”

e dezenas de casos, na esperança de enriquecer às expensas das empresas. Gerando, em última análise, um enorme custo para as grandes empresas que, ao final da cadeia de serviços, acaba prejudicando o consumidor final, que honra suas obrigações, sem adotar condutas reprováveis. E toda essa realidade possui motivos facilmente identificáveis, que não podem ser desconsiderados pelos magistrados que oficiam nos Juizados Especiais. Nesse sentido, apenas para ilustrar o Diretor-Geral da ANEEL, Jerson Kelman, em artigo publicado na Revista Justiça e Cidadania no último mês de junho, discorreu sobre questões relacionadas à jurisdição dos JEC’s: “Ocorre que alguns Juizados Especiais, em municípios do Estado do Rio de Janeiro vem condenando a distribuidora local ao pagamento de danos morais pela falta de energia elétrica. Referidas decisões, como se sabe, estão sujeitas, em regra, à revisão pelas Câmara Recursais. Não são em geral avaliadas pelos Tribunais Superiores. A concessionária enfrenta o paradoxo de não recorrer e estimular o aumento de demandas judiciais ou de recorrer, pagando R$ 600,00 de custas de recurso, que é valor, muitas vezes maior do que a própria indenização. Embora o valor individual pareça pouco expressivo, trata-se de uma “bola de neve” cujo montante, somando a indenizações e/ou custas do recurso, pode suplantar o ganha da concessionária, levando-a ao limite de abandonar a concessão. Ou, antes disso, a reivindicar uma revisão tarifária, a que tem direito por Lei, para assegurar o equilíbrio econômico-financeiro.” Note-se, p.ex, ainda que não sendo necessário o pagamento de custas para a propositura de demandas e, ainda, não existindo ônus de sucumbência para a parte vencida em 1º grau, inexiste risco para o autor, que postula sem compromisso e sem perspectiva de sanção. Além disso, peculiaridades típicas dos Juizados Especiais geram um cenário propício a distorções: a quantidade exagerada de ações indenizatórias protocoladas diariamente, em todo o Estado do Rio de Janeiro, faz com que haja uma massificação da postulação e a padronização da prestação jurisdicional, acarretando desvios e iniqüidades de toda ordem, que não podem ser tolerados. Não é aceitável, v.g., admitirmos a condenação no patamar máximo autorizado pelo art. 3º, I, da Lei 9.099, de 26.9.95, apenas porque figura na relação processual uma empresa pertencente a um grupo econômico pujante. Outros temas e situações jurídicas agravam ainda mais o quadro atual, reforçando a importância das sentenças proferidas no âmbito da jurisdição dos Juizados Especiais Cíveis. Segundo princípio festejado na doutrina, amplamente

consagrado pela jurisprudência, constituindo verdadeiro norte do sistema processual de provas, cabe àquele que alega provar o fato constitutivo do seu direito. Ou seja, o ônus de provar o fundamento do pedido incumbe ao autor da ação. A lei 9.099/95, todavia, restringe os meios de provas, vedando, por exemplo, a realização de perícia. Segundo a ratio da norma, a instrução complexa desnaturaria a essência dinâmica do rito. Assim, combinada com a inversão do ônus da prova, tem origem a figura da diabolica probatio, que pode ser traduzida pela impossibilidade da parte [as empresas, invariavelmente] produzir a prova que lhes compete, nas instruções dos Juizados Especiais. Há, também, outro aspecto relevante na disciplina dos Juizados Especiais, no Rio de Janeiro. A Lei 9.099, de 26.9.95, prevê a existência das conhecidas Turmas Recursais – os órgãos colegiados, competentes para a revisão dos julgados monocráticos –, em respeito ao princípio do duplo grau. Até aí tudo bem, senão por um simples detalhe: o alto custo da interposição do recurso, R$ 609,24. As custas, no modelo atual, foram elevadas à condição sumamente iníqua de instrumento dissuasório do legítimo exercício de recorrer das decisões judiciais. Sem maiores critérios ou justificativas, a parte é obrigada a pagar para recorrer de uma sentença, proferida em processo regulado pelo rito ordinário, que a condenou em quantia superior a hum bilhão de reais, o valor de r$ 44,84. Por outro lado, para interpor um recurso inominado, que está impugnando uma decisão judicial que a condenou em quantia não superior a 40 (quarenta) salários mínimos, tem que desembolsar quantia doze vezes maior. A desproporção é inegável e, por óbvio, deve servir para demonstrar a relevância dos Juizados Especiais e de seus provimentos judiciais, em relação aos impactos que acarreta. E tantas outras considerações poderiam ser feitas, com vistas a despertar em todos o papel essencial que o Juizado Especial desempenha, em consonância com a necessidade de se buscar um equilíbrio entre demandantes, demandados, consumidores e empresas, na esteira do que dispõe o art. 125, I, do Código de Processo Civil. Embora valorosa, na medida em que elege a celeridade e o fácil acesso à jurisdição como metas a serem alcançadas, em fiel observância à Constituição Federal, a Lei dos Juizados Especiais e, sobretudo, sua aplicação diária por juízes e advogados não pode se transformar em um instrumento de iniqüidades, de sentenças padronizadas, que acabam por chancelar, embora involuntariamente, a malsinada indústria das indenizações indevidas. 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


Primeiros passos para um novo processo Pierpaolo Bottini

Foto: Arquivo Pessoal

Secretário de Reforma do Judiciário Ministério da Justiça

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morosidade do Poder Judiciário não é um problema percebido apenas atualmente. Há muito tempo os usuários da Justiça se inflamam contra a lentidão na tramitação dos processos. A dificuldade de ver solucionado um litígio através de uma ação judicial é patente, os obstáculos para obter uma decisão judicial e para cumprila são facilmente perceptíveis, e as possibilidades de protelar e de postergar um processo por muitos anos fazem com que a Justiça seja desacreditada e desprestigiada como mecanismo formal de resolução de conflitos.  A solução para este estado de coisas não é mágica, nem simples. Enfrentar o problema da demora das decisões judiciais exige prudência e responsabilidade, para afastar 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

“(...) aquele processo judicial que trata de litígios, conflitos, lides do cotidiano, que absorve tempo e dinheiro das partes e do Estado, poderá ser finalizado mais rapidamente e garantir a todos uma Justiça segura e prestativa (...)”

propostas levianas ou corporativas, e para encontrar, realmente, os gargalos e os nós do processo, e superá-los de maneira eficiente. Por isso, devem ser afastadas de plano as sugestões de supressão de recursos, de instrumentos de defesa e de etapas processuais relevantes, porque, se assim fosse, seriam afetados os direitos constitucionais de um processo justo e equilibrado, no qual as partes podem se manifestar e argumentar suas teses para convencer o juiz. As propostas de solução devem vir respaldadas em conhecimentos acadêmicos e práticos, oferecidos por operadores do direito e por membros da sociedade civil que lidam, que usufruem e que necessitam da atividade do Judiciário no dia a dia.  Nessa linha, o Ministério da Justiça, através da Secretaria


de Reforma do Judiciário, em conjunto com o Supremo Tribunal Federal, com o Instituto Brasileiro de Direito Processual e com entidades de magistrados, promotores, advogados e defensores, apresentou vinte e seis projetos de lei, com o intuito de reformar o processo civil, penal e trabalhista. Tais projetos foram subscritos pelo presidente da República, pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, pelo presidente da Câmara e pelo presidente do Senado, e foram apresentados ao Congresso Nacional como parte de um pacto por um Judiciário mais rápido e republicano.  Destes projetos apresentados, cinco foram aprovados e sancionados, depois de intensa discussão e debate com os setores envolvidos. Todos eles alteram aspectos importantes do processo civil brasileiro, e são frutos de uma construção conjunta e madura, da qual participaram os personagens que conhecem as mazelas do sistema judicial, que são acostumados a lidar, cotidianamente, com a dificuldade que alguns ritos e atos impõem.  Estas novas leis não surgem de discussões etéreas e acadêmicas sobre teorias jurídicas vazias, mas decorrem de constatações de problemas reais, concretos, que impedem o funcionamento da Justiça. Sabe-se que os processos não andam por uma série de motivos, como a dificuldade para encontrar o devedor, ou para encontrar os bens do devedor. Também são paralisados pelo excesso de recursos meramente protelatórios, ou seja, recursos que tem como única finalidade postergar o cumprimento das decisões judiciais. Não é necessário ser advogado, ou juiz, ou promotor, para saber destes problemas. Basta ser usuário dos serviços da Justiça.  É com esta visão, e para enfrentar estes problemas comuns e usuais, que surgiram as cinco primeiras leis que alteram o processo civil brasileiro. Em seu conjunto, regulamentam a tramitação dos processos de maneira precisa e racional, sem suprimir garantias constitucionais e, no entanto, conferindo uma racionalidade efetiva aos procedimentos judiciários.  Tome-se como exemplo a criação da súmula impeditiva de recursos. Esta lei impede uma parte no processo de recorrer se a sentença do juiz estiver de acordo com uma súmula (orientação de julgamento) do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça. Nestes casos, o juiz, diante de um caso concreto, tem a liberdade de decidir da mesma forma que o tribunal ou, se não estiver de acordo com aquela orientação, posicionar-se contrariamente à súmula, ou seja, mantém a autonomia e a independência em relação aos órgãos superiores. No entanto, caso este magistrado decida de acordo com a orientação da súmula, não faz sentido que a parte perdedora prossiga com uma demanda que, evidentemente, não terá sucesso nas instâncias superiores. Para ilustrar a aplicação da nova lei, vejamos os casos em que o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça aprovam súmulas que garantem direitos de reajuste salarial ou de benefícios previdenciários a determinados cidadãos. Antes da reforma processual, esta atitude dos tribunais não significava nada em celeridade, porque a instituição obrigada ao pagamento poderia recorrer inúmeras

“Certamente, uma modificação na cultura dos operadores do direito é importante para a substituição do atual estado de excessiva litigiosidade.” vezes, e postergar o processo durante anos, mesmo sabendo que a causa estava perdida. Com a súmula impeditiva de recursos, a tramitação fica mais rápida, porque, caso o juiz de primeiro grau reconheça, naquele caso concreto, a incidência do reajuste ou do benefício, não haverá mais recurso, nem protelação, e seu direito será reconhecido já nesta primeira fase do processo. Esta inovação reduzirá o número de ações repetitivas nos tribunais e permitirá que os conflitos que envolvam estas questões sejam resolvidos de maneira célere, sem prejuízo do acesso à Justiça, que fica garantido, como manda a Constituição.  Outro exemplo importante é a possibilidade do juiz rejeitar um pedido judicial sem citar ou comunicar o réu da existência desta demanda. Isso ocorrerá nas hipóteses em que o juiz já tenha se manifestado sobre a mesma questão em processo idêntico. Mais uma vez, a novidade ataca a multiplicação de processos iguais, sobre o mesmo tema, e traz praticidade para a organização judicial, afinal, se o magistrado já firmou posição sobre um assunto, já julgou casos parecidos, não há necessidade de citar o réu e exigir que este se manifeste, constitua advogado e perca tempo em uma ação. Certamente, a prática se limita aos casos em que a ação for improcedente, caso contrário, seria violado o direito da ampla defesa.  Inúmeras outras alterações foram aprovadas, todas elas no mesmo sentido, de construir um novo processo civil, mas ágil e mais eficiente. O cidadão, o usuário final da Justiça, perceberá as novidades com a entrada em vigor de tais leis, afinal, aquele processo judicial que trata de litígios, conflitos, lides do cotidiano, que absorve tempo e dinheiro das partes e do Estado, poderá ser finalizado mais rapidamente e garantir a todos uma Justiça segura e prestativa, sem que as garantias constitucionais de defesa, de participação e do livre convencimento do juiz.   Evidentemente, não basta a alteração legal para transformar a Justiça. Certamente, uma modificação na cultura dos operadores do direito é importante para a substituição do atual estado de excessiva litigiosidade. Mas, sem dúvida alguma, a aprovação das leis mencionadas é um marco importante, que permitirá a consolidação de um processo voltado para sua finalidade última e única, que é a solução definitiva de conflitos e a execução das decisões judiciais de maneira segura, rápida e justa. 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


A Legitimidade da Procriação Assistida Face à Essência dos Direitos e Garantias Fundamentais Roberto Wider Desembargador do TJ/RJ

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enorme velocidade com que os avanços científicos e tecnológicos impõem tranformações sociais acarreta que estas, mais das vezes, não se façam acompanhar do devido respeito aos valores éticos e morais subjacentes às normas e códigos norteadores dessa mesma sociedade. Assim se dá com as questões que envolvem a procriação assistida, quer do ponto de vista humano, em geral, quer estritamente do ponto de vista jurídico. Posto que novas categorias demandam novas conceituações, vemos surgirem a Bioética e o Biodireito como disciplinas capazes de subsidiar as discussões e decisões sobre esse tema que toca profundamente no princípio da dignidade humana. Os Direitos Humanos, em processo de afirmação ao longo da História, assumiram caráter universal a partir da declaração dos Direitos Humanos, em 1948, passando, então a ter assento nas constituições de diversos países. A esse respeito, vejamos o pensamento de Vieira de Andrade (1987), quando traça comentário sobre o conteúdo dos direitos fundamentais: 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

“O conteúdo essencial dos direitos fundamentais consistiria em um núcleo fundamental, determinável em abstrato, próprio de cada direito, e que seria, por isso, intocável. Referir-se-ia a um espaço de maior intensidade valorativa (o coração do direito) que não poderia ser afetado sob pena de o direito deixar de realmente existir”. O direito de constituir família, por exemplo, recepcionado em várias legislações, é erigido como direito fundamental em muitas constituições. A possibilidade de utilização do progresso científico no alcance desse objetivo, dá ensejo a duas correntes de pensamento, bastante divergentes entre si. Os adeptos de uma delas recomendam que as técnicas de reprodução devem ser utilizadas de forma livre, já que remontam à esfera íntima das pessoas e ao planejamento privado da vida familiar, que estaria caracterizado constitucionalmente como direito fundamental, sendo, deste modo, intolerável a ingerência do Estado na relação do ser humano com o seu próprio corpo, que deveria ser exercitada com total liberdade. Para a outra corrente, entretanto, a intervenção do Estado é


autorizada pela transcendência da matéria, de ordem pública, enquanto casal. coletiva, acima dos interesses e responsabilidade individuais, Merece destaque, ainda, o artigo 26 da Constituição de cabendo ao mesmo estabelecer regras jurídicas precisas para a Portugal. Sendo a família elemento fundamental da sociedade, utilização da moderna biotecnologia. a lei máxima vem tutelando o direito à reserva da intimidade Neste ponto, convém ponderar que o conceito de da vida privada e familiar: liberdade natural é indissociável do conceito de dignidade “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, natural, sendo, neste caso, oportuna a imposição de restrição à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, ao exercício da livre disposição do seu corpo pelo ser humano, à imagem e à reserva da intimidade da vida privada e haja vista estar em questão, aí, a vida, a dignidade de um familiar”. terceiro ser humano, incapaz de realizar, então, qualquer Na mesma perspectiva, o sistema jurídico brasileiro, escolha. no artigo 226 § 7º da Constituição Federal, proclama o A salvaguarda do equilíbrio entre os princípios da planejamento familiar como direito decorrente da autonomia liberdade e da dignidade deve concitar o homem a dispor dos indivíduos: de forma responsável, tanto do seu próprio corpo como das “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana questões da vida em geral. Zelar por este equilíbrio é, nesta e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre perspectiva, atribuição do Estado quando à pessoa faltar o decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos equilíbrio entre os dois princípios. educacionais e científicos para o exercício desse direito, O desembargador Luiz vedada qualquer forma Roldão de Freitas Gomes coercitiva por parte de “A salvaguarda do (1997), do Tribunal de instituições oficiais ou equilíbrio entre os princípios Justiça do Estado do privadas” Rio de Janeiro, aponta Também, o Pacto da liberdade e da dignidade três modelos primários, Internacional de New deve concitar o homem a colhidos no Direito York, de 19 de dezembro comparado, acerca da de 1966, já definia a dispor de forma responsável, reprodução assistida: família, no artigo 23, tanto do seu próprio corpo I- o repressivo, que número I: estabelece proibições, “A família é o elemento como das questões da comandos e sanções. Dessa natural e fundamental da natureza são os projetos sociedade e tem direito à vida em geral. Zelar por italianos apresentados ao proteção da sociedade e este equilíbrio é, nesta Parlamento na década de do Estado”. 60. Tanto as duas Cartas perspectiva, atribuição do II- o modelo liberal, Magnas, quanto o Estado quando à pessoa que deixa à liberdade da diploma internacional pessoa e à autonomia dos citados trazem implícitos faltar o equilíbrio entre os indivíduos e do casal a aos seus conceitos a noção dois princípios.” decisão sobre a técnica da de que intimidade, vida procriação, incumbindo à privada e familiar estão lei a disciplina de suas conseqüências, como tende a ser a interligadas. As relações subjetivas e o trato íntimo do ser legislação espanhola. humano, devem, assim, merecer grande cuidado por parte do III- o modelo intervencionista, favorável ao controle Direito, evitando-se indevidas ingerências externas. social sobre as escolhas individuais para a tutela de interesses Algumas vezes, contudo, tais direitos fundamentais da superiores, que vem a ser a tendência majoritária. intimidade, vida privada e familiar entram em choque com A partir destas três correntes básicas surgem as nuances outros direitos fundamentais prevalentes, tais como o direito dos textos constitucionais de cada país. à vida e à dignidade da pessoa humana, tais como garantidas Por exemplo, o artigo 36, número I da Constituição na Constituição Portuguesa. Portuguesa reza que a constituição de família é direito “ Artigo 11º . Ninguém pode ser privado de quaisquer dos fundamental, conforme se lê: direitos fundamentais do homem. Os direitos fundamentais “Todos têm o direito de constituir família e contrair garantidos por esta Constituição são concedidos ao povo casamento em condições de plena igualdade”. de hoje e as futuras gerações, como direitos eternos e Por sua vez, o artigo 67 da Magna Carta Portuguesa erege imutáveis.” a família a núcleo de realização pessoal de seus membros, e a Inegável ser a concepção assunto pertinente à esfera íntima vinda de filhos pode ser encarada como um, dentre muitos dos casais, mas em face do direito à liberdade de escolha dos aspectos da realização do ser humano, enquanto indivíduo e recursos biotecnológicos surge, em contrapartida, o dever de 2006 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49


“(...) a reserva de intimidade da vida privada e familiar não pode ser encarada como direito absoluto, pleno, autorizador da utilização dos meios de reprodução assistida sem a menor intervenção estatal.” zelar pelo filho a ser gerado, aí incluído o destino dos embriões assim produzidos. Em diversos textos constitucionais e outros diplomas existem garantias concedidas ao embrião humano, como é o caso do Código Civil Brasileiro, que em seu Artigo 2, afirma começar a personalidade civil da pessoa a partir do nascimento, mas põe a salvo, desde a concepção os direitos do nascituro. Dias (1984), ao discorrer a cerca das visões sobre a dignidade do embrião, aponta: “ De acordo com uma visão niilista, o embrião não goza de qualquer direito, nem no plano ético, nem no plano jurídico. Segundo tais concepções, os próprios direitos do homem são universalmente muito precários. Compreende-se pois que o embrião não goze de nenhum direito. Já uma postura utilitarista terá a propensão de atribuir direitos apenas aos seres que sentem, capazes de gozo ou sofrimento. Assim deveriam se atribuir direitos aos animais adultos, mas não aos embriões, enquanto privados de sistema nervoso. Por último, o humanismo metafísico reconhece ao homem uma dignidade ontológica superior à estrita proteção legal, porventura inexistente, independentemente da capacidade de sentir ou do grau de desenvolvimento. Nesta perspectiva, o embrião deverá gozar de uma proteção satisfatória.” Toda e qualquer pessoa que, ao nascer e assumir personalidade, contrai direitos e obrigações, já foi um embrião. Não é descabido inferir que, dada a utilização cada vez maior das técnicas de procriação assistida, em curto espaço de tempo, incontável número de pessoas terá tido seu início de vida como embrião in vitro. Na esteira deste raciocínio, atentar contra o embrião in vitro, a pretexto do mesmo não ser pessoa, de não ter personalidade e não ser ao menos nascituro, enquanto não nidado no ventre de uma mulher, é ferir a potencialidade da vida, a dignidade indeclinável do ser humano em escala considerável. Fica, assim, evidente, que o embrião mantido em 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2006

laboratório, como resultado da revolução biotecnológica, é categoria nova e como tal deve ser pensada, conceituada e tratada, não havendo porque aproximá-la de categorias já codificadas pelo direito, à luz da realidade de tempos anteriores. Tal postura seria casuística e, até mesmo, oportunista. Sempre que se estabelece uma categoria nova no discurso dos saberes, sejam eles biomédicos ou jurídicos, isto é feito visando a definir um novo elemento face ao contexto em que se insere. Usar, pois, as antigas categorizações de pessoa natural e nascituro , como definidas para o contexto em que então se inseriam, com a finalidade de vedar direitos fundamentais ao embrião in vitro, é, na melhor das hipóteses, cometer um erro essencial. A proteção jurídica deve alcançar a fecundação extrauterina, trazendo o embrião mantido em laboratório para o universo codificado, posto haver uma gênese comum entre eles e os demais indivíduos humanos, compartilhando todos a mesma essência, não sendo possível distinguí-los de modo a justificar a exclusão daqueles do direito fundamental à vida e a dignidade. Portanto, a reserva de intimidade da vida privada e familiar não pode ser encarada como direito absoluto, pleno, autorizador da utilização dos meios de reprodução assistida sem a menor intervenção estatal. É imprescindível a presença do Estado em diversos setores da sociedade, devendo a legislação constitucional e infraconstitucional de cada país dosar equilibradamente o limite entre a ação intervencionista necessária e a seara do não intervencionismo, conforme proposto na Declaração sobre a Utilização do Progresso Científico e Tecnológico no Interesse da Paz e Benefício da Humanidade, de 10 de novembro de 1975, da ONU: “Artigo 6º. Todos os Estados adotarão medidas tendentes a estender a todos os estratos da população os benefícios da ciência e da tecnologia e a protegê-los, tanto nos aspectos sociais quanto materiais, das possíveis conseqüências negativas do uso indevido do progresso científico e tecnológico, inclusive sua utilização indevida para infringir os direitos do indivíduo ou do grupo, em particular relativamente ao respeito à vida privada e a proteção da pessoa humana e de sua integridade física e intelectual.” A dignidade zelou pela conjunção dos direitos fundamentais do homem ao longo da história e, diante da empolgação com a novidade das questões médicas, não se pode olvidar a milenar construção de valoração da vida, à luz da razão, da natureza, da ética e da própria consciência humana. Ao nortear a elaboração das leis, a Bioética e o Biodireito deverão repudiar todo e qualquer comportamento que reduza a pessoa humana à condição de coisa. O reconhecimento da dignidade do ser humano, incluído aí o embrião, no útero materno ou in vitro, como fonte da vida, da humanidade mesma, há de ser a causa primeva da ordem jurídica para a qual está voltada, pois só isto é capaz de lhe conferir sentido.


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