Revista Justiça & Cidadania

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EDIÇÃO 73 • AGOSTO de 2006

18 A VIVÊNCIA

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“A VONTADE SE IMPÕE PELO VOTO”.

DE UM PERÍODO DEMOCRÁTICO

Foto: Jorge Campos ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO EDISON TORRES DIRETOR DE REDAÇÃO JOSÉ LUIZ COSTA PEREIRA DIRETOR DE MARKETING

A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO ELEITORAL

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O PODER JUDICIÁRIO E O SETOR DE COMBUSTÍVEIS

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DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DEBORA OIGMAN EDITORA DE ARTE VINÍCIUS GONÇALVES EXPEDIÇÃO E ASSINATURA CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR. 501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-100. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429 CNPJ: 03.338.235/0001-86 SUCURSAIS SÃO PAULO ORPHEU SALLES JUNIOR AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO. CEP: 90010-272 TEL (51) 3211.5344 BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 - BLOCO E Ed. CENTRAL PARK FONES: (61) 3327-1228 / 29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL (61) 9968 - 5926

revistajc@revistajc.com.br www.revistajc.com.br ISSN 1807-779X

CONSELHO EDITORIAL

SUMÁRIO

Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES antonio carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso DALMO DE ABREU DALLARI Darci norte Rebelo denise frossard

EDITORIAL

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“Justiça Eleitoral acabou com a fraude na eleição e na apuração.”

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Eleições e Reforma Política

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Camisetas: nunca mais?

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A minirreforma eleitoral

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A arte de sempre ter razão

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O DIREITO ELEITORAL EM TEMPOS DE CRISE

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A próxima eleição

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SISTEMA RIO CARD

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TRE-RJ firma posição

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Entrave ambiental

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DECRETO 201/67

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FÓRUM

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IN MEMORIAM

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Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins josé augusto delgado José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes Miguel Pachá nEY PRADO Paulo Freitas Barata SEBASTIÃO AMOÊDO Sergio Cavalieri filho thiago ribas filho

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“É preciso dizer que não é aceitável a vulgarização que se impôs à presunção de inocência, a ponto de transformá-la em escudo da impunidade, subterfúgio jurídico, leito da hipocrisia e passaporte da desmoralização do regime democrático.”

Foto: Sandra Fado

EDITORIAL

TSE Esperança de eleições limpas

Eliseu Fernandes de Souza Desembargador TJ Rondônia

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a história da República, desde sua proclamação em 1889, nunca o Congresso Nacional esteve tão desmoralizado quanto nesta atual legislatura (2003/2006). As instituições democráticas e os milhões de brasileiros estupefatos com a decomposição moral generalizada na política, estão a exigir que a Justiça Eleitoral impeça a permanência dos 93 deputados e 3 senadores envolvidos na máfia dos “sanguessugas”. Também deve escorraçar os mensaleiros comprovadamente beneficiados pelas nauseabundas propinas governamentais distribuídas no Congresso. O escabroso escândalo promovido pelos 100 parlamentares, 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006

conforme informou o Deputado Fernando Gabeira, envolvidos na máfia dos “sanguessugas”, é evidenciado pelo eficaz trabalho do Ministério Público Federal do Mato Grosso, da Justiça Federal e da CPI em curso no Congresso. Tal fato deixou a mostra a trama protagonizada pelos nefastos criminosos instalados na Legislativo federal em conluio com prefeituras, através de emendas no orçamento da União, destinadas às compras superfaturadas de ambulâncias para os municípios através dos quais os deputados recebiam as propinas. O que ocorre hoje com os membros do Legislativo federal, os equipara aos delinqüentes dos comandos das penitenciárias, em escala maior, pois estes criminosos apesar de todas as


barbaridades e desordens que praticam, não surrupiam o tiver uma vida pregressa limpa. Basta que o Tribunal Superior dinheiro público que paga as despesas dos hospitais, a compra Eleitoral não aceite registro de candidatos contaminados dos medicamentos, a manutenção das escolas e a merenda pela criminalidade, admitindo como princípio maior, escolar. Portanto, os membros do Congresso Nacional, que para salvaguarda das instituições, a defesa intransigente da praticam o roubo e malversação do erário (da forma que moralidade pública e da política. seja), que olvidam dos compromissos que assumiram com Os vários e repetidos pronunciamentos emitidos em seus eleitores, além de sequer comparecerem normalmente entrevistas e votos impregnados de exaltação á ética e às sessões da Câmara ou do Senado, merecem o estigma moralidade proferidos no Plenário do TSE, por todos os da traição e do repúdio pelo crime que praticam contra a ilustres e dignos ministros, com relevo especial aos feitos população e a Nação. durante a posse pelo Presidente Marco Aurélio Mello, pelo Oportunidade não faltará ao Tribunal Superior Eleitoral Corregedor César Asfor Rocha e, inclusive, pelo destemido para impedir a volta dos ladrões da confiança dos eleitores e já Procurador-Geral Eleitoral, Dr. Antonio Fernando Barros e denunciados pelas falcatruas praticadas. Basta usar os preceitos Silva, demonstram a certeza na realização de eleições limpas. punitivos das leis em vigor, SEM TERGIVERSAR ou usar Outro fator de confiança na condução e fiscalização do preceitos jurídicos bizantinos para contrapor à delinqüência pleito reside, além do firme propósito de toda a Corte, na utilizada pelos parlamentares, determinação do Corregedorcontra os quais haja irrefutável Geral, Ministro César Asfor prova de corrupção. Rocha, em levar a cabo o “as esperanças A Lei das Inelegibilidades cumprimento absoluto das repousam nas decisões que deveria ser mais rigorosa normas impeditivas de abusos e somente impede, infelizmente, fraudes, já editadas através das dos ministros os casos de delinqüentes já resoluções aprovadas. Marco Aurélio Mello, julgados pela Justiça, o que Assim, as esperanças de que constitui, portanto, uma vereda tenhamos eleições honestas Carlos Ayres Britto, para que os bandidos e corruptos repousa, por conseqüência, nas comprovados consigam o reiteradas e respeitáveis decisões Antonio Peluso, benefício da inocência presumida dos honrados ministros Marco César Asfor Rocha, e obtenham o registro eleitoral, Aurélio Mello, Carlos Ayres se elejam e continuem na prática Britto, Antonio Peluso, César José Delgado, de seus absurdos crimes. Asfor Rocha, José Delgado, e e dos representantes A impugnação da diplomação dos representantes da Ordem também tem se mostrado dos Advogados do Brasil, os da Ordem dos ineficaz, pois raros são os casos Ministros Caputo Bastos e Advogados do Brasil, de cassação de reconhecidos Gerardo Grossi. malfeitores, além do que, depois Diante da realidade das os Ministros da posse, mínimos são os casos próximas eleições espera-se que Caputo Bastos e ocorridos favorecidos pelo o Brasil impeça as intenções corporativismo e putrefatos eleitorais dessa camarilha de Gerardo Grossi.” acordos multipartidários, inomináveis corruptos, com como ocorreu no episódio do o firme posicionamento do “mensalão”, onde o nefasto Tribunal Superior Eleitoral ou conluio partidário concedeu salvo-conduto a colegas, - que já a baderna de um Congresso desmoralizado com autoridade haviam sido acusados sob as mais evidentes e robustas provas esvaziada prosseguirá, desmerecendo a mais democrática das de terem aderido ao esquema da malta criminosa. nossas instituições. Os incisivos pronunciamentos e votos declarados no Portanto, a responsabilidade é do TSE para que Plenário do Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade dos tenhamos esperanças de uma eleição sem fraudes e isenta da sete ministros titulares, evidenciam a alvorada da esperança, bandidagem nefasta e criminosa atualmente acampada na como aguardam todos aqueles que almejam a implantação sede do Congresso Nacional. da moralidade pública, como definida no artigo 37 da Constituição Federal. A norma impeditiva para conter a sangria da imoralidade política que ocorre hoje está explicitamente definida no parágrafo 9º do artigo 14 da nossa Carta Magna, segundo o qual, não poderá ser candidato a qualquer cargo eletivo, Orpheu Santos Salles tanto para o Executivo como para o Legislativo, quem não Diretor-Editor 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5


“Justiça Eleitoral acabou com a fraude na eleição e na apuração.”

Foto: Jorge Campos

CAPA

César Asfor Rocha, Ministro-Corregedor do Tribunal Superior Eleitoral:

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E

m entrevista exclusiva, o ministro-corregedor do Tribunal Superior Eleitoral, César Asfor Rocha, defende que o parágrafo 9º do art. 14 da Constituição não é auto-aplicável, dependendo de Lei Complementar que estabeleça os critérios que permitam a decretação de inelegibilidade de candidatos aos postos do Executivo e do Legislativo, com base na Súmula nº 13 do TSE que dispõe sobre a auto-aplicabilidade do referido texto constitucional.

O senhor concorda que se houver maior rigor em conceder registros de candidaturas de todas as esferas de poder, será muito mais fácil fazer o controle das prestações de contas dos candidatos? Os registros dos candidatos são deferidos ou negados segundo as regras constitucionais e legais sobre a matéria. A Justiça Eleitoral sempre esteve atenta a qualquer circunstância que impeça seu deferimento, seja falta de condição de elegibilidade, seja inelegibilidade. Mesmo que o pedido não seja impugnado, o Juízo Eleitoral deverá indeferir o registro caso tenha conhecimento de fato comprovado que importe no não preenchimento dos requisitos previstos na Constituição Federal ou na legislação infra-constitucional. O rigor dado à análise dos processos de registro é aquele que a lei permitir, sendo importante ressaltar que a norma restritiva de direito deve ser interpretada e aplicada de modo estrito. O exame das prestações de contas dos candidatos também segue os ditames legais, sendo certo que a Justiça Eleitoral, no poder de regulamentar a lei eleitoral, tem expedido instruções, detalhando procedimentos e práticas que possibilitam uma análise profunda das contas, dentro, é claro, do que a lei estabelecer.

O senhor concorda que se a Justiça Eleitoral decidir ao “pé da letra” sobre os parágrafos 9º e 10º do art. 14 da Constituição Federal poderá, liminarmente, dar uma varredura nas candidaturas? A Súmula TSE nº 13 dispõe que não é auto-aplicável o § 9º do art. 14 da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional nº 4/94. Certo é que a EC 4/94 alterou o § 9º do art. 14 da Constituição Federal para permitir que a lei complementar possa impor inelegibilidade inspirada não apenas na moralidade e na legitimidade das eleições – objeto da regra em sua redação original –, mas também na probidade administrativa, na moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato. Entretanto, essa norma tem eficácia limitada, pois depende de lei complementar que estabeleça as cláusulas de inelegibilidade fundada na vida anterior dos postulantes a cargo eletivo. A razão para tal entendimento é que cabe ao legislador a delicada tarefa de especificar o que caracterizaria falta de probidade administrativa e de moralidade para o exercício do mandato, suficiente a causar inelegibilidade. A inelegibilidade sem condenação por decisão transitada em julgado poderia ensejar as mais esdrúxulas situações 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


“A inelegibilidade sem condenação por decisão transitada em julgado poderia ensejar as mais esdrúxulas situações devido à ilimitada imaginação humana, especialmente quando dirigida para o mal.”

devido à ilimitada imaginação humana, especialmente quando dirigida para o mal. Poderiam, por exemplo, ser ajuizadas as mais descabidas ações contra aquele que pudesse vir a ser candidato, apenas para afastá-lo da disputa eleitoral, de modo a favorecer seu adversário político. Por isso, foi editada a referida súmula nº 13. O senhor poderia propor que o pleno do Tribunal aprovasse uma norma única para todos os Tribunais Regionais Eleitorais adotarem na avaliação dos pedidos de registros de candidaturas? Não cabe aos Corregedores Eleitorais processar e julgar os pedidos de registro, que são distribuídos a todos os membros da Corte. Por sua vez, o TSE, obedecendo ao disposto no art. 105 da Lei nº 9.504/97, edita Instruções regulamentando a lei e trazendo a interpretação que a Justiça Eleitoral tem adotado em algumas questões, mas, obviamente, não estabelece como o julgador deve decidir o caso concreto, diante de suas peculiaridades, seja em matéria atinente aos dispositivos acima mencionados ou a qualquer outro. 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006

O que a Justiça Eleitoral poderá fazer para igualar, no registro dos candidatos às eleições, a mesma exigência de vida pregressa limpa, como prevalece para os concursos públicos? Essa exigência depende de expressa disposição legal. O § 4º do art. 37 da Constituição Federal, assim como o inciso V do art. 15 também da Constituição Federal, vinculam a suspensão dos direitos políticos a uma conformação da legislação ordinária. A Justiça Eleitoral conta com um corpo funcional treinado para analisar prestações de contas? A Justiça Eleitoral tem servidores especializados para analisar as contas apresentadas, mas, caso necessário, poderá requisitar técnicos do TCU, dos estados, do Distrito Federal, bem como dos tribunais e conselhos de contas dos municípios, pelo tempo que for necessário, nos termos do art. 30, § 3º da Lei nº 9.504/ 97 e do art. 34 da Instrução nº 102 (Resolução nº 22.250). Se um candidato recebesse uma doação de 100 mil santinhos, por exemplo, e não soubesse quanto custaram, como lançaria isso em sua prestação de contas? Todo material impresso de propaganda deve conter o número do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) da empresa que o fabricou, segundo o § 1º do art. 20 da Instrução nº 102 (Resolução nº 22.250) e parágrafo único do art. 11 da Instrução nº 107 (Resolução nº 22.261). Assim, cabe ao candidato procurar a empresa para obter a nota fiscal e o valor da propaganda. Quais as medidas que existem à disposição da Justiça Eleitoral para coibir o uso do poder econômico e as fraudes eleitorais? O abuso do poder econômico pode ser apurado em investigação judicial, prevista no art. 22 da LC nº 64/90; em recurso contra a expedição de diploma, previsto no art. 262 do Código Eleitoral e, ainda, em ação de impugnação de mandato eletivo, prevista no § 10 do art. 14 da Constituição Federal. As duas últimas ações também se prestam à apuração de fraudes. O senhor não acha que houve exagero na proibição de certos tipos de comunicação publicitária como outdoor, por exemplo? A meu ver, as regras introduzidas pela Lei nº 11.300, como um todo, foram benéficas, pois vieram ao encontro dos anseios da população, que quer eleições limpas e legítimas e sem abuso do poder econômico. Se uma ou outra regra, com a prática, se mostrar desnecessária ou inconveniente, o Congresso haverá de rever sua posição e adequá-la, de modo


Foto: Sandra Fado

“Mesmo que o pedido não seja impugnado, o Juízo Eleitoral deverá indeferir o registro caso tenha conhecimento de fato comprovado que importe no não preenchimento dos requisitos previstos na Constituição Federal ou na legislação infraconstitucional.”

a atender à sua finalidade. Aliás, os partidos e candidatos, em todo o Brasil, apresentaram uma previsão de cerca de vinte bilhões de reais a serem gastos nas suas respectivas campanhas. Há quatro anos, nas últimas eleições iguais às deste ano, os gastos apresentados foram de cerca de oito bilhões de reais. Se considerarmos que as formas de propagandas hoje proibidas, que antes não eram (brindes, showmício, outdoor, etc.), representam, segundo alguns especialistas, cerca de quarenta por cento do custo de uma campanha eleitoral, vamos verificar que o aumento com a previsão de gastos foi de cerca de trezentos por cento. Daí se verifica que os partidos e candidatos estão conscientes da necessidade de se acabar de vez com o chamado caixa 2, dando mais transparência aos gastos de campanha. O senhor não acha que o foro privilegiado, garantido ao Presidente da República, Governadores de Estado e parlamentares federais e estaduais, não incentiva candidaturas de pessoas que só querem o mandato para usálo como biombo protetor de seus delitos? Se a Lei é igual para todos, deve haver esse tipo de

privilégio? A Justiça Eleitoral já conseguiu acabar com as fraudes na votação e na apuração. A vontade do eleitor é respeitada. Assim, no momento, o mais importante é criar meios de conscientizar e esclarecer o eleitorado sobre o valor do voto, ou seja, a importância da boa escolha, do cuidado na hora de optar por um candidato. Se conseguirmos que somente cidadãos honestos e bem intencionados componham o Congresso Nacional, a questão relativa ao foro privilegiado perderá relevância, pois este não será mais tido como “biombo protetor de delitos”. A Justiça Eleitoral, como um todo, está absolutamente consciente de seu papel e chama a atenção dos candidatos e partidos para que não se excedam na propaganda, nem cometam abuso do poder político ou do poder econômico, sobretudo no que diz respeito ao chamado caixa 2, pois combateremos todos esses ilícitos com muito rigor. 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


Eleições e Reforma Política Aurélio Wander Bastos

Foto: Arquivo

Professor Universitário Membro do Conselho Editorial

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ícero, notável tribuno romano, em clássica expressão, observou que “a historia é a mestra da vida, senhora dos tempos e luz da verdade”. Os revolucionários de 1930, quando tomaram o poder, empolgados pela liderança de Getúlio Vargas, imediatamente derrotado nas eleições presidenciais, pelo acordo oligárquico comandado pelo Presidente Washington Luís, que elegera Julio Prestes, não perderam seu tempo discutindo os mecanismos (de fato) que permitiram fraudar (coativamente) as eleições e desviar a representatividade do poder político, mais tarde, brilhantemente diagnosticado por Vitor Nunes Leal (in “Coronelismo, enxada e voto”), trataram de restaurar os fundamentos de legitimidade do processo eleitoral. O governo provisório, como ato revolucionário, editou o Código Eleitoral (de 1932), que, não apenas criou a Justiça Eleitoral, para subtrair o processo de apuração de votos das comissões de verificação eleitoral do(s) velho(s) partido(s) republicano(s), que fraudara a própria República (de 1889/ 1891), como também, vivida a experiência da reforma 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006

constitucional de 1926, concluiu que os (republicanos) oligarcas não emendariam (legalmente) a Constituição para afastá-los do próprio poder. Em nosso trabalho de doutorado (USP. 1983) mostramos que os revolucionários suspenderam o uni-partidarismo dos PRs estaduais, o voto distrital ou eleições por círculos, o voto majoritário fechado em chapa única para a presidência da República e dos Estados, alistamento, votação e apuração pelos grandes contribuintes do fisco rural, assim como, identificaram que as mulheres não tinham direito de voto e os empresários que negociassem com recursos do estado, bem como os operários analfabetos e, da mesma forma os imigrantes e militares subalternos estavam excluídos do processo eleitoral. O Código Eleitoral de 1950, que aperfeiçoou o Código Eleitoral de 1932, independentemente da criação da Justiça Eleitoral, uma grande conquista institucional, compõe-se de juízes requisitados, embora sempre de especial qualificação em Direito Eleitoral, mesmo com a redução da intermitência eleitoral devido à grande abertura democrática e dos direitos de cidadania e, inclusive a redução da temporalidade, dos mandatos. Por outro lado, estes dois códigos iniciais incentivaram o pluripartidarismo, cada vez mais aberto, assim como o voto proporcional para a eleição de deputados federais e estaduais e vereadores, assim como redefiniu o voto majoritário para a eleição de Presidente da República e Senadores e suspendeu as exclusões eleitorais trazendo para o contexto eleitoral o direito de voto e elegibilidade das mulheres e dos empresários, muito embora tenha mantido, inclusive com base na Constituição de 1946, a exclusão eleitoral dos analfabetos, que deixou de alcançar os operários e militares subalternos. Estes procedimentos eleitorais presidiram a composição do poder político no Brasil até o Código de 1965, que não alterou a estrutura de composição da justiça eleitoral, mantendo o seu caráter funcional intermitente, assim como, os legistas do militarismo passaram a utilizar dos poderes de exceção dos governantes para evitar, através de casuísmos, os efeitos eleitorais provocados pelo voto majoritário, pelo voto proporcional (de extensão estadual) e para modificar o quorum constitucional com efeitos eleitorais, mesmo em eleições indiretas, que introduziram, imediatamente após a Revolução de (31 de março/1º de abril) 1964, promovidas em colégios eleitorais. Estes tantos anos de vigência do modelo pluripartidário e majoritário proporcional legaram algumas lições que os militares procuraram “corrigir” com seus “casuísmos” de exceção, mas, que a democracia da Constituição de 1988 e a legislação eleitoral subseqüente não corrigiram, ao contrário, mantiveram, até mesmo porque predominou, no processo constituinte de 1987/88, uma verdadeira vontade restauradora ou, mais que isso, conservadora, porque os deputados constituintes foram eleitos na forma da Emenda


Constitucional n° 26/85 e do Código de 1965 que, não propriamente, se preocupava(m) com o voto proporcional e seus efeitos (ou majoritário, no caso dos Senadores), mas com os quoruns para emendas constitucionais (que se modificavam casuisticamente de acordo com seus diagnósticos ou estratégias eleitorais). Neste sentido, os deputados constituintes e a constituição de 1988 foi votada (mesmo nas suas dimensões de grandeza) por constituintes eleitos pelo voto proporcional em que o candidato, seja o pragmático, o oportunista ou o ideológico, buscam seu voto ao norte e ao sul, ao leste e ao oeste do estado, o que torna o procedimento eleitoral muito sensível e suscetível a qualquer apoio político e ou financeiro. A multiplicação partidária, por outro lado, amplia descontinuamente a competição, e a imprescindibilidade da comunicação televisiva para alcançar grandes distâncias. Estes dessintonizados mecanismos têm efeitos de longo alcance, porque, em primeiro lugar, dispersam a representatividade, em segundo lugar, eliminam as possibilidades do controle direto do eleitor e, em terceiro lugar, supervalorizam o voto do “painel” e nas comissões, porque tornam o parlamentar mais sensível a mecanismos que podem favorecer a sua (caríssima) reeleição (proporcional). Isto significa, conseqüentemente, como reconheceram os revolucionários de 1930/32, que o sistema eleitoral pode corromper o político mais desavisado, assim como o ideologicamente despreparado ou mesmo, pelo oportunismo do sucesso, na ausência de controles institucionais, possa colaborar para a maior durabilidade do sistema. Neste sentido, não há como desconhecer que o voto proporcional, como os círculos eleitorais no Império, e o voto distrital por círculos (ou currais na linguagem de Vitor Nunes) está corrompido, perdeu sua qualidade representativa; muito embora tenhamos dignos expressivos deputados, que, aliás, por razões éticas ou ideológicas são os mais qualificados para instaurar o processo de avaliação dos mecanismos eleitorais. Por outro lado, o sistema herdado de 1932, que em 1985, durante a convocação constituinte já estava fragilizado pelas tantas e sucessivas intervenções na Câmara dos Deputados. Muitas dessas intervenções eram para desviar o sentido próprio do quorum constitucional, que sustentara suas decisões. Da mesma forma, têm um vicio histórico congênito: o voto proporcional como o próprio nome indica, relativiza o voto majoritário das eleições presidenciais ou de senadores; ou, quando assim não ocorre, submete o projeto majoritário da presidência (ou do senado) aos pactos ou tendências da câmara. Teoricamente este fenômeno seria uma ocorrência democrática normal se o sistema político fosse presidencial-parlamentarista, mas não o sendo, pode provocar, na ausência de harmonia, muitas vezes de altíssimo custo político, (e os últimos tempos têm mostrado que o custo é, também, financeiro) efeitos sobre a própria estrutura de convivência dos poderes, fragilizando o Estado. Por outro lado, a prática do voto majoritário, na história brasileira, tem demonstrado que ele caminha sempre para a

vitória do candidato populista, cujo discurso alcança as grandes massas da população (não pelo seu caráter ideológico) mais condicionadas para a solução de seus problemas imediatos do que para expectativas reformistas ou propósitos abstratos. Neste sentido, assim ocorreu com a vitória de Dutra (1945) apoiado por Getúlio, como candidato a Presidente da República; do próprio Getúlio (1950); de Juscelino (1955), também no pacto Getulista, com João Goulart; de Jânio Quadros (1960), substituído por João Goulart (1962) no pacto populista-Getulista; com Fernando Collor (1990), reconhecido o interegno Fernando Henrique (1994/1998), que vencera (2 vezes); Lula, o candidato ideológico, embora populista; e, há três anos passados, Lula (2002), candidato populista que vencera o candidato ideológico, o próprio Lula. Em todos estes períodos, a eleição majoritária de efeitos populistas, não teve sustentação proporcional na

“Por outro lado, a prÁtica do voto majoritário, na histÓria brasileira, tem demonstrado que ele caminha sempre para a vitória do candidato populista, cujo discurso alcança as grandes massas da população, (não pelo seu caráter ideológico) (...)” Câmara dos Deputados fazendo da dessintonia, foco de crises governativas, mas, ao mesmo tempo, sugerindo grandes lições para o futuro histórico: precisamos sintonizar o processo eleitoral para o Presidente da República eleito na forma do voto majoritário com a eleição dos deputados na forma do voto distrital majoritário, que contemplará efetivas lideranças e, precisamos sintonizar o modelo presidencialista, com vontade do parlamento, também possível com o presidencialismo parlamentarista. O PSDB, o PMDB e o PT e outros, são partidos estatutariamente parlamentaristas. Resta evitar que a história condicione a solução pois basta que os partidos assumam um projeto de reforma política para recuperar a legitimidade dos poderes. Finalmente, o quadro da estabilidade democrática, sintonizado pelo tipo de voto e pelo sistema de governo, exige que se amplie os direitos de cidadania e a regularidade do processo eleitoral, uma Justiça Eleitoral estável, insuscetível às circunstâncias dos poderes e dos próprios Tribunais. 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


PRESIDENTE EM EXERCÍCIO DO TRE:

“A VONTADE SE IMPÕE PELO VOTO”.

“NÃO VEJO ÓBICE NENHUM QUE IMPEÇA A SOCIEDADE DE FAZER UMA CAMPANHA DENUNCIANDO POLÍTICOS CORRUPTOS”.

Foto: Arquivo

ENTREVISTA

Desembargador Roberto Wider

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“Vida pregressa é vida pregressa, não transita em julgado, não precisa de uma ação penal; vida pregressa é aquilo que nós conhecemos em relação aos antecedentes que se refiram à moralidade para o exercício do mandato público”. A afirmação é do desembargador Roberto Wider, presidente em exercício do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, em entrevista exclusiva à RJC, ao comentar o disposto no parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição Federal, que trata das inelegibilidades eleitorais.

Não seria o caso, ante o clamor público pelo restabelecimento da moralidade na política, que a Súmula nº 13 do TSE fosse revogada e substituída por outra que se enquadre à atual realidade? Como Juiz de Tribunal Eleitoral não posso e não devo me opor a uma Súmula do TSE. Nós temos relação hierárquica que nos obriga a cumprir e devemos cumprir as decisões do TSE. No entanto, considero que essa Súmula nº 13, que já tem dez anos de vigência (e desde então muitos fatos novos ocorreram na vida política do país), serviu para a realidade política daquele momento. Então, para que não se criasse uma situação de que, a meio do caminho, alguém fosse processado em função de uma denúncia e já tivesse cassado seu direito político, é que se editou a Súmula nº 13 do TSE, que estabelece que só depois da decisão condenatória ter transitado em julgado é que ocorrerão os efeitos para o fim de obstar registro ou diplomação. O tempo passou, as coisas mudaram, há mais conscientização. Nós precisamos e devemos dar o exemplo aos eleitores, e mostrar-lhes que eles têm uma força muito grande nas mãos e que não se apercebem disso. É preciso que eles sejam bem informados; só assim poderão mudar esse estado de coisas. Nós não estamos tratando aqui de crimes e de ações penais pura e simplesmente, mas de uma forma de comportamento questionável para o homem público. Um comportamento que traz indícios veementes de uma conduta indevida, traduzindo uma hipótese diferente. Eu disse, em outra oportunidade, que vida pregressa (que é o que trata o parágrafo nono do artigo quatorze da CF) não transita em julgado, não precisa de uma ação penal: vida pregressa é aquilo que nós conhecemos em relação aos antecedentes da pessoa.

É o que se fala sempre: com qualquer funcionário público – por exemplo, um juiz quando presta um concurso, é feito desabonador às vezes até uma negativação num cartório, é suficiente para impossibilitar a sua inscrição no concurso para juiz. Isso é verdade, isso acontece. É então, dentro desta linha, que os chamados neoconstitucionalistas dão realmente uma ênfase muito grande à interpretação conforme as diretrizes da Constituição. E aí me parece que hoje poder-se-ia avançar em relação à Súmula nº 13, ultrapassar aquele óbice do trânsito em julgado, para poder indeferir registros de candidaturas ou impedir a diplomação de candidatos eleitos. Nós não precisamos nem de processo; temos fatos públicos e notórios que são verificados, que estão sendo apurados nos tribunais de ética do Legislativo, concluindo que parlamentares cometeram ilicitudes e há provas em relação a isso. Então nós temos aí elementos suficientes para, sem o julgamento a priori, podermos aplicar esse parágrafo nono, e evitar naturalmente que esses candidatos sejam registrados.

O TSE diz, em sua campanha educativa, que os eleitores vão contratar 1.627 servidores públicos nas próximas eleições. Por que a Justiça Eleitoral não se vale do parágrafo quarto do artigo 37 da CF para impedir o registro de candidatos ímprobos? Na realidade, eu achei a campanha do TSE muito inteligente, muito bem feita. O que é que ela demonstra? Ela demonstra que nós outros, na verdade, somos servidores públicos. Então, no momento em que a Constituição afirma que todo poder emana do povo, delega aos deputados e, de uma maneira geral, aos dirigentes públicos, poderes para que 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


“NA REALIDADE, NO ENTANTO, O FORO PRIVILEGIADO, LAMENTAVELMENTE, NO SISTEMA BRASILEIRO, SE TRANSFORMOU NUMA FORMA DE ENTOCAR AQUELES QUE COMETEM DELITOS, ATOS ILÍCITOS E ATOS DE TODA SORTE DESVIANTES DA SUA FUNÇÃO.”

em seu nome façam leis e para que em seu nome julguem os outros cidadãos, e não para agir em benefício próprio. E em sendo servidores públicos, em verdade, poder-se-ia falar em aplicação desses princípios éticos, todos no sentido de que temos que guardar uma conduta conforme a delegação recebida. No entanto, essa indicação do parágrafo quarto do artigo trinta e sete da Constituição da República sofre aí uma interpretação consentânea com a letra da lei, quando diz “na forma da lei”, e a lei estabelece que toda condenação só produzirá os efeitos depois do trânsito em julgado. O processo de admissão de servidor público é diferente do legislativo. O processo legislativo tem normas próprias. E então, se nós seguirmos a linha de prevalência dos princípios maiores da Constituição, poderíamos entender que aquela norma está derrogada. Nós não podemos nos pautar tão somente na letra fria da lei. A Constituição sinaliza princípios a serem observados e assim devemos fazê-lo. Ela sinaliza quais são as normas gerais, ela dá o balizamento do comportamento social ético. Para os casos específicos, são as leis próprias que estabelecem. Nós temos uma interpretação conforme a letra da lei e temos uma interpretação conforme os princípios; o que os neoconstitucionalistas querem é fazer prevalecer os princípios. E eu não afasto a razão de quem pensa assim, porque eu acho que tem um sentido muito amplo, mas aí nós estamos avançando muito em relação ao momento presente. Nós temos destes instrumentos em número suficiente para, bastando verificar que aquele candidato a determinado cargo não ostenta antecedentes bons, não tem uma vida pregressa boa, adequada para aquilo a que ele se propõe, possuirmos condições, isso ao meu sentir, para criar, para não deixar que ele prossiga no seu caminho de candidato. “LAMENTAVELMENTE, TUDO QUE TRATA DE DINHEIRO PÚBLICO É UM ASSUNTO MUITO 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006

DELICADO, QUE TEM QUE SER LEVADO COM MUITO CUIDADO. MAS É PREFERÍVEL A PROIBIÇÃO DO QUE QUALQUER FORMA DE FINANCIAMENTO ÀS CAMPANHAS ELEITORAIS, SE NÃO PELO PRÓPRIO PODER PÚBLICO.”

Existe algum instrumento legal que proíba que entidades da sociedade civil organizada (OAB, ABI, Transparência Brasil, Instituto Ethos, etc.) possam lançar uma campanha esclarecedora, mostrando foto e nomes de parlamentares envolvidos em corrupção, e solicitando que o eleitor não vote neles? Nós temos que separar o que é campanha eleitoral, o que é campanha política, do que é o atuar da sociedade civil; da maneira como a pergunta está colocada, eu não vejo óbice. Eu entendo que eles tenham o poder e o dever de fazer isso. Nós não vamos criar um cerceamento à liberdade de expressão, que é de todo odioso. Aliás, a mídia já está fazendo isso. A gente abre um jornal, uma revista, e estão lá os nomes de todos os deputados envolvidos nesses escândalos. Só não existe um apelo específico para que não se vote neles, porque isso não faz parte da atividade jornalística, mas pode, dentro de um sentido amplo, ser feito pela sociedade civil organizada. Eu não vejo óbice a isso. Acho que tudo que leva a um bom esclarecimento da população, como um todo, é importante que seja feito, porque só assim a gente pode avançar.

A legislação eleitoral para as próximas eleições, sem dúvida, contempla alguns avanços, como o da preocupação com os gastos em campanha e normas rígidas de prestação de contas. Os números apresentados pelos partidos e candidatos, no entanto, cresceram absurdamente. A que o senhor atribui isso? É o início de um processo de moralização, justamente através do controle mais efetivo dos gastos. Mas isso tem um fator, de um lado positivo, e, de outro, negativo. O lado negativo é a demonstração de um gasto milionário que não se explica: não é razoável que, para que o candidato consiga ser um deputado estadual, um deputado federal, enfim, qualquer uma dessas classes de servidor público, necessite gastar tanto dinheiro. E, por outro lado, demonstra o seguinte: o medo que têm, e a forma como encaram o famoso caixa dois. A elevação das previsões de gastos é uma maneira de se defenderem contra a utilização do caixa dois. Ela foi inflacionada para poder garantir: se o candidato, por acaso, tiver muitas doações é porque está muito bem nas pesquisas, etc., vai poder dispor de um numerário efetivo. Nas eleições anteriores esses gastos eram escondidos,


eram camuflados; era apresentado à Justiça Eleitoral um valor mínimo e, por fora, as despesas eram realizadas e praticadas através do famoso caixa dois (se fosse só caixa dois, mas eu acho que é até mais do que isso). Então isso está caminhando para uma transparência. Se um candidato gasta oitenta milhões é um absurdo, concordo. Mas onde é que está o ingresso desse numerário? Agora o ingresso não pode mais ser em dinheiro vivo, tem que ser através de depósitos em contas identificadas, com CNPJ da empresa doadora; enfim, os métodos para essa transparência estão ocorrendo. Isso tem mais efeito positivo de transparência do que o absurdo dos valores declarados. Qual a sua opinião sobre a questão do financiamento público de campanhas eleitorais? A questão do financiamento público das campanhas eleitorais é tentativa que nós não fizemos até hoje. Não temos ainda a experiência que deveríamos ter. Lamentavelmente, tudo que trata de dinheiro público é um assunto muito delicado, que tem que ser levado com muito cuidado. Mas é preferível a proibição do que qualquer forma de financiamento às campanhas eleitorais, pelo próprio poder público. Neste ficam eliminadas as vantagens oferecidas para quem dá mais, quem oferece ajuda, etc., que obrigam o candidato a se vincular aos grupos de interesses de seus financiadores, àquelas doações. Isso acaba então se estabelece um valor dentro de um orçamento de cada partido, em função da sua representatividade, para fazer sua propaganda, e isso é feito por financiamento público. Espero que não se descubram aí formas de burlar isso, mas eu pessoalmente sou favorável a que se promova essa experiência inédita na vida pública brasileira. Sou plenamente favorável a isso.

Qual a sua opinião sobre a aplicação da cláusula de barreira no próximo pleito eleitoral? Essa questão da cláusula de barreira acho muito útil. Li recentemente que na Alemanha, por exemplo, existem quarenta partidos. A França também tem um número muito grande de partidos. Nos Estados Unidos, embora não apareçam, são vários partidos. É do direito da cidadania, da representação dos cidadãos, poder se reunir e resolver criar um partido. Não é esse o problema. O problema é a utilização desse sistema, que deveria ser uma atividade de cidadania, para criar partidos, mesmo que pequenos, com o intuito de fazer deles um balcão de ofertas e contra-ofertas, um balcão de negócios, para poder ter espaço na televisão, para poder ter algum dinheiro de fundo partidário, para poder fazer uma troca de partidos. Eu, por exemplo, dentro dessa linha, sou inteiramente contra coligação nas eleições proporcionais; isso é um malefício

“LAMENTAVELMENTE, TUDO QUE TRATA DE DINHEIRO PÚBLICO É UM ASSUNTO MUITO DELICADO, QUE TEM QUE SER LEVADO COM MUITO CUIDADO. MAS É PREFERÍVEL A PROIBIÇÃO DO QUE QUALQUER FORMA DE FINANCIAMENTO ÀS CAMPANHAS ELEITORAIS, SE NÃO PELO PRÓPRIO PODER PÚBLICO.” que ocorre muito. Faz-se uma coligação: o eleitor está votando em um candidato, pensando que o está ajudando a se eleger. No entanto, o voto vai repercutir e eleger um outro qualquer. Agora, vamos imaginar um pequeno partido coligado com outros partidos. Como é que seria, em termos, na realidade, a legitimidade da representação desses eleitos? Eu não vejo qual. Então, sobre esse aspecto, não somente a atuação legiferante, mas a atuação do poder judicante da Justiça Eleitoral, é que tem que inibir isso. O princípio que deve prevalecer é o da fidelidade partidária: com a cobrança efetiva da fidelidade partidária, esses aspectos começariam a desaparecer. Nos países mais desenvolvidos nessa área, por exemplo, nos Estados Unidos, é inadmissível a idéia de que alguém seja eleito pelo partido A e transite para o partido B, C ou D durante aquele mandato. Ele está traindo exatamente a vontade daqueles que deram seu voto e o elegeram para o cargo. Assim, eu acho que a fidelidade partidária seria um instrumento para evitar os malefícios decorrentes desses chamados partidos de aluguel. O foro privilegiado não é um instrumento de incentivos para que os que estejam envolvidos em corrupção venham a se candidatar e possam “vestir essa armadura”? Tenho para mim que, historicamente, ele foi criado visando a dar mais garantias e mais independência para aqueles que foram designados para servir ao povo. Representantes do povo devem ter imunidade para em nome do povo falarem, e não serem de qualquer forma perseguidos ou limitados. A idéia mais ampla é essa: a garantia de nossos representantes de defender interesses contrários aos grandes empresários ou ao partido dominante, ou de defender o direito das minorias, e de poder fazê-lo sem que nada possa prejudicá-los ao agir assim. Na realidade, no entanto, o foro privilegiado, 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


lamentavelmente, no sistema brasileiro, se transformou numa forma de entocar aqueles que cometem delitos, atos ilícitos e atos de toda sorte desviantes da sua função, criando verdadeiras armaduras para eles poderem ficar escondidinhos e não serem atingidos por aquilo que fazem. É um absurdo, vimos aqui um quadro público e notório: deputados que foram indiciados na comissão de ética do Congresso e rapidamente renunciaram a seus mandatos, para poderem voltar justamente, para garantirem privilégios e não serem processados pela Justiça comum. Nós tivemos casos de membros do Poder Executivo que saíram e buscaram, através dessa norma maléfica, uma forma de se protegerem. E não é esse o objetivo do instituto da imunidade; não foi para isso que ele foi criado. No final do governo Fernando Henrique, a Lei 10.628, se não me falha o número, levou todas as autoridades a terem foro privilegiado, mesmo depois de terem deixado o cargo. Foi uma forma de fechar a porta para a atuação do Ministério Público, em primeiro lugar, e mais adiante também do Poder Judiciário, em relação àquilo que fosse apurado de negativo. “NA REALIDADE, NO ENTANTO, O FORO PRIVILEGIADO, LAMENTAVELMENTE, NO SISTEMA BRASILEIRO, SE TRANSFORMOU NUMA FORMA DE ENTOCAR AQUELES QUE COMETEM DELITOS, ATOS ILÍCITOS E ATOS DE TODA SORTE DESVIANTES DA SUA FUNÇÃO.” Recentemente, o Supremo Tribunal Federal derrubou essa lei e declarou-a inconstitucional, felizmente. Mas não há como defender esse instituto do foro privilegiado, da imunidade parlamentar, se não for para garantir a esses homens públicos o direito de utilizá-lo em função do bem público ou de minorias. Para esse efeito a imunidade é válida; para os demais, absolutamente não o é. A reeleição também é um ponto que não é uma novidade só nossa. Nos Estados Unidos ela já existe há muitos anos, mas aqui demonstrou que tem mais aspectos negativos do que positivos, porque o governante passa o último ano de seu governo atuando somente com a preocupação de ser reeleito. Em função da reeleição, faz uma série de acordos espúrios e abre mão de princípios (o que não poderia fazer de forma nenhuma) para governar; enfim, todos os males se criam. Há uma confusão muito grande entre a pessoa do governante e a pessoa do candidato, e isso é explorado sem nenhum critério, sem nenhum tipo de preocupação. É dramático.

Como o senhor vê a descrença dos jovens na política? Muitos jovens ainda procuram os cartórios para retirar o título, a fim de fazer parte do processo eleitoral. Mas muitos já se encontram desiludidos e mostram-se alheios ao processo eleitoral. Muitos até buscam na anulação do voto a sua opção de participação. 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006

O que mais impera nessa frustração é a descrença em mudanças possíveis no quadro do cenário político, permeado atualmente de escândalos. Queixam-se esses jovens de que educação, segurança e saúde são áreas que encontram-se deficitárias, por abandono dos dirigentes (políticos). A atuação dos jovens no processo eleitoral definirá certamente o futuro político do país. Esperamos que os que vão tirar o título, para participar com o voto válido, contaminem com seu otimismo e esperança aqueles que se afastaram do destino o País, por culpa de condutas errôneas de políticos e partidos. Não podem eles (não podemos nós) esquecer que é através da participação efetiva dos jovens hoje que poderemos coibir amanhã o espaço para a corrupção. Cabe a nós trazê-los para essa luta agora.

O senhor pretende lançar no Estado do Rio de Janeiro a campanha pelo “voto consciente”. Em que se resume essa campanha? Resume-se na conscientização do povo sobre o valor e o poder do voto por escolha. O povo, desgastado com a política atual, está induzido a reagir e agredir pela omissão do voto, seja ele nulo ou em branco; seu comportamento seria não o da ação da escolha, mas o da ação da omissão. A campanha seria utilizada como incentivadora do voto consciente como a real forma de protesto e decisão. O programa da campanha visa a uma tentativa rápida e eficaz de fazer entender à sociedade que a omissão não atinge nenhuma finalidade, que a grande arma de protesto é a escolha: a vontade só se impõe pelo voto consciente. Existe uma crença de que o voto nulo anularia o candidato. Não é verdade. Tudo o que o voto nulo anula é a vontade do próprio eleitor; anula ele mesmo perante o processo eleitoral. O mesmo acontece com o voto em branco: tudo o que faz é que o eleitor passe em branco pelo seu direito de mudar o país com seu voto. Os votos nulos e em branco não são computados. Logo, o eleitor tem o trabalho de ir ao local, entrar na cabina, para praticar uma ação que se resume em um nada, que nada faz ou modifica. É como se o eleitor não tivesse respeito pelo próprio tempo, pelo seu próprio poder de ação. É trabalho em vão. Não existe protesto sem ação; não existe protesto sem escolha. Se o eleitor quer mudar, tem que agir; se quer protestar, tem que votar. O uso do número de um candidato, escolhido com critério, é a única saída, é a única opção para a mudança drástica que se quer realizar no campo político. Fora isso, é o nada.


Camisetas: nunca mais? Fernando Neves da Silva

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Advogado

A

recente Lei 11.300 introduziu na Lei das Eleições, que se esperava fosse permanente ou que ao menos suas alterações respeitassem o prazo mínimo de um ano estabelecido pelo artigo 16 da Constituição da República, a vedação de “confecção, utilização, distribuição por comitê, candidato, ou com sua autorização, de camisetas, chaveiros, bonés, canetas, brindes, cestas básicas ou quaisquer outros bens ou materiais que possam proporcionar vantagem ao eleitor”. A condicionante “que possam proporcionar vantagem ao eleitor” mostra que a intenção da novidade não foi impedir a propaganda eleitoral, mas sim reforçar a justa proibição do candidato dar ou oferecer alguma vantagem ao eleitor, em troca de seu voto, atitude inaceitável, exemplarmente sancionada pelo artigo 41-A da Lei 9.504. Embora os tribunais eleitorais ainda não tenham fixado a exata interpretação do preceito, penso que ele não pode impedir, por exemplo, que partido político ou candidato possa uniformizar as pessoas que trabalham para sua campanha, no comitê ou nas ruas, com camisetas ou bonés que contenham seu nome, fotografia e número. Também não é possível impedir que algum eleitor, por vontade sua, faça propaganda do candidato de sua preferência, vestindo uma camiseta ou usando um chapéu com nome e número daquele. Aliás, além do direito à livre expressão do pensamento, a própria lei eleitoral assegura a qualquer pessoa efetuar gastos a favor de candidatos, até determinado limite (pouco mais de mil reais). Na verdade, circular com camiseta fazendo propaganda de candidato ou ter em sua mesa de trabalho um calendário

com nome de algum candidato, são situações que não podem ser caracterizadas como algo que traga vantagem ao eleitor. Ao contrário, tais formas de propaganda trazem vantagem ao candidato, que tem seu nome veiculado em diversos locais, sendo visto por vários eleitores. São salutares as tentativas de diminuir os custos das campanhas eleitorais, mas elas não podem chegar ao ponto de impedir que os partidos e os candidatos se tornem conhecidos dos eleitores, que, por outro lado, têm o manifesto direito de ser informados sobre quem são os candidatos que disputam as eleições, notadamente aqueles que pela primeira vez se apresentam à sociedade. Tal proibição, se existisse, não seria razoável e afrontaria a Constituição da República, o que impediria sua aplicação. Penso que as ponderações acima estão de acordo com a distinção existente na recente Resolução 21.291 do Egrégio Tribunal Superior Eleitoral, que em seu artigo 39, inciso III, esclarece ser crime a divulgação, no dia da eleição, de qualquer espécie de propaganda de partidos políticos ou de seus candidatos, mediante publicações, cartazes, camisetas,

“(...) não é possível impedir que algum eleitor, por vontade sua, faça propaganda do candidato de sua preferência, vestindo uma camiseta ou usando um chapéu com nome e número daquele”. bonés, broches ou dísticos em vestuários, mas logo à frente, em seu artigo 67, registra que não caracteriza aquele crime a manifestação individual e silenciosa da preferência do cidadão por partido político, coligação ou candidato, incluída a que se contenha no próprio vestuário ou que se expresse no porte de bandeira ou flâmula ou pela utilização de adesivos em veículos ou objeto de que tenha posse. Em outras palavras, o Tribunal Superior Eleitoral assegurou a manifestação individual, limitando a restrição à atuação dos candidatos e dos partidos políticos, que não podem fazer, colocar ou distribuir propaganda eleitoral no dia das eleições. Desse modo, usar camiseta com propaganda eleitoral, na campanha ou no dia da votação, pode não caracterizar, necessariamente, ofensa às regras eleitorais. 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17


Constitucionalidade, atualidade, representatividade, governabilidade Bernardo Cabral Foi relator da Constituição de 1988, Ministro da Justiça e Senador. Membro do Conselho Editorial

­P “Com a Constituição de 1988, a Federação ficou restabelecida, inclusive com a possibilidade de o Estado membro legislar concorrentemente sobre uma série de matérias e, o que é digno de destaque, dispor de recursos para pôr em prática sua administração.”

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elo lado político, essa decantada ingovernabilidade é um argumento que não se põe de pé. Por algumas razões inarredáveis. A pri­ meira delas é que o presidente da República, à época da promulgação da Cons­tituição, era o hoje senador José Sarney, que concluiu o seu mandato em 15 de março de 1990, data em que assumiu o novo presidente eleito, Fernando Collor. Este, afastado pelo “impea­chment” teve o restante do seu mandato cumprido pelo vice, Itamar Franco. A se­guir, os oito anos de mandato de Fernando Henrique Cardoso e, agora, há mais de três anos, o do presidente Lula. Ora, se o País fosse ingo­vernável - só para citar o período Collor - o vice Itamar Franco não teria assumido, como aconteceu com o vice Pedro Aleixo. Vale dizer: deve-se à Constituição de 1988 a vivência de um período democrático, sem paralelos, no Brasil. Creditar à Constituição todos os equívocos - como se faz na atualidade - é esquecer o instante histórico em que ela foi elaborada, quando participaram da sua feitura políticos cassados, guerrilheiros, banidos, re­ vanchistas etc., que, sem dúvida, contribuíram para o detalhismo condenável, como se vê nas relações de trabalho e o papel do Estado na economia. Sem contar, à época, com a chamada dico­tomia entre os regimes capitalista e comunista. Por outro lado - e essa é a validade que se tenta esconder - apesar de ser o Brasil uma Federação, as principais decisões sempre foram tomadas pelo governo central. Com a Constituição de 1988, a Federação ficou restabelecida, inclusive com a possibilidade de o Estado membro legislar concorren­temente sobre uma série de matérias e, o que é digno de destaque, dispor de recursos para pôr em prática sua administração. Foi com a Constituição de 1988 que se deu ênfase à descentralização adminis­trativa, comprovando que o melhor governo é o que governa mais perto do ci­dadão, o qual poderá recla­mar os seus direitos direta­mente à Prefeitura ou ao governo do Estado, com a facilidade de que jamais dispôs em Brasília.


Miniconstituinte ou novo pacto constituinte Já surgiram numerosas declarações sobre a convocação de uma Constituinte restrita ou miniconstituinte, às quais - com o respeito que os seus defensores merecem - é necessário, senão indispensável, fazer algumas oposições. ­ Qual a semelhança entre o Brasil de hoje e o de 1964? Vamos retroagir um pou­co no tempo. No primeiro semestre de 1964, sob os impulsos de um movimento popular, fruto ou não de equívocos, as Forças Armadas, com o apoio, manipulado ou não, de significativa parcela da classe política (parlamentares, governadores e prefeitos), destituíram o presidente da República e operaram lesões na ordem político-institu­ cional vigente através dos chamados atos institucionais. Depois de um período de convivência da Constituição de 1946 com os Atos Institucionais, o Congresso Nacional foi chamado a institucionalizar o quadro jurídico resultante, através da elaboração da nova Constituição, que foi promulgada em 24 de janeiro de 1967 e entrou em vigor em 15 de março do mesmo ano. Durou pouco e, no curto espaço de tempo de sua vigência, ouviram-se as pri­meiras vozes em favor da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, idéia que, informalmente, foi defendida, desde abril de 1964, pelo saudoso Senador pela Bahia, Aluísio de Carvalho Filho. A idéia não prosperou, uma vez que em 13 de dezembro de 1968 o estamento militar impôs ao presidente da República a edição de Ato Institucional n° 5, promovendo a completa ruptura político-­institucional. Eis aí o motivo forte de então para a convocação da Assembléia Nacional Cons­ tituinte: a completa ruptura político-institucional. E dela decorreram todas as ações políticas que tiveram curso no País. Como pois, no momento atual - apesar dos problemas econômicos - quem pode negar a existência de um tempo excepcional de liber­dade e da plenitude do Estado de Direito?

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Essas críticas, portanto, não procedem em relação à Constituição Federal. E é por isso que me filio à corrente daqueles que, sensatamente, defendem uma mudança radical no Pacto Federativo e não na Carta Magna de 1988.

É o que me leva a adotar opinião contrária ao cha­mado novo pacto cons­tituinte. Ademais, a doutrina con­siste em ver a Constituição como lei fundamental, onde se resguardam, acima e à margem das lutas de grupos e tendências, alguns poucos princípios básicos, que uma vez incorporados ao seu texto tornam-se indiscutíveis e insuscetíveis de novo acordo e nova decisão. Como não é todos os dias que uma comunidade política adota um novo sistema cons­ titucional ou assume um novo destino, cumpre extrair da Constituição tudo o que permite a sua virtualidade, ao invés de, a todo instante, modificar-lhe o texto, a reboque de interesses meramente circunstanciais.

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A minirreforma eleitoral Ricardo Loretti Advogado

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Q

ual é a grande novidade das eleições de 2006? Seguramente, a legislação em matéria de propaganda, financiamento e prestação de contas em campanhas eleitorais. Nessa disputa pelo sufrágio popular, as regras do jogo mudaram e, apesar de certos desvios legislativos (talvez em razão da pressa de se aprovar a nova Lei), a mudança afigura-se, em exame preliminar, benéfica para a campanha eleitoral e, por conseguinte, para a consolidação da democracia. O Congresso Nacional — foco dos recentes escândalos que assolaram o país, sobretudo o chamado “mensalão” — ofereceu resposta aos anseios populares mediante a aprovação da Lei nº 11.300, de 10 de maio de 2006, em vigor desde a data de sua publicação. A referida norma, em razão das significativas alterações introduzidas na Lei das Eleições (Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997), recebeu a alcunha de “minirreforma” eleitoral. Essa mudança legislativa, ao que parece, contribuirá para tornar as campanhas mais transparentes e responsáveis. O Poder Judiciário, por sua vez, agiu com celeridade. O Tribunal Superior Eleitoral, eficientemente, aprovou as resoluções e instruções necessárias à regulamentação da nova Lei. Sublinhe-se, aqui, a Resolução nº 22.205/06, que definiu quais são os dispositivos da Lei nº 11.300/06 aplicáveis às eleições de 2006. Evidentemente, em função da novidade legislativa, existe certa dose de insegurança jurídica, até porque ainda não se conhece a interpretação adotada pelos Tribunais. Eis, a título ilustrativo e de modo despretensioso, algumas das alterações estabelecidas pela “minirreforma” eleitoral: a) Destaque-se, de início, que, em virtude da nova redação do artigo 21 da Lei nº 9.504/97, o candidato responde solidariamente com o tesoureiro pela veracidade das informações financeiras e contábeis de sua campanha (nova redação determinada pela Lei nº 11.300/06). b) Outra inovação relevante diz respeito ao maior rigor no controle dos gastos eleitorais. Veja-se que, agora, se os gastos eleitorais não forem pagos com recursos financeiros provenientes da conta bancária especificamente destinada à campanha eleitoral, isso “implicará a desaprovação da prestação de contas do partido ou candidato…”. E, se for

comprovado o abuso de poder econômico, a sanção cominada é severa, pois “…será cancelado o registro da candidatura ou cassado o diploma, se já houver sido outorgado” (§ 3o , art. 22, Lei nº 9.504/97, incluído pela Lei nº 11.300/06). c) Na “minirreforma”, há nítida preocupação com a identificação da origem dos recursos usados nas campanhas eleitorais. Agora, as doações dos recursos financeiros têm de se destinar àquela conta da campanha eleitoral por meio de: “cheques cruzados e nominais ou transferência eletrônica de depósitos; e depósitos em espécie devidamente identificados até o limite fixado no inciso I do § 1º deste artigo.” (incisos I e II, incluídos no § 4º do art. 23 da Lei nº 9.504/97 pela Lei nº 11.300/06). d) O rol dos possíveis doadores das campanhas eleitorais também foi limitado. Com a nova lei, partidos ou candidatos não podem receber doações provenientes de entidades beneficentes e religiosas; entidades esportivas e organizações não-governamentais que recebam recursos públicos; e organizações da sociedade civil de interesse


público (cf. incisos VIII, IX, X, XI, art. 24, Lei nº 9.504/97, acrescentados pela Lei nº 11.300/06). Busca-se, desse modo, evitar a interferência das entidades religiosas nas eleições, bem como daquelas entidades beneficiadas com o recebimento de recursos públicos. e) A “minirreforma” incluiu entre os gastos sujeitos a registro e que se submetem aos limites impostos pela Lei das Eleições: as despesas com transporte ou deslocamento de candidato e do pessoal a serviço das candidaturas, gastos decorrentes da realização de comícios ou eventos destinados à promoção dos candidatos e as despesas com produção de jingles, vinhetas e slogans com fins de propaganda eleitoral (incisos IV, IX, XVII incluídos no art. 26 da Lei nº 9.504/97 pela Lei nº 11.300/06). f ) Outra inovação importante se refere à obrigação imposta aos partidos, coligações e candidatos de divulgarem suas prestações de contas, mediante a elaboração de relatório discriminado dos recursos financeiros e dos gastos da campanha, em site criado pela Justiça Eleitoral com esse

seja apurada, por meio de investigação judicial, a ocorrência das aludidas condutas. Essa apuração deve obedecer ao procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64 /90 (§ 1º, art. 30-A, Lei nº 9.504/97). Veja-se, ainda, que a norma pretende coibir as irregularidades de modo severo, pois, se forem comprovados a captação ou os gastos ilícitos de recursos, “será negado o diploma ao candidato, ou cassado, se já houver sido outorgado” (§ 2º, art. 30-A, Lei nº 9.504/ 97). h) Em relação à propaganda eleitoral, o legislador — com o intuito de reduzir a influência do poder econômico e de restringir a poluição visual instaurada nos meses que antecedem ao pleito — proibiu, em bens públicos ou de uso comum, a propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta, fixação de placas, estandartes, faixas e assemelhados. Caso seja descumprida essa proibição relativa aos bens públicos, a Justiça Eleitoral deve notificar o responsável para que o bem em questão seja restaurado. Notese que o descumprimento desta obrigação não dá ensejo à

“Compete, agora, ao Poder Judiciário a árdua tarefa de encontrar a justa medida na aplicação das novas regras, a fim de que seja assegurada a livre manifestação popular nos pleitos eleitorais.”

propósito. Nessa divulgação parcial das receitas e despesas, pela internet, os candidatos e partidos não precisam mencionar os doadores e as correlatas doações. Entretanto, na prestação de contas final, encaminhada à Justiça Eleitoral depois das eleições, exige-se a indicação dos doadores, assim como dos respectivos valores doados. Mencione-se, por fim, que a prestação de contas parcial, via internet, ocorrerá em duas datas específicas: 6 de agosto e 6 de setembro (cf. § 4º, art. 28, Lei nº 9.504/97, incluído pela Lei nº 11.300/06). Com efeito, a divulgação parcial na internet e a indicação dos doadores com suas doações na prestação final conferem mais transparência às campanhas. g) Novidade legislativa seríssima, trazida pela “minirreforma”, se refere à introdução do art. 30-A na Lei das Eleições. O referido dispositivo estabelece como ilícito eleitoral as “condutas em desacordo com as normas desta Lei (Lei nº 9.504/97), relativas à arrecadação e gastos de recursos” e confere legitimidade ativa a qualquer partido ou coligação para representar perante a Justiça Eleitoral, a fim de que

imediata aplicação de multa no valor de R$ 2.000,00 a R$ 8.000,00 ao responsável. A multa só incide se não ocorrer a restauração dentro do prazo determinado pelo Judiciário. i) De acordo com a “minirreforma”, no dia da eleição, constitui crime eleitoral a propaganda de boca de urna ou a arregimentação do eleitor por cabos eleitorais (cf. inciso II, § 5º, art. 39, Lei nº 9.504/97, com nova redação determinada pela Lei nº 11.300/06). Essa proibição da nova lei visa a garantir a ordem pública no dia da eleição e o livre acesso dos eleitores aos locais de votação. j) Outra inclusão no rol dos crimes eleitorais foi a divulgação, no dia da eleição, de qualquer espécie de propaganda de partidos políticos ou de seus candidatos, mediante publicações, cartazes, camisas, bonés, broches ou dísticos em vestuário (cf. art. 39, § 5º, III, Lei nº 9.504/97, inciso acrescentado pela Lei nº 11.300/06). Frise-se, contudo, que o Tribunal Superior Eleitoral, no art. 67 da Instrução Normativa nº 107/06, expressou entendimento no sentido de que “não caracteriza o tipo 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


previsto no art. 39, § 5º, II e III, da Lei nº 9.504/97 a manifestação individual e silenciosa da preferência do cidadão por partido político, coligação ou candidato, incluída a que se contenha no próprio vestuário ou que se expresse no porte de bandeira ou de flâmula ou pela utilização de adesivo sem veículos ou objetos de que tenha posse (Res.-TSE nº14708, de 22.09.94; Lei nº 9.504/97, art.39, § 5º, II e III, respectivamente, com nova redação e acrescentado pela Lei nº 11.300/06)”1. l) A “minirreforma” eleitoral acrescentou ainda o § 60 ao art. 39 da Lei das Eleições, estabelecendo uma das principais inovações em matéria de propaganda eleitoral, segundo a qual fica vedada a tradicional prática de distribuição de brindes aos eleitores pelos partidos políticos e candidatos. Esse novo dispositivo proíbe, durante a campanha, a confecção, utilização, distribuição por comitê, candidato, ou com a sua autorização, de camisetas, chaveiros, bonés, canetas, brindes, cestas básicas ou quaisquer outros bens ou materiais que possam proporcionar vantagem ao eleitor. m) Os denominados showmícios foram proibidos pela “minirreforma”, assim como qualquer evento assemelhado para promoção de candidatos, com apresentação, remunerada ou não, de artistas (§ 7º, art. 37, da Lei nº 9.504/97). Embora esse novo dispositivo seja aplicável às eleições de 2006, por força da Resolução nº 22.205/06, houve voz dissonante no Tribunal Superior Eleitoral, como a do eminente Ministro Grossi que afirmou: “Assim estamos tornando as eleições excessivamente cinzentas. Não é nesta via que aparecem as irregularidades”2. Por outro lado, pode-se dizer que, com a expansão dos showmícios de enormes proporções, cada vez mais a questão política ficava à margem. O poder econômico favorecia os candidatos mais abastados, que contratavam artistas para entreter o povo. Talvez, essa proibição favoreça o restabelecimento de um legítimo palanque eleitoral, onde o candidato tente angariar votos com propostas e idéias, e não através dos artistas que contrata. n) A propaganda eleitoral em outdoors também foi vedada. O descumprimento deste preceito legal impõe à empresa responsável pela propaganda, assim como aos partidos, coligações e candidatos, a imediata retirada da propaganda irregular e o pagamento de multa no valor de 5.000 a 15.000 Ufirs (§ 8º, art. 39, Lei nº 9.504/97, acrescentado pela Lei nº 11.300/06). Importante destacar que o Tribunal Superior Eleitoral, ao responder recente consulta, entendeu que podem ser usadas placas destinadas à campanha eleitoral com, no máximo, 4 metros quadrados. o) A nova redação do § 1º do art. 45 proíbe as emissoras de rádio e televisão, a partir do resultado da convenção, de transmitir programa apresentado ou comentado por candidato. Antes dessa modificação, o candidato (apresentador ou entrevistador), mesmo depois de ter sido indicado para a disputa de um mandato eletivo, mantinha-se com grande exposição na mídia, durante um período privilegiado, ou seja, até 1º de agosto do ano das eleições. Dessa forma, a igualdade 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006

de oportunidade entre os candidatos era afetada. A redução no prazo é bem-vinda, pois acaba com uma vantagem desleal na disputa pelo sufrágio popular. p) A fim de coibir a implementação, pela Administração Pública, de medidas assistencialistas com finalidades eleitoreiras, foi incluída, no rol das condutas vedadas aos agentes públicos, a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios. Essas práticas somente estão autorizadas, em período eleitoral, em caso de calamidade pública, estado de emergência ou quando os programas sociais já tiverem sido autorizados por lei, com execução orçamentária no exercício anterior. Nessas hipóteses, o Ministério Público poderá promover o acompanhamento da execução financeira e administrativa da distribuição gratuita dos benefícios concedidos pelo Poder Público. Por fim, cumpre mencionar a existência de entendimentos no sentido de que a aplicação da Lei nº 11.300/06 ao pleito deste ano seria inconstitucional. Argumenta-se que a nova lei versa, na realidade, sobre o processo eleitoral. Logo, uma norma promulgada no ano das eleições, que dispõe sobre o processo eleitoral, não poderia ter eficácia imediata em virtude da proibição contida no art. 16 da Constituição Federal, com a redação dada pela EC nº 04/933. Com base nesse fundamento, foram ajuizadas ações diretas de inconstitucionalidade (por exemplo, a ADIn 3741) ainda não julgadas pelo STF, até 31.7.06, quando este texto foi enviado para publicação. Embora a discussão referente à constitucionalidade da “minirreforma”, para a disputa de outubro próximo, seja riquíssima, aqui não se pretende enveredar por tal seara. Faz-se apenas o registro. Assim, buscou-se discorrer, em linhas gerais, sobre alguns dispositivos da “minirreforma” considerados aplicáveis (até a presente data, 31.07.06) às eleições de 2006, nos termos regulamentados pelo Tribunal Superior Eleitoral. Como se disse, essa norma veio responder a um anseio popular, com vistas a moralizar o sistema eleitoral brasileiro, e, ao que tudo indica, de fato, contribuirá para tornar mais transparente o financiamento das campanhas, facilitar a fiscalização das receitas e despesas dos candidatos e coibir o abuso de poder político e econômico, favorecendo a igualdade de condições na disputa. Desse modo, a “minirreforma” é bemvinda. Compete, agora, ao Poder Judiciário a árdua tarefa de encontrar a justa medida na aplicação das novas regras, a fim de que seja assegurada a livre manifestação popular nos pleitos eleitorais.

notAS 1 RIBEIRO, Renato Ventura. Lei Eleitoral Comentada, Editora Quartier Latin do Brasil, São Paulo, p. 284, 2006. 2 “Showmício e brindes estão proibidos nas eleições 2006”. Disponível em: <http:// conjur.estadao.com.br/static/text/44681,1>, acesso em 22.07.06. 3 COSTA, Adriano Soares da. “Comentários à Lei Eleitoral nº 11.300/2006”. Disponível em: <http://www.adrianosoares.com/default.asp?areaid=6&id_ conteudo=112>, acesso em 21.07.06.


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A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO ELEITORAL Eliseu Fernandes de Souza Desembargador do TJ/RO

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or desinformação da grande massa dos eleitores, seja por razões afetas à educação, seja por falta de acesso à informação imparcial acerca dos candidatos, acaba-se votando por indução de propagandas falsas e enganosas acerca da pessoa de determinado candidato, que não tem, ou não faz questão de ter, a mínima noção do compromisso que o cargo impõe, sem embargo da repercussão da questão social, circunstância determinante do comprometimento do sufrágio popular, e da legitimidade do voto. O acesso a cargo eletivo no processo eleitoral deve nortear-se pela presunção de probidade do candidato, cuja reputação revela-se incompatível com a moral administrativa, se possui condenação, ainda que sem trânsito em julgado, pois a presunção de inocência não pode servir de balizamento à candidatura, por violar princípios constitucionais e o pacto decorrente do contrato social. A primeira Constituição Brasileira, promulgada por D. Pedro I, em março de 1824, estabeleceu as primeiras regras de ordem eleitoral, excluindo as mulheres e os pobres do direito de votar e ser votado, condicionando ainda possuir o eleitor determinada renda líquida anual. Para o candidato a cargo de deputado, exigia‑se que possuísse, comprovadamente, uma renda mínima anual na ordem de quatrocentos mil réis e, para o cargo de senador, oitocentos mil réis. Veio então a proclamação da República. No entanto, a situação perdurou até 1930, sem que se houvesse qualquer compromisso com a cidadania, considerada, como dizia Seabra Fagundes, mero direito de votar e eleger o sócio, ou, às vezes, de ser eleito. 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006

Vale dizer, durante a Primeira República, até o final da década de trinta, havia apenas simulação de eleições; isto é, no dia marcado para o pleito, fazia‑se de conta que se realizavam eleições, lavrava‑se uma ata, geralmente fazendo constar como eleitos os candidatos indicados pelo partido do governo. O anseio pela instituição de regras mais claras para as eleições, até hoje deficientes, teve na revolução de 1930 o marco inicial com alguma legislação eleitoral rumo ao processo de democratização do país. A Constituição de 1937, fruto do golpe de Estado, de inspiração fascista, não cogitou, como se sabe, da justiça eleitoral entre os órgãos do Poder Judiciário. Foi na constituição de 1946 que se estabeleceu a competência da União para legislar sobre direito eleitoral, incluiu os juízes e tribunais eleitorais entre os órgãos do Poder Judiciário, e se criaram algumas regras sobre eleições, eleitores, candidaturas e sobre a inelegibilidade. Em 1964, ocorreu grande retrocesso com o golpe militar, e somente com a Constituição de 1988 é que se restabeleceu, ainda com deficiências, a democratização do processo eleitoral


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e vem, a passos muito lentos, se tentando aprimorá‑lo, parte pela legislação, parte por regulamentação da justiça eleitoral por força do poder normatizador que ostenta. Contudo, com exceção do sistema de votação eletrônica, tudo continua ainda imperfeito e vulnerável às infrações, o que permite aos incautos e transgressores encontrar atalhos e trapaças que levam à fraude e ao comprometimento da normalidade do processo eleitoral. Com efeito, retira-se a legitimidade da eleição, sempre perpetrada por meio de filigrana e outras circunstâncias, facilitadas pela omissão e deficiência das instituições estatais, malgrado o acúmulo de processos nos escaninhos da burocracia judiciária, cuja conseqüência é quase sempre a impunidade. Isso porque a deficiência a que me referi, da investigação dos fatos, ou pela suspensão de atos ou decisões, por meio de contramandados de fundamentos meramente acadêmicos, sem a mínima consonância com o fato social e com o senso de justiça e postulados constitucionais, somada à prescrição demarcada por prazos exíguos, contando ainda com a já referida lentidão da justiça, acaba permitindo, estoicamente,

os fins justificarem os meios, sejam quais forem, no embate político. Em decorrência, não há de se concretizar a representatividade do mandato, quando exercido, quase sempre com um proselitismo arrebatador, e apologia nefasta de dignos baluartes do interesse do povo, patriarcas da cidadania, mas que, sem escrúpulo nem pudor, corrompem o processo eleitoral, valendo‑se de abusos e meios escusos, para estabelecer o comércio do voto, transformando‑o em mercadoria. Com isso, se alimenta o estuário da corrupção, pré‑maturando a improbidade que se instala no trato da coisa pública neste país. O invulgar louvor à esperteza e a carência de senso ético vêm‑se constituindo no balizamento do comportamento político nesse país, a ponto de se exaltar iniqüidade e a transgressão como qualidades. Acrescente-se, ademais, o incompreensível casuísmo da legislação eleitoral, tanto quanto os inaceitáveis atalhos e subterfúgios muitas vezes admitidos pelos órgãos da Justiça 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


Eleitoral quando claudicam ao interpretar os princípios probidade administrativa à moralidade para o exercício do constitucionais que encerram fundamentos antropológicos, mandato, considerando a vida pregressa do candidato, bem sociológicos e axiológicos e guarnecem o interesse dos como a normalidade e legitimidade das eleições, vedando cidadãos como nação, para priorizar o interesse individual, a influência do poder econômico ou abuso do exercício de não fundamental, em nome do qual se vulgariza e mascara função, cargo ou emprego na Administração Pública. E mais, a presunção de inocência, para, em nome da também aguçar a sensibilidade jurídica moldada na consciência dos vulgarizada ampla defesa, que é confundida com filigranas fundamentos da República, como construir uma sociedade e manobras, blindar o escudo da impunidade como livre, justa, e solidária, regida pelo estado democrático de salvo‑conduto para todos, dignos e indignos. direito, vendo a cidadania como direito fundamental. Nesse contexto, ao deferir candidatura, a Justiça Eleitoral Por essa concepção, a Constituição deve, autoriza a candidatar‑se representantes do povo condenados fundamentalmente, ser interpretada sob o prisma do por crimes dolosos, corrupção, estelionato, hediondos, ou interesse coletivo, público, sempre preponderando sobre o por improbidade. Não obstante individual. Sim, porque não afrontarem os postulados se pode reconhecer plenitude constitucionais da probidade, da de estado de democrático de moralidade para o exercício do direito se a ordem constitucional mandato, dos bons antecedentes, é pervertida, a democracia pressupostos intrínsecos de transformada em quimera, e a “(...) aquele que elegibilidade de acordo com representação política dilacerada postula mandato previsão do §9º do artigo 14 da pela fraude do comércio do voto Constituição da República, de e do abuso do poder econômico, público deve, que se vem fazendo cápsula de em favor de uma minoria. presumivelmente, minúcia, em nome da presunção Ora, se o mandato constitui de inocência. pacto decorrente do contrato encontrar‑se nas Ora, não se pode crer que social, é preciso que o mandatário condições impostas os princípios da moralidade, tenha balizamento ético que o da probidade, fidelidade à leve a ter consciência de que o pela Constituição Administração Pública estejam mandato não lhe pertence, e para o exercício de sendo ponderados, quando por isso a liberdade de exercê‑lo os antecedentes do candidato está delimitada no regramento qualquer cargo registram conduta incompatível institucional. Montesquieu público”. com o perfil do agente público teria dito ser liberdade o direito ou político. de fazer tudo aquilo que as leis Isso nos leva à perplexidade nos permitem, e Rousseau, de a tal que não se compreende como liberdade estar na obediência à poderia presumir inocência lei que estabelecemos. e boa intenção daqueles que Com efeito, no âmbito do não medem os limites nem as direito eleitoral, cujo fim é a conseqüências em busca do voto com vistas a se eleger a regulação de todo o processo de eleições, por meio do qual determinado cargo político. se dá acesso a cargos políticos, seja da gestão administrativa, Seguramente, o controle e a depuração da representação seja de representação legislativa, a presunção se estabelece política só se darão pelo efetivo cumprimento das atribuições inversamente. do judiciário eleitoral, especialmente dos Tribunais, se assim Isto é, aquele que postula mandato público deve, se comprometerem, e fizerem cumprir a Constituição, presumivelmente, encontrar‑se nas condições impostas pela guardiã da cidadania. Constituição para o exercício de qualquer cargo público. Como se sabe, é da essência das atribuições da Justiça Vale dizer, não deve possuir registro de antecedentes Eleitoral, o TSE, com última palavra, o poder normativo criminais que comprometam sua reputação, nem acusação e regulador do processo eleitoral, ao lado do monopólio ou condenação por improbidade, porque, do contrário, da jurisdição, por isso a ela cabe o poder de mudar esse estará inabilitado à pretensão ao cargo. quadro, a fim de tornar as eleições efetivamente legítimas e Nesse contexto, será inadmissível, por crime doloso, acreditadas. ou civil, por ato de improbidade, mesmo sem trânsito em Basta o mínimo tirocínio para se fazer cumprir o enunciado julgado, (condição, aliás, imposta a todos os cidadãos que se do §9º do artigo 14 da Constituição, que estabelece as propõem a candidatar‑se ao ingresso, por concurso ou por condutas de inelegibilidades, reservando à lei complementar nomeação, a funções ou cargos públicos), que um condenado apenas a explicitação, de modo a guarnecer a reputação e a assuma cargo público. Pois, se assim não for, violar-se-á o 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006


Por isso, defendo enfaticamente não estar a venerada escudo constitucional estabelecido, certamente com o fim de presunção albergada no âmbito do direito eleitoral, que foi dar proteção à coisa pública. adotada, sob a síndrome do medo dos efeitos da então vigente Ora, a bem de ver, a Constituição estabeleceu a presunção lei de segurança nacional, direcionada ao direito processual de inocência como corolário do direito e fundamento penal, com vistas aos efeitos da execução da sentença. da liberdade individual, no art. 5º, LVII: “Ninguém será Ora, como se pode admitir numa sociedade dita sob o considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença estado de direito, sob regime democrático, um indivíduo, penal condenatória”. com reputação reprovável, com condenação por improbidade Com efeito, a exegese deve focar-se à sentença penal administrativa, estelionato, crimes hediondos, tráfico de condenatória, e a presunção aí se põe como garantia restrita entorpecente, sob singela rubrica da presunção de inocência, ao direito de ir e vir, pois a restrição da liberdade com a tenha a autorização de registro para concorrer a cargo público, prisão que, afinal, pode vir a ser injusta, tende a causar efeitos emanado da Justiça Eleitoral, tutora da incolumidade do temerários com danos de repercussões diversas e irreparáveis processo eleitoral. à pessoa do inocente. O espírito da norma do Saliente‑se, pois, que artigo 37 da Constituição é a a presunção de inocência tutela da República, isto é, da destina‑se a velar os efeitos da coisa pública ‑ interesse coletivo, sentença criminal e sua eventual “Certamente que se sobrepõe ao individual. execução provisória. Por isso, por isso, a A razão da lei contém em si como já afirmei, e faço questão um princípio de tutela em relação de enfatizar, não há outra leitura moralidade constitui ao direito como prevenção a a inferir‑se do mencionado pressuposto de dano eventual ou potencial. contexto constitucional, senão a Com efeito, não se pode conclusão de que, para efeito de validade da decisão negar ocorrer na relação postulação do acesso a cargo ou judicial, do ato jurídica do direito eleitoral função públicos, e conseqüente uma inversão onde a presunção exercício, seja por concurso seja administrativo, do de probidade deve militar em por processo político eleitoral, em contrato, favor da cidadania, impondo ao quaisquer dos poderes da União candidato a cargo no âmbito dos e dos demais entes federados, do exercício poderes da República e dos entes a Constituição da República, do voto e da federados a necessária aptidão artigo 5º, caput (todos são iguais frente ao contexto da vontade da perante a lei), artigos 37, caput postulação a Constituição. e inciso II, impõe requisitos cargo público”. Com efeito, essa conformação intrínsecos, dentre outros, da pretensão ao sufrágio com o a legalidade e a moralidade, anseio da norma constitucional compreendidos como se impõe em decorrência do pressupostos da boa reputação notório conflito de interesses, e da probidade, bem como no cuja heterogeneidade deflagra um conflito de concepção, ao contexto do 9º do artigo 14 da mesma Constituição. Disso decorre, repita‑se, que a presunção de inocência, admitir ao pretendente político práticas contrárias ao interesse estabelecida pela Constituição, foi destinada efetivamente ao coletivo, da cidadania, que se deve sobrepor ao individual, a processo penal, com vistas a protelar a execução da sentença fim de manter a coisa pública incólume de eventual achaque até que todos os recursos se esgotem, e com isso evitar daqueles que estão sob suspeita em razão de processo judicial conseqüências psicológicas traumáticas, causadores de pedidos e, por isso, sem a presunção da possibilidade de satisfazer os de indenização. Não confere de modo nenhum aptidão àquele requisitos constitucionais de acesso a cargos dos poderes da que tem condenação por crimes dolosos, sobretudo contra República. a Administração Pública, ou mesmo sentença condenatória Visto sob a ótica do estado de direito democrático, não cível por improbidade, a pleitear cargo ou função públicos, há como se pretender transportar para o processo eleitoral políticos ou não, cujo fim trata do interesse da coisa pública, o benefício da presunção de inocência atendendo a interesse não se falando em trânsito em julgado da sentença. meramente individual, em detrimento do interesse público, É preciso dizer não ser aceitável a vulgarização que se fazendo emergir o confronto de normas e princípios impôs à presunção de inocência, a ponto de transformáconstitucionais. la em escudo da impunidade, subterfúgio jurídico, leito Na interpretação de tais normas, diz Hauriou, citado por da hipocrisia e passaporte da desmoralização do regime Hely L. Meirelles,2 que a moralidade, no caso, não trata-se democrático. de uma “moral comum, mas sim de uma moral jurídica, 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


“A razão da lei contém em si um princípio de tutela em relação ao direito como prevenção a dano eventual ou potencial”.

entendida como ‘o conjunto de regras de condutas tiradas da disciplina interior da Administração’”. Logo, constitui, no dizer de Alexandre de Morais, “a partir da Constituição de 1988, pressuposto de validade de todo ato da administração pública”3. Decorre disso, pois, a irracionalidade, por ausência de bom senso jurídico, permitir ao condenado candidatar-se por meio do devido processo legal, como já foi dito, por crimes dolosos, improbidade, estelionato etc., e aí não se fala em trânsito em julgado, bem como impedir que àquele condenado civilmente por ato de improbidade e corrupção, possa, sabe-se lá por que meios, chegar, por exemplo, à gerência da Administração Pública ou mesmo à instituição que estabelece normas, com vistas a discipliná‑la ou promover a destinação do erário, serviços e destinos da pátria. A par de tais circunstâncias, é preciso advertir que a moral, sob o ponto de vista axiológico, é superior ao direito, por isso que o justo é eticamente moral e o direito material nem sempre decorre de lei justa, e moralmente conformada. Certamente por isso, a moralidade constitui pressuposto de validade da decisão judicial, do ato administrativo, do contrato, do exercício do voto e da postulação a cargo público. Enfim, é da literatura jus‑filosófica que todo ato que disciplina as relações da vida na sociedade humana deve ter implícito o pressuposto da moralidade. Certamente a lei não se destina a impor moral de comportamento, mas a impor regras ditadas por sua finalidade. Com efeito, o intérprete não pode ficar indiferente às conseqüências de seus efeitos em sua aplicação. Disso decorre não se poder olvidar da característica fundamental de juridicidade de determinados direitos 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006

transpessoais, havidos como representativos do patrimônio ético da civilização. Decerto, não podemos deixar de reconhecer um certo avanço do processo eleitoral, como sua inserção na informática, viabilizando não só a simplificação, a aceleração da votação e da apuração, mas, também, criando certa resistência à fraude na votação e na apuração. No entanto, inexiste ainda um sistema rigoroso e sério com vistas à depuração das candidaturas. Resta, pois, como última alternativa, uma política judiciária, sobretudo dos tribunais eleitorais, que devem fazer prevalecer sua força reguladora e normativa, assim como deve mover-se a iniciativa e o tirocínio do Ministério Público eleitoral, tanto quanto dos órgãos de repressão e de investigação, revelando eficiência e urgência nas diligências como requer o processo eleitoral. Só assim, verdadeiramente, ter-se-ão eleições que atendam os anseios da cidadania pela Constituição, e se poderá pensar em aproximá-las da legitimidade da representação política. Em conclusão, não há como se negar a insatisfação que nos abate ao longo da história da política brasileira, por conviver com esse tétrico panorama de violação do pacto do mandato popular, como se não houvesse compromisso do eleito com os cidadãos que delegam o poder para que em seu nome seja exercido. Seguramente isso decorre da falta de compromisso dos partidos políticos para com o comando constitucional, não levando em consideração, a dignidade, a reputação do escolhidos, e sua história de serviços desinteressados prestados à comunidade. Como se sabe, o único requisito levado em conta, lamentavelmente, é a capacidade de persuadir, seja lá de que forma, e conquistar votos, sem embargo da “capacidade” econômica do candidato, com vistas a satisfazer, por assim dizer, necessidades imediatas de milhões de eleitores que, sem o que comer ou vestir, tanto quanto sem a menor perspectiva de meio lícito de subsistência, sequer se lembram do que seja dignidade, tanto menos do poder de transformação que tem seu voto. Disso decorre constituir uma regra do meio e só resta a esperança de a justiça como um todo, especialmente a eleitoral, vir a interpretar a Constituição sob o conceito axiológico, dela extraindo o verdadeiro espírito democrático de tutela da cidadania, priorizando o interesse público no confronto com o particular.

NOTAS Eliseu Fernandes de Souza, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, membro da 1ª Câmara Especial. 2 Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo, 1992, pág. 83. 3 Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, 2006, pág. 297. 1


A arte de sempre ter razão Claudio Weber Abramo Diretor executivo da ONG Transparência Brasil

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m 1830, o filósofo alemão Schopenhauer escreveu um livrinho intitulado “Dialética erística”, também conhecido pelo título muito mais expressivo de “A arte de sempre ter razão”. Nele, Schopenhauer expõe 38 estratagemas que se usam em discussões para evitar a busca da verdade e suplantar o adversário ilicitamente. O autor informa que a inspiração para expô-los nasceu do caráter essencialmente desonesto do ser humano.  Entre os macetes descritos por Schopenhauer para tomar a dianteira num debate de outro modo perdido reconhecem-se diversos daqueles que têm sido empregados por mensaleiros, sanguessugas, gabirus e outros animais políticos de extração similar. Notadamente agora, quando se aproximam as eleições e a turma busca proteger-se da Justiça por meio de um mandato parlamentar.   Ao longo da crise do mensalão, observou-se o florescimento do estratagema número 9 de Schopenhauer, associado à estratégia de mentir desbragadamente.

O expediente 9 consiste no seguinte: expor as questões em ordem diferente daquela que a dedução correta exigiria. Assim, indivíduos apanhados retirando dinheiro vivo da boca do caixa passaram a afirmar que o fato era irrelevante, e que o que importava era a destinação da grana, a qual, afirmavam eles, teria sido eleitoral. Ora, não importa qual destinação se dê a dinheiro de propina (como era o dinheiro do valerioduto). Não interessa se foi usada para financiar jogatina, pagar pelos serviços de garotos de programa ou ressarcir fornecedores de camisetas eleitorais. Propina, ela continua a ser. Mais ainda, é impossível determinar a veracidade da afirmação de que o numerário recebido teria sido usado para pagar as tais camisetas (ou o que fosse), e não garotas de programa ou glebas em Mato Grosso registradas no nome de algum testa-de-ferro. Não obstante as evidentes falácias de toda a argumentação mensaleira, conseguiram eles, em sua quase totalidade, escapar aos processos de cassação a que foram submetidos na Câmara dos Deputados. O Plenário absolveu quase todos. Não obstante a quantidade verdadeiramente esmagadora de provas de que tomaram propina, seus partidos os acolheram em suas chapas para as eleições deste ano. Foram tratados da mesma forma que dezenas de outros implicados em crimes diversos – os partidos deram-lhes abrigo em suas chapas. Os partidos políticos – da situação, da oposição e do “muro” – funcionam como guarda-chuvas criminais. Há em quase todos os partidos uma profusão de candidatos acusados de crimes que vão da improbidade administrativa à apropriação indébita, ao peculato, ao contrabando, ao tráfico de drogas, uma verdadeira excursão ao longo do código penal. Ao apresentar-se ao eleitor, essa gente parece aplicar o estratagema 8 de Schopenhauer, a saber, provocar o interlocutor a tal ponto de este, encolerizado, perder as palavras.  O eleitor pode não ter sequer como exprimir em palavras a sua indignação em relação a sanguessugas, mensaleiros e demais implicados em processos criminais. O que eleitor pode fazer é muito mais eficaz do que ficar discutindo com gente desonesta – pode não votar neles, negando-lhes, assim, a saída fácil da proteção parlamentar contra a Justiça. PS: Por aqui o livro de Schopenhauer foi editado pela Topbooks, mas mudaram ligeiramente o título para “Como vencer um debate sem precisar ter razão”. A justificativa do editor ao operar a transformação do título deve ter sido na linha da subestimação da inteligência do público, o qual, no Brasil, é sempre tratado como se fosse formado por débeis mentais para os quais tudo deve ser explicado até as últimas minúcias. Mas esse é outro assunto. 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29


O DIREITO ELEITORAL EM TEMPOS DE CRISE: UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA Bruno Navega Advogado

“(...) a utilização da moral no âmbito do sistema jurídico encontra limitações óbvias sob pena de se desvirtuar a autonomia do jurídico e considerar o código do direito inferior ou dependente de um código moral”.

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presente ensaio tem como objetivo analisar os contornos jurídico-constitucionais do direito eleitoral em tempos de crise. Não são necessárias muitas palavras para delinear a crise ético-política que assola a nação, com a proliferação de vários escândalos envolvendo as diferentes esferas de Poder em todos os níveis da Federação. Tais escândalos e devaneios com o dinheiro público, muitas das vezes envolvendo aqueles que se candidatam a concorrer a cargos eletivos, têm levado muitos, afetos ou não à área jurídica, a apregoarem algumas conclusões e interpretações no âmbito do direito eleitoral. Por esta razão o presente estudo, ainda que de maneira breve, tem como precípua finalidade atentar, em especial naqueles que tem um mínimo comprometimento com o quadro constitucional atualmente em vigor, para a necessidade de alguma parcimônia com a impulsiva análise do direito eleitoral constitucional influenciada por debates morais e ideológicos, muitas vezes incompatíveis com o Estado Constitucional de Direito. O presente ensaio, desta maneira, terá dois pontos principais de abordagem exemplificativa, tendo como pano de fundo a necessidade de se estabelecer aquilo que os norte americanos chamam de brake even point (ponto de equilíbrio) entre a necessidade de se conceder uma resposta satisfatória à população escandalizada com os desvios políticos e concordância com os limites constitucionais à utilização do


direito eleitoral como forma de frear ou, no mínimo, coibir práticas abusivas e antiéticas no âmbito do direito eleitoral. O primeiro refere-se à tese que propõe a impossibilidade de registro de candidatura daqueles acusados de desvio de conduta, em especial os parlamentares que foram julgados pelas Comissões de Ética das diferentes Casas do Poder Legislativo da República, mas não tiveram seus mandatos cassados pelos seus respectivos pares. O outro ponto diz respeito ao denominado direito eleitoral punitivo, concernente aos poderes que os órgãos afetos à Justiça Eleitoral detêm de aplicar o sistema jurídico-eleitoral positivo concretamente aos casos eleitorais postos a sua apreciação. A pedra de toque em todas as teses que propõem um papel mais ativo e agressivo do direito eleitoral frente a estas crises acima nominadas tem como ponto de partida a tentativa de inserir, no debate jurídico-eleitoral, questões e discursos ético-morais. Aí já reside e surge o primeiro problema a ser desvendado. Em primeiro lugar deve-se perquirir acerca da possibilidade do sistema jurídico ser influenciado por um código moral (bem e mal) como forma e meio de condicionamento e ou bloqueio da aplicação do código próprio do sistema jurídico (legal x ilegal – recht x unrecht na linguagem germânica). Ainda que se conceba a necessidade apregoada por alguns da aplicação da moral no direito, sem que isto implique necessariamente na adoção de um pensamento jusnaturalista, com aquilo que se convencionou denominar de pós-positivismo ou neoconstitucionalismo. Certo é que a utilização da moral no âmbito do sistema jurídico encontra limitações óbvias sob pena de se desvirtuar a autonomia do jurídico e considerar o código do direito inferior ou dependente de um código moral. A segunda questão a ser desatada liga-se à idéia de Estado Constitucional de Direito e à interpretação do bloco de constitucionalidade como um todo, e não de forma cindida ou parcial. É comum nas teses de utilização do direito eleitoral, como verdadeira forma de vingança contra os devaneios por parte dos detentores do poder a utilização daqueles preceitos constitucionais que determinam e exigem o respeito a padrões ético-jurídicos (onde o texto constitucional acabou por denominar o princípio da moralidade) e propõem uma leitura dos textos legislativos e institutos do direito eleitoral sob a ótica da axiologia normativo-constitucional conectadas a estes padrões de “moralidade”. O problema que surge de uma tal proposição diz respeito em primeiro lugar à idéia que se tem de Estado Constitucional de Direito, em especial com o atual entendimento específico de que o exercício do poder tem como fonte de legitimidade o complexo de direitos fundamentais, configurando, nas palavras de Ingo Sarlet “a essência do Estado Constitucional, constituindo, neste sentido, não apenas parte da Constituição formal, mas também elemento nuclear da Constituição material” (Sarlet, Ingo Wolfgang. 3ª ed. A eficácia dos direitos fundamentais, pág. 64). Tal idéia tem significado importante no contexto do problema posto com o presente ensaio, tanto em relação ao entendimento que se tem dos direitos

“Também é impensável deixar de considerar que a candidatura a cargo eletivo implica o reconhecimento de um dos núcleos essenciais do direito fundamental político individual de votar e ser votado”. fundamentais liberais políticos (em especial aqueles previstos nos artigos 14, 15, 16 e 17 da Constituição Federal de 1988), como também dos direitos fundamentais de defesa, especificamente aqueles constitucionalmente positivados no artigo 5º da Carta da República. Outro ponto de destaque merecedor de especial atenção no contexto do presente ensaio é a idéia de que a hermenêutica constitucional não pode ter como base interpretações isoladas, sendo imperativo o respeito ao denominado princípio da unidade da Constituição que, nas palavras de Canotilho, “obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar (...) Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios.” (Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed, págs. 1223/1224). Diante dessas premissas teóricas e dogmáticas, algumas conclusões já podem ser, desde logo, apontadas. Quanto ao primeiro exemplo paradigmático referente à restrição de candidatura daqueles acusados (e não condenados em decisão definitiva) devem ser rechaçadas as interpretações da Constituição que não levam a sério o texto constitucional como um todo global. Também é impensável deixar de considerar que a candidatura a cargo eletivo implica o reconhecimento de um dos núcleos essenciais do direito fundamental político individual de votar e ser votado. Ora, se existe um direito fundamental constitucionalmente positivado de ser votado e, por conseguinte, de se candidatar a cargo eletivo, este direito fundamental deve ser interpretado sob a luz do princípio de que o aplicador do direito deve atribuir-lhe sua máxima efetividade. É verdade que o constituinte derivado, ao alterar o artigo 14, §9º da 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31


“O que o presente estudo tem como finalidade é atentar para a necessidade de se aplicar o direito eleitoral e conceder uma resposta à população em concordância com o sistema constitucional de regras e princípios”.

Constituição, exigiu que uma lei complementar regulasse os casos de inelegibilidade, utilizando como norte hermenêutico o respeito à probidade e moralidade administrativa. Ocorre, contudo, que a lei complementar que rege a matéria (Lei Complementar nº. 64/90, alterada pela Lei Complementar nº. 81/94) não contempla a hipótese de inelegibilidade em casos de simples acusação por improbidade ou desvio de conduta ética. Desta maneira, interpretar restritivamente um direito fundamental com base em argumentos morais e políticos, sem qualquer previsão legal expressa para tanto, é desvirtuar a máxima de que os direitos fundamentais devem ser restringidos expressamente, e sempre diante de uma concordância prática calcada na proporcionalidade. Ademais, o julgamento levado a cabo pelas Comissões de Ética, além de estar calcado num procedimento que se difere substancialmente ao processo indispensável à prolação de uma decisão judicial, é fundamentado por critérios políticos e não jurídicos, o que implica em desconsiderar suas conclusões com vistas a pretender, de maneira ilegítima, eliminar um direito fundamental clássico de ser votado. Cabe destacar que a possibilidade de se impedir a elegibilidade de pessoas com base em argumentos calcados em conceitos jurídicos indeterminados (ordem pública, segurança do Estado, moralidade, etc.) era comum no Estado autoritário que o Brasil viveu antes da redemocratização pela Constituição Federal de 1988. A outra conclusão liga-se à idéia do direito eleitoral punitivo concernente às sanções de natureza administrativa ou com restrições de direitos (inclusive aquelas referentes às impugnações de candidatura e de mandatos). Se é verdade que os órgãos competentes para a aplicação do direito eleitoral devem levar em consideração os recentes escândalos em relação a questões que envolvem o pleito eleitoral, não é 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006

menos verdade que tais competências devam ser exercidas à luz da Constituição Federal. Ao se propor uma leitura à luz da Constituição Federal, deseja-se referir à necessidade de se respeitar os direitos fundamentais ligados aos acusados em geral e, em especial, àqueles que sofrerão quaisquer tipos de punição previstos na legislação eleitoral em vigor. Em primeiro lugar, é pacífico na doutrina mais autorizada e na jurisprudência de diversos Tribunais Constitucionais da Europa que o princípio da presunção de inocência não se aplique apenas ao campo penal, transbordando seu conteúdo normativo para qualquer ação punitiva do Estado. Também merece destaque o inescapável respeito ao devido processo legal, com a garantia da ampla defesa e do contraditório em todo o procedimento destinado à aplicação das penalidades eleitorais, levada em consideração, por razões conhecidas por todos , a necessidade de celeridade nos processos de cunho eleitoral. Outra importante questão refere-se à aplicação do princípio da individualização da pena e da responsabilização objetiva que também extrapolaram a aplicação restrita ao direito penal para todas as áreas constituindo-se em forma de punição jurídico-estatal. O primeiro impede a responsabilização ou punição solidária e o segundo exige a caracterização de conduta dolosa ou culposa (comissiva ou omissiva) para o sancionamento daqueles que violarem as regras de conduta eleitorais, como é o caso da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral quando há exigência de conhecimento prévio do candidato. Conclui-se, portanto, que o fervor popular sedento de punição contra a tergiversação no exercício de funções públicas, ou mesmo no tratamento da coisa pública, não pode significar o abandono aos limites constitucionais e aos direitos fundamentais previstos na Constituição. O verdadeiro estado de exceção ligado aos problemas de corrupção existentes em nosso país não pode significar a busca por uma justiça material em desrespeito aos direitos fundamentais e ao Estado Constitucional de Direito. O Estado de Direito deve ser fortalecido mesmo em épocas como a que vivemos, o que não significa a impunidade, a isenção de apuração de fatos que podem ser tipificados como contrários à ordem jurídica. O presente estudo não constitui um manifesto contra a necessidade de se punir aqueles que tratam a res publica como coisa privada, atentando contra a idéia republicana de exercício do poder para e pelo povo. O que o presente estudo tem como finalidade é atentar para a necessidade de se aplicar o direito eleitoral e conceder uma resposta à população em concordância com o sistema constitucional de regras e princípios. Não é impossível coibir ou reprimir a corrupção com respeito aos direitos fundamentais e aos contornos jurídico-constitucionais inerentes ao exercício do poder estatal ligado ao direito eleitoral. Pelo contrário, o combate à corrupção via direito eleitoral somente será legítimo e democrático segundo o que delineia a Constituição da República, para podermos celebrar a vitória da Constituição e do Estado Democrático de Direito frente aos problemas concretos e notórios que assolam nosso país.


A próxima eleição Luiz Oswaldo Norris Aranha

E

Economista

leição de caráter nacional é festa da democracia, ocasião em que o povo manifesta-se em termos daquilo que deseja para o seu futuro, nomeando seus representantes no Poder Político. Este fato deveria se exacerbar, no Brasil, considerando que, por mais de 20 anos, não se podia votar para escolher a pessoa mais importante desse processo, o presidente da República e que, mesmo para os cargos executivos de menor relevância (lembrando-se que, por algum tempo, os governadores e os prefeitos das principais cidades eram nomeados pelo poder militar) e para os postos no legislativo, havia limitações e apenas podiam-se sufragar os nomes de indivíduos ungidos pela autocracia ou aceitos como opositores moderados. O engajamento da população nesse processo deixa, contudo, a desejar e hoje, encerrada a disputa pela Copa do Mundo de Futebol e efetivamente iniciada a campanha eleitoral, o ambiente é preocupante. Do ponto de vista dos eleitores, há desconhecimento das efetivas características dos candidatos, havendo grande desânimo e a escolha se pautando em critérios contaminados. Por serem conhecidos e por efetuarem trabalho assistencialista junto às bases, os envolvidos em mensalões e procedimentos similares, bem como os anões do orçamento e os sanguessugas, além de novos protagonistas do mesmo naipe, serão eleitos, alguns até de modo expressivo. Enquanto isto, os postulantes com menor poder econômico, não vencerão. A seguir, a fundamental cristalização das propostas, através dos partidos políticos, ainda não se deu no Brasil, fato que mais ainda dificulta a escolha dos eleitores. Com raras exceções, é quase impossível distinguir as propostas dos candidatos, com promessas assistencialistas (a grande maioria para não serem cumpridas) e com demagogia populista. Nada de substantivo, apenas cores vivas sobre um quadro de material perecível. Nesse contexto, agruparam-se as correntes políticas em volta de interesses localizados e gerou-se profundo divórcio entre as lideranças municipais, estaduais e federais, o que se mostra através das diversas alianças contraditórias e se

evidenciou pela renúncia do PMDB, que não postulou a Presidência da República. O caminho que deveria ser natural, na direção de cristalizar os partidos políticos, não é trilhado, pois prevalecem interesses menores, para os quais basta obter legenda eleitoral que permita atender às exigências da legislação. Para quem olha de fora, com imparcialidade, não é possível definir verticalmente conjunto coerente de candidatos, de presidente da República até vereador, passando pelos senadores, deputados, governadores e prefeitos. Os votos se dão pelos nomes e abre-se um leque de inconsistência. Raros eleitores conseguem votar em todos esses cargos, sufragando nomes de uma só agremiação. Pior de tudo: além de percorrerem diferentes bandeiras partidárias, escolhem pessoas que demonstram absoluto antagonismo ideológico. A luta pelo poder se releva, sem a preocupação do pós-eleitoral, ou seja, o que importa é vencer e o que virá depois será contornado com manobras e conchavos, sem haver o devido enfoque no futuro do país. Seguindo o espírito individualista que hoje predomina, tende-se ao radicalismo e ao enxovalhamento dos adversários. Como o ambiente leva à dispersão das correntes políticas e há necessidade, para governar, de alianças em volta de propostas visando ao desenvolvimento nacional, fica difícil concretizá-las, pois a execração pública o impede. Acaba-se caindo no fisiologismo de loteamento de cargos e distribuição de verbas, tolhendo a união dos esforços em volta das maiores prioridades da nação que fica adormecida. Há três fatores perniciosos: o distanciamento dos eleitores em relação ao processo democrático; o cisalhamento das correntes partidárias que se agrupam diferentemente, nos níveis federal, estadual e municipal; e a desagregação dos candidatos, com a exacerbação das acusações. Fica difícil esperar que haja melhorias de modo natural e as intervenções legais, criando camisas-de-força, acabam se materializando e resolvendo pontualmente certos problemas, porém sem nada acrescentar à cultura política. O Brasil precisa de união nacional, em torno das propostas de maior relevo e o debate eleitoral deveria se concentrar dessa forma. Pelo menos aos postulantes à Presidência da República caberia menor ambição e maior atenção ao interesse social. 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


O PODER JUDICIÁRIO E O SETOR DE COMBUSTÍVEIS Luiz Gil Siuffo Pereira

Foto: Arquivo

Presidente da FECOMBUSTÍVEIS – Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes

N

os últimos dez anos, o Poder Judiciário exerceu uma influência considerável no setor de combustíveis e, sem embargo da evidente boafé e boa intenção dos julgadores, nem sempre a intervenção se revelou benéfica à consolidação das novas instituições e da concorrência leal. Ao Judiciário, no entanto, não pode ser creditada a culpa por esta situação, já que teve ele que se defrontar com uma verdadeira avalanche de modificações institucionais e tributárias que tumultuaram, sobremaneira, o ambiente econômico em que as decisões tinham que ser proferidas. Nos últimos sessenta anos, o setor de combustíveis foi fortemente controlado pelo Poder Executivo. Desde a campanha denominada “O Petróleo é Nosso” e da criação 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006

da Petrobrás, esse segmento foi tratado pelos Governos, especialmente no período militar, como uma questão de “segurança nacional”. Nesse contexto, todas as variáveis relevantes eram rigidamente controladas pelo Estado que ditava desde os preços a serem praticados até quando, onde e em que condições se podia abrir uma determinada empresa. No segmento da produção e refino, a Petrobrás era monopolista de fato e de direito. Na distribuição, meia dúzia de empresas controlava todo o mercado. A quebra do monopólio da Petrobrás e a desregulamentação ocorrida na segunda metade da década de 1990 vieram romper com esse sistema então vigente. A intenção declarada da política governamental era de estabelecer uma ‘contestação’ ao poder da Petrobrás e uma ampliação da produção e do refino, por um sistema que se mostrasse atrativo aos investimentos estrangeiros. Na distribuição, buscou o Governo o aumento da concorrência pela facilitação da criação de novas distribuidoras. No varejo, igualmente, o mote era permitir que apenas as posturas municipais disciplinassem a instalação de novas empresas. As medidas teoricamente tendentes a criar uma estrutura de mercado mais moderna e concorrencial esbarraram na absoluta incapacidade de fiscalização do Estado. A Agência Nacional do Petróleo foi criada, em 1997, contando com uma estrutura de fiscalização manifestamente insuficiente. Para fiscalizar um mercado de bilhões de dólares, com milhares de empresas, dispunha a recém-criada autarquia de um quadro de fiscais que mal chegava a vinte pessoas. Vários Estados da Federação não contavam sequer com um único fiscal da Agência. Além disso, a própria inexperiência e, porque não dizer, arrogância do órgão regulador nos seus primeiros anos acabou por distanciá-lo dos agentes econômicos, fazendo com que a ANP se transformasse no palco de inúmeras experiências ‘acadêmicas’ que estavam completamente divorciadas da realidade do mercado. A própria extensão dos poderes da novel figura da “Agência Reguladora” era – e em boa medida ainda o é – causadora de infindáveis discussões, dentro e fora do Judiciário. Em síntese, à época tínhamos uma Agência recém-criada,


com estrutura de fiscalização pífia, excessivamente voltada para a academia e distante do mercado, inexperiente e um quadro institucional em que os seus poderes não estavam devidamente esclarecidos. Para completar esse circo de horrores, tivemos também, ao longo desse período, uma profunda alteração das regras tributárias. Passamos de um regime da Constituição anterior, em que tínhamos um “Imposto Único”, incidente sobre combustíveis e minerais, para uma colcha de retalhos que faz com que os combustíveis estejam sujeitos ao ICMS, Pis, Cofins e a CIDE - Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico. Dizem os especialistas que “imposto bom é imposto velho”. Trata-se da mais pura verdade. Com a criação de todos esses novos tributos – alguns quase inéditos, à época, como a CIDE – um sem-número de contestações não tardaram a ocorrer. Isso sem falar nas inconveniências decorrentes da tributação ‘estadualizada’, no ICMS, em que alíquotas diferentes para os mesmos produtos se transformam em um precioso combustível da fraude e do descaminho. Aproveitando-se desse quadro, juntamente com empresas sérias e comprometidas, surgiram inúmeras empresas “novas entrantes” criadas com o exclusivo propósito da burla da lei e do lucro fácil. Essas empresas encontraram, no terreno fértil das incertezas institucionais e legais o habitat ideal para prosperar. Os últimos anos da década de 1990 e os primeiros cinco anos do novo milênio foram, indubitavelmente, terrivelmente massacrantes e desestimulantes para todos os empresários que trabalham licitamente – pagando seus tributos e vendendo produtos de qualidade – e vendo, no estabelecimento vizinho, um concorrente vender seu produto muito mais barato, sem o recolhimento dos impostos devidos ou com inenarráveis vícios de qualidade. Muitas empresas, à essa época, deixaram de recolher bilhões de reais em impostos aos cofres públicos, tornandose concorrentes absolutamente desleais, muitas vezes exaltados pela própria imprensa, também de boa-fé, como exemplos de empresários corretos e de modicidade nos preços de revenda. Poucos consumidores ou autoridades sabem, mas de cada Real pago na bomba de combustíveis, mais de cinqüenta por cento são tributos incidentes sobre o produto. Essa voracidade fiscal, além de inibir a própria atividade econômica, transforma o sonegador em um concorrente imbatível, que vende seus produtos a preços inalcançáveis. Como a maioria dos competidores que deixaram de pagar esses tributos era beneficiária de decisões liminares, muitas vozes se levantaram para responsabilizar o Poder Judiciário pelas mazelas dessa cadeia produtiva. Alguns apoiaram-se em casos isolados de improbidade e corrupção – existentes em qualquer atividade humana – para criticar o Judiciário como um todo, como se não se soubesse que a imensa e esmagadora maioria dos seus componentes são

pessoas absolutamente comprometidas com a honestidade e a correção. Felizmente, hoje comemoramos outros tempos, e o próprio Judiciário encarregou-se de separar o joio do trigo. A própria magistratura percebeu a extensão dos efeitos de algumas dessas decisões e notou, igualmente, os maus propósitos de alguns dos seus postulantes, acautelando-se quanto a essas situações. Atualmente, não temos conhecimento, salvo melhor juízo, de nenhuma decisão, de natureza tributária, liminar ou definitiva, que faculte ao beneficiário a aquisição e revenda de combustíveis sem o pagamento dos tributos correspondentes. As decisões atualmente existentes determinam ao contribuinte a obrigação de depositar, em juízo, os valores contestados, evitando que empresas inidôneas economizem milhões de reais em impostos e desapareçam sem deixar vestígios, deixando à míngua os cofres públicos e na bancarrota os comerciantes honestos que com eles concorrem. É o quanto basta para sanar esse grave problema. Desde que haja uma garantia verdadeira de que o imposto – se julgado devido – será pago, a decisão é “neutra” do ponto de vista concorrencial, não trazendo prejuízos ao mercado. Nesse caso, o contribuinte exerce seu sagrado direito constitucional de litigar e de recorrer ao Judiciário para não pagar o que não seja devido, mas se garante também que, se vitorioso o fisco, seu crédito não desaparecerá. Não obstante a sensível melhora no quadro geral, ainda há alguns problemas graves no horizonte, que precisarão ser dirimidos. O maior deles, que ainda remanesce daqueles tempos difíceis, diz respeito à incerteza quanto à extensão do poder regulamentar das Agências Reguladoras. Muitos juristas insistem que a autarquia não pode regular por “resolução administrativa” e que apenas a lei pode criar obrigações aos administrados, entendimento evidentemente respeitável. Outros, ao contrário, adotam a posição que julgamos mais acertada e flexível, reconhecendo à Agência Reguladora uma expertise e agilidade que jamais terá o legislador, para – nos limites da lei e nunca contra legem – regular as minúcias da atividade econômica. Evidentemente, a última palavra sobre essa tormentosa questão – que afeta não apenas o setor de combustíveis mas todos os setores regulados – caberá ao próprio Supremo Tribunal Federal, já que a invocação recorrente é de inconstitucionalidade dessas regras. Qualquer que seja o rumo tomado – embora esperemos que prevaleça o segundo entendimento, fortalecendo os órgãos reguladores – urge que essa decisão não tarde, para que, conhecedores das regras, possamos fortalecer e sedimentar as nossas instituições. Como derradeira mensagem, queria deixar aqui um registro e um agradecimento: ao contrário do que muitos já disseram, entendo que o Judiciário, no cômputo geral de erros e acertos, vem dando grande contribuição para ajudar a melhorar e consolidar o nosso quadro institucional regulatório. 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35


SISTEMA RIO CARD: DECISÃO JUDICIAL LIMITA USO DO CARTÃO

Processo: 2005.800.168.381-1 autor: Jorge Pereira Fernandes réu: Rio Ônibus – Sindicatos das Empresas de Ônibus da cidade do Rio de Janeiro Advogado: Marcus Fontes e/ou outros Sentença

“Para tanto, esse benefício é suportado pela sociedade com a elevação do valor da tarifa ou com o aporte de recursos público provenientes do tesouro municipal”.

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Dispensado relatório na forma do artigo 38 da Lei 9.099/ 95, passo a decidir. O autor ajuizou a presente demanda alegando, em síntese, que a ré bloqueou o cartão “Rio Card Sênior” do autor em setembro de 2005. Assevera que, no dia 09.09.2005, diligenciou junto à ré, ocasião em que foi orientado a pedir uma segunda via. Sustenta que pagou R$ 10,00 para obter a segunda via. Aduz que o cartão foi novamente bloqueado pela ré em 17.10.2005, sob o fundamento de grande utilização pelo autor. Argumenta que a Constituição e o Estatuto do Idoso não estabelecem limites para a utilização do serviço. Desse modo, pretende obter antecipação dos efeitos da tutela para determinar à ré o fornecimento de novo cartão para o autor. Pretende, ainda, obter a condenação da ré a apagar R$ 6.000,00 a título de danos morais. O pedido de antecipação dos efeitos da tutela foi indeferido na decisão. Devidamente citada, a ré apresentou a contestação escrita alegando, em síntese, que o autor foi beneficiado com a gratuidade dos transportes públicos em razão de ser idoso, motivo pelo qual obteve o “Rio Card Sênior”. Aduz que esse benefício foi instituído às pessoas idosas como uma política


pública na área de assistência social. Assevera que o cartão foi bloqueado em setembro de 2005 como medida inibitória para coibir práticas abusivas, pois o autor declarou que utiliza o cartão para o trabalho. Por fim, aduz a assistência de danos morais. Na audiência de instrução e julgamento, o autor aduziu que utiliza o cartão “Rio Card Sênior” para realizar trabalhos de despachante, que a lei municipal não restringe o número de viagens para o idoso e que está a nove meses sem a utilização do cartão. No mérito, a ré confirma, em contestação, que o autor é titular de um cartão “Rio Card Sênior” em razão de ser uma pessoa idosa, bem como que bloqueou este cartão em setembro de 2005 por causa de seu uso excessivo. Por outro lado, suscita a tese defensiva acerca da burla ao sistema das gratuidades, uma vez que, o autor utiliza o cartão para exercer a função de despachante. O artigo 230, §2º da Constituição da República assegura aos idosos a gratuidade dos transportes coletivos urbanos. Trata-se de um benefício da assistência social concedido ao idoso, explicitando a norma geral prevista no artigo 203 da Constituição da República. Ocorre que a União só pode legislar sobre normas gerais em matérias de assistência social, conforme estabelece o artigo 24, XII c/c §1º, da Constituição da República, competindo aos municípios editar normas mais específicas acerca da gratuidade dos transportes coletivos urbanos, nos termos do artigo 30, V, da Constituição da República. Dessa forma, o artigo 39 do Estatuto do Idoso, que dispõe sobre a gratuidade nos transportes coletivos aos idosos, deve ser interpretada conforme a constituição, restringindo sua aplicação aos transportes coletivos de competência da União, notadamente, o transporte internacional e interestadual. Entendimento em sentido resultaria inconstitucionalidade, artigo 39 do Estatuto do Idoso, por violação dos artigos 24, XII c/c §1º 30, V, da Constituição da República. Esse benefício foi instituído pelo Município do Rio de Janeiro por intermédio da lei municipal 3.167/2000 e o decreto municipal 198.936/2001, com cópias anexadas à contestação, que dispõem sobre sistemas de bilhetagem eletrônica, ou seja, sobre “Rio Card Sênior” utilizado pelo autor. Ocorre que esse benefício de caráter assistencialista tem por finalidade remediar a má distribuição de renda e promover inclusão social, reconhecendo a situação de vulnerabilidade e de hipossuficiência econômica do idoso. Para tanto, esse benefício é suportado pela sociedade com a elevação do valor da tarifa ou com o aporte de recursos públicos provenientes do tesouro municipal. Entendimento em sentido diverso resultaria inconstitucionalidade da legislação municipal, vista que o artigo 195, §5º, da Constituição da República estabelece que nenhum benefício de assistência social será criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio. Todavia, observo que o próprio autor declarou em

“Dessa forma, é evidente que o autor não utiliza o RIO CARD SÊNIOR como um benefício de assistência social, mas o utiliza para economizar o custo do transporte, cujo ônus é suportado pela sociedade resultando em proveito exclusivo para o autor e seu empregador.”

audiência que utiliza esse cartão para exercer a função de despachante. Essa alegação é confirmada pelo extrato de utilização desse cartão acostado à contestação, comprovando a utilização superior de viagens diárias, ou seja, superior a 300 viagens por mês. Dessa forma, é evidente que o autor não utiliza o “Rio Card Sênior” como um benefício de assistência social, mas o utiliza para economizar o custo do transporte, cujo ônus é suportado pela sociedade resultando em proveito exclusivo para o autor e seu empregador. Contudo, não obstante a abusividade perpetuada pelo autor, observo que não se pode excluir de toda utilização do “Rio Card Sênior”, sob pena de violação do artigo 230, §2º, da Constituição da República. Portanto, para que o autor possa utilizar o “Rio Card Sênior” sem violar os postulados da assistência social, fica o limite imposto aos estudantes municipais previsto no artigo 9º do decreto municipal 19.936/2001, ou seja, 156 viagens mensais. Por fim, não há elementos nos autos que demonstrem que o autor sofreu qualquer espécie de constrangimento ou outra afronta à sua dignidade a título de dano moral. Ante o exposto, julgo procedente em parte o pedido para condenar a ré a fornecer um novo “Rio Card Sênior” para o autor, com limite de 156 viagens mensais, no prazo máximo de 10 (dez) dias contado da leitura da sentença, sob pena de multa diária no valor de R$ 20,00 (vinte reais). Julgo improcedente o pedido de indenização por danos morais. Sem custas nem honorários, de acordo com o art. 55 da Lei 9.099/95. Em cumprimento do artigo 40 da Lei 9.099/95, remetam-se os autos para o Juiz Togado. Após a homologação: publique-se, registre-se e intimem-se. Com o trânsito em julgado, dê-se baixa e arquive-se. 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


EXCESSO DE USO

A legislação não estabeleceu um limite máximo de viagens isentas, mas estabeleceu que a utilização fora do razoável subverte a razão da concessão da gratuidade e a suspensão do cartão foi medida adotada para inibir a burla ao sistema. Sustenta, ainda, a inexistência de dano moral.

O

autor afirma que é portador de doença crônica, que requer tratamento contínuo, razão pela qual é beneficiado com o passe especial, que lhe dá livre acesso aos meios de transporte coletivo. Sustenta que o seu “Rio Card” foi suspenso, sob a alegação de excesso de uso, e que tal procedimento é indevido, pois lhe é garantido livre acesso, não se podendo falar em limite de utilização. Pleiteia, portanto, a condenação do réu a emitir um novo cartão, sem qualquer ônus, e indenização por dano moral. O réu sustenta que a legislação sobre a gratuidade nos transportes públicos prevê o benefício aos portadores de doença crônica, como instrumento de política pública de saúde e como forma de permitir a continuidade do tratamento. Alega que num único dia houve a utilização do cartão pelo autor em mais de vinte viagens, o que atrai a presunção de prática fraudulenta do usuário. O réu afirma que de fato a legislação não estabeleceu um limite máximo de viagens isentas, mas que a utilização fora do razoável subverte a razão da concessão da gratuidade e que a suspensão do cartão foi medida adotada para inibir a burla ao sistema. Sustenta, ainda, a inexistência de dano moral. O réu comprovou através do relatório de uso anexado aos autos que o autor utilizou excessivamente seu cartão, pois não se afigura razoável que uma pessoa utilize o passe vinte vezes em apenas um dia. A despeito do fato de não existir limite imposto pela lei quanto ao número de viagens gratuitas a serem concedidas, é certo que a utilização para outros fins que não 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006

sejam os previstos na legislação configura burla ao sistema. Assim sendo, o bloqueio do cartão não se afigurou indevido, não havendo que se falar em ilicitude por parte do réu. Cabe ressaltar, ainda, que a suspensão do cartão já havia ocorrido outra vez com o autor e que o controle do sistema é feito por empresa distinta do réu, que não tem interesse direto no deslinde do mérito. Dessa forma, por não se encontrarem presentes os pressupostos que ensejam a responsabilidade civil, não merecem prosperar as pretensões deduzidas com base nos narrados na petição inicial, sendo certo, no entanto, que assiste ao autor o direito de pleitear administrativamente novo passe. Em face do exposto, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos formulados pelo autor. Sem condenação em custa e honorários, em virtude do que dispõe o art. 55 da Lei 9.099. Submeto a presente decisão à homologação do Juiz Togado, na forma que dispõe o art. 40 da Lei 9.099/95.

Tatiana Machado Dunshee de Abranches Juiz Leigo Projeto de sentença homologada em 22 de fevereiro de 2006.


TRE-RJ firma posição sobre abuso do poder Econômico

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Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro Acórdão nº 28.663 Recurso de ação de impugnação de mandato eletivo nº 43 Recorrentes: Pedro Jorge Cherene Advogados: Marcelo Fontes e Bruno Calfat Recorridos: Coligação “A Força do Povo” Advogado: Francisco de Assis Pessanha Filho

VOTO-MÉRITO Juiz Márcio Pacheco de Mello (Relator): Senhor Presidente, a questão trazida a julgamento versa sobre a acusação de que os representados, na condição de Prefeito e Vice-Prefeito do Município de São Francisco de Itabapoana, teriam cometido abuso de poder político pelo fato de ter havido cadastramento de inúmeras famílias no programa assistencial “Bolsa Família” no período entre 14 e 17 de setembro de 2004. Portanto, a questão central é a de se saber se efetivamente os representados utilizaram-se ou não da máquina administrativa municipal para captação ilícita de votos, utilizando-se para tanto de cadastramento indevido ou não criterioso de famílias no programa federal Bolsa Família. Senhor Presidente, a prova produzida nestes autos é basicamente de natureza documental, posto que a própria decisao singular afirma; à fl. 456, que a prova testemunhal colhida seria inconclusiva, e que a única pessoa que poderia trazer prova bastante ao conhecimento do julgador em verdade sequer teria sido arrolada pelas partes. Assim, entendeu o Juízo a quo que o sensível acréscimo no número de cadastrados no programa assistencial a quinze dias das eleições aliado à prova documental, materializada em dois relatórios de fiscalização do programa assistencial, um do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (fIs. 155/165) e outro da Chefia da Controladoria

Juiz Márcio Pacheco de Mello

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Geral da União no Estado do Rio de Janeiro (fls. 428/446), e ainda tendo em conta a realidade fática sócio-econômica do eleitorado naquele município, seriam elementos aptos a concluir pelo desequilíbrio da disputa mediante abuso de poder. O caso é o seguinte: em face de diversas denúncias veiculadas pela imprensa escrita informando suposta utilização ilegal do programa assistencial Bolsa Família, que, não obstante pertencer ao Governo Federal, tem sua realização implementada pelos executivos municipais, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome confeccionou o Relatório de Acompanhamento de Projetos n° 20/2004 (fls. 155/165 do Recurso em Ação de Impugnação de Mandato Eletivo). Dele destaco os seguintes trechos, como especialmente conclusivos: “As informações prestadas e documentos analisados revelam que os marcos legais e regulatórios dos programas locais atendem, no geral, às prescrições exigidas pelas leis federais citadas no parágrafo primeiro deste relatório.” (...) “No que tange aos resultados da apuração de denúncia constatamos que: - a confrontação dos registros às documentações originais e registros auxiliares comprovaram que a amostra selecionada guardava consonância entre as informações obtidas e as informações prestadas; - não identificamos prejuízo material aos programas pelo ato supostamente ilegal, inclusive porque não geraram benefícios.” E conclui o relatório daquele Órgão federal: “Diante do exposto, em que pese a gravidade das denúncias veiculadas e, à vista dos fatos, circunstâncias e situações citadas neste relatório, concluímos que apesar do cadastramento das famílias do município de São Francisco do Itabapoana ter sido realizado próximo ao pleito eleitoral, portanto em momento que consideramos pouco oportuno, e também pudesse ter sido melhor trabalhado quanto à forma de divulgação para que todas as famílias carentes em situação de extrema pobreza fossem cientificadas... não se constatou concretamente vínculo dos procedimentos adotados pelo Executivo local à escolha ou favorecimento político-partidário.” Já a conclusão do relatório confeccionado pela Controladoria Geral da União menciona especialmente o seguinte: “(...) Não há evidência de que o cadastramento transcorreu de forma contínua durante o presente exercício.” “Durante entrevista realizada a Sra. Sandra Ribeiro Azeredo declarou oralmente que ela e a sua familia votando no atual Prefeito e, na hipótese de sua reeleição, seriam beneficiados com urna bolsa no valor mensal de R$ 80,00. Todavia, tanto essa quantia quanto as demais cadastradas estão enquadradas no perfil do público-alvo do programa.” Importante lembrar que um dos fundamentos da decisão singular é justamente o sobredito depoimento que, no entanto, como se vê da própria sentença, havia sido tomado fora do 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006

juízo, por órgão de natureza meramente administrativa e, portanto, sem qualquer respeito ao contraditório ou à ampla defesa, garantias inafastáveis aos que se vêem processados em âmbito judicial ou mesmo de cunho administrativopunitivo. Outro ponto em que a sentença toca é o fato do Município ter iniciado cadastramento para o preenchimento de 500 novas vagas no programa assistencial, sendo que este já possuía cadastro em número superior às vagas que visava preencher. Quanto a tal argumento também entendo insuficiente para, por si só, gerar a presunção de abuso de poder, posto entender este relator que tal conduta se insere no âmbito normal da mera discricionariedade da administração pública em realizar seus projetos sociais ao tempo e da forma que entender mais benéficas a seus municípes. Neste passo, Senhor Presidente, importante ressaltar que, tendo o legislador constituinte admitido em nosso sistema eleitoral o instituto da reeleição, é de se ter alguma reserva na aferição da ocorrência de eventual abuso de poder por parte dos administradores-candidatos, vez que, sem um critério mais rigoroso, restaria inviabilizada a própria condução dos serviços públicos municipais, mormente aqueles de natureza assistencial. Além disso, é preciso ressaltar que existiu um pedido expresso do Ministro do Desenvolvimento Social, em Ofício datado de agosto, solicitando o empenho dos governos municipais no cadastramento do Programa Bolsa Família. Dessa forma, o cadastramento ocorreu em São Francisco de Itabapoana porque houve um pedido formal do Governo Federal e não por um ato, imotivado da administração pública. Assim, penso não haver no presente processo qualquer elemento concreto que indique que o agir dos candidatos foi movido com o fim de desestabilizar o pleito, mudar o resultado das eleições majoritárias ou captar votos mediante artifícios ilícitos. Portanto, Senhor Presidente, por todo o exposto, e do panorama probatório presente nos autos, não visualizo a ocorrência de qualquer abuso de poder político ou econômico, pelo que dou provimento ao recurso de Pedro Jorge Cherene e Cláudio Luiz Henriques, para cassar a sentença recorrida, bem como a multa aplicada aos representados, e manter os diplomas que foram conferidos aos mesmos, improvendose, por conseguinte, os recursos, da Coligação Força do Povo e do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB. É como voto. Juiz Ivan Nunes Ferreira (Revisor): Senhor Presidente, gostaria de destacar uma questão introdutória, já que da leitura dos autos fiquei convicto disso. O Governo Federal, de uma forma totalmente inoportuna, em julho de 2004, lançou o programa Bolsa Família no Brasil inteiro, provavelmente para favorecer aqueles candidatos que o apoiavam ou melhorar a situacão do partido em âmbito nacional. Efetivamente, isto gerou prós e contras ao Governo


Federal, e acredito que, naturalmente, algumas críticas mais cáusticas foram lançadas em relação àqueles que não eram correligionários do PT e que se apropriaram, de alguma maneira, do referido programa. Ocorre que o programa Bolsa Família é implementado pela Caixa Econômica Federal, e não pela prefeitura, que só é responsável pelo cadastramento. Este aspecto, a meu ver, dilui muito a participação dos municípios no incremento desse programa. A matéria, foi apreciada, embora superficialmente, por esta Corte, quando do agravo regimental interposto da decisão que deu efeito suspensivo ao recurso. Primeiramente, como mencionado no parecer original da douta Procuradoria Regional Eleitoral – alterado em parte, nesta Sessão-, não vejo qualquer prova de captação de sufrágio, lastreada tão somente em prova testemunhal. Já é do conhecimento desta Corte que não aplico, de forma alguma, o art. 41-A da Lei 9.504/97 com base apenas em prova testemunhal. O recurso gira em torno da aplicação do programa Bolsa Família, instituído pelo Governo Federal e implementado com a ajuda das Prefeituras municipais. Enfatize-se, mais uma vez, que a distriuição do Bolsa Familia se faz pela Caixa Econômica Federal, cabendo aos municípios apenas auxiliar no cadastramento dos interessados. Mais de 500 municípios realizaram o cadastramento no Bolsa Família a partir de julho de 2004, ou seja, não apenas o município em questão foi beneficiado com o programa. Por outro lado, os recorrentes não têm apoio político do partido do Governo Federal. Ademais, o programa Bolsa Família foi anunciado pela televisão brasileira vinculado ao Governo Federal, o que também, a meu ver, dilui, de certa forma, a influência do município. Muito me impressionou, também, o voto da Juíza Jacqueline Lima Montenegro, de cujas luzes freqüentemente me valho, no julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n° 209, de 2005. “Alegam os agravantes, no entanto, que o programa Bolsa Família era de iniciativa do Governo Federal, que não apoiava o Executivo local nas eleições de 2004, e que o Município apenas cadastrou as famílias, em razão de pedido formal do Ministério do Desenvolvimento Social, a quem competia deliberar sobre a concessão deste benefício social. Por fim, os agravantes frisam que, de acordo com o Relatório Sintético de Fiscalização do Ministério do Desenvolvimento Social: ‘não se constatou concretamente vínculo dos procedimentos adotados pelo Executivo local à escolha ou favorecimento político partidário (fls. 104 do referido Agravo). No caso em exame, alguns detalhes me impressionam. Primeiramente, esse cadastramento se fez a pedido expresso do Ministro do Desenvolvimento, em expediente escrito e datado de final de agosto. Desta maneira, a intensificação desse cadastramento se fez inclusive em documento, no qual se pede empenho dos Governos Municipais, através dos prefeitos, no sentido de ajudar a criar uma parceria com o Governo Federal, num momento em que havia muitas denúncias de

fraudes em programas de assistência à população carente.” A propósito, penso que não cabe, neste caso, a discussão sobre ter havido ou não fraude ou abuso na aplicação do programa. Continua, então, Sua Excelência: “Foi cientificado o juízo eleitoral da implementação desse programa de cadastramento e, até aquela oportunidade, nenhum partido político já ciente do cadastramento se colocou contrariamente ou efetuou qualquer denúncia perante a Justiça Federal. Essa situação só se implementou dias depois de realizado esse cadastramento, com a publicação da reportagem no Jornal O Globo, em que se denunciou ‘ter havido uso eleitoreiro’ de tal programa do Governo Federal. Ora, o programa foi do Governo Federal, o empenho foi solicitado por documento escrito pelo Ministério do Desenvolvimento, no máximo 15 ou 20 dias antes da ocasião em que se implementou esse cadastramento. Por outro lado, o próprio representante do Ministério Público local, mesmo reconhecendo uma certa falta de sensibilidade quanto ao momento e oportunidade da realização do programa, também não vislumbrou conduta dolosa, mas apenas o atendimento a pedido do Governo Federal que, aliás, nada tinha de proximidade política com o Governo local.” A cassação do mandato eletivo só se justifica quando respaldado em provas contundentes. No caso, embora possa restar dúvida quanto a algum aproveitamento eleitoreiro do programa Bolsa Família, não há prova cabal desse aproveitamento e nao há divergência de que a iniciativa do programa inclusive quanto à época de sua implementação, foi do Governo Federal. A falta de senso de oportunidade foi do Governo Federal que pode ter dado margem a eventual aproveitamento do programa para fins eleitoreiros em todo o Brasil. Enfim, faço minhas as palavras da Juíza Jacqueline Lima Montenegro no referido julgamento e, tendo em vista os relatórios de acompanhamento dos projetos nº 20 de 2004 e da Controladoria Geral da União, destacados no cuidadoso voto do eminente relator, meu voto é no mesmo sentido do proferido pelo Juiz Márcio Pacheco de Mello.

DECISÃO “Por unanimidade, rejeitaram-se as preliminares de ilegitimidade ativa e de prova pré-constituída. por maioria, rejeitou- se a preliminar de cerceamento de defesa, vencida a desembargadora Vera Lúcia Lima da Silva, que a acolhia. no mérito, por maioria, deu- se provimento aos recursos de pedro jorge cherene e claudio luiz henriques e negou-se provimento aos recursos de Leonardo Terra de Almeida, Fátima Ornelas e do Partido Trabalhista Brasileiro, vencido o des. Roberto Wider, que negava provimento a todos os recursos.” 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


Entrave ambiental prejudica expansão do setor elétrico brasileiro Gisele de Oliveira

A

Fotos: Itaipu Binacional

Agência Canal Energia

questão ambiental continua sendo um dos entraves para os investidores no setor elétrico. As dificuldades e seus impactos têm sido motivo de debates e negociações entre os agentes e órgãos ambientais e governamentais, com o intuito de minimizar os custos de implantação dos empreendimentos. Porém, a preocupação maior dos agentes tem sido com a cobrança de compensação ambiental e as condicionantes sociais inseridas nas exigências de concessão de licenças ambientais. “A legislação atual não prevê limite máximo para compensação ambiental, além de não trazer definições específicas para impactos sociais. O resultado são distorções na fixação de cobranças de compensação ambiental e nas exigências feitas para concessão de licenças ambientais”, comenta Alacir Schmidt, coordenadora do Comitê de Meio Ambiente da Associação Brasileira de Concessionárias de Energia Elétrica - ABCE. 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006


Por falar em cobrança de compensação ambiental, como estão as negociações para definição de um limite máximo para essa cobrança? Entendemos que se uma lei ordinária fixou o limite mínimo de 0,5%, uma mesma lei em igual grau hierárquico deverá fixar o limite máximo, bem como a forma de se calcular esta variação. O mais preocupante é saber qual será este valor máximo. Atualmente, a discussão sobre a fixação do teto máximo está submetida ao Congresso Nacional, no projeto de lei nº 4.082/2004, mas não conseguimos entender o motivo para um aumento tão elevado como está sendo proposto, podendo chegar a até 1.000% do percentual que vinha sendo praticado no setor a mais de uma década. Desconhecemos a razão para isto, visto que a compensação ambiental cobrada pela implantação de empreendimentos com significativo impacto ambiental não é a única fonte de recursos para as unidades de conservação do país. Além do mais, sempre foi possível criar unidades de conservação com investimentos de 0,5% do valor dos empreendimentos.

Foto: Arquivo Pessoal

A questão ambiental ainda é um obstáculo para os empreendedores do setor. O que tem sido feito para tentar melhorar essa situação? Como estão as conversas com os órgãos competentes? A questão ambiental é um dos maiores obstáculos para a viabilização dos empreendimentos do setor, pois sem licença ambiental os projetos ficam paralisados. A ABCE tem se empenhado em promover eventos para discutir a questão e conscientizar os envolvidos sobre as dificuldades enfrentadas para licenciar empreendimentos. Exemplo disso é que, recentemente, a associação realizou o “II Seminário Energia e Meio Ambiente – Perspectivas Legais”, que reuniu cerca de 270 magistrados federais. No evento, foram apresentados os planos e discutidas as dificuldades de licenciamento dos empreendimentos de geração e transmissão. A ABCE também tem buscado intensamente uma solução justa e adequada para a fixação dos valores da compensação ambiental relativa às unidades de conservação, combatendo o exagerado aumento que está sendo proposto pelo Ibama, sem justificativa técnica e legal. O aumento proposto, e até mesmo já cobrado de alguns empreendimentos, chega a 600%. Neste aspecto, já foi enviado documento à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e estão sendo adotadas ações com a Confederação Nacional da Indústria, Congresso Nacional e Ministério de Minas e Energia, dado o risco que os altos índices a serem fixados poderão acarretar aos empreendimentos do setor.

Alacir Schmidt, coordenadora do Comitê de Meio Ambiente da Associação Brasileira de Concessionárias de Energia Elétrica ABCE.

“(...) o setor elétrico tem questionado as muitas condicionantes de licenças ambientais. Entendemos que essa situação precisa ser normatizada, pois está gerando insegurança jurídica aos investidores”.

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Quanto os custos de implantação das usinas já aumentaram com a cobrança de compensação ambiental? Esses custos sobem na mesma proporção que o aumento da compensação ambiental para unidades de conservação. Por exemplo, temos empreendimentos hidrelétricos, cuja concessão foi licitada quando se aplicava 0,5%. Todo o planejamento foi feito com este percentual. Agora, com o pretendido aumento para 3% ou 5%, haverá um ônus muito grande para o empreendimento. Outro aspecto a ser considerado é que a compensação ambiental para unidades de conservação não é a única forma de compensação que os empreendimentos fazem. É apenas mais uma, além das medidas mitigatórias adotadas pelas hidrelétricas, termelétricas, linhas de transmissão e pelo segmento de distribuição. Porém, o mais sério disso tudo é que esta cobrança, na forma como está delineada na metodologia do Ibama, pode inviabilizar empreendimentos, uma vez que desestimulam os investidores ou oneram as concessionárias de energia. Há a possibilidade de definir como limite máximo a cobrança de 3% de compensação ambiental. O que a senhora acha dessa possibilidade? A possibilidade existe, mas não há justificativa para este número. Fixar em 3% significa atribuir um aumento de 600% sobre o valor praticado de 0,5% desde 1987. Não entendemos porque não praticar aumentos mais razoáveis. Não vemos nenhuma justificativa consistente, a não ser a criação de uma fonte arrecadatória, mas com conseqüências sérias para empreendimentos de utilidade pública, como é o caso do setor elétrico. Como a senhora percebe a questão socioambiental dos empreendimentos do setor elétrico brasileiro e o que precisa mudar? Hoje, muitas das deficiências nas áreas sociais e de infraestrutura das regiões onde serão inseridas as usinas são cobradas dos empreendedores, mesmo sem ser impactos provocados pela implantação do empreendimento. De modo geral, estas “pendências” aparecem como condicionantes das licenças ambientais, inseridas através de pressões dos movimentos sociais ou Ministério Público, sem respaldo legal. O resultado é que, atualmente, na concessão das licenças ambientais, os empreendedores do setor são surpreendidos com exigências de solução de problemas que, em sua grande maioria, não são de sua responsabilidade, mas do poder público. Essas exigências acabam gerando custos, que podem acarretar a cassação ou suspensão da licença, ou ainda a não renovação dela. Este processo está totalmente distorcido e não há limites nem definições na lei sobre o assunto. Em função disso, o setor elétrico tem questionado as muitas condicionantes de licenças ambientais. Entendemos que essa situação precisa ser normatizada, pois está gerando insegurança jurídica aos investidores. 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006


DECRETO 201/67

APLICÁVEL OU NÃO NOS CASOS DE INFRAÇÕES POLÍTICO-ADMINISTRATIVAS DE PREFEITOS E VEREADORES? David R. Salles Luciano Volks

Foto: Arquivo

Advogados do Escritório Vanuza Sampaio

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enômeno assaz recorrente no atual contexto político nacional diz respeito aos inúmeros processos versando sobre a cassação ou a perda do mandato dos políticos, a demandar, em cada caso, procedimentos distintos. Sob este diapasão, ainda nos albores de 2000, a Revista Época (edição de 24 de janeiro, p.36), informou que mais de 2.000 prefeitos brasileiros são ou já foram processados por corrupção, rotina que nas cidades de interior tem o condão de impedir diversas reeleições. Como é bem de ver, a cassação do mandato (rectius,

crime de responsabilidade) é conseqüência da condenação judicial passada em julgado e não se confunde com perda do cargo, atribuição da Câmara de Vereadores, nos limites da lei orgânica, conforme será adiante exposto. Deveras, a denúncia em face do cometimento de crimes de responsabilidade, que, a bem da verdade, não deixam de ser comuns e descritos no art. 1º do Decreto 201/67, compete ao Ministério Público. Desta sorte, não detêm as Câmaras Municipais competência para autorizar, ou não, a persecutio criminis tal qual o Parquet, verdadeiro senhor da Ação Penal Pública. 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


A esse respeito, já teve oportunidade de decidir o Superior Tribunal de Justiça. “Penal. Prefeito Municipal. Crime de responsabilidade Art. 1º. Dl 201/67. I - Os crimes previstos no art. 1º do DL nº 201/ 67 configuram, na melhor exegese, crimes funcionais, sujeitos a processo e julgamento pelo Poder Judiciário, independentemente de autorização do órgão legislativo

“Os crimes previstos no art. 1º do DL nº 201/67 configuram, na melhor exegese, crimes funcionais, sujeitos a processo e julgamento pelo Poder Judiciário, independentemente de autorização do órgão legislativo municipal. Inexiste impedimento legal da instauração ou prosseguimento da ação penal após a extinção do mandato de prefeito. Precedente do STF.” municipal. Inexiste impedimento legal da instauração ou prosseguimento da ação penal após a extinção do mandato de prefeito. Precedente do STF. II - O art. 4º do DL nº 201/67 elenca as infrações políticoadministrativas, em que se prevê a perda do mandato, sendo julgadas pela Câmara Municipal. A cassação do exercício do cargo de prefeito impede a instauração ou o prosseguimento do processo político-disciplinar, regulado no art. 5º do referido Decreto-Lei, em face da perda do objeto. III - Recurso provido.” (RESP nº 38469/SC, 6ª Turma, Rel. Min. Vicente Leal, in RSTJ, vol. 86, p. 383. Original sem grifos) Nesta diretriz hermenêutica, o Supremo Tribunal Federal também já se pronunciou no Recurso de Habeas Corpus nº 49.204/SP, primeira Turma, com voto capitanea da eminente relatoria do Min. Amaral Santos, DJ 10/3/72 p. 6.142. Estabelecida a distinção entre cassação de mandato e 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006

perda do cargo, alça-se necessária a seguinte indagação: para os casos de perda do cargo, pode a Câmara dos Vereadores lançar mão do decreto 201/67, que descreve as infrações político-administrativas em seu artigo 4º? O Professor Emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Dr. Múcio Ribeiro Dantas aduziu que o Decreto-Lei n.º201/67 foi revogado pela Constituição de 1988 quanto ao estabelecimento da competência à Câmara Municipal para o julgamento do Prefeito, nas infrações político-administrativas. Caberia, na ótica do renomado publicista potiguar, só ao Tribunal de Justiça julgar prefeito e vereadores, seja por crime comum, de responsabilidade ou mesmo nas chamadas infrações político-administrativas. Tal entendimento, no sentido radical da revogação total do Decreto 201/67, em que pese respeitável, não grassa muitos defensores, destacandose os renomados juristas Victor Nunes Leal e Manoel Gonçalves. No entendimento do Professor Manoel Gonçalves não se poderia dar à Câmara, órgão legislativo, função jurisdicional, sem dispositivo constitucional expresso. Nem tanto ao mar e nem tanto à terra, o Colendo Supremo Tribunal Federal entendeu ser o Decreto-Lei n.º 201/67 válido, em parte, perante a Constituição de 1988 que, ampliando a autonomia dos Municípios, a estes entregou a tarefa de disciplinar o processo de perda de mandatos municipais, bem como definir infrações político-administrativas, por meio de lei local, ou até mesmo na sua lei orgânica. Com efeito, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 29, conferiu relativa soberania ao município, atribuindo a ele ampla competência para editar sua Lei Orgânica Municipal. Por conseguinte, quando o assunto versar sobre sanções e restrições ao político e cidadão, não há que se conceber legislações conflitantes sobre a mesma matéria, isto é, não há de se falar na coexistência entre o decreto 201/67 e a Lei Orgânica, quando ambas disporem de forma contrária acerca da perda do mandato. A lei orgânica ou qualquer outra lei municipal é o bastante. Outrossim, preceitua o mestre Hely Lopes Meirelles, em lapidares linhas de sua festejada obra “Direito Municipal Brasileiro”, que o referido Decreto-Lei não está a ser aplicado totalmente.  “Os arts. 4º a 8º do Decreto-Lei nº. 201/67 foram revogados pelos artigos 29 e 30 da Constituição Federal de 1988, devendo essa matéria ser regulada pela Lei Orgânica do Município. Tais sanções podem ser estabelecidas ou modificadas por norma municipal e, como imposições punitivas, devem ser interpretadas restritivamente e aplicadas tão-só aos fatos típicos de sua incidência, observando o devido processo legal.” O processo de cassação de mandato deve ser regulado pela legislação local. Contudo, na ausência dessa norma municipal, pode-se seguir o disposto no art. 5o do Decreto-Lei 201/67”. Nesta toada, tem-se o RE 301.910-4, do Colendo


“Por outro lado, em atenção ao direito do munícipe de apresentar denúncia para cassação de mandato eletivo, sobreveio a Lei Federal nº 4.717/65 (Ação Popular), cuja ratio essendi é garantir o amplo acesso a qualquer um do povo à prestação jurisdicional.”

Supremo Tribunal Federal, desafiado através da seguinte ementa do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul: “Argüição direta de inconstitucionalidade - art. 76 da Lei Orgânica Municipal de Selvíria - infrações políticoadministrativas - tipificação – possibilidade - julgamento político - interesse local - art. 29 da Constituição Federal - revogação dos artigos 4º a 8º do Decreto-Lei 201/67 improcedência do pedido – constitucionalidade da norma. Os artigos 4º a 8º do Decreto-Lei 201/67 foram revogados pelos artigos 29 e 30 da Constituição Federal de 1988, devendo essa matéria ser regulada pela Lei Orgânica do Município. As infrações político-administrativas do prefeito e as faltas ético-parlamentares dos vereadores, ensejadoras da cassação de seus mandatos, não constituem matéria processual, porquanto a cassação tem natureza parajudicial e caráter político punitivo, e, por isso mesmo, é de interesse local que sejam afetas à competência da lei orgânica municipal. Do supramencionado aresto do STF, extrai-se o seguinte trecho da brilhante relatoria da Ministra Ellen Gracie: De qualquer sorte, mesmo que superados os óbices de admissibilidade do recurso extraordinário, observo que, no mérito, a decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul manifesta entendimento consentâneo com o que decidido pelo Plenário da Corte.(rel. Min. Marco Aurélio, unânime, DJ de 08.06.2001). Daí deflui a conclusão de que cabe a utilização do referido decreto lei, apenas se omissa for a Lei Orgânica do Município quanto ao processo de perda de mandato de prefeito ou vereador, o que revela-se cada vez mais raro, dada a existência de lei orgânica em quase todos os municípios brasileiros. Assim sendo, se previsto na lei municipal o procedimento e sua tramitação contra prefeito ou edil, a instauração de um processo visando à perda do mandato não pode se socorrer da subsidiariedade do Decreto-Lei nº. 201/67, que dava a qualquer cidadão o direito de iniciar o processo. Quanto à aplicabilidade do Decreto-Lei 201/67 em caso de omissão da legislação municipal, cumpre trazer a colação recente julgado do Tribunal de Justiça Fluminense,

da relatoria do eminente Desembargador Antonio Saldanha Palheiro, 13ª Câmara Cível, unânime, que, como se julgasse o caso, assim decidiu: “A carta política de 1988 reconheceu o Município como ente federativo, concedendo-lhe a respectiva autonomia administrativa. Por tais circunstâncias, apesar do reiterado reconhecimento da não revogação do Decreto-lei 201/67 com o advento da Constituição Federal, a tramitação procedimental dos processos administrativos deve observar as normas municipais, que prevalecem sobre o mencionado Decreto-lei, o qual é aplicado apenas nos casos omissos. Negado provimento ao recurso. (TJRJ, 2002.001.21272, Julgado em 14/05/2003)” Por outro lado, em atenção ao direito do munícipe de apresentar denúncia para cassação de mandato eletivo, sobreveio a Lei Federal nº 4.717/65 (Ação Popular), cuja ratio essendi é garantir o amplo acesso a qualquer um do povo à prestação jurisdicional. Por todo o exposto, infere-se que o uso irrestrito do referido decreto, com a aplicação de todos os seus artigos, consubstancia inequívoca subversão da ordem jurídica, visto que o mesmo foi manifestamente suplantado pela legislação superveniente. Conclusivamente, alça-se inquestionável a evidente revogação dos arts. 4º a 8º do Decreto-Lei nº. 201/67 pelos artigos 29 e 30 da Constituição Federal de 1988, que atribuem competência aos municípios para legislar sobre matérias antes disciplinadas pelo Decreto. A Câmara dos Vereadores, através de um de seus representantes, pode instaurar processo de perda de mandato, desde que respeitado o procedimento previsto na Lei Orgânica ou em outra lei municipal afeta a tal matéria. E assim o Direito, como ciência mutável que é, progride com vistas a aperfeiçoar os mecanismos de composição dos conflitos, em um movimento inexorável, já contemplado por Luis de Camões em uma de suas belas passagens: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se a confiança: todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades.” 2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


Foto: Arquivo

FÓRUM

Escola Nacional de Magistratura promove Colóquio em Lisboa

Da esquerda para a direita: Des. Edson Aguiar, TJ/RJ; Professor Francisco Segado; Des. Luis Felipe Salomão, Diretor da Escola Nacional de Magistratura/AMB; Professor Jorge Miranda; Des. Amaury Moura, Presidente do TJ/RN.

“Pensar o Judiciário a partir da evolução do Direito Constitucional e, especialmente, do controle de constitucionalidade, certamente é identificar nossos problemas e conhecer e imaginar soluções para o Poder, de modo a criar um modelo cada vez melhor de formação de juízes”. A conclusão é do diretor da Escola Nacional da Magistratura (ENM), desembargador Luis Felipe Salomão, que de 3 a 6 de julho debateu, na cidade de Lisboa, em Portugal, o tema Contencioso Constitucional, no Colóquio Internacional de Direito Constitucional. O primeiro evento de porte internacional promovido pela ENM, em parceria com a Universidade Clássica de Lisboa, em Portugal, reuniu 28 magistrados, entre diretores de escolas de magistratura e representantes de associações de 12 estados do Brasil. O tema principal do Colóquio foi debatido por constitucionalistas brasileiros, portugueses e espanhóis. Foram palestrantes os professores Jorge Miranda, da Faculdade de Direito das Universidades Clássica e Católica de Lisboa, Francisco Segado, da Universidade Complutense

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de Madri, o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Edson Vasconcelos e o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que encerrou o evento em Lisboa. Convênios Como resultado concreto do Colóquio de Lisboa, a AMB firmou dois convênios da maior importância para os magistrados associados da entidade em Portugal; para cursos de doutorado, com a Universidade Nova de Lisboa; e, na Espanha, para formação de equipes gestoras de escolas judiciais, como a Escola Judicial da Espanha, em Barcelona. No Brasil foi firmado outro convênio com o Ministério da Justiça e o Instituto Brasileiro de Direito Processual, conforme informou o seu presidente, Desembargador Luiz Felipe Salomão em circular encaminhada aos associados da entidade.


REVISTA JUSTIÇA & CIDADANIA RECEBE HOMENAGEM

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m cerimônia no Theatro Municipal do Rio De janeiro, a Associação dos Dirigentes de Vendas e Marketing do Brasil – ADVB Rio - realizou no dia 07 de agosto, a entrega do Prêmio Top Social 2006. O evento reuniu, além dos representantes das organizações ganhadoras, autoridades, executivos e diversas personalidades do cenário político, jurídico e empresarial. O presidente da ADVB, Aleksander Santos, declarou que a Responsabilidade Social é a forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da organização com todos os públicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas compatíveis com o desenvolvimento sustentável da Foto: Arquivo

sociedade. “A ADVB é uma entidade preocupada em destacar exemplos que prezam pela preservação de recursos ambientais e culturais para gerações futuras, respeita a diversidade e promove a redução das desigualdades sociais”, completou Aleksander. Além do reconhecimento às empresas ganhadoras do “Top Social”, a ADVB destacou publicamente seu agradecimento aos veículos de comunicação que apoiaram o projeto da entidade. A Revista Justiça e Cidadania foi representada por seu Diretor Executivo, Tiago Santos Salles, (foto).

Newton De Lucca, Magistrado, Professor e Poeta autografa livros de poemas na APL

Foto: Arquivo

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autor recebeu expressivo número de amigos, entre poetas, escritores, professores, magistrados, advogados, alunos e ex-alunos, além de numerosos membros da própria Academia Paulista de Letras, durante o coquetel de lançamento dos seus 7º e 8º livros de poemas, “Pintando o Sete” e “Odes e Pagodes”, ambos prefaciados pelo escritor Alfredo Bosi, professor titular de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras. Indagado na ocasião sobre como descreveria sua própria poesia, disse o professor Newton De Lucca: “essa é uma tarefa que, segundo penso, ficaria mais adequada ao crítico de arte do que a mim mesmo. Será sempre um pouco difícil a alguém falar de seu próprio trabalho. Mas, de toda sorte, diria que ele se caracteriza por seu nítido caráter antropológico, no qual a ambivalência trágica do ser humano desponta na linha de frente do exercício poético. Utilizo-me muito da rima e da paranomásia para exprimir a visão satírica e humorística que tento fazer da vida contemporânea”.

2006 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49


Foto: Arquivo

IN MEMORIAM

A

violência perpetrada contra o Desembargador Mello Porto, no Rio de Janeiro, fez com que voltássemos a refletir sobre a onda de crimes que assola as grandes cidades brasileiras. A ANDES nesta oportunidade não pode deixar de lançar uma palavra de protesto sobre tão cruel assassinato. É preciso que a população brasileira se una para fazer frente a tais despautérios, já que as autoridades responsáveis (ou irresponsáveis) nada fazem para coibir esses descalabros. É hora de protestarmos, para que a morte injustificada do nosso Desembargador sirva, ao lado da tristeza que trouxe a todos nós, como um marco que justifique a adoção de providências imediatas para o combate ao crime. Todos sabemos que a segurança pública passa por todos os níveis administrativos. O estado membro, teria de tratar do reaparelhamento da nossa polícia, quer no plano do pessoal quer no material. É hora de destinarmos recursos para esse desideratum. Ao governo municipal cabe ampliar as guardas aparelhando-as para o combate aos malfeitores. E à União compete implantar medidas de curto e médio prazo. À Polícia Federal, tão competente quando se trata de explorar escândalos, junto aos Estados, coibir o tráfico de armas e de munições que chegam às mãos dos malfeitores. De outro lado, compete também à União estabelecer políticas públicas destinadas a reduzir as grandes desigualdades sociais de nosso país, vergonha que pesa sobre todos nós: moradia, educação, emprego, são temas sempre atuais sobre o que nada se fez nas últimas décadas. A pobreza crescente, como todos sabem, é terreno fértil para a proliferação de todas essas mazelas. Vamos aproveitar o período eleitoral para cobrar providências nessas áreas. O que não é possível é que as pesquisas indiquem vitórias eleitorais retumbantes de candidatos que nada fizeram para melhorar essas condições. É aí que entra a participação da sociedade. Vamos votar em candidatos que se comprometam seriamente com essas metas. Basta de palavras vãs e demagógicas. Enquanto os dirigentes não se debruçarem sobre esses temas, vidas humanas continuarão sendo sacrificadas de forma tão cruel. 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2006

Quero lembrar aos leitores que o Desembargador Mello Porto não vinha de nenhuma noitada, happy hour ou coisa parecida. O nosso querido Desembargador foi assassinado às 19 horas quando retornava ao recesso do seu lar depois de um cansativo dia de trabalho no Tribunal para o qual tanto contribuiu com sua coragem e determinação de bem servir. Que sua morte sirva também para sacudir a cabeça dos homens de bem deste país e induza a uma mobilização capaz de transformar a demagogia em medidas efetivas de controle. O Brasil está cansado de tanta violência. A própria Colômbia, onde se chegou a estabelecer-se um governo paralelo, já começa a mostrar sinais de recuperação. A população brasileira precisa cobrar das autoridades as providências indispensáveis. Não basta, segundo um candidato à Presidência, dizer que a Segurança Pública será prioridade de seu governo. É preciso cobrar projetos destinados ao enfrentamento da violência. E, mais do que qualquer outra coisa, o combate ao crime, como já se disse, depende de uma mobilização nacional: União, Estados, Municípios e os organismos diretamente ligados à repressão devem estar irmanados. A violência resulta da falência total de todos os segmentos sociais. A educação, a saúde, o emprego, as desigualdades sociais, tudo tem que ser reparado. A violência é o retrato de uma sociedade. Lidar com os efeitos de tudo isso é o que estamos fazendo, numa atividade semelhante à de enxugar gelo. Afinal, a pergunta que se deve fazer é a seguinte: queremos ou não uma sociedade melhor para nossos filhos?

Des. Carpena Amorim Presidente da ANDES


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