Revista Justiça & Cidadania

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EDIÇÃO 84 • junho de 2007 O CONSUMO DE 13 ENERGIA ELÉTRICA, O

A inquestionável 11 vantagem das

DIREITO E AS dECISÕES DO JUDICIÁRIO

hidrOelétricas

ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DÉBORA MARIA M. A. R. DIAS REVISÃO

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DISCURSO EM HOMENAGEM AO MINISTRO CARLOS MÁRIO VELLOSO

CONSELHO EDITORIAL

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responsabilidade civil do estado

SUMÁRIO

DIOGO TOMAZ E MAURíCIO FREDERICO DIAGRAMAÇÃO VINÍCIUS GONÇALVES EXPEDIÇÃO E ASSINATURA CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-906. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429 CNPJ: 03.338.235/0001-86

Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso

SUCURSAIS

CELSO MUNIZ GUEDES PINTO

SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611

CESAR ASFOR ROCHA

PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP: 90010-272 TEL.(51) 3211 5344 SALVADOR FREDERICO DINIZ GONÇALVES RUA BARÃO DE ITAPUÃ, 60 CONJ. 301 CENTRO EMPRESARIAL PORTO CENTER CEP: 40140-060 TEL.(71) 3264 3754 BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 - BLOCO E Ed. CENTRAL PARK FONES: (61) 3327-1228 / 29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL (61) 9674-7569

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ISSN 1807-779X

DALMO DE ABREU DALLARI denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim

EDITORIAL

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Para o presidente refletir

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As mudanças climáticas, as opções energéticas e a visão holística

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A energia, o progresso, o futuro

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Procurador da república Antônio Fernando de Souza é reconduzido

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A proteção da privacidade e a responsabilidade civil

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Por uma “limpeza” no judiciário

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INTERVENÇÃO AMERICANA: ATO DE GESTÃO OU ATO DE IMPÉRIO?

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Evandro Lins e Silva: um advogado no Supremo e na ABL

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A reALIDADE É MUITO MAIS GRAVE

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Coordenador-geral da JF toma posse

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Apresentação do Livro Bernardo Cabral

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Jus Et Labor

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luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata SEBASTIÃO AMOÊDO Sergio Cavalieri filho Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho

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EDITORIAL

O APAGÃO ENERGÉTICO

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foto: revista jc

omenageamos, no frontispício desta edição, a figura do renomado engenheiro Jerson Kelman, Diretor-Geral da ANEEL, cientista de renome internacional no setor de águas e energia, detentor do maior galardão do gênero, o troféu “THE KING HASSAN II GREAT WORLD WATER PRIZE”, de quem publicamos importante e oportuna matéria de alta qualificação, e que reflete a eminente gravidade dos perigos que se avizinham de previsível apagão energético, caso a construção das hidroelétricas ou outras opções energéticas não sejam conduzidas com lógica, bom senso e rapidez. São inúmeros os pronunciamentos de personalidades mais significativas abordando o problema da falta de energia em futuro muito próximo, enquanto, infelizmente, discute-se a questão ambiental na construção das hidroelétricas. Sobre a matéria, a Ministra Ellen Gracie, Presidente do STF, nos autos do licenciamento da Usina Belo Monte, no Rio Xingu, preocupada, também se pronunciou: “Considerando relevante o argumento no sentido de que a não-viabilização do empreendimento, presentemente, compromete o planejamento da política energética do país e, em decorrência da demanda crescente de energia elétrica, seria necessária a construção de outras usinas na região com ampliação em quatorze vezes da área inundada. A proibição ao IBAMA, parace-me invadir a esfera de discricionariedade administrativa, até porque repercute na formulação e implementação da política energética nacional”. Vem de longe a reclamação do empresariado nacional, tanto da Confederação Nacional da Indústria, por seu presidente Armando Monteiro Neto, como da Confederação Nacional do Comércio, pelo presidente Antonio Oliveira Santos, conforme artigo que publicamos nesta edição, contra os percalços e protelações que estão impedindo a construção de novas usinas, face o perigo eminente da falta de energia muito proximamente, com prejuízos econômicos e sociais, evidentes e indiscutíveis. Os óbices levantados pelos que defendem indiscriminadamente o meio ambiente – inclusive sem racionalidade própria, face a situação em que o país se encontra no tocante aos problemas futuros que advirão da falta de energia – têm de ser enfrentados com a razoabilidade já demonstrada pela competência dos inúmeros e competentes técnicos que se encontram no país, experimentados e vitoriosos pela implantação do sistema energético que desfrutamos já há décadas. Diante dos fatos e previsões calamitosas, não resta ao governo federal – responsável absoluto do assunto e alertado da gravidade – outra providência que não seja, de imediato, designar

agentes técnicos experientes e competentes, sob o comando dessa mulher extraordinária, Dilma Roussef, Ministra Chefe da Casa Civil da Presidência, para, conjuntamente com o DiretorGeral da ANEEL, Jerson Kelman, e outros experimentados conhecedores da matéria, encontrarem a solução rápida e urgente que a questão exige e impõe, a fim de salvar a Nação do colapso que se avizinha – ainda é tempo!

Orpheu Santos Salles Editor


arquivo pessoal

Para o presidente refletir Ives Gandra da Silva Martins Professor Emérito das Universidades Mackenzie, unifmu, unifieo e unip  Membro do conselho editorial

É

como cidadão brasileiro – que o Presidente Lula representa – que escrevo este artigo. Reconheço, no 1º mandatário,  no poder, espírito democrático e, na intimidade, lealdade com seus amigos, qualidades que nem sempre adornam os chefes de governo, como alguns de nossos vizinhos estão a demonstrar. No entanto, temo por radicalização na vida política e social da nação, exatamente pela dificuldade que o presidente demonstra de impor, em face de amizades pretéritas, a ordem necessária. Os agravos que o MST tem feito ao presidente e ao Brasil são intoleráveis. Diz ter “dado uma lição” a S. Exa. ao não convidá-lo para uma destas assembléias antidemocráticas, em que planejam ações de desrespeito à lei, à própria ordem pública e privada, assim como aos eleitores, visto que seus integrantes jamais tiveram coragem de enfrentar o teste das urnas. De resto, todas as pesquisas realizadas por órgãos insuspeitos apresentam o repúdio da esmagadora maioria da nação a sua ação. Bastaria ao Presidente Lula utilizar-se do ordenamento jurídico positivo, que proíbe, por longo período, qualquer processo desapropriatório de terras invadidas, para sustar tais pressões inaceitáveis. Mais do que isto. Invasões de propriedade pública ou privada violentam a Constituição. Que lutem os “expoentes do MST” por suas idéias, mas nos termos que a democracia permite. No plano internacional, o idealismo do presidente de preservar o Mercosul não é seguido por nossos vizinhos, interessados, exclusivamente, em aproveitar-se do Brasil. Deveria, pois, adotar a mesma técnica de seus parceiros, não deixando sem resposta qualquer tipo de afronta aos interesses nacionais. Nos planos político e ético, seus amigos e aliados têmlhe trazido aborrecimentos, o que poderia ser evitado se, no preenchimento de cargos, somente utilizasse critérios de competência e probidade. No que diz respeito à Comissão de Anistia, deveria ter alertado – até por que nomeada por ele – para o absurdo de  atingir a honra do Exército brasileiro, com  a infeliz decisão de outorgar a um desertor, frio executor de soldados indefesos, a patente de general aposentado. Aliás, a Comissão de Anistia, conseguiu transformar a guerrilha em um “belíssimo negócio”, o que desfigura com-

pletamente a imagem dos que se opuseram ao Governo Militar. A áurea de idealistas, que ostentavam, ficou esfrangalhada, com as polpudas indenizações que se auto-outorgaram, mediante uma incorreta – e já escrevi sobre isto – interpretação do texto constitucional. Criou, o Presidente Lula,  desnecessário problema com todos os seus comandados. Por fim, a falta de sinalização de redução da iníqua carga tributária (o dobro da média dos países emergentes) – que fica comprometida diante de cada Ministério criado e do aumento da burocracia –, começa a desestimular os  investimentos de ponta no país, nada obstante a explosão da economia mundial, que navega em “céu de brigadeiro”, assim como a fantástica potencialidade que o Brasil apresenta, em momento de excepcional liquidez internacional. Tais reflexões, eu as faço ao presidente porque acredito em suas boas intenções e que seu coração, tanto quanto o meu, pulsa pelo Brasil. S. Exa. certamente sabe que os melhores amigos não são os que elogiam e se aproveitam de sua proximidade, mas aqueles que, desinteressados pelo poder, sugerem soluções para os problemas da nação, como forma de exercício constitucional da cidadania. Todo o poder emana do povo, e é como gente do povo que escrevo, propondo-lhe que medite sobre os pontos aqui levantados. 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5


As mudanças climáticas, as opções energéticas e a visão holística Jerson Kelman Professor de Recursos Hídricos na COPPE – UFRJ Diretor-Geral da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL

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As mudanças climáticas á consenso entre os cientistas de que a temperatura do planeta tem subido nas últimas décadas, e a emissão de certos gases – principalmente, dióxido de carbono (CO2) – pela queima de combustíveis fósseis (derivados de petróleo e carvão) contribui para essa mudança. Não há dúvida de que o aumento da concentração na atmosfera dos gases que causam o efeito estufa intensifica o fenômeno de retenção na Terra de parte da energia recebida do Sol, que escaparia para o espaço, não fosse essa espécie de “cobertor atmosférico”, chamado de efeito estufa. Como existem processos naturais que também causam o efeito estufa, como é o caso da evaporação, não há consenso quanto ao grau de perturbação global que possa ser atribuído à queima de combustíveis fósseis. Por exemplo, alguns culpam também o gado e as plantações de arroz, que emitem grande quantidade de metano – outro gás que causa efeito estufa. A maior parte dos cientistas entende que se não forem tomadas medidas urgentes para conter a queima de combustíveis fósseis, a humanidade enfrentará sérias dificuldades já nas próximas décadas. Por exemplo, o derretimento das calotas polares e o aumento do nível dos oceanos, com catastróficas conseqüências para as populações litorâneas. 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

Entretanto, uma minoria de cientistas entende que a liberação de gases provocadores do efeito estufa – o vapor d’água é o principal deles – ocorre em maior proporção pelo efeito de variações cósmicas – principalmente, as flutuações da radiação solar. Segundo essa visão, pode ser que o clima esteja mudando, como tem ocorrido nos últimos milhões de anos, por causas naturais, sendo pequena a capacidade do ser humano de influenciar o processo para o bem ou para o mal. Nesse grupo minoritário de cientistas, há um subgrupo que teme, por essas causas naturais, não o aquecimento, mas o resfriamento da Terra. Aliás, essa era a principal apreensão sobre possível mudança climática que a muitos angustiava na década de 70, quando se temia o fim do atual período interglacial, que já dura mais de dez mil anos. Portanto, o fato de que, atualmente, a Terra está sofrendo um aquecimento, e que os humanos têm algo a ver com isso, não implica em consenso de que seja necessário refrear o crescimento econômico para diminuir o uso de combustíveis fósseis e evitar uma catástrofe na escala global. Essa falta de consenso tem sido objeto de muito debate nos meios acadêmicos e na imprensa. No entanto, a verdade nem sempre está com a maioria. Basta invocar o exemplo de Galileu,


foto: aneel

“No Brasil, a construção de novas usinas hidroelétricas tem encontrado crescentes restrições por causa dos impactos locais, tais como reassentamento de populações ou desmatamento.”

que foi derrotado em sua defesa do heliocentrismo pela maioria pensante do século XVII, que acreditava piamente no geocentrismo. Só o tempo dirá quem tem razão. Nesse intervalo, como devem se comportar as lideranças políticas dos diversos países? Devem alterar as políticas públicas e as estratégias de desenvolvimento, tendo em vista a ameaça de mudança climática anunciada pela maioria dos cientistas? Cabe aos dirigentes públicos a responsabilidade de decidir sob incerteza. O presidente George W. Bush, por exemplo, dando razão ao grupo minoritário de cientistas, não concorda em diminuir o altíssimo consumo de derivados de petróleo e carvão, per capita, do povo norte-americano. Se o futuro revelar que fez a escolha certa, será aclamado como um estadista de visão, que não sacrificou o notável bem-estar de seu povo – inédito na História – e soube resistir ao catastrofismo de um grupo de cientistas ávidos por mais verbas para pesquisas. Se, ao contrário, o futuro revelar que fez a escolha errada, será desqualificado como governante porque deu ouvidos a cientistas “vendidos” à indústria de petróleo e preferiu manter o padrão de consumo de seu povo em níveis insustentáveis, que resultou em um colapso da qualidade de vida tanto dos norte-americanos quanto do resto da humanidade.

A decisão é ainda mais difícil para a maior parte dos dirigentes de países em desenvolvimento. A China, por exemplo, depende do carvão para aumentar sua produção de eletricidade, sem a qual não poderia sustentar o atual ritmo de crescimento econômico, que está resgatando centenas de milhões de pessoas da absoluta miséria. É verdade que os dirigentes chineses têm feito notáveis esforços para diminuir o uso de carvão em favor de fontes renováveis. Por exemplo, para investir em hidroeletricidade e construir a usina de Três Gargantas, o governo chinês providenciou o reassentamento de mais de um milhão de pessoas. Todavia, não há muitas outras fontes renováveis naquele país e o carvão remanesce como a fonte energética disponível para manter o atual ritmo de crescimento. O dilema para os dirigentes chineses é se devem ou não moderar o ritmo do crescimento para controlar a emissão de gases que causam o efeito estufa. Nove entre dez ocidentais, provavelmente, responderiam afirmativamente a essa questão. Já entre os chineses, talvez não haja tanta concordância. Talvez prefiram “tomar um remédio” que lhes cure, digamos, uma verminose real e atual, mesmo com o risco de que o remédio provoque um câncer daqui a quarenta anos. Quem está premido pela necessidade 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


foto: aneel

de se livrar de um sofrimento atual costuma não dar muita atenção para a perspectiva de sofrimento futuro. Para os dirigentes brasileiros, a decisão é surpreendentemente fácil: só temos a ganhar se adotarmos o princípio da precaução e pautarmos nossas políticas pelo o que acredita a maioria dos cientistas. Isto é, devemos apoiar as medidas preventivas para controlar a emissão de gases que causam o efeito estufa. Primeiro, porque a tese de que o efeito estufa tem sido fortemente incrementado pela ação humana é a mais provável, no sentido Bayesiano. Segundo, porque o Brasil, juntamente com alguns países africanos, pode ser um celeiro de energia renovável. A produção de cana-de-açúcar deve crescer muito nos próximos anos, caso os países desenvolvidos acatem a meta de substituição, até 2020, de 5% da gasolina consumida no mundo por etanol, para diminuir o efeito estufa. Para isso será preciso multiplicar por sete a área plantada com cana para produção de etanol: dos atuais 3 milhões de hectares (outros 3 milhões são plantados com cana para produção de açúcar) para 21 milhões. Esta meta é perfeitamente exeqüível, sem que seja necessário derrubar uma só árvore da Amazônia, basta utilizar 10% da área atualmente dedicada para pastagem. Terceiro, porque o Brasil poderia cair rapidamente no ranking 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

dos poluidores. E sem muito esforço, quando comparado com outros países. Atualmente, somos o quinto emissor de CO2 do planeta, principalmente, devido ao desmatamento, que corresponde, aproximadamente, a 75% de nossas emissões. A boa notícia é que a Lei das Florestas, aprovada em 2006 pelo Congresso Nacional, deve mudar esse quadro: áreas de florestas públicas na Amazônia serão concedidas a agentes privados por longos períodos (décadas) para que explorem a madeira e outros recursos naturais de forma sustentável. O recentemente aprovado Plano Anual de Outorga Florestal identificou 43 milhões de hectares passíveis de concessão. O concessionário se obrigará a evitar a derrubada aleatória de árvores, de forma a permitir a regeneração natural da floresta. Trata-se da mais promissora iniciativa na área ambiental para reverter o ritmo do desmatamento, porque, atualmente, só é possível punir quem derruba árvores se pego em flagrante. É até possível penalizar o dono da propriedade, mas, em geral, o proprietário é o próprio Governo. Com um contrato, o “locatário” passa a ser o responsável pela área da concessão. É uma solução para a “tragédia do uso de bens comuns” da Amazônia (quando não há limites para o uso de um recurso natural finito, como a floresta, o recurso é degradado ou utilizado em excesso, ficando indisponível para todos).


“Ao contrário do que pensam os não familiarizados com o Setor, o faturamento mensal de uma usina hidroelétrica tem pouca relação com a quantidade de energia que tenha sido efetivamente produzida nela.”

Quarto, porque temos ainda um grande potencial hidráulico não utilizado. Usinas termoelétricas movidas a gás natural (ciclo combinado) e carvão emitem, respectivamente, cerca 370 e 950 quilos de CO2 por megawatt-hora (MWh), contribuindo de forma não desprezível para o efeito estufa. As opções energéticas Historicamente, 80% da demanda de energia elétrica no Brasil tem sido atendida por usinas hidroelétricas (movidas a água) e 20% por termoelétricas (movidas a gás natural, óleo combustível ou diesel). Nos recentes leilões para venda de energia no longo prazo, para viabilizar a construção de novas usinas, observa-se uma proporção de 50% e 50%. Significa que estamos ficando mais poluentes, em termos de emissão de gases que causam o efeito estufa. A questão ambiental – entendida pela dificuldade de se obter uma licença e pela profusão de ações impetradas pelo Ministério Público que encontram abrigo em decisões liminares da Justiça, com demora de anos para julgamento do mérito – explica apenas parcialmente essa mudança. A outra explicação reside na ausência de uma coleção de estudos de inventário – que defina os melhores locais para barramento dos rios – e de viabilidade, em um nível de detalhamento suficiente para implementação das usinas. O racionamento de energia elétrica de 2001 foi causado por escassez de água e de investimentos. Como em toda crise, houve aprendizado, tanto por parte da população quanto dos dirigentes do Setor Elétrico. Um dos resultados foi a percepção majoritária, mas não unânime, de que o mercado de energia elétrica, particularmente em um sistema predominantemente hidroelétrico, merece cuidados especiais. Diferente, por exemplo, dos aplicáveis ao mercado agrícola. A reforma do setor público que ocorreu na segunda metade da década de 90 foi feita com o objetivo de afastar o Estado de atividades produtivas e permitir foco governamental em temas mais diretamente relacionados com a cidadania, como é o caso da universalização da educação e do acesso ao sistema de saúde pública. Como conseqüência, a responsabilidade pela expansão da capacidade de geração deixou, à época, de ser governamental.

Supunha-se que o mercado se encarregaria da tarefa. Isto é, imaginava-se que os compradores de energia no atacado – as distribuidoras e as grandes empresas eletro-intensivas – teriam interesse em encomendar blocos de energia das geradoras para atender a demanda crescente, o que acabaria por estimular novos investimentos em geração. Lamentavelmente, ocorreram “falhas de mercado” que resultaram em investimentos supostamente inferiores ao que teriam ocorrido sob a tutela governamental. Ao contrário do que pensam os não familiarizados com o setor, o faturamento mensal de uma usina hidroelétrica tem pouca relação com a quantidade de energia que tenha sido efetivamente produzida nela. Trata-se de uma situação totalmente diferente do que se observa, em geral, no mundo empresarial. Afinal, o dono de uma fábrica de sapatos, por exemplo, fatura proporcionalmente ao número de pares de sapatos que produz. A peculiaridade existe porque as usinas estão dispostas “em cascata” ao longo dos rios, e o que é melhor para o país não resulta necessariamente da soma de decisões individuais, tomadas pelo responsável de cada usina. Por exemplo, se o dono da usina situada na cabeceira de um rio tivesse a liberdade de estocar água no reservatório, em vez de produzir energia, poderia faltar água para passar pelas turbinas das usinas situadas rio abaixo. Ou ainda, se em uma bacia hidrográfica houvesse pouca água em estoque e muita em outra, seria conveniente concentrar a geração na bacia com reservatórios cheios e transmitir a energia pelo sistema de transmissão. Por essa razão, é o Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS – que decide a quantidade de energia que cada hidroelétrica deve produzir. Para isso, o ONS procura minimizar o custo operativo e o de racionamento do Sistema Interligado. Estima-se que a operação centralizada resulta em uma economia para o consumidor de cerca de 20% da parcela “custo de geração”. Portanto, não é uma vantagem que se possa desprezar. O custo operativo de uma usina hidroelétrica é sempre bem inferior ao de uma termelétrica do mesmo porte. Ocorre o inverso com relação ao custo de implantação: as usinas termelétricas podem ser instaladas em curto prazo – 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


aproximadamente, três anos – praticamente em qualquer lugar, de preferência perto dos centros consumidores de eletricidade, com baixo custo de obras civis e de sistema de transmissão. Já as usinas hidroelétricas só podem ser instaladas junto aos rios. Em locais onde a conjugação de vazão e queda seja favorável, em prazo longo – aproximadamente, cinco anos – em geral, com alto custo de obras civis e de sistemas de transmissão. O parque hidroelétrico pode falhar por falta de água. Admite-se como aceitável que a probabilidade desse evento, em um ano qualquer, seja 5%. Já o parque termoelétrico deveria, em princípio, ser muito mais confiável no quesito “disponibilidade de combustível”, embora, no Brasil, se observe desvios dessa regra geral, por falta de gás natural. Nos países desenvolvidos, a opção hidroelétrica tem sido tipicamente exercida até o limite de 70% do potencial. No Brasil, embora só se tenha utilizado cerca de 27% do potencial, a construção de novas usinas hidroelétricas tem encontrado crescentes restrições por causa dos impactos locais, tais como reassentamento de populações ou desmatamento. A visão holística Uma visão holística da questão ambiental recomendaria a construção de novas centrais hidroelétricas, particularmente nos sistemas eletricamente isolados da Amazônia, cuja energia é gerada por centrais termoelétricas que queimam óleo diesel ou combustível. Primeiro, devido ao efeito estufa: são cerca de 5,3 milhões de toneladas de CO2 liberados para a atmosfera por ano. Segundo, porque criou-se um subsídio para ajudar a pagar o custo de produção naquela região, onerando os consumidores de todo o Brasil. Presentemente, esse subsídio está na ordem de R$ 3 bilhões por ano, o que corresponde a quase metade do gasto anual do programa Bolsa Família. O fato é que a visão holística não tem prevalecido. A partir da década de 80, os efeitos socioambientais na escala local têm despertado vigorosa oposição de grupos ambientalistas. A ação desses ativistas encontra respaldo moral no fato de que, efetivamente, na década de 70, muitas usinas hidroelétricas foram construídas sem as precauções, hoje obrigatórias graças, em grande medida, à ação do próprio movimento ambientalista. O que tem prevalecido é a visão do tipo small is beautiful, que favorece os pequenos empreendimentos. Sem que se perceba que a soma dos efeitos de um conjunto de pequenas centrais, dependendo da fonte utilizada, pode ser mais nociva para o meio ambiente do que uma única central que lhe seja energeticamente equivalente. Adicionalmente, há pouca atenção para o fato de que a compensação financeira que beneficia os municípios afetados por hidroelétricas tem feito com que esses apresentem, em geral, Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) superior ao dos municípios assemelhados da mesma região. A maior parte do movimento ambientalista continua a se comportar como se ainda subsistissem as condições da década 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

de 70 e reage exigindo “impacto ambiental zero”. Trata-se de uma das raras utopias sobreviventes à queda do Muro de Berlim, que habita os corações e as mentes de muitos jovens formados em nossas melhores universidades que militam no movimento ambiental. São profissionais que, em geral, não querem ou não logram inserção na economia tradicional. Acabam por puxar mais firmemente o freio de mão que trava o desenvolvimento sustentável que lhes criaria outras oportunidades profissionais. Trata-se de perverso efeito auto-alimentador de nosso baixo crescimento na última década. Sem desconsiderar a boa intenção do movimento ambientalista, nenhum novo empreendimento seria construído se fosse seguida a lógica de só permitir a instalação de obras com impacto zero. Ao contrário, o razoável é procurar o conjunto de empreendimentos que produza suficiente energia para o crescimento econômico, com a ampliação da oferta de empregos, melhoria do nível de vida da população e que produza impacto socioambiental mínimo. O que é bem diferente de impacto zero. Essa linha de compromisso entre o desejável e o possível tem encontrado obstáculos em um emaranhado de leis, decretos e regulamentos que têm logrado intimidar os técnicos e as autoridades do sistema ambiental na tomada de decisões. Qualquer autoridade pública que emita uma licença ambiental pode, a qualquer tempo, ser obrigada a responder por crime ambiental. Basta que um membro do Ministério Público discorde da decisão. Como o “crime” se caracteriza pela materialização de algum prejuízo, e como não há empreendimento que não o cause, é compreensível que o técnico ou autoridade evite a tomada de decisão, preferindo adotar posturas protelatórias. E os que poderiam ser beneficiados com a implantação de novas hidroelétricas, por serem de difícil mobilização, em geral, não se manifestam. São os consumidores localizados, por vezes, a milhares de quilômetros da usina, que sofreriam racionamentos de eletricidade, caso não fossem construídas novas hidroelétricas. Para dar tratamento racional ao tema, faz-se necessária uma visão não ideológica que consiga distinguir os empreendimentos bons dos maus. Se, de um lado, não se pode permitir a construção de usinas hidroelétricas que devastem o meio ambiente ou que desloquem grandes contingentes populacionais, de outro lado, não se pode admitir que essa alternativa energética seja banida pela ação de minorias militantes e pela inação de maiorias dispersas. Cabe ao Governo defender os interesses desses últimos. Ou, como costuma dizer a ministra Marina Silva: “Não basta dizer que não pode: é preciso dizer o que pode”. Ao contrário da maioria dos outros países, o Brasil pode produzir energia de forma sustentável em suficiente quantidade para o crescimento econômico e ampliação da oferta de empregos. Adicionalmente, o Brasil tem condições de contribuir significativamente para o esforço global de mitigação da mudança climática anunciada pela maioria dos cientistas para as próximas décadas. Não podemos desperdiçar essa vantagem comparativa.


foto: CNC

A inquestionável vantagem das hidrOelétricas Antonio Oliveira Santos Presidente da Confederação Nacional do Comércio

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ob os suspícios da Fundação Agnelli (leia-se Fiat), o Clube de Roma, instituído em 1968 pelo industrial italiano Aurélio Peccei e pelo então Diretor para Assuntos Científicos das OECD, Alexander King, preocupou-se em promover estudos que colocassem, na perspectiva do longo prazo, os problemas que afligem o planeta Terra. O estudo encomendado pelo Clube a uma equipe do MIT destacou cinco fatores que imporiam limites ao crescimento. Dentre eles, a degradação ambiental. A partir daí que se sucederam, tendo como epicentro a questão do meio ambiente, diversas iniciativas, como a Conferência das Nações Unidas de Estocolmo em 1972, e a Comissão criada, em 1983, pela Assembléia Geral da ONU, que gerou Relatório Brundtland, no qual surgiu o conceito de “desenvolvimento sustentável”, base da ECO 92, no Rio de Janeiro. Desde então, os organismos mundiais passaram a preocupar-se com a “agressão” dos processos produtivos ao meio ambiente. E o “efeito estufa” passou a ser tema de nosso cotidiano. Em 1997, foi firmado o Protocolo de Kyoto, segundo o qual, os países mais desenvolvidos, grandes poluidores, devem reduzir em, pelo menos, 5,2% a emissão de gases poluentes, comparativamente aos níveis de emissão de 1990. É nesse mesmo diapasão que o Presidente da Comunidade Européia, o português Durão Barroso, fala em uma “nova revolução industrial”, ao apresentar a planificação energética para a Europa dos 27, que estabelece, através do uso de energias mais limpas, uma redução da ordem de 20% por volta de 2020. Essa rememoração sobre a formação de uma consciência ecológica e os riscos reais do aquecimento global vem a

propósito, em nosso País, dos prós e os contras sobre a construção de novas usinas hidrelétricas, na Região Amazônica, confrontando os eventuais danos ecológicos com a grande vantagem que tem sido, até agora, o aproveitamento dos grandes rios brasileiros, na produção de uma energia limpa. Na construção de grandes barragens, vem à tona a necessidade de inundar amplas áreas florestais, deslocando as populações ribeirinhas. No embate entre o Ministério de Minas e Energia e o Ministério do Meio Ambiente, em torno das licenças ambientais tão demoradas, surge a alternativa de se recorrer a usinas térmicas a gás ou carvão importado, além da energia nuclear, todas elas muito mais poluentes, no curto ou longo prazos. Das fontes térmicas, somente a energia solar capturada por um sistema de placas e serpentinas e a energia eólica são totalmente limpas, embora de rendimento muito mais baixo. Em relação à fissão nuclear, há de se considerar, ainda, risco de contaminação ambiental pela radiação. Comparadas todas as fontes alternativas de energia, fica claro que as mais promissoras são o álcool de cana (etanol), o álcool de madeira (metanol) e o biodiesel, em especial, para uso nos veículos automotores que usam recursos renováveis e acarretam pequena poluição atmosférica. Descontados os danos causados ao meio ambiente pelas grandes represas, é evidente que nada substitui, no horizonte de tempo de uma geração, a corrente dos rios como fonte geradora de energia limpa e renovável. Daí parece não haver dúvida sobre as vantagens em usar o fantástico potencial de nossos rios, para a promoção do desenvolvimento econômico e social do País. Na conjuntura atual, a geração de energia elétrica constitui o maior desafio do Governo do Presidente Lula. 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


O CONSUMO DE ENERGIA ELÉTRICA, O DIREITO E AS DECISÕES DO JUDICIÁRIO Carlos Fernando Mathias de Souza Vice-Presidente do TRF – 1ª Região Professor-titular da Universidade de Brasília

foto: trf

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or sua oportunidade, de início, recorde-se a controvérsia que se instalou, nos fins do século XIX, sobre se a energia elétrica, em si mesma, se constituiria (ou não) em coisa móvel (corpórea ou, fictamente, imaterial), do que resultaria a possibilidade (ou não) de ser objeto de furto. É conhecida a decisão do Supremo Tribunal Alemão, de então (Reichsgericht), em 1896, concluindo pela negativa, com ênfase no argumento de que a lei penal não admite a analogia em sua aplicação. Daí resultou, como se sabe, grande polêmica, do que adveio reação legislativa expressa em lei penal extravagante, de 9 de abril de 1900, que definiu como crime patrimonial a subtração de energia elétrica na Alemanha. Tal reação repercutiu em outros sistemas jurídicos, como, por exemplo, na Confederação Helvética que fez incluir, em seu código penal (por efeito de lei de 24 de junho de 1902), o mesmo princípio adotado pelos tedescos e que consta, até hoje, do código penal suíço. Não parece demasiado lembrar-se de que, em outros países, também de excelente tradição jurídica, como a França e a Itália, a questão foi, de início, resolvida pela jurisprudência que, apoiada na doutrina, reconhecia a energia elétrica como coisa material. Em outras palavras, em tais sistemas jurídicos, o problema (ou a questão) sequer se apresentava. Tal ótica da matéria em exame não impediu que o código Rocco – como, sabidamente, é conhecido o código penal italiano de 1930 – inserisse, em seu art. 624, disposição que, por via ficta, equiparou a energia elétrica (e qualquer outra de valor econômico) a coisa móvel, para os efeitos penais: “Agli effetti della legge penale se considera cosa mobile anche l’energia elettrica e ogni altra energia che abbia valore economico”. Não é preciso ser um conhecedor da língua de Dante para saber-se que, em português, dir-se-ia o seguinte:

“Para os efeitos da lei penal, considera-se coisa móvel também a energia elétrica e toda outra energia que tenha valor econômico”. Como se sabe, o referido código italiano (ao lado de outros, como o alemão, registre-se por simples ilustração) teve grande influência no texto do código penal brasileiro de 1940. Muito embora a Exposição de Motivos do código em destaque não faça expressa remissão no particular (ao contrário do que fez com relação a outros tipos penais) sobre a influência italiana, ela é flagrante. A merecer registro, sobre o ponto em destaque, o que consigna a Exposição: “Para afastar qualquer dúvida, é expressamente equiparada à coisa móvel e, conseqüentemente, reconhecida como possível objeto de furto a ‘energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico’. Toda energia economicamente utilizável e suscetível de incidir no poder de disposição material e exclusiva de um indivíduo (como, por exemplo, a eletricidade, a radioatividade, a energia genética dos reprodutores, etc.) pode ser incluída, mesmo do ponto de vista técnico, entre as coisas móveis, a cuja regulamentação jurídica, portanto, deve ficar sujeita”. É isto o que se encontra expresso no art. 155, § 3º, do código penal brasileiro: “Art. 5º. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: (omissis), § 3º Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico”. O Judiciário tem sido chamado a decidir muitas questões relativas ao furto de energia elétrica (o ilícito penal cometido por quem, não sendo consumidor, usa clandestinamente, isto é, subtrair, para si, coisa alheia móvel, na dicção do código penal) e à fraude (que se expressa pelo locupletamento, por quem, não sendo consumidor, viola o sistema de medição para obtenção de um registro menor que a quantidade consumida). São bem conhecidos os “gatos”, nome pelo qual se 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


designa, na linguagem popular, tanto o furto quanto a fraude de energia elétrica. Em, relativamente, recente matéria, publicada na Revista Justiça & Cidadania (nº 75, outubro de 2006), o diretor jurídico da ABRADEE (Associação Brasileira dos Distribuidores de Energia Elétrica), advogado Braz Pesce Russo, alerta para a gravidade do problema. Por oportuno, destaquem-se pequenos trechos da página em referência. De plano, lembra que são “fatos que mobilizam há décadas os esforços das distribuidoras de energia elétrica (e) que dizem respeito às ocorrências de furto de energia elétrica e de fraudes perpetradas para o recebimento irregular dessa mesma energia”, e acrescenta: “Ora, raros são os casos de furto de energia elétrica cometidos sem que se rompa a confiança que o concessionário concede ao consumidor, quando lhe dá a guarda do equipamento de medição e, mais raras ainda, são as violações não serem perpetradas, a não ser mediante fraude aos lacres e fios condutores. Portanto, a par de se constituir em uma prática delituosa específica, há ainda, nessa prática, contornos de capitulação nos crimes de periclitação da vida e da saúde, ao expor a vida de terceiros a perigo direto e iminente de uma descarga elétrica fatal”. E prossegue o advogado: “Mas o ilícito não é só no campo criminal, o que seria punível e reprovável em todos os aspectos. A falta de punibilidade em razão da dificuldade de se apontar, com segurança, o autor do delito, torna a prática do furto e da fraude um ato incentivador de atos iguais”. Após algumas outras considerações (inclusive contendo crítica a decisões judiciais), consigna, o advogado em destaque, os seguintes dados: “Segundo dados levantados pela ABRADEE, as perdas comerciais, decorrentes do furto e fraude de energia elétrica, totalizam, aproximadamente, 15.000 GWh/ano, representando cerca de 5% de toda a energia gerada no país. Para se ter uma idéia de grandeza, esse montante de fraude e furto apurado equivale ao consumo anual do estado de Santa Catarina e corresponde a um valor de R$ 4,5 bilhões/ano. Traduza-se isso no quanto representa em evasão de tributos, notadamente o ICMS e o PIS/COFINS, que deixam prejuízos experimentados pelas concessionárias distribuidoras de energia elétrica e que a fragilidade da regulamentação atualmente existente termina por tornar a situação ainda mais delicada frente ao poder judiciário, que não reconhece a concessionária como legitimada para a constatação da fraude e nem mesmo reconhece o poder impositivo da regulamentação disciplinada pelo órgão regulador ao consumidor”. Recorde-se, por outro lado, de que ao mestre Miguel Reale deve-se a Teoria Tridimensional do Direito, em que este é considerado, em síntese, em três dimensões, ou seja: como fato, valor e norma. Enfatizando o valor, observa Reale que “o fenômeno jurídico manifesta-se e existe porque o homem se propõe fins”. E um fim não mais é que um valor proposto e reconhecido como motivo de conduta (q.v. Filosofia do Direito, V.I, T.II, 1953). 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

“a jurisprudência do STJ tem sido firme no sentido de reconhecer a licitude ao concessionário de serviço público em interromper o fornecimento de energia elétrica, em caso de inadimplência do usuário.” Sob tal ótica, o grande jusfilósofo propôs, entre outras, a definição de direito como “a concretização da idéia de justiça na pluridiversidade de seu dever ser histórico, tendo a pessoa como fonte de todos os valores” (in: Lições Preliminares do Direito, Saraiva, São Paulo, 27ª ed., p. 67, 2004). Luis Recasens Siches (que, aliás, aderiu à teoria tridimensional), por sua vez, assinala: “Es verdad que todo Derecho pretende ser algo en lo qual encarecen determinados valores: todo Derecho es un intento, um propósito, de Derecho justo; pero el Derecho no está constituido solamente por los puros valores que mediante el se pretende realizar, ni consigue jamás realizarlos por completo; sino que es una obra humana, con la qual se trata de interpretar las exigencias de unos valores, en relación con el propósito de satisfacer unas necesidades humanas sociales, en una determinada situación histórica, y mediante una forma normativa con especiales caracteres. El Derecho es algo que los hombres fabrican en su vida, bajo el estimulo de unas determinadas necesidades; y algo que lo viven en su existencia con el propósito de satisfacer aquelas necesidades, precisamente de acuerdo con pautas que realicen unos específicos valores, sobre todo, el valor de la justicia y del bienestar general” (in: Introducción al Estudio del Derecho, 15ª edición. Ed. Porrúa, México, 2006, p. 15/16). A Constituição brasileira de 1988, expressa, em seu Preâmbulo, que o país é um “Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais (...) o bem-estar (...) e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna (...)”. Isto vem a propósito de decisão tomada pela Primeira Turma, do Superior Tribunal de Justiça, relatora a ministra Denise Arruda, que confirmou decisum do extinto 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, onde a tese central foi, precisamente, a proteção da vida, como valor maior a ser preservado. In casu, a Corte Superior apreciou recurso (REsp nº 621.435-SP), de empresa de energia elétrica, inconformada com a decisão do apontado tribunal paulista, que deferiu


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Com efeito, a jurisprudência da Primeira Seção do STJ é no sentido de reconhecer a suspensão de fornecimento de energia elétrica, desde que precedida de aviso. Todavia, no julgado em destaque, foi considerada inaplicável a orientação, posto que a pretensão da recorrente era suspender o fornecimento de energia elétrica de hospital, ou seja, unidade prestadora de serviço essencial de saúde. A ministra-relatora enfatizou em seu voto, entre outros argumentos, que “a interrupção do fornecimento de energia, caso efetivada, implicaria sobrepor, na cadeia de valores tutelados pelo ordenamento jurídico, o contrato à vida humana e à integridade dos pacientes. Nessas circunstâncias, o interesse coletivo que autoriza a solução de continuidade do serviço é relativizado em favor do interesse público maior: a proteção à vida”. E acrescenta a ministra Denise Arruda: “Sob outro ponto de vista, a interrupção – na forma autorizada no CDC e legislação pertinente – é, via de regra, de caráter uti singuli, em que se contrapõem a concessionária e o consumidor individualmente, quando inadimplente, com a ressalva de prévio aviso, podendo, inclusive, ser ampliada às pessoas jurídicas de direito público, desde que não aconteça de forma Vice-Presidente do TRF – 1ª Região, Des. Carlos Fernando Mathias de Souza indiscriminada, preservando-se as unidades públicas essenciais”. Ficou, assim, em resumo, a ementa da decisão, destacadas segurança a um hospital, vedando-lhe, ipso facto, o direito de as partes essenciais da tese em debate: “É lícito à concessionária suspender o fornecimento de energia elétrica, mesmo em face interromper o fornecimento de energia elétrica se, após aviso de inadimplemento, por parte da recorrida. prévio, o consumidor permanecer inadimplente (Lei 8.987/95, art. Para maior clareza, vejam-se o acórdão recorrido e as 6º, § 3º, II). Essa orientação, contudo, não se aplica na hipótese razões de recurso. dos autos, pois a recorrente pretende suspender o fornecimento Eis a ementa do citado acórdão: “Mandado de Segurança de energia elétrica de hospital, ou seja, unidade prestadora de – Prestação de serviços – Energia elétrica. Caracterização serviço essencial de saúde”, / “A recorrida – de acordo com como um serviço público essencial. Suspensão do fornecio Estatuto Social – não possui fins lucrativos e não concede mento em razão do atraso no pagamento. Inadmissibilidade, remuneração, vantagens ou benefícios de qualquer forma ou pois tal medida poderia afetar a integridade física ou a vida título a seus diretores, conselheiros, e instituidoras (art. 3º); de eventuais pacientes. Segurança concedida nos termos do toda renda, recursos (inclusive públicos) e eventuais resultados acórdão”. operacionais acumulados são aplicados na manutenção e As razões, deduzidas, pela recorrente, em apertada síntese, desenvolvimento dos objetivos institucionais (art. 4º), inclusive foram as seguintes: a) o art. 22 do Código de Defesa do no atendimento gratuito de pacientes (art. 5º)” / “A interrupção do Consumidor – CDC –, ao determinar que os serviços sejam fornecimento de energia, caso efetivada, implicaria sobrepor, na prestados de forma contínua, quer significar que devem cadeia de valores tutelados pelo ordenamento jurídico, o contrato estar sempre disponíveis à coletividade, mas podem sofrer de concessão à vida humana e à integridade física dos pacientes”/ a solução de conformidade em casos individuais, como na “O interesse coletivo que autoriza a solução de continuidade hipótese do não-pagamento do preço (tarifa); b) o princípio do serviço deve ser relativizado em favor do interesse público da continuidade da prestação de serviço público não tem maior: a proteção da vida”. caráter absoluto, devendo, no caso, prevalecer o interesse Como bem se observa, a Corte Superior, no julgado, bem público sobre o interesse privado; c) a jurisprudência do atendeu aos fins sociais a que a lei se dirige e às exigências do próprio STJ considera legítima a suspensão do fornecimento bem comum. de energia elétrica do consumidor inadimplente. 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


De outra parte, recorde-se que, por sua vez, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL –, que é a autarquia reguladora do setor elétrico, divulgou, em 2006, que “o furto de energia elétrica nas favelas do país alcança o índice de 70%”, ou seja (e em outras palavras), apenas 30% das unidades consumidoras localizadas nas favelas estão em situação regular. Não é incomum ouvir críticas, em particular de distribuidoras de energia, apontando como elemento importante, em tão desfavorável estatística, decisões judiciais. A propósito de tais críticas, o ministro Peçanha Martins, com o talento e verve, que lhe são peculiares, observa que a prestação jurisdicional é dada, determinando (naturalmente) o corte de energia aos fraudadores e aos inadimplentes. O que não é sempre fácil é a execução, pois ela passa pela tranqüilidade (e pela proteção) aos oficiais de justiça para cumprirem os mandados. Sugerindo, de modo humorado, que as companhias elétricas assumam a missão. Com efeito, a jurisprudência do STJ tem sido firme no sentido de reconhecer a licitude, ao concessionário de serviço público, em interromper o fornecimento de energia elétrica, em caso de inadimplência do usuário, com apenas algumas ressalvas ou exceções. No julgado do REsp nº 688.644/RN, por exemplo – registre-se por ilustração –, tem-se, no que interessa, no momento, ao estudo, o seguinte: “As duas Turmas de Direito Público deste Tribunal firmaram o entendimento do que é lícito ao concessionário de serviços público interromper, após aviso prévio, o fornecimento de energia elétrica do usuário que deixa de pagar as contas de consumo.”/ “Quando o consumidor é pessoa jurídica de direito público, prevalece nesta Turma a tese de que o corte de energia é possível, desde que não aconteça de forma indiscriminada, preservando-se as unidades públicas essenciais.” Interrupção de fornecimento de energia elétrica de Município inadimplente somente é considerada ilegitimidade quando atinge as unidades públicas provedoras das necessidades inadiáveis da comunidade, entendidas essas – por analogia à Lei de Greve – como “aquelas que, não entendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população / Não demonstrando que o corte de energia elétrica colocará em risco a sobrevivência, a saúde ou a segurança da coletividade local o acórdão recorrido deve ser reformado”. A merecer destaque, do decisum (que, de resto, expressa farta jurisprudência) que, mesmo quando o consumidor é pessoa jurídica de direito público, o corte é possível, desde que não aconteça de forma indiscriminada, eis que se impõe a preservação das unidades públicas essenciais. Quais são essas unidades? O STJ, buscando suprimento na Lei de Greve, reconhece que são “aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”. Mesmo, assim, a jurisprudência há de aplicar-se cum grano salis. Sobre o particular, é eloqüente a decisão em agravo regi16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

mental referente à suspensão de liminar (Diário de Justiça de 19.9.05, p. 00171): “SUSPENSÃO DE LIMINAR. AGRAVO INTERNO. MUNICÍPIO DE PACAJUS/CE. COELCE. INTERRUPÇÃO NO FORNECIMENTO DE ENERGIA POR INADIMPLÊNCIA DO MUNICÍPIO. RISCO DE LESÃO À ECONOMIA E AO INTERESSE PÚBLICOS. 1. Posição firmada pelas Primeiras e Segundas Turmas, no sentido da possibilidade de interrupção do fornecimento de energia elétrica ente público, em razão do não pagamento da tarifa, inclusive para os serviços essenciais, consoante autoriza a Lei 9.427/96, art.17. 2. O contrato de concessão firmado entre a COELCE e a União não prevê, sim, a obrigação da COELCE fornecer regular, adequada e eficientemente energia elétrica, obtendo em contrapartida dos usuários, públicos e privados, o valor da tarifa, necessário à manutenção do sistema elétrico e ao financiamento de novos investimentos. 3. Mora de parte dos usuários se reverterá na baixa qualidade dos serviços prestados ou no aumento da tarifa, prejudicando em um caso ou em outro, usuário adimplente e pontual. 4. Risco de lesão à economia pública advinda da necessidade das futuras administrações no Município honrarem os compromissos financeiros que não dizem respeito a suas gestões, e para os quais, no tempo devido, foram alocados as devidas rubricas orçamentárias, não utilizadas tempestivamente para os fins a que se destinavam. 5. Banalização por parte de municípios cearenses no uso da via judicial com vista a obterem liminares que impeçam a COELCE a preceder ao corte de energia, independentemente do pagamento dos débitos, a configurar o efeito multiplicador. 6. Agravo Regimental não provido”. A decisão em destaque reflete (registre-se uma vez mais) a farta posição do STJ sobre a matéria em exame. Quando se diz farta, não é o suficiente, eis que se deve agregar à adjetivação a expressão pacífica. A ministra Denise Arruda, em seu voto, como relatora do REsp nº 621.435/SP, consignou: “O princípio da continuidade do serviço público (CDC, art. 22), como se sabe, não é absoluto. A Lei 8.987/95 – que dispõe sobre o regime – é legítima sua interrupção, quando, sob emergência ou após prévio aviso: (a) por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; (b) por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade. Justifica-se, pois, a eventual interrupção no fornecimento de energia elétrica, desde que avisado previamente o usuário para pagar a conta pendente. A finalidade é resguardar a continuidade do serviço, a qual restaria ameaçada porque oneraria a sociedade como um todo, que teria de arcar com o prejuízo decorrente de todos os débitos. Daí, prevalece o interesse da coletividade para resguardar a continuidade do serviço”. A magistrada cita diversos precedentes em que foram relatores, por exemplo, os ministros T.A. Zavascki, C. Meira, E. Calmon, J. Delgado e L. Fux.


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A energia, o progresso, o futuro Pedro do Coutto Jornalista do Tribuna da Imprensa

Nota do editor O artigo do jornalista Pedro do Couto vem reforçar em abono das preocupações expendidas pelo Dr.Jerson Kelman, como publicadas na edição de junho passado, e inclusive nesta, onde o ilustre e renomado cientista aborda a questão das hidroelétricas das quais o país tem extrema urgência, face o perigo de futuro e previsível apagão. A questão demanda providências imediatas com o afastamento dos óbices que vêm sendo obstaculados pela burocracia de órgãos da própria administração pública. Oxalá que os alertas que vêm sendo divulgados pela imprensa, como a do ilustre articulista que produziu a matéria abaixo, além da preocupação do responsável pela ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica –, consigam motivar os burocratas que emperram a liberação das tão necessárias e urgentes construções das respectivas usinas hidroelétricas.

O

presidente Juscelino Kubitschek criou Furnas, em 1957, exatamente para que surgisse, no País, uma poderosa fonte de energia capaz de assegurar um processo veloz de desenvolvimento econômico, levando ao progresso, na medida em que reduzisse a distância entre o presente e o futuro. Entretanto, para isso, além do pesado investimento financeiro, era indispensável a capacidade humana – que está sempre no vértice de tudo – para gerir o projeto. A presidência da empresa foi entregue ao engenheiro John Cotrim, extremamente capaz, que permaneceu no cargo durante os governos JK, Jânio Quadros, João Goulart e até no período militar do general Castelo Branco. Realizou um trabalho extraordinário a partir de Minas Gerais para todo o País. Ao longo de sua história, Furnas nunca deixou de ter um mineiro em sua presidência. Luiz Carlos dos Santos, que a livrou da incrível privatização projetada no governo FHC, era político por São Paulo, porém mineiro de nascimento. Produzindo diretamente e transmitindo a carga de Itaipu Furnas fornece energia de qualidade à metade do País. Nesta metade, nela contida a parcela de 63% do parque industrial. Em segundo lugar, encontra-se a Cia. Hidrelétrica do São Francisco, ambas integrantes, ao lado da Eletronorte e agora novamente da Eletrosul, do sistema da Eletrobrás. 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

Juscelino recebeu a potência instalada brasileira em 3 milhões de KW e a duplicou em cinco anos. Hoje, de acordo com o relatório do Centro de Memória da estatalholding, situa-se na escala de 97 milhões de KW, mas tem de crescer bastante além disso para garantir o desenvolvimento sustentável. Calcula o engenheiro Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética, em recente entrevista a “O Estado de São Paulo”, que o sistema de geração terá que produzir, incluindo o transporte da binacional de Itaipu, 130 milhões de KW até o ano de 2030. A produção de energia, como JK iluminou a questão 50 anos atrás, é tão fundamental quanto insubstituível para impulsionar o Produto Interno Bruto em escala, não só compatível, mas superior à do crescimento populacional. A população cresce à velocidade de 1,3% ao ano. O PIB, portanto, tem de avançar muito mais, pois nos deparamos com um déficit social enorme, maior que as dívidas interna e externa juntas. Dessa forma, meio século depois de JK, o Brasil se depara com um novo desafio cujo enfrentamento encontrase proposto no Programa de Aceleração do Crescimento, cuja coordenação está colocada nas mãos e na formulação da ministra Dilma Roussef, de ampla e decisiva atuação na área do governo. Como o País está com uma produção de


arquivo pessoal

“A produção de energia é tão fundamental quanto insubstituível para impulsionar o Produto Interno Bruto em escala.”

quase 100 milhões de KW (ou, o que é a mesma coisa, 100 mil MW), a oferta de energia terá de avançar, segundo o evangelho de Tolmasquim, 130% no espaço de 23 anos. São, portanto, 130% de futuro que temos pela frente. Os recursos consignados para o PAC, este ano, são apenas iniciais. A previsão básica era de 67 bilhões de reais, muito pouco em face do orçamento do País que é de 1 trilhão e 560 bilhões. Mas, pelo que se lê do balanço mensal publicado pela Secretaria do Tesouro, vão ficar em torno de 50 bilhões de reais. O avanço tem de ser maior. Maior e mais rápido, afinal, como escreveu Helio Silva sobre a proclamação da República, a história não espera o amanhecer. O maior projeto atual para ampliar o parque energético é o Complexo de Rio Madeira, elaborado pelo consórcio FurnasOdebrecht, há mais de três anos aguardando pelo licenciamento de parte do Ibama, assim como Becket colocou Godot na peça famosa de teatro, grande admiração de Gerald Thomas, que a dirigiu anos atrás. “Esperando Godot”, é o título. Esperando pelo Ibama e pelo Ministério do Meio Ambiente, encontramse a ministra Dilma Roussef e o presidente de Furnas, José Pedro Rodrigues. Eles só, não. O País também. Rio Madeira é para gerar 6,4 milhões de KW. Qual parcela maior encontra-se programada no Brasil? Nenhuma. Dizer que a energia termelétrica, a energia nuclear, todas

as demais energias juntas poderiam substituir 6,4 milhões de KW não se ajusta à realidade. Pois, dos quase 100 milhões de KW de potência instalada hoje, 77% vêm da hidroeletricidade; 17% do óleo diesel e do gás natural (esse escasso em face da política da Bolívia) e apenas 3%, Angra 1 e Angra 2. Totaliza 97%. Somadas todas as demais fontes alternativas de produção, solar, eólica, biodiesel, carvão, encontram-se os 3% finais. Qual a energia, portanto, capaz de substituir a hidrelétrica? Nenhuma. A produzida por diesel é altamente poluente. A originária do gás natural polui menos, mas polui, e, além do mais, no entender do professor Ziéli Dutra, que realiza detida pesquisa sobre o panorama energético global, o uso do gás natural significaria uma competição desnecessária maior com o consumo doméstico e o das frotas de táxi e ônibus de conexão. Por tudo isso, o caminho flui pelas hidrelétricas, energia renovável e nada poluente. Este é o quadro nacional. Mas ele não se esgota com estes dados. É preciso capacidade humana para transformar o presente em avanço econômico. Esta característica é insubstituível. Como disse o general Montgomery, herói da segunda guerra, em seu livro de memórias, jamais se pode entregar o comando a pessoas não habilitadas. Estas – acrescentou – são capazes, isso sim, de destruir o próprio exército inglês. Se podem destruir o exército inglês, mais facilmente destroem o futuro. 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


DISCURSO EM HOMENAGEM AO MINISTRO CARLOS MÁRIO VELLOSO PROFERIDO EM 28/06/2007 Enrique Lewandowski Ministro do STJ

I

ncumbiu-me a Excelentíssima Senhora Presidente Ellen Gracie a prestigiosa tarefa de falar em nome do Supremo Tribunal Federal na merecida homenagem que ora se presta ao eminente Ministro Carlos Mário da Silva Velloso, a quem, para grande honra minha, sucedi nesta colenda Corte de Justiça. Esta é, sem dúvida, uma feliz oportunidade para que se reverencie a competência, a lucidez e a sensibilidade de alguém que, sobre ser magistrado de escol, foi e é professor de destaque, além de edificador de uma vida pessoal que se eleva às alturas dos grandes nomes que plasmaram a Nação brasileira. Carlos Velloso veio ao mundo em Entre Rios de Minas, situada na “patriazinha”, como docemente Guimarães Rosa apelidou Minas Gerais. Bom filho das Alterosas, sempre exaltou suas origens, a exemplo da verdadeira declaração de amor que fez à terra que o viu nascer, quando foi homenageado pelo tradicional Instituto dos Advogados de Minas Gerais, ocasião em que proclamou, em alto e bom som: “Se há algo de que me orgulho é de ter nascido em Minas, de ser filho, neto e bisneto de mineiros, de ter me criado nestas montanhas, onde se respira liberdade, e de jamais ter-me afastado de minhas raízes, fiel, aliás, à observação de Tancredo Neves, que conheci nos albores de minha juventude e que me disse, eu já na idade madura, que a fidelidade a Minas e ao povo enobrece e dignifica”. 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

Moço estudioso, cursou o ginasial em São João Del Rey no conceituado Colégio de Santo Antonio, partindo, em seguida, para Belo Horizonte, onde concluiu o Clássico no afamado Colégio Estadual, diplomando-se depois em Direito na atual Universidade Federal de Minas Gerais. Disciplinado e idealista, o jovem bacharel iniciou, então, uma fecunda carreira profissional, fazendo opção pela vida pública, à qual dedicou mais de cinqüenta anos, quase todos dedicados ao árduo ofício da judicatura. Com verdadeiro sentido de missão, Carlos Velloso exerceu a magistratura de forma linear, equilibrada, sem saltos nem sobressaltos – e sem recuos – em um trilhar contínuo, determinado, como quem sobe, calma e seguramente, as suas velhas conhecidas montanhas mineiras. Ainda na infância, travou contato com as agruras e também com as realizações da nobre e difícil arte de julgar, pela mão segura do pai, o juiz Achilles Velloso, cuja influência em sua formação de magistrado Carlos Mário relembra, saudoso, em passagem várias vezes recontada: “Visitei, desde cedo, muitos fóruns, assisti muitas audiências, júris e fui aprendendo por sua mão protetora. Ele dizia que não tinha idade para assistir aos júris, mas eu insistia e ele me colocava atrás de sua cadeira. Foi o grande exemplo de minha vida, o meu pai. Foi seu exemplo que me fez juiz”. Daí para diante, o caminho foi sempre ascendente, e Carlos Velloso fez-se juiz completo.


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“A reputação ilibada e o notável saber jurídico alçaram-no ao Supremo Tribunal Federal e, de lá, ao Tribunal Superior Eleitoral, tendo exercido a Presidência de ambas as Casas.”

Ministro Enrique Lewandowski

Iniciou-se nas lides forenses com a admissão ao cargo de escrevente juramentado do Cartório da 3ª Vara Criminal de Belo Horizonte. Seguiu-se a sua investidura como escrivão. Depois, o exercício da função de Diretor de Secretaria da Junta de Conciliação e Julgamento de Uberlândia. Na seqüência, prestou concurso para Promotor de Justiça, para Juiz Seccional e Juiz de Direito. Por seus reconhecidos méritos foi nomeado Juiz Federal e, posteriormente, para o antigo Tribunal Federal de Recursos, integrando, mais tarde, o Superior Tribunal de Justiça. A reputação ilibada e o notável saber jurídico alçaram-no ao Supremo Tribunal Federal e, de lá, ao Tribunal Superior Eleitoral, tendo exercido a Presidência de ambas as Casas. Ao longo de sua profícua e ascendente carreira, Carlos Velloso sempre cumpriu suas obrigações com notável dedicação e empenho. Foi criterioso, sem ser excessivamente severo. Manteve-se altivo, sem transparecer arrogância. Geriu com firmeza, sem ser desnecessariamente enérgico. Enfrentou os desafios da judicatura e da administração pública com competência e serenidade. Fez história na Magistratura por seu denodado empenho em prol de um Judiciário, em suas palavras, “cada vez mais forte, mais independente, mais respeitado”. Carlos Velloso foi, antes de tudo, um humanista. Um humanista que, embora preocupado com as angústias e sofrimentos de seu povo, jamais se olvidou da pessoa humana,

do indivíduo por detrás da massa anônima, sobretudo daquele a quem, quase sempre, se nega o acesso aos mais elementares bens da vida. Essa virtude, infelizmente cada vez mais rara entre os homens públicos, reflete-se em inúmeros julgados e votos seus, como naquele que proferiu no RE 328.232/AM, onde assentou: “(...) que uma das razões mais relevantes para a existência do direito está na realização do que foi acentuado na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 1776, o direito do homem de buscar a felicidade. Noutras palavras, o direito não existe como forma de tornar amarga a vida dos seus destinatários, senão de fazê-la feliz”. Mas tal qualidade não impediu que Carlos Velloso, enquanto juiz, fosse preciso, cirúrgico até. Como nos versos de Fernando Pessoa, nada exagerou ou excluiu. Suas decisões, reveladoras de um conhecimento superior do Direito, notabilizaram-se pela escrita clara e acessível, a partir da qual construiu sólido acervo jurisprudencial, nas mais diversas áreas do saber jurídico, especialmente na seara tributária, em que se revelou mestre respeitado. O intelectualizado magistrado, porém, nunca foi um nefelibata, um burocrata confinado ao gabinete, preso às rotinas processuais. Ao contrário, cumpridas – e bem cumpridas – as tarefas do cotidiano forense, sempre encontrou tempo para dedicar-se com entusiasmo à luta pela modernização do 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


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Ministro Carlos Mário Velloso

“Antes mesmo de sua posse na Presidência do TSE, envidou esforços nesse sentido. Pesquisou, estudou, ouviu notáveis para buscar alternativas tecnológicas que permitissem a expressão da vontade popular sem distorções.”

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Judiciário, pela adoção de práticas que, sonhava, levariam a “uma justiça ágil, eficaz, barata, próxima do povo”. Dentre as medidas a que deu seu valioso apoio, destacam-se a simplificação do processo, com a eliminação dos formalismos inúteis, a racionalização do sistema de recursos, a adoção da súmula vinculante e a valorização do juiz de primeiro grau, cujas angústias e carências logrou experimentar pessoalmente. Homem público por excelência, sempre sustentou não haver de nada mais importante para um povo do que suas instituições políticas, tal como o fez em memorável discurso proferido na oportunidade em que se despediu da Presidência do Tribunal Superior Eleitoral. A contribuição de Carlos Velloso, nesse campo, no entanto, não se limitou a concitar a cidadania a prezar as suas instituições, materializando-se, dentre outras iniciativas, em uma decisiva atuação em favor da informatização do voto, que ainda está a merecer o devido destaque. Antes mesmo de sua posse na Presidência do TSE, envidou esforços nesse sentido. Pesquisou, estudou, ouviu notáveis para buscar alternativas tecnológicas que permitissem a expressão da vontade popular sem distorções. A primeira eleição informatizada ocorreu em outubro de 1996. Dela participou como eleitor na Capital de Minas Gerais. Compartilhou o orgulho e a emoção de haver exercido o direito de sufrágio, por meio do novo sistema, com uma eleitora analfabeta, que, segura, lhe manifestou a confiança que devotava na urna eletrônica, depositária de sua opção política. Registrando, depois, a vibração cívica de que foi tomado na ocasião, consignou: “O computador, a pequena máquina de votar, fê-la cidadã. Ora, só não se emociona diante de um fato assim quem não tem músculos, nervos e sentimentos”. Espírito generoso, o juiz Carlos Velloso encontrou tempo para ser mestre também fora dos tribunais. Lecionou francês na Escola de Comércio Santo Afonso, em Belo Horizonte. Ensinou Direito na então Universidade de Negócios e Administração de Minas Gerais e na Pontifícia Universidade Católica, na qual chegou a professor titular e diretor. Lecionou ainda na Universidade Federal e na Academia da Polícia Militar de Minas Gerais. Fez carreira também na Universidade Nacional de Brasília, dela recebendo o título de professor-emérito. Como educador, cuidou de ser completo, indo além das lições ministradas em sala de aula, sabedor de que elas, por melhores que sejam, podem perder-se no tempo. Afinal, verba volant, scripta manent. Autor fecundo, publicou vários livros e numerosos artigos, em revistas nacionais e estrangeiras, leituras essenciais para os estudiosos da Ciência Jurídica, especialmente aos que se dedicam ao Direito Público, em seus diversos ramos. É dele a preciosa lição, reproduzida em sua renomada obra Temas de Direito Público, segundo a qual a ordem política que a Constituição brasileira consagra é o Estado Democrático de Direito: “(...) capaz de conciliar direitos individuais com direitos sociais, ações negativas do Estado com suas ações positivas, e que não se conforma apenas com o aspecto formal das leis, mas


que busca significado para o conteúdo destas, a requerer ações prontas do Estado em favor do bem-estar social.” Conferencista de renome, amplamente requisitado no País e no exterior, distribuiu com prodigalidade seus vastos conhecimentos, que empregou também nas diversas bancas e comissões de concurso de que participou. Foi agraciado com inúmeras condecorações e honrarias. Integrou e integra diversas instituições culturais e científicas, dentre as quais a Academia Mineira de Letras, a Academia Brasileira de Letras Jurídicas, a Association Française des Constitucionnalistes, e a Academia Internacional de Direito Econômico e Economia. Recebeu também o título de Doutor honoris causa da Universidade Craiova, na Romênia, além de um sem número de outros galardões acadêmicos. Realizado na profissão e na cátedra, jamais permitiu que as homenagens recebidas lhe toldassem a modéstia – própria dos sábios - que sempre cultivou, atribuindo o seu sucesso pessoal aos inúmeros de amigos que amealhou ao longo da vida. Para Carlos Velloso, tal como para o tribuno romano Marco Túlio Cícero, “viver sem amigos, não é viver”. No discurso que proferiu ao receber a medalha-prêmio por seus cinqüenta anos de serviço público, o ilustre juiz e professor, debitou a honraria à amizade, registrando o seguinte: “Fiz muitos amigos. Sou de fazer amigos e de conserválos. Posso dizer com orgulho que fiz, nesses cinqüenta anos, uma legião de amigos, esforçando-me por mantê-los. É do meu avô, Carlos Velloso, que homenageio usando o seu nome, a sentença: os amigos são como plantas. Precisam ser regadas. Essa é uma sentença líquida, em sentido metafórico e literal”. E arremata, com compreensível orgulho: “[meus amigos] constituem o que considero o maior tesouro de minha vida”. O culto ao afeto, em especial aos mais próximos, é, certamente, a nota emblemática de seu rico trajeto existencial. Carlos Velloso sempre que pôde registrou a sua gratidão à família de origem: ao pai, o Juiz Achilles Velloso, à mãe, D. Olga, aos irmãos. Jamais deixou de proclamar, também, por gestos e palavras, o profundo carinho que nutre pela família que constituiu: a sua esposa, D. Maria Ângela, ao seu filho e filhas, aos genros, noras e netos. Nosso homenageado, salta aos olhos, é, antes de tudo, mineiro. Um notável mineiro. E como bom mineiro, preza o sentimento. À moda de Saint Exupéry, sabe que “apenas com o coração se pode ver direito”, pois “o essencial é invisível aos olhos”. Esse delicado traço do sentimento, que se evidencia a todos aqueles que se propõem a conhecer a sua trajetória de vida e a revisitar seus registros pessoais, constitui a característica mais marcante de uma existência pautada pelo trabalho, pelo estudo, pela dedicação à causa pública e, sobretudo, pelo amor aos seus semelhantes. Feliz o povo que tem um juiz e um concidadão como Carlos Mário da Silva Velloso.

“Conferencista de renome, amplamente requisitado no País e no exterior, distribuiu com prodigalidade seus vastos conhecimentos, que empregou também nas diversas bancas e comissões de concurso de que participou.”

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Procurador da república Antônio Fernando de Souza é reconduzido

da redação

O

presidente da República reconduziu o procuradorgeral da República, Antonio Fernando de Souza, para mais dois anos no comando do Ministério Público Federal. Ele foi o mais votado na eleição informal promovida pela Associação Nacional dos Procuradores da República, que representa os membros do Ministério Público Federal. Lula seguiu a lista tríplice da entidade como já havia feito em 2003, quando indicou o Procurador Cláudio Fonteles que ocupou a Procuradoria-Geral no período 2003/2005. Lula já havia decidido mantê-lo no cargo apesar das pressões em contrário, o que gerou impasse e demora na formalização do ato da escolha. Apesar de se encontrar no exercício do cargo, foi submetido a sabatina e aprovado pelo Senado. Antônio Fernando marcou seu primeiro mandato por iniciativas de investigações criminais com denúncias ao Supremo Tribunal Federal, relacionadas ao mensalão, em março de 2006, e à Operação Hurricane, em abril último. No ano passado, também pediu ao STF que abrisse inquéritos contra 84 parlamentares suspeitos de atuarem em fraudes na compra de ambulâncias. Ao empossar Antônio Fernando em 2005, Lula disse que não interferiria em seu trabalho. O escândalo do mensalão acabara de surgir. Nove meses depois, o procurador-geral ofereceu ao STF a denúncia do mensalão, em que acusou 40 pessoas (entre eles o ex-ministro José Dirceu e o ex-dirigente do PT José Genoino) por participarem e agirem em uma “organização criminosa). 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

Antônio Fernando enfrentou corajosamente batalhas contra o corporativismo. Numa delas, contestou no STF resolução do Conselho Nacional do Ministério Público que elevava o subteto estadual de R$ 22.111, para R$ 24.500. As resistências principais contra a permanência de Antônio Fernando vieram da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, que o acusa de privilegiar o Ministério Público Federal, além obviamente, da cúpula do PT, que receia da independência funcional do Procurador-Geral da República. Há de ressaltar, reconhecer e fazer justiça ao Presidente da República que, ao reconduzi-lo ao importante cargo, está ciente da extrema e firme independência de Antônio Fernando de Souza, e de que todo e qualquer deslize que venha acontecer de cujos reparos e providências forem da sua alçada, praticados por quem quer que seja, parentes, amigos, comensais ou políticos das hostes que o apóiam, não terão nenhuma condescendência ou salvaguarda: a lei será inexoravelmente aplicada. Antônio Fernando de Souza tomou posse para seu primeiro período como procurador-geral em 30 de junho de 2005, com mandato de 2 anos. Além de comandar o Ministério Público Federal, o procurador-geral tem papel nas ações de inconstitucionalidade (Adins) e em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal. Durante seu primeiro mandato, promoveu ações penais denunciando deputados federais, senadores, ministros de Estado e o presidente e o vice-presidente da República. No Senado Federal, onde foi sabatinado para aprovação


foto: pgr

O Procurador-Geral da República, Antônio Fernando de Souza, recebendo do 1° Vice-Presidente do STJ, Ministro Peçanha Martins, o troféu Dom Quixote de La Mancha.

de seu segundo mandato, em resposta ao senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), Antônio Fernando de Souza defendeu a manutenção das escutas telefônicas, após decisão judicial, desde que sejam para uso em investigações criminais ou instrução processual penal. O contrário, observou, seria um incentivo ao crime organizado. Em suas declarações durante a sabatina, declarou que está fazendo gestões junto ao governo para que sejam ampliados os mecanismos de segurança do material colhido durante as investigações. Declarando que, para ele, as gravações, sonoras ou em vídeo, somente devem ser usadas em juízo. Acentuando que os responsáveis pelo vazamento das informações sejam responsabilizados. Ao falar aos membros da CCJ, Antônio Fernando de Souza foi enfático: pretende continuar ao longo do seu segundo mandato, exercendo plenamente a função “com independência, imparcialidade e o rigor que todos esperam do titular do cargo”. Dos senadores que fizeram perguntas, para enaltecer o trabalho do procurador-geral, Tasso Jereissati (PSDB-CE) disse esperar que ele faça, durante o segundo mandato, o que fez ao longo do primeiro, período em que, segundo o parlamentar, atuou de forma exemplar, sempre prevalecendo a isenção e a independência. O senador Jefferson Peres (PDT-AM) observou que seu voto a favor do procurador era pelo “reconhecimento e respeito” ao trabalho que desenvolveu ao longo dos dois últimos anos. A senadora Serys Slhessarenko (PT-MT) aplaudiu o presidente

Lula pela recondução, e o senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) pediu pressa e prioridade para os processos que envolvam crimes de colarinho branco. O senador Demóstenes Torres (DEM-GO) observou que o procurador está “discreto e corajoso”, salientando que Antônio Fernando de Souza “está ajudando a passara limpo o Brasil”. Na sabatina perante a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, sua recondução ao cargo teve aprovação por unanimidade, com 23 votos. No Plenário, obteve 53 votos, onde os trabalhos de Antônio Fernando de Souza à frente da Procuradoria-Geral da República foram enaltecidos pelos Senadores Pedro Simon (PMDBRS), Aloizio Mercadante (PT-SP), Tasso Jereissati (PSDBCE),Valter Pereira (PMDB-MS), Osmar Dias (PDT-PR), Romero Jucá (PMDB-RR), Marconi Perillo (PSDB-GO), Romeu Tuma (DEM-SP), Wellington Salgado (PMDBMG), José Agripino (DEM-RN), Flexa Ribeiro (PSDBPA), Eduardo Suplicy (PT-SP) e as senadoras Lúcia Vânia e Ideli Salvati. O alto conceito, probidade, trabalho e comprovados propósitos de como Antônio Fernando de Souza, exerce e dignifica a função pública, assegura, demonstra e confirma que a Procuradoria-Geral da República estará e continuará ainda, nos próximos dois anos, sob a responsabilidade de uma personalidade ímpar na administração, imune do compadresco, partidarismo ou qualquer excrescência que fira os preceitos da moralidade pública ou privada, como estabelecida nos artigos 37 e 38 da Constituição Federal. 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


responsabilidade civil do estado Palestra proferida no Seminário “Questões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo”, no dia 01/06/2007, em Campos do Jordão.

Sylvio Capanema de Souza Desembargador e Primeiro Vice-Presidente do TJ/RJ Membro do Conselho Editorial

N

o primeiro encontro sobre transporte público que realizamos, começamos a discutir algumas dúvidas surgidas porque ainda não estavam perfeitamente compreendidos os pa-radigmas do novo código. Muitas da-quelas dúvidas desapareceram porque se transformaram em perplexidades, outras foram superadas porque se tornaram um certo consenso. Até porque, surgiram novos fatos sociais, como, por exemplo, o recrudescimento da violência urbana, e isso vai se refletir no tema central de nossa participação, que é a destruição dos ônibus. Além disso, temos também a concorrência predatória do transporte alternativo. Em suma, conseqüências e fatos novos que repercutiram intensamente no serviço de transporte. O Juiz, hoje, não mais podendo ser apenas o aplicador da lei, a boca da lei e, ao contrário, tendo de ser o verdadeiro solucionador dos conflitos, não pode mais se prender aos códigos. Ele tem de dialogar com todos os segmentos da sociedade para compreender sua realidade social e econômica, e havia muitas dúvidas quanto aos tecnicismos e a estrutura de muitos contratos que vão se tornando cada vez mais relevantes, como, por exemplo, o de seguros. Já fizemos muitos encontros com os seguimentos das seguradoras, para melhor compreender o tema, e dos transportes. Aliás, uma das perplexidades dos alunos, quando são apresentados aos contratos de transportes em seus cursos de bacharelado, é a omissão do código de Bevilaqua quanto a esse contrato, perguntando sempre: Como é que um contrato como o de transporte, com sua relevância econômica e social repercutindo diretamente no direito de ir e vir, não mereceu um único e miserável artigo no código civil, que aborda 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

outros contratos de menor incidência como jogo, aposta e etc? A explicação é óbvia: o contrato de transporte é tão complexo e tão diversificado, abrangendo tantas modalidades, que o legislador do passado achou melhor deixá-lo disciplinar por leis especiais. Então, tínhamos a lei das estradas de ferro, a lei sobre o transporte aéreo, sobre o transporte marítimo. Entretanto, agora, o novo código resolveu transformar o contrato de transporte em um contrato típico, à luz do direito civil, e estabeleceu suas regras indispensáveis. Claro que não poderia exaurir o tema. Fixou apenas os princípios fundamentais, deixando que, ao redor do código, continuassem gravitando as leis especiais. Hoje temos uma estrutura jurídica muito mais adequada para a relevância do contrato de transporte. Também não podemos começar a enfrentar o tema sem uma referência inicial à nova ordem jurídica que recepcionamos a partir da Constituição de 88, que provocou um redirecionamento, como eu digo sempre, do eixo filosófico do sistema do direito brasileiro. Nós fomos nos afastando do individualismo e do patrimonialismo, característicos do direito do século XIX, que tanto influíram no código Bevilaqua, e nos aproximamos da socialidade. No campo da responsabilidade civil, onde essas mudanças foram ainda mais importantes, partimos da culpa em direção à solidariedade e não se pode estudar a responsabilidade civil, senão percebendo os novos paradigmas que oxigenam e inspiram o novo direito privado brasileiro. O paradigma da função social do direito, colocandoo como um poderoso instrumento de formação de uma sociedade mais justa, mais solidária e mais fraterna, o paradigma da boa fé objetiva que não mais constitui uma


foto: rosane taylor/emerj

Da esquerda: Desembargador Sylvio Capanema, Dr. Carlos Augusto Guimarães e Desembargador José Carlos Maldonado simples exortação ética, mas se transforma em um dever jurídico, em uma regra de conduta obrigatória, e o princípio da efetividade do direito, que exige soluções mais adequadas para compor o conflito de interesses e pacificar a sociedade. Esses novos paradigmas têm uma influência direta sobre a teoria da responsabilidade civil. Nós fomos, nesse caso, nos libertando da velha tradição da teoria subjetiva, ancorada na idéia da culpa, para irmos em direção à teoria objetiva calcada na idéia do risco. Isso é muito importante porque veremos que, no tema que abordaremos, isso será um divisor de águas. Não há a menor dúvida, mesmo um leitor desavisado vai perceber que a evolução da teoria da responsabilidade civil é extraordinária. Em pouco mais de 200 anos, passamos da culpa à solidariedade e, no campo específico da teoria objetiva, percebemos os avanços do código civil de 2002. Basta citar, por exemplo, o artigo 187, que introduziu uma nova cláusula geral de responsabilidade civil objetiva ao, pela primeira vez e de maneira expressa, equiparar o abuso do direito ao ato ilícito, gerando responsabilidade objetiva. Podemos citar também a questão da responsabilidade pelo fato de outrem que agora, claramente, é classificada pela teoria objetiva. No código passado, havia uma grande discussão sobre a responsabilidade pelo fato de outro. Discutia-se se ela seria aferida pela teoria da culpa provada ou da culpa presumida ou, até mesmo, pela teoria objetiva diante da ambígua redação dos artigos 1521 e 1523. Entretanto, agora, o novo código diz que essas pessoas que respondem pelo fato de outrem respondem independentemente de culpa. Da mesma maneira, a responsabilidade pelo fato da coisa, pelo fato dos animais, ruínas de prédios, pelas coisas atiradas do alto de prédios em

lugar indevido, tudo isso agora está claramente localizado no campo da teoria objetiva. A responsabilidade pelo fato do produto está no artigo 931 do novo código, dizendo que “aqueles que colocam produtos no mercado e que causam danos a terceiros respondem independentemente de culpa”. Há até quem entenda que o artigo 931 seria dispensável porque reproduziria um princípio que já estaria consagrado no código de defesa do consumidor, mas é evidente que é importantíssimo o artigo 931, pois amplia a regra da responsabilidade objetiva de quem coloca produtos no mercado e faz com que essa regra se torne independente do direito consumerista. Mesmo que não haja uma relação de consumo típica, quem coloca produtos no mercado agora responde objetivamente, independentemente de ser ou não uma relação de consumo. Por fim, temos o artigo 927 e seu parágrafo único. Esse então talvez esteja entre os 10 artigos mais importantes do novo código, porque o parágrafo único do artigo 927 é um portão escancarado para que a teoria objetiva invada os territórios em que antes vigorava a teoria da culpa, ou seja, o parágrafo único do artigo 927 estabelece que, quem quer que exerça uma atividade que apresente risco inerente de dano à terceiro, responderá também, independentemente de culpa, ou seja, mesmo na responsabilidade extracontratual, agora, a teoria objetiva passa a dominar. Foi tão extraordinário o avanço da teoria objetiva que nós hoje podemos dizer, sem exagero, que o que era regra geral no passado, que era a teoria subjetiva, sendo a exceção à teoria do risco, hoje é exatamente o inverso. Hoje a regra geral é a responsabilidade objetiva pela idéia do risco da atividade, 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


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foto: rosane taylor/emerj

do risco-proveito, do risco-administrativo e a exceção passa ser a teoria subjetiva. Isso não é por acaso, é em razão da visão socializante do novo direito voltado para a solidariedade social. É muito mais importante que se proteja a vítima e não o causador do dano, por isso é muito mais fácil para a vítima obter seu ressarcimento, bastando provar o dano e o nexo causal, alforriando-se do pesado ônus da prova que era de como provar a culpa do autor do dano. Tudo isso também repercutiu no campo da responsabilidade civil do Estado, sendo aí a repercussão mais surpreendente. Passamos da total irresponsabilidade do Estado, típica dos Estados absolutistas e despóticos em que o rei não podia errar, o Estado não poderia abdicar de sua soberania, sendo acionado pelo cidadão. Além do mais, poder retirar do Estado recursos para indenizar vítimas de sua atividade poderia inviabilizar suas funções. Então, partimos dessa idéia de responsabilidade do Estado quando a vítima tinha que reclamar a indenização do agente do Estado até o risco integral, quer dizer, da irresponsabilidade ao risco integral. Todos sabemos que foi a partir da constituição de 46 que, finalmente, se consagrou a idéia do risco administrativo, conduzindo a responsabilidade civil do Estado para o campo da responsabilidade objetiva. Hoje não há a menor dúvida, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, de que o Estado responde por todos os danos que seus agentes produzirem a terceiros, mas a dificuldade é saber. Este é o tema central da palestra, se ainda resta algum espaço no campo da responsabilidade civil do Estado para teoria subjetiva, ou seja, todos Desembargador Sylvio Capanema os danos que o particular sofrer serão aferidos à luz do risco administrativo ou, ao contrário, se discutirá ainda Estado, a falta do agir do Estado, enquanto que, se a omissão a existência de culpa. Sobre esse aspecto, a questão do ato fosse genérica, aí sim a responsabilidade seria subjetiva, ou ele omissivo, ou seja, a omissão do Estado, nesse particular, três não responderia. No entanto, não é sempre fácil distinguir correntes doutrinárias hoje já são percebidas e se digladiam. a omissão genérica da omissão específica, por isso, talvez, Temos uma primeira corrente, liderada por eminentes alguns exemplos da vida urbana possam melhor esclarecer o juristas e respeitados doutrinadores, como Oswaldo Aranha tema: Vamos imaginar que um motorista bêbado, em uma Bandeira de Melo, seguido por seu filho Celso Antonio, estrada, atropele e mate um pedestre. Evitar esse dano seria no sentido de que, pela conduta omissiva do Estado, o praticamente impossível para o Estado, que não tem recursos causador não responde objetivamente. Portanto, qualquer suficientes para cada quilômetro da estrada colocar agentes dano que resulte na falta do serviço ou na omissão do Estado para fiscalizar todos que por ali passem. Nesse caso, não obrigaria a vítima a provar essa omissão, essa falta de serviço, responderia o Estado, mas, se esse mesmo carro dirigido pelo ao lado dessa teoria que, felizmente, já está afastada pelo motorista tivesse sido parado pela polícia rodoviária e estes, entendimento majoritário da doutrina. Surge, então, uma ainda que percebessem o Estado de embriaguez do motorista, posição conciliatória que já foi referida aqui pelo doutor o deixassem seguir viagem, aí sim teríamos um caso de Juruena, que é a questão dos atos da omissão genérica e da omissão específica. omissão específica. Vamos também imaginar um veículo com suas Entende essa corrente que o Estado responderia lanternas traseiras queimadas e que, com isso, provocou objetivamente quando o dano tivesse como causa a omissão do o abalroamento pelo carro que ia imediatamente atrás e


não percebeu sua presença à noite. Em princípio, isso seria uma omissão genérica, pois o Estado não poderia prever um acontecimento como este, mas, caso se verifique que esse veículo foi submetido, anteriormente, à vistoria, onde o mesmo deveria ter sido apreendido ou então ser exigido que fossem feitos os reparos devidos, aí sim já seria uma omissão específica. Um outro exemplo concreto que desaguou no judiciário foi de uma proprietária de um imóvel na praça da bandeira que, em um daqueles temporais de verão, teve seu imóvel invadido pelas águas que se acumularam naquela praça. Se há um temporal inesperado e, com isso, provoca o alagamento das residências ali existentes, isso é entendido como uma omissão genérica, mas, naquele caso específico, a perícia realizada mostrou que o alagamento foi devido, em grande parte, ao entupimento das galerias pluviais que há anos não eram limpas e etc. Por isso, o tribunal condenou o Estado a indenizar a proprietária. Isso dependeria da prudente análise do caso concreto a fim de verificar se o dano decorreu de um dever de agir do Estado que se omitiu, e devido à omissão ocorreu diretamente o dano. Esse seria o segredo da distinção. O Estado deveria agir, mas não agiu, sendo a omissão a causa direta e eficiente do dano. Entretanto, já existe uma terceira corrente que está mais presa ao artigo 927, parágrafo único, daí a importância que lhe foi atribuída. Há uma corrente, sustentada com grande base doutrinária pelo promotor de Minas Gerais, Roger Aguiar Silva, a qual afirma que hoje o Estado responde objetivamente mesmo nos atos omissivos, independente de ser genérica ou específica. O autor sustenta que, uma interpretação principiológica, e hoje todo o direito moderno é principiológico, se assenta nos valores fundamentais que devem pairar sobre o texto da lei. Nessa interpretação principiológica, portanto, o parágrafo único do artigo 927 se aplicaria também ao Estado, e ele não faz distinção entre omissão e ato omissivo. Por outro lado, o princípio fundamental hoje que rege a responsabilidade civil é o da solidariedade, então se a atividade do Estado traz benefícios a sociedade, todos os seus membros devem participar, por meio dos impostos pagos, para ressarcir aquele que teve um prejuízo causado por essa atividade do Estado. É ainda uma tese talvez muito avançada, mas tem muito boa sustentação. Claro que não significa como as autoridades do Estado estão preocupadas. Isso jamais significaria um riso integral e evidente de que a teoria do risco administrativo não é risco integral, pois o Estado tem todo o direito de se alforriar do pagamento da indenização, provando um fato capaz de romper o nexo causal, mas, em princípio, pela idéia da solidariedade social, o Estado responderia tanto pela omissão genérica quanto pela omissão especifica. Chegamos então ao caso do incêndio dos ônibus. Os que adotam a segunda corrente, que é majoritária, e que ainda fazem a distinção entre a omissão genérica e a específica, diriam que não há o dever de indenizar o Estado, pois isso seria omissão genérica, uma vez que não há como prever o ato predatório de terceiros. Entretanto, os que

“Hoje não há a menor dúvida, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, de que o Estado responde por todos os danos que seus agentes produzirem a terceiros.”

adotam a terceira corrente certamente dirão que há o dever de indenizar o Estado, ainda que entendessem a situação como uma situação de omissão genérica. Nós temos que examinar o caso concreto da mesma maneira. Se o fato era previsível, se havia um juntamento da população, uma reação predatória da população, e a autoridade policial, avisada, alertada do risco iminente de uma possível convulsão social, permanece inerte aí, mais uma vez, seria o caso da omissão específica. Parece, fora de qualquer dúvida, para grande alívio do doutor Lelis e de seus companheiros, que não há necessidade, neste caso, de o transportador pagar a indenização. Isso seria tipicamente um fato exclusivo de terceiro que romperia o nexo causal, porque dano causado pelo assalto ao passageiro no curso da viagem deveria ser indenizado pela transportadora. No entanto, por outra circunstância, pela previsibilidade dos fatos, por determinadas linhas, determinados pontos, o assalto seria um fortuito interno, embora, é claro, haja uma grande divergência nesse respeito. Não há incoerência porque existe uma enorme diferença entre um assalto aos passageiros que se limita aos danos patrimoniais e um incêndio provocado em um ônibus por ato criminoso. Isso realmente extrapola a previsibilidade e o risco inerente da atividade. No caso do incêndio no ônibus – e isso não é um caso isolado –, é absolutamente imprevisível, e o transportador não tem qualquer condição de evitar. Dessa forma, só restaria à vítima suspender suas pretensões indenizatórias contra o Estado e tentar mostrar que essa omissão, no caso concreto, foi específica. São fatos sociais que agora nos preocupam, frutos dessa violência que caracteriza, infelizmente, nossa vida, e que o judiciário deve, corajosamente, enfrentar, com base, é claro, nas contribuições doutrinárias. 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29


A proteção da privacidade e a responsabilidade civil Sergio Cavalieri Filho Desembargador do TJ/RJ

Nota do editor: O relevante artigo do eminente jurista e emérito professor de direito, Desembargador Sergio Cavalieri Filho, define, magistralmente, como soe acontecer em suas excepcionais manifestações sobre o direito, suas ações, aplicações e conseqüências, além da tipificação humanista da moral, da ética e da dignidade. As definições apresentadas sobre a importância dos conceitos aplicados à privacidade, liberdade de expressão, liberdade de informação, a distinção entre o fato e a versão, restrição à liberdade de informação e sobre a violação da privacidade do homem público ou dotado de notoriedade, servem magnificamente na prática como estudo e lição para os operadores do direito.

A

parentemente, o tema a ser abordado é de extrema simplicidade. Bastaria ler o art. 5º, inc. X, da Constituição Federal: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas...” O que é inviolável? Inviolável é aquilo que não pode ser violado; aquilo que é indevassável, que não pode ser divulgado, nem revelado. É aquilo que deve ser mantido em segredo, sob sigilo. Ora, se a Constituição – Lei Maior – estabelece como garantia fundamental, em cláusula pétrea, a inviolabilidade da privacidade, então a proteção dessa privacidade não pode ser mais completa e maior. Poderíamos dormir em paz. Mas não é isso o que vemos na vida prática, nos jornais, na televisão, na internet, etc. Por quê? A questão começa a se complicar em razão de outras normas que se encontram no próprio art. 5º da Constituição. Primeiramente, o inciso IX – “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.” Temos aqui, inquestionavelmente, também garantida na Constituição, a liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação. Como conciliar a liberdade de expressão e de comunicação com inviolabilidade da privacidade? Pelo fato de a Constituição garantir a liberdade de expressão, posso falar o que quiser e de quem quiser, em público ou em particular? Pelo fato 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

de a Constituição garantir a liberdade de comunicação, pode qualquer órgão de imprensa divulgar o que quiser sobre quem quiser? Temos ainda o inciso XIV do mesmo art. 5º da CF, que diz: “É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.” A Constituição garante, também em cláusula pétrea, o direito à informação. Cabe então a mesma indagação. Como conciliar o direito à informação com a inviolabilidade da privacidade? Já que a Constituição me garante o direito à informação, tenho o direito de saber tudo sobre a vida de qualquer pessoa, seja ela pública ou privada? Esse é o quadro normativo que dá complexidade ao tema em exame: A Proteção da Privacidade e Responsabilidade Civil. Importância dos Conceitos Para enfrentá-lo, tenho como certo que o primeiro passo é estabelecer com precisão os conceitos envolvidos no tema. Conceito, como todos sabem, é a concepção básica de alguma coisa, é a premissa fundamental, o ponto de partida para se chegar a uma solução correta. Se partirmos de um conceito correto, podemos chegar a uma conclusão ou solução correta, mas, se partimos de um conceito equivocado, nunca chegaremos a uma conclusão correta. Lembro que, no mundo das idéias, nada é mais sujeito à deturpação que os conceitos. Convicções políticas e ideológicas,


Foto: revista jc

valores subjetivos, interesses econômicos, pessoais, etc, levam as pessoas a formarem conceitos completamente distorcidos, equivocados, que lhes permitem chegar à conclusão que quiserem. Tudo, no fim, é conceito. Isso até me faz lembrar a história de um indiano (lá na Índia) que estava morrendo de fome com sua família quando viu uma vaca. Armou-se de um porrete e partiu para cima da vaca disposto a transformá-la em churrasco para todos. Foi quando ouviu a vaca dizer: “Epa, epa, epa, para aí. Você não sabe que eu sou uma vaca? Sou um animal sagrado! Você não pode me atacar”. Ao que o indiano respondeu: “Olhem só, um cavalo falando!” E desceu o porrete na cabeça da vaca. Perceberam? Se partirmos do conceito de que uma vaca é um cavalo, então será possível chegar a qualquer resultado, por mais absurdo que ele seja. Não haverá coisa sagrada, nem garantia que resistam. Quando é você que determina o que é vaca e o que é cavalo, então é sua conveniência que rege o mundo. Conceito de privacidade Então, vamos aos conceitos envolvidos no tema em exame. Em primeiro lugar – privacidade. O que é privacidade? O que se deve entender por privacidade, tal como protegida pela Constituição? Privacidade, segundo doutrina da Suprema Corte dos Estados Unidos, universalmente aceita, é o direito de estar só; é o direito de ser deixado em paz para, sozinho, tomar as decisões

na esfera da intimidade, e assim evitar que certos aspectos da vida privada cheguem ao conhecimento de terceiros, tais como confidências, hábitos pessoais, relações familiares, vida amorosa, saúde física ou mental, etc. É um direito de conteúdo negativo, dizem os autores, porque veda a exposição de elementos particulares da esfera reservada de seu titular a conhecimento de terceiros. Na belíssima e precisa lição de JJ Calmom de Passos, “A privacidade é o refúgio da dignidade pessoal, o núcleo inexplorável do indivíduo, pelo que somente ele, e exclusivamente ele, pode autorizar sua desprivatização. E esta regra não comporta exceções. Tudo que é informado torna-se público, deixa de ser íntimo ou privado, de onde se conclui que, nessa área, permitir a informação é eliminar a privacidade, sacrificar, irremediavelmente, o direito à intimidade”. (Rev. For. Nº 324/p.61-67). Em suma, sem privacidade não há dignidade. É isso que a doutrina universal tem entendido por privacidade; é isso que a Constituição considera inviolável, sob qualquer pretexto. Agora, se dermos a isso outro conceito, se chamarmos vaca de cavalo, de nada adiantará a proteção constitucional. Conceito de liberdade de expressão Segundo conceito: liberdade de expressão, garantida pelo inciso IX, do art.5º da Constituição. O que se deve entender por liberdade de expressão? É o direito de expor, livremente, 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31


uma opinião, um pensamento, uma idéia, seja ela política, religiosa, artística, filosófica ou científica. A liberdade de expressão nada tem a ver com fatos, com acontecimentos ou com dados ocorridos. Tudo se passa no mundo das idéias, sem qualquer compromisso com a veracidade e a imparcialidade. Por liberdade de expressão, dizem os autores, entende-se que qualquer pessoa tem o direito de expor, livremente, suas idéias, seus pensamentos, suas convicções, respeitada, a toda evidência, a inviolabilidade da privacidade de outrem. Não se pode dizer o que quiser sobre a vida privada de outrem porque a própria Constituição não o permite. Conceito de liberdade de informação Terceiro conceito: liberdade de comunicação ou de informação, garantido no inciso IX, do art. 5º da Constituição Federal. O que se deve entender por liberdade de comunicação ou de informação? É o direito de informar e de receber, livremente, informações, sobre fatos, acontecimentos, dados objetivamente apurados. Não deve ser confundida com a liberdade de expressão, porque aquela, como vimos, diz respeito a idéias, opiniões, sem

pessoal e para que possa elaborar sua percepção sobre o mesmo fato, de modo a formar sua convicção sem qualquer interferência (Grandinetti, ob.cit. p.25). Vejamos o que diz um de nossos maiores constitucionalistas, o Prof. José Afonso da Silva, sobre o tema: “A liberdade de informação não é simplesmente a liberdade do dono da empresa jornalística ou do jornalista. A liberdade destes é reflexa no sentido de que ela só existe e se justifica na medida do direito dos indivíduos a uma informação correta e imparcial. A liberdade dominante é a de ser informado, a de ter acesso às fontes de informação, a de obtê-la. O dono da empresa e o jornalista têm um direito fundamental de exercer sua atividade, sua missão, mais especialmente, têm um dever. Reconhece-se-lhes o direito de informar à coletividade de tais acontecimentos e idéias, objetivamente, sem alterar-lhes a verdade ou esvaziar-lhe o sentido original, do contrário, se terá não informação, mas deformação.” (in: “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros, São Paulo, 16ª edição, 1999, p. 250). Resulta do exposto que a Liberdade de Informação, em suas duas vias – direito de informar e direito de ser informado

“A liberdade de expressão nada tem a ver com fatos, com acontecimentos ou com dados ocorridos. Tudo se passa no mundo das idéias, sem qualquer compromisso com a veracidade e A imparcialidade.” compromisso com a verdade e a imparcialidade. Quem divulga uma informação, dizem os autores, divulga a existência de um fato, a ocorrência de um acontecimento, de um trecho da realidade, dados objetivamente apurados, por isso está vinculado à veracidade e à imparcialidade. Em suma, quem divulga um fato fica responsável pela demonstração de sua existência objetiva, despida de qualquer apreciação pessoal.(Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, Direito de Informação e Liberdade de Expressão, Renovar, p.24/25). As duas vertentes da liberdade de informação É importante ressaltar que a liberdade de informação tem duas vertentes. Divide-se em direito de informar e direito de ser informado. O direito de informar é dos órgãos de imprensa, que está também contemplado no art. 220 e § 1º da Constituição. O direito à informação (ou de ser informado) é do cidadão, um direito difuso de que são titulares todos os destinatários da informação. Por isso quem informa tem compromisso com a verdade. O recebedor da informação (o cidadão) necessita do fato objetivamente ocorrido para estabelecer sua cognição 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

– não é plena, absoluta, irrestrita. Sua primeira limitação é a verdade. E a verdade é como um manto sem costura, não tem adjetivos. Quem informa tem, primeiramente, compromisso com os fatos tal como ocorreram, compromisso com o fato, e não com sua versão. O fato e a versão – distinção Aqui se torna importante fazer a distinção entre o fato e a versão. Na verdade, uma coisa é o fato e outra bem diferente é a versão. Fato é o acontecimento, tal como ocorreu; relato objetivo de um trecho da realidade despido de qualquer apreciação pessoal. Versão é a interpretação do fato; é a visão ou valoração do fato feita por aquele que supostamente o relata. O exemplo de Péricles, um dos maiores estadistas da Grécia, bem ilustra a diferença entre o fato e a versão. O fato: Péricles ordenou o cerco de Samos e as prostitutas de Atenas seguiram as tropas. Como o cerco foi demorado, as prostitutas ganharam muito dinheiro servindo os soldados. Na volta a Atenas, presentearam Péricles com uma alta soma em dinheiro. Esse fato, explorado politicamente, deu ensejo a três


Pathernon

Péricles

“O momento que vivenciamos é altamente preocupante porque o desrespeito à privacidade chegou a nível intolerável. Relembra os tempos da antiga Roma em que alguém tinha que ser lançado às feras para satisfazer a multidão no Coliseu.” versões diferentes. Primeira: Péricles e as prostitutas combinaram tudo antes, inclusive o valor do presente. Péricles ordenou o cerco de Samos só para levar vantagem. Conclusão: Péricles era um calhorda. Segunda: o cerco de Samos era necessário, o sítio longo era imprevisível, mas Péricles aproveitou a oportunidade para ganhar dinheiro. Conclusão: Péricles deixou-se corromper. Terceira versão: Péricles determinou o cerco de Samos por razões de Estado, e, quando soube da atividade das prostitutas, não lhe cabia suspender o cerco nem se dedicar a reprimir a prostituição. As razões de Estado de prosseguir com o cerco eram maiores. Ao aceitar, posteriormente, um presente das prostitutas de Atenas, apenas revelou-se um liberal, um pragmático. Perceberam a diferença entre o fato e a versão? O compromisso do direito de informar é com o fato, tal como ocorreu, e não com a versão. Ao dar sua versão sobre o fato, aquele que supostamente o relata já começa a chamar a vaca de cavalo. Mesmo no chamado jornalismo investigativo, há o dever de investigar a fonte e a veracidade da informação, caso

contrário, os veículos de divulgação nunca teriam qualquer responsabilidade sobre o que informam. Restrição à liberdade de informação A segunda restrição à liberdade de Informação está na própria Constituição, em seu art.220 e § 1º. O Ministro Gilmar Ferreira Mendes, um dos maiores valores de nossa Suprema Corte (STF), assim se pronunciou sobre esse dispositivo: “Não é verdade que o Constituinte concebeu a liberdade de expressão como direito absoluto, insuscetível de restrição, seja pelo Judiciário, seja pelo Legislativo. Já a fórmula constante do art. 220 da Constituição explicita que a manifestação de pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. É fácil ver, pois, que o texto constitucional não excluiu a possibilidade de que se introduzissem limitações à liberdade de expressão e de comunicação, estabelecendo, expressamente, que o exercício dessas liberdades haveria de 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


se fazer com observância do disposto na Constituição. Não poderia ser outra a orientação do Constituinte, pois, do contrário, outros valores, igualmente relevantes, quedariam esvaziados diante de um direito avassalador, absoluto e insuscetível de restrição. Mais expressiva, ainda, parece ser, no que tange à liberdade de informação jornalística, a cláusula contida no art. 220, § 1º, segundo o qual nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. Como se vê, a formulação aparentemente negativa contém, em verdade, uma autorização para o legislador disciplinar o exercício da liberdade de imprensa, tendo em vista, sobretudo, a proibição do anonimato, a outorga do direito de resposta e a inviolabilidade da intimidade privada, da honra e da imagem das pessoas. Do contrário, não haveria razão para que se mencionassem expressamente esses princípios como limites para o exercício da liberdade de imprensa. Tem-se, pois, aqui expressa a reserva legal qualificada, que autoriza o estabelecimento de restrição à liberdade de imprensa com vistas a preservar outros direitos individuais, não menos significativos como os direitos da personalidade em geral.” (Colisão dos Direitos Fundamentais: Liberdade de Expressão e Comunicação e Direito à Honra e à Imagem. Informativo Consulex, Brasília, ano VII, nº 43, out/1993, p.1.150). É preciso maior clareza e objetividade? A própria Constituição estabelece, expressamente, restrição à liberdade de informação. A inviolabilidade da privacidade é o principal. Sequer é necessário recorrer ao critério da ponderação de princípios para resolver eventual conflito com a inviolabilidade da privacidade. O que não se pode é chamar a vaca de cavalo para desconsiderar-se os limites estabelecidos pela própria Constituição e praticar verdadeiro assassinato moral das pessoas. A privacidade do homem público ou dotado de notoriedade Temos, por derradeiro, a questão da privacidade das pessoas que exercem vida pública ou que são dotadas de notoriedade. Essas pessoas também estão protegidas pela inviolabilidade da privacidade? Essa é a questão. Fala-se hoje nos chamados direito à informação ampla e direito à história para justificar a revelação de fatos da vida privada do homem público, independentemente de sua anuência. Sustenta-se que nesse caso haveria redução espontânea dos limites da privacidade. Enfim, há uma perversão, um mau viés, uma grave distorção profissional mais ou menos generalizada, segundo a qual a vida de um homem público ou de reputação, em qualquer dos seus aspectos, não lhe pertence. Vejam o exemplo recente do 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

cantor Roberto Carlos. Alguém escreveu um livro “Roberto Carlos em detalhes”, sem o consentimento do cantor, no qual relata tudo de sua vida privada. Pode isso à luz da Constituição? E ainda protesta violentamente, com os aplausos de muitos (é o circo de Roma), quando a Justiça proíbe a comercialização do livro. Também com relação às essas pessoas públicas e de notoriedade, persiste a garantia constitucional da inviolabilidade da vida privada. É preciso apenas estabelecer os limites do que é público e do que é privado. De acordo com a doutrina da Suprema Corte Americana, universalmente aceita, a vida das pessoas públicas ou dotadas de notoriedade compreende um aspecto voltado para o exterior e outro voltado para o interior. A vida exterior, que envolve a pessoa nas relações sociais e nas atividades públicas, pode ser objeto das pesquisas e das divulgações de terceiros, porque é pública. A vida interior, todavia, que se debruça sobre fatos íntimos, hábitos pessoais, vida familiar, relações afetivas, de amizade etc, integra o conceito de vida privada, inviolável nos termos da Constituição. O jardim e a praça Nelson Saldanha, em seu livro “O jardim e a praça”, utilizou-se de uma bela imagem para examinar o lado público e o lado privado da vida social. A praça é uma parte da cidade, à qual todos têm acesso. As pessoas passam ou passeiam na praça, e até pisam na grama, embora proibido. O jardim é uma parte da casa, ao qual só têm acesso pessoas da família, os amigos. Ali as plantas e flores são cultivadas e regadas com carinho, e não podem ser pisoteadas por ninguém. A praça representaria o espaço político, artístico etc, o cenário da vida publicável. O jardim representaria o espaço privado, o cenário da vida preservado pela privacidade. Os dois espaços lançariam o homem em duas dimensões do viver, entre a vida consigo mesmo e com a família, de um lado, e a vida com todos, de outro. Feita essa distinção, é inquestionável que o homem público e as pessoas dotadas de notoriedade estão também cobertas pela inviolabilidade da sua vida interior, tão bem figurada pelo jardim na feliz imagem de Nelson Saldanha. O problema consistirá, na vida prática, no caso concreto, em se estabelecer o que é praça e o que é jardim. Uma vez mais, tudo se resume a uma questão de conceito. Violação da privacidade – o mais grave dano moral Resulta do exposto que nenhum direito é absoluto e ilimitado; todos devem se compatibilizar com o princípio da dignidade da pessoa humana, do qual a inviolabilidade da privacidade é seu último refúgio. Sem privacidade não haverá dignidade. Em hipótese alguma o homem pode ser utilizado como simples meio para a consecução de uma finalidade, ainda que justa. A inviolabilidade da privacidade, consagrada no inciso X do art. 5º da Constituição Federal, é o limite


extremo da liberdade de expressão e de informação. O abuso porventura ocorrido no exercício do direito de expressão ou de informação é passível de apreciação pelo Poder Judiciário, preventivo ou repressivo, e, neste último caso, com a conseqüente responsabilidade civil e penal dos seus autores. A violação da privacidade é o mais grave dano moral que se possa praticar, porque dano moral, em sentido estrito, é violação da dignidade. Tenho repetido inúmeras vezes que dano moral em sentido lato é agressão a qualquer direito da personalidade, tanto no aspecto objetivo como no subjetivo. Mas dano moral, em sentido estrito, é agressão à dignidade de uma pessoa e esta, por sua vez, é a base de todos os valores morais, a essência de todos os direitos personalíssimos. Os direitos à honra, ao nome, à intimidade, à privacidade e à liberdade estão englobados no direito à dignidade, verdadeiro núcleo fundamental de cada preceito constitucional relativo aos direitos da pessoa humana. Atingir a dignidade de uma pessoa através da violação da sua privacidade é fazer linchamento moral porque transforma, em poucos momentos, a honorabilidade em vergonha, a exaltação em humilhação, a euforia em depressão, a alegria em melancolia profunda. Por fim, a reputação em desprezo, isolamento e esquecimento. É a verdadeira dor da alma. O momento que vivenciamos é altamente preocupante porque o desrespeito à privacidade chegou a nível intolerável. Relembra os tempos da antiga Roma em que alguém tinha que ser lançado às feras para satisfazer a multidão no Coliseu. Relembra os dias da Revolução Francesa quando havia a lista dos guilhonitáveis. Relembra, igualmente, os tempos mais duros do autoritarismo brasileiro quando havia a lista dos cassáveis. Hoje temos a lista do execráveis, própria de um Estado Policial que adota métodos fascistas, como bem o qualificou o Ministro Gilmar Ferreira Mendes. Ele disse (Jornal do Comércio de 24/05/07, p.A-8) que é uma Canalhice vazar informação de um inquérito que está sob sigilo ou segredo de justiça. E que isso está sendo feito como “estratégia de marketing de valorizar o trabalho policial e depreciar o da Justiça.” Afirmou ainda que “existe uma tentativa de intimidar a Justiça, eis que, com isso, os cidadãos ficam inseguros.” Na verdade, quando se atemoriza o juiz e, com ele, o próprio Judiciário, temos instalado o terrorismo policial e da imprensa. Estou me dirigindo a uma platéia de profissionais do direito e nós não podemos concordar com esse terrorismo. Somos a última trincheira em defesa dos direitos do cidadão e, por isso, em lugar de aplaudir o espetáculo pirotécnico policial e da mídia, temos que lutar pelo respeito das garantias constitucionais estabelecidas em defesa do cidadão e da cidadania.

“Os direitos à honra, ao nome, à intimidade, à privacidade e à liberdade estão englobados no direito à dignidade, verdadeiro núcleo fundamental de cada preceito constitucional relativo aos direitos da pessoa humana.”

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FOTO: STJ

Por uma

“limpeza”

no judiciário Giselle Souza Jornal do Commercio

Ministro César Asfor Rocha

Com a posse dos novos integrantes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no dia 15 de junho, assumiu o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Francisco César Asfor Rocha, o cargo de corregedor nacional de Justiça. Entre os muitos desafios que enfrentará, está o de extirpar do Judiciário os magistrados envolvidos em irregularidades, seja na atuação jurisdicional, seja na conduta pessoal. “Em tempos em que a imagem do Poder Judiciário é posta à prova, por denúncias acerca de juízes que venderiam sentenças, a medida se faz necessária.”, afirma Asfor Rocha. Por essa razão, ele pretende dar seguimento ao levantamento sobre o número de processos criminais envolvendo magistrados, iniciado na gestão passada. JORNAL DO COMMERCIO – Quais seus planos para a Corregedoria Nacional de Justiça? CÉSAR ASFOR ROCHA – Primeiro, identificar plenamente quais são os processos que envolvem os magistrados e que estão no CNJ. Temos dois tipos de corregedoria: a que funciona no CNJ e outras instaladas no âmbito dos tribunais estaduais e regionais do Trabalho e Federal. Lá correm também processos disciplinares. Então, (o objetivo é) identificar esses processos que estão no CNJ e nos tribunais, principalmente, aqueles considerados de maior gravidade. O ministro Pádua Ribeiro (corregedor anterior) fez esse apanhado, mas o trabalho ainda não está completo, pois alguns tribunais não passaram as informações. Tão logo a tenhamos, faremos o diagnóstico. JC – No dia 14 de junho, o Tribunal Regional Federal – 2ª Região decidiu não afastar o desembargador Carreira Alvim, um dos investigados por envolvimento com a máfia dos caça-níqueis. O senhor não acha que, para casos como esse, a resposta do Judiciário deveria ser mais efetiva? CAR – Estranho o TRF – 2a Região não ter, sequer, aberto procedimento administrativo, depois que foram noticiados fatos graves atribuídos a desembargadores. Com relação a tê-lo ou não afastado, pelo que sei, a corte entendeu que, como há um procedimento administrativo no CNJ, o exame desse fato devesse ser feito pelo órgão. E há esse processo realmente, no qual me debruçarei, além de outros que reclamam maior atenção. 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

JC – Qual sua expectativa em relação à duração do processo envolvendo a máfia dos caça-níqueis? CAR – Inicialmente, ele foi distribuído para o ministro Vantuil Abdala, porque o ministro Pádua Ribeiro se deu por impedido. Não sei dizer ainda quais foram as providências adotadas pelo antigo relator. Vou me inteirar, saber em que pé esse processo se encontra e vou adotar as medidas que forem necessárias. JC – O senhor não acha que a penalidade aplicada aos magistrados infratores deveria ser maior? CAR – Sou favorável a uma modificação, a ser feita pelo Congresso, para que o magistrado, cujo desvio de conduta for reconhecido, sofra pena que importe em perda do cargo, sem a possibilidade de receber qualquer benefício, como hoje ocorre. Atualmente, no que diz respeito às penas disciplinares, o máximo que pode acontecer ao magistrado é ser aposentado compulsoriamente. Com isso, ele leva o benefício de receber seus vencimentos integrais, se já tiver alcançado o tempo de serviço, ou proporcionais, se ainda não tiver alcançado o tempo de aposentadoria. Acho que essa regra precisa ser modificada, porque não é compreensível que uma pessoa cuja conduta é desvirtuada, a tal ponto de comprometer a imagem de todo o Judiciário, não possa ser expulsa da magistratura e ainda venha a receber qualquer tipo de pensão.


JC – O que a Corregedoria Nacional de Justiça pode fazer para tentar inibir a corrupção no Judiciário? CAR – Primeiro, apressar o processamento e o julgamento dos feitos administrativos que estão no âmbito da Corregedoria Nacional de Justiça. Segundo, acompanhar o desenvolvimento desses processos disciplinares que estão em curso nas corregedorias estaduais e regionais. Como disse, depois de fazermos um diagnóstico sobre os processos e sobre o quão grave são, vamos contatar os tribunais para que lhes sejam dada prioridade (na tramitação). Vamos identificar também os processos de natureza criminal que envolvem magistrados e que não correm no âmbito das corregedorias, e sim nos próprios tribunais estaduais e regionais. Assim, poderemos pedir às cortes que dêem prioridade ao julgamento, embora saibamos que, em muitos casos, a tramitação é lenta, uma vez que o Código de Processo Penal impõe certas formalidades que dem ser obedecidas. Muitas vezes, impõe o retardamento, sob pena de, posteriormente, poder ser declarada nulidade do processo, o que traria um prejuízo ainda maior, pois a sensação de impunidade se tornaria ainda mais evidente, viria ainda com mais intensidade. JC – No discurso de posse, o senhor anunciou que promoverá um censo no Judiciário. Qual o objetivo da medida? CAR – O censo visa à realização de um diagnóstico geral do Poder Judiciário: sobre o número de juízes, sobre as comarcas que estão ocupadas, sobre os juízes que residem nelas e sobre os desembargadores estaduais, do trabalho e federal que residem na cidade em que fica a sede de seus tribunais. Isso nos ajudará a acompanhar, inclusive, a duração dos processos (em poder deles). Será um censo do qual poderemos extrair um retrato verdadeiro do Poder Judiciário brasileiro que hoje não temos de forma completa. Com isso, poderemos acompanhar com maior eficácia, no âmbito da Corregedoria, o trabalho de cada magistrado, e também poderá haver melhores elementos para estabelecer estratégias de planejamento e de gestão para o Judiciário brasileiro. Hoje, cada tribunal tem atuado de forma isolada. Não há unidade no trabalho dessas cortes. Ainda que com respeito à autonomia deles, pelo menos linhas gerais de atuação poderão ser estabelecidas pelo Conselho. E isso só poderá ocorrer depois desse diagnóstico completo do Poder Judiciário. JC – O senhor acha que dá para fazer isso em dois anos? CAR – Em muito menos tempo. A idéia é que a Corregedoria Nacional de Justiça possa acompanhar a

atividade de cada magistrado, para saber como cada um está agindo. Com isso, daremos maior transparência ao Judiciário. JC – O que será feito em relação aos cartórios? CAR – Hoje, se perguntar quantos cartórios existem no Brasil, ninguém saberá responder. Quantos foram fiscalizados, também. Assim como não saberemos responder qual é a fonte de receitas deles. Então, precisamos fazer um diagnóstico para estabelecer linhas de comportamento gerais e também para possibilitar às corregedorias um maior controle sobre a atividade cartorária. JC – Quais seus planos no tocante à morosidade da Justiça? CAR – Identificar os casos em que há demora na prestação jurisdicional. Muitas vezes, a demora decorre da própria natureza do processo; há regras que precisam ser obedecidas, sob pena de ser declarado nulo. Muitas vezes, pode até ser por culpa do magistrado, que não reside na comarca e que, portanto, trabalha pouco em sua vara. É preciso estimular o processo virtual e a prática de outros meios de solução de conflitos, como a conciliação, a mediação e a arbitragem, que ainda são pouco explorados no Brasil. Então, são esses os mecanismos dos quais poderemos lançar mão, a fim de possibilitar uma solução ou, ao menos, diminuir a morosi-dade. Como também estabelecer critérios para que as questões de massa sejam resolvidas de uma forma mais simplificada. Identificando todas as questões em andamento, poderemos sugerir a adoção de algumas medidas. JC – O senhor acha que é possível combater a morosidade apenas com soluções administrativas? CAR – Acho que pelo trabalho dos corregedores em questões mais pontuais e por mudança legislativa. É necessária uma mudança no sistema recursal, sem dúvida alguma. Muitos processos poderiam, por sua simplicidade, ser solucionados na primeira instância. Outros poderiam ir para a segunda instância e ali terminarem. E só alguns poucos deveriam ir para as instâncias especiais. Então, há uma necessidade de haver uma mudança na legislação processual. Apenas para questões pontuais os corregedores atuariam. JC – Como será o controle dos processos mais antigos e dos prazos processuais? CAR – Vou recomendar aos tribunais que dêem preferência ao julgamento dos processos mais antigos. De 100 em 100, vamos conseguir que os processos sejam julgados. 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


INTERVENÇÃO AMERICANA: ATO DE GESTÃO OU ATO DE IMPÉRIO? Daniel Renout da Cunha Advogado Especialista em Direito Internacional

I

n limine, os doutrinadores balizam a origem da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro na idéia de que o Rei não erra, conforme princípio da idade média, par in parem non habet imperium (entre iguais não há império), e registram que a imunidade absoluta de jurisdição passou a ser relativa, quando a jurisprudência italiana reconheceu a diferença entre os atos de império e os atos de gestão. Sobre esta diferença, o professor Guido Fernandes Silva Soares alerta para sua eventual imprecisão conceitual: “Quanto às imunidades de jurisdição do Estado estrangeiro, persistia nos séculos anteriores a concepção de que um Estado não tem jurisdição sobre outro Estado, em virtude de uma regra de direito medieval, de que par in parem non habet judiciun (inexiste jurisdição entre os pares) era o sistema que passou a ser referido como o da imunidade absoluta do Estado. (...) Pouco a pouco, no final do século XIX, a jurisprudência dos tribunais da Itália, em pleitos que envolviam Estados estrangeiros, foram (sic) forjando uma sutil distinção entre, de um lado, atos que o Estado estrangeiro pratica em sua qualidade de poder público (atti di impero), nos quais se apresentava como ente político e, de outro, os atti di gestione, em que o mesmo se apresentava como um ente morale (...) considerada uma distinção sem muita precisão lógica...” (Curso de Direito Internacional Público, Ed. Atlas 276/277). Antes de esmiuçar a jurisprudência italiana, ab origine, a distinção entre atos de império e atos de gestão é coerente com o modelo constitucional republicano. A experiência contemporânea na prática constitucional republicana surgiu com a Revolução Americana em 1787, onde o

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presidente exerce a chefia do Estado e a chefia do Governo. Esta chefia diferenciada, por si, justifica de forma lógica a distinção assumida nos tribunais italianos (atti de impero X atti di gestione). E vale registrar que, em 1952, os EEUU reconheceram a imunidade relativa mediante aTate Letter . A visão constitucionalista do tema ensina que o pensamento democrático moderno utiliza conceitos originados da Roma republicana na equação de suas idéias. Institutos que podem ser encontrados no Leviatã de Thomas Hobbes (1651), que dá as bases do contrato social de Jean-Jacques Rousseau, ou no L’esprit des Lois de Montesquieu (1748), que formula princípios, antes defendidos por John Locke, da liberdade política ser garantida pela separação e independência de 03 poderes fundamentais do Estado: legislativo, executivo e judiciário. Estes filósofos inspiraram a Revolução Americana. Neste diapasão constitucional, além da coerência com o modelo republicano, a distinção estabelecida em foros italianos (com a sutileza de berço da civilização romana) guarda na origem dos termos latinos, precisão técnica e jurídica apropriada. Explica ainda que o princípio par in parem non habet imperium (entre iguais não há império) guarda duas noções básicas da experiência romana republicana: os membros do senatus de Roma eram chamados pares conscriptis e entre eles era eleito um magistrado curul (chefe do executivo) dotado de imperium para chefiar o Estado. Se Imperium romanum deve ser entendido como área de dominação e de soberania do Estado romano (sob legislação, jurisdição e administração), aprendemos com Fustel de Coulanges, em Cidade Antiga, a conotação peculiar do


Da esquerda: Presidente João Goulart e o Embaixador Lincoln Gordon

instituto do imperium: “Quando qualquer povo se submetia a Roma, não entrava para o Estado romano in civitate, mas só (sic) ficava na dominação romana, in imperio.” E quando Roma atribuía uma província a um magistrado curul e lhe conferia imperium: “Isto significava que renunciava em favor desse homem, por tempo determinado, à soberania que possuía sobre esse país (...) Desde então, este cidadão sintetizava na sua pessoa todos os direitos da República.” Ou seja, o governador se tornava o chefe de Estado da província. Fixava a importância do imposto, exercia o poder militar, administrava justiça. Suas relações com vassalos ou aliados eram regulados pelos seus próprios Edictos, uma vez que sua investidura incluía o poder de legislar. “Quando presidia um tribunal, julgava apenas segundo sua vontade, nenhuma lei podia impor-se-lhe, nem a lei provincial, visto que ele era romano, nem a lei romana, pois que era julgador de provincianos. Para existir leis entre esse romano e os administrados, era preciso que o próprio as tivesse feito, porque só ele podia obrigar-se.” Reconhecer o molde jurídico dos acta jure imperium implica, principalmente, na compreensão do significado da investidura, atribuições e auctoritas da Chefia de Estado outorgada por lex curiata mediante consulta do senado. O imperium conferia a seu detentor a legitimidade de representar os interesses da Res Publica. O cônsul sênior era o chefe do Estado e o governador dotado de imperium estava impedido de adentrar o pomerium, pois tal como um rei estrangeiro tinha status de Chefe de Estado. Então, os acta jure imperium podem ser entendidos como

atos legitimados pela investidura no exercício de Mandato de Chefia por quem detém a soberania (cuja característica é a capacidade inata de legislar) e realizados pelo Estado como ente político, em respeito aos limites impostos pela legislação e/ou assumidos pelo Estado. Dessa forma, demonstra-se coerência compreender que a imunidade absoluta de jurisdição do Estado estrangeiro na época dos monarcas se dava pelo fato destes representarem o Estado, reunindo em si os poderes de legislar, julgar e gerir. O conceito permanece o mesmo, mas um presidente não é um monarca, não possui a capacidade de legislar e nem a atribuição de julgar. O imperium no qual está investido exige legitimidade, investidura e moldura legal específica para qualificar seus atos entre os acta jure imperium ou como atos de gestão. Ambos sujeitos à Legalidade. Um exemplo recente de intervenção direta nos assuntos internos de outro estado, que mesmo sem respaldo do Conselho de Segurança da ONU, pode ser classificado como acta jure imperium é a invasão do Iraque. A iniciativa do Governo Bush foi aprovada pelo senado que controla e supervisiona, constitucionalmente, a política externa e teve o apoio de sua população (opinião pública). A política externa da república romana estava sob controle do senatus. Mesmo os governadores das províncias cujos atos eram praticados sob imperium, dependiam da ratificação posterior de seu governo pelo senatus. Na república norte-americana, o senado federal possui a mesma prerrogativa. No caso da intervenção no Brasil, falta imperium aos atos ilícitos da CIA para patrocinar a derrocada de uma democracia. 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39


“O golpe militar contou com amplos recursos, tanto de pessoal como de financiamentos que, atualizados, mostramse bilionários.”

Estão ausentes: a legitimidade de representar a vontade da sociedade (opinião pública) e do Estado, pois carece do caráter da soberania mediante aprovação (atribuição/investidura/mandato) pelo senado norte-americano (legislativo); hipótese afastada pela falta de legalidade, uma vez que a subversão, in casu, viola tratado protegido por cláusula da constituição americana. A ausência destes atributos afasta a investidura legítima e legal dos atos da CIA, própria e adequada aos acta jure imperium. No caso do patrocínio ao golpe militar de 1964, os atos subversivos não podem ser legitimados porque contrariam cláusulas de tratado internacional (Carta da OEA) sob proteção da Constituição dos EEUU (art.6. n.2). O patrocínio da queda da democracia pela CIA deve ser considerado um ato de gestão e não há justificativa para tratá-los como acta jure imperium por violarem bens jurídicos de natureza pública como a soberania nacional e a ordem jurídica interna. Os EEUU podem modificar esta percepção, recusando uma citação com um incidente de imunidade para convencer as autoridades judiciárias brasileiras que o patrocínio da subversão da democracia pela CIA se insere no âmbito dos acta jure imperium; mas, neste caso, estará admitindo que cometeu um ato de agressão, conforme está previsto no artigo XXIV da Carta da OEA. De fato, a documentação secreta do governo norte-americano sobre o patrocínio da CIA – Central Intelligence Agency – ao golpe militar de 1964, começou a ser divulgada 30 anos depois. As informações fazem uma revisão histórica e já revelam o inestimável serviço ao país prestado pelo presidente João Goulart ao recusar o apoio dos militares legalistas para resistir ao golpe, que nos poupou da guerra civil e da cisão territorial diante do poderio do patrono da subversão, a maior potência militar do planeta. Erga omnes, o envio de armamentos e munição por via aérea e de uma frota naval para apoiar o golpe militar pelo governo norte-americano foi reconfirmado, recentemente (19/11/2006), 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

no programa Fantástico da Rede de TV Globo, revelando a descoberta de documentos oficiais norte-americanos acerca do golpe de 1964, pelo Professor Carlos Fico da Faculdade de História da UFRJ. (O Globo, 01/06/2007). Existem dúvidas acerca da extensão da imunidade diplomática aos atos ilícitos praticados pelo embaixador Lincoln Gordon, sob o manto da Convenção de Viena, confessados no ano de 2002, no livro “A Segunda Chance do Brasil, a caminho do primeiro mundo”, pois a subversão obedeceu à política de governo em oposição à política oficial do Serviço de Relações Exteriores norte americano e viola o espírito do tratado. Iter criminis, um feito de tal envergadura não pode ser imputado apenas a este homem e seu relato serve apenas como prova do nexo de responsabilidade do patrocínio da subversão política pela CIA. Daí ficar afastada a hipótese de classificar os atos de subversão como acta jure imperium por força do envolvimento de diplomatas. O golpe militar patrocinado pela CIA e pelo Governo de Lyndon Johnson contou com amplos recursos, tanto de pessoal como de financiamentos que, atualizados, mostram-se bilionários. A subversão da democracia brasileira contou com o apoio de agentes e colaboradores da CIA que eram brasileiros, ocupavam cargos no governo ou no Estado, ou ainda possuíam um lugar privilegiado na sociedade. Contou com o apoio de quem foi enganado pela propaganda subversiva anticomunista. O golpe militar de 1964 representou um retrocesso institucional da democracia e o dano, na esfera pública, é irreparável. A lente jurídica, entretanto, deve anotar que os EEUU, enquanto Estado, podem ser responsabilizados pelo ressarcimento civil dos prejuízos causados por seus agentes, posto que o dano deva ser considerado como oriundo de atos de gestão. O Governo e a CIA atuaram inconstitucionalmente em oposição aos princípios do Estado de Direito (legitimidade e legalidade), que é a raiz da revolução Americana. Ad referendum.


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Evandro Lins e Silva: um advogado no Supremo e na ABL Murilo Melo Filho Membro da Academia Brasileira de Letras

C

omo advogado, o Acadêmico Evandro Lins e Silva está fazendo muita falta, porque era o proprietário de uma cultura suficientemente esclarecida e sólida para resolver os problemas de natureza regimental, estatutária ou jurídica, que surgiam nos tribunais, no foro e na ABL, quando sempre propunha uma solução pertinente, correta e sensata. Nos tribunais, ele foi sempre a voz do bom senso, que se agigantava no patrocínio de suas causas; no foro, foi a palavra respeitada na defesa dos seus clientes; e, na Academia Brasileira de Letras, foi a opinião acatada na decisão sobre as dúvidas e controvérsias. Na ABL, ocupava a Cadeira nº1, que tem Adelino Fontoura como patrono; Luís Murat, como fundador; e, como sucessores, Afonso Taunay, Ivan Lins e Bernardo Élis, sucedido por Ana Maria Machado. Sua ausência será sempre muito sentida, porque ele era um colega querido, que, ao longo dos 3 anos e meio de sua constante presença na Academia, deu provas cabais de um excelente companheirismo e de um convívio afável e carinhoso. Lutador quixotesco Quanto mais homenagens recebia – e foram muitas as recebidas nos últimos anos – mais se acentuava, em sua conduta, uma atitude de humildade e de modéstia, sobretudo diante dos poderosos, que jamais cortejou. Evandro foi um lutador quixotesco, que somente depois da vitória de Lula, seu candidato à Presidência da República, começava a ver uma luz a iluminar esta nova era para nossa geração. E, ao contrário do que tanto desejava, não mais estava vivo para assistir à posse de seu eleito, mas teve, pelo menos, o prazer de recebê-lo em uma visita de gratidão em 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

sua residência, e de tê-lo como companheiro a empurrar seu esquife até a última morada, onde passou a repousar, no Mausoléu da Academia, no Cemitério de São João Batista. Ele viveu uma existência muito coerente, fiel a seu ideário socialista, sempre voltada para a defesa dos direitos humanos e dos milhares de perseguidos políticos. Advogou, não raro sem honorários, perante o Tribunal de Segurança Nacional e o Tribunal do Júri, onde sua atuação, como “O Criminalista do Século”, deixou marcas indeléveis do grande jurista que realmente era. Foi assim que defendeu os acadêmicos Carlos Heitor Cony e Josué Montello, os jornalistas Helio Fernandes e Marcio Moreira Alves, os Governadores Miguel Arraes e Mauro Borges, o Deputado Seixas Dória, os escritores Caio Prado Júnior e Ênio Silveira, e o ruralista José Rainha Júnior. Maiores virtudes De suas funções públicas – como Procurador-Geral da República, como Chefe do Gabinete Civil da Presidência, como Ministro das Relações Exteriores e do Supremo Tribunal Federal – saiu mais pobre do que quando nelas entrara. Dizia-me: “Murilo, no dia em que o Presidente João Goulart me levou para o Governo, em Brasília, eu tinha um chevrolet importado; quando voltei para o Rio, tinha um fusquinha nacional.” Até seus últimos instantes, ainda tinha que trabalhar para viver. Era o que fazia religiosamente, todos os dias, convicto de que o ramo criminal do Direito não dá riqueza a nenhum advogado. Na véspera de morrer, e sempre como advogado, deixou com seus filhos as razões de uma apelação a ser interposta no dia seguinte.


Foto: OAB – RJ

“Morreu pobre em uma lição de honradez, uma mercadoria que, infelizmente, hoje anda cada vez mais escassa na paisagem brasileira, tão marcada por tantas CPIs e por tantas corrupções.” Ministro Evandro Lins e Silva

Morreu pobre em uma lição de honradez, uma mercadoria que, infelizmente, hoje anda cada vez mais escassa na paisagem brasileira, tão marcada por tantas CPIs e por tantas corrupções. Alegria de viver Tinha uma especial paixão pela vida, que lhe transcorreu bravamente. Jovem de espírito e de cabeça, “um jovem metido a besta e a velho”, como ele próprio se definia em seus 90 anos, Evandro possuía uma extraordinária disposição de trabalhar, uma inexcedível vocação de defender os injustiçados, uma enorme alegria de viver e um permanente sorriso. Quando assinou o requerimento do impeachment contra Fernando Collor, transformando-se em seu principal acusador, declarou que ali representava o papel de “Advogado do Brasil”. E acrescentou: “Deus foi muito generoso comigo quando me deu essa chance de defender meu País.” Semanalmente, todos os domingos, cruzava comigo na Avenida Atlântica, ao meio-dia, sob um sol causticante, fazendo seu cooper habitual. E explicava: “Meu caro Murilo, estou aqui, na Praia de Copacabana, bem no meio da festa.” Evandro Cavalcanti Lins e Silva nasceu na cidade piauiense de Parnaíba, a 18 de janeiro de 1912, com curso primário em uma escola pública da cidade maranhense de Itapicuru, onde seu pai era juiz. Formou-se na Faculdade Nacional de Direito, em turma paraninfada pelo Prof. Afrânio Peixoto, que, nessa ocasião, já era membro da Academia Brasileira de Letras e havia sido seu presidente. Trabalhou em vários jornais, especializou-se em Direito Penal e brilhou em desempenhos inesquecíveis no Tribunal do Júri. Escreveu os livros “A defesa tem a palavra”, “Arca de

guardados” e “O salão dos passos perdidos”, nos quais reconstitui fatos marcantes de sua vida como advogado profissional e, em particular, alguns julgamentos, como o de Doca Street e Ângela Diniz, que o consagrou como um dos maiores criminalistas brasileiros. Morreu no esplendor Morreu no esplendor de sua atividade física e intelectual, sempre com planos e projetos para o futuro, inclusive com um livro sobre o advogado Evaristo de Moraes, que deixou inacabado. E morreu em conseqüência de um tombo sofrido no Aeroporto Santos Dumont, justamente quando regressava de Brasília, onde fora alvo de merecidas homenagens, na posse dada pelo Presidente Fernando Henrique, como Conselheiro da República. Ele foi um homem a marcar toda a sua existência por uma coragem no enfrentamento do regime militar, que o aposentou de seu cargo de Ministro do Supremo Tribunal, cassando-lhe todas as condecorações até então concedidas, e que, justamente poucos dias antes de sua morte, lhe foram devolvidas. Pagando um tributo à fidelidade de seus modelos políticos, pensou em exilar-se, quando os generais de plantão o despiram de sua toga e de sua beca, em represália aos habeas-corpus que ele, corajosamente, concedia a todas as vítimas da repressão e da tortura. Um simples tropeço Um homem de tanta intrepidez cívica acabou morrendo de um simples tropeço, que lhe fraturou o crânio e o retirou da vida, fazendo-o ingressar para sempre na galáxia dos homens de bem, como ele, competentes e honrados. 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


A reALIDADE É MUITO MAIS GRAVE Elizabeth Süssekind Professora da Puc-Rio Chefe do Setor de Pesquisa em Direito da Fundação Casa de Rui Barbosa

E

m razão da gravidade da insegurança pública, a sociedade brasileira tem sido obrigada a olhar com mais atenção as medidas adotadas pelo Estado para seu enfrentamento. Tem começado a constatar que precisa entender melhor o que se passa e o que é possível fazer para superar o desastre já instalado. E decidir qual é seu papel neste momento: esconder-se, enterrar vítimas, lamentar, reagir, colaborar, exigir, participar, organizar... Boa parte das pessoas ainda não entendeu que votar – sim, votar corretamente – para eleger os melhores, os mais sérios e comprometidos candidatos, está à frente das medidas que só à sociedade civil cabe tomar. Influenciar na destinação e utilização dos orçamentos nacional, estadual e municipal para áreas e projetos direta ou subsidiariamente ligados à segurança do público, da qual o país precisa para se desenvolver e da qual o brasileiro precisa para brincar, estudar, trabalhar, produzir, seguir vivendo. Recentemente, a Secretaria Nacional de Segurança Pública apresentou o número de mandados de prisão não cumpridos em todo o país. Mais de meio milhão de pessoas, cujos crimes chegaram à Justiça, e que não foram detidas pelas polícias dos Estados e pela Polícia Federal, estão por aí, por aqui, entre nós. É muito importante a iniciativa da Secretaria no levantamento adequado e em sua exposição oficial. Igualmente importante é cruzar os dados com outras informações sobre o autor, como estrato social, idade, profissão, tipo de 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

crime e valor estimado, no caso de crimes que envolvem dinheiro; unidade da Federação onde ocorreu o crime, data, circunstâncias do fato, entre inúmeras outras variáveis. Entretanto, é preciso acrescentar alguns complicadores ao retrato da tragédia que compartilhamos. Veja-se que a esse milhão de delinqüentes, presos ou não perturbados por mandados judiciais, há de se somar outros: os foragidos de prisões, aproximadamente 15% dos condenados encaminhados à prisão (mais de 60 mil) no país. A corrupção endêmica garante que essa cifra média de fugas se mantenha estável, diferindo segundo estabelecimento, Estado, administração, momento e outros fatores. A inadequação das instalações penitenciárias e do pessoal encarregado da custódia de presos é evidente, e está representada pelo volume da reincidência, também não avaliada cientificamente. Mas a lamentada falência do único e exclusivo modelo prisional adotado no Brasil não tem sido suficiente para que a área seja significativamente desenvolvida, através de parceria com a iniciativa privada, permitindo a efetiva e eficiente prestação do conjunto de serviços prisionais previstos em lei. Portanto, ao somar o número de presos (mais de 400 mil) ao de foragidos (aproximadamente, 60 mil) e ao de não atingidos pelos mandados judiciais (550 mil), passamos do milhão de criminosos detectados pelo sistema estatal. Embora assustador, esse conjunto ainda está incompleto e exige ainda mais preocupação. Deve ser


Arquivo Pessoal

“A segurança do público tem de atingir também espaços privados. A repressão é mais complexa, mas a valorização de um conjunto de medidas preventivas pode trazer bons resultados.”

Dra. Elizabeth Süssekind

acrescido dos autores de crimes desconhecidos do sistema de justiça, e daqueles que, embora detectados, não foram registrados por alguma razão. Representam percentagem muitíssimo superior à criminalidade oficialmente conhecida, ou seja, o tal milhão. Esses crimes compõem a “cifra oculta” da criminalidade, para a qual não há resposta do Estado porque, para todos os efeitos, ele sequer toma conhecimento das ocorrências. São os crimes que não chegam ao conhecimento das polícias porque as vítimas não podem, ou não querem, ou não conseguem registrá-los; ou chegam às polícias, mas elas não têm condições, ou são impedidas de investigar; ou não têm interesse operacional ou político em investigar; ou as investigações são de baixa qualidade e não convencem o Ministério Público, e são arquivadas; ou chegam e desaparecem, de um ou de outro modo. A segurança do público tem de atingir também espaços privados. A repressão é mais complexa, mas a valorização de um conjunto de medidas preventivas pode trazer bons resultados. As vítimas ou potenciais vítimas podem reduzir fortemente a cifra oculta da criminalidade se forem seriamente consideradas no planejamento do Estado. Somente a certeza de recebimento de respeito, proteção, agilidade e eficiência por parte das instituições pode ampliar as denúncias e permitir que o Estado conheça e tente controlar a criminalidade real. Quantos espancadores de mulheres são denunciados às polícias? E quantos desses raros são, efetivamente,

investigados ou presos em flagrante, e encaminhados ao Judiciário? Quantos criminosos submetem familiares às sevícias sexuais do incesto, por anos, protegidos pelos inimagináveis segredos de família? Quantos furtos são “esquecidos”, por falta de fé no resultado de denúncias e na recuperação do que foi furtado? Quantos roubos/assaltos e ações de traficantes de drogas não são denunciados por medo das “conseqüências”? E os seqüestros e outras extorsões, resolvidos sem a participação de especialistas das polícias, e que não constam de qualquer estatística? Crimes econômicos, entre outros que também envolvem autores “importantes”, muitas vezes são objeto de acordos entre cavalheiros e organizações públicas ou privadas; corrupção em todas as suas formas, quilates e origens só são descobertas em meio a outras investigações, quando alguma coisa não ocorre da forma costumeira. Somando-se esses a outros tipos de crime não mencionados, mas que, efetivamente, ocorreram e ocorrem, chegaríamos a um número mais aproximado da situação a que o Brasil está exposto. E teríamos oportunidade de estudar, debater, propor, votar e executar medidas mais próximas e adequadas. O fato é que qualquer estudo sério e amplo revelará que a realidade é muito mais grave do que as parcelas de dados setoriais que, recentemente, têm merecido atenção. O Estado precisa de informações de qualidade, completas, para planejar e tornar eficientes suas respostas. 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


da redação

A

o tomar posse, no cargo de coordenador-geral da Justiça Federal, o ministro Gilson Dipp enfatizou a grandiosidade do papel do Conselho da Justiça Federal na consolidação e preservação da identidade da Justiça Federal. Nesse contexto, considera que, à frente da Coordenação-Geral, seu compromisso é dar seqüência à missão de seus antecessores no sentido de zelar pela uniformização dos procedimentos que têm dado coesão e efetividade à Justiça Federal. Para Dipp, a responsabilidade da Coordenação-Geral foi ampliada pela Emenda Constitucional 45, ao atribuir-lhe também função correicional. “Função que deve ser usada com comedimento e parcimônia, mas com efetividade e, de forma incisiva, quando necessário”, salientou. O presidente do Conselho da Justiça Federal (CJF), também presidente do STJ, ministro Raphael de Barros Monteiro Filho, conduziu a solenidade, realizada no Salão Nobre do STJ. Diversos ministros do STJ, desembargadores e juízes federais, de autoridades do Judiciário, Ministério Público e Advocacia, e servidores do CJF e do STJ, estiveram presentes. “Em face de seu brilhante currículo e tendo em vista o notório apreço que Vossa Excelência nutre pela Justiça Federal, e a experiência administrativa, sabidamente bemsucedida, adquirida na Presidência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, estou certo de que a CoordenaçãoGeral da Justiça Federal será muito bem conduzida no próximo biênio. Saiba Vossa Excelência que tem, desde já, o irrestrito apoio desta Presidência”, afirmou o presidente do CJF e do STJ. O ministro Dipp enfatizou ainda em seu discurso de posse que o CJF deu um grande exemplo para a magistratura brasileira de como um órgão pode centralizar as decisões da Justiça Federal, conferindo a esta instituição celeridade e eficácia. Segundo o novo coordenador-geral, o CJF inspirou, inclusive, a criação de outros órgãos de aprimoramento do Judiciário, como o próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Em seus primórdios, o CJF encontrou resistências. Havia o temor de que os TRFs sofressem uma intervenção em sua autonomia. O tempo mostrou que isso não aconteceu, e hoje temos a unidade sistêmica da Justiça Federal”, relembrou. O ministro Fernando Gonçalves, ao qual o ministro Dipp sucede na Coordenação-Geral da Justiça Federal, manifestou sua satisfação por ter atuado junto ao CJF. “Deixo o cargo 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

Ministro Gilson Dipp do STJ

com a consciência tranqüila do dever cumprido e com a certeza de que o ministro Gilson Dipp saberá direcionar a Coordenação-Geral para caminhos acertados. Este é um trabalho que não cessa”, frisou o ministro Gonçalves, destacando a importância da Coordenação-Geral na conduta eficaz e melhoria constante da Justiça Federal. O ministro Barros Monteiro agradeceu ao ministro Fernando Gonçalves, pela sua “contribuição inestimável para o fortalecimento dos sistemas administrativos da Justiça Federal”. A Coordenação-Geral da Justiça Federal funciona junto ao Conselho, e o ministro do STJ titular do cargo é seu membro efetivo mais antigo no colegiado. Dentre outras atribuições, o coordenador-geral tem a incumbência de dirigir o Centro de Estudos Judiciários, presidir a Turma Nacional de Uniformização da Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais, o Fórum Permanente de CorregedoresGerais da Justiça Federal e a Comissão Permanente de Acompanhamento dos Juizados Especiais Federais, além de supervisionar as atividades sistêmicas que o CJF desenvolve junto à Justiça Federal. Gilson Dipp é natural de Passo Fundo (RS). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ele iniciou sua carreira como advogado em 1968. Foi nomeado juiz do Tribunal Regional Federal da 4ª Região em 1989, tendo atuado como membro suplente do Tribunal Regional Eleitoral, de 1991 a 1993, e titular, de 1995 a 1997. Exerceu a Presidência do TRF – 4a Região no biênio 1993/1995, tendo atuado, nesse período, como membro titular do Conselho da Justiça Federal. Tornou-se ministro do Superior Tribunal de Justiça em 1998, tendo sido, no ano passado, eleito membro do Conselho, desta vez em vaga destinada a ministro do STJ. O ministro Barros Monteiro destacou ainda a atuação do ministro Dipp como presidente da Comissão de Estudos relativos aos crimes de lavagem de dinheiro, formada no âmbito do CJF e, em seguida, como membro do Gabinete de Gestão Integrada da Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro junto ao Ministério da Justiça.

Foto: TRF

Coordenador-geral da JF toma posse


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Apresentação do Livro Bernardo Cabral Marcos Vinícios Vilaça Ministro do TCU Presidente da Academia Brasileira de Letras

O

cenário deste livro é sempre amazônico. Quando o protagonista sai de seu chão de águas, leva a circunstância com ele (Eu sou eu e minha circunstância...). Se chega ao Rio, o cenário onde se mexe é amazônico. Se chega a Brasília, a mesma coisa. Se viaja ao exterior, leva-o como bagagem e inspiração, até para realizar a travessia de outro Cabral, a serviço das descobertas do conhecimento. É um homem situado. Tem origens não ocluídas. Milton Hatoun, com seu sangue libanês, teve a sensibilidade de perceber como há raízes e copas na Amazônia: os nativos e os imigrantes. Mistura de barqueiros, pescadores, portuários, indígenas, portugueses, italianos, espanhóis, árabes e judeus, marroquinos, mercadeiros, nordestinos, etc. Há de tudo na Amazônia. O protagonista do livro sabe disso e entende os livros de Haunton, resultado das vozes que construíam imagens misturadas e enriquecidas do Oriente e da Amazônia. De outra parte, é fácil sentir em sua conversa as digitais 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2007

dos mitos, signos e arquétipos dos povos da Amazônia. Sua conversa tem um tanto de onírica. Imagino a que ênfase chegaria se tivesse integrado aquela Caravana Farkas, da qual resultou uma coleção de fotos belíssimas, interpretativas, explicativas, que o grande artista Thomaz Farkas produziu deslizando pelo rio Negro, na companhia de Paulo Vanzolini e Geraldo Sarno. Já faz uns trinta anos. É imperdível o livro de arte que a sensibilidade rara de Charles Cosac fez imprimir do jeito que ele sabe, vale dizer, de modo impecável, eternizando imagens, multiplicando belezas e verdades. Já disse a ele que, na Academia Brasileira de Letras, falta um amazonense. Talvez, um dia, dela faça parte o Hatoun ou o Gaitano ou outro de lá. Enquanto isso, recordamos gente do Norte, não amazonense, como Inglês de Souza e José Veríssimo, fundadores das cadeiras 28 e 18, além do terceiro ocupante na cadeira 10, Osvaldo Orico. Grandes figuras, é certo. Mas muito pouco para a


Arquivo Pessoal Arquivo Pessoal

Da esquerda: Bernardo cabral, Gaitano Antonaccio e João Abujamra.

Da esquerda: Sebastião Nery, Hélio Fernandes, Bernardo cabral, Maurício Dinepi, Marcus Faver, Marcos Vilaça, Orpheu Salles.

Amazônia, Sem que sejam esquecidos talentos como Leandro Tocantins ou Arthur Cezar Ferreira Reis, para falar só dos que já nos faltam. Bernardo Cabral compensa-nos cm a freqüência com que prestigia a ABL, comparecendo aos atos festivos e aos momentos de trabalho silencioso. Gaitan Antonaccio, obstinado obreiro da cultura, siderado pelos valores da Amazônia, dá-nos aqui os perfis predominantes do jurista, do político e do intelectual Bernardo Cabral. Conta as vitórias como constância da trajetória bernardiana, inclusive para registrar que se lhe aconteceu a rotina de uma derrota nas aventuras eleitorais, é como derrota eleitoral, e nunca como derrota política que o episódio há de ser interpretado. Não há derrota política na vida de Bernardo Cabral. Pelo contrário. No Congresso ou fora dele, no Executivo ou na corporação profissional, na cátedra ou no foro, esse homem que se inspira em latinos, lusitanos e basílicos, só se fez vencedor.

Prova disso? O formato da Zona Franca, com tudo de difícil e necessário. A Constituinte, com suas dores e delícias. A política para as fronteiras, com seus cuidados necessários à multilateralidade. A consciência da melhoria em movimento, lutando pela reforma do Judiciário. Até vencer Afonso Arinos em um concurso para orador. Querer mais o quê? Querer, como definiu, que, em relação à Amazônia, devemos integrar para não entregar. Quero por algo de bem pessoal nestas palavras, para dizer que Bernardo Cabral, que se fez contabilista no começo da vida, a vida toda só contabilizou lealdade aos amigos. Por isso, estou aqui, louvando o gesto certeiro e a mão apurada de Gaitano Antonaccio, que, neste mundo da indústria da velocidade, parou para cuidar de quem se ocupou, ao lado de construir uma família harmoniosa, em ser cidadão ativo, zelador dos respiradouros da liberdade. Keats tem razão: A thing of beauty is a joy forever. 2007 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49


Jus Et Labor

Arquivo Pessoal

Aurélio Wander Bastos e a Desembargadora Francisca Oliveira Formigosa

O

professor e jurista carioca, Aurélio Wander Bastos, recebeu, no Tribunal Regional do Trabalho – 8ª região, no dia 23 de junho, a Comenda Jus Et Labor, indicada no dia 06 de junho pelo Desembargador Herbert Tadeu de Matos, em solenidade presidida pela Desembargadora, Presidente em Exercício, Francisca Oliveira Formigosa, por relevantes serviços prestados ao Ensino Jurídico e à comunidade judiciária paraense. No ato solene da entrega da mais alta comenda da Justiça do Trabalho do Pará, o Desembargador Herbert Tadeu de Matos justificou a concessão da comenda, aprovada em sessão plena do Tribunal, referindo-se ao jurista Aurélio Wander Bastos, como uma das mais expressivas figuras do mundo jurídico brasileiro não apenas por seu trabalho como professor de Teoria do Direito e Direito Constitucional mas também por sua relevante carreira de Procurador Federal, tendo ocupado os cargos de Consultor Jurídico do Ministério da Educação e Cultura, Consultor Jurídico do Ministério das Comunicações e Procurador-Geral do Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI – e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UniRio. O orador, Dr. Herbert Tadeu, destacou a importância do livro do homenageado, intitulado “Conflitos Sociais e Limites do Poder Judiciário”, 3ª edição, como obra precursora das iniciativas que vieram a ser tomadas a partir de 1985/ 88 na proteção dos interesses coletivos e difusos no Brasil. Ressaltou também a importância do livro do homenageado sobre o Ensino Jurídico no Brasil, reconhecido como a mais completa obra sobre o tema, onde explora a evolução dos currículos jurídicos e a questão da metodologia de Ensino. Lembrou, finalmente, que o homenageado sempre procurou destacar que os advogados, juízes e membros das carreiras

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jurídicas, não apenas devem conhecer os códigos, mas pensar os códigos, tendo em vista sua eficiente aplicação em uma sociedade moderna e em intenso processo de mudança. Concluído o pronunciamento do Desembargador, a Presidente em exercício do Tribunal Regional do Trabalho – 8ª Região, Desembargadora Francisca Oliveira Formigosa, referendou as palavras ao orador e transferiu a palavra ao homenageado com a Comenda Jus Et Labor Doutor Aurélio Wander Bastos, que demonstrou seu alto reconhecimento pela homenagem que lhe prestava o Tribunal Regional do Trabalho do Pará, Estado onde teve a oportunidade de conviver com muitos de seus ilustres juízes, destacando, especialmente, sua convivência profissional com o advogado e jurista paraense Doutor Otavio Mendonça, com quem conversou sobre assuntos de significância jurídica para o Estado e política para o Brasil, tendo aproveitado para, em nome do ilustre advogado, recentemente falecido, homenagear os advogados do Estado do Pará, os quais se distinguiram nas lutas e na reabertura democrática, deixando, em nossa história, a marca da Carta de Belém Promulgada com a XI Conferência do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que lançou as bases do processo constituinte. O orador, emocionado, teve a dimensão do reconhecimento de seu trabalho depois de afirmar que outros tantos méritos maiores teriam do que ele próprio, falou de significante momento de sua infância, quando seu pai, Geraldo Machado Bastos, fora designado para exercer, na Amazônia, longe da família, ainda no início dos anos 50, função pública de relevância, que sempre foi uma referência do reconhecimento que a família e, principalmente, sua mãe, Stella Chaves Bastos, teve pelo povo paraense e do Amazonas. O homenageado lembrou que continuará desdobrando seus esforços para que o Estado do Pará tenha o destaque que merece na União, não apenas como ponto maravilhoso de encontro das águas que vêm dos Andes, do Planalto Central e do Norte do Estado, mas também pelo reconhecimento dos tantos juristas brasileiros, que tiveram sua formação na Escola Jurídica do Pará, para a qual tem procurado contribuir a Universidade Candido Mendes, do Rio de Janeiro, onde também é professor, que tem propiciado o aprofundamento dos estudos especializados em Direito no Estado do Pará e em tantas outras regiões do país. Finalmente, agradeceu a Comenda na certeza de seus esforços para dignificá-la.


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