EDIÇÃO 75 • OUTUBRO de 2006
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12 MEIOS ALTERNATIVOS PARA O RESSARCIMENTO
ASSÉDIO MORAL
Foto: ARTLUZ STUDIO ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR
TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO
FERIADO NA PRAIA
EDISON TORRES DIRETOR DE REDAÇÃO JOSÉ LUIZ COSTA PEREIRA DIRETOR DE MARKETING DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
24 Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES
VINÍCIUS GONÇALVES EXPEDIÇÃO E ASSINATURA
Antônio souza prudente
CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO
aurélio wander bastos
EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA,50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-906. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429 CNPJ: 03.338.235/0001-86
carlos antônio navega
SUCURSAIS
CESAR ASFOR ROCHA
SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611
DALMO DE ABREU DALLARI
BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 - BLOCO E Ed. CENTRAL PARK FONES: (61) 3327-1228 / 29
antonio carlos Martins Soares Arnaldo Esteves Lima Bernardo Cabral carlos ayres britTo
SUMÁRIO CARGA BUROCRÁTICA E CARGA TRIBUTÁRIA
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EDITORIAL
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CAPA
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A MORALIDADE NO REGISTRO DE CANDIDATOS
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O JUDICIÁRIO E OS MENOS FAVORECIDOS
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OSCAR NIEMEYER RECEBE O DOM QUIXOTE
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RENÚNCIA DE JÂNIO QUADROS
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FIRME COMBATE À CORRUPÇÃO
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FURTO E FRAUDE
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A DEMOCRACIA E A ANARQUIA INSTITUCIONALIZADA
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VISITA ÍNTIMA
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FÓRUM DE NOTÍCIAS
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entrevista: “não podemos ser o país do faz-de-conta”
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Carlos mário Velloso CELSO MUNIZ GUEDES PINTO
Darci norte Rebelo denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins josé augusto delgado
CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL (61) 9674-7569
JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO
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Manoel CarpeNa Amorim
ISSN 1807-779X
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CONSELHO EDITORIAL
DEBORA OIGMAN EDITORA DE ARTE
PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP: 90010-272 TEL (51) 3211 5344
CONTRATO DE TRANSPORTE
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CARGA BUROCRÁTICA E CARGA TRIBUTÁRIA Ives Gandra da Silva Martins Advogado Membro do Conselho Editorial
O
governo eleito para o quadriênio 2007 terá que enfrentar dois problemas sérios para poder permitir que o Brasil volte à estrada de uma nação emergente viável, a saber: o peso da carga burocrática, no dizer de Alencar Burti, e o peso da carga tributária. Quando se fala no país em reforma tributária para corrigir os problemas para o desenvolvimento, percebe-se a pobreza fantástica de soluções, quase todas elas objetivando aumentar ainda mais o peso dos tributos. Ocorre que a Federação brasileira não cabe dentro do PIB. As esclerosadas estruturas burocráticas multiplicadas por mais de 5.500 entidades federativas (União, estados, DF e municípios) sugam todos os recursos nacionais. Não sem razão, por ordem do crescimento ocorrido em 2005, na América Latina, a Venezuela foi a 1ª, com 9% (o petróleo corrige qualquer erro); a Argentina a segunda, com mais de 8%; Chile, Peru, Uruguai ficaram em torno de 6%; a média da América do Sul foi de 5%; da América Latina e de Cuba, 4,3%; Colômbia 4%; Bolívia 3,8%; México e América Central mais de 3%; Brasil menos de 2,5% e Haiti 1,5% (Fonte Cepal). Por outro lado, o mundo deverá progredir 4,9%, em 2006, e o Brasil, 3,2% (fonte: “The Economist”). Quanto aos tributos (fonte: “The Economist”), o Brasil, para uma renda per capita pouco superior a 2.500 dólares, é o de mais alta carga tributária, visto que a Polônia e Hungria, paises em que ela é pouco superior, ostentam uma renda de quase 5.000 dólares. Os demais, Israel, Itália, Canadá, França, Holanda, Suécia, Áustria e Dinamarca, Reino Unido e Alemanha, têm renda per capita que varia entre 16.500 e 35.000 dólares, estando a média em torno de 43% (variação entre 37% no Canadá e Alemanha, e 52% na Suécia). O Japão, que tem renda per capita de 23.000 dólares, apresenta uma carga de 21% e os Estados Unidos, com a renda per capita de 33.000 dólares, de 30%. Vale dizer, as duas maiores economias do mundo têm, respectivamente, 21% e 30% de carga tributária contra os 36% do Brasil. Ocorre que o peso destes tributos diluem-se, na 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
esclerosadíssima máquina administrativa que multiplica as exigências para qualquer cidadão, obrigando-o a ingressar, de madrugada, em filas para obter senhas, a fim de ser atendido pela burocracia brasileira. Além disso, qualquer empresa brasileira leva mais de 100 dias para ser criada; quando, na China, cria-se uma empresa em menos de uma semana. À evidência, com este quadro dantesco de alta carga tributária, o país necessariamente cresce pouco e pode crescer ainda menos, no próximo quadriênio, em que as perspectivas da economia mundial não são tão favoráveis. Tudo isto preocupa, pois começa o Brasil a ser ultrapassado por muitos países emergentes e a ser considerado uma nação retrógrada, desfeitos os sonhos de grande potência. O governo, portanto, no novo quadriênio, terá que pensar em diminuir o peso dos tributos e o peso da máquina, a começar pelo tamanho desta, pois, sem reduzi-la, qualquer reforma tributária tornar-se-á inviável. E, para que isto seja possível, é necessário cortar as despesas, e tornar eficiente o estamento estatal, como começa a ocorrer em outros países. Caso contrário, dias ainda piores virão, com mais tributos, mais exigências burocráticas, menos desenvolvimento e mais desemprego.
Foto: Sandra Fado
O
eminente jurista, ministro Enrique Ricardo Lewandowski, com a responsabilidade do exercício do STF, deixou escrita na edição de setembro último, uma magnífica e didática dissertação sob o título Reflexões em torno do princípio republicano, baseada em preceitos de Rousseau, Maquiavel e, inclusive, em ensinamentos dos constitucionalistas Madison, Hamilton e Joy. Tais ensinamentos servem como paradigma e concepção do estado republicano que vivenciamos e almejamos atingir, baseados nos fundamentos ditados pela Constituição de 1988. Ensina, ainda, o eminente jurista e mestre de direito, lembrando “as obrigações para com a comunidade como ocorria na Roma antiga ou na Alemanha sob a Constituição de Weimar, que enunciava um rol de deveres dos cidadãos”, como que vaticinando de forma otimista, a reciprocidade e conquista dos direitos com a obrigação dos deveres cumpridos. O enunciado acima vem a propósito das eleições proporcionais de 1º de outubro, cujos resultados demonstram que efetivamente há o despreparo cívico do eleitor e a inconcebível tolerância para com os malversadores do dinheiro público. A malfadada reeleição introduzida extemporaneamente na Carta Magna, evidenciando capricho e interesse pessoal, trouxe e continua trazendo em seu bojo as nefastas conseqüências da corrupção e mazelas que afligem vergonhosamente a nação. Assim, o segundo período do governo do presidente Fernando Henrique, alinhando-se às exigências do FMI, com a inútil privatização das estatais para pagamento de juros internacionais e elevando estratosfericamente a dívida nacional para 700 milhões de dólares, comprova a calamidade que é a prorrogação do mandato através de reeleição. A maioria dos votos para o presidente Lula no primeiro turno reflete a força da maioria democrática, mas também fica evidenciado, pelo segundo turno, que, nestes quatro anos de governo, houve despreparo para administrar os bens públicos, além de terem sido convocadas para o governo pessoas sem as condições morais e éticas devidas para o desempenho das funções. Resta concluir que a sociedade pode estar eqüidistante, mas não indiferente.
Orpheu Santos Salles Diretor-Editor 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5
EDITORIAL
Eleições – a triste realidade
ENTREVISTA
Carmem Fontenelle: “O fato de ser mulher apenas aumenta a minha responsabilidade como presidente da OAB/RJ”
A advogada Carmem Fontenelle, candidata à presidência da OAB/RJ, disse sentir-se orgulhosa de ter sido escolhida para representar seu grupo nas próximas eleições da entidade, principalmente pelo fato de ser do sexo feminino, o que demonstra o peso que as mulheres têm hoje na advocacia.
Como a senhora vê a campanha movida pelo presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados, Roberto Busato, em defesa da moralidade pública? Na verdade, o presidente Busato sintetiza as aspirações e anseios de todos os advogados e de toda a sociedade civil. Por posicionamentos firmes e claros em defesas da ética profissional, da dignidade pessoal e da moralidade da coisa pública é que a OAB ao longo de seus 78 anos de existência se firmou como porta-voz do povo brasileiro. Esta luta diária e permanente é que fez a OAB no princípio do ano ser considerada, por 68% da população brasileira, como a entidade mais ética do país. Recentemente, a OAB teve uma grande vitória no CNJ, ao conseguir anular vários atos administrativos do Tribunal de Justiça da Bahia que não tinham o respaldo da transparência, princípio básico que deve nortear todas as atividades da Justiça, em particular, e dos demais poderes. 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
A ministra Ellen Gracie está na presidência do STF e o número de juízas em todas as instâncias e de profissionais do sexo feminino tem aumentado consideravelmente. A que a senhora atribui esse fato? A conquista das liberdades da mulher vem ocorrendo de forma progressiva ao longo dos anos, em todos os segmentos da sociedade civil. Na advocacia brasileira, Mirthes Gomes de Campos, há 100 anos atrás, teve que travar uma luta, inclusive judicial, para ser reconhecida como advogada. A partir daí, a mulher competente foi se firmando na área da advocacia e dentro do poder judiciário e é claro que o aumento deste número nas atividades judiciais se deve a todo o somatório destas mulheres do passado. A ministra Ellen Gracie, por sua vida pessoal e competência profissional, vem apenas coroar toda esta trajetória feminina que, ao longo do século XX, revolucionou e mudou a cara do mundo. Hoje as mulheres, no mundo inteiro, do país mais pobre ao mais rico, ocupam
Foto: Artluz Studio
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melhor exemplo é a ministra Ellen Gracie), confirma o papel de igualdade que as mulheres vêm conquistando ao lado dos homens. Como presidente da OAB/RJ farei uma gestão endereçada a todos os advogados do estado do Rio, pautada na valorização do profissional, no aprimoramento do respeito às prerrogativas da classe, na assistência ao advogado recémformado e na ampliação das conquistas que os advogados já obtiveram durante a gestão de Otávio Gomes. Cabe destacar que estarei sempre vigilante na defesa da intransigente transparência da administração pública. O fato de ser mulher apenas aumenta minha responsabilidade como presidente da OAB/RJ, pois sendo a primeira a ocupar este cargo, terei que reafirmar a competência feminina em representar toda a sociedade em cargos desta importância. Por ter sido escolhida a candidata de meu grupo, pessoalmente, já me sinto honrada com tal distinção. Mas todos podem ter a certeza que, ao final da minha gestão os advogados terão orgulho da mulher que, elegeram como presidente da OAB/RJ.
“A Ministra Ellen GracIe, por sua vida pessoal e competência profissional, vem apenas coroar toda esta trajetória feminina que, ao longo do século XX, revolucionou e mudou a cara do mundo.”
lugares de mando, são força de trabalho relevante, chefes de família, estadistas, e, por seu intelecto, competência, força pessoal, sensibilidade e ética, abriram espaços antes ocupados apenas por homens. Lutam hoje ao lado deles em todos os níveis da vida, do pessoal ao profissional, dividindo tarefas, responsabilidades, realizações, projetos e sonhos.
A senhora vai entrar na história da OAB/RJ, caso vença as eleições, como a primeira mulher a ocupar o cargo de presidente da entidade. Como a senhora vê esse fato? Apenas por ter uma mulher como candidata à presidência da OAB/RJ, nosso grupo demonstra que se renova em suas idéias e propostas a cada eleição. Uma mulher presidente da OAB/RJ (como tem acontecido em diversos ramos da sociedade e, como dissemos acima, no campo do direito o 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
O que a levou a escolher a advocacia como profissão? Sou neta, filha e irmã de advogados. Meu avô e meu pai foram presidentes da OAB/RJ, meu escritório de advocacia foi fundado há quase cem anos e com toda esta história familiar dedicada à advocacia e à OAB, nunca nenhum de nós esteve envolvido em qualquer desmando ou ato de corrupção. Minha trajetória familiar avaliza meu futuro. Quando entrei na faculdade comecei a estagiar e a freqüentar o fórum da capital. Apaixonei-me pelo direito, pela militância; advogar é minha vida, os fóruns e a OAB são minhas casas. Sou advogada militante, na área de família há mais de 30 anos, ingressei na OAB convidada pelo então presidente Nilo Batista para integrar a Comissão de Direitos Humanos e desde aquela época venho desempenhando várias funções dentro de nossa instituição até chegar a vice-presidente de Otávio Gomes, desde sua primeira eleição. Portanto, sei exatamente quais as necessidades e aspirações dos advogados militantes, por ser uma deles.
Quais são as principais reivindicações das mulheres perante o Judiciário e a OAB/RJ? Ainda existem preconceitos a ser superados? As principais reivindicações que tenho recebido não são exclusivamente de assuntos afeitos às mulheres, mas questões de interesse de toda a classe. Cabe destacar que até o final do ano, pelo que tenho percebido dentro da OAB, o número de mulheres advogadas será o mesmo dos homens advogados. Novas e antigas advogadas se inseriram no conjunto de profissionais, não existindo reclamações específicas. Quanto à questão do preconceito de mulheres advogadas, este existiu no passado. Atualmente, as mulheres já firmaram seu espaço
no mercado de trabalho, inclusive naquelas atividades que dependem de concurso público como a magistratura, promotoria e defensorias públicas, onde as mulheres cada vez mais estão presentes. Quanto à participação das mulheres pelo quinto constitucional, diversas já se inscreveram e foram indicadas nas listas sêxtuplas, mas não foram aproveitadas pelo tribunal correspondente ou mesmo pelo chefe do executivo. Mas certamente, pelo que se tem constatado, entendo que a indicação de uma mulher pelo quinto dos advogados será apenas uma questão de tempo.
Foi sancionada em 7 de agosto último a lei 11.340, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica contra a mulher. Essa lei se basta para solucionar esse terrível problema? A lei “Maria da Penha”, lei 11.340/06 é uma vitória de muito relevo para a sociedade, as famílias e as mulheres. O olhar específico sobre a questão da violência doméstica retira esta realidade terrível da generalidade e permite um aprimoramento do sistema jurídico na abordagem do problema concreto. Segundo pesquisas, a cada 15 segundos uma mulher é agredida em nosso país. E estudos comprovam que crianças criadas em lares violentos tendem a repetir no futuro este comportamento, não apenas no âmbito familiar, mas na sociedade. Esta lei propicia a interrupção do circulo vicioso, na medida em que prevê não só a coerção do agressor, mas também, a reabilitação da vítima, através do atendimento médico e psicológico adequados e mecanismos contundentes de proteção. Com a aprovação da lei, o Brasil atende às recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Ela representa um passo significativo para assegurar à mulher o direito à sua integridade física, psíquica, sexual e moral. Nós conquistamos direitos em diversas áreas, mas a implantação deles sempre foi muito difícil. As profissionais do direito tem um papel importante na viabilização dessas conquistas, mas precisam tomar mais conhecimento de seus direitos. Um dos princípios do direito é a luta pela igualdade social. O profissional do direito deve se aproximar mais de nossa realidade e mostrar as causas femininas de forma mais qualificada. Por isso, me empenharei à frente da OAB/RJ para que seja cumprido o preceito legal que obriga a criação de uma vara especial no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para atender aos processos criminais de agressões às mulheres. Já existem delegacias especializadas em crimes contra as mulheres, mas a maioria das vítimas não procura a polícia para registrar suas queixas pois se sentem envergonhadas. Quando uma mulher encontra-se em situação de violência, fica muito vulnerável. É necessário que receba também atendimento psicológico. A lei tem um papel educativo, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido para sua plena implementação. Temos que lutar muito.
“Cabe destacar que até o final do ano, pelo que tenho percebido dentro da OAB, o número de mulheres advogadas será o mesmo dos homens advogados. Novas e antigas advogadas se inseriram no conjunto de profissionais, não existindo reclamações específicas.”
Como a senhora vê a ação dos Conselhos Nacionais de Justiça e MP? O controle externo do poder judiciário é válido? Os Conselhos Nacionais de Justiça e do MP são conquistas da sociedade brasileira, implantados pela Emenda Constitucional nº 45. Estes conselhos na prática trouxeram mais transparência na administração de suas áreas de atuação. Cabe relembrar o caso de nepotismo dos tribunais em todo o país e que o CNJ obrigou a demissão de parentes de magistrados empregados nos tribunais. Como advogada, fico orgulhosa pois este tema, que sempre foi jogado para debaixo do tapete, foi apresentado no CNJ pelo representante da OAB naquele conselho. Isto prova que tanto o Conselho quanto a OAB exercem seus papéis de fiscalização com vigor e empenho.
Como a senhora pretende compor o Conselho da OAB/RJ e quais serão suas atribuições? O Conselho da OAB representará todas as áreas de atuação do direito, bem como as regiões do estado. O Conselho será a síntese do pensamento dos advogados do estado do Rio e sua importância se traduz no contato diário com a presidência da OAB, no encaminhamento das soluções dos problemas específicos da classe. O Conselho também será o fomentador e gestor da política institucional da OAB naquilo que se refere à representação da sociedade civil e suas aspirações. Entendo que o Conselho da OAB é de fundamental importância para o sucesso da administração. Por isso, são escolhidos, dentre todos os advogados do estado, independentemente de qualquer outro critério, aqueles que se destacam em suas áreas de atuação: os éticos que possuem a experiência da militância profissional para representar o conjunto da advocacia fluminense. 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9
A moralidade no registro dos candidatos Aristóteles Atheniense Vice-presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil
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O
Tribunal Superior Eleitoral, em recente decisão, reformou julgado do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, que havia impedido o registro da candidatura de um dirigente esportivo, contra quem pesam vários processos ainda não solucionados definitivamente. Embora a diferença de votos, que importou a aceitação de sua inscrição, fosse escassa – um voto apenas –, o postulante não só foi atendido em sua pretensão, como também abriu caminho para que outros infratores afins viessem a pleitear o mesmo tratamento junto àquela Corte Superior. Sendo comum exigir-se atestado de bons antecedentes de quem concorre a cargos públicos e, até mesmo, privados, doravante tornou-se possível o registro de uma candidatura cujo titular é tido e havido como desonesto. E só não teve contra si uma decisão terminativa em face dos recursos sucessivos de que lança mão, com visível má-fé, tomado do propósito de evitar que suas condenações anteriores se tornassem coisa julgada. Mesmo não existindo na Constituição regra expressa recomendando o exame dos antecedentes, nos pleitos eleitorais, há de prevalecer o princípio maior, equivalente ao de uma cláusula pétrea: a vedação ao acesso à função legislativa de alguém moralmente incompatível com a atividade pública, capaz de pôr em risco os interesses da coletividade. É comum ouvir dizer que o entendimento contrário importaria negativa de vigência dos princípios da “presunção de inocência” e do “devido processo legal”. Mas, aqueles que assim entendem, admitem, implicitamente, que o “principio da moralidade” esteja em nível inferior, podendo ser desdenhado. Conforme assinalou o ministro Gilmar Mendes, do STF, é possível haver uma inversão na precedência de princípios, ou seja, que um princípio prevaleça sobre outro em razão dos fatos que autorizam sua aplicação numa hipótese concreta. Vale acrescentar que ao princípio da “presunção de inocência” cinge-se a esfera do processo penal, não se aplicando em matéria eleitoral, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, a quem compete, em última instância, a interpretação da Lei Maior (RE nº 86.297-SP, in RTJ 79/ 671, rel. Min. Thompson Flores; AgRg no Ag. nº 92.794, RTJ 107/654, rel. Min. Moreira Alves). O mesmo TSE, em outras oportunidades, reputou dispensável o trânsito em julgado de decisão condenatória, tornando o candidato inelegível simplesmente por ter sido condenado, em decisão recorrível (TSE, acórdãos 6.855, 23.09.82; 7.610, 09.08.83). A legalidade ou legitimidade deve ser apurada em relação ao ato que a lei prevê, mas, tendo em vista, também, a moral administrativa e o interesse coletivo, conforme assinalou o jurista Alexandre Moraes. A Justiça eleitoral cumpre relevantíssimo papel na realização da democracia, não podendo, assim, limitar a sua atuação às meras exigências formais que condicionam a aprovação de uma candidatura perante aquele órgão.
“A legalidade ou legitimidade deve ser apurada em relação ao ato que a lei prevê, mas, tendo em vista, também, a moral administrativa e o interesse coletivo.”
Aos parlamentares cujas condutas no exercício dos respectivos mandatos foram reprovadas pelo Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, a inelegibilidade se apresenta evidente, como bem assinalou o desembargador Marcus Faver, que hoje compõe o Conselho Nacional de Justiça. No seu sentir, “... o órgão, após instrução probatória exercitada com todas as garantias constitucionais (ampla defesa, contraditório etc.), reconheceu procedimento incompatível com o decoro parlamentar. (...) Ou seja, as provas consideradas suficientes pelo Conselho de Ética para sugerir a cassação de deputados acusados de corrupção, podem ser aproveitadas, ainda que sem o trânsito em julgado judicial, para impedir a candidatura do parlamentar, mesmo que o deputado tenha sido absolvido pelo Plenário da Câmara” (Revista Jurídica Consulex, nº 232, p. 33). Não há que se cogitar, pois, de lei complementar alguma que estabeleça novos casos de inelegibilidade, simplesmente para atender o disposto no artigo 14 §9º, da EC de Revisão nº 4/94. De outra forma, a sociedade brasileira ficará ainda mais descrente em sua acalentada esperança de restauração dos padrões éticos do poder público. O conceito de moralidade, que deve reger os homens em suas atividades públicas ou particulares, não pode ser abastardado pela “presunção de inocência” nem pelo sagrado “direito de defesa”, quando invocados por aloprados, detentores de um mandato que pretendem renovar a todo custo. 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11
Meios alternativos para o ressarcimento de danos frente à Responsabilidade civil do Estado A importância da Lei Paulista nº 10.177 de 30 de dezembro de 1998 Massami Uyeda Ministro do Superior Tribunal de Justiça, mestre e doutor em direito (USP).
E
stá assente no ordenamento jurídico que aquele que causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo. Cuida-se de emanação direta do clássico preceito honestae vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere (viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu). Esse preceito configura o cerne do direito e da ética, que, como ciências culturais, fundamentam a retidão de conduta como modelo de comportamento a seguir devendo estar presente no cotidiano de todos, pessoas físicas e jurídicas, bem como estar no âmago das instituições. Os preceitos éticos assim se confundem com os preceitos jurídicos e são transcendentes a estes, pois, como já concebido por Jeremias Benthan “non omnis quod licet, honestum est” (nem tudo que é lícito, é honesto). A noção de responsabilidade civil vincula-se à obrigação de ressarcir danos, consubstanciando obrigação de ordem patrimonial, uma vez que a obrigação de ter de responder com o flagelo corporal ou até mesmo o sacrifício da vida, contida na prática do “olho por olho, dente por dente” há muito está afastada do Estado de Direito. O Estado de direito é aquele em que o primado da lei – comando normativo de observância geral e obrigatória – deve ser obedecido em sua inteireza, tanto que a Constituição Federal de 1988 dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II), configurandose esta determinação no que se consagrou chamar de princípio da legalidade. No entanto, para a adequada compreensão desse princípio, que é basilar do Estado, necessário se faz esclarecer que aquele que
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“A instrumentalização do direito à reparação dos danos há de ser feita por meio de ações judiciais, na esteira da dicção do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal (...)” promulgou a lei, no caso o Estado, por meio de seu poder legislativo, ou mesmo por meio de atos administrativos de conteúdo normativo editados pela administração pública – o poder executivo e, também, os demais poderes, quando praticam atos de natureza material administrativa – também se submeta ao comando da lei por ele próprio editada. Esta angulação de interpretação é sintetizada no aforismo “pati legis quam fecisti” (suporta a lei que fizeste), segundo o qual o Estado deve, também, cumprir, obedecer à lei que ele próprio criou. Esta introdução é feita para rememorar a obrigação de reparação do Estado quando provoca dano a terceiros, contrapondo-se à teoria da divinização do poder, que vingou por longo período na história da humanidade e que justificava a total irresponsabilidade do governante pelos atos por ele cometidos, sob o fundamento de que sendo ele o governante, a personificação de Deus na Terra, não poderia errar e, sendo assim, não poderia ser responsabilizado por seus atos (the king can not do wrong - o rei não comete erro). Essa teoria da divinização do poder cedeu lugar à teoria da responsabilização civil do Estado. Aquela noção da intangibilidade do poder, impeditiva de se responsabilizar o Estado por seus atos, acha-se mesmo arraigada no inconsciente coletivo dos países, como o Brasil, porquanto, grande parte das vezes, o cidadão comum, leigo em direito, chega a pensar que o Estado, por gerir a coisa pública não tem como ser responsabilizado pelos atos praticados por seus agentes. Trata-se do equívoco de entender-se coisa pública como coisa de ninguém. No entanto, esse sentimento popular não se distancia muito da evolução histórica da responsabilização civil do Estado, pois, para se chegar ao disposto no artigo 37, §6º, da Constituição Federal, quando estatui: “art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) §6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”, longo caminho doutrinário e jurisprudencial foi percorrido. O direito administrativo é ramo do direito público e sua autonomia científica somente foi assim reconhecida a partir de 1873, visto que, até então, embora a disciplina fizesse parte do curso de direito da Sorbonne, sob a regência do Barão de Gerando, seu estudo limitava-se ao escorço e estudo das leis que disciplinavam as atividades da administração pública. Desse entendimento também comungavam os professores da Academia de Direito de São Paulo, do Largo de São Francisco, do porte do Conselheiro Ribas (1819-1890). Entretanto, a disciplina assim lecionada não lhe conferia autonomia científica, dotada de princípios, institutos e método próprio de interpretação. A autonomia científica do direito administrativo só veio à luz, em 1873, com a decisão do Conselheiro Davi, que decidiu, no Tribunal de Conflitos, ser da competência do Conselho de Estado Francês1 o julgamento da ação de reparação de danos promovida por Agnes Blanco que foi atropelada por um vagonete da Companhia Nacional de Tabacos de Bordéus, ajuizada originariamente perante o Judiciário Comum Francês2. Assim, a autonomia científica do direito administrativo surge a partir de uma decisão envolvendo caso de responsabilidade civil do Estado. Por esta histórica decisão, constata-se que a interpretação do direito administrativo distingue-se da do direito civil. Neste vigora o princípio da igualdade das partes, sob o prisma jurídico. No direito administrativo, ao se proceder à exegese dos atos administrativos e mesmo sobre a conduta da administração pública, deve-se considerar o pressuposto da desigualdade jurídica desta administração que tem, em relação ao particular, nítida preponderância. Esta distinção no método de interpretação pode ser facilmente constatada nos exemplos da compra e venda de um imóvel e no da desapropriação de um bem imóvel. Na compra e venda, o negócio jurídico só se aperfeiçoa se as partes estiverem de acordo, ou seja, se há animus de venda e animus de compra e, na desapropriação, não se indaga ao expropriado se ele concorda com o despojamento de seu bem. Simplesmente, nesse caso, há o animus, o querer da administração pública. Este querer resulta da natureza discricionária do ato administrativo, não se olvidando, porém, que mesmo a discricionariedade acha-se balizada pela finalidade e pela moralidade administrativa. Para se comprovar a responsabilidade civil, na seara do direito civil, é necessário demonstrar que a conduta causadora do dano é decorrente do elemento subjetivo da culpa do agente causador do dano, para que se estabeleça liame de responsabilização. A culpa, em sentido jurídico, consiste na motivação psíquico-psicológica da ação (ou omissão) causadora do dano. Significa o querer produzir o dano (vontade consciente) ou que a produção do dano seja decorrente de conduta desidiosa, imprudente, imperita ou negligente, ou seja, que a lesão tenha sido conseqüente à imprevidência do agente, em condições de previsibilidade (culpa lato sensu).
“Assim, a autonomia científica do Direito Administrativo surge a partir de uma decisão envolvendo caso de responsabilidade civil do Estado. “ No tocante ao dano causado pelo Estado, por ato praticado por seu agente, não há necessidade de se demonstrar o vínculo subjetivo de sua conduta. Basta, para configurar a obrigatoriedade do ressarcimento, como conseqüência da responsabilidade civil do Estado, que o dano tenha ocorrido. É isto que se denomina responsabilidade objetiva. Ou seja, houve dano em decorrência de ação (ou omissão) do agente do Estado? Se houve, objetivamente há configuração de responsabilidade civil do Estado. No entanto, atente-se que a adoção singela de constatação objetiva da lesão ou do dano, pura e simplesmente, pode conduzir a situações de flagrante injustiça para com o Estado e, em última análise, para com o povo que, afinal, é quem irá ressarcir os prejuízos. É o caso de se figurar a hipótese de o dano ou a lesão ter sido causada ou provocada pela própria vítima. É cabível a reparação, se foi a vítima quem se auto-lesionou ou provocou o dano em seu bem jurídico? Obviamente, não será cabível. E em que hipóteses haverá o cabimento? Nas hipóteses em que a vítima não tenha concorrido para a eclosão do evento e que este não seja resultado de caso fortuito e força maior, pois, então, há causa de exclusão da responsabilidade civil do Estado. Há teorias originadas da responsabilidade objetiva, que procuram fundamentar a obrigação de reparação de danos causados pelo Estado. Uma delas, a do risco administrativo, estabelece que a obrigação existe se o serviço público a que se obrigou a prestar o Estado, em condições adequadas, não foi prestado. Nesta hipótese, há necessidade de se provar que o serviço foi adequadamente prestado. O princípio do ônus da prova, ou seja, a obrigação de demonstrar o alegado que, de regra, compete a quem alega, em sede de prestação de serviço público, que, agora acha-se abrangido pelo Código de Defesa do Consumidor, transfere ao Estado o dever de demonstrar que o serviço foi adequadamente prestado, ocorrendo assim a chamada inversão do ônus da prova. E há outra teoria que se baseia no risco integral, ou seja, é do Estado toda a responsabilidade causada por seu agente.
No entanto, essa teoria é extremada e pode levar a situações de injustiça, pois pode ocorrer a hipótese em que o dano seja causado por culpa exclusiva da vítima. No dever de reparar os danos incluem-se parcelas referentes ao principal, que são os danos; aos lucros cessantes, que são aqueles que o lesionado se viu impedido a auferir em razão da lesão sofrida, bem como atualização monetária, juros, custas e honorários advocatícios. A instrumentalização do direito à reparação dos danos há de ser feita por meio de ações judiciais, na esteira da dicção do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que dispõe: “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXV - A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” Essas ações podem, dependendo das hipóteses de configuração, ser aquelas deduzidas sob rito ordinário (procedimento comum ou procedimento sumário) ou de rito especial, como mandado de segurança, em trato de lesão ou dano individual, e em trato de lesão a interesse difuso ou coletivo, em ação civil pública, ação popular, mandado de segurança coletivo e mandado de injunção. Esta é a via tradicional para que se obtenha o resultado desejado: a reparação dos danos. Mas, indaga-se, haverá outra alternativa para que se possa conseguir a reparação sem que se tenha de se sujeitar à longa demora na obtenção da prestação jurisdicional, efetiva e integral, visto que a plena satisfação do direito de quem se viu lesionado pelo Estado, na atualidade, ultrapassa, em previsão mais que otimista, uma década? A resposta há de ser afirmativa, no sentido de se adotar as vias alternativas de resolução de conflitos: conciliação, transação e arbitragem. Necessária se faz a adequação mental para uma nova realidade cultural, a de utilizar-se a conciliação como instrumento eficaz para se obter a transação e, assim, alcançar 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15
a pacificação social. E esta postura conciliatória deve ser incentivada por todos, operadores do direito e sociedade em geral. Na realidade, há neste campo da resolução de conflitos decorrentes de responsabilidade civil do Estado resistência cultural quanto à forma extrajudicial de sua resolução porque é comum, a nosso ver equivocado, o entendimento de que não há cabimento para a transação. A Lei Paulista nº 10.177, de 30/ 12/1998, ao regular o procedimento administrativo no âmbito da administração pública estadual, dispôs, em seu artigo 65, que: “Art. 65 - Aquele que pretender, da Fazenda Pública, ressarcimento por danos causados por agente público, agindo nessa qualidade, poderá requerê-lo administrativamente [...]” Essa lei deve ser saudada e festejada pois vem possibilitar a mais rápida e célere resolução do conflito de interesse. E seu artigo 66 dispõe que a indenização, se acolhida esta via administrativa, a ser paga será singela, alcançando somente o valor do principal, sem os juros legais, as atualizações e os honorários advocatícios, bem de ver que o pagamento dessa indenização há de ser feito em tempo razoável, sob pena de caracterizar-se o enriquecimento ilícito do Estado. Por razoabilidade deve-se entender a adequação entre meios e fins, no sentido de que deve haver um equilíbrio temporal que não ultrapasse o “logos del razonable” a que aludia Recaséns Siches (in Recaséns Siches, Luis. “Tratado general de Filosofía del Derecho”, 1ª edição, Editorial Porrua S.A., México, 1959, página 428; “Experiencia jurídica, naturaleza de la cosa y Lógica ‘razonable’”, Publicaciones de Diánoia, Fondo de Cultura Económica, Universidad Nacional Autónoma de México, México, 1971, página 499.) De lege ferenda, ou seja, como proposição a ser considerada pelo legislador em todos os níveis, deve-se incentivar a utilização dos meios alternativos de resolução de conflitos de
interesses, mediante os institutos da conciliação e da transação e, até mesmo, pela utilização da arbitragem3. A nosso ver, é cabível o recurso aos meios alternativos e, ao assim afirmar, fundamentamo-nos no princípio do paralelismo de formas em relação ao instituto da licitação que, inegavelmente, é instrumento de moralidade administrativa no atinente às contratações efetuadas pelo Estado, as quais, obviamente, implicam despesas públicas. Se, no referente à licitação, a própria lei prevê hipóteses de dispensa da licitação, exigindo-se apenas a fundamentação da dispensa, além das hipóteses legais de inexigibilidade da licitação (art. 17, incisos I e II; art. 24, incisos I a XXIV; e art. 25 da lei nº 8.666/93), por que não se permitir que o agente público a quem esteja afeta a competência para atuar na área de litígios decorrentes de reparações de danos possa celebrar acordos? A lei que assim vier de ser promulgada há de estabelecer as hipóteses e os limites. Este, em linhas gerais, um relance de um tema que há de merecer, por certo, reflexões mais detidas.
Notas 1 Na história constitucional brasileira assinala-se que, antes da proclamação da República, adotava o Brasil o sistema administrativo francês. Desse modo, ao lado do poder judiciário havia um contencioso administrativo, com competência para o processamento e julgamento de causas envolvendo o Estado. A Constituição de 1967, em seu art. 111, dispôs quanto à implantação de um contencioso administrativo restrito aos conflitos de natureza previdenciária, mediante lei complementar. Este contencioso administrativo, contudo, não foi objeto de lei complementar. O tema quanto à pertinência e, mesmo necessidade, de se adotar tal contencioso no Brasil tem sido objeto de reflexões daqueles que se preocupam com o congestionamento descomunal do poder judiciário, tratando-se de tema instigante ao debate. 2 “A responsabilidade que incumbe ao Estado pelos prejuízos causados aos particulares por ato das pessoas que ele emprega no serviço público não pode ser regida por princípios firmados pelo Código Civil, ao regular as relações de particular a particular; tal responsabilidade não é geral, nem absoluta, tem regras especiais que variam conforme as necessidades do serviço e a imposição de conciliar os direitos do Estado com os direitos privados.” (cf. menciona José Cretella Junior, em Direito Administrativo Comparado, 4ª ed., Ed. Forense, pág. 58). 3 Atualmente, a utilização de meios alternativos para a resolução de conflitos tem sido enfatizada pelo Conselho Nacional de Justiça e, também, pela Ministra Ellen Gracie, presidente do Supremo Tribunal Federal, bem como pela Secretaria da Reforma Judiciária, como uma das soluções para o problema da “inflação” judiciária.
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O Judiciário e os menos favorecidos Celso Guedes Desembargador Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
C
omo magistrado verifico, a toda evidência, que a sociedade outorga pouca relevância à contribuição do Judiciário no concernente aos direitos subjetivos conquistados pelos menos favorecidos, aqueles que recebem um salário pífio ou andam pelas ruas à procura de emprego, e ainda, os sofridos membros da classe média trabalhadora e, porque não dizer, os que sobrevivem, à força da economia informal. Observo, salvante um erro de avaliação, que raríssimos são os trabalhos que se propõem a criticar, pela via construtiva,
a elite brasileira. Malgrado os estudos de Gilberto Freire em “Casa Grande e Senzala”, os de Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil”, a obra-prima de Fernando de Azevedo “A Cultura Brasileira”, e, naturalmente, Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder”, pouco ou quase nada se tem falado do papel do Judiciário em prol daqueles que, mesmo trabalhando, não usufruem a chamada cidadania plena. Até mesmo aquelas obras clássicas conferem pouca importância ao Judiciário como uma totalidade. Com isso, lamentavelmente, cristalizou-se na opinião pública uma pretensa morosidade do Judiciário em relação aos menos favorecidos. Inexiste dúvida que a elite brasileira, quer de modo explícito, ou à socapa, implantou essa concepção de afastar o povo do Judiciário. Desse modo, ao menos avisado, ou àquele “bom selvagem” de Rousseau, fica parecendo que a díade ricos/ pobres se desvela, numa dessas variáveis: a) um problema que não tem solução; b) uma questão de somenos importância, já que tal dicotomia sempre existiu; c) a desigualdade social se anuncia como inevitável; d) já que o direito é um mero instrumento do poder político, o menos favorecido sempre perde. Essa quase obsessão de parte da elite brasileira, através de artigos publicados e do instrumental da mídia, em mitigar, a qualquer custo, o trabalho do Judiciário na ambiência dos menos favorecidos, é obviamente, de natureza política e o escopo é o mesmo do século passado e do século dezenove: convencer o menos favorecido (nunca é demais repetir essa expressão) a não procurar o Judiciário, e, o mais grave, a não depositar qualquer confiabilidade na tutela jurisdicional do Estado. Entretanto, nossa magistratura, na essência, continua sendo a instituição mais respeitada pela sociedade civil, havendo uma interação entre o Judiciário e a população carente, o que esboroa aquela concepção maquiavélica (ditada pela elite) de que o juiz seria um semideus afastado e desligado do mundo e da vida. Todo esse quadro, por si só, demonstra que o êxito de nossa magistratura perante a população carente, dentre inúmeros fatores, resultou da circunstância de se provar simplesmente que o magistrado é uma pessoa dotada do poder de julgar, de sensibilidade e afinada com as exigências advindas dos menos favorecidos. No que concerne à magistratura fluminense, sempre testemunhei entre meus colegas o espírito público de levar em conta a situação peculiar dos menos favorecidos, todos eles partilhando da lúcida advertência de Miguel de Cervantes: “Se acaso dobrares o condão da justiça, não seja com o peso da dádiva, mas com o da misericórdia”. 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17
ASSÉDIO MORAL Maria Cristina Irigoyen Peduzzi Ministra do Tribunal Superior do Trabalho e Presidente Honorária da Academia Nacional de Direito do Trabalho
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Conceito e Características A teoria do assédio moral tem assento no direito à dignidade humana, fundamento da República Federativa do Brasil, como prevê o artigo 1º, inciso III, da Constituição. É possível citar também o direito à saúde, mais especificamente, à saúde mental, abrangida na proteção conferida pelo artigo 6º e o direito à honra, previsto no artigo 5º, inciso X, ambos da Carta Magna. O assédio moral diz respeito a um tipo específico de dano ao patrimônio moral. É uma a) violência pessoal; b) necessariamente moral e psicológica; c) multilateral (pode ser horizontal: entre colegas de mesma hierarquia; vertical descendente: do superior hierárquico ao seu subordinado; ou mesmo vertical ascendente: que parte do grupo subordinado e se dirige ao seu superior direto); d) individual ou coletivamente sentida. Encontra, na doutrina internacional, expressões sinônimas: “mobbing”, “harcèlement”, “bullying”, “harassment”. Em português, também terror psicológico. Tem caráter interdisciplinar: envolve as áreas da psicologia, medicina, medicina do trabalho, administração de empresas e outras afins. Márcia Novaes Guedes, em preciosa monografia, define seus contornos, identificando “dois aspectos essenciais: a regularidade dos ataques – trata-se de uma violência sistemática e que dura um certo tempo – e a determinação de desestabilizar emocionalmente a vítima para obrigá-la a se afastar do trabalho”1. O assédio moral se configura pela insistência impertinente, com propostas, perguntas ou pretensões indevidas. Resulta de um conjunto de atos, não perceptíveis pelo lesado como importantes em um primeiro momento, mas que, na seqüência, unidos, destinam-se a expor a vítima a situações incômodas, humilhantes e constrangedoras. Identifica-se na ocorrência de comportamentos comissivos ou omissivos que humilham, constrangem e desestabilizam o trabalhador, afetam a autoestima e a própria segurança psicológica, causando estresse ou outras enfermidades. São exemplos de procedimentos omissivos: a) a indiferença em relação ao outro; b) ignorar a vítima; c) atitudes de desprezo; d) silêncio. E de atos concretos: a) rigor excessivo no trato com o trabalhador; b) exigência de cumprimento de tarefas desnecessárias ou exorbitantes; c) tratamento desrespeitoso, humilhante; d) imposição de isolamento ao empregado; e) ausência de atribuição de serviços, inação compulsória; f ) constranger, ameaçar; g) expor, a terceiros, a intimidade da vítima; h) cercear o exercício de mister habitual; i) restringir a atuação profissional; j) impor jogo de prendas, que resultam em exposição ao ridículo; entre tantas outras modalidades. Tem por finalidade: a) desestimular; b) desacreditar; c) deprimir; d) isolar; e) fragilizar a auto-estima do assediado. No âmbito do Direito do Trabalho, tais fins se dirigem, na maior parte das vezes, à extinção do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador. A médica do Trabalho Margarida Barreto informa
“São figuras afins que, entretanto, não se confundem. No assédio sexual, a violência tem direção vertical e sentido descendente, ou seja, ocorre no âmbito de uma relação de sujeição hierárquica, onde a subordinação jurídica é utilizada como instrumento de obtenção de favores de ordem sexual. Nesse contexto, o assédio sexual é de mais fácil percepção e combate do que o assédio moral.” que “42% dos trabalhadores são vítimas de assédio nas empresas”2. Assédio moral x assédio sexual São figuras afins que, entretanto, não se confundem. No assédio sexual, a violência tem direção vertical e sentido descendente, ou seja, ocorre no âmbito de uma relação de sujeição hierárquica, onde a subordinação jurídica é utilizada como instrumento de obtenção de favores de ordem sexual. Nesse contexto, o assédio sexual é de mais fácil percepção e combate do que o assédio moral. O assédio sexual foi tipificado como crime, pela lei nº 10.224/2001, que acresceu o item a ao artigo 216 do Código Penal: Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.” Pena - detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos. Disciplina do assédio moral No Brasil, não há previsão em lei federal acerca do assédio moral. Há 11 projetos de lei atualmente tramitando no Congresso Nacional sobre o tema. Entre eles, destacam-se os seguintes: a) projeto de lei federal nº 5.970/2001 (introduz disposições aos artigos 483 e 484 da CLT); b) projeto de 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19
“No âmbito municipal, há leis coibindo a prática do assédio moral, aplicáveis aos servidores da administração pública local, como é o caso dos municípios de São Paulo, Campinas e Iracemápolis, no Estado de São Paulo.” lei federal nº 2.593/2003 (introduz alíneas ao artigo 483, da CLT); c) projeto de lei federal nº 2.369/2003 (define, proíbe o assédio moral, impõe dever de indenizar e estabelece medidas preventivas e multas); d) projeto de lei federal nº 5.887/2001 (tipifica como crime a conduta enquadrada como assédio moral, introduzindo alínea a ao artigo 146 do Código Penal, impondo pena de detenção de três meses a um ano e multa); e) projeto de lei federal nº 4.742/2001 (também introduz o tipo no Código Penal); f ) projeto de lei federal nº 4.591/2001 (introduz alterações na lei nº 8.112/1990, proibindo aos servidores públicos a prática de assédio moral contra seus subordinados, com a fixação de penalidades disciplinares). No âmbito municipal, há leis coibindo a prática do assédio moral, aplicáveis aos servidores da administração pública local, como é o caso dos municípios de São Paulo, Campinas e Iracemápolis, no estado de São Paulo. A visão da jurisprudência O julgado comumente indicado como o leading case da matéria no Brasil é oriundo do Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região – com jurisdição no Estado do Espírito Santo – que classifica e enquadra como assédio moral as perseguições sofridas por um técnico do setor de publicidade e propaganda. Eis a ementa: “ASSÉDIO MORAL - CONTRATO DE INAÇÃO INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL A tortura psicológica, destinada a golpear a auto-estima do empregado, visando a forçar sua demissão ou apressar sua dispensa através de métodos que resultem em sobrecarregar o empregado de tarefas inúteis, sonegar-lhe informações e fingir que não o vê, resultam em assédio moral, cujo efeito é o direito à indenização por dano moral, porque ultrapassa o âmbito profissional, eis que minam a saúde física e mental da vítima e corrói a sua auto-estima. No caso dos autos, o assédio foi além, porque a empresa transformou o contrato de atividade em contrato de inação, quebrando o caráter sinalagmático do contrato de trabalho, e por conseqüência, descumprindo a sua principal obrigação que é a de fornecer trabalho, fonte de 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
dignidade do empregado.” (Tribunal Regional do Trabalho, 17ª Região, RO nº 1315.2000.00.17.00.1, Ac. nº 2.276/ 2001, Rel. Juíza Sônia das Dores Dionízio, DJ de 20.08.02, publicado na Revista LTr 66-10/1237). Destaca-se o seguinte acórdão do TRT da 3ª Região (jurisdição no estado de Minas Gerais), relatado pela juíza e professora Alice Monteiro de Barros, pela abordagem teórica e analítica da figura em estudo: “ASSÉDIO MORAL. CARACTERIZAÇÃO. O termo “assédio moral” foi utilizado pela primeira vez pelos psicólogos e não faz muito tempo que entrou para o mundo jurídico. O que se denomina assédio moral, também conhecido como mobbing (Itália, Alemanha e Escandinávia), harcèlement moral (França), acoso moral (Espanha), terror psicológico ou assédio moral entre nós, além de outras denominações, são, a rigor, atentados contra a dignidade humana. De início, os doutrinadores o definiam como “a situação em que uma pessoa ou um grupo de pessoas exercem uma violência psicológica extrema, de forma sistemática e freqüente (em média uma vez por semana) e durante um tempo prolongado (em torno de uns 6 meses) sobre outra pessoa, a respeito da qual mantém uma relação assimétrica de poder no local de trabalho, com o objetivo de destruir as redes de comunicação da vítima, destruir sua reputação, perturbar o exercício de seus trabalhos e conseguir, finalmente, que essa pessoa acabe deixando o emprego” (cf. Heinz Leymann, médico alemão e pesquisador na área de psicologia do trabalho, na Suécia, falecido em 1999, mas cujos textos foram compilados na obra de Noa Davenport e outras, intitulada Mobbing: Emotional “Abuse in The American Work Place”). O conceito é criticado por ser muito rigoroso. Esse comportamento ocorre não só entre chefes e subordinados, mas também na via contrária, e entre colegas de trabalho com vários objetivos, entre eles o de forçar a demissão da vítima, o seu pedido de aposentadoria precoce, uma licença para tratamento de saúde, uma remoção ou transferência. Não se confunde com outros conflitos que são esporádicos ou mesmo com más condições de trabalho, pois o assédio moral pressupõe o comportamento (ação ou omissão) por um período prolongado, premeditado,
que desestabiliza psicologicamente a vítima. Se a hipótese dos autos revela violência psicológica intensa sobre o empregado, prolongada no tempo, que acabou por ocasionar, intencionalmente, dano psíquico (depressão e síndrome do pânico), marginalizando-o no ambiente de trabalho, procede a indenização por dano moral advindo do assédio em questão” (TRT-RO-01292-2003-057-0300-3, 2ª Turma, Relª Juíza Alice Monteiro de Barros, DJ 11.08.04). A análise da jurisprudência dos Tribunais Regionais do Trabalho sobre a matéria autoriza algumas conclusões, como segue. O tema do assédio moral, embora ainda recente, já foi examinado em decisões por quase a totalidade dos tribunais regionais nacionais. Os primeiros acórdãos são datados de 2004. Em 2005 já se verifica um substancial aumento, confirmado pelos julgamentos já ocorridos neste primeiro semestre de 2006. Já foram julgados mais de 500 casos versando sobre assédio moral pelos tribunais regionais do trabalho. Os que mais solicitaram a análise desse tipo de pedido foram os das regiões Sul e Sudeste. Os fatos mais recorrentes são a inação compulsória, humilhações verbais por parte de superiores – inclusive pela utilização de palavras de baixo calão –, coações psicológicas com a finalidade de adesão do empregado a PDV ou à demissão. Os valores são altos. Há caso de R$ 3.500,00 para uma relação que durou 25 dias. Há outro de R$ 70.000,00, para contrato mais longo, como de 8 anos. Na maior parte dos casos a condenação varia de R$ 10.000,00 a R$ 30.000,00. Os valores são arbitrados, não havendo a construção de relação entre a remuneração do empregado e o montante da reparação. Outros critérios são mais utilizados, como o tempo de serviço e a gravidade da ofensa. A participação do Tribunal Superior do Trabalho na formação de jurisprudência sobre a matéria ainda é tímida (ver RR-253/2003-003-03-00.7, 4ª Turma, Rel. Min. Barros Levenhagem, DJ 22.04.05; RR-328/2004-055-03-00.0, 3ª Turma, Rel. min. Maria Cristina). Destacam-se os seguintes: “DANO MORAL. VALOR E CRITÉRIO PARA FIXAÇÃO DA INDENIZAÇÃO. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. 1. A lacuna legislativa na seara laboral quanto aos critérios para fixação da indenização leva o julgador a lançar mão do princípio da razoabilidade, cujo corolário é o princípio da proporcionalidade, pelo qual se estabelece a relação de equivalência entre a gravidade da lesão à imagem e à honra e o valor monetário da indenização imposta. 2. Na hipótese, a lesão sofrida pelo Reclamante não se concretizou em ato isolado do Empregador, mas em alteração gradual no tratamento dispensado ao Obreiro no exercício de suas atividades laborais, após o ajuizamento de ação trabalhista e da rejeição do acordo proposto pelos
Demandados. O comportamento do Reclamado, no sentido de afastar o Empregado de sua área de trabalho, limitando o seu espaço físico, e de repassar suas atividades a outros funcionários, visava claramente a sua desmoralização profissional, a fim de que fosse impelido a solicitar a dispensa do emprego, o que fere a dignidade do trabalhador, caracterizando o assédio moral. 3. Contudo, sopesando os elementos que caracterizaram o caso concreto e tendo em vista que o Reclamante permaneceu recebendo os salários durante todo o período em que foi submetido ao constrangimento pelo Reclamado, verifica-se que a imposição da indenização equivalente a R$ 100.000,00 extrapola o princípio da proporcionalidade entre pena e falta. 4. Assim sendo, é de se dar provimento ao recurso de revista patronal, para reduzir a indenização por dano moral a R$ 50.000,00. Recurso de revista conhecido em parte e provido” (TSTRR-122/2001-036-12-00.0, 4ª Turma, Rel. min. Ives Gandra Martins Filho, DJ 10.03.06) DANO MORAL. PRESENÇA DE SUPERVISOR NOS VESTIÁRIOS DA EMPRESA PARA ACOMPANHAMENTO DA TROCA DE ROUPAS DOS EMPREGADOS. REVISTA VISUAL. 1. Equivale à revista pessoal de controle e, portanto, ofende o direito à intimidade do empregado a conduta do empregador que, excedendo os limites do poder diretivo e fiscalizador, impõe a presença de supervisor, ainda que do mesmo sexo, para acompanhar a troca de roupa dos empregados no vestiário. 2. O poder de direção patronal está sujeito a limites inderrogáveis, como o respeito à dignidade do empregado e à liberdade que lhe é reconhecida no plano constitucional. 3. Irrelevante a circunstância de a supervisão ser empreendida por pessoa do mesmo sexo, uma vez que o constrangimento persiste, ainda que em menor grau. A mera exposição, quer parcial, quer total, do corpo do empregado, caracteriza grave invasão à sua intimidade, traduzindo incursão em domínio para o qual a lei franqueia o acesso somente em raríssimos casos e com severas restrições, tal como se verifica até mesmo no âmbito do direito penal (art. 5º, XI e XII, da CF). 4. Despiciendo, igualmente, o fato de inexistir contato físico entre o supervisor e os empregados, pois a simples visualização de partes do corpo humano, pela supervisora, evidencia a agressão à intimidade da Empregada. 5. Tese que se impõe à luz dos princípios consagrados na Constituição da República, sobretudo os da dignidade da pessoa, erigida como um dos fundamentos do Estado democrático de direito (artigo 1º, inciso III), da proibição de tratamento desumano e degradante (artigo 5º, inciso III) e da inviolabilidade da intimidade e da honra (artigo 5º, inciso X). 6. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento para julgar procedente o pedido de indenização por dano moral” (TST-2195/1999-009-05-00.6, 1ª Turma, 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21
“O advento da Carta Magna estabeleceu, entre os direitos fundamentais, a indenização por dano moral, encerrando as discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre sua existência.” Rel. min. João Oreste Dalazen, DJ 09.07.04) Dano Moral Coletivo O tribunal regional do trabalho da 21ª região, com jurisdição no Rio Grande do Norte, no julgamento de recurso ordinário interposto em ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Trabalho, condenou a Ré a pagar indenização no valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) por dano moral coletivo, decorrente de assédio moral praticado contra empregados que não obtinham ou não atingiam as cotas de vendas estabelecidas pela empresa (eram constrangidos a receber e ouvir insultos, pagar flexões de braço, dançar na “boquinha da garrafa”, assistir a reuniões de pé, desenhar caricaturas no quadro, fantasiar-se e outras “prendas”), a reverter ao Fundo de Amparo do Trabalhador3. Reparações devidas a) rescisão indireta: em qualquer hipótese de terror psicológico, caberá, nos termos do artigo 483, principalmente pelas alíneas “a”, “b”, “e” e “g”, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o pleito de que reste caracterizada a rescisão indireta do contrato de trabalho, com as conseqüências previstas pela legislação trabalhista: o saldo de salário, aviso prévio, férias vencidas e proporcionais, o adicional de 1/3, o depósito do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) do mês da extinção do vínculo empregatício e do mês anterior, a multa fundiária de 40%, a gratificação natalina, como se o contrato de trabalho tivesse sido extinto sem justa causa. Há de se considerar também a possibilidade de a nulidade absoluta do ato de dispensa gerar direito à reintegração, fundada na garantia constitucional da não discriminação, que tem ensejado outras hipóteses de reintegração, como é o caso dos aidéticos, grevistas etc. b) indenização por danos morais: conseqüência do reconhecimento do assédio moral é a condenação do agressor em reparação por danos morais. A Emenda Constitucional nº 45/2004 dispôs expressamente, no artigo 114, inciso VI, que “compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho.” No mesmo sentido, dispõe a súmula nº 736, do Supremo Tribunal Federal. 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
Até a entrada em vigor da Constituição da República de 1988, a orientação jurisprudencial assentava-se na impossibilidade de ressarcimento do dano moral. O advento da Carta Magna estabeleceu, entre os direitos fundamentais, a indenização por dano moral, encerrando as discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre sua existência. Nesse sentido, observe-se o disposto no artigo 5º, incisos V e X, da Constituição: “V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;” “X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;” Com base no entendimento de que o dano moral se configura com a caracterização do ato ilícito, o Código Civil de 2002 buscou atualizar a previsão normativa sobre o assunto. Por força do artigo 186, o dano, ainda que exclusivamente moral, recebeu previsão expressa: “Art. 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” Na esfera trabalhista, a reparação dos danos morais visa à proteção da dignidade do trabalhador. Tem plena aplicação o disposto no art. 932, III, CCB: “São também responsáveis pela reparação civil: (...) o empregador ou comitente, por seus empregados, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele”. Atualmente, a jurisprudência e a doutrina são uníssonos em admitir a indenização por dano moral na esfera trabalhista. Questão mais complexa, no entanto, diz respeito à fixação do quantum indenizatório decorrente do dano moral. O arbitramento do dano moral, pelas próprias circunstâncias que o definem, ocorre de maneira necessariamente subjetiva, segundo critérios de justiça e eqüidade, ainda que, em cada situação específica, seja dada ao magistrado a oportunidade de fixar parâmetros à apreciação do dano sofrido. A indenização tem o escopo de, por um lado, compensar a vítima pelo dano moral sofrido e, por outro, punir o infrator, que não pode ofender em vão a esfera jurídica alheia. A fixação desse valor realiza-se via critério estimativo, segundo a prudente discricionariedade do magistrado, apurando-se o quantum indenizatório com base nas “possibilidades do lesante” e nas “condições do lesado”. c) indenização por danos materiais: também é possível divisar a reparação por danos materiais. Nas hipóteses, v.g., em que do assédio moral decorram prejuízos de ordem psicológica em gravidade tal que importe gastos ao trabalhador, como remédios e tratamentos. Notas: 1 GUEDES, Márcia Novaes. Terror Psicológico No Trabalho. 2ª ed., São Paulo: Ed. LTR, 2005, pág. 35. 2 Apud Sebastião Vieira Caixeta, in Jornal do Commercio de 29/05/2006. 3 In Órgão Informativo do TRT da 21ª Região RN Ano VI-Nº 52, Agosto/ 2006.
Oscar Niemeyer recebendo o Troféu D. Quixote Genialidade e eternidade
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o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, dois acontecimentos se uniram tendo como figura central Oscar Niemeyer: o primeiro, o Fórum de Reforma Política, que brilhantemente chamaram “Oscar Niemeyer”. Sem nenhum mandato eletivo, mas com o mandato inextinguível da genialidade e do amor à coletividade, o grande arquiteto fez política por toda a vida. Porém, como ensinaram Sócrates, Platão e Aristóteles, “política é a arte de governar os povos”. Essa política verdadeira Oscar Niemeyer não abandonou jamais. Lutou todos os combates, não calculava riscos ou vantagens, porque esse é o destino das grandes personalidades: lutar a vida inteira. Niemeyer jamais disputou cargo algum, embora, se desejasse, seria eleito para o cargo que escolhesse (menos para o de presidente da República: o sistema ou regime não está e dificilmente estará preparado para homens como ele). Niemeyer sempre pregou a igualdade, não deixou de considerar, por um momento que fosse, que o maior problema do mundo era e continua sendo a desigualdade. O segundo fato a que nos referíamos, pessoal para ele e ainda mais importante dada sua rara presença, foi a entrega do troféu Dom Quixote. Durante a cerimônia de outorga do prêmio, Niemeyer falou por 22 minutos, sem contar as interrupções para os aplausos. Deu uma demonstração extraordinária de memória, de vitalidade e de participação na história desde a mais distante juventude, quando, ainda na Faculdade de Arquitetura, já pertencia ao “Socorro Vermelho”, muito antes de o Partido Comunista ser fundado e legalizado em 1932. Com voz firme e impressionante versatilidade, o premiado falou até palavras de baixo calão (da mesma forma que em 1964 quando foi preso) fazendo com que a platéia desse risadas e o aplaudisse. Nos porões da ditadura, os carcereiros não riram nem aplaudiram, ao contrário, se irritaram e se
revoltaram tendo porém que libertá-lo. Sozinho e desarmado, Niemeyer era maior e mais imponente do que todos aqueles torturadores, geralmente encapuzados e armados. A criação de Dom Quixote, em 1605, tem já 400 anos. É impossível deixar de perceber que o perfil que Cervantes criou para seu herói (que se transformou em herói do mundo) é também o de Niemeyer: o de um homem visionário, justo e sonhador. Por volta de 1500, Leonardo da Vinci (outro gênio), para sobreviver, precisava fazer retratos das senhoras aristocratas e riquíssimas de Florença. O artista, porém, fazia duas exigências: a de receber adiantado e a de que as mulheres só poderiam olhar o retrato depois de pronto. Um dia, uma delas, recebendo o retrato, disse a ele: “mestre, que maravilha! Mas não se parece comigo”. Ao que Da Vinci fulminou: “minha senhora, dentro de mil anos ninguém saberá de sua existência, mas este retrato ainda será um Leonardo da Vinci”. Isso é também verdadeiro para Oscar Niemeyer. Sua existência não se contará por milhares de anos, mas pela eternidade que ele já conquistou em vida. 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23
Feriado na praia, as informações que faltaram Henrique Nelson Calandra Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo 1º vice-presidente da Associação Paulista de Magistrados
“A proposta não foi de recreação. Nada foi dado a nenhum magistrado que não fosse oportunidade de trabalho e debate.” 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
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anhou destaque no noticiário a ida de empresários e magistrados à Bahia para participarem de debates sobre temas ligados à economia e ao direito (“Bancos pagam feriado na praia de 47 juízes”, Brasil, 11.09.06). O evento, organizado pelo Imats (Instituto dos Magistrados dos Tribunais Superiores), que é voltado ao estudo e aperfeiçoamento do Judiciário, contou com temário variado. O objetivo central era mostrar aos juízes os caminhos da economia e, aos empresários, a colaboração necessária ao aprimoramento da Justiça. Um dos painéis versou sobre a dinâmica da mediação e da conciliação como instrumento para prevenir a morosidade e eliminar conflitos. É campanha do Conselho Nacional de Justiça, que até poderá ser apresentada em acampamento de movimento social – mas cada coisa a seu momento. O objetivo, naquela oportunidade, era justamente convencer os empresários da necessidade de colaborar com tal tipo de iniciativa. As palestras e os debates tiveram duração média de seis horas diárias, em dias de feriado, normalmente dedicados ao descanso e ao lazer. Assim, a viagem foi de trabalho para todos os envolvidos, inclusive para os jornalistas convidados que, infelizmente, não deram o destaque necessário para as matérias de economia e direito. Para quem diz que magistrado não visita acampamentos do MST, é preciso destacar que, no fórum social de Porto Alegre não só houve visita da AMB e dos magistrados ao acampamento, como também debate aberto com todos os segmentos sociais. O fato de magistrados ouvirem empresários em ambiente público – em debate gravado e transmitido pela internet para todo o país – não lhes retira a imparcialidade. A parceria com a Febraban e a CNI – que, ordinariamente, não são partes em nenhuma causa – não retira a isenção de nenhum juiz. A localização geográfica do evento diz respeito à logística de segurança para as partes envolvidas. Qualquer brasileiro de médio entendimento sabe que o fato de uma entidade empresarial pagar as despesas de um seminário não valerá julgamento favorável a essa entidade ou a seus membros. A magistratura brasileira jamais se venderia por um bilhete de avião ou uma diária de hotel. Além de tudo isso, qualquer pessoa que seja parte em um processo e entenda que o juiz está comprometido com tal tipo de participação pode pedir seu afastamento do processo. O convite a jornalistas e a publicidade do evento mostram sua licitude. Desse modo, é preciso que fique claro que a magistratura aceita, por meio de suas associações e institutos, convites para debater temas em qualquer local do país, com entidades legalmente constituídas. Exemplo disso é a campanha “eleições limpas” da Associação de Magistrados Brasileiros, lançada em todo o país, pelo voto consciente e pela fiscalização do processo eleitoral. Não fosse pela parceria com entidades privadas, tal campanha não existiria e a magistratura seguiria calada, tão ao gosto
“Nem Cristo foi compreendido quando visitou e se sentou com Zaqueu, mas ele sabia que o diálogo e o entendimento entre os homens são mais importantes que os rótulos que alguns ou muitos colocam em alguém.”
daqueles que pregam um Estado cabisbaixo, amordaçado e refém da violência de grupos criminosos, no qual os direitos humanos das vítimas são completamente esquecidos. As parcerias com entidades privadas não contrariam o artigo 95, inciso IV, da Constituição, pois nenhum juiz recebeu benesse. A proposta foi de trabalho e não de recreação. Nenhuma despesa pessoal de magistrado foi paga pelo evento. As despesas de transporte e estadia foram pagas em parceria com as entidades promoventes do evento. Nada foi dado a nenhum magistrado que não fosse oportunidade de trabalho e debate. Aliás, tal tipo de seminário se enquadra perfeitamente no artigo 73, inciso I, da Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), uma vez que se destina ao aperfeiçoamento do Judiciário e dos magistrados. Registramos, uma vez mais, o inconformismo daqueles que fazem do estudo e do debate sua trincheira de luta por um Brasil melhor e é por isso que dizemos não ao conservadorismo daqueles que querem ver o Brasil na contramão da história, nutrido por preconceitos e ódios e impedido de ver todas as realidades. Nem Cristo foi compreendido quando visitou e se sentou com Zaqueu, mas ele sabia que o diálogo e o entendimento entre os homens são mais importantes que os rótulos que alguns ou muitos colocam em alguém. 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25
RENÚNCIA DE JÂNIO QUADROS EFEITOS E CONSEQUÊNCIAS Walter Baère de Araujo Engenheiro industrial, mecânico e de armamento Cel. RJ do Exército
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niciava-se o mês de agosto de 1961 e tinha-se a sensação que a tempestade estava próxima. O Presidente Jânio Quadros subira ao poder, com apoio da direita e da ala populista. Apesar de não contar com maioria no Congresso, passou a governar com grande afirmação, eleito que fora por maioria absoluta. Seu vice-presidente, João Goulart, fora eleito graças ao trabalho em prol da dupla “JAN-JAN” (Jânio e Jango). A Constituição de 1946 à época permitia que o presidente e o vice-presidente tivessem as votações separadas e fossem de partidos diferentes. Apesar de João Goulart representar o partido da oposição (PTB), não oferecia ameaça à forma de governar de Jânio. Tinha Jânio estilo próprio. A tônica era a dos “bilhetinhos”, que com desenvoltura e êxito, ele próprio escrevia, substituindo os protocolares ofícios. Convidara o presidente Jânio para chefiar o CONTEL – Conselho Nacional de Telecomunicações, o general Paulo Krugger da Cunha Cruz, meu ex-comandante e amigo, profundo conhecedor das comunicações e com larga experiência no setor. O general Paulo Krugger era um militar de glorioso passado, com brilhante passagem como integrante da Coluna Prestes. Com o decorrer dos meses algumas ações espetaculares começaram a deixar preocupados os que depositavam absoluta confiança em seu governo. Assim foi a famosa proibição da “briga de galos”, e abolir os anúncios nos intervalos das sessões de cinema, que nada tinham a ver com os importantes problemas nacionais. Abre frente contra o desperdício gasto em papel – à época, importado – nas edições dos principais jornais do país. Vai à televisão e apresenta edições de domingo dos jornais Estado de São Paulo e Jornal do Brasil, exibindo grosso calhamaço. Transpira a notícia haver determinado que o Estado-maior do Exército estude um plano de invasão das Guianas. Envia missão extraordinária, chefiada pelo jornalista João Dantas, diretor do Diário de Notícias à área socialista. Condecora Che Guevara, líder exportador da Revolução Cubana para a América, com a medalha da Ordem do Cruzeiro do Sul, a mais alta condecoração do Brasil. Envia o vice-presidente João Goulart para, em missão extraordinária, visitar a China. 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
Paralelamente à repercussão dessas medidas, começa a circular a notícia de golpe iminente, com fechamento do Congresso, a ser executado por Jânio Quadros. Na noite do dia 24 de agosto, Carlos Lacerda, então governador do estado da Guanabara, ocupa por várias horas a televisão para denunciar o golpe. Na manhã do dia 25 de agosto, em Brasília, na solenidade do Dia do Soldado, os três ministros militares, em ordem do dia – presente Jânio Quadros – pela palavra do ministro Odilio Denys, fazem ao presidente da República enérgica advertência, com evidente ligação com a denúncia da véspera feita por Carlos Lacerda. Retira-se Jânio Quadros. Ele próprio datilografa uma carta-renúncia e viaja para São Paulo, onde vai para a base
aérea de Cumbica na capital do estado. Lá permanece aguardando os acontecimentos, como se esperasse uma reação de apoio. Consta que ao chegar a São Paulo, foi recebido pelo então governador Carvalho Pinto, mantendo áspero diálogo, chegando a agredi-lo, o que levou o governador a ter que engessar um dos braços. Os ministros militares viajam para o Rio de Janeiro. O Congresso Nacional aceita a renúncia e o presidente da Câmara, deputado Raniere Mazily assume o exercício da presidência da República, nomeando chefe da Casa Militar o general Ernesto Geisel. Até hoje o episódio da renúncia é objeto de controvérsia, no que se refere a sua interpretação. Nunca Jânio Quadros esclareceu os verdadeiros motivos, embora em entrevistas em 1976, à revista Manchete e à Folha de São Paulo, tenha dado sua versão, alegando razões de consciência em face da hostilidade do Congresso. Fato insofismável é que Jânio esperava que o povo não aceitasse sua renúncia é tampouco esquecera de levar consigo a faixa presidencial que, ao renunciar, não mais lhe pertencia. Vendo-se frustado pelas denúncias do governador da Guanabara e colhido de surpresa com a advertência dos ministros militares de cuja ação dependia superestimou seu prestígio populista, julgando certamente o que se reproduziria na História do Brasil: o “fico”. Jânio ficou à espera em Cumbica. Os ministros militares reagiram à posse de João Goulart e a nação mergulhou em dias de imensa dúvida. A importância do CONTEL equivalia a que teve a EMBRATEL, tais os poderes que enfeixava nas comunicações. À época da renúncia, servia na diretoria de estudos e pesquisas tecnológicas, como chefe, o general Delson Mendes da Fonseca, muito ligado ao general Kruger. A partir do dia 27 de agosto, no CONTEL, participei de todos os acontecimentos, movimentos e decisões no sentido de impedir a posse de João Goulart. Pelos meios de comunicação auscultava-se tudo o que se passava no Brasil. A par desse trabalho, desenvolvíamos intensa ligação com as autoridades militares, levando-lhes informações sobre a situação do Rio Grande do Sul, onde o então governador, Leonel Brizola, sentindo a oposição à posse de seu cunhado João Goulart, organizou o foco da resistência, através da famosa “cadeia da legalidade”, irradiada da capital do estado pela Rádio Guaíba. Determinou que a brigada militar protegesse o palácio do governo e dali, utilizando a invejável potência da mesma rádio, transmitia em ondas médias e curtas, durante 24 horas, para o Brasil e para o exterior, em várias línguas, notícias conclamando o povo e as forças armadas a defenderem a legalidade, com a posse de Goulart. Era comandante do III Exército, em Porto Alegre, o general Machado Lopes, que recebeu ordens do ministro Odílio Denys para prender o governador Leonel Brizola e ocupar o Palácio Piratini. Contrariando a ordem recebida, Machado Lopes entende-se com o governador e adere ao
movimento a favor da posse de João Goulart. Em conseqüência, o ministro da Guerra demite o general Machado Lopes e nomeia para substituí-lo o general Oswaldo Cordeiro de Farias, ex-integrante da FEB e com grande prestígio nas forças armadas, que nunca assumiu o cargo. Quanto à força aérea, com base em Canoas, considerando o posicionamento dos oficiais, foi feito um “acordo de cavalheiros”. Os aviões deixariam a base aérea, com a condição de voarem desarmados, o que foi cumprido. Na China, sabedor da renúncia, João Goulart regressa rápido ao Brasil. Sem condições de aterrissar em Brasília, ou em outro qualquer ponto do território, à exceção de Porto Alegre. Para lá se dirige, onde é recebido em triunfo. Os dias passam e no CONTEL o trabalho é ininterrupto. Através da escuta e da interceptação de telegramas, tomávamos conhecimento das comunicações com Porto Alegre. Intensa é a movimentação de Tancredo Neves, pela posse de João Goulart. Nos telegramas, seu código era “titio”. Na euforia que imperava em Porto Alegre, João Goulart, toma posse como presidente da República, ao arrepio do previsto na Constituição. As estações dos Correios e Telégrafos em Jacarepaguá (RJ) gravavam todas as transmissões de Porto Alegre. Por ordem do CONTEL, as comunicações com Brasília são interrompidas. Dois contatos importantes fiz nesse período: um, com o comandante da Vila Militar, general Adhemar de Queiroz, onde fora levar cartuchos do “canhão 155mm”, produzidos às pressas pela fábrica de Realengo, e cujo projeto estava sob minha supervisão na diretoria de estudos e pesquisas tecnológicas. O grupo de artilharia “155mm” recebera ordem de embarque. Aproveitei a ocasião para informá-lo de que no 3º Batalhão de Carros de Combate, onde servia um filho do coronel Rodolfo Navegantes, meu velho companheiro, a totalidade dos sargentos e quase todos os oficiais comprometidos com seu ex-comandante, Anaurelino Vargas, eram favoráveis à posse de João Goulart. No Rio Grande do Sul, várias guarnições recusaram receber ordens do general Machado Lopes, tendo sido organizado um núcleo de resistência em Santa Maria, cidade central do Rio Grande do Sul. Nesse contexto, na iminência de uma guerra civil, surge a idéia promovida por alguns generais de ser dada posse a João Goulart, limitando-lhe os poderes. O senador Afonso Arinos que viera ao Rio de Janeiro para esse fim, regressa a Brasília para dar curso à adoção do parlamentarismo. Constantes eram os contatos do general Paulo Kruger com o ministro Denys e com o general Nestor Souto de Oliveira, comandante do I Exército. A unidade dos ministros Militares e o pensamento contra a posse de João Goulart era assunto inquestionável. Enquanto isso, o Congresso Nacional aprovava, em medida urgentíssima, no dia 2 de setembro, a emenda constitucional nº 4, instituindo o sistema parlamentar de governo, que em seu artigo 25 previa que lei específica poderia dispor 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27
“Nesse contexto, na iminência de uma guerra civil, surge a idéia promovida por alguns generais de ser dada posse A João Goulart, limitando-lhe os poderes. O senador Afonso Arinos que viera ao Rio de Janeiro para esse fim, regressa a Brasília para dar curso à adoção do parlamentarismo.”
sobre a realização de plebiscito que decidiria pela manutenção do sistema parlamentar ou pela volta ao sistema presidencial. Em tal hipótese, deve-se fazer a consulta plebiscitária nove meses antes do término do atual período presidencial. Desta forma estava praticamente assegurado que João Goulart seria presidente de um governo parlamentarista, pelo menos até 9 meses antes de terminar seu mandato. Ao chegar ao CONTEL, deparei-me com um telefonema do Major Miranda Carvalho, da Secretaria do Conselho de Segurança Nacional, chefiada pelo coronel Golbery, para que fosse determinado o levantamento da interdição das comunicações com Brasília, a fim de ser divulgada a aprovação da emenda parlamentarista. Ponderei e insisti que fosse antes anunciada a posse de João Goulart em Porto Alegre, ao arrepio da Constituição, por julgar que a importância dessa notícia reforçava o posicionamento dos ministros militares contra a posse de João Goulart. A seguir, novo telefonema de Miranda Carvalho, informando-me que deveria ser cumprida a ordem de Golbery para abrir as comunicações com Brasília, para que se anunciasse a emenda parlamentarista. Levantada a interdição, ao mesmo tempo que as rádios e televisão anunciavam a emenda parlamentarista, ligações telefônicas eram efetuadas de Brasília para Porto Alegre. Pouco depois, chegava comunicação da Estação dos Correios e Telégrafos, em Jacarepaguá, de que haviam sido gravadas conversas telefônicas do Sr. João Goulart com os principais líderes políticos que se sucediam: senador Áureo de Moura Andrade, deputados Batista Ramos, Doutel de 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
Andrade, etc. As conversações versavam sobre a emenda parlamentarista; queixas de João Goulart por ter sido obrigado a chegar ao Brasil pela porta dos fundos, isto é, pelo Sul; de não estar aceitando a emenda parlamentarista, por ver diminuídos seus poderes e estar propenso a só ir para Brasília, com todas as garantias e sem diminuição de poderes nem humilhações; perguntas sobre a posição dos ministros militares, sendolhe informado que dois já tinham cedido e que o terceiro também cederia; reclamações de que não se sentia seguro quanto à posse em Brasília, pois os ministros militares deveriam estar lá. Seus interlocutores faziam todos os esforços para convencê-lo de que não havia diminuição de seus poderes; que esta fórmula foi a única encontrada para permitir que os militares concordassem com sua posse; exortavam João Goulart para que se desmentisse pela rádio Guaíba que havia tomado posse em Porto Alegre e se negado a fazê-lo; que a emenda continha o máximo que conseguiram para concordância dos ministros militares; e, finalmente, garantiam que em futuro breve iria ter seus poderes restabelecidos. Na realidade não houve concordância dos ministros militares. Houve, sim, por parte de alguns generais, movimento nesse sentido para impedir o que acreditavam que pudesse transformar o episódio da renúncia numa guerra civil. Enquanto esse movimento se processava, os três ministros militares, coesos, não cessavam de afirmar: “Jango não toma posse, só o fará com nosso sacrifício”. Essa era a informação sempre obtida pelo general Paulo Krugger, ainda na véspera da aprovação da emenda parlamentarista e a mim transmitida. Após divulgada a emenda parlamentarista, chega-nos a notícia de que a operação “Pintassilgo”, da FAB, havia fracassado. Consistiria essa, na missão da derrubada do avião que conduzisse João Goulart para Brasília, quando voasse de Porto Alegre. Ocorre que um rebate falso sobre o vôo desencadeou a operação, sem êxito. Estávamos escutando as gravações das conversas de João Goulart com os parlamentares, quando recebeu o tenentecoronel Martinelli comunicação do censor na Agência Nacional, major Auriz, diretamente de Brasília, pelo telefone oficial, ordens para difundir o seguinte: “Não há nenhum fundamento na notícia de minha posse na presidência da República em Porto Alegre. A minha posse será em Brasília, conforme solicitei ao presidente do Congresso, na próxima segunda-feira, dia 4 às 15 horas” – declarou Goulart, ontem pelo telefone ao deputado Doutel de Andrade e ao senador Áureo de Moura Andrade, presidente em exercício do Senado. João Goulart outorga ainda ao deputado Doutel de Andrade a divulgação de sua declaração, a fim de terminar com a exploração em torno de sua posição no atual quadro político brasileiro (a) Reinaldo Ribeiro, Secretário de Imprensa (Ordem da Presidência, escrita em frente do general Ernesto Geisel). Encontrei Golbery bastante contrariado, sem entender
o que se passara. Procurei esclarecer que eu é que estava surpreso. No CONTEL, por todas as informações correntes, o veto à posse de João Goulart era assunto resolvido entre os ministros militares. Retrucou que eu estava mal informado, pois a emenda parlamentarista era a solução. Quanto ao objeto de minha ida ao Conselho – a gravação da conversa – desinteressou-se. Retornei ao CONTEL, onde gradativamente iam chegando companheiros. Tomando conhecimento do que se passara, resolvemos – o major Aroldo Soares dos Santos, o coronel Navegantes e eu – levar a gravação ao conhecimento do almirante Silvio Heck, ministro da Marinha. Por volta das 23 horas chegávamos a seu gabinete, no ministério da Marinha. Fomos recebidos pelo almirante Acyr Dias de Carvalho Rocha, chefe do gabinete do ministro, que depois de inteirar-se dos acontecimentos, afirmou-nos com convicção: “Não vou acordar o almirante Silvio Heck, pois recolheu-se a pouco, muito cansado. Posso, porém, afirmar, em seu nome, que o compromisso dos ministros militares, vetando a posse de João Goulart, é fato irreversível. Podem ficar tranqüilos. Não sei o que poderá acontecer: se o avião não chegará, se será impedida a posse, mas o certo é que João Goulart não tomará posse”. Face essa afirmação, resolvemos levar ao general Adhemar de Queiroz, comandante da Vila Militar, a gravação, esperando lá colher sua posição sobre os acontecimentos. Chegamos ao amanhecer. Encontramos o General Adhemar de Queiroz muito nervoso e contrariado, pois estavam chegando, presos à Vila Militar, oficiais e sargentos do 3º Batalhão de Carros de Combate que se negaram a embarcar com destino ao estado de São Paulo Inteirando-se da razão de nossa ida, disse-nos o general Adhemar ter sido informado pelo deputado Raimundo Padilha sobre a emenda parlamentarista, retirando os poderes de João Goulart. Face às informações de que estávamos lhe transmitindo sobre a gravação das conversas de João Goulart com os parlamentares, garantindo que breve teria restituídos seus poderes, seria bom que o deputado Padilha escutasse a gravação. Fez uma ligação para o deputado, avisou-o da nossa ida. Pessoalmente, o general Adhemar nada podia fazer. Todo o efetivo da Vila Militar deslocara-se para São Paulo e a tropa já estava na divisa com o estado do Paraná, aguardando as ordens. De retorno à cidade, já dia claro, resolvemos ir primeiro ao CONTEL. Lá encontramos o general Paulo Krugger, a quem relatei a odisséia desde a noite da véspera. O general achou melhor telefonar para o general Nestor Souto de Oliveira, comandante do I Exército, relatando-lhe o ocorrido. Ficou Nestor responsável por contactar o general Dennys e, logo a seguir, do palácio Laguna, residência oficial do ministro, telefonou ao general Krugger, solicitando que levássemos a gravação. Éramos três: o general Krugger, o coronel Garcez e eu. Ao entrarmos, para nossa surpresa, deparamo-nos com grande número de oficiais, generais, almirantes e brigadeiros.
“No entanto, não podia imaginar que sua duração como presidente da República findaria com sua deposição em 1º de abril de 1964. Uma lástima inSUPERÁVEL para o país.”
Logo percebemos que essa reunião seria para aprovação formal da emenda parlamentarista. Aproximou-se o almirante Saldanha da Gama que solicitou-nos que fosse ligado o gravador. Escutou e afastouse sem comentários. Pouco depois, aproximou-se o ministro Denys, dizendo: “É, está muito baixo, quase não dá para ouvir”. Inflamados, procurávamos mostrar que a guerra tinha sido ganha no “grito”, sem aquilatar-se o risco em que mergulharíamos. Nesse ambiente de início de frustação para aqueles que desejavam a aprovação dos presentes para a emenda, intervém o general Orlando Geisel, retornando ao salão. Procura o general Krugger e solicita nossa retirada. Fomos avisados que a reunião teria, a seguir, caráter sigiloso. Encontramo-nos com o coronel Gustavo Borges, diretor dos Correios e Telégrafos. Demos-lhe a notícia. Ficou estupefato com o que ouvia. Ainda não tinha essa certeza. Iria comunicar-se com o governador Carlos Lacerda. Em 23 de janeiro de 1963, teve o presidente João Goulart devolvidos seus poderes, pois o Congresso aprovava a emenda constitucional nº 6, revogando a de nº 4, que instituíra o sistema parlamentar do governo; retornando o regime presidencialista, sob a égide da Constituição de 1946, uma vez que no plebiscito nacional realizado naquele mês, 80% dos eleitores optaram pelo retorno ao presidencialismo. No entanto, não podia imaginar que sua duração como presidente da República findaria com sua deposição em 1º de abril de 1964. Uma lástima insuperável para o país. 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29
CONTRATO DE TRANSPORTE Letícia Sardas Desembargadora
Este tema foi abordado pela desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Letícia Sardas, durante seminário realizado em Mangaratiba, interior fluminense. Sobre questões jurídicas relevantes no transporte coletivo.
Introdução Com o advento da nova codificação civil brasileira, que entrou em vigor em janeiro de 2003, incluiu-se um capítulo dedicado exclusivamente ao contrato de pessoas e de coisas. É evidente e importante a inovação, uma vez que a codificação deu novo tratamento legal às regras relativas ao transporte de pessoas e de coisas que vinham sendo tratadas em leis extravagantes e na jurisprudência. Não é demais lembrar o relevante papel da jurisprudência pátria no delineamento de matérias referentes ao contrato de transporte, principalmente no que se relaciona à responsabilidade civil do transportador. Aliás, conforme proposto pelo ministro Eros Grau, com a nova codificação, houve a transposição da matéria do direito 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
pressuposto para o direito posto, apresentando um desenho legislativo que em poucos artigos condensou todos os pontos polêmicos existentes sobre a matéria e que vinham sendo resolvidos pela jurisprudência pátria. Assim é que, nas disposições gerais – artigos 730 a 733 –, o novo Código Civil reservou uma seção para os preceitos comuns a todos os contratos de transporte. Em seguida, em seções próprias, estabeleceu as regras para o transporte de pessoas (artigos 734 a 742) e para o transporte de coisas (artigos 743 a 756). As novas normas codificadas, no entanto, não modificaram a totalidade do regramento jurídico dos transportes, restando claro, nas disposições gerais que, quando se tratar de transporte exercido em virtude de autorização, permissão ou concessão, sem
prejuízo do disposto neste Código, a prestação do serviço regerse-á, em primeiro lugar, pelas normas regulamentares e pelo que foi estabelecido no ato administrativo (artigo 731).
O novo Código Civil ainda reconheceu a existência de leis especiais e tratados acerca de determinadas modalidades de transporte, tais como o transporte ferroviário, aéreo e marítimo, desde que não estejam em contradição com as novas regras codificadas (cf. artigo 732).
Distribuição da competência e incidência da regulamentação aplicável Autorização, Concessão e Delegação A Constituição Federal contém a base das normas que Serviço autorizado é aquele que o poder público, por ato disciplinam a distribuição de competência na realização e na unilateral, precário e discricionário, consente na sua execução regulamentação em matéria de transporte; valendo lembrar por particular para atender a interesses coletivos instáveis ou que, levando em consideração o meio utilizado, são vários os emergência transitória1. tipos de transporte, como por exemplo o transporte terrestre, Serviço permitido é o ato administrativo negocial, que pode ser ferroviário e rodoviário. discricionário e precário, pelo qual o poder público faculta Como regra geral, o artigo 175 da Constituição Federal ao particular a execução de serviços de interesse coletivo, ou dispõe que incumbe ao poder público, na forma da lei, o uso de bens públicos, a título gratuito ou remunerado, nas diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, condições estabelecidas pela administração. sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Serviço concedido é a transferência a um particular As alíneas d e e do inciso XII do artigo 21 da Constituição (concessionário) de um serviço público, cuja execução Federal determinam a competência da União para explorar, compete ao poder público diretamente ou mediante autori(concedente), sob sua fiscalização zação, concessão ou permissão, os serviços de transporte ferroviário “O novo Código Civil e mediante pagamento de tarifas pagas pelo usuário. e aquaviário entre portos brasileiconceituou, no artigo Arnaldo Rizzardo, na obra ros e fronteiras nacionais, ou que intitulada “Contratos”, Editora transponham os limites de estado 730, o contrato de Forense, 6a. edição, Rio de ou território, bem como os servitransporte de pessoa Janeiro, 2006, p. 792, defende ços de transporte interestadual e a idéia da figura da permissão internacional de passageiros. ou coisas como o no transporte, afirmando que o Nos termos do inciso V do contrato pelo qual serviço em si é particular, sendo artigo 30 da CF compete aos público o interesse. municípios organizar e prestar, alguém, mediante “O transporte é exemplo mais diretamente, ou sob regime de retribuição, se obriga a apropriado de serviço permitido, concessão ou permissão, serviços que unicamente a utilidade tem de interesse local, nos quais se transportar de um lado eis feição pública, o que importa não inclui o transporte coletivo. para o outro, pessoas somente sua regulamentação mais Acrescente-se que, nos pormenorizada, mas a própria termos do §1o do artigo 25 da ou coisas.” CF, o transporte intermunicipal vigilância e o controle para o bom é da competência dos estados funcionamento, como se dá no membros. transporte coletivo.” Desta forma, a regra geral é a de que exploração do serviço de transporte de coisas e de pessoas é reservada ao poder Conceito e natureza jurídica do contrato de público, que pode delegá-la à iniciativa privada. transporte A execução ou exploração do serviço público delegada O novo Código Civil conceituou, no artigo 730, o contrato de transporte de pessoa ou coisas como o contrato aos particulares (pessoas jurídicas de direito privado), está submetida a regras de direito público (autorização, permissão, pelo qual alguém, mediante retribuição, se obriga a transportar de um lado para o outro, pessoas ou coisas. concessão) e os atos regulamentares fixam as regras e as condições que regerão o serviço delegado. Alguns autores, antes da codificação do contrato de Esta regra é bastante clara no artigo 731 do novo Código transporte, chegaram a atribuir ao transporte de coisas Civil. a natureza de mandato mercantil, afirmando que o Ou seja, a empresa privada transportadora de pessoas transportador se encarregava de uma gestão em favor do dono da mercadoria. ou coisas está submetida aos atos regulamentadores da administração pública, cumprindo, por exemplo, percursos, Doutrinadores, examinando sob outro ângulo, qualifihorários e tarifas; mas, perante os usuários, sujeita-se às regras caram o contrato de transporte como um contrato de dede obrigações e responsabilidades estipuladas no Código pósito, dizendo que o transportador desempenhava a tarefa Civil. de guardar e entregar a coisa, o que o fazia responsável pela
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“Ressalte-se que o artigo 736, complementando a norma do artigo 730, excluiu, expressamente, o contrato gratuito, por amizade ou cortesia, enquanto o parágrafo único excepcionou a hipótese do contrato que, embora feito sem remuneração, possibilita ao transportador o recebimento de vantagens indiretas.”
mercadoria. Outros reduziram o contrato de transporte ao de arrendamento de coisas ou à locação de serviços. O conceito legal afasta o contrato de transporte de pessoas e de coisas de outros contratos afins, tais como o contrato de locação de coisas, de prestação de serviços e de empreitada, deixando claro que o expedidor se encontra condicionado ao transporte de uma coisa de um lugar para outro. Com a codificação, pode-se dizer, sem erro, que o contrato de transporte de pessoas e coisas é um contrato típico, com obrigação de resultado, correndo os riscos do empreendimento por conta do transportador, não mais se confundindo com os contratos clássicos do direito de contratar. Características do contrato de transporte Para José de Aguiar Dias, o conteúdo jurídico do contrato de transporte se traduz na obrigação, extraída da própria natureza do contrato, e imposta ao transportador, de efetuar o transporte, pelo meio que oferece ao público e nas condições e no tempo que constam da passagem, dos anúncios, ou da prática quotidiana. Se falta alguma dessas condições, descumpre o contrato, cabendo-lhe provar o caso fortuito ou força maior. O contrato de transporte caracteriza-se como contrato bilateral, consensual, oneroso, comutativo, não solene, de duração e de adesão. É bilateral porque gera obrigações não só para o transportador como para o transportado ou o dono da coisa transportada. É consensual porque se aperfeiçoa com o consentimento recíproco das partes. Destaque-se que o contrato está ajustado desde a compra do bilhete, gerando direitos e obrigações para ambas as partes. O transportador, no entanto, só responde pelo serviço contratado, se o passageiro entrar no veículo ou se a coisa lhe 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
for entregue para o transporte de um local a outro. É oneroso porque exige o pagamento de um preço. Ressalte-se que o artigo 736, complementando a norma do artigo 730, excluiu, expressamente, o contrato gratuito, por amizade ou cortesia, enquanto que o parágrafo único excepcionou a hipótese do contrato que, embora feito sem remuneração, possibilita ao transportador o recebimento de vantagens indiretas. É comutativo porque há correspondência entre as obrigações e vantagens que cada parte contrai e desfruta. É não solene porque seu aperfeiçoamento não se subordina a qualquer formalidade. Relevante lembrar, repetindo a lição de Maria Helena Diniz, que o bilhete constitui prova do contrato de transporte, mas a falta, irregularidade ou perda do bilhete de passagem não prejudica a existência e eficácia do contrato, dentro do prazo de validade. Ou seja, entende-se que a hipótese é de escritos de legitimação, pois se o passageiro foi admitido a bordo ter-se-á como concluído o contrato de transporte, de forma oral ou tácita. É de duração porque o cumprimento da obrigação não se realiza em um único momento, prolongando-se no tempo de forma continuada. É de adesão porque, estando a atividade empresarial de transporte de pessoas ou de coisas, submetida ao regime de fiscalização e concessão do poder público, prevalecem condições uniformes e tarifas invariáveis, permitindo a formalização de contratos impressos aos quais aderem os usuários. Excepcionalmente, nos contratos de transporte individual, nada impede a livre negociação, com o estabelecimento de cláusulas e condições, afastando a característica de contratotipo ou de adesão. Transporte cumulativo e transporte sucessivo
Ocorre o transporte cumulativo previsto no artigo 733 do novo Código Civil quando vários transportadores efetuam o deslocamento contratado. Para caracterizar o transporte cumulativo é necessário que haja unidade do contrato com vinculação de pluralidade de transportadores. Ou seja, há um único contrato, pelo qual vários devedores se obrigam a transportar pessoas ou coisas a seu destino final. Se não houver a vinculação de todos os transportadores, a hipótese é de transporte sucessivo, que se caracteriza por uma cadeia de contratos, cada um dos devedores com obrigação independente dos outros. Questão que fatalmente será objeto de interpretação jurisprudencial é a referente à responsabilidade dos transportadores vinculados, valendo notar que o §3o do artigo 733 fala em solidariedade quando um dos transportadores for substituído no decorrer do percurso. A doutrina já vem se posicionando, defendendo uns o fracionamento da responsabilidade dos transportadores, enquanto outros falam em ampla responsabilidade solidária entre os empresários que figuram na cadeia do transporte cumulativo. Na busca da ratio legis, como critério de interpretação da nova ordem jurídica, constata-se que durante a tramitação do projeto do novo Código Civil, o deputado José Bonifacio Neto apresentou proposta de emenda, que substituía a atual redação do artigo 733, atribuindo, expressamente, ao expedidor ou ao transportador com que se contratou o transporte cumulativo, a responsabilidade solidária pela execução do transporte, assim como pelos danos. Com a rejeição da emenda e da interpretação literal do artigo 733 parece que a intenção do legislador foi fracionar a responsabilidade segundo os trechos de que se encarregou cada um dos transportadores. Vale repetir a norma do artigo 733 e parágrafos: Art. 733 – Nos contratos de transporte cumulativo, cada transportador se obriga a cumprir o contrato relativamente ao respectivo percurso, respondendo pelos danos nele causados a pessoas e coisas2. §1o – O dano, resultante do atraso ou da interrupção da viagem, será determinado em razão da totalidade do percurso. §2o – Se houver substituição de algum dos transportadores no decorrer do percurso, a responsabilidade solidária estenderse-á ao substituto3. Não se pode esquecer, no entanto, que o §3o fala em extensão da responsabilidade solidária, o que pode levar ao entendimento de que a solidariedade já existia em face do substituído. Ou, conforme afirmação de Humberto Theodoro Junior (Do Transporte de Pessoas no Novo Código Civil, RT – 807, janeiro de 2003, p. 18), o substituto se torna solidário porque o substituído já era solidário com os outros transportadores colegiados. Pontes de Miranda repudiava a solidariedade solidária nos
contratos cumulativos, asseverando, nos termos do artigo 896 do antigo Código Civil, que a solidariedade não se presume, resultando da lei ou do contrato. Não é demais lembrar que não havia qualquer normatização para o contrato cumulativo, que dependia somente da vontade das partes e que o respeitado doutrinador aplicava ao contrato as regras das obrigações indivisíveis, dizendo que o contrato é um só e o que se prometeu foi o resultado. Assim, se a promessa é de resultado final, são inseparáveis os resultados parciais, respondendo cada um dos transportadores pelo transcurso todo, indivisivelmente. A teoria defendida por Pontes de Miranda produzia para os usuários conseqüências equivalentes à solidariedade. O tema, portanto, ressurge com novas tintas, valendo lembrar que o §1o do artigo 733 ressalta o caráter unitário do transporte cumulativo, ao prever que o dano, resultante do atraso ou da interrupção da viagem, será determinado em razão da totalidade do percurso. Ressalte-se, outrossim, que a norma legal em vigor (§ 2o do artigo 733) proclama a responsabilidade solidária passiva entre os transportadores que se obrigam ao transporte cumulativo; logo, não mais será necessário socorrer-se da teoria da indivisibilidade para submeter todos os transportadores a responder pelo resultado final. Equilíbrio econômico e financeiro dos contratos e modicidade tarifária Talvez o maior desafio do regulador seja o de definir o que se entende por modicidade tarifária. A modicidade tarifária pode ser explicada como conseqüência do princípio constitucional da generosidade, por força do qual as tarifas devem ser o mínimo possível onerosas para os usuários. O tema é vasto e, por si só, demandaria um verdadeiro tratado, para a completa análise não só da tarifa módica como aquela acessível ao usuário, como a que permite que a concessionária desempenhe suas funções de modo efetivo e lucrativo. Esta exigência, no dizer de Arnold Wald, encontra respaldo na possibilidade de aferição de receitas através de fontes alternativas, favorecendo a redução da onerosidade da tarifa do serviço público. As principais fontes de receitas extraordinárias são: - receitas alternativas – são as decorrentes da substituição do pagamento tarifário por outra receita, como por exemplo, a publicidade no bilhete do metrô; - receitas complementares – são aquelas decorrentes de serviços externos à relação de consumo do serviço, necessárias para cobrir os custos da concessão e a remuneração da concessionária; - receitas acessórias – são as decorrentes da venda de utilidades ou comodidades que dependem da concessão para serem oferecidas, mas que não se confundem com ela, como por exemplo, a publicidade nas estações metroviárias; 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33
- receitas de projetos associados – são as decorrentes de atividades econômicas autônomas que se servem de um uso secundário da concessão, como por exemplo, aluguel dos túneis de metrô para cabeamento de fibra ótica, ou o compartilhamento dos postes de iluminação em rodovias. Na inserção das receitas extraordinárias é importante não esquecer que a concessão deve ser eficaz naquilo que é o objeto principal de seu serviço; logo, as receitas acessórias devem ficar num plano secundário. Destaque-se que a lei n.º 8.987/95 – Lei de Concessões, destinou um capítulo ao tema referente à Política Tarifária, dispondo: “Capítulo IV DA POLÍTICA TARIFÁRIA Art. 8o (VETADO) Art. 9o A tarifa do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação e preservada pelas regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato. §1o A tarifa não será subordinada à legislação específica anterior e somente nos casos expressamente previstos em lei, sua cobrança poderá ser condicionada à existência de serviço público alternativo e gratuito para o usuário. (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 27.05.99) §2o Os contratos poderão prever mecanismos de revisão das tarifas, a fim de manter-se o equilíbrio econômicofinanceiro. §3o Ressalvados os impostos sobre a renda, a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seu impacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para menos, conforme o caso. §4o Em havendo alteração unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração. Art. 10. Sempre que forem atendidas as condições do contrato, considera-se mantido seu equilíbrio econômicofinanceiro. Art. 11. No atendimento às peculiaridades de cada serviço público, poderá o poder concedente prever, em favor da concessionária, no edital de licitação, a possibilidade de outras fontes provenientes de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados, com ou sem exclusividade, com vistas a favorecer a modicidade das tarifas, observado o disposto no art. 17 desta Lei. Parágrafo único. As fontes de receita previstas neste artigo serão obrigatoriamente consideradas para a aferição do inicial equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Art. 12. (VETADO) Art. 13. As tarifas poderão ser diferenciadas em função das características técnicas e dos custos específicos provenientes do atendimento aos distintos segmentos de usuários.” Resta fácil concluir que não basta falar do equilíbrio entre os direitos e deveres dos usuários, do poder concedente e da 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
concessionária. O difícil, sem dúvida, é observar o princípio da modicidade tarifária, atendendo as regras do artigo 11 da lei n.º 8.987/95. Acrescente-se que a questão referente à fixação das tarifas públicas é sempre tormentosa para o poder judiciário, vez que é impedido de decidir sobre o mérito administrativo. Em recente decisão monocrática proferida pelo ministro Edson Vidigal, decidiu o STJ que, impedir o reajuste real da tarifa, nos termos previstos na permissão, causa sérios prejuízos financeiros à empresa concessionária, podendo afetar gravemente a qualidade dos serviços prestados e sua manutenção, implicando ausência de investimentos no setor, prejudicando os usuários, causando reflexos negativos na economia pública, porquanto inspira insegurança e riscos na contratação com a administração pública, afastando investidores, resultando em graves conseqüências também para o interesse público como um todo. (cf. suspensão de liminar nº. 213 – Rj – 2006.0010855-0). Conclusão As normas codificadas não introduziram relevantes mudanças no contrato de transporte de pessoas ou coisas, servindo, basicamente para sistematizar normas que se encontravam dispersas em leis especiais e para consolidar teses adotadas pela jurisprudência pátria. São pontos consagrados na nova sistemática: – o contrato de transporte é gerador de obrigação de resultado, cabendo ao transportador levar o passageiro ou a coisa até o destino contratado, mesmo que tenha de se utilizar de outro meio de condução (art. 741); – a responsabilidade objetiva do transportador (art. 734); – o direito do transportador de instituir o regulamento do transporte e de exigir que os usuários a ele se submetam (art. 738); – o direito do passageiro rescindir unilateralmente o contrato, recuperando o preço da passagem (art. 740); – a irrecusabilidade do passageiro (art. 739); – a isenção de responsabilidade no contrato gratuito, salvo se dele resultar vantagem indireta ao transportador (art. 736); – a aplicação das novas normas codificadas e a aplicação subsidiária do CDC.
NOTAS 1 Cf. Hely Lopes Meirelles – Direito Administrativo Brasileiro – Malheiros – 25a. edição – p. 368. 2 Ver artigo 756 do Código Civil, inserido no Capítulo VI – Dos condutores de gêneros e comissários de transportes: Art. 756 – No caso de transporte cumulativo, todos os transportadores respondem, solidariamente pelo dano causado perante o remetente, ressalvada a apuração final da responsabilidade entre eles, de modo que o ressarcimento recaia, por inteiro, ou proporcionalmente, naquele ou naqueles em cujo percurso houver ocorrido o dano. 3 Ver artigos 275 a 285 do Código Civil – Capítulo VI - Das obrigações solidárias – Seção III – Da solidariedade passiva.
FIRME COMBATE À CORRUPÇÃO Antonio Ermírio de Moraes Empresário
E
m artigo publicado neste espaço em 13.08.06, defendi a idéia de que pouco adianta saber se a corrupção que atinge os três poderes na nação – com honrosas exceções – é maior ou menor do que a do passado ou se causa mais prejuízo hoje do que ontem. O que mais me preocupou ao escrever aquele artigo foram os estragos que esse câncer moral ocasiona na juventude brasileira. Isso não significa um menosprezo pela dimensão econômica do problema. Estudos realizados pelo professor Marcos Fernandes Gonçalves de Souza e colaboradores chamaram minha atenção para o quanto a corrupção compromete a produtividade do Brasil e o seu crescimento econômico (A Economia Política da Corrupção no Brasil, 2000; “How does corruption hurt growth”, 2006). Os economistas reconhecem serem controversas as medidas de corrupção e de produtividade. Alertando para a necessidade de cautela, os autores citados estimaram a corrupção com base nos levantamentos da percepção dos agentes econômicos e a produtividade, com base no quociente do PIB per capita. Aplicadas ao nosso país, as estimativas produziram resultados aterrorizantes. O Brasil perde cerca de US$3,5 bilhões por ano em decorrência de problemas criados por quem “inventa dificuldades para vender facilidades”. É muito dinheiro. Isso daria para fazer investimentos colossais em infra-estrutura, saúde, educação e segurança. No nível individual, a corrupção, em si, reduz em cerca de 43% a renda per capita dos brasileiros, concluem os autores. Por isso, a dimensão econômica tem de ser levada a sério. Há ainda efeitos econômicos indiretos e que não podem ser medidos, na medida em que a corrupção vai esgarçando o tecido social, provocando a descrença nos valores éticos, enaltecendo a esperteza, cultivando a nefasta “filosofia” do “rouba, mas faz” e desorientando as mentes das nossas crianças e jovens. Nada disso cabe em um modelo matemático. Mas a minha intuição diz que seu poder destrutivo é maior do que aquilo que é “matematizável”, pois diz respeito à falência moral da sociedade. Corrupção é uma doença incurável e bastante generalizada. Mas, como o diabetes, ela deve ser rigorosamente controlada, como fazem muitos países – aliás, com bastante sucesso.
Não podemos ficar parados. Precisamos melhorar muito nossas instituições, em especial a Justiça, para, então, operacionalizarmos um programa eficiente de combate à corrupção em nosso país. Espero que os dirigentes dos três poderes ajudem a salvar a juventude do Brasil. Se não atrapalharem, será uma grande contribuição. 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35
FURTO E FRAUDE DE ENERGIA ELÉTRICA Braz Pesce Russo Diretor Jurídico da ABRADEE.
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atos que mobilizam há décadas os esforços das distribuidoras de energia elétrica são aqueles que dizem respeito às ocorrências de furto de energia elétrica e de fraudes perpetradas para o recebimento irregular dessa mesma energia. Costuma-se conceituar, nas exposições sobre o tema, que o furto da energia é o ilícito penal cometido por quem, não sendo consumidor, usa clandestinamente coisa alheia móvel. Já a fraude, seria a ação de locupletamento por quem, sendo consumidor, viola o sistema de medição para a obtenção de um registro menor que a quantidade de energia consumida. É o próprio Código Penal Brasileiro que equipara, no capítulo de Furto, que “equipara-se à coisa alheia móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico.” Diz mais, que a pena de reclusão é de 2 a 8 anos além da multa se o crime ocorrer mediante “abuso de confiança ou mediante fraude”. Ora, raros são os casos de furto de energia elétrica cometidos sem que se rompa a confiança que o concessionário concede ao consumidor, quando lhe dá a guarda do equipamento de medição e, mais raros ainda, são as violações não serem perpetradas, a não ser mediante fraude aos lacres e fios condutores. Portanto, a par de se constituir numa prática delituosa específica, há ainda, nessa prática, contornos de capitulação nos crimes de periclitação da vida e da saúde, ao expor a vida de terceiros a perigo direto e iminente de uma descarga elétrica fatal. Mas o ilícito não é só no campo criminal, o que seria punível e reprovável em todos os aspectos. À falta de punibilidade em razão da dificuldade de se apontar, com segurança, o autor do delito, torna a prática do furto e da fraude um ato incentivador de atos iguais. Ao lado da questão criminal e do risco de vida que essa prática acarreta, há a questão econômica que disso deriva e que, ao final, coloca em risco a preservação do equilíbrio dos contratos de concessão. A suspensão do fornecimento de energia elétrica nos casos de fraude ou de furto de energia elétrica vem se mostrando cada vez mais presente no dia-a-dia do Judiciário, tal o sucesso que os fraudadores vêm obtendo, com facilidade, na conquista de liminares diante da “fragilidade” da regulamentação que autoriza o “corte da energia”. Recentemente, a Agência Reguladora do Setor Elétrico (ANEEL) divulgou “que o furto de energia elétrica nas favelas do país alcança o índice de 70%”; vale dizer que apenas 30% das unidades consumidoras localizadas nas favelas são regulares. Segundo dados levantados pela ABRADEE (Associação Brasileira dos Distribuidores de Energia Elétrica), as perdas comerciais, decorrentes do furto e fraude de energia elétrica, totalizam aproximadamente 15.000 GWh/ano, representando cerca de 5% de toda a energia gerada no país. Para se ter uma idéia de grandeza, esse montante de fraude e furto apurado equivale ao consumo anual do estado de Santa Catarina e corresponde a um valor próximo de R$ 4,5 bilhões/ano. Traduza-se isso no quanto representa em evasão de tributos, notadamente o ICMS e o PIS/COFINS que deixa de ser recolhido aos cofres do governo. Verifica-se que os prejuízos experimentados pelas concessionárias distribuidoras
“Mas o ilícito não é só no campo criminal, o que seria punível e reprovável em todos os aspectos. A falta de punibilidade em razão da dificuldade de se apontar – com segurança, o autor do delito, torna a prática do furto e da fraude um ato incentivador de atos iguais.”
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“Na tentativa de encaminhar uma solução, algumas empresas passaram a utilizar o IPEM (InstituTo de Pesos e Medidas), órgão oficial e especializado para fazer as constatações, e os resultados desta experiência vÊm se mostrando positivos.”
de energia elétrica estão a cada dia maiores e que a fragilidade da regulamentação atualmente existente termina por tornar a situação ainda mais delicada frente ao poder judiciário, que não reconhece a concessionária como legitimada para a constatação da fraude e nem mesmo reconhece o poder impositivo da regulamentação disciplinada pelo órgão regulador ao consumidor. A questão é que a Resolução Normativa 456, da ANEEL, prevê, em seu artigo 72 que, constatada a irregularidade, seja lavrado um TOI (Termo de Ocorrência de Irregularidade) pela concessionária. Prevê, ainda, que deverá ocorrer perícia técnica a ser realizada por terceiro habilitado, caso o consumidor assim o queira, e, no resguardo do contraditório, determina a abertura de um prazo de 10 dias para apresentação de defesa do consumidor (artigo 78). Pois bem. Em cumprimento às normas editadas pelo órgão regulador, as concessionárias, ao constatar a fraude, têm colhido uma “concordância” do consumidor-fraudador no momento da inspeção, e logo em seguida, elabora o cálculo e encaminha a notificação ao consumidor que pode efetuar o pagamento ou apresentar sua defesa. Se indeferida a defesa, é notificado para pagamento sob pena de “corte”. E, é nesse momento que o consumidor vai a juízo, para obter liminar que suspenda o “corte”, alegando que a constatação é ato unilateral e que a concordância no TOI foi dada sem conhecimento das conseqüências. Por fim, negam a autoria da fraude, alegam que jamais poderiam ter feito o “gato”, uma vez que somente a concessionária tem acesso ao medidor e, diante disso, se socorrem do Judiciário que, sem nenhuma oitiva da outra parte, dá-lhe a cautela que, em muitos casos, transforma-se num verdadeiro “salvo-conduto” para o não pagamento de todas as contas futuras. E o restabelecimento da energia (ou a proibição de suspender seu fornecimento), sem nem mesmo delimitar esta continuidade às faturas postas em discussão, faz com que a concessionária preste seus serviços gratuitamente, mesmo que o consumidor continue a não efetuar o pagamento de contas regulares. O argumento 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
invocado, equivocadamente, é da hipossuficiência, do ato unilateral da concessionária, da legislação anacrônica etc.. Bem, se vê que a questão é muito complexa. Na tentativa de encaminhar uma solução, algumas empresas passaram a utilizar o IPEM (Instituto de Pesos e Medidas), órgão oficial e especializado para fazer as constatações; e os resultados desta experiência vêm se mostrando positivos. Entretanto, é uma experiência insuficiente e insatisfatória, na medida em que órgãos dessa natureza não têm estrutura suficiente e necessária para acompanhar a enorme quantidade de fraudes e furtos que ocorrem diariamente. Mas, a semente de que a constatação da fraude é realizada por um órgão “isento”, já vem sendo aceito, por muitos juízes que entendem que, neste caso, a perícia não é unilateral e que, portanto, não há comprometimento do Termo de Ocorrência de Irregularidade apresentado. É um grande passo que se dá, mas, como se disse, ainda é insuficiente para a solução da questão. Contudo, ainda é entendimento majoritário que “apesar do entendimento já firmado na primeira seção, no sentido da possibilidade de concessionária de energia elétrica suspender o fornecimento de seus serviços em razão de inadimplência de usuários, após prévio aviso, no caso em exame, essa jurisprudência não se aplica. Isso porque a concessionária apurou unilateralmente suposta fraude no medidor de energia elétrica sem o conhecimento do consumidor e passou a cobrar a diferença entre o real consumo apurado e o valor pago, culminando na interrupção do fornecimento de energia elétrica”. (AgRg no Ag 697.680-SP, Rel. min. Castro Meira, julgado em 18.10.05). Temos, portanto, nítidas, as dificuldades de solução deste conflito. Se por um lado o poder Judiciário entende frágil a norma regulatória que disciplina a apuração das fraudes, por outro, estão as concessionárias a elas adstritas e não podendo refugá-las. Assim, enquanto uma solução satisfatória, via legislativa, não ocorra, é preciso meios de estancar essa “sangria” que ocorre no setor. Ficar como está torna a situação altamente incentivadora à crescente prática ilícita. Hoje já existem “escritórios especializados em pedidos de danos morais” que, inclusive, já se tornaram “investidores”: “compram” as contas de consumo e pleiteam ressarcimentos em juízo. Prudente, ao nosso ver, seria o Judiciário tomar algumas medidas desestimuladoras dos abusos (como alguns magistrados vêm fazendo), obrigando a realização de caução do valor questionado, ou mesmo promover uma audiência prévia à concessão da liminar para oitiva das razões da concessionária, ou mesmo de tentativa de conciliação. Certamente, isso aliviaria, e muito, a pauta dos processos judiciais porque eliminaria 90% dos conflitos (somente restariam os que realmente estão sendo objeto de equívocos da concessionária), desestimularia a prática da fraude/ furto, mitigaria o prejuízo imposto às concessionárias, elevaria a arrecadação tributária que hoje foge do Estado, mas, acima de tudo, estaria preservando o direito dos bons consumidores não estarem pagando pela conduta irregular dos maus consumidores.
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A democracia e a anarquia institucionalizada Desembargador Gama Malcher Ex-presidente do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro. Presidente do Ipejur da UniverCidade.
Nota do Editor Com tristeza e pesar, o resultado das eleições, em especial as proporcionais, trazem-nos o fatídico prognóstico do ilustre articulista, desembargador Gama Malcher. Assim é que, apesar de maciça e bem posta esclarecedora propaganda difundida pelo Tribunal Superior Eleitoral, com orientação do seu presidente, ministro Marco Aurélio Mello, no sentido de conscientizar o eleitor a votar bem e escolher candidatos confiáveis – pelo passado, infelizmente o resultado das eleições de 1º de outubro constitui e demonstra a triste realidade, confirmando a incapacidade política do eleitor brasileiro. E, novamente, a Câmara dos Deputados continuará maculada por esta corja de delinqüentes, nus que ficaram e sem um mínimo de moral e dignidade para o exercício do cargo. Lamentavelmente, os reconhecidos e confessos ladrões do dinheiro público, como ficou constatado nas CPIs da Câmara e Senado Federal, além dos inquéritos promovidos pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, ainda assim, foram eleitos na última eleição. Infelizmente, o artigo do Desembargador Gama Malcher reflete sobre o desabonador ocorrido.
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e um tempo para cá, o direito constitucional brasileiro está de cabeça para baixo. Desde os bancos escolares aprende-se, por força da teoria de Kelsen, que há uma hierarquia nas leis: sobre todas as leis, decretos, resoluções, julgamentos, atos administrativos, enfim, regendo a vida do país sobrepaira a Constituição; isto acontece nitidamente nos Estados democráticos e até nos Estados totalitários que se disfarçam quando adotam um texto constitucional fingindo que são democracias. Ensina-se nas faculdades que, para que a democracia sobreviva, as funções do Estado são harmônicas – o Executivo administra, o Legislativo legisla e o Judiciário (tribunais e juízes) julgam; e ainda que, para que um não submeta o outro, violando sua independência, é assegurado pela Constituição, o exercício dessas funções não é exclusivo: no âmbito da 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
sua competência e para assuntos de sua economia interna o Congresso também administra e julga, o Executivo baixa normas (decretos) e os tribunais administram e, no interior de seus serviços e no exercício de seus interesses peculiares, se organizam mediante seus regimentos internos e resoluções próprias. É evidente que tudo isto se faz em obediência à Constituição e às leis, aos princípios constitucionais, aos da moral e da ética. Desde 1988 o Brasil tem uma nova Constituição que, ao que parece, ainda está em vigor e erigiu como principio basilar o da moralidade dos atos políticos e administrativos. Mas, como diz o povo, “na prática a teoria é outra”: as medidas provisórias se sucedem, se alteram, se substituem, totalmente ao arrepio da excepcionalidade que envolve sua natureza, violando-se a independência do Congresso Nacional; impostos foram criados sob o rótulo de provisórios
“Quem atua fora da sua esfera constitucional procede com abuso ou desvio de poder. (...) O reverso de uma organização estatal jurídica e politicamente estável é a anarquia, ausência do poder.”
(CPMF) e para atender a uma determinada finalidade (saúde pública), e ano a ano se perpetuam, assaltando o bolso das empresas e dos particulares. Os orçamentos públicos são fictícios – deviam prever todas as receitas e todas as despesas e ser executados como leis que são; e mais, embora se tenha feito em 1930 uma revolução para acabar com os “rabos orçamentários”, o que se vê é a existência esdrúxula das chamadas “emendas parlamentares”, cuja destinação assombra a nação com as sucessivas denúncias de que a maioria envolveria atos de corrupção. Haja “mensalões”, “sanguessugas” e uma interminável série de neologismos, na tentativa de separar as quadrilhas que, sob o manto protetor de leis lacunosas e generosas decisões, prosseguem gozando da mais despudorada impunidade. As constituições federais definem quais são os órgãos do governo que não se limitam ao poder executivo sendo também integrados pelo Legislativo e pelo Judiciário, cada qual atuando, submetido às normas constitucionais e legais, na esfera da sua competência, que também é expressamente atribuída a cada um deles também pela Constituição. Competência é o conjunto de normas que atribui a cada um dos poderes governamentais e aos seus representantes e agentes públicos a capacidade de exercer suas funções excluindo todos os demais. Quem atua fora da sua esfera constitucional procede com abuso ou desvio de poder. Este é, resumidamente, o quadro dos Estados democráticos que têm como dogma político o principio da harmonia e independência dos poderes. No mundo há basicamente três sistemas jurídicos democráticos: o sistema da lei civil (“civil law”), que é o ocidental, deitando raízes na filosofia grega e no direito romano-germânico, adotado na Europa continental (hoje como um todo), em que o direito é revelado basicamente pela lei escrita; o sistema anglo-saxão, predominante na Inglaterra, suas ex-colônias e nos Estados Unidos, fundado nos costumes e na jurisprudência; e o sistema oriental, predominante no Oriente Médio com base fortemente religiosa.
O direito autocrático disfarça as ditaduras através de constituições e leis impostas pelo detentor, individual (ditador) ou coletivo – partido político, comissões (“soviets” na língua russa), sindicatos, movimentos ditos sociais etc., do poder político, contando com a disfarçada e muitas vezes inocente participação dos exercentes das outras funções do Estado ou de meios de comunicação social atrelados à ideologia predominante. O reverso de uma organização estatal jurídica e politicamente estável é a anarquia, ausência do poder. Pior do que a verdadeira anarquia é o disfarce quanto à sua existência. Infelizmente parece ser este, lamentavelmente, o clima em que vivemos: a imoralidade parece que a quase todos conquistou – processados e condenados por corrupção renunciam a seus cargos e funções e voltam a disputá-los de maneira despudorada e, também sem nenhum pejo, invocam a inexistência de coisa julgada, cuja formação propositadamente impedem por meios de recursos que uma ordem jurídica distorcida, por eles mesmos criada e mantida, lhes assegura a impunidade. Até mesmo no seio do Judiciário, refúgio dos necessitados de Justiça, em alguns setores ainda existem arbitrariedades pela negativa de exame escorreito e isento dos direitos invocados e, vez por outra, todos deparamos com descobertas que revelam a existência de verdadeiros criminosos que se colocam sob a proteção da toga que conspurcam com sua atividade nociva à sociedade. É tempo de reagir: o controle do leal exercício dos mandatos políticos se faz em eleições periódicas; nelas se escolhem aqueles que devem receber mandatos políticos, outros que devem permanecer no exercício de determinadas funções e, pela rejeição, se excluem os que se valeram dos mandatos anteriormente recebidos em benefício próprio. Se os tribunais eleitorais estão impedidos de impedir que os corruptos concorram às eleições, como alguns sustentam, cabe ao povo puni-los excluindo-os da vida pública até que sobrevenha a sentença definitiva que consagre sua condenação pelos crimes cometidos. 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41
VISITA ÍNTIMA PARA ADOLESCENTES INFRATORES INSTITUCIONALIZADOS Guaraci de Campos Vianna Juiz de direito titular da Vara da Infância e Juventude/RJ
“Não ande pelo caminho traçado, pois ele conduz somente até onde os outros já foram”. Alexander Graham Bell (1847-1922)
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tema enfocado tem suscitado muitas polêmicas. Argumentos apressados dando conta de que a implementação de visitação íntima pode gerar problemas de responsabilização do Estado, gravidez inconseqüente e indesejada, transmissão de doenças sexualmente transmissíveis, ofensa a normas de cunho religiosos ou às regras do direito de família. Os mesmos resistem a uma análise mais acurada, pois não se trata de uma medida indiscriminada aplicada a todos os internos, mas apenas àqueles que têm mais de 16 anos e que já estavam na condição de acusados ou similar, antes da privação de liberdade. Não há dúvidas de que se trata de uma questão de saúde pública e de fortalecimento dos vínculos familiares, portanto. Recentemente tentou-se implantar, através de portaria, a visita íntima nas unidades de internação do estado ou município do Rio de Janeiro. A portaria foi revogada por uma decisão judicial de 2ª instância, mas a medida continua sendo implantada em diversas unidades socioeducativas de outros estados e a não implantação no Rio de Janeiro tem gerado vários problemas, inclusive a separação de famílias previamente constituídas, por falta de convivência após a privação da liberdade. Por essa razão, julgamos conveniente, aqui, transcrever alguns dispositivos da portaria referida, para debate e reflexão e também na esperança que as autoridades executivas resolvam implantar a visita íntima onde for necessário. Observe-se o artigo 11 da lei 8.069/90 (ECA): “Art. “ – É assegurado atendimento médico à criança e ao adolescente, através do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde”. É óbvio que o disposto no artigo 124, VII da lei 8.069/90 (Art. 124 – São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes: (...) VII – receber visitas, ao menos semanalmente) não pode ser interpretado restritivamente, incluindo aí as visitas íntimas, que podem ser reguladas e suspensas pela autoridade judiciária “à luz do §2º do mesmo art. 124) e sujeitam o infrator à multa prevista no art. 246 do ECA (trata-se de uma infração administrativa). Portanto, datíssima vênia, afirmar que se trata de atribuição não prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente demonstra desconhecer-se a literalidade do texto legal, que ainda prevê, inclusive no artigo 153 (lei 8.069/90) que o juiz pode adotar a forma livre e ordenar de ofício as providências necessárias. Veja-se a redação: “Art. 153 – Se a medida judicial a ser adotada não corresponder a procedimento previsto nesta ou em outra lei, a autoridade judiciária poderá investigar os fatos e ordenar de ofício e ordenar de ofício as providências necessárias, ouvido o Ministério Público”. Destarte, cai por terra qualquer alusão à impossibilidade
de se baixar portarias ou mesmo se é atribuição do poder executivo ou do judiciário regulamentar o assunto, ou a aplicação subsidiária das normas do sistema penitenciário. A citação dos dispositivos legais torna desinfluente a argumentação contrária para indicar que houve ofensa aos princípios da legalidade ou separação dos poderes. RAZOABILIDADE DA VISITA ÍNTIMA O princípio da brevidade é conciliado com o prazo máximo de internação: 3 anos (art. 121 §3º da lei 8.069/90 – ECA). Isso, na avaliação do STJ, por entrada, ou seja, por ato infracional. Com a liberação compulsória aos 21 anos (art. 121 §5º da lei 8.069/90 – ECA), veja que não há citação, entendimento, artigo jornalístico, opinião ou argumentação que diga que a internação, por exemplo, de uma jovem que
“Na verdade o que se pretende com a visita íntima não é a ´satisfação sexual dos internos`. e, talvez, o esforço dos seus vínculos afetivos seja uma conseqüência, não um objetivo.” praticou homicídio ou latrocínio seja breve. Ademais, o que é breve? Um mês? Um ano? Que sejam meses. Isso afasta o direito de acesso às ações e serviços para a promoção da saúde? A “solução” alvitada por algumas opiniões divergentes no sentido de permitir as “saídas externas” previstas no §1º do art. 121 do ECA é completamente infundada por, pelo menos, dois motivos: 1º) toda argumentação utilizada contra a visita íntima (instabilidade familiar, riscos de gravidez, de doenças, etc.) poderia ser utilizada e com maior gravidade, pois a “visita” seria realizada sem acompanhamento médico e psicólogo, sem autorização das famílias, ou seja, adota-se como “solução” a medida que causaria mais problemas. É, de fato, uma contradição posicionar-se contra a visita íntima regrada e a favor da “visita familiar” com a devida privacidade, em local de livre escolha dos parceiros. 2º) a maioria dos jovens internados tem alto envolvimento com a marginalidade local e suas saídas colocam em risco sua integridade física, sem falar na possibilidade da prática de novos atos infracionais durante a autorização de saída, o que, aí sim geraria uma responsabilização civil do Estado. A fragilidade desse argumentos, portanto, se manifesta. 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43
“A visita Íntima deve ser vista como um instrumento de preservação e processo sOcioeducativo do adolescente em conflito com a Lei, em cumprimento de medida de internação.” Igual fragilidade encontramos na referência ao artigo 250 da lei 8.069/90 (ECA), pois é possível hospedar adolescente em motéis, com autorização dos pais ou do juiz. Ora a própria portaria coloca como condicionante a autorização dos dois, indo além das exigências legais, portanto. A menção aos outros argumentos revelam extrema discriminação e acentuado preconceito, além de partir de suposições e ilações que de certa forma só podem partir de pessoas que não leram ou não prestaram atenção ao termos da portaria 08/2001. Na verdade, o que se pretende com a visita íntima não é a “satisfação sexual dos internos” e talvez, “o esforço dos seus vínculos afetivos” seja uma conseqüência, mas não um objetivo. O que se deseja é a prevenção dos vínculos familiares (caracterizados antes da internação) durante e após o cumprimento da medida. Isso porque a não prevenção de tais vínculos tem gerado, na prática cotidiana, os problemas que o impetrante diz que existirá se implantada uma visita íntima: filhos sem pais, mães e filhos que, por não terem contato com os pais, adolescentes internados, se unem a outros homens/pais, para sobreviverem, etc. No fundo, o que se quer é a preservação da família, valor que se deve ter em alta conta de prioridade. Da visita íntima como política de atenção à saúde Como já noticiado, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece no artigo 11 que o adolescente tem garantido o acesso às ações e serviços de saúde, o que também é mencionado como um dos bens jurídicos protegidos pelo Estatuto no artigo 208, VII (Capítulo VII, do Título V da parte especial da lei 8.069/90 – Da Proteção Judicial dos Interesses Individuais, Difusos e Coletivos). Dentro desse jaez, o Ministério da Saúde, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República Interministerial MS/SEDH/SEPM 1426/2004, publicadas no D.O.U de 15.07.04, página 30, onde foram aprovadas as diretrizes para a implantação e implementação à saúde dos 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
adolescentes em conflito com a lei em regime de internação. O artigo 1º da referida portaria estabelece, inclusive a distribuição de preservativos para os jovens internados. Isso não exige um regulamento específico? Ou vai se distribuir, como já se vem fazendo, preservativos nas unidades para estimular o sexo desregrado? Todos os questionamentos com relação a recursos, equipamento, são resolvidos pela portaria do Ministério da Saúde nº 340 de 14.07.04. O artigo 1º assim está redigido: “Aprovar, na forma dos Anexos I, II, II e IV desta portaria, as Normas de Implantação e Implementação da Atenção à Saúde dos Adolescentes em conflito com a Lei, em Regime de Internação Provisória, em unidades masculinas e femininas, a Padronização Física do Estabelecimento de Saúde nas Unidades de Internação e Internação Provisória, o Plano Operativo Estadual de Atenção Integral à Saúde dos Adolescentes em conflito com a Lei, em Regime de Internação e Internação Provisória e o Termo de Adesão”. O artigo 6º prevê o recebimento de incentivos financeiros para a implementação das iniciativas previstas na portaria. O anexo da referida portaria estabelece no item 4 que “A atenção à saúde de adolescente em conflito com a lei em regime de internação ou internação provisória, em unidades masculinas e femininas, será realizada por meio das seguintes ações (...) b) Saúde e saúde reprodutiva”, tendo como práticas educativas o seguinte: Das ações e práticas educativas A partir do projeto pedagógico da unidade, estabelecer atividades que favoreçam a vivência, a discussão e a reflexão coletiva, pelos adolescentes, sobre os seguintes temas: – Corpo e autocuidado; – Relacionamentos sociais: família, escola, turma, namoro; – Violência e abuso sexual, com recorte de gênero; – Projeto de vida; Das ações de assistência à saúde – Acompanhamento do desenvolvimento físico e psicossocial; – Crescimento estatural e ponderal; – Maturação sexual; – Desenvolvimento psicossocial; – Nutrição e alimentação; Ações direcionadas a adolescentes de ambos os sexos – Desenvolver práticas educativas que abordem o planejamento familiar, a gravidez na adolescência, a paternidade/maternidade responsável, a contracepção e as Doenças Sexualmente Transmissíveis – DST e AIDS; – Distribuir preservativos, e orientar quanto aos direitos sexuais e reprodutivos.
Ações específicas para adolescentes do sexo feminino – Prevenir e controlar câncer cérvico-uterino; – Orientar e promover o auto-exame da mama – Contracepção; – Realizar o pré-natal; – Monitorar o estado nutricional e o consumo dietético da gestante e lactante; – Realizar o pós-natal; – Orientar para a postergação de gravidez subseqüente. Das ações de assistência à saúde nas unidades de internação e internação provisória No acolhimento do adolescente na unidade de internação e ou internação provisória, deverá ser garantida uma consulta integral que possibilite uma primeira avaliação, quanto à utilização de preservativos e ou outros métodos contraceptivos para os (as) adolescentes. O financiamento está previsto nos itens 13.1 e 15.2 que estabelecem: Financiamento As ações de saúde a serem desenvolvidas no âmbito das unidades de internação e de internação provisória serão financiadas por recursos do Ministério da Saúde, os quais serão repassados do Fundo Nacional de Saúde aos fundos estaduais e ou municipais de saúde. Para a execução das ações, serão utilizados os recursos do incentivo para atenção à saúde de adolescentes atendidos em regime de internação e internação provisória, de que trata o artigo 4º da portaria interministerial nº 1.426 de julho de 2004. (...) Secretaria Especial dos Direitos Humanos Financiar as reformas e construções de espaço físico das unidades, a aquisição de equipamentos, em colaboração com as secretarias gestoras do sistema socioeducativo ou as entidades pela gestão da área do adolescente em conflito com a lei. Conclusão A visita íntima deve ser vista como um instrumento de preservação e processo socioeducativo do adolescente em conflito com a lei em cumprimento de medida de internação. Busca-se, também, preservar a família constituída antes da internação socioeducativa. Não se pode fechar os olhos à realidade: hoje, meninos e meninas de 15, 16 anos, já são chefes de família, têm filhos. Essa é a nova família brasileira. Portanto, autorizar a visita íntima de adolescente não tem nada de precoce ou inusitado. Os presos com mais de 18 anos têm visita íntima em todo o país. No sistema socioeducativo existem muitos jovens internados com mais de 18 anos (a liberação compulsória se dá aos 21 anos). Cabe destacar que a visita íntima somente será autorizada,
“A violação dos direitos humanos, tanto das vítimas como dos agressores, não se restringe aos atentados de violência física.“
para os que vivem em estado de casados e têm na relação uma base familiar. Os eventuais riscos de engravidar e de doenças podem ser evitados com exames e outros métodos preventivos. Mas é preciso destacar o que há de melhor nessa iniciativa: a obrigatoriedade de ser ministrado curso antes do contato físico, de orientação sexual, métodos contraceptivos e doenças sexualmente transmissíveis. Ou seja, estaríamos formando pessoas esclarecidas que, quando retornarem ao convívio social, estariam aptas a, ao menos com o exemplo, apresentar lições de um planejamento familiar responsável. Por outro lado, a execução das medidas socioeducativas de ir além da escolarização parcial e a profissionalização ineficiente, criando-se mecanismo que facilite a ressocialização do jovem em conflito com a lei. O Estado deve, além de propiciar estabelecimentos fisicamente adequados e material humano suficiente e capacitado, fugir da lógica do isolamento celular como único instrumento de transformação. A violação dos direitos humanos, tanto das vítimas como dos agressores, não se restringe aos atentados de violência física. Há de se permitir ao homem desenvolver-se plenamente e ter condições de, mesmo aprisionado, conservar sua família, sua prole e sua dignidade como ser humano. Por tudo isso, espera-se a implementação da visita íntima aos adolescentes e jovens adultos institucionalizados nos estados onde a medida não está sendo observada, como uma questão de direito e de justiça.
BIBLIOGRAFIA ASSIS, Simone Gonçalves de. Traçando Caminhos em uma Sociedade Violenta – Ministério da Justiça. Fiocruz, 1999 MARANHÃO, Ricardo. Política com Dignidade. Letra Capital, 2004 TEXEIRA. Sálvio de Figueiredo. Direitos de Família e do Menor. Del Rey, 1992 THOMAS, Friedman. O mundo é Plano: uma breve história do Século XXI. Objetiva 2005. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Comentários Jurídicos e Sociais. Coordenadores: Munir Cury. Antônio Fernando do Amaral e Silva e Emílio Garcia Mendes. Malheiros, 1992. VIANNA, Guaraci de Campos. Teoria e Crítica do Direito da Infância e da Juventude. RJ: UniverCidade, 2004._________________________. Direito Infanto-juvenil. RJ: Freitas Bastos, 2004.
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FÓRUM
Presidente do STF homenageada no TJ/RJ “O Tribunal está de parabéns. Podemos ver que tudo o que foi feito foi bem pensado e calculado. Vamos agora tratar de introduzir esse modelo de gestão em outros Estados”, disse a ministra Ellen Gracie, presidente do Supremo Tribunal Federal (STJ), em visita ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ). Ellen Gracie foi recebida pelo presidente do TJ-RJ, desembargador Sérgio Cavalieri Filho.A ministra foi homenageada com uma medalha comemorativa dos 250 anos da criação do TJ no Rio. Participaram também do encontro com a ministra o corregedor-geral da Justiça, desembargador Luiz Zveiter; o 1º vice-presidente, desembargador Laerson Mauro; o conselheiro do CNJ e desembargador do TJ-RJ, Marcus Faver; as desembargadoras do TJ-RJ Leila Maria Mariano, Letícia de Farias Sardas e Valéria Garcia da Silva Maron; o juiz auxiliar da Corregedoria, Cezar Augusto Rodrigues Costa, e o diretor-geral de Tecnologia do Tribunal, Jorge Rocha. STJ julgou dois milhões de processos desde 1988 O Superior Tribunal de Justiça (STJ) nasceu com a missão principal de uniformizar a aplicação das leis federais. Entrou em funcionamento no ano seguinte e julgou pouco menos de quatro mil processos. Passados 17 anos, o Tribunal da Cidadania alcançou, no último dia 04 de agosto, um total de dois milhões de julgados. Relator do primeiro julgado da historio do STJ, a Petição 001, o ministro Nilson Naves lembra que já se imaginava, à época de sua criação, que o Tribunal seria muito procurado. “A Constituição despertou o povo, levando-o a buscar o Judiciário”, afirma o ministro Naves. “Não se poderia, no começo, imaginar que o Tribunal em 17 anos de existência, fosse atingir a marca de dois milhões de julgados. Entretanto era previsível que a Corte seria acionada em número apreciável de feitos, uma vez que, na missão de controlar a aplicação da legislação infraconstitucional, estava a suceder o STF sem que tivesse à disposição mecanismos eficientes de contenção da admissibilidade do recurso especial”, explica o presidente do STJ, ministro Raphael de Barros Monteiro Filho. A demanda irracional do STJ sobrecarrega os ministros, mas o presidente da Casa diz que é consenso que o aumento do número de ministros não resolveria o problema. O presidente do STJ, que também se sente sobrecarregado com tanto trabalho, vê na súmula impeditiva – que faz parte do Projeto de Emenda Constitucional 358-A, em tramitação no Congresso – e numa lei ordinária que estabeleça casos de inadmissibilidade de recursos especiais das melhores soluções para racionalizar o trabalho da Casa. “É humanamente impossível examinar, um a um, os numerosos processos feitos que aqui aportam.” 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
Ministro do STJ é eleito para ANL O ministro do Superior Tribunal de Justiça José Augusto Delgado foi eleito para Academia Norte-rio-grandense de Letras. Natural de São José do Campestre, o ministro já ocupava uma cadeira na Academia Brasileira de Letras Jurídicas e agora chega a ANL. O ministro José Augusto Delgado tem um vasto trabalho jurídico publicado. Escreveu artigos sobre diversos enfoques do Direito. “Acesso à Justiça e Celeridade Processual, Direito da Cidadania”, “Interpretação Contemporânea do Direito Tributário e os Princípios da Valorização da Dignidade Humana e da Cidadania” e “Justiça,Tributos e Direitos Fundamentais da Pessoa” foram alguns dos muitos temas já abordados pelo ministro em publicações de grande circulação.. Desembargador Sylvio Capanema na 2ª vice-presidência do TJ/RJ Giselle Souza do Jornal do Commercio
O desembargador Sylvio Capanema tomou posse como novo 2º vice-presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ). Ele assumiu a vaga do desembargador Amaury Arruda de Souza, que se aposentou. Capenema foi escolhido para o cargo durante eleição realizada no auditório do Órgão Especial, da qual participou todo o Tribunal Pleno. Ao todo, 125 desembargadores votaram nele. Capanema, agora, será responsável pela administração das câmaras e seções criminais do tribunal e, principalmente, pela distribuição, para essas instâncias, das apelações e recursos oriundos da Justiça de 1ª grau. Eventualmente, poderá ser chamado a votar nos casos em que as turmas empatarem ao julgar uma questão. O mandato de Capanema terminará no dia 1º de fevereiro do ano que vem. “Chegamos a níveis considerados extraordinários em comparação a outros tribunais do País. Na área cível, por exemplo, levamos 110 dias para distribuir e julgar um feito. Rápido, se compararmos a São Paulo, que leva, em média, dois anos. Na área criminal, como os processos são mais trabalhosos, levamos 160 dias, o que ainda assim é um recorde”, ressaltou Capenema, esclarecendo que aceitou ser indicado para a 2ª vice-presidência pelo desejo de participar da administração do atual presidente da corte, desembargador Sérgio Cavalieri Filho, que, na sua avaliação, é exemplar. Sylvio Capanema exerceu a advocacia no Rio de Janeiro durante 33 anos, e formou-se pela Faculdade Nacional de Direito, em 1960. Ingressou na Magistratura em 1994, como representante do Quinto Constitucional da Advocacia. Foi juiz do extinto Tribunal de Alçada Cível do Estado. Atuou como membro efetivo da 7ª Câmara Cível e do 2º Grupo de Câmaras Cíveis do TJ-RJ. O desembargador é membro efetivo do Órgão Especial e ocupava, desde 1997, a presidência da 10ª Câmara Cível do TJ. Foi também vicepresidente suplente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio, durante as eleições de 1998.
Plenário histórico do STF é inaugurado no Rio
Por Lucianne Carneiro do Jornal do Commercio
Da esquerda: Raymundo Machado, Orpheu Salles e Celso Guedes
Homenagem à nossa Revista A Revista Justiça & Cidadania recebeu o título de Conselheiro Emérito do Conselho de Minerva, organização não-governamental criada por antigos alunos da Universidade do Brasil, atual UFRJ, com o objetivo de lutar pela causa da educação. A diplomação efetuada por ocasião da Assembléia Geral 2006 do Conselho de Minerva, aconteceu na Pousada Urikana, em Teresópolis, em 16 de setembro. Na ocasião foram ainda diplomados diversos antigos alunos da UFRJ, a maioria oriunda da Faculdade Nacional de Direito. Diplomou o jornalista Orpheu Salles, o desembargador Celso Guedes, vice-presidente de registros do Conselho de Minerva. A medalha de Conselheiro Emérito, com a efígie de Minerva – deusa da sabedoria e do trabalho – foi entregue pelo Professor Raymundo Machado, Vice-Presidente de Finanças. (foto). Na ocasião o vice-presidente executivo, professor Sebastião Amoêdo, esclareceu que a investidura da Revista Justiça & Cidadania como Conselheiro Emérito se deve ao fato de sua linha editorial ser comprometida com o desenvolvimento do conhecimento jurídico, que se dá através do ensino e da pesquisa universitária.
Autoridades do Judiciário, magistrados e advogados participaram da inauguração do plenário histórico do Supremo Tribunal Federal (STF), transferido do Museu da Corte, em Brasília, para o prédio do Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio. A sessão administrativa celebrou também o aniversário de 178 anos de criação da Corte Suprema no Brasil. A presidente do STF, ministra Ellen Gracie, afirmou que o tribunal se volta para o passado, sem ser saudosista nem ultrapassado, mas para tornar presentes os bons exemplos. “O tribunal que retorna a sua história, a sua antiga sede, é um tribunal renovado porque está a par de seu tempo e afinado com a realidade presente. Seus objetivos, no entanto, são hoje como foram ontem: os de bem servir à nação”, afirmou a ministra. A ministra Ellen Gracie disse também que a transferência do mobiliário é um reconhecimento do extenso trabalho de recuperação do Centro Cultural Justiça Federal, que funcionou como sede da Corte Suprema do país entre 3 de abril de 1909 e 20 de abril de 1960, quando da transferência para Brasília. “Este imóvel tem história riquíssima e o retorno dos móveis é um reconhecimento do trabalho de restauração aqui realizado”, destacou a presidente do STF.
Os 60 anos do TRT-RJ O Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (Rio de Janeiro) comemorou 60 anos desde sua criação. Por ter sido a primeira corte especializada implantada no país, a data marca também o aniversário da Justiça do Trabalho, desde que foi considerada um ramo da Justiça. Na sessão solene realizada no tribunal, magistrados destacaram as evoluções desse segmento do Judiciário. O presidente do TRT, Ivan Rodrigues Alves, afirmou que a Justiça Trabalhista ainda está em formação. “Sessenta anos. E, no entanto, ainda em formação. Uma instituição que transcede aos homens e mulheres que a formaram e ainda formam. Nesse período, desde quando integrada constitucionalmente ao poder judiciário, a Justiça do Trabalho passou por muitas fases e transformações. Considerada por muitas gerações o “patinho feio” do Judiciário, a Justiça do Trabalho foi impondo-se no cenário nacional até considerar-se nos dias de hoje como importante”, afirmou. Participaram da solenidade também o ministro aposentado do Tribunal Superior do Trabalho Arnaldo Sussekind; o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Sérgio Cavalieri Filho; o presidente da Associação dos Desembargadores, Manoel Carpena Amorim; e representantes da advocacia e da Justiça Federal. 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47
ENTREVISTA
Desembargador Murta Ribeiro:
“NÃO PODEMOS SER O PAÍS DO FAZ DE CONTA”
“Os desembargadores fluminenses, quer os de carreira, quer os oriundos do quinto constitucional, destacam-se, assim, pela cultura, imparcialidade, presteza e talento na solução de conflitos de interesse inerente a toda sociedade moderna” destacou o desembargador Murta Ribeiro, em sua entrevista.
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Senhor Desembargador, há quantos anos milita no Judiciário fluminense? Estou inserido no poder judiciário fluminense praticamente por toda a vida já que meu saudoso e inesquecível pai, José Murta Ribeiro, exercia o cargo de promotor de Justiça em Garça, interior de São Paulo, antes de se mudar para a maravilhosa cidade do Rio de Janeiro, onde nasci em 31.07.41 e vivo até hoje. Naquele então, meu querido pai prestou concurso para a magistratura e logrou ser aprovado naquele que foi o 1º concurso público para juiz de direito na capital da República. De conseguinte, desde então, sempre convivi estreitamente ligado ao poder judiciário fluminense, cujo Estado, historicamente, passou por três condições especiais diferentes como ente Estatal: primeiro foi Distrito Federal; a seguir, com a mudança da capital do país para Brasília, tornou-se estado da Guanabara; e, hoje, após a fusão, passou a nominar-se estado do Rio de Janeiro.
Quais as recordações de suas origens? Como não podia deixar de ser, são elas muitas e muitas, mas, a mais importante de todas é sem dúvida aquela através da qual, vivendo eu sempre em casa de juiz – e para mim e muitos dos seus milhares de ex-alunos, um grande juiz –, me fez buscar também o caminho da magistratura. Carreira a qual me dedico com afinco e amor há mais de trinta e quatro anos, galgando degrau por degrau seus patamares, sempre por merecimento.
Qual a opinião de V. Exa. a respeito dos juizados especiais? São eles de uma importância enorme para a democratização da Justiça. Antes deles, inúmeros conflitos permaneciam, sem solução, à margem do poder judiciário. E isto, porque ante o formalismo processual desistiam os prejudicados da propositura de ações para obterem o reconhecimento de seus direitos e o necessário ressarcimento dos danos por eles sofridos. Instituído o novo ordenamento, aumentaram-se os poderes do juiz e simplificou-se o procedimento, ensejando a solução rápida e eficiente das lides, o que foi logo percebido pela população que passou a procurar os juizados especiais de forma até surpreendente para alguns. E, ao demais, com uma quantidade incrível de postulações. Aproximaram-se, assim, Judiciário e povo – um objetivo permanente do poder judiciário – através de uma interação constante, valorizada pela rapidez e excelência dos trabalhos executados, produto do talento dos magistrados que operam nessa área. Trabalho este prestigiado por todas as recentes administrações do poder judiciário e que assim continuará sendo.
“Sendo certo que o poder judiciário, como guardião das garantias individuais e dos direitos fundamentais, não pode compactuar com práticas menos éticas e menos transparentes que nos impeçam de chegar ao bem comum.”
Sem medo de errar, os juizados especiais constituem uma das vitrines do Judiciário fluminense.
Como vê V. Exa. a entrega da prestação jurisdicional no estado do Rio de Janeiro? Vejo-a entregue de forma correta e possível dentro da conjuntura político-institucional que atravessamos, e, sem falsa modéstia, a magistratura fluminense nada fica a dever em confronto direto com as demais carreiras judiciais dos demais estados. Na verdade, as sentenças e decisões judiciais devem obedecer ao binômio rapidez e qualidade e este objetivo procuramos sempre alcançar. No estado do Rio de Janeiro, esta busca vem sendo obtida pelos mecanismos estruturais hoje fornecidos aos juízes através de um grande esforço de gestão, que encontrou na informática sua pedra de toque. Assim, a célere informatização, cada vez mais aperfeiçoada no correr dos anos, já agora atinge a todo o nosso estado do Rio de Janeiro, sepultando de vez práticas ultrapassadas pelo tempo. Por exemplo, as consultas feitas via internet e intranet são instantâneas. De sorte que, apesar de conhecidas imperfeições do sistema processual, a magistratura fluminense vem decidindo os conflitos, em regra, dentro dos prazos previstos em lei. Há, reconheça-se, distorções, que as sucessivas administrações do tribunal vêm enfrentando e corrigindo. 2006 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49
A quantidade das questões apresentadas não estaria prejudicando a qualidade? Creio que não. Na verdade, a qualidade dos decisórios de primeiro grau é compatível com o esperado pelos jurisdicionados e é reconhecida por todos aqueles que atuam no Judiciário. Sendo certo que isto se deve ao bom nível dos julgadores aprovados em rigorosos concursos de provas e títulos. Como um exemplo do até agora afirmado, temos o número de sentenças confirmadas. Neste particular aspecto, o número de sentenças confirmadas é muito maior do que o das sentenças reformadas. Tal constatação, mais uma vez confirma a pré-falada combinação da rapidez dos julgadores com a qualidade dos julgados. Já no Tribunal de Justiça, em 2ª instância, a celeridade é ainda maior, o que surpreende até mesmo os profissionais dos outros estados, onde a prestação jurisdicional, por dificuldades estruturais, na maioria das vezes, é mais lenta. Recente reportagem da série “Caminhos para o Crescimento”, publicada na revista Exame do dia 13 de setembro próximo passado, trouxe a lume interessante matéria intitulada “Para Fazer a Justiça Andar”, onde justamente se destacou à página 110 que nosso tribunal de Justiça é citado como exemplo para se dar partida a este processo de agilizar os trabalhos forenses. Esta agilização ora cria varas empresariais, ora juizados especiais cíveis e criminais, bem como atualiza e informatiza a infra-estrutura de nossa Justiça fluminense, a ponto de atrair várias empresas para nosso estado. Empresas que aqui vêm a fim de ter como foro o do Rio de Janeiro, e, mesmo quando para cá não transferem suas sedes, tem o foro de nossa cidade como “foro de eleição” para resolver futuras demandas judiciais. Os desembargadores fluminenses, quer os de carreira, quer os oriundos do quinto constitucional, destacam-se, assim, pela cultura, imparcialidade, presteza e talento na solução dos conflitos de interesse inerentes a toda sociedade moderna.
Como V. Exa. se sente integrando o tribunal de Justiça, já agora reconhecido como um dos mais ágeis e eficientes do Brasil? Os ônus são de grande monta para manter-se tal condição? Como pretende governá-lo, se vier a dirigi-lo em futuro próximo? Sem dúvida sinto-me bastante orgulhoso, porquanto juiz e professor por toda uma vida é confortador receber este reconhecimento. Ainda recentemente, em encontro informal com a Eminente Ministra Ellen Gracie – presidente do Supremo Tribunal Federal, lídima e incontestável líder da magistratura nacional –, pude externar a Sua Excelência que estes trabalhos assim executados exigem esforços e sacrifícios de nossos juízes todos – juízes de 1º grau e de nós, desembargadores –, mas, mesmo assim, procuramos enfrentar e superar as dificuldades que se nos apresentam. Pretendo, eleito, manter os princípios norteadores das 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2006
últimas administrações vencedoras de nosso Tribunal, sempre tendo como norte o bem comum, alcançável este com trabalho e dedicação integral. Em recente artigo publicado nesta mesma revista, cujo título era “O Polinômio da Boa Administração da Justiça – Ética – Competência – Participação – Transparência – Efetividade”, tive a oportunidade de externar que no estado do Rio de Janeiro esta busca constante no aperfeiçoamento do aparelhamento do poder judiciário local passa também pelo alto nível de informatização que já obtivemos. Certo que estes ingentes esforços hão de ser humanizados, e usando de uma expressão que nos vem da lição do eminente e douto ministro Nelson Hungria: “Há que se buscar temperar nossas forças, para que, sem prejuízo do desempenho, possamos amenizar a carga de trabalho”, o que, a meu sentir, só será possível com a mudança das leis do processo. Idéias novas, em prol da população e, também, de nossos magistrados, hão de surgir da necessária e esperada participação de todos, uma das fases de nossa proposição administrativa. As idéias podem ser novas, mas os ideais são antigos. Isto é, fazer justiça mais completa e cada vez mais respeitada como instituição. Outro objetivo permanente de quem queira bem administrar o poder judiciário é manter e ampliar a credibilidade dos juízes e, para tal, motivá-los ao aperfeiçoamento constante, buscando a eficácia e a eficiência. Neste momento de nossa história, fala-se muito da “reforma do Judiciário”. O que V. Exa. pensa sobre sua efetiva aplicação? O que penso é o que, a meu juízo, pensa a maioria dos atores que convivem no nosso universo do direito público e privado, isto é, é ela necessária, mas ainda não se completou. Assim, as reformas estruturais levadas a efeito, a maior parte delas na 2ª instância e nos tribunais superiores, não resultarão na efetiva melhora dos trabalhos judiciais se não se implementarem as reformas nas leis do processo e no primeiro grau de jurisdição. Uma reforma vencedora foi, sem dúvida, a criação dos juizados especiais cíveis e criminais, que, como vimos, aproximou o Judiciário dos jurisdicionados. Mas há que se perseguir outros êxitos, porquanto as mutações sociais, que no passado se faziam através dos séculos, hoje se perfazem em décadas. Sendo certo que o poder judiciário, como guardião das garantias individuais e dos direitos fundamentais, não pode compactuar com práticas menos éticas e menos transparentes que nos impeçam de chegar ao bem comum. Não podemos deixar de nos indignar com práticas recémdestacadas na imprensa nacional, a envolver a corrupção em todos os níveis de governo, tais como: “mensalão”, “sanguessugas”, “propinoduto” e outras mais. Não podemos ser o país do faz-de-conta.
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