Revista Justiça & Cidadania

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2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007


EDIÇÃO 86 • setembro de 2007

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PROFECIA CONFIRMADA

A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO

Foto de capa: Sandra Fado ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DÉBORA MARIA M. A. R. DIAS REVISÃO DIOGO TOMAZ E MAURíCIO FREDERICO DIAGRAMAÇÃO

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CONCESSÕES E PERMISSÕES NOs SERVIÇOs PÚBLICOs

CONSELHO EDITORIAL

SUMÁRIO

Alvaro Mairink da Costa

EDITORIAL

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SAUDAÇÃO AO MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE

6

AS RELAÇÕES ENTRE O FRANQUEADOR E O FRANQUEADO, E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

8

CIDADÃO, OBJETO FISCAL

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CNJ, UM ELEMENTO PROPULSOR DA DEMOCRACIA

22

NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE A NATUREZA JURÍDICA DA ARBITRAGEM

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A CIÊNCIA NO COMBATE AO CRIME

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DANO MORAL E SUA QUANTIFICAÇÃO

42

SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO

46

RÉQUIEM PARA UM POVO

50

VINÍCIUS GONÇALVES EXPEDIÇÃO E ASSINATURA

ANDRÉ FONTES

CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO

Antônio souza prudente

EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-906. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429 CNPJ: 03.338.235/0001-86

Antonio Carlos Martins Soares Arnaldo Esteves Lima aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CELSO MUNIZ GUEDES PINTO

SUCURSAIS

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OS ALIMENTOS E O TERMO INICIAL DE INCIDÊNCIA DA MULTA

Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA fernando neves Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Jerson Kelman josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata SEBASTIÃO AMOÊDO Sergio Cavalieri filho Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho

ISSN 1807-779X

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Arquivo JC

Desembargador José Carlos Murta Ribeiro Presidente do TJ/RJ Membro do Conselho Editorial

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nossa “Revista Justiça & Cidadania”, que a meu sentir preenche um nicho carente de nosso segmento editorial quanto ao desenvolvimento destes dois princípios basilares da sociedade: Cidadania e Justiça, mais uma vez – como já o fez no passado, e, ainda recentemente, quando pôs em relevo a figura da eminente Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha – acerta ao destacar a figura ímpar deste grande brasileiro, o douto e eminente Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, empossado neste mês de setembro no cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal – STF –, nossa excelsa Corte de Justiça. Em verdade, preenche o novo Ministro, com folga, os requisitos constitucionais exigidos para aqueles que ascendem a tão honroso cargo, mercê de vida ilibada e plena de saber jurídico. Ao ser convidado a escrever o editorial desta edição, voltei meus olhos para o passado, para então encontrar o eminente Ministro e eu na nossa querida Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, quando já se descortinavam suas qualidades de líder, co-fundador que foi do movimento estudantil “Solidarismo Cristão”, que o levou a presidente do Centro Acadêmico Eduardo Lustosa – CAEL. Carlos Alberto Direito, de lídimo líder estudantil, transformou-se em homem de bem, e do bem, destacando-se desde então como homem probo, culto, independente, capaz, competente, verdadeiro bonus pater familiae, nas várias atividades que abraçou. Na Universidade, tornou-se professor Titular do Departamento de Ciências Jurídicas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, após obter o título “Doutor em Direito” no ano de 1968. Na sua vida pública, antes de se tornar Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no ano de 1988, e, posteriormente, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, exerceu com tirocínio e brilho incomuns várias outras funções como advogado, tais como: Chefe de Gabinete do Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro; Prefeito em exercício da Cidade do Rio de Janeiro; Membro do Conselho da Sociedade Civil mantenedora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, representando o Cardeal Arcebispo do RJ, D. Eugênio de Araújo Salles; Presidente da Fundação de Artes do Rio de Janeiro – Fundação Rio; Membro do Conselho Estadual de Cultura do Estado do Rio de Janeiro; Presidente da Casa da Moeda do Brasil; Secretário de Estado de Educação; Chefe

de Gabinete do Ministro de Estado de Educação e Cultura; Presidente do Conselho Nacional de Direito Autoral – CNDA. Como Ministro do Superior Tribunal de Justiça, a partir de 27/06/1996, foi Presidente da 2ª Seção do STJ, no biênio 2003/2005, e Membro da 2ª Seção, da 3ª Turma e da Corte Especial do STJ. O Ministro Carlos Alberto Direito, como professor e doutrinador, se dedicou mais de perto aos ramos do Direito Público e Direito Constitucional, matérias que, prevalentemente, será chamado a decidir na sua nobilíssima nova função de Ministro do STF, e sobre as quais já se destacou quer como Desembargador (1988-1996) quer como Ministro do Superior Tribunal de Justiça (1996-2007). Das suas numerosas obras jurídicas, há que se destacar “Estudos de Direito Público e Privado” e “Manual do Mandado de Segurança”, esta última com várias edições, ensinamentos por todos consultados. O Estado do Rio de Janeiro e o Tribunal de Justiça deste Estado e a Revista Justiça & Cidadania se rejubilam por ter na Corte Constitucional do País tão eminente magistrado, onde também fará brilhar seu notável saber jurídico, decidindo as graves questões jurídicas que lhe vierem às mãos segundo a máxima de Ulpiano: honeste vivere neminem laedere suum cuique tribuere. 2007 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5

EDITORIAL

Viver honestamente


SAUDAÇÃO AO MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE Celso de Mello Ministro do STF

T

odos aqueles que tiveram o privilégio de atuar, na Suprema Corte do Brasil, ao lado da figura ímpar do eminente Ministro Sepúlveda Pertence, estão a lamentar o anúncio de sua aposentadoria, pois, com ela, perde este Tribunal, perde a comunidade jurídica nacional, perde o País um vulto de notáveis atributos, que tão relevantes serviços prestou ao povo do Brasil e às instituições democráticas. Reconheço que este momento, mais do que uma despedida, possui o sentido e tem o alto valor simbólico de fazer preservar, no espírito desta Instituição, a recordação da significativa presença e participação do eminente Ministro Sepúlveda Pertence na vida do Supremo Tribunal Federal, a perpetuar-se na experiência jurisprudencial desta Corte e no registro da brilhante atuação de Sua Excelência, com votos modelares e primorosos, em julgamentos que os anais deste Tribunal conservarão, para sempre, na memória histórica desta Casa. Celebramos, aqui e agora, nesta saudação de despedida, mais um rito de passagem na trajetória histórica do Supremo Tribunal Federal, ainda que com a simplicidade republicana que tão bem caracteriza as práticas institucionais desta Alta Corte. Quando esta Corte saudou, em 17/05/2007, os 18 anos de presença do Ministro Sepúlveda Pertence no Tribunal, salientei, em manifestação que ora reitero, ser importante

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reconhecer, publicamente, a relevantíssima participação de Sua Excelência nos trabalhos e na construção da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, notadamente em um período de significativas transformações, quando esta Corte se deparou com o desafio de interpretar a nova ordem constitucional instaurada em 1988. O eminente Ministro Sepúlveda Pertence, como a ele apropriadamente então se referiu a Ministra Cármen Lúcia, representa, nesta Alta Corte da República, verdadeiro paradigma de magistrado, cujas decisões constituem peças de referência para todos e para cada um dos Ministros deste Supremo Tribunal Federal, bem assim para aqueles que, na condição de operadores do Direito, compõem a comunidade jurídica nacional. É esse notável magistrado que agora se retira de nosso convívio diário, embora vocacionado a ter – como terá – ativa participação no mundo do Direito e na vida deste País, dadas as suas altas qualificações intelectuais e inegável talento profissional. Embora voluntária a aposentadoria, ela, na realidade, é motivada pela aproximação da idade-limite com que a Constituição a faz compulsória. Lamenta-se que o legislador constituinte de 1988 se haja distanciado do modelo consagrado pela primeira Constituição republicana (1891), que, por não haver estabelecido a cláusula da aposentadoria compulsória, soube


Foto: STF

Ministro Sepúlveda Pertence

preservar, com equilíbrio e sabedoria, a vasta experiência que ilustres magistrados desta Suprema Corte legaram à causa pública após os 70 anos de idade, valendo referir, dentre esses grandes juízes, os eminentes Ministros Hermínio Francisco do Espírito Santo (83 anos de idade), Olegário Herculano D’Aquino e Castro (78 anos de idade), Sayão Lobato, o Marquês de Sabará (75 anos de idade), Ribeiro de Almeida (75 anos de idade), Edmundo Lins (74 anos de idade), Freitas Henriques, que foi o primeiro Presidente do Supremo Tribunal Federal (72 anos de idade), Godofredo Cunha (71 anos de idade), Tristão de Alencar Araripe (71 anos de idade) e André Cavalcanti, que presidiu o Supremo Tribunal Federal até os seus 93 anos de idade. Não fosse essa regra implacável, certamente o País e o Supremo Tribunal Federal poderiam continuar beneficiando-se da valiosa atuação, nesta Corte, do eminente Ministro Sepúlveda Pertence. É justo, no entanto, Senhora Presidente, que proclamemos, aqui e agora, a honra e o privilégio – que nos foram dados – de atuar, no Supremo Tribunal Federal, neste momento histórico de sua existência, ao lado do eminente Ministro Sepúlveda Pertence, enriquecendo-nos com a valiosa experiência e com o talento inegável de Sua Excelência, a quem apresento, neste instante que todos lamentamos, e em nome dos ilustres Juízes que compõem o Supremo Tribunal Federal, os votos mais afetuosos de muita felicidade na nova etapa de sua vida.

“O eminente Ministro Sepúlveda Pertence representa verdadeiro paradigma de magistrado, cujas decisões Constituem peças de referência para todos e para cada um dos Ministros deste Supremo Tribunal Federal.”

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As relações entre o franqueador e o franqueado, e o Código de Defesa do Consumidor Carlos Alberto Menezes Direito Ministro do STF Professor Titular de Direito Constitucional da PUC – Rio

“O critério fundamental para a melhor identificação da existência de relação de consumo é o da vulnerabilidade, porque permite enlaçar o CDC com a teoria moderna dos contratos.”

O

que se vai examinar, como tema central, no presente trabalho, é a aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação entre o franqueado e o franqueador, não se questionando o vínculo entre o franqueado e os seus clientes. Esse é um tema desafiador, porquanto se tem desenvolvido quase sempre à sombra do conceito de destinatário final, sem considerar, como adverte a notável jurista Cláudia Lima Marques, que “pode ser importante para as nossas conclusões saber que as normas do CDC são aplicáveis, por lei, a pessoas que em princípio não poderiam ser qualificadas como consumidores stricto sensu”1. E, ainda, sem relevar o conceito de vulnerabilidade (art. 4º, I, do Código de Defesa do Consumidor)2, pedra angular para as decisões envolvendo a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. É certo que a orientação perfilhada pelo Superior Tribunal de Justiça, em várias oportunidades, tem acolhido o que se pode chamar de interpretação finalista extensiva, procurando aplicar as regras do diploma consumerista na área dos contratos de adesão, conjugando a prova da vulnerabilidade com o conceito de destinatário final. O critério fundamental, sem dúvida, para a melhor identificação da existência de relação de consumo é o da vulnerabilidade, nas suas diversas projeções, porque permite enlaçar o Código de Defesa do Consumidor com a teoria moderna dos contratos que finca raízes mais fortes na boa-fé 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

e na destinação social do contrato. Não é por outra razão que o Código Civil de 2002, diferentemente do anterior, consagra as duas primeiras normas ao tema, dispondo, no art. 421, que a “liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”, e, no art. 422, que os “contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé” e, ainda, no art. 423, que “a existência de cláusulas ambíguas ou contraditórias em contratos de adesão conduz a uma interpretação mais favorável ao aderente”, o que também está previsto no art. 47 do Código de Defesa do Consumidor. Isso quer dizer que o novo Código Civil pôs a disciplina dos contratos também sob a égide de princípios que estão entranhados no Código de Defesa do Consumidor. Modernamente, portanto, seja no regime do Código Civil seja no regime do Código de Defesa do Consumidor, há proteção específica para assegurar o necessário equilíbrio contratual, partindo-se do pressuposto de que o contrato não pode ser instrumento de proteção a uma das partes contratantes em detrimento da outra. Dessa forma, poder-se-á considerar, no exame dos contratos sob o ângulo do Código Civil, aquelas regras estabelecidas no art. 51 do Código de Defesa do Consumidor, que cuida das cláusulas abusivas sem perder de vista o conceito de vulnerabilidade com o base para a identificação da relação de consumo, com menor peso, portanto, para o conceito de


Foto: Ilkens Souza Ministros Celso de Mello, Carlos Alberto Direito e Cármen Lúcia do Supremo Tribunal Federal

destinatário final, levando-se em conta o que dispõe o art. 29 do Código de Defesa do Consumidor3. Nessa direção, veja-se mais uma vez a lição de Cláudia Lima Marques: “Certo é que a ‘vulnerabilidade’, no dizer de Antônio Hermann Benjamin, é a ‘peça fundamental’ do direito do consumidor, é o ‘ponto de partida’ de toda sua aplicação aos contratos. Em se tratando de vulnerabilidade fática, o sistema do CDC a presume para o consumidor não-profissional (o advogado que assina um contrato de locação abusivo porque necessita de uma casa para a sua família perto do colégio dos filhos), mas não a presume para o profissional (o mesmo advogado que assina o contrato de locação comercial abusivo, para localizar o seu escritório mais próximo do fórum), nem a presume para o consumidor pessoa jurídica (veja art. 51, I, in fine, do CDC). Isto não significa que o Judiciário não possa tratar o profissional de maneira ‘equivalente’ ao consumidor, se o profissional efetivamente provar a sua vulnerabilidade, que levou ao desequilíbrio contratual”4. A prevalência há de ser, portanto, um adequado balanceamento entre os conceitos de vulnerabilidade e de destinatário final, aquele sempre dependente da prova existente e o fato de não ser possível ampliar sem lastro a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

De fato, assim deve ser pela só razão de que o direito civil geral, ou seja, aquele que está subordinado ao Código Civil, e o direito civil especial, assim, aquele que está ao alcance do Código de Defesa do Consumidor, devem ser preservados para garantir a pureza da relação de consumo, já agora considerando que aquele que não pode ser configurado como consumidor encontra no Código Civil de 2002 uma proteção contratual que tem ampla conexão com o Código de Defesa do Consumidor. Diria, até mesmo com risco de exagero, que o direito civil geral moderno está inspirado na cláusula geral de boa-fé que o Código de Defesa do Consumidor elegeu como fonte imperativa para a identificação das cláusulas abusivas. Há, portanto, um ingrediente de excepcional relevância para a sociedade moderna, que é o encontro dos contratos no mesmo leito da proteção do contratante mais fraco na relação, mas, ao mesmo tempo, porque a noção de boa-fé não é unilateral, protegidas as partes contratantes sempre por esse salutar princípio que deve estar na raiz de todas as relações humanas. A diferença substancial reside na circunstância de que o direito civil geral, já agora, parte do pressuposto de que a liberdade de contratar tem limite na função social do contrato e na interpretação mais favorável ao aderente quando se trate de contrato de adesão diante de cláusulas ambíguas e contraditórias. Não se diga que há distância entre o conceito de cláusula abusiva, consagrado no art. 51 do Código de Defesa do Consumidor, e este de cláusula ambígua ou contraditória. E isso pela só razão de 2007 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


Foto: Sandra Fado

“No contrato de franquia, são múltiplas as possibilidades negociais e dentro de cada espécie estão, por sua vez, embutidas diversas modalidades obrigacionais.”

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que, tecnicamente, a disposição do Código Civil é mais ampla, mas, em contrapartida, não é causa de nulidade, facultando, apenas, a interpretação mais favorável ao aderente, enquanto no art. 51, caracterizada a cláusula abusiva em contratos relativos ao fornecimento de produtos e serviços, torna-se imperativo reconhecer a nulidade. Ocorre que, em ambas as situações, a finalidade da regra é garantir a igualdade de contratar e, por conseqüência, o equilíbrio das partes na relação contratual. Em certa medida, é essa circunstância benfazeja de pôr o direito civil geral no rumo mais moderno da relação contratual, isto é, que os contratos estarão protegidos contra a disparidade das partes contratantes, estabilizados por sua função social e pela cláusula da boa-fé, que está presente também como critério para a interpretação dos negócios jurídicos (art. 113 do Código Civil5). Nessa matéria, considerando a confluência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, é necessário ter presente que o primeiro, em matéria contratual, como mostra Cláudia Lima Marques, “representa a evolução do pensamento jurídico para uma teoria contratual que entende o contrato em termos de sua função social”, sendo que “o problema é o desequilíbrio de forças dos contratantes. Uma das partes é vulnerável (art. 4º, I) é o pólo mais fraco da relação, pois não pode discutir o conteúdo do contrato ou a informação recebida; mesmo que saiba que determinada cláusula é abusiva, só tem uma opção, ‘pegar ou largar’, aceitar o contrato nas condições que lhe oferece o fornecedor ou não aceitar e procurar outro fornecedor. Sua situação é estruturalmente e faticamente diferente da do profissional que oferece o contrato. Este equilíbrio fático de forças nas relações de consumo é a justificativa para um tratamento desequilibrado e desigual dos co-contratantes, protegendo o direito daquele que está na posição mais fraca, o vulnerável, o que é desigual fática e juridicamente”.6 Extrai-se aqui, pelo menos na minha convicção, que o tratamento das relações contratuais a partir do Código Civil de 2002 está bem harmonioso, seja no campo especial do consumo, seja no campo geral das práticas negociais em geral. Tanto em um como em outro, a proteção à parte vulnerável está presente, havendo, sem dúvida, distinções em muitos aspectos como, por exemplo, no das presunções sobre a vulnerabilidade. Mas o que é importante salientar é que a interpretação dos contratos não necessita mais buscar o abrigo do Código de Defesa do Consumidor para proteger o equilíbrio de forças entre as partes contratantes, porquanto o Código Civil tem suficiente instrumento técnico para calçar as decisões judiciais que ao longo do tempo foram construídas com esse sentido e alcance. No contrato de franquia, são múltiplas as possibilidades negociais e, dentro de cada espécie estão, por sua vez, embutidas diversas modalidades obrigacionais. Trata-se de modalidade contratual com disciplina própria no direito positivo, a Lei nº 8.955/94. A definição legal é a de tratarse de um “sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca e patente, associado

ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vínculo empregatício”7. É fácil perceber que a própria lei embute na chamada franquia empresarial várias modalidades obrigacionais, mencionando outros contratos que estão enlaçados com o de franquia, assim, o de uso de marca e patente, o de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços, o de uso de tecnologia de implantação e administração de negócios. É um dos contratos tidos como complexos, porque prevê uma série de relações jurídicas entre o franqueador e o franqueado. E, ainda, diversos são os tipos de franquia, podendo ser de serviços, de produção, de distribuição e de indústria. Pelo menos na franquia de serviços existe a prestação de assistência técnica do franqueador ao franqueado, sem mencionar que, nesses contratos, há uma enorme variedade de exigências de qualidade e apresentação, como, por exemplo, as relativas ao tipo de arquitetura que deve ser utilizada, ao de mobiliário, ao de embalagem. Inclua-se, ainda, a interferência direta do franqueador em matéria de engineering, que planeja e orienta a montagem da empresa franqueada, como mostra Arnoldo Wald8. Como ensina Waldirio Bulgarelli9, trata-se de “figura contratual atípica, decorrente de novas técnicas negociais, no campo da distribuição e venda de bens e serviços”. É, para o autor, “operação pela qual um comerciante, titular de uma marca comum, cede seu uso, num setor geográfico definido, a outro comerciante”, sendo certo que o beneficiário, isto é, o franqueado, “fica preso à orientação e às imposições do cedente, geralmente justificadas também ingenuamente pela idéia da transferência de know how”. Anote-se que a lei especial de regência estabelece que, para a formação do contrato de franquia, o franqueador “deverá fornecer ao interessado em tornar-se franqueado uma Circular de Oferta de Franquia, por escrito e em linguagem clara e acessível”, especificando quais as informações que deve conter tanto com relação ao franqueador como ao franqueado, incluído o fornecimento do contrato-padrão de franquia adotado pelo franqueador, “com texto completo, inclusive dos respectivos anexos e prazo de validade” (art. 3º), sendo que deverá ser entregue ao candidato “pelo menos 10 (dez) dias antes da assinatura do contrato ou pré-contrato de franquia ou ainda do pagamento de qualquer tipo de taxa pelo franqueado ao franqueador ou a empresa ligada a este” (art. 4º, caput). Se não for cumprida exigência legal, “o franqueado poderá argüir a anulabilidade do contrato e exigir a devolução de todas as quantias que já houver pago ao franqueador ou a terceiros por ele indicados, a título de taxa de filiação e royalties, devidamente corrigidas, pela variação da remuneração básica dos depósitos de poupança e mais perdas e danos” (art. 4º, parágrafo único), aplicando-se igual sanção no caso do franqueador veicular 2007 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


Foto: Agência Brasil

“informações falsas na sua Circular de Oferta de Franquia, sem prejuízo das sanções penais cabíveis” (art. 7º). A existência de contrato-padrão, ou seja, tecnicamente, contrato de adesão, pode induzir uma apressada conclusão para considerar o contrato de franquia subordinado ao Código de Defesa do Consumidor. O que se diz, nessa direção, é que esse contrato pode conter cláusulas abusivas, o que daria ensejo à aplicação do art. 51 do Código de Defesa do Consumidor. Todavia, não creio que isso seja suficiente. Não se deve esquecer que o capítulo sobre a Proteção Contratual no Código de Defesa do Consumidor começa por estabelecer que os “contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance” (art. 46). Assim, o que se deve identificar em primeiro plano é se há relação de consumo entre o franqueador e o franqueado. Pode-se equiparar o franqueado ao consumidor? Mesmo na perspectiva dita “maximalista”, ou seja, aquela que adota um conceito mais ampliado para fazer do Código de Defesa do Consumidor um código aplicável não apenas ao consumidor não-profissional, atingindo um número cada vez maior das relações de mercado, não creio que se possa responder positivamente. Vejamos. Primeiro, não me parece que o franqueado tenha condições técnicas de se enquadrar como destinatário final, nos termos do art. 2º do Código de Defesa do Consumidor. Adotado o conceito de destinatário final como aquele que retira o bem do mercado, encerrando o circuito produtivo, englobado ainda aquele que o utiliza para seu trabalho profissional, no contexto de uma interpretação dita “finalista extensiva”, não se pode afirmar que o franqueado seja o destinatário final da franquia. É que, realmente, o 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

objeto do contrato é exatamente a passagem da franquia do titular para o mercado de consumo, utilizando a rede de franqueados, que, de fato, são substitutos daquele junto ao mercado, sob quaisquer das suas modalidades. Poder-se-ia cogitar de separar, no contrato de franquia, algumas modalidades obrigacionais que dariam azo a que se introduzisse a figura do consumidor à luz do art. 2º do Código de Defesa do Consumidor, como, por exemplo, no caso da franquia de serviços a assistência técnica do franqueador ao franqueado. Mas não creio que se possa chegar a tanto pela natureza do próprio contrato de franquia, que põe o uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição e de tecnologia, ao alcance do franqueado com vistas ao mercado consumidor, embora deva ser considerado que, embaixo, outros contratos possam existir como o de locação de imóvel e de cessão de direitos. No contrato de franquia, dá-se uma transferência do direito de uso do sistema inerente à franquia conforme o tipo de franquia, sendo o franqueado claramente um elo na cadeia de consumo entre o franqueador e o consumidor. A relação entre eles não é de consumo. A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp nº 403.799-MG, Relator o Ministro Franciulli Netto, DJ de 26/4/06, assinalou que o contrato de franquia “não se confunde com nenhum outro contrato, porquanto possui delineamentos próprios que lhe concederam autonomia. Ainda que híbrido, não pode ser configurado como a fusão de vários contratos específicos”. E mais: “Por ser um contrato autônomo e complexo, não há falar tão-somente na cessão de marca ou da prestação de serviços, de forma isolada. Ocorre, em verdade, um conjunto de atividades abarcadas pelo contrato de franquia, sem que se possa conceber a preponderância de uma atividade em detrimento de outra. Permitir a primazia da cessão de marca em face da prestação de


serviço, data maxima venia, significa transformar o contrato de franquia em contrato de locação. Seguindo esse raciocínio, conceder preeminência à prestação de serviços em face da cessão de marca importa em transfigurar o contrato de franquia em contrato de prestação de serviços.” Além disso, não enxergo fundamento suficiente para pôr o franqueado na cobertura do art. 29 do Código de Defesa do Consumidor. Embora o pressuposto da equiparação seja a mera exposição às práticas comerciais previstas, o contrato de franquia obedece ao disposto em legislação especial que regula estritamente a formação do contrato e regula as sanções possíveis. Em tal cenário, o que se deve aplicar subsidiariamente não é o Código de Defesa do Consumidor que também é lei especial sobre relações de consumo, mas sim o Código Civil, que é a legislação matriz da disciplina contratual. Transplantar para o Código de Defesa do Consumidor um contrato regulado por lei especial e que contém regras jurídicas próprias sobre a formação do contrato, com sanções específicas, não me parece da melhor técnica. Por outro lado, valeria analisar a perspectiva da aplicação do art. 29 sob o ângulo da vulnerabilidade do franqueado diante do franqueador. É que a jurisprudência pode, em determinado momento, relevar esse aspecto, entendendo ser necessário proteger o franqueado da prática abusiva, melhor dizendo, do abuso do poder econômico, como é o caso, por exemplo, da cobertura do comerciante mais fraco em contrato de distribuição de bebidas. Nesse sentido, tomese o acórdão proferido pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, REsp nº 476.428/SC, Relatora a Ministra Nancy Andrighi, DJ de 9/5/05, em que se afirmou que a “relação jurídica qualificada por ser de ‘consumo’ não se caracteriza pela presença de pessoa física ou jurídica em seus pólos, mas pela presença de uma parte vulnerável de um lado (consumidor), e de um fornecedor, de outro”, tudo com os olhos postos na necessidade de manter o equilíbrio contratual, destacando, porém, que a “jurisprudência deste STJ também reconhece a necessidade de, em situações específicas, abrandar o rigor do critério subjetivo do conceito de consumidor, para admitir a aplicabilidade do CDC nas relações entre fornecedores e consumidores-empresários em que fique evidenciada a relação de consumo”.

Todavia, não creio que seja possível aplicar o entendimento exarado naquele precedente ao contrato de franquia. É que a fragilidade não existe quando se sabe que o franqueador tem obrigações definidas em lei para a concessão da franquia, com indicação precisa das obrigações que assume e que o franqueado deve assumir. Ademais, o franqueado dispõe, por expresso comando legal, da Circular de Oferta de Franquia, a ser oferecida em linguagem clara e acessível, indicando, dentre outras condições, o total do investimento inicial, o valor estimado das instalações, equipamentos e do estoque inicial e suas condições de pagamento, informações sobre os pagamentos ao franqueador ou a terceiros, a remuneração pelo uso do sistema, da marca ou troca de serviços efetivamente prestados pelo franqueador ao franqueado, aluguel de equipamento ou ponto comercial, além do modelo de contrato-padrão, com texto completo. Isso, na minha compreensão, enquadrando-se todos os contratos no regime da boa-fé, conduz a comportamento que não se compadece com posterior imputação da existência de cláusulas abusivas. Se não houvesse lei com esse regramento tão minucioso, claro, capaz de levar as partes contratantes a saber com antecedência o que se vai contratar e em que condições seria possível até imaginar que o franqueado teria ensejo de invocar que foi atingido por prática abusiva prevista no Código de Defesa do Consumidor. Veja-se que Cláudia Lima Marques, essa arquiteta desbravadora da proteção do consumidor no Brasil, mostra que a idéia básica do art. 29 “é a imposição de um patamar mínimo de lealdade e boa-fé objetiva”10. A boa-fé opera na reciprocidade, sendo claro que aquele que contrata sabendo com antecedência aquilo que contrata, não sendo pessoa fora do mercado, hipossuficiente, ou ignorante da prática comercial da área que vai contratar, subordinado a uma lei especial que define a formação do contrato e as condições prévias da contratação, não pode postular a proteção do Código de Defesa do Consumidor. Não se trata nem de relação de consumo, nem de consumidor, nem, no meu entender, de equiparação a consumidor. E, o que me parece relevante, não há falar em tal situação na existência de prejuízo indireto ao consumidor. Não é, portanto, caso de aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5ª ed.: RT, 2006, p. 318 Código de Defesa do Consumidor, art. 4º, caput e inciso I: “A política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;” 3 Código de Defesa do Consumidor, art. 29: “Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas”. 4 MARQUES, Cláudia Lima. Ob cit. p. 335. 5 Código Civil, art. 113: “Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente” 6 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Hermann V. e MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 2ª ed.: RT, 2006, pp. 85/86. 7 Art. 2º da Lei nº 8955/94. 8 In: Obrigações e Contratos, 16ª ed. rev. e atu. por GLAZ, Semy :Saraiva, 2004, p. 686. 9 In: Contratos Mercantis, 13ª ed.:Atlas, 2000, p. 529. 10 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Atônio Hermann V. e MIRAGEM, Bruno. Código de Defesa do Consumidor, 2ª ed.: RT, 2006, p. 452. Essa orientação foi adotada pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp nº 687.322/RJ, de minha relatoria, DJ de 9/10/06. 1

NOTAS

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CIDADÃO, OBJETO FISCAL Ives Gandra Martins Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO e UNIP Membro do Conselho Editorial

“À evidência, nada há de mais distante da justiça tributária do que a política de arrecadação e coação adotada pela República Brasileira.”

Foto: Arquivo JC

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iogo Leite de Campos, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em seu estudo “A jurisdição dos impostos: garantias da terceira geração”, inserido no livro “O tributo – Reflexão multidisciplinar sobre sua natureza” (coordenação minha, Editora Forense, edição de 2007), escreve: “A degradação da pessoa dos cidadãos vai mais longe: estes são vistos como meros objetos da atividade administrativa”. E continua: “O contribuinte deve estar invisível, enquanto a administração lhe mede os bens e os rendimentos...” até o menor torrão, parafraseando Lactâncio: “deve mover-se se esta lho exigir: pagar quanto a tal for obrigado. É objeto, não sujeito”. O estudo jurídico do eminente catedrático coimbrão de renome internacional conclui que só há justiça quando o direito se faz entre iguais, isto é, quando “o Estado é participado, definido e controlado diretamente pelos cidadãos”. À evidência, nada há de mais distante da justiça tributária do que a política de arrecadação e coação adotada pela República Brasileira, “democrática” mais no nome do que na realidade dos atos praticados pelos detentores do poder. De início, impõe, sem consultar o povo, a mais alta carga tributária dos países emergentes, e das mais altas do mundo civilizado, ofertando em troca apenas um plano assistencialista que, muitas vezes, incentiva o ócio (bolsa família) e migalhas de serviços públicos, normalmente de péssima qualidade, como se verifica em boa parte dos setores da saúde e educação. Em compensação, os tributos pagos pelo “cidadãoobjeto” abarrotam os bolsos dos detentores do poder, seja em subsídios diretos, seja nas fantásticas benesses dos benefícios indiretos, que levam parlamentares e membros de outros


poderes a gozar de ajudas de custo, verbas de gabinete, carros, empregados, tudo pago pelo Tesouro, sem necessidade de recolher sobre estas verbas imposto de renda, como qualquer “cidadão-objeto” do segmento não governamental. Por outro lado, tudo se justifica pela necessidade de apoio dos partidos “políticos”, meros conglomerados de interesses que mudam de nome, tanto quanto seus senadores, deputados e vereadores eleitos mudam de legendas, como, no século XVIII, os condutores das diligências mudavam de cavalos, em cada entreposto. Quando o governo multiplica Ministérios, Secretarias, cargos de confiança – como as células cancerosas multiplicam-se nos organismos humanos não tratados –, por mais que se arrecade, a receita é sempre insuficiente para o tamanho de uma máquina esclerosada que não pára de crescer. Ministérios, Secretarias são disputados não em função da especialidade dos que deveriam servir ao povo, mas em função das verbas que o Presidente lhes destina, para que o seu detentor – aliado de ocasião e conveniência – possa manipulá-las. Estas verbas são resultantes dos tributos pagos pelo “cidadão-objeto”, que nada controla diretamente e vê grande parte delas ser veiculada por medidas provisórias. Nem mesmo o artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, é respeitado. Leia-se: “LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (grifos meus). Para que, entretanto, o “cidadão-objeto” não se defenda, apesar de a ampla defesa administrativa e judicial ser garantida pela “Constituição Cidadã” de Ulisses Guimarães, concebemse, sem qualquer pudor, os mais arbitrários projetos. E o “cidadão-objeto” vê seus direitos decrescerem em uma

degradação – na feliz expressão de Diogo Leite de Campos – como nos tempos do regime militar se viu. Projetos em execução fiscal sem participação do Judiciário, de redução de direitos de defesa, nos Conselhos de Contribuintes, perante o qual o advogado do “cidadão-objeto” não pode participar das sessões secretas, mas o advogado dos detentores do poder tem presença garantida; vinculação das decisões dos conselheiros ao teor das Instruções Normativas emanadas da administração superior, que proíbe a apreciação de matéria constitucional; desobediência dos agentes da Secretaria da Receita Federal, em que atuam profissionais liberais e outros trabalhadores, que se organizam em sociedades fundamentadas na garantia constitucional de livre associação, reiterada no art. 129 da Lei 11.196/05 (que converteu a Medida Provisória do Bem), além de muitas outras ações desse jaez – demonstram que, na República Fiscal Brasileira, caminhando para a plena ditadura do Fisco, o cidadão é mesmo, e cada dia mais, um mero objeto, um “patrimônio personificado”, que é confiscado em prol de se manter o alto nível de subsídios e mordomias dos detentores do poder. Não sem razão, o Brasil cresce pouco. Continua, apesar de toda a sua potencialidade, recebendo poucos investimentos estrangeiros, se comparados com outros emergentes de nosso nível, e corre o risco, ao menor sintoma de reversão do “boom econômico” mundial, de mergulhar em uma crise sem precedentes, em que as empresas desaparecerão sufocadas pelo peso da Administração esclerosada, cujos feitores estão aí para pisotear o “cidadão-objeto”. Pergunto-me: com os novos anteprojetos redutores dos direitos do contribuinte e que instituem arrecadação arbitrária para aumento do nível impositivo, para onde vamos? Transformar-nos-emos em “escravos-objetos”? 2007 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


Profecia confirmada Humberto Gomes de Barros Ministro do STJ

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a época em que presidia o Superior Tribunal de Justiça, o ministro Edson Vidigal tentou mediar tratativas com escopo de evitar a falência da Varig – verdadeiro orgulho nacional. Seu esforço fracassou: a Varig desapareceu e seu complexo empresarial foi retalhado. Ficou-nos o gosto amargo do orgulho vilipendiado. De tudo restou aguda e dolorosa observação, cunhada por Vidigal: a de que o Brasil destruiu nossos transportes aquaviários, ferroviários e rodoviários. “Agora tratamos de exterminar o excelente transporte aéreo que tanto nos envaidecia” – concluiu Vidigal. A constatação de Vidigal lembrou-me a adolescência em Maceió. Naquela época, havia sempre um Ita (Itanagé, Itaquicé etc.) atracado no porto. Nesses pequeninos navios, gastava-se uma noite para chegar ao Recife (metrópole de nossa região). Quem temia o mar tomava o trem da Great Western, para divertida viagem de aproximadamente onze horas, até a capital pernambucana. Ninguém usava o automóvel em tal viagem: as estradas eram precariíssimas. O Estado de Alagoas dispunha de apenas 14 quilômetros de rodovia asfaltada (a estreita pista que ligava a praça centenária ao campo de aviação). Quem tinha pressa e dinheiro viajava de avião. Os DC-3 faziam o percurso em 45 minutos de vagaroso, barulhento e trepidante vôo. Quem se animava ao uso do avião dispunha de vários horários ao longo do dia. Tinha mesmo o direito de escolher a empresa transportadora (Real, Aerovias, Cruzeiro, Panair, Loyde Aéreo e algumas outras). Depois, veio a estrada de rodagem. Ela acabou, primeiro, 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

com os Itas; depois, com o trem. Hoje, trem e navio só existem nas canções de Caimy, nos versos de Ascenso ou na saudade de quem os utilizou. Restaram os automóveis, ônibus e aviões. Asfalto para todo lado, ninguém lamentou o passamento dos velhos transportes. Nossa atitude para com eles transpareceu imenso ressentimento: arrancamos os velhos trilhos, assoreamos rios e portos, e transformamos em ferro velho navios, vagões e locomotivas. Aparentemente, tínhamos razões para tanto. A viagem de Maceió a Recife reduziu-se a quatro horas, em estradas pavimentadas – muito melhores do que as então precárias carreteras espanholas. O tempo de jornada entre essas duas cidades diminuiu ainda mais: os modernos aviões reduziramno a exíguos 15 minutos. Por isso, nossa despedida à hidrovia e à ferrovia efetivou-se na base do “Já vai tarde!”. Livres dos veículos ronceiros, sentíamo-nos no melhor dos mundos. Veio, porém, a “operação desmonte”, em que o Governo federal, declaradamente, abandonou as estradas que construíra. Pronto: em pouco tempo, nossa malha rodoviária transformou-se em perigosa sucessão de buracos. Pior ainda: à beira de cada cratera, postou-se um bandido, pronto a saquear quem nela caísse. Viajar de automóvel virou aventura. Restava, entretanto, o moderno e bom avião. Operados por empresas bem organizadas, não nos deixavam sentir saudades. A distância entre Maceió e Recife transformouse em légua-de-beiço. Varig, Cruzeiro, Vasp, Transbrasil e outras empresas menores, concorrendo entre si, faziam várias


viagens diárias entre as capitais. Assim, o automóvel reduziuse à prosaica função de entulhar nossas cidades. Eis que nossos dirigentes, esquecendo tudo o que haviam pregado, optaram solenemente pelo neocapitalismo global. Em homenagem ao lucro, Varig comprou Cruzeiro; faliram Transbrasil, Vasp e as empresas menores. Depois, foi a vez de a Varig quebrar. Restam hoje TAM e GOL. “Com essas empresas vitoriosas e seus aviões novos, rápidos e seguros” – pensei – “Maceió e Recife tornaram-se uma só metrópole.” Fiado nessa proposição e precisando visitar uma irmã, compareci a uma empresa de turismo solicitando a compra da passagem. Após consultar o computador, a moça que me atendeu disse que as viagens diretas entre as duas cidades foram extintas. Havia somente dois percursos viáveis: ir a Brasília e, lá, tomar outro avião com destino a Recife ou voar até Salvador, onde apanharia vôo destinado à capital de Pernambuco. “Entre vôos efetivos e esperas em aeroportos” – esclareceu a atendente – “qualquer dessas viagens demandaria cinco horas. Isso se não houver atrasos.” Desisti de voar: “Vou de ônibus!” Antes de tomar o táxi para a estação rodoviária, comprei a Gazeta de Alagoas, onde, na primeira mirada, enxerguei manchete, dando conta de que fora capturada mais uma quadrilha especializada em assaltar ônibus interestaduais. Desisti do táxi, do ônibus e da visita. Fui direto à agência do Correio. Lá, telegrafei a Vidigal: “Parabéns, profeta, você acertou. O transporte aéreo está destruído.”

“De tudo restou aguda e dolorosa observação, cunhada por Vidigal: a de que o Brasil destruiu nossos transportes aquaviários, ferroviários e rodoviários.”

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A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO Ten. Brig. Henrique Marini e Souza Ministro-Presidente do STM

O

notório desconhecimento da Justiça Militar no meio acadêmico reflete-se, deploravelmente, entre magistrados, membros do Ministério Público e outros operadores do Direito. Esse desconhecimento leva alguns a imaginarem que sua finalidade seria a de processar e julgar, corporativistamente, os militares pela prática de qualquer delito, subtraindo-os da competência da Justiça comum. Urge dirimir esse e outros equívocos. As origens da Justiça Militar perdem-se na noite dos tempos. Com efeito, os compêndios da história registram nítidas evidências de que, em passado remoto, povos ditos civilizados possuíam noção de delitos tidos como militares. Em diferentes épocas, isso ocorreu na Índia, na Pérsia, na Macedônia e em Cartago. Certo é que, aproximadamente 2.100 anos a.C., fatos que hoje caracterizam crimes militares eram tipificados no Código de Urnammu, a mais antiga lei escrita conhecida. Como se recorda, Urnammu foi o fundador da terceira dinastia de Ur na Mesopotâmia. Não havia, à época, uma jurisdição militar, cabendo ao rei conhecer e decidir a respeito da prática de quaisquer ilícitos. Na antiga Grécia, os helenos não possuíam uma concepção diferenciada dos delitos militares, devido, especialmente, ao fato de que todo cidadão era considerado soldado. Não obstante, no início, competia ao Archonte, espécie de juiz-sacerdote, conhecer e julgar os delitos hoje considerados militares, atribuição esta mais tarde conferida aos Estratega. 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

Em que pese a constatação desses e de outros fatos históricos relativos aos primórdios, ou primeiros contornos da Justiça Militar, à luz das concepções de Direito e da Justiça, pode-se afirmar que suas origens, suas raízes situam-se em Roma. No Império Romano, ela evoluiu em quatro fases, segundo Crisólito Gusmão (Reis, Cônsules, Prefeitos do Pretório e Consilium), ou em três fases, como leciona Esmeraldino de Barros (da fundação da cidade à guerra social, dos exércitos mercenários, dos exércitos permanentes). Qualquer que seja a visão desta evolução, incontestável é o fato de que o Direito Militar, como Direito especializado, materializou-se e consolidou-se na antiga Roma. Inegável, também, a veracidade da premissa de que o Império Romano só se formou graças à disciplina das legiões romanas e baseado em um rígido Direito Militar aplicado pela incipiente Justiça castrense. Esse direito integrava o Corpus Júris Civilis que no Digesto tratava De Re Militare. A Justiça e o Direito Militar chegaram ao Brasil por intermédio de Portugal. À época do Brasil Colônia, vigiam em Portugal as Ordenações que derivaram da tradução do Corpus Júris Civilis, abrangendo também todo o direito anterior: usos e costumes, forais, leis gerais, concordatas com a Santa Sé, etc. No que se refere especificamente à legislação militar, tanto em Portugal como no Brasil, vigiram as Ordenações Filipinas e, a partir de 1763, os Artigos de Guerra do Conde


Foto: Arquivo Pessoal

Lippe. Tidos como famigerados no sentido de então (famosos) e na atual acepção do termo, esses Artigos de Guerra previam penas bastante severas, tais como: o arcabuzamento, pancadas com prancha de espada e outras. No período do Império (1808/1889), releva destacar a edição de dois diplomas legais: o Código Criminal do Império de 1830 e a Provisão de 20 de outubro de 1834. O primeiro deles, em seu art. 308, dispunha que aquele Código não abrangia os crimes puramente militares, punidos na forma da respectiva lei, fato que importava referendar os artigos de guerra do Conde Lippe e as Ordenações Filipinas. Já a Provisão de 1834 separava os crimes militares praticados em tempo de paz daqueles relativos à época de guerra. Com o advento da República, ocorreram notáveis progressos no tocante à legislação Penal Militar. Logo no dia imediato à Proclamação, o Dec. nº 03, de 16 de novembro de 1889, abolia os castigos corporais na Marinha. Em 1891, pelo Dec. nº 18 de 07 de março, aprovou-se o Código da Armada e, alguns anos após, a Lei nº 612 de 1989 ampliou para o Exército a aplicação dos dispositivos legais contidos no Código da Armada. Posteriormente, através do Decreto-Lei nº 2961, de 20 de janeiro de 1941, estendeu-se a aplicação daquele Código à recém-criada Aeronáutica.

“Com o advento da república, ocorreram notáveis progressos no tocante à legislação penal militar. logo no dia imediato à proclamação, foram abolidos os castigos corporais na marinha.”

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“Em um de seus primeiros atos, D. João VI, pelo Alvará com força de Lei de 1º de abril de 1808, criou o Conselho Supremo Militar e de Justiça, na cidade do Rio de Janeiro, com jurisdição em todo Território Nacional.”

Em 24 de janeiro de 1944, por intermédio do DecretoLei nº 6227, foi aprovado o primeiro Código Penal Militar Brasileiro. Finalmente, no dia 21 de outubro de 1969, através dos Decretos-Lei nº 1001 e 1002, foram aprovados, respectivamente, os atuais códigos Penal Militar e de Processo Penal Militar. No tocante à Organização da Justiça Militar no Brasil, devemos retroceder aos primórdios do Império. Como se sabe, no início do ano de 1808, D. João VI – Príncipe Regente de Portugal – transferiu-se para o Brasil com sua corte. Tal fato, sem paralelo na História das Américas, traria uma série de conseqüências nos campos Político, Econômico e Social. Em um de seus primeiros atos, D. João VI, pelo Alvará com força de Lei de 1º de abril de 1808, criou o Conselho Supremo Militar e de Justiça, na cidade do Rio de Janeiro, com jurisdição em todo Território Nacional. A primeira Constituição Republicana de 1891 não contemplou a Justiça Militar quando dispôs sobre o Poder Judiciário. Todavia, em seu art. 77, previa foro especial para os militares, estabelecendo que este foro seria integrado pelo Supremo Tribunal Militar e pelos Conselhos necessários para instrução e julgamento dos crimes militares. A partir daquela data, a Justiça Militar ficou abrigada sob o pálio da Constituição, alçando-se o Supremo Tribunal Militar e os Conselhos à categoria de órgãos judicantes, de natureza especial, embora não integrados formalmente à estrutura do Judiciário. Ao recordar a trajetória da Justiça Militar da União, cumpre destacar não apenas que a Carta Política de 1934 a inseriu no Poder Judiciário, onde até hoje permanece, nem muito menos citar que a Constituição de 1946 consagrou a atual designação do Superior Tribunal, e, menos ainda, 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

somente afirmar que a Carta Magna de 1988 dedica-lhe três artigos (122, 123 e 124), dispondo, no último deles, sobre sua competência: “julgar os crimes militares definidos em Lei.” Muito mais que lembrar esses importantes marcos históricos, importa sublinhar a serena e edificante atuação da Justiça Militar da União e, em particular, do Superior Tribunal Militar, máxime nos momentos mais conturbados da vida política de nosso País. De fato, o acervo documental relativo a sua história permite constatar que, ao longo de sua existência, a Justiça Militar da União sempre primou por sua independência, por sua coerência na distribuição da Justiça, observando o devido processo legal, atenta aos direitos e garantias individuais, mas preservando também os bens jurídicos tutelados, sobretudo a hierarquia e a disciplina, valores essenciais à própria existência das Forças Armadas. Não sem razão, em diferentes épocas, o quase bicentenário Superior Tribunal Militar foi alvo de inúmeras referências elogiosas de brilhantes advogados e de juristas de renome. Assim foi na primeira República no dizer de Rui Barbosa e no Estado Novo, conforme declarações de João Mangabeira e Sobral Pinto. Foi assim, também, durante o período dos governos militares, segundo depoimento unânime daqueles que tiveram a oportunidade de atuar na Justiça Militar da União. Entre esses, sobressaem aqueles prestados por Heleno Cláudio Fragoso, Técio Lins e Silva e Lino Machado Filho, decano dos advogados que operam nessa Justiça Especializada. Neste ano de 2007, que marca o início das comemorações alusivas ao bicentenário de criação da mais antiga Corte de Justiça do Brasil, convicto estou de que a Justiça Militar da União continuará honrando seu passado, demonstrando o valor da Justiça e correspondendo às expectativas da sociedade brasileira, em particular do estamento militar, onde, predominantemente, se situam seus jurisdicionados.


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CNJ, Um Elemento Propulsor da democracia entrevista com técio lins e silva, membro do conselho nacional de justiça

“A Justiça, felizmente, ainda é formada por homens e mulheres da maior dignidade. Suas imperfeições não são nada diferentes das imperfeições da natureza humana.”

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Conselheiro Técio Lins e Silva, representante da OAB no Conselho Nacional de Justiça – CNJ –, inaugurou o Seminário comemorativo dos 180 anos da fundação dos cursos jurídicos no Brasil, promovido pela Seccional da OAB do Estado do Mato Grosso, durante as festejos da semana de 11 de agosto. Em entrevista concedida à Revista Defesa, Técio aborda vários assuntos polêmicos, todos relacionados à justiça e à cidadania. Hei-la, na íntegra. Revista Defesa – Conselheiro, o senhor foi um dos advogados mais importantes durante o regime militar, atuando na defesa dos presos políticos. Pugnou, muitas vezes, contra uma Justiça essencialmente manipulada pela ditadura e viu direitos serem violados. Como o senhor avalia hoje o Poder Judiciário? Está livre dos ranços da ditadura? Técio Lins e Silva – Infelizmente, a ditadura deixou seqüelas que hoje se refletem no cotidiano da atividade do Advogado. Refiro-me a um tipo de seqüela que é a pior: a ideológica. Nos anos de chumbo, a Justiça Militar deu um exemplo de respeito à Advocacia. Éramos tratados com a devida consideração. Tínhamos dificuldades no âmbito da, digamos assim, polícia judiciária, que era exercida pelos militares das três forças armadas nos IPMs (Inquéritos Policiais Militares), e centralizada a investigação criminal nos porões intransponíveis dos DOI-CODIs, braço armado da tortura e do fundamentalismo político-militar reinante. 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

Os Advogados brasileiros que enfrentaram a ditadura nos Tribunais, unanimemente, têm boas lembranças das relações profissionais estabelecidas com os juízes militares. Eram sempre recebidos quando pediam audiência, tratados com absoluto respeito e podiam exercer a advocacia sem medo e com liberdade. Hoje, há um preconceito não muito explícito contra os Advogados, mas que se revela nas medidas que são autorizadas contra a liberdade de sua ação e o desrespeito às prerrogativas da profissão. RD – Há pouco, o senador Pedro Simon, do Rio Grande do Sul, numa palestra na OAB, disse que hoje o cidadão pega um mandado de segurança nas mãos e não sabe avaliar se aquela decisão foi comprada ou não. Como o senhor analisa isso? TLS – Essa afirmação é o outro lado da moeda do mesmo fundamentalismo. Isso não é verdade. Não é assim que as coisas funcionam. Não concordo, absolutamente, com a afirmação do ilustre Senador. A Justiça, felizmente, ainda é formada por homens e mulheres da maior dignidade. Suas imperfeições não são nada diferentes das imperfeições da natureza humana. E os Advogados são peça essencial para que o funcionamento da Justiça se conserve merecendo o respeito da sociedade. A OAB tem nisso um papel vital. RD – O advento do controle externo é considerado uma


Fotos: Arquivo Pessoal

ferramenta da democracia. O senhor acredita que o Conselho Nacional de Justiça seja, de fato, a essência desse controle social no campo Judiciário? TLS – Eu não tenho a menor dúvida de que o CNJ é um elemento propulsor da democracia que sonhamos para as Instituições republicanas, especialmente para o exercício desse controle social no campo judiciário. Mas isso não cairá do céu nem será consolidado sem luta e sofrimento. Este mandato do CNJ é fundamental para a consolidação dessa idéia de Justiça democrática e merecedora do respeito da sociedade. Ainda há, infelizmente, muita gente que ainda não entendeu a importância desse mecanismo para o futuro da democracia e a própria existência do Poder Judiciário. RD – Do que o senhor conhece do CNJ, em que é possível avançar para melhorar o Poder Judiciário? TLS – Tivemos até agora, praticamente, uma só sessão de trabalho. Mas o suficiente para ver que o Conselho é ótimo e que o seu futuro, na minha avaliação, é – modéstia à parte – brilhante. Temos de conquistar a confiança dos membros do Poder. É preciso que a Nação reconheça que o CNJ não é um órgão que se coloca, invariavelmente, contra o Poder Judiciário. Ele é um instrumento de aperfeiçoamento não só do Poder Judiciário, mas uma Instituição que tem a ver com a construção da própria democracia brasileira. Não podemos esquecer que a ditadura durou 20 anos e ainda é muito recente. Seus estragos ainda precisam da reparação a ser feita por mais uma geração. RD – Ainda sobre o controle externo. É possível criar e fazer funcionar o Conselho Estadual de Justiça, que faria no âmbito estadual? Como o senhor analisa isso? TLS – Vamos com calma. Ainda teremos de “engrossar o couro” para começar a pensar num mecanismo semelhante no âmbito estadual. Há muito o que fazer para que o modelo de controle externo do judiciário e também do Ministério Público sejam aprimorados para que a gente possa pensar na ampliação desse modelo democrático de gestão. RD – Um dos maiores problemas da Justiça como um todo no Brasil está na demora na prestação juridiscicional, criando o sentimento de impunidade. Como se resolve essa questão: qualificando, contratando mais profissionais, enfim, qual a saída para esse problema secular da nossa Justiça? TLS – Essa pergunta pode merecer um seminário, um congresso, um livro e até uma enciclopédia. Eis a questão! Não há uma receita milagrosa para a solução dessa proposta. A pergunta já responde parte dela, mas há muitas questões em jogo. Claro que é necessário simplificar o procedimento sem descartar todas as garantias de defesa. A criação de mecanismos que permitam a resposta pronta do poder público já consta do esforço dos Juizados Especiais, por exemplo. Há questões de infra-estrutura, com certeza. Mas há outras reflexões que devem ser feitas neste momento. O ensino jurídico é um filho bastardo da ditadura. O país sofreu muito

na área da educação como um todo. Mas o ensino jurídico tem uma responsabilidade importante na formação de maus operadores do direito. Agora mesmo, por exemplo, querem fazer do Exame de Ordem uma bandeira eleitoral. Há um projeto em andamento que pretende extinguir, perigosamente, a sua obrigatoriedade e, equivocadamente, vejo importantes lideranças do movimento estudantil patrocinando essa idéia atrasada e propondo o retrocesso. Os estudantes devem ficar atentos a essa verdadeira tentativa suicida de se acabar com a profissão. RD – Membros do Judiciário são eloqüentes ao atribuírem a demora nas decisões aos excessos de prazos, embargos, etc. O senhor concorda que esteja nas leis, na ação do exercício de defesa, o problema maior nessa demora dos julgamentos? TLS – A lei não deve ser considerada como algoz dessas mazelas, claro. Mas ela tem a sua parcela significativa de responsabilidades. Somos herdeiros de um procedimento e uma prática judiciária cartorial. Aqui temos réplica e tréplica; em Portugal, quadrúplica e quíntupla... Acho que podemos simplificar um pouco o procedimento, torná-lo menos complicado e mais inteligível. Repito apenas: não concordo com nenhuma medida que reduza a garantia do direito de defesa nem atribuo ao seu exercício as razões da demora e impunidade. Isso é um discurso equivocado, o que atribui à defesa a responsabilidade dos males que padece a Justiça. 2007 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


“A Justiça não padece sozinha. A democracia brasileira não depende apenas da Justiça, mas da prática política e eleitoral dignas do respeito aos direitos da cidadania.”

Quem dera que nesse País a defesa pudesse ser exercida em sua plenitude. Ainda não existe nem Defensoria Pública organizada em todos os Estados. Santa Catarina, por exemplo, nem iniciou o processo de sua instalação, apesar de estar essa obrigação na Constituição que ano que vem completa 20 anos! Ao contrário, a garantia de defesa e os mecanismos de amplo acesso à Justiça é que podem ser a redenção da própria Justiça. RD – O Congresso Nacional, desde o advento da Constituição de 1988, trabalha reformas. Uma delas é a do próprio Judiciário. Os interesses políticos, na sua avaliação, vem sobrepondo o interesse coletivo por uma justiça forte, rápida, eficiente e que garanta o direito do contraditório? TLS – É preciso compreender que todas essas questões devem funcionar como vasos comunicantes. Ora, não precisamos apenas modernizar o Poder Judiciário e tornar a noção de Justiça mais democrática. Precisamos muito de uma reforma política, modernizar os seus meios e a sua prática. Será que temos Partidos Políticos dignos desse nome? A Justiça não padece sozinha. A democracia brasileira não depende apenas da Justiça, mas da prática política e eleitoral dignas do respeito aos direitos da cidadania. Não se pode saciar apenas a fome de Justiça. Devem ser saciadas as necessidades de educação, trabalho, moradia, eliminar a fome, ter bem estar, etc. Precisamos entender que fazer a reforma agrária e criar a justiça agrária não são formas de aproximar a vida ao fim do mundo... Aprendi que não se pode sonhar com uma Justiça de verdade se não assumimos um compromisso integral pela construção da Democracia em todos os setores da vida humana. RD – A emenda 45 trouxe uma série de mudanças jurídicas. O que o senhor viu como mais positivo e aquilo que foi mais negativo? TLS – A criação do CNJ foi um passo muito importante na direção desse sonho que todos nós acalentamos. Mas é claro que a emenda 45 foi a reforma possível. Vamos cumprila, sim, para depois pensar em avançar com novos projetos no âmbito do judiciário. RD – Há tempos, o Brasil vem vivendo de um imediatismo sem precedentes. Todos os dias, praticamente, a Polícia acorda cidadãos com um mandado de prisão nas mãos. A Justiça está funcionando? 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

TLS – Pelo menos, agora, a Polícia traz um mandado. Mandado de quem manda, o Juiz. Antigamente, a Polícia vinha sem nenhum mandado, ou seja, vinha apenas com o seu mandado verbal, ditado por ela mesma, sem nenhum controle jurisdicional. Convenhamos que só isso já é um avanço significativo, se considerarmos que há muito pouco tempo atrás a Polícia prendia as pessoas pela prática da contravenção penal da “vadiagem”, lembram? O que há necessidade de ser melhor observado, a meu ver, é o controle dessa atividade que, muitas vezes, é feita apenas como espetáculo midiático. Aqui a responsabilidade do Ministério Público também é muito grande. RD – Recentemente, o senhor condenou o uso de grampos em escritórios e o desrespeito ao direito de defesa. Em verdade, é uma violação flagrante às prerrogativas dos advogados. Ainda assim, persiste. O que fazer para frear essa situação? TLS – Eis um tema importante para a vida profissional do Advogado e para a garantia de cidadania. Como eu tinha dito antes, nem na ditadura os Advogados sofreram tantos constrangimentos. Era inconcebível pensar em violar o arquivo do Advogado, desrespeitar a inviolabilidade do escritório profissional. Não se respeitava o asilo inviolável do lar, de onde os agentes da ditadura retiravam manu militari trabalhadores, estudantes, intelectuais, jornalistas, enfim, quaisquer adversários políticos do regime. Mas não faziam o mesmo quando se tratava do escritório do Advogado. Essa comparação é impressionante. Hoje, não há nenhum respeito pela atividade do Advogado. Ele é igualado aos inimigos da ditadura de ontem. É preciso intensificar esse debate; discutir com os estudantes; levar o tema para o debate com a sociedade civil. É preciso mais do que nunca fortalecer a OAB, garantidora da cidadania. RD – Ainda sobre essa questão dos grampos: como se resolver essa questão, tecnicamente, contraditória: de um lado, a necessidade de investigar a contento; de outro, a manutenção das garantias individuais do cidadão? TLS – Não há nenhuma justificativa para o uso desses mecanismos sórdidos da investigação criminal. Justifica-se na iminência de um seqüestro, para salvar uma vida, enfim.


Para a atividade de polícia judiciária do cotidiano, devem ser usados métodos de investigação que usem a inteligência e não privilegiem a invasão da intimidade, o desrespeito à liberdade de viver e ao direito que todos temos de não sermos vítimas dessa bisbilhotice patológica. RD – Atualmente, órgãos como o Ministério Público se vangloriam pela imprensa de ter adquirido equipamentos sofisticados para fazer escutas telefônicas. O Ministério Público pode fazer esse tipo de investigação, mesmo com a existência dos chamados Grupos Especiais? TLS – Penso que não! Sou absolutamente contra essa invasão da atividade policial. Não vejo nenhuma justificativa disso. E, lamentavelmente, trata-se de uma prática que se desenvolve como se fosse normal. Tenho esperanças de que o CNMP acabe com essa orgia e impeça a proliferação desse “voyeurismo”. RD – Há muito se tenta abrir o Judiciário. Por exemplo: o Executivo é julgado eleitoralmente e todas as atitudes e ainda exposto a cada irregularidades, cada denúncia; o mesmo acontece com o Legislativo, também avaliado pela sociedade. O Judiciário precisa de estabilidade. O senhor acredita que o Judiciário ainda é uma “caixa preta”? TLS – Acredito que em alguns aspectos ele poderia ser assim considerado. Na questão dos vencimentos, por exemplo, que sempre houve uma tradição de pouca transparência. Com relação à prática do nepotismo, igualmente, ainda hoje há uma reação aqui e ali que não faz justiça ao poder judiciário. Mas de resto, não. O CNJ é um instrumento importante para retirar da sociedade essa impressão que a pergunta insinua. Sou um otimista militante e acredito que o futuro dos Poderes do Estado será um futuro mais democrático e livre. RD – Ainda nesse sentido, o senhor é a favor de se manter sigilo sobre os procedimentos contra magistrados? TLS – Sou, em geral, contra as ações sigilosas do poder público. Sempre fui contra as sessões secretas e os votos secretos no exercício do poder. Mas sou absolutamente a favor de que o sigilo a que têm direito as pessoas seja resguardado, seja ele magistrado ou não. Não se pode expor ninguém à execração pública, violando-se os direitos que lhe são assegurados por lei. Fora disso, a Justiça é pública e o cidadão tem o direito de saber o que se passa dentro dela. 2007 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


Concessões e permissões nos serviços públicos Palestra proferida no Seminário “Questões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo”, no dia 01/06/2007, em Campos do Jordão.

Marcos Juruena Villela Souto

Procurador do Estado do Rio de Janeiro

T

oda questão que envolve uma concessão e uma permissão envolve uma relação com o mercado. Os problemas trazidos e os que pretendo colocar em debate são problemas que, de alguma forma, causam instabilidade às concessões e, com isso, investimentos são instabilizados, não interessando ao empresário, ao poder público que se vê, em última análise, em qualquer situação de desestímulo ao investimento, obrigado a atender esses interesses fundamentais, o que significa lançar mão de recursos que poderiam ser utilizados em outros setores para os quais não podem ser utilizados os recursos privados. O princípio da livre iniciativa, em matéria de serviços públicos, impõe a opção primeira pela busca do capital privado, no qual ele se dispõe a investir para que o capital público possa ser investido em setores onde não pode ser detido o capital privado, quer pela falta de interesse em razão da falta de lucratividade, quer pela impossibilidade de gestão privada de funções que exigem a autoridade do Estado. Então, para esses casos, deve-se ser reservado o uso do capital público. Conseqüentemente, deve ser incentivado o uso do capital privado não só por um imperativo fundamental da Constituição da República que valoriza a iniciativa privada como, especialmente, para que o capital público possa ser empregado em setores que efetivamente reclamam uma presença marcante e maciça do Estado. É nessa linha que pretendo conduzir uma apresentação de questões que envolvem uma instabilidade e que, portanto, exigem uma reflexão em eventos desse porte. Uma primeira constatação a chamar atenção é que 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

houve uma enorme evolução no tratamento do tema das concessões no serviço público. A concessão deixou de ser aquele contrato de extrativo bilateral firmado entre Estado e particular para representar uma relação quadrilateral, a qual representa a premissa não só do contratante, poder concedente do concessionário, mas, acima de tudo, voltada para o atendimento de um usuário que é o destinatário final dessa atividade estatal concedida, e com uma visão cada vez mais atualizada com a presença de um regulador que deve ser eqüidistante dos interesses políticos, do concedente e dos interesses econômicos financeiros, tanto dos concessionários quanto dos usuários. Acho que a evolução de uma relação bilateral para uma relação quadrilateral não significa dizer que surge uma relação multilateral em que todas as entidades da federação e todos os poderes podem, de alguma forma, interferir na relação que tem um contexto bem definido. A presunção deve ser no sentido de que o poder concedente atua dentro dos limites da lei: a lei de concessões de serviço público, a lei de política tarifária e a lei que disciplina o próprio serviço público e autoriza essa gestão privada. Exige-se a definição de quem é o poder concedente nas regiões metropolitanas. Isso, sem dúvida, cria uma instabilidade enorme em saber quem é a parte legítima para firmar o contrato. Essa não é uma preocupação exclusiva do setor de transporte. O setor de saneamento vive com investimentos atrasados devido a essa indefinição que já paira sobre o Supremo Tribunal Federal há mais de 10 anos. Isso,


Fotos: EMERJ Da esquerda: Dr. Marcos Juruena Villela Souto, Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Desembargador Paulo Ventura, Diretor da EMERJ, e Desembargador Querubim Swartz

efetivamente, precisa ser objeto de algum tipo de definição. Há também um conjunto de dúvidas sobre a validade de uma pessoa não-política, ou seja, de uma pessoa administrativa, lotadamente autarquias, agências reguladoras exercerem o poder concedente. Não são poucas as discussões levadas ao Poder Judiciário no sentido de que o artigo 2º da Lei de Concessões só contempla com o poder concedente as pessoas políticas, União, Estado e Município, o que, data venia, não deve representar uma correta interpretação do dispositivo, já que uma norma Geral Federal não poderia adentrar em imposição de limitações à organização administrativa dos Estados e Municípios que podem, portanto, atribuir esse poder a órgãos e agências reguladoras, como fazem hoje o Estado e o Município do Rio de Janeiro, por meio de autarquias e agências reguladoras. Também é muito importante firmar uma distinção que é feita na constituição e, muitas vezes, é pouco trabalhada no âmbito da provocação do controle Jurisdicional. Os usuários de serviços públicos vão ao poder judiciário invocando o conceito de direitos do consumidor como se a relação de serviços públicos fosse uma relação privada, em que apenas interesses privados de consumidor e fornecedor estivessem em jogo, quando, na verdade, a relação de serviços públicos tem subjacente uma relação de solidariedade, de preocupação, de inclusão social, de atendimento da dignidade da pessoa humana e que implica uma necessidade, tanto de usuários que mais podem quanto do próprio poder concedente, de arcarem com os custos dessa solidariedade com vista à inclusão social.

Existe um outro conjunto de problemas que envolvem a pessoa jurídica do concessionário. Isso tem ensejado algumas declarações de inconstitucionalidade no âmbito do poder judiciário de leis que admitem a transferência da concessão pelo concessionário à outra pessoa jurídica, que não foi a vencedora de licitação, quando, na verdade, a idéia de execução personalíssima dos contratos de concessão já foi bastante atenuada apelo artigo 175 da Constituição Federal, quando exigiu que o contrato de concessão fosse executado por pessoas jurídicas, de modo que a idéia, no âmbito da reforma do Estado, é viabilizar o investimento privado. Para que o investimento privado ocorra onde haja recursos privados para disponíveis, é preciso tratar a concessão como um negócio que tenha liquidez, a qual deve permitir a transferência do fundo de comércio, observado o padrão de qualidade que tenha sido fixado na licitação. Quando se faz a licitação, o que se quer é fixar um padrão de qualidade, um padrão de tarifas e não, necessariamente, a finalização do serviço público. Essa foi a idéia quando se impediu que serviços públicos fossem concedidos a pessoas físicas, mas sim a pessoas jurídicas. Portanto, pouco importa o titular das ações representativas do controle de uma empresa, mas sim o padrão de eficiência representado pela preservação, e da proposta vencedora e sua atualização no âmbito da execução no contrato de concessão. Um outro problema é nos casos de concessões de serviços, especialmente os que envolvem o setor de transporte, dada limitação do equipamento urbano, não raro envolvem a atribuição do serviço público por meio da previsão de 2007 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


“Cada obrigação instituída, qualquer que seja ela, representa uma elevação de custo na prestação do serviço público, e cada elevação de custo na prestação do serviço público pode significar um universo de excluídos no acesso a este serviço público por impacto no princípio da moticidade das tarifas.”

Dr. Marcos Juruena Villela Souto, Procurador do Estado do Rio de Janeiro

monopólios. Entretanto, esses monopólios, transferidos ao setor privado com um preço que, normalmente, é melhor para o poder concedente transferir o monopólio, não, necessariamente, são monopólios honrados do ponto de vista fático, dada a presença de agentes irregularmente atuantes em competição com algo que juridicamente foi delegado sobre a forma de monopólio. Há um número de agentes que interferem nesses processos sob as mais diversas formas. A mais comum, a permissão, que, em princípio, no âmbito da lei 89/87, posterior à constituição, deveria entender situações que não comportam o uso da concessão. Não me refiro às concessões e permissões anteriores à constituição, mas há, sem dúvida, a possibilidade do uso desse instrumento para situações de natureza transitória ou precária, como é o caso de experiências como instituição de novas vias ou breves mudanças de traçado, também para fins experimentais, que não justificam, necessariamente, uma nova concessão de imediato e uma licitação, enquanto isso se tratar de uma experiência de natureza temporária. Um instrumento das autorizações deveria ser, talvez, uma das vias a ser refletida e empregada para a legalização das situações que estão à margem da lei. Há determinadas atividades que, não tendo compromisso com a modicidade, com a continuidade e, eventualmente, com a regularidade, não deixam de ter um interesse social relevante, quer para a 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

segurança dos usuários, quer para a estabilidade econômica, financeira, dos concessionários que fizeram investimentos, acreditando na disciplina fiel pelo poder concedente desses serviços delegados. Essas situações poderiam ser disciplináveis no âmbito do uso do instrumento das autorizações de serviços públicos e, como a autorização não tem um formato constitucionalmente previsto de precariedade, a disciplina da autorização pode se dar pela via infraconstitucional, definindo-se, como fez, por exemplo, a lei de telecomunicações, autorizações vinculadas a quem preenche requisitos e, a partir dessas autorizações vinculadas, certamente, uma disciplina mais intensa sobre estas atividades que estão acontecendo à margem da lei, sem qualquer compromisso com quem quer que seja, a não ser com os próprios transportadores irregulares. O outro instrumento que talvez pudesse ser utilizado para a criação da legalização, que é pouquíssimo divulgado no direito brasileiro, é o das atividades comunicadas ao poder público. O que tem sido praticado, no âmbito do transporte ilegal de passageiros, é uma invocação de que, se aquela atividade não foi definida porque não preenche os requisitos de serviço público, ela não foi retirada do plano da livre iniciativa para ser atribuída a titularidade de estatal; e eu sou daqueles que ainda faz a distinção entre atividade em regime de livre iniciativa, de titularidade prioritária no setor privado, e serviços públicos, cuja titularidade pertence ao Estado, que podem ser desenvolvidos sob a forma de delegação a particulares por meio de concessões e permissões. Este limbo, no entanto, é desconhecido, não se sabe até agora qual é o limite de razoabilidade em que essas atividades se encontram, ou no plano da livre iniciativa ou, ao revés, no âmbito da ilegal prestação de serviços públicos. A solução para esse tipo de problema era disciplinar o instituto das atividades comunicáveis, por meio do qual


o particular que exerce hoje uma atividade de transporte alternativo submeteria, a seu pleito, condições de trabalho ao poder concedente, que hoje não tem qualquer condição física, econômica, técnica de exercer fiscalização e saber quem está desenvolvendo essa atividade perturbadora. Sendo assim, por essa via, que não representa um instrumento de consentimento de polícia, mas sim uma colaboração para exercício da fiscalização de polícia, se comunicaria ao poder público o exercício da atividade. O poder público examinaria as condições em que são desenvolvidas essas atividades e concluiria, ou pela legalidade, chamando para firmar os competentes termos de ajustamento de conduta, ou ao revés, a imposição de uma proibição. A vantagem disso é, de um lado, viabilizar o terceiro momento do exercício do poder de polícia. O nome do professor Diogo de Figueira Moreira Neto sustenta que o poder de polícia é desenvolvido em quatro momentos: no comando de polícia, onde está estabelecida a limitação da liberdade individual em prol do interesse coletivo; o consentimento de polícia, em que o interessado vai ao poder público antes de exercer sua atividade; a fiscalização de polícia, que independe de provocação do particular e a administração exerce de ofício o poder de polícia e a sanção de polícia. Falamos é de uma comunicação para que o poder público exerça a fiscalização de polícia que ele poderia exercer de ofício, mas, sem dúvida, não tem condições humanas, físicas, técnicas e financeiras de exercer. Uma vez provocado, isso traria vantagens para ambos, tanto para o concedente quanto para o particular que, em constatada sua ilegalidade de atuação, poderia se ver exonerado da punição, ao contrário do que deve acontecer se essa fiscalização de polícia é exercida sem qualquer comunicação ao poder público. Isso seria talvez um mecanismo de viabilização do interesse geral no exercício dessa atividade. Há situações mais graves, que são chamadas de externalidade, para as quais não concorrem nem o concedente, nem o concessionário, nem o usuário, mas que impactam negativamente à execução do contrato de concessão. São elas várias, que são ligadas às questões de concessão e permissões anteriores à constituição que não tenham sido licitadas, o próprio transporte coletivo, as interferências de outras entidades da federação, de outros poderes, e a diferença de tratamento na disciplina regulatória desses serviços. A cada uma delas, aplica-se a questão que envolve o artigo 42, o qual pretende tornar nulas todas as concessões e permissões que não forem licitadas, tudo isso por conta do artigo 175 impor a licitação. Há todo um conjunto de discussões e decisões, no âmbito do poder judiciário, reputando inconstitucionais as prorrogações de concessões de serviço público ao argumento de que elas não teriam sido licitadas. Sem emitir qualquer juízo de valor a respeito dessas decisões para um lado ou para o outro, o que importa é que o fato existe. Existem decisões que devem ser cumpridas e ensejam uma situação de fato, há pessoas prestando serviço

público sem um título jurídico válido, e isso tem que ser refletido em torno de uma preocupação com o princípio da continuidade do serviço. Contudo, mais uma vez, como prosseguir no serviço público, que é essencial por previsão constitucional, em um cenário de instabilidade de investimentos? A continuidade do serviço público é um imperativo associado ao dever de prestar esse serviço não só em caráter contínuo como com eficiência. Como garantir a eficiência em um cenário de instabilidade? Sem dúvida, esse é um desafio que precisa ser superado. A questão do transporte alternativo de passageiro, a discussão se isso é ou não livre iniciativa ou, ao contrário, prestação irregular de serviço público, independentemente do juízo que se faça a respeito dela, tem provocado uma competição desigual entre agentes que têm obrigações estabelecidas em um ato jurídico que atribui o título jurídico para prestação de serviço público, com outros agentes que não têm compromisso com quem quer que seja, a não ser com si próprio. Sem dúvida, é um fato a ser enfrentado, tanto quanto é a questão das interferências negativas ou positivas de outras entidades da federação. Já foi registrado que se perde muito tempo em engarrafamentos, perde-se qualidade de vida, perde-se receita que desequilibra contratos, a má conservação de rodovias não, necessariamente, cabe aos mesmos poderes concedentes que delegam os vários modais de transportes, havendo, portanto, toda uma discussão que envolve uma interação entre políticas federais, estaduais e municipais, e que precisam ser objeto de uma reflexão. Outra questão importante é a da participação do poder judiciário, inovando o contrato de concessão quando fixa condenações por assalto em ônibus ao argumento de que os ônibus deveriam, em razão da freqüência dos assaltos em megalópoles, como é o caso do Rio de Janeiro, ser dotados de equipamentos diversos para a proteção da segurança dos usuários. Sem dúvida, isso representa uma preocupação constante de todos os poderes, dos particulares e dos usuários, mas não resta dúvida de que, por outro lado, toda essa criação de obrigações implica em instituir formatos que não foram idealizados pelo poder concedente no momento da delegação. E não foram idealizados porque existe um dever de ponderação. Cada obrigação instituída, qualquer que seja ela, representa uma elevação de custo na prestação do serviço público, e cada elevação de custo na prestação do serviço público pode significar um universo de excluídos no acesso a este serviço público por impacto no princípio da moticidade das tarifas. Como Procurador do Estado, mas, sobretudo, como procurador de consultoria, busco sempre manter o mesmo discurso na academia e na Procuradoria Geral do Estado, no sentido de definir que determinadas competências, determinado grau de ponderação cabe ao poder concedente. É ele quem tem o manejo da formação dos contratos de atos de delegação de serviço público, 2007 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29


“há necessidade de que a atribuição de benefícios seja acompanhada efetivamente de um critério de restauração do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos entre usuários e concessionários, entre concessionários e poder público(...)” e a substituição de suas ações por outros poderes pode implicar, eventualmente, uma discussão que envolve o artigo segundo da Constituição Federal. Há também ainda a interferência do poder legislativo desapegado de compromissos outros que não o agrado à massa eleitoreira, mas que precisa ser lembrado. É legítima sim a atribuição de gratuidades submetidas à possibilidade de controle em sua concessão, mas o fato é que essa preocu-pação de inclusão social, com vistas à dignidade da pessoa humana, não pode transformar uma obrigação solidária em uma obrigação solitária. O estado assume com o particular nessa relação de mercado, e concessão é uma relação entre o Estado e o mercado. Enquanto não se preserva o mercado como uma instituição viabilizadora de investimentos, pode-se inviabilizar a própria atuação do poder público, sufocando recursos que deveriam ser empregados em outros setores. Dessa forma, a preocupação que trago aqui não é a preocupação do empresariado, não é, necessariamente, a preocupação do usuário do serviço de transporte, mas é a preocupação dos usuários de todos os outros serviços públicos, mormente, aqueles que não podem receber o aporte de capital privado porque não há lucratividade ou não há permissividade para fórmulas de direito privado em situações que exijam uso de autoridade. Ou seja, há necessidade de que a atribuição de benefícios seja acompanhada efetivamente de um critério de restauração do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos entre usuários e concessionários, entre concessionários e poder público, mas, mais uma vez, essa definição – embora o judiciário possa, legitimamente, corrigir a situação de ilegalidade da quebra do equilíbrio contratual –, a escolha do critério de recomposição do equilíbrio por determinação judicial, o formato de escolha deve, por uma questão de obediência e homenagem ao artigo segundo da constituição federal, caber ao poder concedente. Uma outra preocupação, essa dificilmente tem chegado ao poder judiciário, mas é um objeto de discussão no âmbito acadêmico, é a submissão de agentes reguláveis a diversos tipos de regulação, muitas das quais submetidas a critérios não técnicos. O formato idealizado neste modelo de reforma do Estado é que as escolhas públicas se submetam a uma processualização e a uma motivação técnica com 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

participação dos interessados, por meio de canais que viabilizam a realização de consultas públicas e audiências públicas para se chegar a uma ponderação tecnicamente motivada. Leia-se tudo isso como uso da metodologia da regulação para a definição dos critérios do que seja serviço adequado e equilíbrio contratual. Quando essa metodologia não é, necessariamente, garantida, porque as autoridades mediadoras podem ser substituídas, de uma hora para outra, por critérios políticos, certamente se cria um cenário de alta instabilidade de elevada insegurança jurídica que ou afasta ou encarece o custo dos investimentos que também devem ser objeto de uma reflexão. O que eu proponho com tantas polêmicas trazidas à reflexão é que muito se fala no moderno direito administrativo, da busca da consensualidade. A tradição cultural, política e administrativa brasileira é de que ninguém abre mão de competências e não, necessariamente, levando anos e anos para definir quem é o competente, quem é o concedente, quem é o regulador que perde o usuário e espera muito tempo por uma solução... Mais uma vez, como exemplo, temos o evento do saneamento básico: quantas vidas poderiam ter sido salvas se o serviço de saneamento básico pudesse ter recebido mais investimentos nesses últimos dez anos? Nunca houve investimento porque ninguém sabe quem é a parte legítima para firmar o contrato. Sendo assim, a partir dessa reflexão da utilidade da defesa de prerrogativas próprias em que se proponha a idéia de consensualidade, de legitimação para celebração de acordos substitutivos dos quais o exemplo mais conhecido é o da celebração de termos de ajustamento de conduta, chamase todos os envolvidos e verifica-se como cada um pode concorrer, sem mais delongas, sem maiores complexidades em defesa de prerrogativas e poderes próprios, como é que se pode concorrer para satisfação imediata do resultado de interesse público. Essa é uma visão de como se definir os problemas, chamando os interessados em sua solução imediata. Claro que isso pode, mais uma vez, ensejar uma decisão de natureza regulatória, e a autoridade competente talvez fosse,


nesse formato de relação quadrilateral, o agente regulador eqüidistante das partes para, motivando, tecnicamente, suas decisões, chegar a um ponto de equilíbrio em que se pondere imediatamente os princípios da constituição, especialmente o da eficiência, o da segurança jurídica e o da continuidade dos serviços públicos com o equilíbrio econômico-financeiro deste contrato. É também enorme a preocupação com o dever de preservação dos bens vinculados; aqui, há uma enorme controvérsia, já que a doutrina não tem colaborado na discussão do que sejam bens vinculados e de quem seja a propriedade desses bens vinculados, o que, em matéria de serviço público de continuidade e eficiência, pouco importa. Essa é uma discussão que tem sido tratada com muito preconceito; não existe regra pra definir se os bens afetados a prestação dos serviços públicos são bens públicos ou bens privados. Cada contrato tem sua própria economia, é ali onde se vai definir se é ou não indispensável que o bem seja reversível. O que importa, ao longo do contrato, é que o bem, público ou privado, seja objeto de preservação, de manutenção e poupado de eventuais penhoras, de modo que se preserve a continuidade do serviço público. A questão de preservação da equação econômica e financeira dos contratos é uma questão também de natureza técnica; o que se fala não é, necessariamente, de uma discussão jurídica, pois o direito é mero instrumento de uma relação que é econômica e, portanto, exige uma reflexão de natureza técnica, e o momento adequado para isso tem sido previsto nos contratos, por meio dos reajustes e das revisões programadas para se refletir, de tempos em tempos, sobre o custeio do serviço público. Essa, ao lado dos acordos substitutivos, é uma outra forma de se viabilizar o equilíbrio dos contratos em vista da eficiência e há necessidade de que os reguladores se organizem para tanto. Surge agora mais uma questão polêmica – que tem sido objeto de discussão acadêmica e ainda não chegou ao judiciário, mas, certamente, vai chegar –, que é o cabimento ou não do recurso hierárquico impróprio contra decisões de agências reguladoras. Muito se diz que as decisões das agências reguladoras só podem ser definidas no âmbito do poder judiciário, por conta da autonomia e independência que foi dada a esses novos entes que integram a administração pública. Data maxima venia, não me parece que ninguém receba competência, autonomia, independência para a prática de atos contrários a lei. Há de uma agência reguladora que estabeleceu, contra a vontade da lei, que os reajustes e as revisões não poderiam ser executados, apesar dos prazos legal e contratualmente previstos não terem sido por ela observados, ao argumento de que a agência reguladora se via impossibilitada de atingir um coro mínimo para deliberar sobre os processos de reajustes e revisão. Data maxima venia, quando a lei diz que, se depois do prazo previsto, a agência reguladora não

se manifestar, os concessionários têm direito de praticar os reajustes. Isso é uma decorrência de uma omissão administrativa, não se trata de ato administrativo tácito, mas, ao contrário, conseqüência decorrente da omissão administrativa. A prática de um ato normativo da agência reguladora, impedindo esse reajuste, contrariamente ao que dizia a lei, não encontra respaldo em qualquer autonomia ou independência técnica, podendo, a meu ver, ser perfeitamente reconhecido pelo poder concedente, porque ninguém no direito recebe autonomia ou independência para agir contra a lei, mas sim para agir dentro do regulamento jurídico. Existe uma questão também pouco trabalhada e pouco pacificada que é no que concerne as receitas alternativas, acessórias, complementares, que se sustentam e que devem ser obrigatoriamente levadas para a modicidade das tarifas. Esse é o lado simpático da tese, como se, de outro lado, o poder público, no momento em que formata os editais de concessão e de reforma do estado por meio de outros instrumentos de desestatização, tivesse conhecimento de quais são as formas de obtenção de receitas acessórias, alternativas e complementares. Com isso, no momento em que se pretende delegar um serviço ao setor privado, quanto mais atrativo se tornar esse serviço ao setor privado, maior vai ser o aporte de investimentos, não necessariamente interferindo na criatividade do setor privado, na obtenção dessas receitas, porque, se essas receitas todas são levadas para o cálculo da tarifa, nenhuma vantagem vai surgir para o concessionário que nelas invista, de modo que a preocupação é a de viabilizar os investimentos por meio da criatividade do setor privado. Caso utilize a revisão programada dos contratos para discutir qual é o destino adequado e proporcional ao equilíbrio contratual que vai se dar a esse tipo de receita, a idéia do contrato é que ele, em algum momento, tenha um final que ocorrerá ou pelo descumprimento ou pela decisão política do poder concedente. Em vista da segurança jurídica, estabeleceu-se que essa decisão não é isolada do chefe do poder executivo, mas sendo uma decisão política sobre a encampação, ela deve ser partilhada com o poder político, no caso, o poder legislativo. Muito se discutiu que haveria inconstitucionalidade, que a encampação seria uma decisão de natureza meramente administrativa e que o legislativo não deveria se intrometer, mas o fato é que encampação por interesse público não representa um juízo privativo do chefe do poder executivo, mas o contrário. O interesse público é um conceito indeterminado e de forte conteúdo político que deve ser partilhado pelas autoridades políticas. Não existe nenhuma inconstitucionalidade a respeito disso, e a segurança jurídica deve ser preservada no sentido de que, só se temente a essa medida, toma um negócio de alguém que acreditou no Estado e nele investiu para atender interesses públicos, se houver a devida reparação prévia tal como ocorre nos casos de desapropriação. 2007 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31


Notas introdutórias sobre a natureza jurídica da arbitragem Ana Tereza Palhares Basílio Membro da Comissão Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI André R. C. Fontes Desembargador do TRF – 2ª Região

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onhecemos, nestes onze anos de aplicação da Lei de Arbitragem, seu valor e sua funcionalidade prática em nosso país. Os estudos sobre o assunto continuam em franco desenvolvimento e, paralelamente, a experiência nos mostra que a arbitragem já está inserida na cultura jurídica nacional. Essa dupla perspectiva, teórica e prática, tem se convergido em valiosos estudos e criado um ambiente que não encontra correspondência na forma tradicional de aplicação do direito no Brasil. À primeira vista, pode parecer uma assertiva dura e radical a de mal comparar o ambiente de aplicação da arbitragem com o do direito, mas, desde já, recordamos que, na arbitragem, não se operou a distância entre a teoria e a prática, que domina o direito brasileiro. Tornou-se lugar-comum nos mais variados ramos do direito a existência de dois mundos distantes. O primeiro, muitas vezes pejorativamente chamado de acadêmico ou teórico, é o primeiro encontro que o jurista tem com ciência de que vai operar. Esse mundo que preenche o espírito e a mente iniciante, e que também outorga a ele o título de jurista, não o acompanha na extensão de sua vida profissional. O segundo momento é o território da prática, essa respeitada dimensão do conhecimento, que é tão distante da semente teórica plantada no profissional do direito. Os mais importantes e destacados juristas brasileiros sempre salientaram que o profissional do direito aplica algo diverso e distante do que é encontrado na teoria. Muito mais do que um mero praxismo, essa afirmação está associada, em verdade, a um suposto dinamismo que a prática oferecerias em detrimento da teoria, marcadamente estática. Essa, 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

entretanto, não é uma realidade presente na arbitragem, especialmente em nosso país. Podemos identificar, claramente, os elementos teóricos e práticos da arbitragem, amalgamados ou simplesmente indissociados. Uma leitura breve dos mais conhecidos textos sobre o assunto nos dará a confirmação dessa afirmativa. O funcionamento e a aplicação da arbitragem levantaram mais controvérsias do que qualquer outro ponto de vista teórico sobre esse assunto. De fato, há tanto comentário crítico a respeito da aplicação da arbitragem que é possível até que alguns de seus defensores tenham, em algum momento, pecado pela contradição. Não obstante todos esses estudos, sérios e importantes para a práxis, em todos eles, o que se vislumbra é uma única questão: a extensão e os limites da arbitragem. Passados onze anos da Lei da Arbitragem e de sua indiscutível efetividade, gostaríamos de suscitar uma questão que retoma aspecto anterior ao funcionamento e aplicação do instituto. Gostaríamos de voltar ao inconcluso debate em torno da natureza jurídica da arbitragem. É sobre esse tema que desenvolvemos as idéias que se seguem. O esboço de explicação usado pelos estudiosos da arbitragem pode apresentar-se a partir de três grupos de teorias: Teorias Privatistas,Teorias Jurisdicionalistas e Teorias Intermediárias. Desde já, ressalvamos que os questionamentos sobre a natureza jurídica da arbitragem traduzem-se na dicotomia público-privado. Os adeptos da caracterização da arbitragem no direito público atentam sempre para seu aspecto jurisdi-


Foto: Arquivo JC Drª. Ana Tereza Palhares Basílio

cional. Já os partidários do direito privado a qualificam como instituto negocial ou, mais especificamente, contratual. A partir dessa polaridade, a dicotomia de direito públicoprivado sofre abalos pelas críticas mais variadas dos autores atuais, como nunca aconteceu. Para atender ao exame tradicional do direito público e do direito privado, teríamos que agrupar, em cada uma das colunas, a ordem de raciocínio que cada perspectiva conduz. Não nos aventuraríamos aqui a fixar marcos sobre um ou sobre outro. E, por essa razão, damos uma prova clara de nosso desprendimento dicotômico, ao partirmos de uma tríplice análise neste estudo. A essência das Teorias Privatistas é a de considerar a arbitragem como criação da autonomia da vontade, o que a associa à idéia de negócio jurídico e, de modo mais específico, do contrato. Essa forma de pensar encontra sua origem na Roma antiga. Nos primórdios do direito romano, a solução dos conflitos era feita pelos próprios ofendidos ou, então, pelos grupos a que eles pertenciam, mas, ao longo do tempo, reconheceu-se que, ao invés de usar da vingança individual ou coletiva contra o ofensor, melhor seria a escolha de um terceiro que fixasse uma justa solução ao caso. Esse terceiro escolhido pelas partes era justamente o árbitro, e a justiça que ele oferecia era privada. Inicialmente, esse arbitramento era facultativo e, tempos depois, tornou-se obrigatório. Só muito mais tarde é que se concebeu a justiça pública em moldes assemelhados aos tempos atuais. Tanto no arbitramento facultativo quanto no obrigatório, a escolha do árbitro era das partes, dependendo, portanto, da vontade delas, sem nenhuma interferência do

Estado. A diferença da etapa facultativa para a obrigatória do arbitramento nesse período era que, no último, o Estado não só obrigava os litigantes a escolher um árbitro como também assegurava a execução da decisão arbitral se, porventura, não houvesse seu voluntário cumprimento. Nas duas formas de arbitramento, entretanto, encontramos a preponderância da vontade e, em conseqüência, o fundo contratual no qual se baseiam os autores modernos para sustentar as posições privatistas. Nem mesmo no arbitramento obrigatório o caráter convencional deixou de existir, pois a obrigatoriedade só se deu porque nem sempre havia acordo, e a intervenção do Estado não era para afastar nenhuma convenção, mas, ao contrário, para afirmá-la. Devemos ressaltar que as mais atuais Teorias Privatistas não se limitam à figura do contrato, pois alguns estudiosos vêem a arbitragem como algo similar à transação. É de boa lembrança que essa concepção não destoa do mencionado fundamento contratual, pois a transação tem nele sua essência. A base das Teorias Privatistas é a de que os atos volitivos impregnam a arbitragem a ponto de tomar todo o seu conteúdo. A vontade de duas partes na prática de um ato traduz-se em uma declaração única de vontade, de soberania dos litigantes e de poder de disposição, que dão a marca e as feições contratuais à arbitragem. O cumprimento das disposições negociadas pelas partes na arbitragem é a vontade desses sujeitos e equipara-se ao que se entende no direito contratual por cumprimento das manifestações de vontade dos co-contratantes. Se o cumprimento de um e outro tem o mesmo perfil e caracte2007 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


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rísticas, pode-se deduzir que a base da vontade sujeita à execução é a mesma. Cumprimento de cunho contratual e vontade de natureza também contratual. Essas são causa e efeito, ou melhor, antecedentes e conseqüentes, presentes de igual modo no contrato e na arbitragem. As evidências de identificação com o contrato estão muito mais caracterizadas pela amplitude da liberdade das partes se comparadas aos mais importantes contratos da atualidade. Em resumo: seria a arbitragem um contrato porque todas as suas características se fazem presentes nesse instituto. Daí o enquadramento privado da arbitragem. Os defensores das Teorias Jurisdicionalistas da arbitragem partem da premissa não da vontade das partes, e sim da vontade do legislador para fundamentar a arbitragem. Entendem eles que, assim como a jurisdição, a arbitragem revela, acima de tudo, vontade do próprio Estado, traduzida na disposição legal para resolver conflitos de interesses. Sustentam os seguidores dessa tese que o Estado outorga poderes ao juiz e ao árbitro, e ambos exercem a mesma função de resolver conflitos, com a diferença apenas de que incumbe às partes a escolha dos árbitros. A igualdade das funções de árbitro e juiz redundaria na idéia de um sentido único para essa função, que se denomina jurisdição. O princípio jurisditio in sola notione consistit, desenvolvido durante a etapa de aplicação do direito romano que precedeu às codificações européias, ou seja, o chamado direito comum (jus commune), bem traduz a idéia desse afirmado sentido único que se deve ter de jurisdição. A jurisdição, una e indivisível, não permite que se conceba distintas funções de resolver conflitos, a do juiz e a do árbitro, que se diferenciam apenas pela faculdade e virtude de os próprios interessados escolherem aquele que irá oferecer a solução do dissídio. Rejeitam os partidários dessa teoria o argumento de que a jurisdição é indelegável e, por conseguinte, não poderia ser atribuída aos árbitros. Segundo eles, o que faz o Estado não é outorgar a particulares o exercício da jurisdição, mas convertê-los em juízes do litígio, por força da faculdade de escolha atribuída às partes. Também eles sustentam que a arbitragem não importa em jurisdição análoga à dos tribunais. Em verdade, afirmam que os árbitros são verdadeiros juízes revestidos de autoridade pública. As soluções dadas pelos árbitros seriam, portanto, soluções da mesma natureza, embora de outra classe, a dos juízes permanentes. Aos árbitros, os juízes dos casos, se reconheceria uma jurisdição extraordinária e de caráter público. Agregam a tal idéia a dignidade inter partes dada aos casos. Um e outro, árbitro e juiz, resolveriam os litígios para as partes, igualmente sem prejuízos imediatos a terceiros. A isso lembramos que, em correspondência a essas idéias, tanto árbitro quanto juiz submetem sua jurisdição àqueles que concorreram para sua designação: os litigantes. O árbitro, escolhido diretamente de acordo com as regras estabelecidas pelas partes, e o juiz, indiretamente, pelas leis de competência judiciária. As Teorias Intermediárias ou Mistas não partem de uma

Desembargador André Fontes

crítica à divisão dicotômica do direito para sua sustentação. Tampouco negam essa dicotomia, mas, ao contrário, a afirmam, pois elas foram construídas com a reunião de elementos de uma e de parte do direito público e do direito privado. Nesse grupo, enquadram-se teorias sincréticas e ecléticas, segundo a maior ou menor mistura e identificação dos elementos que compõem o que é de direito público, entenda-se a jurisdição, e o que é do direito privado, traduzido na figura do contrato. A palavra de ordem dos adeptos dessa forma de pensar se revela na locução jurisdição convencional. Para sustentar uma noção exata dos capítulos de direito privado e público no mesmo fenômeno da arbitragem, asseveram que ela seria uma criação da vontade dos particulares e, portanto, de feições contratuais, que se desenvolve em bases jurisdicionais, como seriam exemplos as sujeições e as limitações a que a vontade das partes é submetida, como ocorre nos tribunais, no exercício mais tradicional da jurisdição. Além disso, tanto o juiz como o árbitro conhecem o assunto trazido pelas partes e terminam por lhes encaminhar resultados que as vinculam e que igualmente podem ser executados. Demais disso, em ambos, a vontade das partes destina-se à busca da justiça, de modo que o árbitro e o juiz, na identidade e similitude de seus atos, podem conhecer os mais variados aspectos dos temas trazidos pelas partes e dar uma solução justa ao caso. Para os adeptos dessa teoria, a idéia é de que a arbitragem é uma instituição contratual em suas origens e jurisdicional em seus efeitos. No estado atual do conhecimento jurídico, tais afirmações não encontram uma opinião comum. No período de onze anos de aplicação da lei, entretanto, não é raro que os defensores da arbitragem busquem, na jurisdição, seu paradigma, suas soluções. Essa perspectiva traz outra relevante questão: as conseqüências da identificação da arbitragem com a jurisdição. Mas isso é uma outra estória.


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A ciência no combate ao crime Celso Guedes 2º Vice-Presidente do TJ/RJ

“Como a taxa de homicídio representa apenas um subconjunto dentre as muitas modalidades que compõem o universo da violência, é importante avaliar a evolução das outras formas segundo as quais ela se expressa.”

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dinâmica social que caracteriza a contemporaneidade nos traz como um de seus subprodutos o aumento da violência, o advento da criminalidade e, por conseqüência, o sentimento de insegurança, que atinge com relevância os grandes centros urbanos. Lamentavelmente, tais preocupações não se restringem a simples temores psicossociais, mas se respaldam em estatísticas, que apresentam alta expressividade de dados, ainda que estes se configurem em recortes escassos. De acordo com o IBGE, a taxa de homicídios no Brasil, em 20 anos, aumentou 130%, passando de 11,7 por cem mil habitantes, em 1980, para 27 por cem mil, em 2000. Neste mesmo período, houve 2 milhões de mortes por causas externas no País. O Estado do Rio de Janeiro, lamentavelmente, recebe medalha de bronze nesse funesto certame, com uma taxa de 49,2% de homicídios por habitantes, precedido apenas pelo Estado do Espírito Santo, com 49,4% e de Pernambuco, com 50,7%. Como a taxa de homicídio representa apenas um subconjunto dentre as muitas modalidades que compõem o universo da violência, que predispõe à criminalidade, é importante avaliar, no âmbito nacional, a evolução das outras formas segundo as quais ela se expressa: nos lares, motivada pelas interações familiares e sociais, contra as minorias, ou ainda aquela perpetrada por razões econômicas, envolvendo, por exemplo, roubos, arrombamentos e destruição de propriedades. Indicadores coletados pelo Ministério da Justiça apontam, 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

apenas no ano de 2000, a ocorrência de cerca de 15.000 casos de estupros, de 400 mil veículos furtados ou roubados e de 850 mil registros de lesões pessoais. Tais números não deixam dúvidas sobre a gravidade do problema, principalmente por darem visibilidade apenas às ocorrências registradas. A complexidade de tal fenomenologia impõe sua análise sob uma ótica multidisciplinar, em que vários enfoques científicos se convergem, ainda que em modelos conceituais e resultados empíricos que procuram explicar os determinantes da criminalidade (ou as causas do macroproblema associado). Segundo tais análises, há, basicamente, três conjuntos de explicações para o atual alto índice de criminalidade. Em primeiro lugar, aquelas derivadas dos modelos econômicos, em que a entrada do agente no ambiente criminoso depende das condições do mercado de trabalho, do valor esperado resultante do prêmio da ação criminosa e da probabilidade de punição, bem como do valor subjetivo da punição. Em segundo lugar, aquelas análises derivadas dos modelos sociológicos, cujo maior expoente é a teoria da anomia de Merton, em que o desenvolvimento das motivações criminosas nos indivíduos encontra-se na disjunção entre aspirações individuais e os meios socialmente disponíveis para realizá-los. Em terceiro lugar, aquelas análises derivadas dos modelos psicossociais, em que a opção pela criminalidade (sobretudo, dos mais jovens) decorreria de uma construção pervertida da auto-estima dos cidadãos menos afortunados, uma vez


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que tais indivíduos seriam “invisíveis” socialmente em uma sociedade crescentemente individualista que não propicia oportunidades e esperanças. Avoluma-se tal ideário de impunidade na fragilidade de todo o sistema jurisdicional. Sabe-se que, enquanto em países como EUA e Inglaterra a taxa de homicídios solucionados, com os respectivos perpetradores sendo punidos, ultrapassa os 90%, no Brasil, a única evidência empírica mostra que, no mesmo tipo de crime, em menos de 8% deles, alguém é sequer indiciado. Cientistas sociais indicam como contrapartida necessária ao combate da violência e da criminalidade a inserção de quatro grandes objetivos na aspiração nacional. Primeiro, a inclusão socioconômica das comunidades em situação de risco social. Segundo, a reformulação estrutural e processual de todo o sistema de justiça criminal. Terceiro, a formulação e aplicação de uma política de tratamento ao delinqüente, visando sua ressocialização. E, em quarto lugar, a formulação de um sistema nacional de informações socioeconômicas e criminais (integrando as três esferas de governo e ainda os poderes executivo e judiciário). Analisemos cada um desses quatro grandes objetivos: Primeiro – Sabemos o quão complexo é a execução de programas sociais que permitam a diminuição da desigualdade e da exclusão social, principalmente nas regiões mais carentes periféricas aos grandes centros urbanos. Em recente apresentação na Maçonaria,

conclamamos aquela importante instituição a liderar um grande processo de libertação das comunidades carentes do Rio de Janeiro, através de um choque de cidadania, onde fosse levada não apenas os serviços do Estado, mas a solidariedade de irmãos. A idéia foi lançada. Se tomarmos como exemplo a Colômbia, que criou bibliotecas públicas com o slogan “quem lê não mata”, podemos compreender como todas as ciências humanas podem estar envolvidas em tal ideal. Segundo – Acompanhamos com grande interesse os estudos do Supremo Tribunal Federal sobre audiências criminais através de videoconferência, que temos de apoiar, na preservação da integridade do magistrado e dos cidadãos, que ficam à mercê de reações criminosas quando dos traslados de acusados. Convênio entre a Secretaria de Segurança e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro já oportuniza transferência de dados criminais entre 24 juizados e 52 delegacias policiais. Um belo exemplo de serviço da tecnologia de informação na ciência do direito. Temos ainda de não poupar esforços na reforma urgente do Código de Processo Penal que se apresenta obsoleto, uma vez que foi editado em 1941, e mesmo do Código Penal, que é de 1940, quando a criminologia distava alguns anos luz de nossa contemporaneidade. Aqui, mais do que nunca, a ciência do direito tem de se fazer ouvir. Terceiro – Com a brilhante crítica de Michel Foucault, que, em “Vigiar e Punir”, analisa o panóptico de Jeremy Bentham, podemos compreender que o ideal de ressocialização não 2007 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


passa pelo manual das punições, e sim por dois momentos distintos de atuação: a prevenção e a terapia. Justifica-se a prevenção quando somos surpreendidos, ainda que com dados exíguos, sobre o crescente aumento relativo das crianças e adolescentes como perpetradores de crimes. Sabe-se que o menor infrator de hoje será com grande probabilidade o delinqüente de amanhã. Especialistas indicam a gravíssima ausência de programas consistentes que substituam o fracassado modelo de Febem. Recentemente, vimos o sucesso dos Jogos Pan-Americanos, que nos levam a refletir sobre a importância dos esportes na educação de uma grande massa de jovens, em grande parte sem oportunidades de inserção social. Temos notícias de que competições esportivas durante a madrugada tiraram muitos jovens das ruas de Nova Iorque, afastando-os do mundo do crime. Por que não seguimos tal receituário? A ciência dos desportos muito tem a oferecer. Por outro lado, há ainda o apenado que não apenas precisa ser encarcerado, mas, antes de tudo, ressocializado. Aqui ainda restam duas vertentes. A primeira é a adoção, cada vez mais, da pena alternativa, que propicia, notoriamente aos primários, a oportunidade de corrigir um erro, atributo de nossa humanidade. Mas existem e carecem de toda a atenção da sociedade, os efetivamente encarcerados, que devem ser assistidos por agentes penitenciários capacitados a exercerem com alto profissionalismo e dignidade suas funções precípuas de ressocialização. Há ainda a questão das instalações dos estabelecimentos penais. Mais uma vez, o Tribunal do Rio de Janeiro dá sua contribuição, já tendo construído ou reformado casas de custódia, que oferecem condições dignas aos seres humanos lá alojados. Aqui, sem dúvida, as modernas concepções de engenharia e gestão financeira atuam com grande maestria. Quarto – A contribuição do Poder Judiciário tem sido exponencial para a reformulação do sistema de justiça criminal. No mês de julho de 2007, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro passou a integrar o Sinic – Sistema Nacional de Informações Criminais –, que já reúne dez estados brasileiros e tem mais de 2,5 milhões de pessoas cadastradas. Tal feito permite ao magistrado obter virtualmente dados criminais que só poderiam ser obtidos anteriormente em meses de pesquisa. É a moderna tecnologia da informação, há muito credora de status científico, que dá seu importante concurso no combate ao crime. Muitos outros enfoques poderiam ser analisados no vasto mundo da criminologia, tais como: a assistência a vítimas e a testemunhas ameaçadas que precisam ter assegurada sua incolumidade, a questão da segurança pública, que precisa assegurar eficiência policial devidamente controlada pela sociedade, bem como uma possível reformulação do processo de justiça criminal. No entanto, cabe enfatizar que qualquer abordagem científica há de priorizar a visão humanística, já que é o ser humano a origem e o destino de todo o ideal de bem comum. 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

“qualquer abordagem científica há de priorizar a visão humanística, já que é o ser humano A origem e O destino de todo o ideal de bem comum.”


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OS Alimentos e o termo inicial de incidência da multa Maria Berenice Dias Desembargadora do TJ/RS

“é chegada a hora de dar um basta à conivência da justiça com quem comete o perverso crime de sonegar o direito de viver de quem deveria amar.”

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transformação do processo de execução dos títulos judiciais em cumprimento da sentença (Lei 11.232/ 2005), depois do susto inicial, ainda gera dúvidas e questionamentos. Apesar da dimensão da reforma, causou surpresa a omissão no que diz com a obrigação alimentar. Vencida a resistência da doutrina, a jurisprudência, de maneira já pacificada, passou a admitir a cobrança dos alimentos pela nova sistemática. Mas alguns pontos ainda necessitam de detalhamento, pois se trata de obrigação que pode ser assumida extrajudicialmente ou imposta por decisão judicial, geralmente em sede de antecipação de tutela, quando o pagamento deve iniciar de imediato. Portanto, é possível que a mora ocorra enquanto tramita a demanda. Por ser encargo que se prolonga no tempo, a cada mês, vence nova parcela, e o inadimplemento pode surgir após ultimada a ação e extinto o processo. Apesar dessas peculiaridades, o credor de alimentos está privado do uso do procedimento intimidatório da pena pecuniária (CPC, art. 475-J). Quando o juiz arbitra alimentos, o réu é citado para dar início ao pagamento, pois o encargo é devido desde sua fixação. Já nesta oportunidade, o alimentante deve ser cientificado das seqüelas da mora. Como houve imposição judicial do pagamento, sempre que ocorrer atraso, a dívida se sujeita aos ônus legais. Para isso, é necessário que conste do mandado de citação a advertência sobre as conseqüências do inadimplemento: incidência da multa de 10%, caso não efetuado o pagamento no prazo de 15 dias. Não só os alimentos fixados em sentença autorizam a 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

cobrança sob a ameaça de multa. Mesmo que o encargo seja estabelecido em decisão interlocutória, dispõe o credor da faculdade de perseguir o pagamento pela nova ferramenta legal. Como os alimentos provisórios e provisionais podem ser cobrados pelo rito da coação pessoal (CPC, art. 733), nada justifica excluir modalidade menos gravosa ao devedor. Aliás, é o que a lei recomenda (CPC, art. 620). Assim, é possível a cobrança dos alimentos fixados em sede liminar por meio da nova dinâmica. Por este motivo, quando o réu é citado para dar início ao pagamento dos alimentos fixados em sede liminar, também cabe ser cientificado da conseqüência do inadimplemento. O termo inicial do encargo moratório é o 15º dia a contar do vencimento de cada prestação vencida e não quitada. A multa não incide somente da data em que for intimado para adimplir o débito na demanda executória. Afinal, já sabia das seqüelas da mora desde a citação. Igualmente, o crédito alimentar estabelecido em escritura pública de separação ou divórcio (CPC, art. 1.124-A) não pode ficar alijado de quaisquer dos meios de cobrança. Não há nenhuma razão para subtrair da obrigação assumida extrajudicialmente a possibilidade da cobrança com ameaça de multa ou ameaça de prisão, sob pena de se limitar, em muito, a via extrajudicial. Deixaria de ser usada sempre que houvesse avença de alimentos. É preciso emprestar a mesma força executória ao instrumento de transação referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública ou pelos advogados dos transatores. O Estatuto do Idoso assim autoriza (Lei 10.741/2003, art. 13).


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Ora, reconhecida a esses títulos a possibilidade de desencadearem processo de execução, é necessário conceder iguais prerrogativas à escritura pública e ao documento particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas (CPC, art. 585, II). O fato de se tratar de encargo constituído extrajudicialmente não pode limitar o uso dos meios satisfatórios concedidos aos créditos impostos judicialmente. Seria um desestímulo à composição consensual dos conflitos. De outro lado, como a lei reconhece que a mora enseja a imposição de multa, mais do que possível, é recomendável que, nas escrituras de separação ou divórcio, bem como nos títulos executivos extrajudiciais, seja previsto o encargo moratório a título de cláusula penal (CC, art. 480). Na hipótese de atraso, a multa incide sobre todas as parcelas que não foram pagas em 15 dias da data do respectivo vencimento. Para a cobrança, é igualmente possível o uso de qualquer das modalidades executórias. Assumida a obrigação de forma espontânea, por meio de título executivo extrajudicial, ou imposto o pagamento judicialmente, em ambos os casos, cabe a cobrança ou sob o rito da prisão ou mediante a imposição da multa no momento em que houver atraso de 15 dias no pagamento de qualquer prestação. A depender do número de parcelas vencidas, o credor tem a faculdade de optar quanto ao meio executório. Com relação à mora não superior a três meses, cabe buscar o adimplemento sob a ameaça de coação pessoal. A omissão do devedor, não pagando em três dias, além de levá-lo à prisão, também enseja à incidência da multa sobre a totalidade do débito. Mesmo que o devedor cumpra a pena, sobre todas

as parcelas vencidas é acrescido o valor da multa, mesmo naquelas compreendidas no período em que se encontrava preso. Com relação às prestações mais antigas, o jeito é buscar a cobrança da dívida acrescida da multa. Não tendo sido esta convencionada entre as partes, o devedor é citado para pagar no prazo de 15 dias. Procedido ao pagamento, não há o acréscimo de 10%. Caso não pague, está sujeito à multa que flui a contar da data da citação e sobre todas as mensalidades vencidas. A multa incide, inclusive, sobre as prestações que se vencerem posteriormente ao ato citatório, depois de 15 dias do vencimento de cada prestação que não for paga. O credor pode fazer uso dos dois procedimentos de modo simultâneo, mas através de demandas distintas. Em autos apartados, executa as três parcelas mais recentes pelo rito da coação pessoal. Com referência ao débito pretérito, a busca do cumprimento da sentença cabe ser levada a efeito na própria ação de conhecimento. O devedor é intimado para pagar em 15 dias todas as parcelas vencidas e mais a multa incidente sobre cada prestação não paga no prazo. Quanto aos alimentos fixados extrajudicialmente, como inexiste demanda judicial, mister o uso da via judicial. Débito recente, não superior a três parcelas, pode ser cobrado pela via executória da coação pessoal. Na ação de cobrança, o devedor é citado com o mesmo propósito: satisfazer o débito, acrescido da multa. Para livrar-se da mora, é necessário que satisfaça todas as parcelas, inclusive as vencidas durante a tramitação da ação. Mesmo com relação a essas parcelas, a partir do 15º dia da data do respectivo vencimento, passa a incidir a multa. Quando os alimentos são fixados em sentença ou em decisão interlocutória, a partir do momento que o réu for citado, a multa incide sobre todas as parcelas em que ocorrer mora superior a 15 dias. O acréscimo se verifica mesmo antes do procedimento de cobrança. Também incide a multa quando os alimentos são fixados extrajudicialmente, mas o termo inicial de incidência diverge. Convencionada a multa moratória, ela é devida sempre que ocorrer o inadimplemento. Na hipótese de não ter sido prevista a cláusula penal, a multa passa a fluir somente se o devedor, citado no procedimento de cobrança, não paga toda a dívida no prazo de 15 dias. Independente do instrumento – sentença, decisão interlocutória ou acordo extrajudicial – onde está prevista a obrigação alimentar, desde o momento em que o devedor sabe da incidência da multa, sempre que incorrer em mora por mais de 15 dias, agrega-se o percentual de 10% sobre cada parcela não paga. O acréscimo é automático e não ocorre somente a partir da citação do devedor ou de sua intimação, quando é convocado judicialmente para proceder ao pagamento. Apesar da omissão da lei, as mudanças, em sede de alimentos, são significativas. Talvez o credor dos alimentos seja o maior beneficiado com a reforma. Até que enfim, pois é chegada a hora de dar um basta à conivência da justiça com quem comete o perverso crime de sonegar o direito de viver de quem deveria amar. 2007 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


dano moral e sua quantificação Valéria Medeiros de Albuquerque Juíza Federal da 9ª Vara/RJ

“O tema se reveste de contornos extremamente polêmicos quando, constatado o dano moral, se parte para sua quantificação, apesar de existirem pulverizados, tanto na doutrina como na jurisprudência, alguns parâmetros para a fixação.”

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indiscutível, nos dias de hoje, a importância da reparação por dano moral, estando a mesma expressamente prevista nos artigos 186 e 927, caput, do Código Civil vigente. Danos morais são lesões sofridas por pessoas físicas ou jurídicas em certos aspectos da personalidade, ocasionadas por investidas injustas e atos ilícitos de terceiros, causando-lhes dores, mágoas, constrangimentos, vexames, enfim, sentimentos e sensações negativas. Atingem a moralidade e a afetividade da pessoa, e contrapõem-se aos danos denominados materiais, que são prejuízos suportados no âmbito patrimonial do lesado. A concomitância dos danos de natureza moral e patrimonial se verifica sempre que os atos agressivos alcançam a esfera geral da vítima, como, por exemplo, nos casos de morte de parente próximo em acidente ou ataque à honra alheia pela imprensa. Tais danos, além de atingirem as esferas íntima e valorativa do lesado, lhes proporcionam reflexos patrimoniais negativos. O prejuízo é resultante da ofensa à integridade psíquica ou à personalidade moral, com possível ou efetivo prejuízo do patrimônio moral. Hoje em dia, destaca-se sobremaneira a reparação civil por danos morais em decorrência da evolução das comunicações e da crescente conscientização a respeito dos direitos da personalidade. Segundo Maria Helena Diniz, responsabilidade civil é “a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato, de coisa ou animal sob sua guarda (responsabilidade subjetiva), ou ainda de simples imposição legal (responsabilidade objetiva)”. Quanto à prova do dano moral, defendo a corrente segundo a qual este está ínsito na própria ofensa, decorrente da ilicitude em si mesma. Logo, se a ofensa é grave e de repercussão, esta é a prova e a justificativa para a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado. Critérios para a quantificação O tema se reveste de contornos extremamente polêmicos quando, constatado o dano moral, se parte para sua quantificação, apesar de existirem pulverizados, tanto na doutrina como na jurisprudência, alguns parâmetros para a fixação. Conforme entendimento do Desembargador Sérgio Cavalieri Filho, “uma das objeções que se fazia à reparabilidade do dano moral era a dificuldade para se apurar o valor desse dano, ou seja, para quantificá-lo.” A dificuldade, na verdade, era menor do que se dizia, porquanto em inúmeros casos a lei manda que se recorra ao arbitramento (Código Civil de 1916, art. 1.536, § 1º). E tal é o caso do dano moral. Não há, realmente, outro meio mais eficiente para se fixar o dano moral a não ser pelo arbitramento judicial. Cabe ao


Foto: Arquivo JC

Juiz, de acordo com o seu prudente arbítrio, atentando para a repercussão do dano e a possibilidade econômica do ofensor, estimar uma quantia a título de reparação pelo dano moral. Em vários dispositivos legais, vamos encontrar critérios para a quantificação do dano moral. Os tribunais, reiteradamente, têm adotado o critério previsto no art. 84, § 1º, do Código Brasileiro de Telecomunicações, que manda fixar a indenização entre 5 e 100 salários mínimos para as hipóteses de calúnia, difamação ou injúria. (...) A Lei de imprensa, por seu turno (Lei nº 5.250/67), em seus arts. 51 e 52, limita a determinados números de salários mínimos a responsabilidade civil do jornalista profissional e da empresa que explora o meio de informação ou divulgação. Estou convencido, todavia, de que não há mais nenhum limite legal prefixado, nenhuma tabela ou tarifa a ser observada pelo juiz, mormente após a Constituição de 1988. Nesse sentido, recomendo a leitura do brilhante acórdão da 1ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro no julgamento da Ap. Cível 5.260/41, do qual foi relator o eminente Ministro Carlos Alberto Direito, quando ainda Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A ementa desse v. acórdão, na parte que nos interessa, diz assim: “A indenização por dano moral, com a Constituição de 1988, é igual para todos, inaplicável o privilégio de limitar o valor da indenização para a empresa que explora o meio de informação e divulgação, mesmo porque a natureza da regra

constitucional é mais ampla, indo além das estipulações da Lei de Imprensa.” Em recente julgamento envolvendo reparação por dano moral ocorrido na 6ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, do qual participei como revisora, travou-se uma longa discussão acerca da quantificação do dano moral. O processo em tela envolvia pedido de indenização por dano moral formulado pelos pais em razão da morte da filha, aos cinco anos, infectada pelo vírus da AIDS em uma transfusão de sangue realizada em hospital público. Ora, imagino a dor destes pais. A extensão do sentimento de dor resultante da perda de um filho é incomensurável, inexistindo indenização suficiente para reparar integralmente a falta irreversível, sendo possível, tão-somente, a amenização de seus efeitos. A dor, pode-se dizer, é um antecedente, do qual são conseqüentes os sofrimentos, os sentimentos que devem ser arredados ou, no mínimo, minorados, pelo que se reparam tais conseqüências e seqüelas. A dificuldade na fixação do quantum da indenização tem gerado diversas tentativas de padronização, as quais restaram infrutíferas, levando-nos à conclusão de que o melhor caminho é o discernimento do magistrado, considerando os critérios sugeridos tanto pela doutrina e como pela jurisprudência, com razoabilidade, de acordo com as peculiaridades de cada caso, tais como a dimensão do sofrimento íntimo experimentado, 2007 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


o grau de culpa do infrator, o nível socioeconômico dos autores e o porte econômico dos réus, havendo sempre algum subjetivismo. Nossa jurisprudência vem consolidando este posicionamento, conforme exemplificado nas seguintes ementas: Civil. Recurso especial. Ação de indenização por danos materiais e compensação por danos morais. Erro médico. Morte de menor durante procedimento cirúrgico de baixo risco. Choque anafilático e negligência do cirurgião. Pensão mensal vitalícia afastada pelo Tribunal. Deficiência de fundamentação do recurso quanto ao ponto. Fixação dos danos morais. – Não se conhece de recurso especial deficientemente fundamentado. – A revisão do valor estipulado como compensação pelos danos morais sofridos só é possível em casos excepcionais, para que se afaste flagrante descompasso em relação ao que ordinariamente entende o STJ como “justa compensação”. – Tal medida se justifica, na presente hipótese, porque não é de se aceitar que o Tribunal reduza o valor compensatório estabelecido pela sentença apenas com fundamento em um prévio tabelamento de valores financeiros, válido para toda e qualquer demanda, de forma a relegar a um plano secundário as circunstâncias fáticas específicas de cada lide. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (STJ – RESP 659.420-PB – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJ: 01/02/06) RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. MORTE. INDENIZAÇÃO. PENSIONAMENTO. TERMO AD QUEM. TABELA DO IBGE. CRITÉRIOS. ORIENTAÇÃO DO TRIBUNAL. RELATIVIDADE. CORREÇÃO MONETÁRIA. – Não obstante ter a jurisprudência desta Corte, na maioria dos casos, fixado, para fins de pensão indenizatória, como tempo provável de vida do falecido, a idade de 65 (sessenta e cinco) anos, certo é que tal orientação não é absoluta, servindo apenas como referência, não significando que seja tal patamar utilizado em todos os casos, notadamente naqueles em que a vítima já possuía idade avançada ou mesmo superior ao referido patamar. – A correção monetária, em dívida por ato ilícito, incide a partir da data do efetivo prejuízo, e não do ajuizamento da ação, nos termos do verbete 43, da Súmula do STJ. (STJ – RESP 72.739/SP – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – DJ 06/11/2000) Logo, não resta dúvida, o arbitramento judicial é o meio mais eficiente para a fixação e quantificação do dano moral, e o magistrado, com ponderação e razoabilidade, o fará. Embora o julgador não esteja subordinado a nenhum limite numérico nem a qualquer tabela prefixada, deve estimar uma quantia compatível com o nível de reprovação da conduta ilícita e a gravidade do dano produzido, atentando sempre para a necessidade de se coibir o enriquecimento sem causa. 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

“A correção monetária, em dívida por ato ilícito, incide a partir da data do efetivo prejuízo, e não do ajuizamento da ação, nos termos do verbete 43, da Súmula do STJ.”


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SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO E A COMPLEXIDADE DE SUAS RELAÇÕES JURÍDICAS Por Juliana Moraes e Tiago Salles

A regulação do setor elétrico ocupou espaço central nos temas de palestras e debates realizados no XIII Simpósio Jurídico da ABCE (Associação Brasileira de Concessionárias de Energia Elétrica), evento que aconteceu nos dias 20 e 21 de agosto de 2007, em Brasília. A cerimônia de abertura contou com a presença de Evandro Coura, Presidente da Associação; Jerson Kelman, Diretor Geral da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica); Paulo Abi-Ackel, Deputado Federal pelo PSDB/MG e Membro da CME (Comissão de Minas e Energia da Câmara); e Luís Henrique Martins dos Anjos, Procurador Geral da União.

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Relações jurídicas estão mais complexas

m seu discurso, Evandro Coura ressaltou a importância do evento, devido ao aumento da complexidade nas relações jurídicas do setor elétrico nos últimos anos. O presidente da ABCE ainda aproveitou para expor que a direção da Associação está disposta a apresentar contribuições e defender a transparência das ações de órgãos de Estado e do governo. “Demandas como a publicação das atas de reuniões do CMSE (Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico) são fundamentais aos agentes para que se possam pautar as posições do setor de forma clara e coordenada”, disse. Kelman concordou com o presidente da ABCE, apontando que a publicação das atas do CMSE traz maior qualidade, inclusive, aos processos decisórios. Em seguida, o diretor da Aneel definiu que as direções das agências reguladoras, em especial a Aneel, tratam com cuidado tanto as demandas e influências dos investidores, quanto as dos próprios funcionários das agências, que, por vezes, são agressivos em suas exigências, como se a obtenção de lucro por parte das empresas fosse pecaminosa. Para complementar, Abi-Ackel, afirmou que a CME está buscando fazer sua parte e tem contado com o compromisso dos membros da equipe. “Os deputados estão dispostos a permanecer no grupo até o final de seus mandatos. Isso nos permitirá desenvolver um trabalho de longo prazo, com benefícios à sociedade e ao setor”, concluiu. Procuradoria Geral da União

Luís Henrique Martins dos Anjos foi o responsável pela exposição da palestra “A Constituição e a Jurisprudência no Setor Elétrico”, apontando precedentes da AGU 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

(Advocacia Geral da União) em ações judiciais envolvendo o segmento. O procurador afirmou que a Constituição no Estado Democrático tem o papel de estabelecer e mediar as relações da esfera pública e privada, cabendo aos advogados do governo federal respeitar este princípio. Dentre os casos de jurisprudência apresentados por Anjos estavam a cassação de liminares concedidas em situações em que todas as partes envolvidas não eram ouvidas e os procedimentos administrativos já cumpridos pelas empresas ignorados. “A Procuradoria Geral da União também interfere nas ações em que há conflitos de competência, a exemplo do questionamento do mérito de concessão, que é federal, por advogados estaduais”, explicou. Processo Administrativo

No painel “Reestruturação do Processo Administrativo Punitivo e as Agências Estaduais Conveniadas”, Claudio Girardi, que é Procurador Federal da Aneel, destacou que a agência reguladora se envolve em questões diversas, no entanto, “o órgão tem a atuação extremamente voltada aos atos normativos”. Com o objetivo de oferecer melhores condições às concessionárias para que possam alcançar o equilíbrio econômico do empreendimento, a agência dividiu recentemente as atividades da procuradoria da agência em núcleos temáticos, possibilitando assim a especialização dos profissionais em alguns temas. Anabella Araújo, Advogada da CPFL e membro do Grupo de Trabalho (GT) Processo Administrativo, apresentou o resultado do estudo conduzido por advogados representantes de concessionárias associadas à


Foto: ABCE Da esquerda: Luís Henrique Martins dos Anjos, Procurador Geral da União; Evandro Coura, Presidente da ABCE; Jerson Kelman, Diretor Geral da Aneel, e Paulo Abi-Ackel, Deputado Federal pelo PSDB/MG e Membro da CME (Comissão de Minas e Energia)

ABCE. Em relação à resolução da Aneel 273/07, a proposta é inserir em seu texto itens que decorrem da Lei Federal 9.784/99, tais como a possibilidade de apresentação de alegações pelos interessados em qualquer tempo antes da tomada de decisão; o melhor regramento das hipóteses de suspeição e impedimento das autoridades julgadoras; e a previsão de possibilidade de revisão dos processos admisnistrativos encerrados e que tenham resultado em sanção. Nessa hipótese, seria assegurada a “reabertura” da discussão administrativa, podendo a empresa punida solicitar o reexame da penalidade aplicada nos casos em que venha a surgir algum fato novo ou circunstância relevante que não tenha sido examinada na decisão. Já as medidas sugeridas para a resolução da Aneel 63/04 visam explicitar o alcance e a efetiva caracterização das infrações já previstas, adequar o enquadramento das infrações às penalidades mais pertinentes, estabelecer critérios objetivos para a fixação das penalidades, levando em conta a abrangência territorial dos danos efetivos causados e o porte econômico dos agentes, além de prever a não incidência de acréscimos moratórios nos períodos, cuja paralisação do processo não seja de responsabilidade do agente. O Procurador Geral substituto da Aneel, Ricardo Brandão, por sua vez, deixou claro que a agência precisa e deve se estruturar para que as decisões do órgão sejam estabelecidas de forma mais ágil. Partes Relacionadas

Entre as motivações para a atualização da Resolução 22 da Aneel, que trata das condições necessárias para transferência de tecnologia, assistência técnica e prestação de serviços

entre partes relacionadas, Antonio Ganim, Superintendente de Fiscalização Financeira da Aneel, apontou os novos regulamentos, a desverticalização das atividades do setor elétrico, maior agilidade nos negócios de agentes e a otimização dos trabalhos da agência no painel “Contratos entre Partes Relacionadas – A Resolução 22 e Propostas de Alteração”. “O escopo da nova resolução vai se aplicar a todos os contratos firmados entre partes relacionadas e dispensar a anuência prévia para contratos, conforme critérios de relevância e de finalidade”, disse. André Serrão, Advogado e sócio do escritório Wald Associados, propôs que sejam feitas alterações na resolução para sua maior eficácia, a exemplo de prazo para deliberação da agência; distinção técnica entre revogação e anulação (os conceitos hoje se confundem); identificação de hipóteses e parâmetros de mercado a partir da criação de bancos de preços, entre outras. “A modificação da definição de partes relacionadas, de acordo com o artigo 243 da Lei das Sociedades Anônimas é outra proposta”, acrescentou Manuel Negrisoli, Gerente da CPFL, responsável pela apresentação do trabalho do GT de Partes Relacionadas da ABCE. Imposto Territorial Rural

Delvani Leme, Consultor Jurídico da Copel e Coordenador do Comitê Jurídico-Tributário da ABCE, e Maria Leonor Leite Vieira, sócia do Barros Carvalho Advogados Associados, mostraram alguns resultados de um litígio iniciado no final da década de 90 entre concessionárias do setor elétrico e o fisco, em relação à cobrança do ITR 2007 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


(Imposto Territorial Rural). “A Câmara Superior de Recursos Fiscais julgou improcedente a incidência de ITR sobre empreendimentos do setor elétrico porque estes se tratam de bens públicos, pertencentes à União”, explicou Maria Leonor, acrescentando que em nenhuma hipótese a incidência do imposto cabe às empresas do setor. “As empresas devem se unir e buscar o direito de não serem cobradas, dando preferência para a solução na esfera administrativa. Se todos seguirem este raciocínio, será formado um consenso em relação ao tema e o segmento não sofrerá mais com autos de infração pelo não pagamento do imposto”, concluiu Leme na apresentação do último painel do dia. O Judiciário e Carga Tributária do Setor Elétrico

A ministra Eliana Calmon, responsável pela apresentação da palestra “O Judiciário e Carga Tributária do Setor Elétrico”, insistiu que o ensinamento do papel político que deve ser desempenhado pelos juízes de primeiro grau promoveria aos magistrados condições para a compreensão das conseqüências de seus atos na sociedade. Ela criticou o excesso de liminares concedidas sem que haja um estudo mais aprofundado dos casos. “A visão política do judiciário é fundamental. A magistratura de primeiro grau tem dificuldade em entender a privatização, o novo modelo do setor elétrico e a amplitude de suas decisões. Tem cabido aos tribunais intermediários e superiores este papel. Outro ponto é a não aceitação da independência necessária às agências reguladoras por parte do governo”, acrescentou, apresentando também questões relacionadas às tarifas, incidência de ICMS e decisões do STJ. Eliana encerrou sua palestra comentando que o setor de energia elétrica é altamente sensível ao governo porque “dele depende o desenvolvimento nacional, a execução do PAC”. A Legislação Brasileira e a Renovação das Concessões

O painel destinado ao debate sobre a renovação das concessões no setor elétrico foi capitaneado por Elena Landau, sócia do Escritório de Advocacia Sérgio Bermudes e coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) de Estudos sobre Renovação de Concessões da ABCE. A economista e advogada aproveitou o momento para lançar, oficialmente, o GT e convidar os participantes do evento e interessados em integrar o grupo que fez uma primeira análise sobre a necessidade de regulação das condições e critérios para a prorrogação dos contratos de concessão. “Há uma grande concentração de contratos com vencimento em 2015, por isso é importante se discutir o assunto neste momento, não deixando que venha a ocorrer na época em que os procedimentos deverão estar já estabelecidos”. Elena ressaltou que a renovação de concessões deve ter regras para atender aos diferenciais dos setores de distribuição, transmissão e geração, em função das características específicas de depreciação dos ativos e dos investimentos que são mais intensivos em determinados segmentos, como é o caso da área de distribuição. De acordo com 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

Maria D’Assunção Costa, Diretora Presidente do IBDE (Instituto Brasileiro de Estudos do Direito da Energia) e também integrante do GT, historicamente o cenário legislativo nacional prevê as cláusulas de prorrogação dos contratos, validando-as e tornando-as legais. “A Lei 9.427/95 permite à Aneel firmar contratos com cláusula de prorrogação”, expôs. Já Guilherme Baggio, Consultor Jurídico do MME, lançou a polêmica ao afirmar que a possibilidade de prorrogação não pode ser confundida com a vontade política de renovar o contrato com os mesmos concessionários ou abrir mão do lançamento de uma nova licitação ao empreendimento da concessão. Segundo ele, já em 2010, haverá vencimentos de contratos de concessão, sendo fundamental despontar as discussões sobre o tema no atual momento. “Os reflexos desse debate que se inicia hoje poderá ser sentido em menos de três anos, quando terá início o período de renovação de contratos”, concluiu. Energia e integração

No módulo “O PAC e a Integração Energética Sul Americana – Como regulamentar”, Jorge Samek, Diretor Geral brasileiro da Itaipu Binacional, defendeu que o Brasil deve liderar o processo de integração energética regional, a exemplo do que a Alemanha e a França fizeram na Europa para impulsionar o mercado comum. “Só o Brasil tem 50% da potência instalada na América do Sul. Além disso, o país está em condição privilegiada em relação aos demais países nos aspectos econômicos, além de contar com apenas 30% de suas fontes renováveis exploradas para a geração de energia”, citou. Para Fernando Rojas, presidente da colombiana ISA Capital do Brasil, que detém a Transmissão Paulista – CTEEP, a integração energética regional depende do compromisso dos governos, trabalho focado nos reguladores e respaldo dos agentes. Em sua apresentação “Reflexões sobre a Integração Energética na América Latina”, destacou que os desafios ligados ao atendimento da crescente demanda por energia elétrica na região compreendida pelos países latinos passa pela interligação entre os sistemas, despacho de energia coordenado e integrado, além das integrações regionais e supra-regionais do operador e do administrador do sistema.“Trata-se de um projeto de longo prazo. Não se consegue alcançar a integração energética em uma única década”, disse. “E entre os elementos que podem comprometer este processo estão a ausência de vontade política, o temor da dependência de outros países e a falta de investidores – responsáveis pela execução desse projeto internacional”, complementou. Rojas acredita que, apesar dos desafios a serem superados, o estabelecimento de um “tratado de comércio energético” traria redução aos custos de produção, transmissão e distribuição da energia, contribuindo à inclusão de consumidores ao sistema e a qualificação do serviço. Luiz Antonio Sanches, diretor jurídico da ABCE, como mediador do painel, concluiu as exposições sinalizando que, para se ter uma visão regional do setor elétrico, é necessário incluir as questões geopolíticas,


Foto: ABCE Ministra Eliana Calmon

além das premissas jurídicas, econômicas e técnicas do setor, favorecendo a busca pela segurança energética essencial ao desenvolvimento da nação. Reforma Tributária

Luiz Bezerra da Silva, do Departamento de Infra-Estrutura da Fiesp e coordenador do GT de Estudos Tributários da Associação, apresentou, no último painel, do evento demandas que têm por objetivo desonerar a indústria nacional. Entre os principais pontos, citou a redução da base de cálculo do IPI em 50% para a compra de equipamentos destinados a projetos de estudo ambiental e a proposta de alteração da base de cálculo do ICMS à lei federal do imposto. De acordo com Cristiano Noronha, analista chefe e sócio da Arko Advice, só as empresas do setor elétrico responderam em 2004 por 5% da soma de todo o valor de impostos e encargos arrecadados pelo governo. Arnaldo Jardim, Deputado Federal (PPS/SP) e membro da CME (Comissão de Minas e Energia da Câmara), mostrou que os legisladores estão cientes da situação limite e que o esforço do grupo parlamentar é impedir a elevação da carga tendo em vista a Reforma Tributária. “O estabelecimento de um teto racional para o índice de Compensação Ambiental é prioridade neste momento, uma vez que há propostas sugerindo a cobrança ao absurdo de 5% do valor do empreendimento”, afirmou. Jardim ainda disse que o CME planeja apresentar ao Poder Executivo um projeto com propostas de gradação para a redução dos tributos que incidem sobre o setor.

“A magistratura de primeiro grau tem dificuldade em entender a privatização, o novo modelo do setor elétrico e a amplitude de suas decisões. Tem cabido aos tribunais intermediários e superiores este papel.” Ministra Eliana Calmon

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Réquiem para um povo Sergio Couto Advogado

Foto: Arquivo JC

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á tempos ela agoniza, agora não tem mais jeito, morreu mesmo, embora o corpo ainda espere sepultura. Refiro-me à classe média, esse imenso povo que se comprime entre os miseráveis deste país e a elite dos endinheirados. Afinal, a família não tem sequer como pagar os serviços fúnebres. No Cemitério “Parque da Colina”, em minha cidade de Niterói, um jazigo perpétuo custa doze mil reais na bucha, sem parcelamento. A morte esperada ocorreu porque a tênue luz que ainda brilhava no fim do túnel apagou-se. Uma imensa carga de impostos, a sustentar um Estado paquidérmico, desorganizado, caótico, que não presta serviço algum, ensanchado pelos apaniguados de sucessivos governos ineptos, foi, dizem, a causa mortis mais direta e provável. Dias atrás, ao referir-se às vaias que sofreu, o ocupante do Planalto disse que “azelites” – entidade abstrata que o guru metalúrgico criou – não têm de fazer queixa, porque 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2007

nunca ganharam tanto dinheiro quanto em seu governo. Pura verdade. Também apregoou seu prestígio entre os pobres, aos quais brinda com esmolas cada vez mais gordas e repetidas. Só esqueceu de dizer quem paga a conta: nós, classe média, esse cadáver insepulto. Enquanto os ricos refugiam-se em seus bunckers e os pobres continuam em seus tugúrios, o João Classe Média sai de casa para ganhar o difícil dinheiro do qual o governo tunga mais de um terço e despede-se da mulher e dos filhos como quem parte para o front de guerra. O crime, organizado ou não, age nas ruas com a sensação de uma impunidade que o aparato policial gera, por seu despreparo, e a lei fomenta, por sua leniência. A bandidagem arma-se como quem vai enfrentar uma guerra, enquanto os policiais, esses coitados, mal pagos e muito pior armados, tentam, heroicamente, impedir o avanço do crime. E, quando em um lance de sorte, conseguem prender e obter a condenação de um facínora, a passagem deste pelo cárcere é lépida, faceira e breve. Basta dizer que, se um bandido receber pena de 24 anos, curtirá apenas 4 na cadeia. E ainda com visitas íntimas, saídas nos fins de semana e outras vantagens que a sociedade, suicidamente, lhes assegura. E a classe média, o que faz? Tenta mobilizar-se para assegurar uma melhoria da sociedade? Certamente, não. Acomoda-se. A pobreza é seu fantasma e o brilho de ouro dos ricos é sua única ideologia. Sabe que, se vacilar, cairá da prancha que mantém seu frágil equilíbrio. Lá embaixo, só a esmola do Bolsa Família e outras benesses com que o governo compensa a choldra e garante sua fidelidade na boca da urna. Um pouco de sensatez não faria mal à classe média. Embora a relutância, talvez a união da imensa legião dos medianos com o proletariado, desse uma razão à existência e salvaria ambos do caos. Agora, por exemplo, perpetua-se o mais degradante, repulsivo e espoliativo ato de humilhação nacional, com a cobrança da CPMF. Aquela contribuição provisória que Adib Jatene criou para injetar recursos na saúde. Esta continua em petição de miséria, mas a arrecadação, cada vez maior para o caixa do governo, vai muito bem. Não seria o momento de voltarmos às ruas, ou, como ovelhas obedientes, vamos, mais uma vez, baixar a cabeça e dobrar-nos à imposição?


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