Revista Justiça & Cidadania

Page 1


2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007


EDIÇÃO 81 • abril de 2007

08

10

quem governa quem governa?

a ÉTICA EO JURÍDICO EM JOSAPHAT MARINHO

ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR

TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DÉBORA MARIA M. A. R. DIAS REVISÃO DIOGO TOMAZ E MAURíCIO FREDERICO DIAGRAMAÇÃO

Inconstitucionalidade do passe livre

26

Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES

CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO

Antônio souza prudente

ABNER VIEIRA GERENTE COMERCIAL

aurélio wander bastos

EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-906. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429 CNPJ: 03.338.235/0001-86

carlos antônio navega

antonio carlos Martins Soares Arnaldo Esteves Lima Bernardo Cabral carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CELSO MUNIZ GUEDES PINTO CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI

CUIABÁ JOSÉ RODRIGUES ROCHA JUNIOR RUA BARÃO DE MELGAÇO, 2.754, SL.903 CEP: 78020-800 TEL.(65) 3623-4979

Darci norte Rebelo

SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611

fernando neves

PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP: 90010-272 TEL (51) 3211 5344 BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 - BLOCO E Ed. CENTRAL PARK FONES: (61) 3327-1228 / 29

denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello

CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL (61) 9674-7569

MAURICIO DINEPI

revistajc@revistajc.com.br www.revistajc.com.br

nEY PRADO

ISSN 1807-779X

44

CONSELHO EDITORIAL

VINÍCIUS GONÇALVES EXPEDIÇÃO E ASSINATURA

SUCURSAIS

violência, emoção e razão

maximino gonçalves fontes Miguel Pachá

SUMÁRIO EDITORIAL

4

uma gestão de presteza e eficiência

6

quem governa quem governa?

8

a ética e o jurídico em josaphat marinho

10

a questão da aposentadoria compulsória

16

ser ou não ser? eis a questão

18

visita ao inferno por r$ 4.400, por adolescente

20

até quando?

22

o tse e a fidelidade partidária

24

inconstitucionalidade do passe livre da cidade do rio de janeiro

26

incentivos legais às fontes alternativas de geração de energia elétrica

32

reflexões críticas acerca da proposta de estadualização do direito penal

36

A responsabilidade ética e legal no serviço público

40

violência, emoção e razão

44

sobre um país que sangra

46

tempo de transformação

48

a resposta de simon

50

Paulo Freitas Barata SEBASTIÃO AMOÊDO Sergio Cavalieri filho thiago ribas filho

2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 3


EDITORIAL

Os

trânsfugas “A qualificação dada no julgamento no Tribunal Superior Eleitoral pelo eminente Ministro Cezar Peluso, de deputados trânsfugas, serve aos desacreditados 28 deputados federais, que trocaram os partidos em cujas legendas se abrigaram para a disputa eleitoral.”

A

qualificação dada no julgamento no Tribunal Superior Eleitoral pelo eminente Ministro Cezar Peluso, de “deputados trânsfugas”, serve aos desacreditados 28 deputados federais, que trocaram os partidos em cujas legendas se abrigaram para a disputa eleitoral. Torna-se evidente a falta de caráter desses delinqüentes políticos, que, indistintamente, só conseguiram ser diplomados face aos votos da legenda partidária, pois nenhum deles obteve, isoladamente, votos suficientes que lhes garantissem o coeficiente eleitoral, tendo sido, portanto, eleitos graças aos votos do partido. A cada dia, se constata o jogo ambíguo e pecaminoso da política, com a qual os povos são cegamente enganados na confiança e esperança de seu futuro, por aventureiros profissionais, portadores de mãos gatunas, palavras vazias e nervos putrefatos. A ação e a atuação desses 28 malfadados e pseudorepresentantes do povo na Câmara dos Deputados, lembra referência do escritor Stephen Zweig, na biografia do político francês “Joseph Fouchê-retrato de um homem político”: “Para ele, só há uma coisa importante: estar sempre

4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

com o vencedor, nunca com o vencido. Quando abandona um partido por traição, nunca o faz de forma lenta e cuidadosa. Bastam-lhe 24 horas, às vezes, somente uma hora, um minuto para arremessar longe a bandeira de sua antiga convicção e desfraldar outra. Ele não caminha com uma idéia, e sim com seu tempo. E quanto mais rápido este passa, mais rápido o seguirá.” É de se esperar que a oportuna, necessária e profilática decisão do Tribunal Superior Eleitoral contra a infidelidade partidária praticada pelos execrados deputados federais, seja referendada pelos demais órgãos competentes, para salvaguarda da credibilidade e honorabilidade pública e política, e, em especial, a fim de que se restaure o respeito do povo e o real benefício da Nação. O Tribunal Supremo Federal, guardião absoluto da constituição federal, já chamado a se pronunciar sobre a matéria, conforme provocado pelos partidos ultrajados pela traição dos trânsfugas, por certo acompanhará os votos dados no Tribunal Superior Eleitoral e antecipados pelos ministros constitucionalistas Cezar Peluso, Ayres Britto e Marco Aurélio Mello.


As razões expendidas pelo relator ministro César Asfor Rocha, baseadas nos dispositivos da Constituição Federal sobre filiação partidária (art. 14, parágrafo 3º, V), e normas de disciplina e fidelidade partidária (art. 17, parágrafo 1º), através do fundamentado e fulminante voto “que os partidos políticos e as coligações conservam o direito à vaga obtida pelo sistema proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência de candidato eleito por um partido para outra legenda”, define a questão e não comporta mais discussões bizantinas e opiniões farisaicas. A controvérsia levantada pelo presidente da Câmara Federal, em defesa dos deputados envolvidos e acusados de crime político, se compreende face o espírito corporativista existente, porém não se acredita que o Deputado Arlindo Chinaglia venha se comprometer e ajudar em uma defesa inglória e causa perdida, tisnando seu passado de dignidade, postura ética inabalável, patrocinando a impunidade dos comprovados representantes populares que traíram o mandato recebido de seus eleitores. A opinião pública tem demonstrado como se constata, pela correspondência popular enviada e publicada diariamente

nos vários jornais e revistas, que a desmoralização do Poder Público, em especial o Legislativo alcançaram um índice de reprovação, repulsa, revolta e enxovalhamento de difícil recuperação. Resta, portanto, aos detentores e responsáveis nos cargos de alta relevância, sobretudo, do Poder Legislativo, se empenharem na melhoria de sua conceituação. Diante do que ocorre hoje, com o alheamento e até desprezo popular aos membros do legislativo federal, somente com atitudes dignas e respeitosas, com demonstrações de pleno e responsável exercício nos cargos legislativos, poderá ocorrer o restabelecimento da confiança dos eleitores e, conseqüentemente, da população, que se queda repugnada com tanta corrupção.

Orpheu Santos Salles Editor 2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5


Uma Gestão de

Presteza e eficiência Castro Aguiar Presidente do TRF – 2ª região

Senhoras e senhores, A

o assumir a presidência da Corte, tenho absoluta convicção das inúmeras dificuldades que irei enfrentar, seja em razão das minhas limitações pessoais, seja por se tratar da administração de um Tribunal já dirigido por excelentes administradores, um Tribunal atuante, de vanguarda, à frente de muitas conquistas, seja ainda porque a equipe econômica do Governo promoveu corte substancial nas verbas orçamentárias do Poder Judiciário, impondo-nos, com isto, revisão de nossos planos e dos programas a serem adotados. Embora essa empreitada seja muito difícil, tenho certeza de que contarei com a compreensão e o auxílio dos meus pares para que eu possa dar continuidade ao trabalho que vem sendo desenvolvido, no sentido de que este Tribunal responda, com presteza e eficiência, aos anseios do jurisdicionado. Como sempre fiz de minha vida constante aprendizado, consegui inúmeras lições com meus colegas de trabalho, obtendo ensinamentos dos quais me servirei, para desempenhar a nova e honrosa função, com honradez, com dignidade, com coragem, com segurança, com humildade e com incessante e insone trabalho. Devo começar por afirmar que darei continuidade à administração Frederico Gueiros por considerá-la eficiente, tranqüila, séria, ponderada; uma administração modelo, exemplar, que me servirá de roteiro, de espelho, exatamente por ter primado pelo equilíbrio, pelo bom senso, pela retidão de propósitos e pela seriedade das atitudes. Dando continuidade a seu trabalho, também procurarei dar, na minha gestão, prioridade à função jurisdicional, adotando providências que conduzam à celeridade dos julgamentos, para que a solução dos conflitos não se eternize nos tribunais. Nenhum sentido faz uma justiça lenta, tardia, retardada. Tenho certeza de que conseguiremos melhorar nosso perfil, acelerando os julgamentos, mesmo sabendo que não somos responsáveis pelos embaraços processuais decorrentes da lei, como é o caso dos infindáveis recursos, dos embargos infringentes, dos embargos 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

de declaração até mesmo de embargos de declaração, das ações rescisórias insustentáveis e de atos abusivamente protelatórios. Aliás, quanto a isto, nosso Tribunal já deu um salto. Com efeito, em decorrência da implantação das Turmas Especializadas, no ano passado, julgamos 83.654 processos, ou seja, 36.450 processos a mais do que no ano imediatamente anterior, sem qualquer prejuízo de qualidade. E iremos conseguir muito mais, porque é exatamente isso que anseia o jurisdicionado e que pretendem os membros desta Casa. Quatro pontos deverão ser objeto de minhas melhores atenções: • junto aos juizados, para dar primazia às demandas das pessoas mais necessitadas; • no Estado do Espírito Santo, para que o jurisdicionado de lá seja mais prontamente atendido quanto a seus recursos perante este Tribunal, não sentindo necessidade sempre de deslocamento de advogado ao Rio de Janeiro, para defesa de seus interesses; • ampliação do quadro funcional, da primeira instância e do Tribunal, de magistrados e de servidores; • transparência e ética, inclusive com o uso pelo público de nosso portal de estatística. Quanto ao juizado, sua implantação representa, sem sombra de dúvida, a maior revolução de que se tem notícia, nas últimas décadas, em questões de natureza processual, no processamento e solução dos litígios inseridos no campo de competência do Poder Judiciário Federal. Com efeito, as inovações introduzidas no processo já eram, há muitos anos, objeto dos anseios dos jurisdicionados, dos magistrados e de tantos quantos possuem, de modo direto ou indireto, mediato ou imediato, envolvimento, inclusive social ou científico, com os conflitos que, dia a dia, se instalam nos tribunais, reclamando soluções urgentes e condizentes com os tempos modernos.


Foto: TRF

Presidente Castro Aguiar, Corregedor Geral Sérgio Feltrin e Ministro Otávio Galoti

Nenhum de nossos juízes, de qualquer das instâncias, poderia aceitar a injustificável demora na conclusão dos processos, que se arrastam por anos e anos a fio, não por culpa exclusiva ou predominantemente nossa, mas, em regra, em razão de um processo judicial que prima pelo exagero abusivo de recursos, pela multiplicação de atos processuais, de idas e voltas deles, como em uma ciranda giratória interminável e que não chega a lugar algum. Essa demora sempre prestou um desserviço à causa pública, sempre depôs contra o Judiciário, maculando sua imagem, sem que a solução estivesse em nossas mãos. O Juizado, afastando-se radicalmente desses transtornos, orienta-se pelos critérios da simplicidade, da informalidade, da economia processual, da oralidade e da celeridade e, nisto, está seu mais significativo mérito. Para mim, a principal vantagem dos Juizados consiste em acabar, nesses processos, com a parafernália dos recursos e dos atos processuais, estabelecidos pelo Código de Processo Civil, os quais eternizam as ações. A segunda vantagem consiste na eliminação dos precatórios. Quanto ao Estado do Espírito Santo, a implantação de uma Turma Itinerante impõe-se. E estarei diuturnamente empenhado nessa missão. O Judiciário Federal não poderá, em um Estado pujante e próspero como esse, ficar alheio à necessidade de atender de perto, bem de perto, aos interesses de seus jurisdicionados. Relativamente ao quadro funcional, não poderemos ficar de braços cruzados, esperando que se criem cargos, de magistrados e de servidores, na Primeira Instância ou no Tribunal. E como nós mesmos não poderemos criá-los, tampouco iniciar lei para isto, teremos de efetuar trabalho incessante e persistente para obtê-los. Sem isto, nossa missão não terá satisfatório cumprimento. Quanto à transparência, ainda seguindo a trilha de meu antecessor, Desembargador Frederico Gueiros, convém que todos saibam como todos nós trabalhamos, nossas dificuldades

e nosso desempenho, até para que a coletividade tenha ciência e consciência de nossa atuação e possa aplaudir, se for o caso, nossos acertos ou para que aponte os desacertos, em tempo de podermos corrigi-los. Para isso, daremos continuidade ao programa do Portal de Estatística, tanto da Primeira Instância quanto do Tribunal, tanto do Estado do Rio de Janeiro quanto do Estado do Espírito Santo, trabalho espetacular de nossas equipes de informática, que permite hoje que se saiba tudo, absolutamente tudo, sobre cada processo, seja na Vara, seja no Tribunal. Com isso, teremos, em segundos, visão panorâmica da Justiça Federal na 2ª Região, com indicação do início de cada ação, de seu andamento, da data da sentença ou do tempo de sua conclusão, de modo que o magistrado, a Corregedoria e a Presidência possam ter ciência do tempo em que determinado processo esteja paralisado e o porquê. A transparência impõe que esses dados sejam abertos aos advogados e aos jurisdicionados no momento oportuno. Peço apenas a Deus que me ilumine na direção do Tribunal, para que consigamos a solução célere dos litígios e a redenção, sob este aspecto, da Justiça Federal, já tão marcada pelas dificuldades que lhe são criadas e pela demora inaceitável de seus julgados, por culpa de embaraços processuais que nos foram impostos e cuja solução não depende de nós. Para terminar, antecipo agradecimento a meus pares, colegas Desembargadores, pelo apoio que me derem. Agradeço a presença honrosa de todos e as congratulações que me foram enviadas. Agradeço também a meus diletos e amáveis filhos e às maravilhosas noras o carinho com que me cercam; e à família a compreensão pelos dias perdidos de convívio. Por fim, se os senhores perceberem que não me encontro hoje com espírito festivo, perdoem-me, por favor, é que me encontro de luto e ainda tenho o coração sangrando de dor. 2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


Quem governa

quem governa? Carlos Ayres Britto Ministro do Supremo Tribunal Federal

anrevog meuQ

?governa quem Foto: STF

8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

C

omecemos por uma afirmação óbvia: o Poder Executivo de qualquer das quatro parcelas de nossa Federação tem um chefe. Estrutura-se sob a chefia ou autoridade máxima de um agente político. Prefeito, governador, presidente da República, todos dirigem superiormente uma dada Administração Pública e daí se postam aos olhos do povo como a própria encarnação do governo. A face mais visível do poder público. Estamos a falar, portanto, de um tipo de agente que é popularmente eleito para ficar no topo de um dos Poderes elementares do Estado. Poder, esse, mais fisicamente próximo do conjunto da população por lhe competir velar pelos interesses que mais de perto dizem com a sobrevivência e evolução dessa totalidade populacional. Daí a prosaica identificação – insista-se – entre chefe do Poder Executivo e governo de toda pessoa estatal-federada: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Pois bem, haveria alguém acima desse governante que é o chefe do Poder Executivo? Claro que não! Nenhum outro agente público está acima daquele que já estampa em sua unipessoalidade o governo de todo um povo geograficamente diferenciado e juridicamente personalizado. Porém,


quem governa? Quem governa

“Não podia ser diferente. A Constituição é o mais estrutural, o mais abrangente e o mais permanente projeto de vida nacional. Ela é a lei fundamental de toda nação brasileira.”

se não existe alguém, existe algo. Esse algo superior aos próprios governantes é a Constituição. Com efeito, a Constituição governa quem governa. Governa de modo permanente quem governa de modo transitório. Por isso que o termo de posse do próprio chefe do Poder Executivo Federal, que é o presidente da República, se dá pela prestação do “compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição”. Em seqüência, vem a promessa de “observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil” (art. 78, cabeça, da nossa Magna Carta Federal). Não podia ser diferente. A Constituição é o mais estrutural, o mais abrangente e o mais permanente projeto de vida nacional. Além de se traduzir na Lei Fundamental de todo o povo brasileiro, ela é a Lei Fundamental de toda a nação brasileira. Sabido que a nação, por ser a linha invisível que faz a costura da unidade entre o passado, o presente e o futuro, é instituição que tanto engloba o povo de hoje como o povo de ontem e o povo de amanhã. Logo, à semelhança de cada família em apartado, nação é um misto de idéia e sentimento que faz a contemporaneidade caminhar de braços dados com a ancestralidade e a posteridade (“A pátria é a família amplificada”, bem sentenciou Ruy Barbosa). Ora bem, sendo obra dessa realidade atemporal que é a nação, a Magna Lei Federal exprime uma vontade transgeracional, que já é a vontade mais qualificadamente coletiva, no sentido de que unifica história e geografia do

Brasil por todo o tempo. Vontade coletiva permanente, então, a se impor à vontade transitória dos governantes que se sucedem a cada eleição geral. Que os governantes concebam e implementem suas políticas públicas é o que se espera deles. Para isso foram eleitos. Diga-se o mesmo quanto à elaboração de suas propostas orçamentárias e à celebração de seus ajustes onerosos. Tudo bem. Desde que o façam para concretizar interesses e valores que já constem da própria Constituição, ou, então, das leis com ela compatíveis. Isso é o que importa advertir com toda ênfase. Diga-se mais: a Constituição é comando pra valer. Ela cuidou de se fazer imperativa e, para isso, instituíram-se órgãos como os Tribunais de Contas e o Ministério Público. Ao lado deles, e como instância derradeira de sua autodefesa, nossa Lei Maior apetrechou o Poder Judiciário. Não que ele, Poder Judiciário, fosse aquinhoado com a função de governar. Não é isso. Mas se não tem do governo a função, o Judiciário tem do governo a força. A força de impedir o desgoverno. Desgoverno que é tanto mais intolerável quanto resulte do desrespeito à Constituição. Em suma, sejam bem-vindos nossos novos governantes! Assim os marinheiros de primeira viagem como os reeleitos. Mas que sejam bem-vindos para exercitar a única forma de governabilidade que interessa ao povo em geral e ao Poder Judiciário em particular: a governabilidade constitucional. 2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007


Foto: STJ

A ética e o jurídico em Josaphat Marinho (Aula Magna Proferida na Faculdade 2 de Julho, em Salvador-BA, no dia 06/02/2006) Ministro Francisco Peçanha Martins Vice-Presidente do Superior Tribunal de Justiça

“Se imaginais que, matando homens, evitareis que alguém vos repreenda a má vida, estais enganados; essa não é uma forma de libertação, nem é inteiramente eficaz, nem honrosa; esta outra, sim, é mais honrosa e mais fácil; em vez de tapar a boca dos outros, preparar para ser o melhor possível.”

O

comportamento do homem em sociedade vem sendo estudado e discutido desde a remota antiguidade, exacerbando-se na Grécia, berço da civilização ocidental. Estado, Justiça e Ética foram temas discutidos desde o período que antecede Sócrates, filósofo acusado e condenado a beber cicuta por desrespeitar a religião e incitar a juventude à rebeldia. Na apologia a Sócrates, o discípulo dileto, Platão, reproduziu suas últimas palavras, misto de condenação e exortação aos governantes: “Se imaginais que, matando homens, evitareis que alguém vos repreenda a má vida, estais enganados; essa não é uma forma de libertação, nem é inteiramente eficaz, nem honrosa; esta outra, sim, é mais honrosa e mais fácil: em vez de tapar a boca dos outros, preparar para ser o melhor possível.” A filosofia grega indicou os caminhos do bem, do belo, da busca de ideais de liberdade e de justiça, no cultivo da verdade e do amor. Identificando no homem a relação corpo e alma, cujo equilíbrio era essencial para alcançar a felicidade, Platão

imaginava controlar os instintos, a agressividade, a paixão irracional, para obter-se o amor verdadeiro, puro, que não exige, livre e rebelde à escravidão, e projetou o Estado Ideal, sua “República”, jamais implantada por força do invencível egoísmo. Aristóteles, discípulo de Platão, estudou com profundidade o homem e a polis, imortalizando-se com a “Ética a Nicômaco” e a “Política”, e acentuou a ética, não como um simples código de conduta social, mas como norma de promoção do bem social. O alcance da plenitude da personalidade, a autoconquista, somente seria possível com a prática das virtudes na comunidade política, por isso que o homem é animal racional e político, “que só atinge a realização de sua natureza na comunidade.” O homem solitário é ficção literária (Robinson Crusoe). Ninguém é virtuoso para si próprio ou pode ser feliz sozinho. Distinguindo a ética e a política, Aristóteles definiu a polis como uma espécie de comunidade voltada para a obtenção de um bem. Sendo assim, conclui que a comunidade mais elevada de todas, a todas englobando, pois visaria o bem mais elevado de todos, é a polis, comunidade política cuja suprema 2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


finalidade é a vida feliz, segundo as virtudes, dentre as quais avulta a justiça. A reunião em comunidades é comum entre os animais. Ela existe nos formigueiros, nas colméias, forjadas pelo instinto, pela necessidade de sobrevivência. A polis, na visão aristotélica, não é, porém, uma reunião de homens para simplesmente sobreviver, pela ajuda mútua material, mas a comunidade de famílias e aldeias reunidas em uma vida perfeita, conforme a felicidade e a virtude. “A vida feliz, para o indivíduo e para a comunidade, é aquela que é acompanhada pela virtude e seguida de suficiente quantidade de bens externos, porque é impossível, ou pelo menos muito penoso, fazer boas ações quando se está desprovido de recursos materiais”. O homem faminto não pode ser bom ou cumpridor das leis, cujo respeito é essencial à sociedade civil, constatação que conduziu o filósofo a proclamar: “A virtude da justiça é a essência da sociedade civil”. “Homem justo (dikaias) é aquele que se conforma à lei e respeita a igualdade; injusto é aquele que contraria a lei e a igualdade” (Apud: “Ética é Justiça”, de Olinto Pegonaro, Ed. Vozes, 9ª ed). A evolução filosófica na busca da felicidade do homem tem conduzido as nações à prática de ideologias diversas, todas com o objetivo nobre de proporcionar o bem-estar da polis. O egoísmo, traço inconfundível do homem, tem impedido o ideal do amor platônico, do Estado político perfeito. E talvez tenham razão os que o dizem inatingível, pela inconciliação das virtudes da liberdade, igualdade e fraternidade. O amor puro, defendido por Platão e pregado por Buda e Jesus Cristo, continua longe de ser alcançado pelas comunidades onde vicejam a miséria e a fome. As democracias, sejam elas deste ou daquele matiz, não lograram senão assegurar a liberdade, consoante a Lei. A justiça, ideal de virtude do homem, só conseguiu preservar ou impor a liberdade (autonomia) da vontade, consistente na obediência à lei autoprescrita, como assinalou Rousseau. A desigualdade social está longe de ser vencida. E não raro tem sido perseguida com a supressão das liberdades públicas, como ocorre nas ditaduras. É certo que são vários os códigos de ética, erigidos em conformidade com as circunstâncias de cada atividade humana desenvolvida em sociedade. Todos os códigos repousam nos princípios do bem-estar, da felicidade, da justiça, do amor ao próximo, com o objetivo virtuoso de proporcionar ao homem a sobrevivência digna e feliz, servindo à comunidade. Contudo, estamos aqui para dizer da “Ética e o Jurídico em Josaphat Marinho”. Nascido em Areias, hoje Município de Ubaira, de feliz casamento de Sinfrônio Sales Marinho e Adelaide Ramos Marinho, Josaphat Ramos Marinho educou-se na Vila de Jaguaquara, onde ficou aos cuidados da professora leiga Ana Durcia, a quem proclamou, agradecido, o reconhecimento das primeiras letras, inclusive na língua francesa, e o cultivo do dom da oratória, fazendo-o ler discursos que escrevia 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

para celebrar as festas cívicas ou religiosas ou assinalar fatos relevantes na comunidade progressista. Recordou-a, com saudade, em discurso que pronunciou agradecendo a homenagem prestada em jantar comemorativo de seus oitenta anos, no Hotel Meridien, em 26/10/1995. Realçou a tenacidade da “admirável preceptora”, ensinandolhe a ler os discursos após as aulas regulares, com a adequada sustentação do texto nas mãos; a leitura compassada, com elevação da voz e erguimento dos olhos aos ouvintes nos momentos adequados, agradecendo-lhe a iniciação na arte da oratória, que praticou com invulgar talento (Discurso intitulado “Ato de congraçamento e bondade”) Preparado nesta escola de letras e civismo, ingressou o mestre, em 1930, no Instituto Bahiano de Ensino, dirigido pelo Professor Hugo Baltazar da Silveira, mediante exame de admissão ao ginásio, alcançando a Faculdade de Direito da Bahia em 1934, onde pontificaram mestres do quilate de Filinto Bastos, Aloysio de Carvalho Filho e Nestor Duarte Guimarães, catedrático de Introdução à Ciência do Direito, e que foi, para ele, “o amigo fraterno e o orientador, na profissão de advogado e na política, sem um instante de estremecimento”.(Ob.cit) A faculdade fervilhava no embate das ideologias. As discussões políticas intensas travadas sob a influência das empolgantes lições de Rui Barbosa, a oposição à ditadura, corporificada na resistência autonomista do grupo civilista de Pedro Lago, João e Otávio Mangabeira, Aloysio de Carvalho Filho, Luiz Viana Filho, Nestor Duarte e tantos outros notáveis políticos bahianos, empolgavam os jovens acadêmicos, atraindo Josaphat, já impregnado do germe do civismo, às fileiras da “Ação Acadêmica Autonomista”, firmando a inabalável convicção democrática, visceralmente contrária às ditaduras. As divergências marcadas pelas ideologias políticas não afastaram a compreensão mantenedora da cordialidade entre os contrários. “A Faculdade, disse ele, ensinou a conviver e a divergir, cultuando a liberdade e a tolerância”.( Ob.cit.) Bacharelado em Direito, formando-se em 1938, ingressou no escritório de advocacia do mestre Nestor Duarte, socialdemocrata, autonomista, ardoroso defensor das liberdades

“O AMOR PURO CONTINUA LONGE DE SER ALCANÇADO PELAS COMUNIDADES ONDE VICEJAM A MISÉRIA E A FOME.”


“A reunião em comunidades é comum entre os animais. Ela existe nos formigueiros, nas colméias, forjadas pelo instinto, pela necessidade de sobrevivência.”

Foto: EMERJ

públicas, um D’Artagnan, cujas aulas o empolgavam, como retratou em belíssimo discurso nas comemorações de seu centenário de nascimento. Desde cedo, o jovem causídico chamou a atenção dos mais velhos pelo estilo escorreito e pela agudeza do raciocínio lógico. A descrição da versão dos fatos da vida colhida do cliente, promovida em prosa agradável, forjada na leitura dos clássicos da língua portuguesa, o enquadramento jurí-dico silogisticamente perfeito, agregaram-lhe, de logo, o respeito dos mais conceituados advogados da liça forense. Alfredo Amorim, criminalista renomado, lendo as razões que Nestor, seu colega na defesa de constituinte, confiara a Josaphat, e que aprovara sem emendas, escreveu-lhe carta em que elogiou a peça forense, assinalando: “Nestor, este seu menino Josaphat, se continuar escrevendo e estudando como agora, irá mais longe do que nós dois”. E Josaphat continuou estudando por toda a vida. Dedicado à causa pública, voltou-se ao magistério do Direito, como contratado, mas depois, mediante concursos, tornou-se livre docente e catedrático. No primeiro, prestado no ano de 1953, apresentou a discutida tese do “Direito de Revolução”, sustentando o direito dos povos de resistir e rebelar-se contra a opressão, dispensando o fundamento jusnaturalista e defendendo a opinião de que a Constituição de 1946 implicitamente o abrigara. À época, tratava-se verdadeiramente de uma tese, de uma proposição original, e, por isso, suscitou intensos debates e críticas da opinião dominante. Hoje, como assinalou Luiz de Pinho Pedreira, seu colega e amigo fraterno, “importantes juristas estrangeiros aceitam o direito de revolução, resistência ou desobediência civil (como quer que o chamemos), sem base no direito natural, e reconhecem também a possibilidade de estar ele implícito em uma Constituição”. Mais ainda, com sua autoridade científica, aponta que Gomes Canotilho “faz ver que o direito de resistência coletivo (direito político) contra formas de governo ou regimes carecidos de legitimidade está reconhecido pela Constituição portuguesa vigente, na qualidade de direito dos povos contra a opressão (art. 7º, 3)”. Ensinava, então, o mestre na cadeira de “Introdução à Ciência do Direito”, conduzindo os jovens acadêmicos à reflexão sobre a ótica do direito positivo. Kelseniano, suas aulas descerravam o palco da vida, submetido às regras da lei, sob o pálio da ciência do direito. Eram empolgantes as discussões fomentadas pelo espírito vibrante do jovem professor, entre alunos formados em cursos secundários de orientações doutrinárias diversas; o ensino laico do Central e o das escolas católicas e protestantes

2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


tradicionais: Maristas, Vieira e Dois de Julho, defensoras do Direito Natural que, em nossos dias, vem recrudescendo, a partir da derrocada do materialismo histórico. Já o conhecia de longe – fora apresentado por meu pai, seu amigo e correligionário – no bairro então agradável, exclusivamente residencial, dos Barris, onde morávamos. No ano de 1956, passei a ser seu aluno no 1º ano da Faculdade de Direito, e aprendi a admirá-lo pelo talento e brilho de suas aulas. Assisti a seu concurso para a cátedra de Direito Constitucional, nesse mesmo ano, para a qual apresentou a tese “Poderes Remanescentes na Federação Brasileira”, que mereceu a classificação de melhor de seus inúmeros e valiosos trabalhos jurídicos em discurso proferido pelo confrade Fernando Whitaker, na sessão realizada em sua homenagem pela Academia Brasileira de Letras Jurídicas, após seu falecimento. Contudo, como ocorre com os melhores espíritos, Josaphat dedicou-se à política partidária, objetivando partilhar da luta pela felicidade do povo. Dela se fez constante servidor, exercendo, com altivez, talento, brilho e coragem cívica, os mandatos que a cidadania lhe conferiu. Elegeu-se deputado estadual, por duas legislaturas, e para o Senado Federal, também por dois mandatos. Estive a seu lado na Secretaria do Interior e Justiça desde 1959, como seu oficial de Gabinete, e posso testemunhar a condução séria e brilhante dos interesses sociais, consoante as regras da democracia, na intransigente defesa das liberdades públicas. Josaphat foi, em todas as atividades que exerceu, um padrão ético e moral. Serviu sempre a seu semelhante e à sociedade na busca da felicidade, agindo dentro do rigor das regras éticas e morais delineadas na Lei de Deus, impressa por Moisés, e no magnífico “Sermão da Montanha”, embora agnóstico. Combatente profissional na advocacia e na política, o professor jamais humilhou ou maltratou seus adversários. Pautou-se pelas regras éticas da boa convivência, defendendo sempre com altivez e veemência suas idéias e posições. Via com naturalidade as opiniões em contrário, as dissensões manifestadas por adversários. Exigia e mantinha sempre o respeito recíproco, mas não convertia a discordância científica e política partidária em desavença pessoal. O antagonista de ontem podia ser, no futuro, o cordial correligionário no serviço à coletividade. Dessa forma, procedeu desde os tempos da academia, convivendo com os contrários, e, no mundo das idéias, não pode vicejar a unanimidade. A dissonância é a regra na convivência social. Por isso mesmo correta a definição de que a Política é a arte da convivência entre contrários. A intransigência política conduz ao radicalismo, ao maniqueísmo deturpador da ética, entendida como a ciência do amor. Josaphat, nas aulas e na política, combateu sempre na defesa dos ideais democráticos, com firmeza, altivez, independência e coragem cívica, arrostando riscos. Sua conduta no Senado da República, nos dias que se seguiram à vitória 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

da Revolução de março de 1964, é digna de ser estudada e proclamada como exemplo a todos os brasileiros. Os discursos que pronunciou contra o regime excepcional, os votos contrários à vontade revolucionária caçadora, figurarão sempre como peças marcantes de atuação desassombrada, serena, coerente e brilhante na defesa do ideal democrático. Dedicou-se, com entusiasmo, a todas as causas que abraçou, impulsionado pela vocação ética de servir, para conquistar o respeito e o reconhecimento da sociedade pelo amor dedicado ao próximo, ideal dos que “fazem da vida pública um ofício, por ela renunciando a tudo mais, por ela penando, mas perseverando” como acentuou, em discurso, o líder Otávio Mangabeira, cujas lições Josaphat aprendeu e praticou, inclusive no aprimoramento da arte da oratória. Eu o vejo ensinar-me a técnica do improviso, aprendida com o notável político: “Para o improviso, é necessário pensar como iniciar e como terminar o discurso. O recheio vem naturalmente”. Combatente pelas melhores idéias em prol da sociedade, “estudante exemplar, bastante estimado e admirado pelos professores e colegas”, como acentuou o culto Luiz de Pinho Pedreira, o mais antigo e um dos mais íntimos amigos sobreviventes, Josaphat Marinho foi, por toda a vida, um leitor infatigável. Conheceu e praticou as lições dos sábios. Vocacionado à política, impregnou o espírito das lições de Aristóteles, exercitando, como poucos, a ética em todas as funções exercidas. Absorveu os conceitos transmitidos a Nicômaco e os praticou como estudante, advogado, professor e político. Dedicado à causa pública, sustentou, com brilho, idéias que o nortearam nos meandros da vida profissional e particular. Foi sempre fiel às diretrizes que defendeu em prol da felicidade coletiva. Na advocacia, advertia que “não há interesse privado que se legitime ofendendo a imagem do Estado. Em sua perspectiva, maior se concentram direitos e valores, que limitam a livre escolha do profissional”. Aos que o criticaram por haver aceito apoios políticos de adversários, no passado, respondeu – em discurso de agradecimento à homenagem que a sociedade baiana lhe prestou em comemoração a seus oitenta anos – afirmando que as divergências políticas e ideológicas não impedem ou separam os adversários. A advocacia e a política são atividades tipificadas pelo confronto de idéias voltadas ao bem estar do povo. A lide forense se caracteriza pelas divergências de interesses submetidos ao julgamento do Estado. A concretização da Justiça é o ideal do homem, virtude essencial da sociedade civil, como acentuou Aristóteles, enfatizando que ela encerra todas as virtudes. No entanto, a defesa das idéias ou dos interesses contrapostos não impede a convivência política e social. As dissensões são naturais e, diria mesmo, essenciais ao exercício dessas nobilitantes funções. Sendo assim, disse o mestre, neste discurso, “Mudadas as circunstâncias, cessavam as divergências, porque, no fragor dos combates, mantivemos o respeito recíproco, que impede a conversão da discordância partidária em luta pessoal. Ainda agora, exerço o mandato de senador, conquistado com


“A conduta política de Josaphat, sempre pautada no rigor ético de bem servir à sociedade, condição essencial à personalidade virtuosa, pois ninguém é virtuoso para si ou pode alcançar sozinho a felicidade, foi positivada em sua despedida do Senado.”

a compreensão dos baianos e o apoio de um adversário de ontem, o ex-governador Antonio Carlos Magalhães, hoje também Senador, e não precisamos da identidade de todas as idéias para conservar a cordialidade e servir à Bahia.” E eram sensíveis as diferenças ideológicas entre eles. A conduta política de Josaphat, sempre pautada no rigor ético de bem servir à sociedade, condição essencial à personalidade virtuosa, pois ninguém é virtuoso para si ou pode alcançar sozinho a felicidade, foi positivada em sua despedida do Senado, findo seu segundo mandato, quando os senadores de todas as correntes políticas dele se despediram fazendo consignar, na ata da sessão memorável, as homenagens merecidas pelo político exemplar, e, em seguida, deu seu nome à sala de sessões da Comissão de Justiça, onde pontificou, na batalha pelas liberdades públicas, no respeito à lei e ao direito, indispensáveis à realização da Justiça, virtude essencial da sociedade civil. Tive a satisfação de ser seu discípulo e amigo, e tenho procurado seguir seus conselhos, na trilha segura aberta por meu pai, seu companheiro de idéias e lutas políticas. Dou sempre o testemunho de sua conduta reta e brilhante na vida digna que consagrou a bem servir à sociedade, ideal do homem virtuoso. Bom marido, pai estremado e fiel amigo, exerceu liderança política sem constrangimento de quantos seguiram sua liderança. Foi, sim, um homem singular e virtuoso, realizado na comunidade a que, com méritos, serviu. Aos jovens ensinou com proficiência em todos os papéis desempenhados com talento no teatro da vida, legando um volumoso caudal de ensinamentos nos livros, discursos, pareceres, petições e artigos que produziu, cujo vulto se encontra registrado nos arquivos da Internet. A admiração e a amizade que nos uniu me impuseram forças, no momento da celebração da missa de encomendação de seu corpo, no salão nobre da Reitoria da UFBA, a dele me despedir, com essas palavras que pude depois reproduzir: “Cumprimos o doloroso dever de velar seu corpo e conduziremos à última morada. Fazemo-los contristados. Encerra-se um agradável e proveitoso convívio de mais de 40 anos. Aprendemos muito com suas lições de direito e vida pública, toda ela dedicada à causa de servir ao povo, o que fez exemplarmente no ensino, na advocacia, na política e no jornalismo. Estivemos juntos nesses caminhos. Suas

lições, esteja certo, permanecerão perenizadas nos livros, nos notáveis discursos e nos percucientes artigos, o último deles publicado hoje, em sua ‘A Tarde’, alertando e conclamando para a derrubada dos muros invisíveis levantados pelos países ricos, impeditivos do progresso das nações subdesenvolvidas. Permanecerão conosco suas lições, e continuaremos a conversar no monólogo com nossas saudades. Faz pouco, disse, em homenagem prestada a meu pai, que felizes os que têm saudades. É que, ao gosto de fel, a memória acrescenta o benfazejo mel das lembranças, que enchem de felicidade os corações privilegiados dos que as têm. Ficará em nossas saudades, nas recordações de seus muitos amigos e discípulos, antigos e novos. Cumpriremos o amargurado ritual de levá-lo à sepultura. Entretanto, devolveremos somente o corpo à mãe natureza. A alma, neste dia de Páscoa, como nos disse o pastor, haverá de estar na companhia dos espíritos amigos que antes se foram, passeando nos jardins noticiados por Sócrates e prometidos por Cristo aos homens de boa vontade.” E não tardou que a Bahia, por feliz iniciativa do consagrado educandário “Dois de Julho”, onde lecionou o saudoso pastor Basílio Catalá, seu colega na Câmara Legislativa, cuidasse de perenizar sua memória, abrigando sua biblioteca, formada ao longo da vida com gosto e esmero científico e literário, e os inúmeros livros, pareceres e artigos elaborados na profícua e ética labuta para sobreviver com dignidade e virtuosidade, no rigor da definição aristotélica. Loas a Faculdade “Dois de Julho”, que pode ostentar orgulhosa, como nome, a data magna da independência do Brasil, confirmada pelo sangue, suor e lágrimas dos bahianos, nas batalhas de Cabrito e Pirajá. Felizes seus professores e alunos que testemunharão, no dia-a-dia nobilitante do aprendizado, a adoção, pela veneranda instituição de ensino, do conselho do notável poeta Castro Alves, no seu poema “O Livro e a América”: “Oh, bendito o que semeia Livros... livros à mão cheia... E manda o povo pensar! O livro caindo n’alma É germe – que faz a palma, É chuva – que faz o mar.” 2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


A questão da Aposentadoria Compulsória Carpena Amorim Presidente da Associação Nacional dos Desembargadores

Arquivo Pessoal

Nota do editor Se nem Deus abdicou à experiência dos anciãos na condução dos homens, por que haveriam os responsáveis da feitura das leis desprezar e desperdiçar a inteligência dos sábios que aplicam a lei e distribuem a justiça? Desde a primeira edição, a editoria desta Revista tem se posicionado na defesa da longevidade de 75 anos para a aposentadoria compulsória dos Magistrados. Nestes oito anos de circulação, temos, infelizmente, assistido, atônitos e inconformados, à expulsória de luminares do direito, que, insanamente, têm sido forçados a se afastarem das lides da judicatura. O projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados deve e precisa ser referendado, não apenas para preservar a continuidade do uso da inteligência, cultura e experiência desses longevos em plena capacidade laborar, como também por medida de economia e, especialmente, como exemplo de trabalho e continuidade na demonstração de amor à justiça e dignidade desses comprovados especialistas operadores do direito.

16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007


M

ais uma vez, vem à tona o problema da aposentadoria compulsória aos 75 anos de idade para magistrados e servidores públicos em geral. A matéria, como é de conhecimento público, foi fortemente combatida pelos juízes de 1º Grau através de suas Associações de Classe que, brandindo razões meramente pessoais, afirmam ser a medida contra os interesses do governo, assolado pelas inúmeras aposentadorias de juízes que do fato resultariam. Temos repelido essas e outras afirmações esdrúxulas surgidas nos embates das votações no Congresso. Felizmente, prevaleceu o bom senso e a PEC foi aprovada por esmagadora maioria na Comissão Especial da Câmara constituída para opinar sobre o tema. Talvez a grande diferença entre nós resida aí: enquanto os juízes se limitam a arvorar meros interesses pessoais, como fundamentos de resistência, nós do 2º grau de Jurisdição acrescentamos a esses os interesses da previdência e dos próprios jurisdicionados, beneficiados pela permanência no serviço Judiciário de pessoas marcadas pelos embates da vida e com a sensibilidade aperfeiçoada pelo decurso do tempo. Ora, não há raciocínio válido capaz de esconder a transformação da vida social e pessoal nestas últimas 6 (seis) décadas. Por isso, temos nos empenhado fortemente para aprovar, no Congresso Nacional, a Emenda que viria a restabelecer o equilíbrio entre o tempo que passa e a regra da Carta Magna. Aliás, diga-se, a bem da verdade, que a Emenda só não passou em razão da forte resistência das Associações de juízes que, certos da derrota, se devotam à obstrução na votação. Durante todo esse tempo, fomos testemunhas de muitas aposentadorias na Magistratura de Desembargadores hígidos, com grandes serviços prestados ao Judiciário e ainda na plenitude de sua capacidade psíquica, que tiveram de se afastar do serviço ativo para usar sua experiência em proveito próprio e de terceiros. Como já se disse alhures, só um país rico poderia se dar a esse luxo. Importante ressaltar que o tema vem ao Judiciário Fluminense pela primeira vez e que há muitos colegas na expectativa dessa decisão. Que Deus ajude os companheiros do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro a encontrar os fundamentos que, somados aos que estão certamente expostos na inicial do mandato de segurança, iluminariam suas consciências para reafirmar os benefícios que resultariam para a comunidade a permanência de uma longa lista de Desembargadores e Ministros que são obrigados a deixar o serviço público em razão de uma regra vetusta e desgastada pelo transcurso de tempo e pelos progressos indiscutíveis da ciência médica, voltados para o prolongamento da vida. Os governos dos diversos países já começaram a se ocupar com a longevidade das pessoas, que tem repercutido nos mais diversos setores da vida social. O governo federal também concorda com a aposentadoria compulsória aos 75 anos. No entender da Secretaria de

Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, a aprovação da PEC sinaliza a tendência de aumento da idade mínima exigida para a aposentadoria voluntária, além de outros resultados considerados benéficos pelo órgão. Atualmente, para se aposentar voluntariamente, a Constituição exige idade mínima de 60 anos para as mulheres e de 65 anos para os homens, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição; ou aos 60 anos de idade e 35 anos de contribuição, se homem, e 55 anos de idade e 30 de contribuição, se mulher. A Secretaria de Recursos Humanos, responsável pela aposentadoria dos servidores federais, acredita que a aprovação da PEC 457/05 é excelente para as contas da Previdência Social. Além disso, sinalizaria uma tendência de aumento da idade mínima da aposentadoria voluntária do servidor. O argumento é o aumento da expectativa de vida do brasileiro, que, mesmo mais idoso, ainda conta com boa saúde e boa capacidade produtiva. Além disso, ao trabalhar mais tempo, o servidor também aumentaria os valores dos benefícios quando se aposentasse. A ANDES está preparada e vai continuar brigando por nosso direito à vitaliciedade. Não podemos entender por que razão essa limitação só atinge os juízes. No Executivo e no Congresso Nacional, existem inúmeros líderes e técnicos com mais de 70 anos, prestando relevantes serviços a nosso país. Até os notários e Registradores já obtiveram, no STF, a declaração de sua vitaliciedade. Só nós juízes somos discriminados. Em notável artigo recentemente publicado, o eminente advogado Calheiros Bomfim afirmou: “Com efeito, impedir que um magistrado ainda lúcido, profissionalmente experiente, vocacionado, dotado de espírito público, no auge de sua capacidade laborativa e intelectual, desejando continuar a prestar serviços à Justiça e à população e sentindo-se em condições físicas e mentais de fazê-lo, seja privado de exercer a função, obrigado-se a uma inatividade indesejada – e só isto justificaria a alteração proposta na PEC em exame – afigura-se um ato anti-social, um atentado à cultura, um desserviço à sociedade, enfim, um ato contrário ao mais elementar bom senso.” E, ainda, finalizando: “A verdade é que não somos um país com um estágio civilizatório tão avançado, uma economia tão próspera, um Judiciário tão eficiente, um sistema previdenciário de tal forma equilibrado, que possamos nos dar ao luxo de condenar um magistrado à inatividade, só porque alcançou 70 anos de idade, e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, premiá-lo com os proventos integrais da aposentadoria, sabido que irá ele colocar seus conhecimentos jurídicos, experiência e o prestígio do cargo de que se desvinculou, a serviço de empreendimentos, negócios e atividades na iniciativa privada.” 2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17


? Ser ou não ser?

Eis a questão

A atuação inquisitorial da CVM no procedimento administrativo sancionador Técio Lins e Silva

Conselheiro Federal da OAB

Nota do Editor O ilustre e conceituado criminalista, e estimado colaborador da revista, foi indicado por unanimidade pelo conselho seccional da OAB/RJ para compor uma das duas vagas no CNJ – Conselho Nacional de Justiça –, e é o único candidato com mandato de Conselheiro Federal na OAB, com legitimidade do sufrágio por eleição direta dos Advogados, sendo, portanto, portador da representatividade dos Advogados no CNJ.

A

Comissão de Valores Mobiliários, criada em 1976, com inspiração no modelo norte-americano de regulação, possui como função primordial a fiscalização e o fomento do mercado de capitais. Em um país em constante desenvolvimento econômico, uma agência reguladora com essa finalidade tem papel fundamental, afinal, já está comprovada a ligação direta do avanço do sistema financeiro com o crescimento da própria economia. Para poder exercer com eficácia suas funções institucionais, a referida autarquia federal foi dotada de independência administrativa, autonomia financeira e orçamentária. No entanto, apesar de toda essa independência, não pode passar despercebida a atuação da Comissão de Valores Mobiliários como órgão administrativo sancionador. A instituição parece sofrer, atualmente, uma séria crise de identidade, que a impede de cumprir sua missão institucional como órgão de regulação, travestindo-se também em delegacia especializada de repressão, subordinada ao controle externo do Ministério Público Federal. Não há lógica nem legalidade na remessa dos procedimentos investigatórios que ainda não foram julgados

18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

pela CVM ao Ministério Público, como se este órgão fosse o autêntico superego da instituição. Vale ressaltar que boa parte das operações financeiras investigadas pela autarquia não passa de mera infração administrativa, sem qualquer contorno de natureza penal. Contudo, o pavor que parece contaminar o atuar da CVM talvez explique a razão das precipitadas remessas ao Ministério Público, subserviência que não distingue o ser ou não da atribuição daquela importante instituição. Estamos diante de uma força tarefa esdrúxula. A CVM não deve agir como se fosse um braço fiscalizatório do Ministério Público, temente a esse suposto chefe. Este não é seu papel. Os investigados pela referida autarquia têm o direito de se defenderem e serem julgados pelo seu Colegiado, antes que qualquer das informações lá investigadas seja remetida para outro órgão. Até mesmo porque o Colegiado da instituição, ao final do procedimento administrativo, pode entender tanto pela ocorrência de infração administrativa (que, não necessariamente, terá implicações na esfera penal), como também pela total improcedência dos indícios que ensejaram a atuação da CVM.


Arquivo Pessoal

“Para poder exercer com eficácia suas funções institucionais, a referida autarquia federal foi dotada de independência administrativa, autonomia financeira e orçamentária.” É notório que nem todas as operações financeiras são de fácil entendimento para aqueles que não trabalham no ramo do mercado de capitais. É justamente por isso que existe uma entidade especializada para entendê-las, apurá-las, julgá-las e, se for o caso, encaminhar aos órgãos competentes os fatos por ela apurados. A inversão dessa lógica é inaceitável. Trata-se de um verdadeiro disparate a remessa prévia das informações obtidas pela CVM ao Ministério Público. Tal atitude expõe os investidores e transforma o mercado de capitais em uma área insegura de atuação, disseminando o medo através da ameaça penal. É difícil crer que uma instituição criada para estimular a poupança e a aplicação em valores mobiliários seja a mesma que hoje fornece, sem qualquer critério, informações que ainda não passaram pelo crivo do contraditório administrativo, distribuindo suas impressões prévias a torto e a direito. Essa atuação marcantemente policialesca, além de inadmissível, contrapõe-se às finalidades precípuas da autarquia que tem o dever de assegurar o direito à ampla defesa sem o medo de parecer que está apenas protegendo o infrator. A Comissão de Valores Mobiliários deve zelar pela legalidade das operações financeiras praticadas no mercado de capitais, mas, para tanto, não pode se transformar em um órgão apenas acusador por excelência, pois possui outras funções extremamente importantes para o bom funcionamento do mercado financeiro. O Colegiado da instituição, composto por cidadãos de reconhecida competência na matéria de mercados de capitais, tem a responsabilidade e o dever de coibir atitudes que desonrem e desviem a CVM da sua principal missão, qual seja, o desenvolvimento pleno do sistema financeiro brasileiro. Portanto, os que têm a responsabilidade de dirigir órgão tão importante para a economia do país devem orientar toda a hierarquia da CVM para aguardar o desfecho dos procedimentos, sem sair distribuindo relatórios precipitadamente. Pois, para assegurar o prestígio da instituição, seus servidores não devem temer respeitar o direito de defesa e o devido processo legal, para não correr o risco de associar o M da sigla com o M de medo.

2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


Visita ao Inferno por R$ 4.400, por adolescente Siro Darlan Desembargador do TJ/RJ

A

pós ler, no jornal, a declaração atribuída à Secretaria Nacional dos Direitos Humanos da Presidência da República de que um jovem privado da liberdade custava ao contribuinte R$ 4.400 por mês, tive a curiosidade de visitar uma unidade destinada a ressocializar adolescentes. Fomos até o Instituto Padre Severino (IPS), na condição de vice-presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, acompanhado do vice-presidente da OAB-RJ, Dr. Lauro Schuch, e vários conselheiros tutelares. Antes, procuramos o novo diretor do Degase, responsável pela administração do Sistema Sócio-Educativo no estado e não o encontramos. Diante do emocionado debate sobre redução da responsabilidade penal, resolvemos documentar a visita com uma câmera para poder dar visibilidade a esse lado da moeda. Não foi surpresa saber que, onde só cabem 130 jovens em cumprimento de medida, havia 230. Horrorizada, a equipe que visitava o Instituto Padre Severino constatou que o lugar que chamam de cama é um beliche de cimento sem colchão, onde dormem dois, às vezes, três jovens adolescentes. Quem tem escova de dente são aqueles que a recebem dos familiares, mas mesmo assim ela é cortada pela metade pelos agentes de segurança. O local destinado à higiene pessoal é infestado de ratos e baratas, e a comida é servida em quentinhas frias com limite de cinco minutos para engolirem o que é servido duas vezes ao dia. As oficinas profissionalizantes não funcionam porque, há mais de três anos, não recebem material, e os mestres estão ociosos. 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

A única oficina que ainda resiste é a do aprendizado de fazer pipas, graças a doações dos funcionários ao esforçado professor. Os jovens permanecem enjaulados nas celas infectas e promíscuas, de onde só saem para o refeitório e para as salas de aula, único serviço que funciona bem, graças ao convênio com a Secretaria de Educação e aos esforços das professoras que se dedicam ao ensino básico e precário dos jovens infratores. Os médicos e medicamentos são raros, não há antibióticos, e muitos jovens apresentam sinais de violência em seus corpos sem o tratamento adequado. Sarna e coceiras são constatados sem maior esforço através de simples visualização. Não é sequer fornecido aos jovens um chinelo e muitos, exceto aqueles que recebem dos familiares, andam descalços no chão imundo e impuro. Contudo, o Brasil é signatário do documento que impõe aos países civilizados o respeito às regras mínimas das Nações Unidas para a proteção dos jovens privados de liberdade. E, ao se verificar que os jovens brasileiros estão sendo submetidos a unidades que não cumprem tais regras, identifica-se a preocupação do presidente da República ao atribuir falta de respeito à legislação por parte dos administradores públicos as causas reais da violência. Reza o referido documento que o sistema de Justiça da infância e da juventude deverá respeitar os direitos e a segurança dos jovens, e fomentar seu bem-estar físico e mental. Não deveria ser economizado esforço para abolir, na medida do possível, a prisão de jovens. Afirma ainda que o Estado signatário só poderá privar os jovens de liberdade de acordo com os princípios e procedimentos estabelecidos nas presentes regras, assim como nas Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing). A


Arquivo Pessoal

privação de liberdade de um jovem deverá ser decidida apenas em último caso e pelo menor espaço de tempo possível. Deverá ser limitada a casos excepcionais, por exemplo, como efeito de cumprimento de uma sentença depois da condenação, para os tipos mais graves de delitos, e tendo presente, devidamente, todas as circunstâncias e condições do caso. Foi encontrado, na unidade, um jovem com 14 anos privado da liberdade há 30 dias por haver sido pego pescando em área proibida. E o mais grave é que, contrariando norma legal, ele se encontrava no mesmo espaço físico de outros que haviam cometido atos infracionais mais graves. Há mais de três anos, o IPS não recebe qualquer material para desenvolver ensino profissionalizante, mas as Regras Mínimas de Riad destacam que a privação da liberdade deverá ser efetuada em condições e circunstâncias que garantam o respeito aos direitos humanos dos jovens. Deverá ser garantido aos jovens reclusos em centros o direito a desfrutar de atividades e programas úteis que sirvam para fomentar e garantir seu saudável desenvolvimento e sua dignidade, promover seu sentido de responsabilidade, e fomentar neles atitudes e conhecimentos que ajudem a desenvolver suas possibilidades como membros da sociedade. Segundo as Nações Unidas, os jovens privados de liberdade terão direito a dispor de locais e serviços que satisfaçam a todas as exigências da higiene e da dignidade humana. As instalações sanitárias deverão ser de um nível adequado e estar localizadas de maneira que o jovem possa satisfazer suas necessidades físicas na intimidade e de forma asseada e decente. Finalmente, o Brasil está obrigado a garantir que todos os centros de detenção devem fornecer uma alimentação adequadamente preparada e servida nas horas habituais, em qualidade e quantidade que satisfaçam as normas da dieta, da higiene e da saúde, e, na medida do possível, as exigências religiosas e culturais. Todo jovem deverá ter, a todo o momento, água limpa e potável. Quem é o infrator? A autoridade governamental que descumpre a Constituição do país e até mesmo os compromissos assumidos com a comunidade internacional ou o jovem que, diante desse exemplo de transgressão, comete atos infracionais? Não seria o caso de cobrar dos adultos exemplos e coerência no desempenho de suas funções públicas para então discutir redução de responsabilidade penal para jovens? O Ministério Público, por meio de seus atentos promotores de Justiça, buscaram da autoridade governamental o compromisso de respeito a uma lei que está em vigor há mais de 16 anos e assinaram com o governo do estado um Termo de Ajustamento de Conduta, por meio do qual o Governo do Estado se comprometeu a cumprir alguns artigos da lei. Novamente, deixaram de cumprir os compromissos assumidos e deixaram o Ministério Público com um título de execução na mão, e os adolescentes infratores, só eles que foram punidos, continuam na escola do crime e da violência. Como ressocializar esses jovens mantendo-os no viveiro realimentador da violência que os vitimiza desde sua concepção? O resto é hipocrisia.

“Deverá ser garantido aos jovens reclusos em centros o direito a desfrutar de atividades e programas úteis que sirvam para fomentar e garantir seu saudável desenvolvimento e sua dignidade.”

2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


aTÉ QUANDO? Antonio José F. Carvalho

Arquivo Pessoal

Desembargador do TJ/RJ

D

iego Nascimento, acusado de dirigir o automóvel que arrastou por sete quilômetros o menino João Hélio Fernandes Vieitas, e seus possíveis comparsas, dentre eles Carlos Eduardo, não vão morrer

de enfarte. O adolescente que o acompanhava, em três anos, no máximo, estará nas ruas pronto para praticar outros crimes. Diego e os demais acusados da autoria do bárbaro latrocínio, certamente, em poucos anos, também estarão nas ruas. Não culpem o Código Penal. Apesar de vetusto, ainda é um bom Código e as penas ali impostas são suficientes à reprovação das condutas nele incriminadas. Não culpem o Poder Judiciário, que apenas aplica as leis, boas ou más, elaboradas pelo Poder Legislativo e sancionadas pelo Poder Executivo. Culpem a Constituição Federal, que deixou inúmeras brechas que permitem beneficiar celerados irrecuperáveis. A sociedade não agüenta mais o aumento desenfreado da criminalidade e a enorme saga de benefícios que são concedidos pela Lei das Execuções Penais. A descrença da população aumenta quando sabe que o Estatuto da Criança e do Adolescente não corresponde às necessidades de um país como o nosso. A nova Lei de Tóxicos, mais uma vez, mostra o afrouxamento das punições para traficantes e usuários, viciados, experimentadores, etc, que são, justamente, aqueles que sustentam o nefando tráfico ilícito. 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007


“Os bandidos estão nas ruas, e a população está cada vez mais refém deles. Quase todos os prédios estão gradeados. O povo é que está na prisão.”

Reclama a sociedade, reclama a população em geral, uma nova Lei de Execuções Penais que acabe ou, pelo menos, que restrinja, substancialmente, os benefícios concedidos aos apenados, em especial aqueles condenados pela prática de crimes hediondos como latrocínios, homicídios qualificados, estupros e similares. É sabido que, de há muito, devido à frouxidão do Estatuto da Criança e do Adolescente, o chamado ECA (olha que pode ter outro sentido...), organizações criminosas, principalmente as ligadas ao tráfico ilícito de entorpecentes, vêm recrutando crianças de onze, doze anos, quiçá até com menos idade, para participarem das atividades ilícitas. Esses menores recrutados, que, por vezes, ascendem dentro das quadrilhas, tornam-se mais perigosos que muitos marginais da lei, já adultos. Eles não têm medo da morte, até porque sabem que poucos deles passarão dos 25 anos de idade. Eles traficam entorpecentes, cometem homicídios, latrocínios, roubos, etc, e a chance de recuperação deles é quase nula. E com uma legislação que permite que, com acentuada rapidez, voltem às ruas, tornam-se cada vez mais perigosos. Em alguns casos, teriam de ser julgados como adultos, sem dúvidas, até porque há violenta desproporção entre as chamadas “medidas ressocializadoras” a eles aplicadas e as penas previstas no Código Penal pela prática de crimes como latrocínio, homicídio e estupro, dentre outros. Nossa Constituição Federal precisa ser revista, de molde

a não permitir que se reconheça a inconstitucionalidade de algumas leis, o que sempre culmina por resultar em benesses para celerados. Os bandidos estão nas ruas, e a população está cada vez mais refém deles. Quase todos os prédios estão gradeados. O povo é que está na prisão. Há de se pensar até mesmo na adoção da pena de morte para crimes hediondos cometidos por delinqüentes reincidentes, sabidamente irrecuperáveis. Não é só porque uma criança de seis anos morreu torturada, arrastada por um carro por sete quilômetros e porque outro adolescente matou friamente uma senhora da sociedade no Leblon. É porque o avanço da criminalidade, até mesmo por falta de política de educação conveniente, o que vem se sucedendo por vários governos, deixou o cidadão honesto em situação insustentável. Que as milícias, agora, diuturnamente, focos de notícias na mídia, são ilegais, todos sabem. Então, se é assim, por que será que a grande imprensa faz enorme campanha contra elas e não contra os traficantes de entorpecentes que, embora de forma ilegal, as milícias combatem? Até quando a população terá de esperar por medidas efetivas de combate à criminalidade? Em tempo: Diego, Carlos Eduardo e os outros não vão morrer de enfarte, doença do coração. Eles simplesmente eles não o possuem. 2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


O TSE E A FIDELIDADE PARTIDÁRIA Carlos Roberto Siqueira Castro Conselheiro Federal da OAB

A

decisão do Tribunal Superior Eleitoral proferida na terça-feira (27.3.07) é histórica e de inestimável alcance para a correção das deformações do sistema político-eleitoral brasileiro. Em síntese, ao responder à Consulta 1398, do PFL, proclamou o TSE (antes tarde do que nunca!), segundo o impecável voto do Relator, Ministro César Asfor Rocha “que os partidos políticos e as coligações conservam o direito à vaga obtida pelo sistema proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda”. Tudo porque “os Partidos Políticos adquiriram a qualidade de autênticos protagonistas da democracia representativa, não se encontrando, no mundo ocidental, nenhum sistema político que prescinda de sua intermediação...” Por isso “é equivocada e injurídica a suposição de que o mandato eletivo pertence ao indivíduo eleito, pois isso equivaleria a dizer que o candidato eleito se teria tornado senhor e possuidor de uma parcela da soberania popular, transformando-a em propriedade sua à moda do exercício de uma prerrogativa privatística, todos os poderes inerentes ao seu domínio, inclusive o de dele dispor”.  O acerto dessa decisão é inconteste, uma vez que a Constituição determina, como condição de elegibilidade do cidadão, dentre outras, a filiação partidária (art.14, § 3º, V), e impõe aos partidos estabelecer, em seu estatuto, normas de disciplina e fidelidade partidária (art. 17, § 1º). Acredito ser, hoje, unânime no Brasil, o sentimento

24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

da urgência quanto à reforma política saneadora de nossas mazelas institucionais. Esta há de começar pela afirmação enérgica do princípio da fidelidade partidária, na convicção de que não há nada mais destrutivo da ética pública do que a insignificância social dos partidos. O descrédito popular, em face dos mecanismos da democracia representativa, deve-se, em grande parte, à desmoralização do compromisso partidário entre o candidato eleito e a legenda que promoveu sua eleição. Essa situação patológica confunde o eleitor, deseduca a cidadania e contamina as instituições de governo. Além disso, a promiscuidade das relações partidárias conspira contra a aglutinação sadia e programática dos segmentos da sociedade, instala a corrupção na carreira política e empurra a massa de eleitores, como gado no corredor do abate, para a devora do charlatanismo eleitoral.  Nos últimos anos, observou-se indecorosa movimentação de deputados e senadores como estratégia governista de enfraquecer as oposições e ampliar o arco de alianças de apoio ao governo no Congresso Nacional. Tudo não passa de ocupação predatória do espaço político, a demonstrar a dicotomia entre o universo axiológico da Moral e a prática do Poder (Celso Lafer, Desafios - ética e política, p. 17). A política de desmantelamento dos partidos vem de longe. O Ato Institucional nº 2, de 1964, com a cerimônia da ditadura militar, extinguiu as siglas partidárias tradicionais (PSD, PTB, UDN etc.), as quais, até então, bem ou mal,


Arquivo pessoal

traduziam as principais correntes ideológicas da vida brasileira. Tal se fez com o propósito deliberado de desarticular a expressão maior da sociedade civil e, com isso, deixar à deriva os anseios de redemocratização. O próprio vocábulo “partido” foi considerado subversivo à ordem autoritária, quando então os situacionistas agruparamse na legenda da ARENA e a resistência democrática abrigouse no MDB. Com as retumbantes vitórias eleitorais da frente de oposição nos idos de 1974 e 1978, os mentores do regime militar perceberam que o modelo bipartidário estava exaurido. Aliás, justamente para impedir defecções partidárias, que pudessem comprometer a tutela do Executivo militar sobre o Poder Legislativo, o regime pós-64, em manobra espúria e sem nenhum idealismo institucional, fez incluir, no art. 152, § 5º, da E/C nº 1/69, a penalidade da perda de mandato para o parlamentar que deixar o partido pelo qual foi eleito. Hoje, o que se verifica é o mesmo projeto de debilitação das instituições partidárias. Basta ver que, dentre os deputados federais eleitos no ano de 2006, nada menos do que 36 parlamentares abandonaram o partido pelo qual se elegeram. Além do mais, dos 513 deputados eleitos no último pleito, apenas 31, ou seja, 6,04% alcançaram por si só a votação nominal necessária para atingir o quociente eleitoral. Todos os demais foram eleitos em razão da soma dos votos sufragados para as legendas partidárias. Em cada eleição, dá-se a mesma revoada e o aliciamento governista para formar e ampliar a base de apoio no Congresso

Nacional. Daí o inchaço ocorrido no PTB, PP e PL, legendas auxiliares do 1º mandato do governo do Presidente Lula, que haviam elegido 52 deputados e contam hoje com mais de 100. Por coincidência, ou não, esses partidos estiveram diretamente envolvidos, juntamente com algumas lideranças do PT, no chamado escândalo do “mensalão”, que horrorizou a nação.  A Constituição democrática de 1988, em boa hora, incluiu a fidelidade partidária dentre os princípios da organização dos partidos (art. 17, § 1º). Trata-se de norma integrante do Título II (Direitos e Garantias Fundamentais) nessa qualidade alçada em cláusula pétrea. Sucede, porém, que o mesmo estatuto supremo, ao elencar, no art. 55, as hipóteses de perda de mandato parlamentar, deixou de mencionar a conduta mais radical de deslealdade partidária: o abandono da legenda política. Infelizmente, o Supremo Tribunal Federal tem decidido, com infeliz inspiração, que o postulado da fidelidade partidária não alcança a conseqüência da perda do mandato (v.g. MS nº 20.927-5-DF, Rel. Ministro Moreira Alves). Contudo, pela via da interpretação sistêmica da Constituição e da aplicação do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, poder-se-ia estender a sanção da destituição do mandato ao parlamentar que abandonar o partido pelo qual concorreu às eleições. De todo modo, a decisão do TSE, corajosa e pioneira, em boa hora, cumpre o grandioso papel de abrir caminhos ao aperfeiçoamento da democracia representativa em nosso país. 2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


Inconstitucionalidade do passe livre da cidade do rio de janeiro REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONALIDADE 41/2006 Órgão Julgador : Relator: Representado: Representado: Representante: Legislação: ADVOGADOS:

TRIBUNAL PLENO E ÓRGÃO ESPECIAL DESEMBARGADOR ROBERTO WIDER CÂMARA MUNICIPAL DO MUNICÍPIO DO RJ PREFEITO DO MUNICÍPIO DO RJ FETRANSPOR – FEDERAÇÃO DAS EMPRESAS DE TRANSPORTES DE PASSAGEIROS DO ESTADO DO RJ LEI MUNICIPAL 3167/2000 MAXIMINO FONTES E OUTROS

Ementa Representação por Inconstitucionalidade com pedido de suspensão liminar de eficácia da Lei nº 3.167/2000 do Município do Rio de Janeiro que “Assegura o exercício das gratuidades previstas no Artigo 401 da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, mediante a instituição do Sistema de Bilhetagem Eletrônica nos serviços de transporte público de passageiros por ônibus do Município do Rio de Janeiro e dá outras providências.” Gratuidade em serviços públicos de transportes coletivos prestados de forma indireta. Direitos constitucionais prestacionais. Natureza e efetividade. Necessidade de fonte de custeio. Desatendimento à norma constitucional que prevê o estabelecimento de critérios de contrapartidas necessárias à compensação de custos em decorrência de gratuidades concedidas pelo poder concedente. Procedência da Representação. Acórdão Vistos, relatados e discutidos estes autos de Representação por Inconstitucionalidade nº 41/2006. Acordam os Desembargadores que compõem o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por unanimidade de votos, em rejeitar a preliminar suscitada, e, no mérito, por maioria, julgar procedente a Representação para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 1º, 3º, 12, 15, §§ 1º e 2º, 16, 21, 22, 23, §§ 1º e 2º da Lei 3.167/2000 do Município do Rio de Janeiro, vencidos os Desembargadores Valéria Maron, Telma Musse Diuana, Azevedo Pinto, Rudi Loewenkron, Paulo César Salomão, Murta Ribeiro, Cássia Medeiros e Fabrício Paulo B.B. Filho. 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

Cuida-se de Representação por Inconstitucionalidade, tendo por objeto diversos dispositivos da Lei 3.167/2000, do Município do Rio de Janeiro, que estabeleceu gratuidade no transporte coletivo para idosos, deficientes físicos, portadores de doenças crônicas e alunos da rede pública. Em fls. 286, o Exm°. Sr. Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro manifestou-se contrariamente ao pedido liminar, aduzindo que o preço das tarifas municipais do transporte coletivo por ônibus já contemplam as gratuidades asseguradas na Lei em questão. A Câmara Municipal do Rio de Janeiro apresentou informações às fls. 288/293 pelo indeferimento da liminar por ausência de violação da Carta Estadual. O Ministério Público, em fls. 297, protestou pela prévia manifestação do Procurador Geral do Estado. Os autos foram retirados pela ilustrada Procuradoria do Estado em 20/04/2006 e devolvidos somente em 24/07/ 2006, três meses após, sem manifestação (fls. 298 e 304). A Procuradoria Geral de Justiça se manifestou, em fls. 305, protestando pelo indeferimento do pedido cautelar tendo em conta tratar-se de Lei datada de 2000, o que, por si só afastaria o perigo na demora. O pedido cautelar foi indeferido em fls. 307/307v. por ausente o pressuposto da conveniência pela possibilidade de perigo imediato, considerando o tempo de vigência da lei inquinada. O Exm°. Sr. Procurador Geral do Estado apresentou sua manifestação, datada de 24/08/2006, às fls. 312/315, pela improcedência do pedido. A Procuradoria Geral de Justiça, com o parecer de fls. 317/


“REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 3.650, DE 21/9/2001. REGULAMENTAÇÃO DO ART. 14 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. VIOLAÇÃO DO PROCESSO LEGISLATIVO ART.112 § 2° DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. CONSEQÜÊNCIA. A lei que complementa norma constitucional, que, por sua vez, garante a gratuidade de serviços públicos estaduais de transporte coletivo, prestados de forma indireta, se deliberada e votada sem a indicação de fonte de custeio, padece de vício de inconstitucionalidade. Representação procedente.”

Foto: TJ/RJ

322, opinou no sentido da improcedência da Representação, entendendo tratar-se de ofensa à norma da Constituição Federal insuscetível de apreciação nesta sede e considerando que o sistema contempla o ressarcimento dos benefícios concedidos. A Câmara Municipal se manifestou em fls. 335/359, argüindo preliminar de ausência de interesse de agir, tendo em vista que a Lei 3.167/2000 somente regulamenta os termos da gratuidade concedida pela Lei Orgânica Municipal; inexis-tência de afronta ao artigo 112, § 2º da Carta Estadual por inexistir, na Constituição da República, indicação de que os Municípios devem se submeter ao processo legislativo estadual, e ainda ante a competência exclusiva do Município para organizar os serviços públicos de interesse local, incluído o transporte coletivo, na forma do artigo 30, V da CRFB. O Exm°. Sr. Prefeito do Município do Rio de Janeiro se manifestou às fls. 364, corroborando os argumentos trazidos pela 1ª Representada e aduzindo que as gratuidades são suportadas pela tarifa paga por toda a população usuária do transporte coletivo por ônibus, uma vez que, no cálculo da tarifa, os custos são rateados entre os passageiros pagantes. É o relatório. Inicialmente, cabe rejeitar a preliminar de ausência de interesse de agir, tendo em vista que o legislador exigiu, como condição de eficácia do dispositivo da Lei Orgânica Municipal que instituiu o serviço de transporte gratuito de natureza assistencial, a edição de lei específica para regulamentar sua execução na integralidade e, sendo assim, o interesse de agir está na alegada inobservância dos requisitos constitucionais de eficácia da lei e as condições pré-estabelecidas entre o Poder Público e as empresas que executam os serviços de transporte intermunicipal. A hipótese é em tudo assemelhada ao precedente julgado por este Órgão Especial na Representação de Inconstitucionalidade n° 60/2002, em que foi Relator o Des. Marlan de Moraes Marinho, cuja ementa se transcreve a seguir:

“Não se está aqui a negar o benefício da gratuidade concedido pela Lei Orgânica Municipal, mas, tão- somente, a observar as exigências para sua exeqüibilidade.”

Assim, rejeitada a preliminar, passemos à analise do mérito.

2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


A questão posta nesta Representação tem sido objeto de apreciação neste Tribunal em razão dos problemas e ônus que acarreta às prestadoras de serviços públicos de transporte. É certo que o serviço de transporte coletivo rodoviário se realiza por ações de empresas mediante contratos de concessão, permissão ou autorização firmados com o Poder Público. São, portanto, contratos administrativos nos quais, desde a celebração, deve estar prevista a forma de ressarcimento, pelo Estado, das despesas da empresa na execução do serviço público. Com o advento da Lei Municipal 3.167/2000 do Município do Rio de Janeiro, o que ocorreu, efetivamente, foi que as concessionárias passaram a ter que transportar gratuitamente todos os beneficiados indicados pelo poder concedente e este se omitiu desde então e até aos dias atuais, na efetivação de contrapartidas necessárias à compensação dos custos das gratuidades concedidas. Não se está aqui a negar o benefício da gratuidade concedido pela Lei Orgânica Municipal, mas, tão somente, a observar as exigências para sua exeqüibilidade. A apreciação das questões de direito suscitadas na presente representação deve ser analisada sob a ótica de direitos fundamentais constitucionais e da exegese a eles aplicáveis. Em uma sumaríssima descrição do que se quer abordar, colhe-se, em artigo do Professor Ricardo Lobo Torres – A jusfundamentalidade dos Direitos Sociais (Vol. XII da Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, Lumen Júris) –, após distinguir os direitos fundamentais como aqueles plenamente justiciáveis, que independem de complementação legislativa, tendo eficácia imediata e que estão positivados, entre outros, no artigo 5º da Constituição Federal, trata dos segundos, como direitos a prestações positivas, sujeitos à “reserva do possível” e à concessão do legislador, e que se positivam na Constituição Federal, nos artigos 6º e 7º, entre outros (ob.cit.p.350-351).

“A Constituição do Estado do Rio de Janeiro é taxativa sobre o tema: não se concede a gratuidade de serviço público, na forma indireta, sem a correspondente indicação da fonte de custeio.”

28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

Frente à reconhecida falência do Estado-Providência, como assinala o mesmo professor adiante “a tese do primado dos direitos sociais sobre os individuais, com vimos acima, se dissolveu com o colapso do socialismo real e com a crise do Estado-Providência”, “a saída para a afirmação dos direitos sociais tem sido, nas últimas décadas: a) a redução de sua jusfundamentalidade ao mínimo existencial, que representa a quantidade mínima de direitos sociais abaixo da qual o homem não tem condições para sobreviver com dignidade; b) a otimização da parte que sobreexcede os mínimos sociais na via das políticas públicas, do orçamento e do exercício da cidadania” (ob.cit.p.356). Estamos tratando de direitos sociais, que se consubstanciam na obrigação do Estado de prestar aos cidadãos a garantia ao chamado “mínimo existencial”, ou seja, prestações materiais que garantam sua sobrevivência com um mínimo de dignidade humana, ou, em uma fase subseqüente, “a otimização da parte que sobreexcede os mínimos sociais”, impõe-se a análise de qual a jusfundamentalidade do direito social ao transporte coletivo gratuito prestado de forma indireta, visando identificar seus elementos integradores, forma de realização e imposição de custos. É certo que tal política pública para os transportes coletivos pode estar inserida dentro do chamado “mínimo existencial” no mesmo patamar dos programas de “Bolsa-Família” do Ministério da Educação ou do “Vale-Gás” do Ministério de Minas e Energia. Penso, no entanto, que esta política se situa em um patamar acima dos “mínimos sociais”, haja vista a consideração do público alvo e objetivos colimados, quais sejam, um benefício aos idosos que necessitam de amparo; uma sobregarantia aos estudantes da rede pública, ao menos do 1o. grau, para o acesso ao estudo fundamental e uma assistência suplementar aos deficientes. Como se tratam de direitos sociais aos quais correspondem políticas prestacionais materiais por parte do Estado e, acrescenta a Constituição Federal, de responsabilidade da sociedade como um todo, a teor do artigo 194, sua integração depende de diversos fatores, entre os quais o que se denominou “a reserva do possível”, ou seja, a disponibilidade orçamentária ou previsão de fonte de custeio e a concessão legislativa; esta, por sua vez, objetivando uma atividade prestacional de assistência social, qualifica os destinatários como os efetivamente necessitados de tais prestações, como não poderia deixar de ser, sob pena de subversão de seu caráter social. Nesse ponto, deve-se prevenir a indesejada transformação da política de assistência em assistencialismo. As questões suscitadas impõem a aplicação de princípios hermenêuticos, notadamente as exegeses sistemática e teleológica das normas que explicitam os direitos sociais. Quando se pensa em gratuidade concedida para o fornecimento de um serviço público, para logo se conceber, trata-se de um benefício social. O benefício social decorre da execução de uma política de assistência social, prevista na Constituição Federal, que, como se sabe, é altamente impregnada de um sentido de socialidade e, por isso, inteiramente afastada de qualquer sentido de privilégio,


devendo se entender a assistência social como “serviço gratuito, de natureza diversa, prestado aos membros da comunidade social, atendendo às necessidades daqueles que não dispõem de recursos suficientes.”(Novo Aurélio – Século XXI). Nesta linha, estabelece a Carta Magna:

Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Art. 203 – A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; III – a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV – a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Por não se tratar de um “privilégio”, e sim de uma “assistência”, colhe-se, nos textos constitucionais, sempre, a referência à necessidade e a figura da carência: • assistência aos desamparados; • a assistência será prestada a quem dela necessitar; • o amparo às crianças e adolescentes carentes; • a pessoa portadora de deficiência e o idoso que comprovem não possuir meios de prover à sua própria manutenção ou de tê-la provida por sua família . Neste contexto, a assistência social é deferida à atividade estatal, como um objetivo e um ônus da Administração Pública e da sociedade como um todo, sendo implementada por um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, a teor do previsto no art. 194 da Carta Magna, que tem abrangência maior do que a previdência social, tratada a partir do art. 201 do mesmo diploma. Dentro dessas políticas de amparo às pessoas necessitadas, notadamente as idosas, a Constituição prevê, como parágrafo do artigo 230, que justamente determina o dever de amparar às pessoas idosas, a garantia de gratuidade dos transportes coletivos urbanos aos maiores de sessenta e cinco anos. Como se fazer a leitura e interpretação deste artigo, fora do contexto em que foi criado? Leia-se o caput do artigo: Art.230 – A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem estar e garantindo-lhes o direito à vida.

Especificamente, no que se refere aos serviços públicos de transportes coletivos, estão previstos sistemas de benefícios, a saber: 1. Em relação aos maiores de sessenta e cinco anos, o supra citado artigo 230; no entanto, deve ser tratada a questão como “assistência social a quem necessitar” e não como privilégio, pois não passa pela cabeça de ninguém que os componentes da classe média e alta da sociedade, maiores

“Toda a gratuidade é obrigação do Estado e da coletividade como um todo e não de qualquer dos segmentos deste processo, tais como as empresas prestadoras dos serviços ou dos demais usuários, pela flagrante injustiça e inconstitucionalidade.” de sessenta e cinco anos, deverão ter o direito à gratuidade do serviço, à custa do Estado ou dos trabalhadores da classe inferior (que usam o transporte público); Tenho para mim que, se tal entendimento for adotado, estar-se-á subvertendo o cânone fundamental do princípio da igualdade, pelo qual este resulta no tratamento desigual aos desiguais, ficando o mesmo transformado não em uma política de amparo aos idosos, mas em um privilégio, o que viola, dentro de uma exegese sistemática e teleológica das normas constitucionais que regem os direitos sociais, sua razão de ser e objetivos colimados, quais sejam, a concessão de benefícios aos menos privilegiados da sociedade. 2. Em relação aos estudantes, determina a Constituição Federal: Art. 205 – A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 208 – O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: VII – atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didáticoescolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

E também a Constituição do Estado do Rio de Janeiro:

Art. 306 – A educação, direito de todos e dever do Estado, e da família, promovida e incentivada com a colaboração da sociedade...etc. Art. 308 – O dever do Estado e dos Municípios com a educação será efetivado mediante garantia de: IX – atendimento ao educando, no ensino fundamen-tal, através de programas suplementares de material didáticoescolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

Finalmente, no que se refere à gratuidade para pessoas portadoras de deficiências ou doença crônica, o benefício está previsto na Constituição do Estado, artigo 14:

Art. 14 – É garantida, na forma da lei, a gratuidade dos serviços públicos estaduais de transporte coletivo, mediante passe 2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29


“Ainda que houvesse um tratamento tarifário adequado ao problema das gratuidades, voltaríamos ao problema básico: o transporte urbano é chamado a atender, prioritariamente, às populações de baixa renda.” especial, expedido à vista de comprovante de serviço de saúde oficial, a pessoa portadora: I – de doença crônica, que exija tratamento continuado e cuja interrupção possa acarretar risco de vida; II – de deficiência com reconhecida dificuldade de locomoção. Art. 338 – É dever do Estado assegurar às pessoas portadoras de qualquer deficiência a plena inserção na vida econômica e social e o total desenvolvimento de suas potencialidades, obedecendo aos seguintes princípios: X – conceder gratuidade nos transportes coletivos de empresas públicas estaduais para as pessoas portadoras de deficiência, com reconhecida dificuldade de loco-moção, e seu acompanhante.

Tem-se que os serviços públicos podem ser prestados de forma direta, ou seja, pelos próprios órgãos ou empresas públicas encarregadas dos mesmos, ou de forma indireta, de acordo com a Lei Federal que dispõe sobre o regime de concessões e permissões da prestação de serviços públicos previsto no artigo 175 da CF, que prevê as duas formas: Art. 175 – Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Na forma indireta, a concessão de serviços públicos é feita mediante delegação (a título precário, se for permissão), feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, para pessoa jurídicas ou consórcio de empresas (Lei 8987, de 13 de fevereiro de 1995, artigo 2º, incisos II e IV). Pois bem, ao tratar desta forma indireta, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, no parágrafo 2º do artigo 112, é taxativa: “Não será objeto de deliberação proposta que vise conceder gratuidade em serviço público prestado na forma indireta, sem a correspondente indicação da fonte de custeio”.

Demais disso, a Constituição Federal em seu artigo 195, § 5º, exige que nenhum benefício ou serviço da seguridade social seja criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio. Também a nível federal, colhe-se, nas disposições da Lei 9.074, de 7 de julho de 1995, que estabelece normas para a outorga e permissão de serviços públicos, nos termos da Lei 8.987/95, ao dispor sobre a concessão de qualquer benefício tarifário a uma classe ou coletividade de usuários dos serviços que:

Art. 35 – A estipulação de novos benefícios tarifários pelo poder concedente fica condicionada à previsão, em lei, da origem dos recursos ou da simultânea revisão da estrutura tarifária do concessionário ou permissionário, de forma a preservar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

A Constituição do Estado do Rio de Janeiro é mais estrita e taxativa sobre o tema: não se concede a gratuidade de serviço público, na forma indireta, sem a correspondente indicação da fonte de custeio. Assim, no Estado, todas as normas infraconstitucionais que desatenderem este comando se confrontam com ele. E não poderia ser de outra forma. Tais benefícios, que visam a uma política de assistência social, consubstanciam dever do Estado e por tal, com previsão orçamentária, ou, se delegados a particulares, na forma indireta, devem ter a correspondente fonte de custeio. E tais ações de assistência social, como dever do Estado e sociedade como um todo, não podem ser imputadas, como ônus, a apenas uma parte da sociedade – exatamente aquela que tem menor poder aquisitivo e aos trabalhadores, ou seja, os passageiros que pagam, fazendo-se o repasse das gratuidades para o valor das tarifas. A solução adequada deriva da aplicação correta dos princípios que regem a política de assistência social na estrutura constitucional da nação, qual seja, a assunção de tais obrigações como um dever do Estado e da coletividade como um todo. Os precedentes jurisprudenciais coligidos não se afastam desta linha, a começar pelas decisões deste mesmo E. Órgão Especial, conforme se vê a seguir: 2002.007.00037 – REPRES. POR INCONSTITUCIONALIDADE. DES. JORGE UCHOA – Julgamento: 01/07/2003 – ÓRGÃO ESPECIAL. REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONALIDADE. GRATUIDADE EM TRANSPORTES URBANOS. DESRESPEITO A PRINCÍPIOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DA CARTA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Desatendidas exigências da Constituição Federal e da Estadual para a concessão de gratuidade em transportes urbanos, tanto no que concerne à iniciativa da Lei quanto no que diz respeito à indicação de fonte de custeio, não pode tal norma ter vigência por reconhecida afronta a princípios básicos da Carta Maior. Vencido o Des. Sylvio Capanema. 2004.007.00117 – REPRES. POR INCONSTITUCIONALIDADE.


“aS AÇÕES DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, como dever do Estado e sociedade como um todo, não podem ser imputadas, como ônus, a apenas uma parte da sociedade – exatamente aquela que tem menor poder aquisitivo e aos trabalhadores, ou seja, os passageiros que pagam, fazendo-se o repasse das gratuidades para o valor das tarifas.” DES. MARIANNA PEREIRA NUNES – Julgamento: 03/01/2006 – ÓRGÃO ESPECIAL. Representação por inconstitucionalidade Lei-Muni-cipal 3.434/02 do Rio de Janeiro, que outorga gratuidade no serviço público sem indicação da fonte de custeio – Ofensa ao art. 112, §2º, da Constituição Federal – inconstitucionalidade da Lei 3.434/02 –Procedência da representação.

Da mesma forma, na Representação por Inconstitucionalidade nº 01/91, tratando de transporte coletivo municipal e gratuidade concedida a colegiais e outros grupos, à unanimidade, o Colendo Órgão Especial acolheu a representação contra a Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis, com a seguinte ementa: “Viola o disposto nos Artigos 112, § 2º, e 342 da Constituição Estadual a gratuidade concedida pela Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis (art. 214, incisos II a VIII), sem a correspondente fonte de custeio.”

No acórdão, o E.REL. Des. Doreste Baptista enfatizou:

“Ocorre que, além de ter estabelecido forma de intervenção no domínio econômico (a gratuidade) sem obediência ao parâmetro da Constituição Federal (art. 173), a inovação introduzida nos itens II a VIII do artigo 214 da referida Lei Orgânica, não tendo discriminado a fonte de custeio relativa à gratuidade criada, violou, às escâncaras, o mandamento da Constituição Estadual, que exige a correspectiva indicação da fonte de custeio.”

De conseqüência, vê-se que, tanto pelas regras de interpretação sistemática e teleológica, como pelos fundamentos jurídicos adotados e, finalmente, pelos precedentes deste Tribunal, nos julgamentos efetuados pelo Colendo Órgão Especial, padecem do vício de inconstitucionalidade frontal, quaisquer normas infraconstitucionais que desatendam ao comando de indicação de fonte de custeio, na concessão de gratuidades nos serviços de transporte coletivo concedidos ou permitidos. As alegações de fls. 365, no sentido de que as tarifas concedidas prevêem e dão cobertura aos ônus referentes às gratuidades concedidas, se ressentem de um mínimo de comprovação satisfatória: uma, porque se os custos são rateados entre os pagantes, na verdade, a despesa é da concessionária que recebe pelos serviços de transporte tais pagamentos, já que não existe “tarifa extra” para custear tal despesa; duas, porque, segundo o texto constitucional, as despesas com os benefícios sociais devem ser arcadas pela sociedade como um todo e não apenas pelos passageiros pagantes do transporte coletivo. Logo, o dano sustentado pelas concessionárias do serviço público de transporte coletivo e o desequilíbrio econômico-

financeiro dos contratos decorrem de raciocínio lógico e serão resultado do não recebimento pelos serviços prestados aos beneficiários da gratuidade, uma vez que, se o assento no ônibus for ocupado por quem não paga, outro passageiro pagante não poderá ocupá-lo. Há ainda outros efeitos de ordem econômico-financeira resultantes do transporte realizado gratuitamente, a onerar as empresas, como o pagamento do ICMS e as obrigações resultantes da responsabilidade civil pelo transporte de passageiros. De qualquer modo, ainda que houvesse um tratamento tarifário adequado ao problema das gratuidades, o que de fato não há, voltaríamos ao problema básico: o transporte urbano é chamado a atender, prioritariamente , às populações de baixa renda, as quais, por isso mesmo, não podem ser oneradas com a obrigação de pagar mais para subsidiar as gratuidades. Toda a gratuidade (impropriedade de designação, pois sempre alguém terá que arcar com os custos do benefício) tem a natureza jurídica de medida assistencial, ou seja, é prestada a quem dela necessita, independente de contribuição, como objetivo de atingir o bem-estar e a justiça social, e como tal, é obrigação do Estado e da coletividade como um todo e não de qualquer dos segmentos deste processo, tais como as empresas prestadoras dos serviços, pelo desequilíbrio evidente da regulação contratual, ou dos demais usuários, pela flagrante injustiça e inconstitucionalidade mesma, desta solução. Destarte, admitir a solução apregoada pelo Município seria privilegiar o interesse de alguns, em detrimento do interesse de uma parcela maior da população, não atingida pelo benefício ora em comento a quem, alegadamente, tem sido apresentada a conta final, considerando que o Poder Público, até o presente, não estabeleceu a forma com a qual contribuirá para o custeio do benefício. Assim, conclui-se pela inviabilidade dessa concessão sem a previsão da fonte de custeio, ante a cristalina necessidade de se manter a regra básica da concessão, que é o equilíbrio tarifário, que é a contraposição da supremacia do poder público. Com tais razões, rejeita-se a preliminar suscitada e, no mérito, julga-se procedente a Representação para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 1º, 3º, 12, 15, §§ 1º e 2º, 16, 21, 22, 23, §§ 1º e 2º da Lei 3.167/2000 do Município do Rio de Janeiro.

2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31


Guilherme Penteado Gerente Jurídico da Endesa Geração Brasil

N

os últimos meses, muito tem-se falado na imprensa a respeito das ameaças dos efeitos do aquecimento global, assim como dos benefícios da utilização de fontes de energia renováveis, a exemplo do etanol produzido a partir da cana de açúcar, para substituir o petróleo e seus derivados (combustíveis fósseis). Nesse sentido, também ganhou destaque o audacioso plano da União Européia, que possui o objetivo, dentre outros, de substituir combustíveis fósseis por biocombustíveis e desenvolver energias limpas, visando à redução da s emissões de gases de efeito estufa que estão por trás das mudanças climáticas. No Brasil, a proteção do meio ambiente e a utilização de fontes alternativas, mediante o aproveitamento econômico dos insumos disponíveis e das tecnologias aplicáveis, fazem parte dos objetivos da política energética nacional para o aproveitamento racional das fontes de energia. Nesse contexto, merecem a devida atenção as políticas públicas e os programas desenvolvidos no setor elétrico brasileiro para incentivar a produção de energia por meio de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), bem como a partir de outras fontes renováveis de energia, tais como eólica, solar e biomassa (especialmente bagaço de cana-de-açúcar), igualmente consideradas alternativas. Considerações prévias a respeito do setor elétrico brasileiro Antes de explicitar os incentivos às fontes alternativas, faz-se necessário que se façam breves considerações acerca do Setor Elétrico Brasileiro, de forma a contextualizar as transformações ocorridas nos últimos anos, permitindo a melhor compreensão do tema. A Lei 9.648, de 27 de maio de 1998, promoveu relevante reestruturação no setor elétrico, introduzindo um modelo competitivo que viabilizou a livre comercialização entre as empresas do setor, bem como entre estas e consumidores de grande porte, denominados “Consumidores Livres”, que optassem por adquirir energia elétrica de supridor diverso da distribuidora local. Como meio indispensável para viabilizar tal comer32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

cialização, a lei assegurou às empresas do setor e aos Consumidores Livres (como é o caso, por exemplo, de empresas siderúrgicas, petroquímicas e mineradoras) o direito de livre acesso aos sistemas de transmissão e de distribuição de energia elétrica, mediante o pagamento de tarifa pelo uso dos respectivos sistemas. Os consumidores que optam por contratar energia elétrica diretamente de empresas supridoras devem estabelecer relações contratuais distintas. Uma é constituída com a empresa geradora ou comercializadora para aquisição da energia elétrica, enquanto a outra diz respeito à contratação do acesso e do uso da rede da concessionária distribuidora ou transmissora à qual os consumidores livres estão conectados, pagando a tarifa correspondente (tarifa de uso do sistema de distribuição ou de transmissão, conforme o caso). Depois de ter passado por um período de racionamento entre junho de 2001 e fevereiro de 2002, com impactos sobre sua estrutura, o setor elétrico veio novamente a sofrer mudanças significativas em 2003. A Medida Provisória nº. 144, de 11 de dezembro de 2003, convertida na Lei 10.848, de 15 de março de 2004, estabeleceu um novo marco regulatório para o setor, que alterou, significativamente, as regras de comercialização de energia. Conforme o novo marco legal, as distribuidoras só podem adquirir energia elétrica através de leilões públicos, o que a lei citada denomina de “ambiente de contratação regulado”. Incentivos às fontes alternativas de energia elétrica De uma forma geral, a legislação setorial e a regulamentação desta pelo Ministério de Minas e Energia (MME) e pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) vêm estimulando a utilização das fontes alternativas de energia elétrica através de um regime de concessão de desconto tarifário, isenções e subsídios, dentre outros benefícios comentados a seguir. 1 – Isenção do pagamento de encargos setoriais 1.1 – A Lei 9.648/98 isentou do pagamento de royalties (“compensação financeira”) pela exploração de recursos hídricos (CFRH), para fins de geração de energia elétrica, as

Arquivo Pessoal

Incentivos legais às fontes alternativas de geração de energia elétrica


pequenas centrais hidrelétricas que entrassem em operação a partir de maio de 1998 e cuja energia elétrica fosse destinada à comercialização sob o regime de produção independente ou autoprodução. Cumpre esclarecer que a compensação financeira é paga por empresas titulares de concessão ou autorização pela exploração de potencial hidráulico, sendo a maior parte dos recursos arrecadados destinada aos Estados e Municípios afetados pelos reservatórios. 1.2 – No ano de 2000, a Lei 9.991, de 24 de julho de 2000, isentou as empresas que geram energia a partir de instalações eólica, solar, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas de aplicarem, anualmente, o percentual mínimo de 1% da receita operacional líquida em pesquisa e desenvolvimento do setor elétrico. Os recursos das empresas geradoras, transmissoras e distribuidoras destinados à pesquisa e ao desenvolvimento visam gerar inovação tecnológica no setor. 2 – Possibilidade de utilização de encargos setoriais para subsidiar fontes alternativas 2.1 – A Conta de Consumo de Combustíveis Fósseis (CCC) é um encargo setorial que tem como objetivo principal subsidiar os custos de geração de energia de usinas termelétricas que utilizam combustíveis fósseis (a exemplo de óleo diesel e óleo combustível) em sistemas isolados (sistemas localizados especialmente na região Norte do País), sendo os valores correspondentes rateados pelos consumidores de energia elétrica. A Lei 9.648/98 estabeleceu condições para que os recursos da CCC fossem utilizados também para subsidiar a geração de energia elétrica por pequenas centrais hidrelétricas ou a partir de fontes eólica, solar e biomassa. Para tanto, os empreendimentos correspondentes devem ser implantados

em sistemas elétricos isolados, assim como substituir geração termelétrica de derivados de petróleo (combustíveis fósseis). 2.2 – A Lei 10.438, de 26 de abril de 2002, instituiu um fundo setorial denominado Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), em que parte dos recursos arrecadados das empresas que comercializam energia com consumidores finais, dentre outras finalidades, pode ser utilizada para aumentar a competitividade da energia produzida a partir de pequenas centrais hidrelétricas e de fontes eólica e biomassa. 2.3 – A Lei 10.438/02 também autorizou a utilização de recursos da Reserva Geral de Reversão (RGR) para instalação de produção de energia elétrica por pequenas centrais hidrelétricas e a partir de fontes eólica, solar e biomassa. A RGR é um encargo setorial arrecadado das empresas concessionárias e administrado pela Eletrobrás com o objetivo de prover recursos para reversão dos bens vinculados às concessões, mediante indenização dos investimentos não amortizados ou depreciados, bem como para expansão e melhoria dos servidos públicos de energia elétrica. 3 – Desconto tarifário e possibilidade de venda direta a consumidores finais A Lei 9.648/98 concedeu, às referidas pequenas centrais hidrelétricas citadas no item 1.1 acima, o direito a desconto não inferior a 50% sobre tarifas de uso de sistemas elétricos de transmissão e distribuição. A lei também permitiu que tais pequenas centrais hidrelétricas comercializassem energia elétrica com consumidores com carga maior ou igual a 500 kW (como é o caso, por exemplo, de determinadas indústrias de pequeno e médio porte e shopping centers). Em 2003, a Lei 10.762, de 11 de novembro de 2003, estendeu tais benefícios aos empreendimentos com base em fontes solar, eólica e biomassa, com potência instalada menor 2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


ou igual a 30.000 kW. A lei estabeleceu ainda que todos esses empreendimentos poderiam comercializar energia elétrica não apenas com consumidor, mas também com conjunto de consumidores reunidos por comunhão de fato ou de direito com carga maior ou igual a 500 kW, tendo a ANEEL recentemente definido as condições para aplicação desse benefício.

públicos de compra de energia elétrica, o repasse integral dos custos de aquisição de energia proveniente dessas fontes às tarifas dos consumidores. Nesse sentido, o Ministério de Minas e Energia já programou a realização do primeiro leilão de energia proveniente de fontes alternativas, fixando o valor máximo do preço de compra da energia pelas distribuidoras.

4 – Programa de incentivo às fontes alternativas de energia elétrica A Lei 10.438/02 criou o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica – PROINFA –, com a finalidade de aumentar, na matriz energética nacional, a participação da energia elétrica produzida por pequenas centrais hidrelétricas e empreendimentos concebidos com base em fonte eólica e biomassa. O programa também visa reduzir a emissão de gases de efeito estufa, nos termos do Protocolo de Kioto à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, contribuindo, desse modo, para o desenvolvimento sustentável. No âmbito do PROINFA, as empresas selecionadas em processo de licitação, realizado através de chamadas públicas, celebraram contratos de venda de energia elétrica pelo prazo de 20 anos com a Eletrobrás. O valor pago pela energia adquirida e os custos incorridos pela Eletrobrás são rateados, compulsoriamente, pelas distribuidoras e repassados às tarifas dos consumidores. Segundo informações disponibilizadas na página da ANEEL na internet, os empreendimentos contratados através do PROINFA deverão gerar 4.215.469,96 MWh no ano de 2007.

Vantagens da utilização de fontes alternativas de energia elétrica Como se observa da breve descrição dos benefícios acima listados, a legislação do setor elétrico vem ampliando progressivamente os incentivos à geração de energia produzida por fontes alternativas, maximizando a utilização dos recursos naturais renováveis disponíveis. O uso de fontes alternativas possibilita a substituição de energia gerada a partir de combustíveis fósseis, reduzindo os impactos negativos ao meio ambiente, além de contribuir para diversificação das fontes de geração de energia elétrica (“matriz energética”), o que assegura uma maior segurança no abastecimento à população. Além disso, tais fontes permitem maior flexibilidade na instalação de usinas geradoras perto dos centros de consumo ou de regiões rurais e representam solução adequada para o suprimento de energia elétrica nas diversas regiões do País, induzindo a utilização de recursos locais e favorecendo o desenvolvimento econômico e social de regiões desfavorecidas. Por fim, é de se destacar que, não obstante a necessidade de grandes empreendimentos que proporcionem quantidade de energia elétrica compatível com o crescimento econômico esperado para o Brasil, os incentivos às fontes alternativas já se apresentam como uma forma importante de atração de investimentos para o setor elétrico, bem como de promoção do desenvolvimento sustentável do País.

5 – Repasse tarifário Recentemente, como forma de incentivo à contratação de fontes incentivadas, foi editado o Decreto nº. 6.048, de 27 de fevereiro de 2007, que assegurou às distribuidoras, nos leilões 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007


2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35


Reflexões críticas acerca da proposta de estadualização do direito penal Sérgio Ricardo de Souza Juiz de Direito de Entrância Especial/ES

R

eagindo, talvez tardiamente (mas antes tarde do que nunca!), aos verdadeiros descalabros perpetrados pela criminalidade que assola, principalmente, os grandes centros urbanos brasileiros e, em particular, aquela cidade que historicamente representa a imagem do Brasil no exterior, o Rio de Janeiro, os governadores da Região Sudeste apresentaram treze

36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

propostas de mudanças na legislação vigente, as quais receberam ampla divulgação na mídia. Referidas propostas, em sua grande maioria, são de fácil implementação e dependem mais da vontade política do que de outros fatores, ressaltando-se que pontos – como a tipificação de crimes cometidos por organização criminosa, aumento de penas para os homicídios praticados contra os agentes que


atuam no combate à criminalidade, punição para o porte de aparelho celular interior do presídio, aumento do tempo real do cumprimento de pena para possibilitar a progressão de regime, etc. – já constam de projetos que tramitam nas casas legislativas federais (CRFB, art. 64). Contudo, uma proposta em particular chama a atenção pela forma simplista como vem sendo apresentada, sem que se atente para sua complexidade e implicações históricas, culturais, de organizações político-administrativas (principalmente no âmbito do Poder Judiciário) que de sua implementação derivariam, qual seja, a extensão aos Estados da competência para legislar sobre Direito Penal, matéria cuja competência legislativa atual é privativa da União (CRFB, art. 22, I). Ocorre que a atual estrutura organizacional e política brasileira não surgiram ontem e tampouco podem ser alteradas, com sucesso, do dia para a noite. Ao contrário, em que pese ser notória a concentração de poderes na União, com o conseqüente enfraquecimento da autonomia das unidades federadas, isso se explica (embora não se justifique) por força do próprio modelo de Estado Federativo implantado no Brasil com a queda do Império e a institucionalização da República, sendo perceptível que o Brasil era um Estado Unitário, comandado pelo Imperador e dividido em províncias que dependiam diretamente do poder central. Com a República, tais províncias foram transformadas, por decreto, em Estados (Decreto 01 de 15/11/1889), em uma tentativa encabeçada por Rui Barbosa de repetir aqui o modelo implantado cerca de um século antes nas colônias que se “uniram” para formar os Estados Unidos da América. Os modelos são visceralmente diversos, as treze colônias que deram origem aos Estados Unidos alcançaram suas respectivas independências (1776) e resolveram se unir para formar uma grande e única nação, mas já possuíram legislação e organização político-administrativa próprios, tendo aberto mão de sua integral soberania, sem, contudo, perder suas respectivas autonomias1. Por isso, mantiveram ampla competência legislativa, dentre outras, para tratar dos assuntos de interesse penal local, além de conservarem sua organização judiciária. As ex-províncias brasileiras não possuíam qualquer soberania e, mesmo em relação à autonomia, praticamente inexistia. Logo, não abriram mão de nada, tendo sido, ao contrário, atropelados pela nova formatação de estado criada inicialmente pelo Decreto 01 de 15/11/1889, que regulamentou a proclamação da república e depois pela constituição Federal de 1891 (art. 1º e 2º). Dentro desse modelo sui generis adotado no Brasil, no que diz respeito à legislação de direito material (civil, penal, comercial etc.), ela sempre esteve vinculada à competência privativa da União (CF/1891, art. 34, “23”) e, a partir desse modelo, foi estruturado próprio sistema judiciário pátrio, em que a legislação penal, embora de caráter federal, é aplicada em todo o território brasileiro (CP, art. 5º), tanto pelos órgãos de Justiça Federal (CRFB, art. 109) quanto pelos

“outra conseqüência desastrosa para nossa cultura jurídica seria propiciar que cada estado brasileiro fixasse uma pena diferente para a mesma conduta humana praticada no âmbito da jurisdição nacional.”

das justiças dos estados (CRFB, art. 125), tendo o Superior Tribunal de Justiça (CRFB, art. 92, II) como órgão detentor da competência de preservar a unidade interpretadora da legislação federal, minimizando os efeitos deletérios da divergência interpretativa dentre os poderes judiciários dos 26 Estados e do Distrito Federal, bem como entre os cinco Tribunais Regionais Federais (CRFB, art. 105, III). Ao se adorar a alteração constitucional sugerida pelos governadores do sudeste, permitindo aos Estados legislar sobre Direito Penal, ter-se-ia também de alterar a atual divisão de competências recursais do âmbito nacional, mormente no que diz respeito às competências reconhecidas no já citado art. 105, III, da Constituição da República Federativa do Brasil. Seria uma mudança radical, perdendo-se a experiência acumulada ao longo de toda a nossa história republicana nesse campo da unificação da interpretação da norma federal infraconstitucional. Ademais, outra conseqüência desastrosa para nossa cultura jurídica seria propiciar que cada estado brasileiro fixasse uma pena diferente para a mesma conduta humana praticada no âmbito da jurisdição nacional, além do previsível fracasso no que diz respeito ao resultado prático, já que no sistema atual, onde há uma significativa margem entre as penas mínimas e máximas aplicáveis em relação aos crimes (v.g., homicídio qualificado, 12 a 30 anos de reclusão, CP, art. 121, §2º), a dosagem da pena necessária não se pode como deve ser feita em conformidade com o disposto no art. 59 do Código Penal, mormente com a aplicação das circunstâncias e conseqüências do crime, 2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


“É possível conseguir o maior rigor exigido nos estados onde a criminalidade tem alcançado índices intoleráveis.” que devem ser interpretadas e aplicadas de acordo com a realidade da criminalidade vigente em cada um dos Estados atingidos, elevando as penas nos Estados mais atingidos e reduzindo naqueles onde determinada modalidade de crime esteja controlada. Ou seja, de ínfima ocorrência, pois não se pode tratar igualmente situações desiguais sem, contudo, atribuir à pena uma função de prevenção geral ilimitada, incompatível com os postulados do Estado Democrático de Direito, atento a que: “Enquanto Direito penal de um tal Estado, haverá de assumir várias funções, correlatas aos diversos aspectos que nele se combinar. Enquanto Direito Penal de um Estado Social, deverá legitimar-se como sistema de proteção efetiva dos cidadãos, o que lhe atribui a missão de prevenção na medida – e só na medida – do necessário para aquela proteção [...]”2 Destarte, os efeitos pretendidos, no que concerne ao endurecimento das penas em relação a Estados que estão sofrendo com a onda de crimes violentos que minam a idéia de segurança social que é indissociável da própria figura do Estado, bem como da autoridade que esse mesmo Estado deve irradiar aos indivíduos, emprestando os postulados utilitaristas de Jeremy Bentham3, temperado pelo princípio da proporcionalidade no Direito Penal, aplicando-o com vistas a gerar maior proteção possível à sociedade e dentro do rigor necessário à punição do infrator, seguindo a idéia de que: “É preciso dar à pena toda a conformidade possível com a natureza de delito, a fim de que o medo de um castigo afaste o espírito do caminho por onde era levado na perspectiva de um crime vantajoso. A punição ideal será transparente ao crime que sanciona, assim, para quem a contempla, ela será infalivelmente o sinal do crime que castiga, e para quem sonha com o crime, a simples idéia do delito despertará o sinal punitivo. Vantagem para a estabilidade da ligação, vantagem para o cálculo das proporções entre crime e castigo e para a leitura quantitativa dos interesses [...]”4 Destaque-se, ainda, que a estadualização facilita a ação da criminalidade organizada no sentido de se infiltrar nas Assembléias Legislativas, elegendo representantes comprometidos com seus ideais criminosos, quiçá para influenciar diretamente na elaboração das leis a fim de beneficiar não o combate ao

crime, mas, ao contrário, aos criminosos, já que muitos são os exemplos passados e presentes de maus políticos que trabalham sob orientação dessas organizações. Surge da análise ora precedida que os aspectos históricos e culturais que justificaram a relativa soberania dos Estados que compõem os Estados Unidos da América, inclusive com autonomia para legislar sobre Direito Penal, não são os mesmos encontrados na raiz da instalação do Regime Republicano Brasileiro, pois, enquanto lá houve a união de treze colônias então soberanas para a formação de uma confederação posteriormente transformada em federação, no Brasil, o processo ocorreu às avessas, pois um Estado Unitário pretendendo seguir o exemplo Norte-Americano se transformou em federação, mas manteve uma grande concentração do poder decisório no âmbito federal, reservando às unidades federadas pouca autonomia e negando-lhe competência para legislar em relação ao Direito Penal. A estrutura estatal, inclusive na divisão dos órgãos do Poder Judiciário, sustenta-se desde o advento da república, em um modelo onde um Tribunal Superior Federal é encarregado de interpretar e uniformizar a jurisprudência em relação à legislação federal, marcadamente em relação à lei Penal, situação essa já consolidada na cultura jurídica nacional e que estaria sujeita a uma profunda alteração estrutural, caso fosse acolhida possível emenda constitucional que autorizasse os Estados a legislar também sobre Direito Penal. Verifica-se ser possível conseguir o maior rigor exigido em relação às penas aplicadas aos crimes mais graves, naqueles Estados onde a criminalidade tem alcançado índices intoleráveis, sem necessidade de alteração constitucional em relação à competência para legislar sobre Direito Penal, atento aos postulados utilitaristas interpretados à luz do princípio da proporcionalidade, fixando o quantum da pena de forma a atender à prevenção geral necessária no caso concreto. A estadualização do Direito Penal pode gerar o enfraquecimento da unidade do Estado Brasileiro, além de gerar a possibilidade de migração dos grupos criminosos para aqueles estados com legislação mais amena, de facilitar a influência da criminalidade organizada nas Assembléias Legislativas, no que diz respeito à elaboração de normas penais que beneficiem suas atividades ilícitas, pois, não raro, aquelas organizações conseguem infiltrar seus membros nessas esferas de poder.

NOTAS HAMILTON, Alexander. O Federalista. Trad. Ricardo Rodrigues Gama, 2º ed. Campinas: Russel Editores, 2005, pp. 16-28. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 87 3 MAGEE, Bryan. História da filosofia. Trad. de Marcos Bagno. São Paulo: Edição Loyola, 2001, pp. 182-183. 4 MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal – Parte General. 7º ed. Barcelona: Editorial Reppeitor, 2005, p. 104. 1 2

38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007


DÊ MAIS SABOR À VIDA Tijuca Shopping Tijuca - (21) 2568-5500 Botafogo Botafogo Praia Shopping - (21) 2237-9063 Copacabana Rua Barata Ribeiro, 505 - (21) 2549-0006 Ipanema Rua Vinícius de Moraes, 120 - (21) 2227-0593 Leblon Av. Ataulfo de Paiva, 1079 - Lj. F - (21) 2512-1788 Barra Barra Shopping - Mercado Praça XV - (21) 2431-8102 Downtown - Praça de Alimentação Lj. 122 - (21) 3139-4098 Itaipava Arcadia Mall Estrada União Indústria, 10126 - Ljs. 1 e 2 - (24) 2222-7061 Norte Shopping Av. Dom Helder Camara, 5474 - Cachambi - Loja 2903 - (21) 2593-0077

, há 82 anos oferecendo aos seus clientes a maior e mais variada coleção de produtos importados e nacionais. Sabores exclusivos de mais de 50 países distribuidos em quase 15.000 opções para todos os momentos especiais. , um verdadeiro passeio pela gastronomia mundial!

ECO21 110.indd 52

Rua da Assembléia, 65 Centro - Rio de Janeiro Tel.: (21) 2533-4988

2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA16/1/2006 • 39

14:44:38


A responsabilidade ética e legal no serviço público Edvaldo Pereira de Moura Desembargador do TJ/PI

A

ética profissional tem outro nome, menos conhecido e mais sofisticado: deontologia. O termo vem do grego déontos e foi criado pelo jurista e filósofo inglês, Jeremy Bentham, um dos precursores da concepção utilitarista, desenvolvida posteriormente, mas com variação diferente, por Stuart Mill, consagrado e incomparável pensador no âmbito da filosofia política. É um ramo da ética e da filosofia, preocupado com o estudo dos princípios, dos fundamentos e dos sistemas de moral. É também conhecida como ciência normativa ou como tratado dos deveres da pessoa humana, legitimados pela ética e pela legalidade, no que diz respeito a suas inerentes atividades profissionais. Sem ignorar que o ser humano, movido pela ética da convicção, às vezes, idealmente, pode se empenhar pela virtude, como ensina Stuart Mill, mesmo ciente de que de suas ações possam advir sérias e desagradáveis conseqüências, na perspectiva utilitarista de Jeremy Bentham, “agir moralmente é agir visando a maior utilidade para o maior número de pessoas”. Para o sempre reverenciado Chaim Perelman, a deontologia deve ser encarada em duplo sentido: “no que aponta para o que devemos fazer, independentemente de suas conseqüências, e no que indica o que convém que se faça em razão de uma finalidade”. Ela é regida por dois sistemas normativos distintos e, de certa forma, afins: o moral e o jurídico. 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

Por norma moral, devemos entender a que é imposta pela consciência do bem e do mal, do justo e do injusto, do falso e do verdadeiro, do correto e do errado, do bom e do ruim. A genuína norma moral não pode ser formada e nem se nortear por segundas intenções. A vontade livre e a convicção deliberada de fazer o bem, o bom e o correto, são essenciais ao ato moral. Ninguém, senão nós, poderá identificar uma norma moral autêntica, em verdadeiro sentido. Quando praticamos qualquer ação, pleno de nossa consciência moral, buscando o bem consagrado pelos bons costumes do povo, estamos sendo éticos. Porém, se fazemos esse mesmo bem, mas sem a convicção íntima, impulsionada por nossa consciência moral, representada pelo sadio desejo de realizar o bem, não estamos agindo eticamente. Talvez estejamos praticando algo que pode chamar a atenção dos outros, como belo e grandioso, com o apelido de ético, mas que, em verdade, é um ato automático, exigido pela boa educação, pela etiqueta social, pelas obrigações da religião que professamos, por nossa urbanidade, por nosso cavalheirismo e por nossa rigorosa coerência com as normas das boas relações humanas. Ético é que ele não é. O ato moral, como se sabe, não admite coação externa nem qualquer violação da liberdade de escolha da pessoa. A ação ética pode ser falsificada e confundida sem que ninguém possa


Foto: TJ/PI

“Quando praticamos qualquer ação, pleno de nossa consciência moral, buscando o bem consagrado pelos bons costumes do povo, estamos sendo éticos.”

perceber, além de seu próprio agente moral. Quando apelamos para a ética na política, nos esportes, na economia, no comércio, na indústria, na ciência, na tecnologia, na família, no serviço público e nas demais atividades profissionais, estamos tentando dizer que só a verdadeira ação moral poderá salvar a condição humana, em sua galopante crise de identidade. O apelo ético é o apelo à consciência moral de cada um de nós. A conduta ética é um estágio superior da humanidade, e sua simples busca já nos possibilita a esperança por dias melhores. É por isso que a legítima conduta ética não pode ser substituída pela impostura da etiqueta, do cavalheirismo hipócrita, do sofisma demagógico, da frieza burocrática, do engodo publicitário, do obscurantismo religioso e do formalismo vazio, que permeiam as relações pessoais em nosso diaa-dia. A consciência moral está dentro de cada um de nós e deve ser a estrela-guia de nossas ações. A palavra ética é de origem grega e, há mais de 2500 anos, vem ocupando os questionamentos filosóficos do homem. Significa costume ou, em uma segunda acepção, caráter, dividindo-se em ética individual e ética política. Naquela, como assevera Amauri Mascaro Nascimento, dá-se a valorização dos meios, independentemente dos fins e, nesta, sublinha-se a valorização dos fins, justificantes dos meios. Chamaríamos de moral aquilo que a tradição do grupo

social considera indispensável, quando um membro que a ele pertence tem que tomar uma decisão, levando em conta o bem e o mal prescritos em sua ordem vivencial. O filho menor tem obrigações morais para com seus pais. O pai tem obrigações morais para com a família. Marido e mulher têm um elo moral que lhes sustenta o casamento. A bioética é o foro moral da ciência e da técnica no avanço infinito por elas perseguido. Por isso, a cada instante, exige-se a impostergável moralização das atividades estatais em suas três funções básicas: legislativa, executiva e judiciária. Por ser imprescindível ao desenvolvimento harmônico e global das relações humanas e sociais, a Constituição da República incorporou princípios e normas inatacáveis de moralidade no serviço público, para o pleno exercício consciente da cidadania. Ética ou filosofia moral é a reflexão que se faz sobre os valores que devem nortear a conduta individual e profissional de que depende a harmonia da vida social. A ética da convicção é ditada pela consciência moral do indivíduo. Ela diz que, segundo a sadia moral de seu grupo, em seu tempo e em suas circunstâncias, o indivíduo deveria agir desta ou daquela maneira. Ética é, pois, o agir em consonância com as legítimas imposições da sociedade de que faz parte o indivíduo e dentro 2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


“COMO AGIR ETICAMENTE NO MEIO DE PESSOAS SEM PREPARO E VOCAÇÃO PARA O SERVIÇO PÚBLICO, TOTAL OU PARCIALMENTE DESCOMPROMETIDAS COM O ZELO DO PATRIMÔNIO DE TODOS?”

de seu tempo. Daí a necessidade de uma ética profissional que imponha um padrão comportamental aos que pertencem a uma irmandade de pessoas com objetivos comuns. Se somos servidores públicos, com uma atuação instituída para a consecução do bem-estar geral, não podemos agir senão impulsionados por nossa consciência moral de atingir a finalidade absolutamente boa, justa e verdadeira a que se propõe o Estado a que servimos. Se assim é, temos a premente e inafastável necessidade de apelarmos à conduta moral de todos para a realização plena de um consistente e justo projeto de cidadania. Enquanto não houver uma intenção realmente moral de tratar nossas responsabilidades existenciais, continuaremos a viver a fantasia perniciosa de uma ética aparente. Os gestos admiráveis de boa conduta, as pregações religiosas alienantes, as palavras bonitas do discurso político capcioso e as ações patrióticas dos vendedores de armas serão igualmente úteis e verdadeiros como as pílulas de farinha e os antibióticos fajutos vendidos em belas embalagens e em luxuosas farmácias: imorais, falaciosos, embusteiros e criminosos. Por isso, não basta a norma moral, que só possui coercibilidade interna e se processa na consciência de cada um de nós, materializando-se sob a forma de arrependimento e constrangimento íntimo. O Estado, com o fim de realizar o bem comum, seu objetivo-síntese, não pode prescindir da norma jurídica por ele estabelecida para pautar a convivência dos homens em sociedade. Ela é a parte substancial do Direito positivado que prescreve, imperativamente, como e quando o cidadão deve agir dentro do modelo de organização social, política, econômica e cultural em que está inserido. A norma jurídica é heterônoma: imposta a nós pelos outros, ou seja, pelo ente estatal. A norma moral, ao contrário, é autônoma, imposta a nós por nós mesmos. A norma jurídica, por ter caráter coercitivo externo, se impõe contra a vontade da pessoa que a deve obedecer, sem restrição. Ou a obedece ou vai punido. O indivíduo tem nela a coação psicológica e física, como a prisão, quando a simples intimidação não surte o desejado efeito. Contudo, quando nos voltamos, em particular, às atividades estatais, deparamos-nos com uma situação paradoxal, contraditória e constrangedora. Como apelar para o senso 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

moral de um servidor público, cujo ambiente de trabalho – a repartição – é um campo minado de clientelismo político, de negociatas, de injustiças funcionais e salariais, de intrigas, de bajulações, de perseguições mesquinhas, acobertadas ou induzidas por chefões, chefes e chefetes corruptos e corruptores? Como agir eticamente no meio de pessoas sem preparo e vocação para o serviço público, total ou parcialmente descomprometidas com o zelo do patrimônio de todos? Como desenvolver uma postura moral exemplar ou incitá-la em um meio heterogêneo, em uma organização burocrática, autista e apática, que escorcha seus servidores com deveres e esquece seus direitos mais elementares? Não é fácil, realmente, conseguir-se tal desiderato, mas aquele que preserva, incondicionalmente, sua consciência moral, como suporte de sua própria dignidade, não faz concessão ao parasitismo, à imoralidade e à recalcitrância no trabalho respeitável com o que honra seu sustento. Se somos chefes ou subordinados, não devemos fazer e nem deixar fazer qualquer ato que fira a moralidade do serviço público. O simples fato de não participarmos dos atos imorais que nos rodeiam a mesa já é um grande avanço. Com este elo fechado, a corrente não se completa. Colegas, superiores e subalternos inibidos já não poderão contar com nossa conivência e nem com nosso “jeitinho”. Temos de nos lembrar de que o ato verdadeiramente moral é consciente, solitário e não obrigatoriamente ostensivo. A despeito dos reprováveis, nocivos e danosos comportamentos de que se tem notícia nos três poderes da República, devemos nos manter vigilantes e dispostos a fazer respeitar o lado normativo legal da ética no serviço público, regulamentado por normas jurídicas positivas e heterônomas, que se impõem coercitivamente e a que todos devem obediência. O servidor público é um profissional como outro qualquer, com uma magnitude de direito e deveres a mais. O patrão é o Estado e nosso cliente, o cidadão. Dessa forma, e segundo irrepreensível lição administrativa nacional, “a moralidade da administração pública não se limita à distinção entre o bem e o mal, devendo ser acrescida da idéia de que o fim é sempre o bem comum. O equilíbrio entre a legalidade e a finalidade, na conduta do servidor público, é que poderá consolidar a moralidade do ato administrativo”.


2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


VIOLÊNCIA,

EMOÇÃO E RAZÃO Luiz Flávio Borges D’Urso Presidente da OAB/SP

Foto: OAB/SP

“A par das necessidades dos contingentes carentes, convivemos com um aparelho policial eivado de deficiências. As testemunhas são defasadas.”

Q

uando o país vivencia um clima de intensa emoção na esteira de atos de extrema violência, como o que vitimou o pequeno João Hélio, no Rio de Janeiro, emerge a questão do endurecimento da lei penal para o menor infrator. A diminuição da maioridade penal surge como panacéia para a questão da criminalidade envolvendo menores. Trata-se de um olhar enviesado, eis que o combate ao crime cometido por jovens com idade abaixo dos 18 anos deve se integrar a uma política abrangente de segurança, envolvendo eixos que não apenas o aumento da pena ou a diminuição da idade. Urge considerar, em primeiro lugar, que o Brasil assiste a um ciclo desvairado de violência urbana, que começa a desvirtuar a função das cidades e a drenar volumosos recursos da administração pública, sem se alcançar resultados eficazes. A insegurança social e o pânico se expandem sob a triste constatação de que o Estado está perdendo a guerra para os grupos criminosos. Sob essa moldura, não há porque deixar de reconhecer que as causas da expansão da violência se devem, em primeiro lugar, ao acervo de carências da população de baixa renda, cuja assistência, apesar de programas de distribuição de bolsas, é extremamente 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007


precária. As conseqüências se fazem sentir na expansão das gangues e das hordas da criminalidade nas periferias. A par das necessidades dos contingentes carentes, convivemos com um aparelho policial eivado de deficiências. As estruturas são defasadas. Há falta de equipamentos, e os quadros são desmotivados por conta dos salários. O sistema prisional é caótico. Há cerca de 80 mil encarcerados em delegacias de polícia que deveriam estar em presídios. O deficit no sistema prisional aponta para cerca de 100 mil vagas. A defasagem entre gastos de Estados e municípios e gastos da União é enorme. Enquanto os primeiros investem algo como R$ 25 bilhões no combate à violência, a União não chega nem aos R$ 3 bilhões. Não por acaso, o desenvolvimento da inteligência para o combate ao crime é mínimo, fato que se deve, ainda, à tênue integração entre as Polícias, razão pela qual apontam-se como prioridades a formação de bancos de dados criminais e sociais, a implantação de sistemas de geogerenciamento e de sistemas de análises de dados para identificar perfis criminosos, padrões e tendências de cada área. No que diz respeito à legislação, nossa posição é a de equilíbrio, ou seja, nem a favor de um direito penal máximo, próprio dos regimes autoritários – voltados para equacionar a questão social com leis duras na área da criminalidade – nem a favor de um sistema penal mínimo, incapaz de distinguir criminosos de pequenas infrações de grandes criminosos.

Algumas mudanças são perfeitamente admissíveis. Por exemplo, um criminoso condenado a 30 anos de reclusão poder desfrutar da liberdade – condicional – por bom comportamento, depois de cumprir apenas um sexto da pena, no caso, 5 anos? Ou seja, 1/6 da pena – ou 16,6% dela – seria suficiente para saldar um crime que merece seis vezes mais anos de prisão? Eis uma questão digna de ampla discussão. No caso da maioridade penal, a internação de 3 anos é curta? Temos dúvidas. Não está demonstrado se o alargamento da pena incentivará o adolescente infrator a diminuir o ímpeto criminoso. No entanto, podemos aduzir que a eficácia de intimidação deriva mais da certeza do cumprimento da lei do que seu rigor. Nesse sentido, cremos que se deva promover mudanças na legislação penal com a finalidade de se combater de maneira mais abrangente a criminalidade. Que adianta, por exemplo, ampliar o prazo máximo de prisão ou o prazo para progressão de regime se o julgamento pela prática do delito demora 8, 9, 10 anos para ser concluído? Por isso, um dos caminhos mais indicados aponta para a supressão dos gargalos e para a redução do tempo de tramitação dos processos com a finalidade de se criar um clima de segurança e certeza na aplicação das leis penais. Chegou a hora de considerarmos todos os aspectos da questão da violência social. Entretanto, é indispensável que não se privilegie a emoção em detrimento de razão.

2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


sobre um país que sangra Demóstenes Torres Senador da República

“A gente se ilude que vai dar o grande salto educacional com mais uma geração quando o crime é a escola das ruas.”

O

Brasil tem uma Nação que sangra sistematicamente. Em seu âmago, mora o elemento corrosivo do crime. O banditismo do crime organizado e desorganizado debocha da frouxidão das leis, usa a menoridade penal como salvaguarda para matar, roubar e traficar drogas, fulmina em atentados terroristas o poder débil das instituições de segurança, compra autoridades, elege parlamentares, controla o sistema penitenciário, imola inocentes com a finalidade de externar o poder de delinqüir e faz o País ser arrastado por sete quilômetros nos subúrbios do Rio de Janeiro. O assassinato do garoto João Hélio expressa não um fato isolado, como quer crer o governo Lula e os patéticos embromadores do queridismo penal, mas o estado de uma Nação. A criminalidade violenta é o traço mais contemporâneo do Brasil do século XXI. Pode parecer enfadonho repetir, mas, no Brasil, se mata, por ano, mais do que se mata no Iraque. Aqui a carnificina parece difusa e o cotidiano simplesmente tropeça nos 120 cadáveres que produz todos os dias. Batemos a Venezuela e já somos os primeiros no ranking mundial de assassinatos 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

por arma de fogo. Um dado importante: a imensa maioria dos mortos e dos matadores está situada na faixa etária dos 14 aos 25 anos. A gente se ilude que vai dar o grande salto educacional com mais uma geração quando o crime é a escola das ruas. Onde está a regência do ideal harmonioso de civilização, que, necessariamente, traria o composto multiétnico estabelecido no caldeirão colonial e que depois se tornaria, como imaginou Stefan Sweig, na mais importante reserva de futuro de nosso mundo? Onde está a benignidade do povo cordato que, mesmo no sofrimento, traduz para o mundo a felicidade coletiva no carnaval? Eu não quero que a violência nos abata a ponto de nos converter em uma Nação que perdeu a alegria. No entanto, é de se reconhecer que o crime está apodrecendo o Brasil. Todo apelo social pela não-violência é uma contribuição importante para que o País desperte da letargia e reconheça o estado de deterioração que o crime impôs à sociedade. Só que se tornou de remota eficácia reverenciar a paloma branca da paz quando o objeto a ser reivindicado é a força estatal. Claro que a educação resolve muita coisa, mas o remédio


Célio Azevedo/Agência Senado

IMG

para a falta de segurança é específico e precisa ser extraído dos mecanismos tradicionais e avançados da própria segurança pública, dos quais as grandes nações não abrem mão para manter o Estado democrático de direito e o desenvolvimento. O que equivale dizer: regime penitenciário rigoroso e centrado nos conceitos do labor e do isolamento máximo. Justiça penal ágil. Polícia preparada, bem paga, bem armada e apoiada em método inteligente de investigação policial. Corregedoria independente para punir o mau policial. Estou falando da capacidade indubitável das instituições de segurança de mobilizar a força em condição superior à criminalidade. O Brasil precisa assumir a agenda conservadora, que, no capitalismo, significa a presença preponderante e eficiente do Estado na administração do dever da segurança pública. Os últimos acontecimentos parecem ter despertado a responsabilidade social do Congresso Nacional para a Reforma da Segurança Pública. São providências necessárias para salvaguardar a sociedade do estado de banditismo que se apoderou do País. Uma das medidas é alterar a Constituição Federal, principalmente, no que se refere à redução da maioridade penal prevendo pena privativa de liberdade para

quem comete crime de alto potencial ofensivo. O Brasil não suporta mais conviver com a garantia legal da não-punição aos menores de 18 anos. A pergunta é: o maior de 16 anos tem capacidade de discernir sobre o ato criminoso? Considerando o volume e os meios de informação disponíveis, é razoável inferir que tal faixa etária tem consciência para entender a natureza do delito. A imensa maioria dos países do primeiro mundo pensa que sim, tanto que adota a idade penal de 14 anos. O menor que ajudou a arrastar o garoto João Hélio até o esquartejamento sabia que praticava uma iniqüidade e que tal conduta era um choque frontal ao mandamento da lei. Não tenho dúvida neste sentido, e tudo o que não se pode pronunciar a respeito é que agiram por ignorância ou ingenuidade. Ninguém quer acabar com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Trata-se de uma lei avançada e que consolidou direitos importantes nas áreas de adoção, de política de atendimento, de medidas de proteção, dos conselhos tutelares e por aí vai. Quanto à parte inadequada, temos de ter coragem de mudá-la. Não se trata de fazer legislação do pânico, mas de tomar medidas para estancar a hemorragia. 2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


Tempo de transformação

Agaciel da Silva Maia é economista, com pós-graduação em administração pública pela FGV, e Diretor-Geral do Senado Federal desde 1995.

48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007


“É inegável que, desde seus primórdios, o Senado vem projetando as maiores expressões da vida pública e política do Brasil, pontuando o pensamento nacional e definindo o perfil do processo democrático do regime republicano.”

Prefácio de Nelson Jobim

A

gaciel da Silva Maia nos apresenta, neste Tempo de Transformação, uma panorâmica do Senado Federal, sua história, sua missão institucional e a influência desta que é Câmara Alta do Parlamento Brasileiro. Trata-se, por todos os motivos, de uma obra indispensável a todos quantos tenham interesse na história política do País, tendo como foco o Congresso Nacional. É inegável – como oportunamente afirmou o autor – que, desde seus primórdios, o Senado vem projetando as maiores expressões da vida pública e política do Brasil, pontuando o pensamento nacional e definindo o perfil do processo democrático do regime republicano. Com efeito, desde 1826, o Senado congregou de magistrados a eclesiásticos, de cientistas a poetas, de políticos a literatos, de médicos a empresários e lavradores, e todos eles, guardando as condições de seu tempo, têm sido símbolos do país em cujo legado as gerações se inspiraram. O papel institucional do Senado, que abre a primeira parte desta obra, abraça aspectos históricos, cobrindo os períodos do Império até os dias atuais; a importância do Legislativo na vida nacional e uma instigante abordagem sobre o nascimento de uma lei. A segunda parte, dedicada à estrutura do Senado – tema central da segunda parte – focaliza com riqueza de detalhes os muitos avanços dessa Instituição, em sua incessante busca visando a atender aos melhores interesses do Brasil. É quando temos a grata satisfação de estarmos diante de uma Instituição que busca excelência nos diversos campos em que atua: publicação de obras de raro valor histórico; extenso e valioso acervo da Biblioteca Luiz Viana Filho; qualidade técnica e editorial da TV Senado, do Jornal, da Agência de Notícias e da Rádio Senado; e pioneirismo na capacitação de recursos humanos voltados para a administração pública, amplamente demonstrada com a criação do Instituto Legislativo Brasileiro e da Universidade do Legislativo.

Ademais, o leitor, ao percorrer as páginas, conhecerá aspectos ainda pouco acessíveis sobre a importância e a excelência dos trabalhos realizados pela Advocacia e a Consultoria do Senado, seja pelo Arquivo e o Processamento de Dados da Casa. Agaciel Maia, após ter publicado uma obra, agora fundamental na área da biografia política, intitulada “O Senado e seus Presidentes”, volta a jogar luz sobre personagens emblemáticos da recente história política nacional, dedicando parte da obra a esse campo de estudos. Nessa senda, o autor nos oferece textos apurados e concisos sobre a vida e o pensamento dos senadores Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Juscelino Kubitschek, Darcy Ribeiro, Josaphat Marinho, Lauro Campos... Sendo o Senado a caixa de ressonância das mais lídimas aspirações do povo brasileiro e, também, a arena onde se esgrimem ideais e idéias, anseios, proposições e políticas de ação que terminam por pavimentar o caminho do progresso e do desenvolvimento do País, o autor, muito oportunamente, deu um fecho à obra com suas reflexões sobre temas candentes que têm sido objeto de debate e de ação daquela Casa. Entre esses, destacam-se o papel da mulher na política brasileira, os esforços do Senado para erradicar o analfabetismo no Brasil, os meios para se assegurar a segurança pública, o uso intensivo das modernas formas de ensino à distância, os sempre presentes desafios oriundos das desigualdades regionais, a proteção e a promoção dos direitos das populações vulneráveis, como idosos e portadores de necessidades especiais. É alvissareiro observar que o Diretor-Geral do Senado tem sido incansável em aumentar os laços que unem o Senado à sociedade, ação esta bem ilustrada pela publicação praticamente semanal de textos, como aqui reunidos, em mais de uma dezena de jornais de todas as regiões do País. A presente obra mostra, com grande propriedade, a importância do Senado para o fortalecimento da democracia e unidade da Federação. 2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49


Foto: STJ

A resposta de Simon

(Publicado no JB em 23/03/2007)

Mauro Santayana Articulista do JB

Senador Pedro Simon

A

o defender o processo contra Luís XVI, Robespierre usou argumento político definitivo: se o Rei era inocente, todos os que o acusavam seriam culpados. “De fato, não há processo a se fazer. Luis não é um acusado. Vocês não são juízes, vocês não são mais do que homens de estado. Não têm sentença a emitir contra um homem, mas medida de salvação pública a tomar, ato de providência nacional a exercer” – disse o incorruptível à Convenção Nacional, em dezembro de 1792. Os advogados do soberano – Malesherbes, Tronchet e Desèze – entenderam que estavam diante de um libelo da História. Luis XVI não era criminoso vulgar, embora houvesse fechado os olhos aos desatinos da nobreza, não soubesse conter a frivolidade da Rainha e hesitasse entre os conselheiros sensatos, como Necker e os profiteurs da Corte. Não tivera a seu lado mulheres fortes, como Madame de Maintenon, amante de Luis 14, e Madame de Pompadour, a preferida de Luis 15, nem contara com ministros da têmpera de Richelieu e de Mazzarino. O Senador Pedro Simon respondeu, e bem, ao ousado discurso do Sr. Fernando Collor de Mello. Expelido do poder por necessário processo político, é natural que Collor se defenda quando, absolvido pelo eleitorado alagoano, retorna a Brasília. No entanto, a atrevida apologia exigia resposta – e quem a deu foi o Sr. Pedro Simon. O senador gaúcho reabilitou a honra dos que se moveram contra quem montou (se o não montou, permitiu-o) o esquema de corrupção chefiado por Paulo César Farias. Os parlamentares relutaram muito em promover o processo contra o chefe de governo, mas a isso foram compelidos pela indignação das ruas. Simon poderia repetir as palavras de Robespierre, na tumultuada sessão da Convenção Nacional, de dezembro de 1793: Si Louis est innocent, tous les défenseurs de la liberté 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007

deviennent des calomniateurs. Se Collor é inocente, todos os amantes da probidade, todos os defensores da coisa pública, enfim todos os patriotas, do motorista Eriberto às secretárias que depuseram, de seu irmão Pedro Collor aos parlamentares que o acusaram, são culpados de calúnia. Mas todos – e, principalmente, o próprio Collor – sabem que não faltaram motivos para o processo, embora os atos do Sr. Paulo César Farias fossem apenas o pretexto. O povo já não suportava o poder como espetáculo, a arrogância como virtude, a desfaçatez como conduta, a ostentação como liturgia. A nação se sentiu defraudada naqueles meses. O povo suportara 21 anos de arbítrio, em que muitos haviam sucumbido nas masmorras e na luta aberta pela liberdade. O direito de escolher o presidente da República fora conquistado em jornadas de civismo que se encerraram com o sacrifício de Tancredo Neves, o grande construtor da saída democrática para a crise institucional. Com entusiasmo, os eleitores votaram no caçador de marajás, na esperança de que, sendo o primeiro escolhido diretamente pelo povo, ele conduziria o país à austeridade e ao desenvolvimento. Nos comícios populares, senhor de bem construído discurso pelos marqueteiros, a demagogia de Collor era poderosa na conquista dos descamisados e famintos, enquanto, nas sombras, articulava-se o apoio financeiro indispensável dos usineiros do Nordeste e de grandes empresários de São Paulo. Assim se fez presidente. Não fosse a avidez arrecadadora de Paulo César, mais para a caixa três do que para a caixa dois, ele teria completado a tarefa neoliberal de que se encarregara, a qual seria retomada pelo sucessor de seu sucessor. Simon falou pela nação, diante de um Senado acanhado – na mais legítima etimologia do vocábulo.


2007 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 51


52 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2007


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.