Revista Justiça & Cidadania

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2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007


EDIÇÃO 87 • outubro de 2007 Constitucionalidade, atualidade, representatividade, governabilidade

o novo horizonte de pernambuco

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Foto de capa: Junhiti Nagazawa/STF

ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DÉBORA MARIA M. A. R. DIAS REVISÃO DIOGO TOMAZ E MAURíCIO FREDERICO DIAGRAMAÇÃO VINÍCIUS GONÇALVES EXPEDIÇÃO E ASSINATURA

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A responsabilidade social e pública para proteção a crianças e adolescentes

CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares

CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO

Antônio souza prudente

EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-906. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429

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Arnaldo Esteves Lima Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso

SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611

CELSO MUNIZ GUEDES PINTO CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA

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José Eduardo carreira Alvim

Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Ives Gandra martins Jerson Kelman josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello

CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL (61) 9674-7569

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ISSN 1807-779X

Massami Uyeda

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monopólios e os serviços públicos

SUMÁRIO Homenagem a um homem de bem

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cidadão: direitos e obrigações

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haja imposto

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Carta Aberta Ao Senador Pedro Simon

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homenagem a um magistrado

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quebra de sigilo no orkut

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O DIREITO À SAÚDE e a PENHORABILIDADE DO BEM PÚBLICO

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primavera em israel

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Agências reguladoras rumo à superação de seus desafios atuais e futuros

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A inexistência de fraude na contratação de terceiros para a execução de serviços-meio

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aposentadoria vesga

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A Imprensa e o Direito: da liberdade de expressão à responsabilidade da informação

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quid pro quo

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universidade dos sonhos

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dom quixote vai a recife

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MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata SEBASTIÃO AMOÊDO Sergio Cavalieri filho Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho

2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 3


EDITORIAL

Homenagem a um homem de bem Massami Uyeda Ministro do STJ Membro do Conselho Editorial

A

Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em seção solene, de 15 de outubro de 2007, outorgou a Medalha Tiradentes ao Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, por seus relevantes serviços prestados em prol da cidadania brasileira. Esta homenagem ostenta o nome do Proto-Mártir da Independência, cuja efígie está estampada na medalha, tem um significado todo especial e que os legisladores fluminenses intuíram ao concederem a honraria ao Ministro Lewandowski, posto que o denominador comum que vincula o agraciado ao seu patrono é a fidelidade à linha do ideal a realizar. O ideário de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, na busca da sonhada independência do Brasil, alicerçase com a imolação de sua própria vida em prol da causa abraçada, por isso seu exemplo é farol, já que norteia e ilumina momentos difíceis em que se debate a cidadania e todos quantos com ela se preocupam. O Ministro Ricardo Lewandowski é também um idealista que busca ver consolidada uma sociedade justa e equânime. No elevado cargo que ocupa, como Ministro da mais alta Corte do País, tem oportunidade de dar concreção a uma aspiração, desde sua juventude acalentada de – optando por cursar Ciências Políticas e Sociais, na Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1971), e Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (1973) – poder mudar o mundo e a sociedade e de interferir na realidade circundante. Esta aspiração juvenil, nascida de seu idealismo, tem 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

inspiração na figura paterna, Sr. Waclaw, que lhe transmitiu o gosto pelo estudo da filosofia e da história. Ela se realizou com a ascensão ao cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal, destacando-se sua atuação independente e altaneira em questões que mobilizam o Estado Brasileiro, e a preservação dos direitos fundamentais e garantias individuais nos julgamentos de que participa. A brilhante trajetória profissional foi edificada ao longo de sucessivas conquistas, com registro dos seguintes marcos: 1948 – Ano de seu nascimento, na cidade do Rio de Janeiro. 1971 – Forma-se bacharel em Ciências Políticas e Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. 1973 – Conclui o bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. 1974 – Começa a atuar como advogado. 1981 – Forma-se Master of Arts em Relações Internacionais na Tufts University, com a dissertação International Protection of Human Rigths: A study of de the brazilian situation and de policy of de Carter Administration. 1984 a 1988 – Atua como Secretário de Governo de Assuntos Jurídicos de São Bernardo do Campo.


Foto: STJ

1988 a 1989 – Presidente da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano S. A. (EMPLASA). 1990 – Torna-se magistrado do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, com ingresso pelo Quinto Constitucional da classe dos advogados. 1994 – Torna-se livre-docente em Direito pela Faculdade de Direito da USP. 1997 – Por merecimento, é promovido a desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, chegando ao Órgão Especial. 2003 – Conquista a cátedra de professor de Teoria Geral do Estado da Faculdade de Direito da USP. 2006 – Assume como ministro do Supremo Tribunal Federal por indicação do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ao lado de sua admirável atuação pública e profissional, o Ministro Ricardo Lewandowski é marido e pai sempre presente. Tem em sua esposa, Dra. Yara, e em seus filhos, Ricardo, Lívia e Henrique, os co-partícipes de uma família estruturada e harmoniosa, sendo pertinente a regra de experiência: “Ao lado de um grande homem, sempre está uma grande mulher”. A outorga da Medalha Tiradentes, portanto, é uma homenagem a um homem de bem. A Revista “Justiça e Cidadania” associa-se a esta homenagem e também perfila-se com todos quantos se sentem orgulhosos de conviver com tão ilustre homenageado.

“Esta aspiração juvenil, nascida de seu idealismo, tem inspiração na figura paterna, que lhe transmitiu o gosto pelo estudo da filosofia e da história.”

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Cidadão: direitos e obrigações Enrique Lewandowski Ministro do STF

Nota do Editor

DIREITOS E OBRIGAÇÕES A direção da Revista segue a trilha das homenagens que o Ministro Massami Uyeda, membro do Conselho Editorial discorre nesta edição em editorial, em louvor do Ministro Enrique Lewandowski, magno jurista, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que honra e enaltece com a presença marcante de sua personalidade a curul que ocupa no Supremo Tribunal Federal. O Ministro Lewandowski, nascido na cidade do Rio de Janeiro transferiu-se para o Estado de São Paulo, onde constituiu sua vida profissional, galgando a Magistratura no Tribunal de Justiça, a cátedra de professor universitário e, finalmente, alcançando por seus reconhecidos méritos a cadeira da nossa mais alta Corte de Justiça Recentemente, por justiça e direito aos seus dotes de cultura, inteligência e arraigado espírito público devotado ao ministério jurídico, recebeu os galardões da Câmara Municipal do Rio de Janeiro com a Medalha Pedro Ernesto e, da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, recebeu a outorga da Medalha Tiradentes e o Título de Cidadão Benemérito. Ao ser agraciado no Plenário da ALERJ, o Ministro Lewandowski, agradecendo a outorga recebida, ressaltou o papel vivenciado pelo cidadão com direitos e obrigações:

S

into-me extremamente emocionado em assomar à tribuna deste plenário, de onde tantos oradores de escol falaram à nação, inserido nesta magnífica jóia arquitetônica, onde funciona hoje a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, e que foi palco de tantos eventos históricos, com destaque para os debates da Constituinte de 1946, quiçá uma das mais democráticas e pluralistas que o Brasil já conheceu. Bem sei que a Medalha Tiradentes e o Título de Benemérito constituem galardões concedidos a poucos escolhidos, o que aumenta a responsabilidade daqueles que com eles são aquinhoados. A homenagem que ora recebo dos lídimos representantes do povo do Rio de Janeiro têm o condão não apenas de tornar os ilustres parlamentares, que a aprovaram, credores de um profundo débito de gratidão de minha parte, como também o de reforçar o vínculo de afeto que me liga aos meus concidadãos desse progressista Estado. Deste edifício histórico, que em justa homenagem denomina-se Palácio Tiradentes, saiu para o martírio este grande brasileiro, precursor de nossa Independência, e, sem dúvida, o primeiro cidadão do futuro Estado livre e soberano para cuja construção pagou o preço da própria vida. Mas o que é ser cidadão nos dias atuais? A partir da Declaração dos Direitos do Homem e do 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

Cidadão, de 1789, promulgada na França Revolucionária, o conceito de cidadania passou a ligar-se indissoluvelmente à idéia de que os indivíduos são titulares de direitos em face do Estado, em especial à vida, à liberdade, à propriedade e à participação política. Mais tarde, com a Revolução Industrial do século XIX, e as lutas operárias desencadeadas em seu bojo, surgiram os intitulados “direitos sociais”, tais como o direito ao trabalho, à saúde e à educação, que passaram a integrar as constituições promulgadas a partir de então, ao lado dos direitos de primeira geração, chamados de “direitos individuais” ou direitos civis e políticos. Depois disso, uma nova geração de direitos desenvolveuse em meados do século passado, no contexto de um mundo globalizado, a qual se denominou de “direitos de solidariedade ou fraternidade”, com destaque para a proteção do meio ambiente. Essas considerações, todavia, não afastam a recorrente questão relativa àquilo que os estudiosos anglo-saxões chamam de political obligation, quer dizer, aos deveres dos cidadãos em face do Estado e da sociedade. De fato, se as pessoas numa república democrática são titulares de direitos, hão de ter também, em contrapartida, obrigações para com a comunidade, como ocorria em Roma antiga ou, mais recentemente, na Alemanha, sob a


Foto: Fabiano Veneza / ALERJ Da esquerda: Ministro Massami Uyeda do STJ, Ministro Enrique Ricardo Lewandowski, com a medalha Tiradentes, e sua esposa Yara Lewandowski.

Constituição de Weimar, que enunciava um rol de deveres. Entretanto, ainda que hoje os textos constitucionais não façam menção a obrigações, é possível deduzi-las a partir da multisecular tradição republicana, a exemplo do dever de tolerância, de solidariedade, de respeitar os outros, de superar o egoísmo pessoal, de defender a liberdade, de observar os direitos das pessoas e de servir o bem comum. Outro aspecto correlato e atualmente pouco lembrado é a da virtude cívica, cultivada no passado, em especial, entre os antigos romanos, e, mais tarde, pelos italianos do Renascimento, que constitui, hoje, no dizer de Maurizio Viroli, um sentimento de repúdio à prevaricação, à discriminação, à corrupção, à arrogância e à vulgaridade. Esses são hoje os traços distintivos do verdadeiro cidadão, do cidadão do século XXI, daquele que se preocupa com os seus semelhantes e com o bem-estar da comunidade. Trata-se de alguém que, embora seja titular de direitos, é também sujeito a obrigações de caráter cívico e moral em face da sociedade em que vive. Esse é o compromisso solene que assumo com os meus concidadãos do Rio de Janeiro, que espero honrar com a máxima exação, ainda que possa estar, por razões que o cargo me impõem, geograficamente apartado do convívio dos novos amigos que aqui logrei conquistar.

“Bem sei que a Medalha Tiradentes e o Título de Benemérito constituem galardões concedidos a poucos escolhidos, o que aumenta a responsabilidade daqueles que com eles são aquinhoados.”

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Constitucionalidade, atualidade, representatividade, governabilidade Bernardo Cabral Consultor da Presidência do CNC Membro do Conselho Editorial

C

omeço por afirmar que, pelo lado político, essa decantada ingovernabilidade é um argumento que não se põe de pé por algumas razões inarredáveis. A primeira delas é que o presidente da República, à época da promulgação da Constituição, era o atual senador, José Sarney, que concluiu seu mandato até 15 de março de 1990, data em que assumiu o novo presidente eleito, Fernando Collor. Este, afastado pelo impeachment teve o restante do seu mandato cumprido pelo vice, Itamar Franco. A seguir, os oito anos de mandato de Fernando Henrique Cardoso e, agora, o presidente Lula no seu segundo mandato. Ora, se o País fosse ingovernável – só para citar o período Collor –, o vice Itamar Franco não teria assumido, como aconteceu com o vice Pedro Aleixo, na época do período militar. Vale dizer: deve-se à Constituição de 1988 a vivência de um período democrático, sem paralelos, no Brasil. Debitar-se à Constituição todos os equívocos – como se faz na atualidade – é esquecer o instante histórico em que ela foi elaborada, quando participaram da sua feitura políticos cassados, guerrilheiros, banidos, revanchistas, etc., que, sem dúvida, contribuíram para o detalhismo condenável, como se vê nas relações de trabalho e o papel do Estado na economia. Sem contar, à época, com a chamada dicotomia entre os regimes capitalista e comunista. 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

Por outro lado – e essa é a validade que se tenta esconder –, apesar de ser o Brasil uma Federação, as principais decisões sempre foram tomadas pelo governo central. Com a Constituição de 1988, a Federação ficou restabelecida, inclusive com a possibilidade de o Estado membro legislar concorrentemente sobre uma série de matérias e, o que é digno de destaque, dispor de recursos para por em prática sua administração. Foi com a Constituição de 1988 que se deu ênfase à descentralização administrativa, comprovando que o melhor governo é o que governa mais perto do cidadão, o qual poderá reclamar os seus direitos diretamente à Prefeitura ou ao governo do Estado, com a facilidade de que jamais dispôs em Brasília. Essas críticas, portanto, não procedem em relação à Constituição Federal. É por isso que me filio à corrente daqueles que, sensatamente, defendem uma mudança radical no Pacto Federativo e não na Carta Magna de 1988. Miniconstituinte ou novo pacto constituinte – já surgiram numerosas declarações sobre a convocação de uma Constituinte restrita ou Miniconstituinte, às quais – com o respeito que os seus defensores merecem – é necessário, senão indispensável, fazer algumas oposições. Qual a semelhança entre o Brasil de hoje e o de 1964?


Foto: CNC

“Com a Constituição de 1988, a Federação ficou restabelecida, inclusive com a possibilidade de o Estado membro legislar concorrentemente sobre uma série de matérias e, o que é digno de destaque, dispor de recursos para por em prática sua administração.”

Vamos retroagir um pouco no tempo. No primeiro semestre de 1964, sob os impulsos de um movimento popular, fruto ou não de equívocos, as Forças Armadas, com o apoio, manipulado ou não, de significativa parcela da classe política (parlamentares, governadores e prefeitos), destituíram o presidente da República e operaram lesões na ordem político-institucional vigente através dos chamados atos institucionais. Depois de um período de convivência da Constituição de 1946 com os Atos Institucionais, o Congresso Nacional foi chamado a institucionalizar o quadro jurídico resultante, através da elaboração da nova Constituição, que foi promulgada a 24 de janeiro de 1967 e entrou em vigor a 15 de março do mesmo ano. Durou pouco e, no curto espaço de tempo de sua vigência, ouviram-se as primeiras vozes em favor da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, idéia que, informalmente, foi defendida, desde abril de 1964, pelo saudoso Senador da Bahia, Aluísio de Carvalho Filho. A idéia não prosperou, uma vez que, a 13 de dezembro de 1968, o estamento militar impôs ao presidente da República a edição de Ato Institucional n° 5, promovendo a completa ruptura político-institucional. Eis aí o motivo forte de então para a convocação da

Assembléia Nacional Constituinte: a completa ruptura político-institucional. E dela decorreram todas as ações políticas que tiveram curso no País. Como, pois, no momento atual – apesar dos problemas econômicos –, quem pode negar a existência de um tempo excepcional de liberdade e da plenitude do Estado de Direito? É o que me leva a adotar opinião contrária ao chamado novo pacto constituinte. Ademais, a doutrina consiste em ver a Constituição como lei fundamental, onde se resguardam, acima e à margem das lutas de grupos e tendências, alguns poucos princípios básicos, que, uma vez incorporados ao seu texto, tomam-se indiscutíveis e insuscetíveis de novo acordo e nova decisão. Como não é todos os dias que uma comunidade política adota um novo sistema constitucional ou assume um novo destino, cumpre extrair da Constituição tudo o que permite a sua virtualidade, ao invés de, a todo instante, modificar-lhe o texto, a reboque de interesses meramente circunstanciais. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


Haja imposto Ives Gandra Martins Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO e UNIP Membro do Conselho Editorial

Arquivo JC

“Não é possível que não perceba que as coisas não andam bem, inclusive na economia, que, se comparada à dos outros países emergentes de nível, está razoavelmente atrás.”

E

stou começando a escrever este artigo a bordo de um avião da TAM, em Brasília, sem hora para decolar, porque, mais uma vez, como tem acontecido desde novembro do ano passado, na gestão Lula, os aeroportos não funcionam. A desculpa é de que o sistema CINDACTA foi desligado, inexplicavelmente, uma vez mais. É bem verdade que, enquanto todos os serviços públicos pioram a olhos vistos e os servidores concursados têm apenas um aumento correspondente à inflação, os que foram elevados a cargos de confiança – ou seja, os 22.000 beneficiados anteriormente e mais os 600 novos beneficiários – estão recebendo aumento entre 80 e 140%. E disse, S.Exa., o Presidente, em discurso, que, para isso, há dinheiro de sobra. Por outro lado, tem-se a impressão de que o melhor negócio no Brasil, nos últimos tempos, foi ter sido contra o governo militar. Numa incorretíssima interpretação da Constituição, como já demonstrei em artigos jurídicos, em torno de 30.000 brasileiros abocanharam quase três bilhões de reais dos contribuintes brasileiros. Um desertor das Forças Armadas, que executou prisioneiro indefeso, foi, inclusive, 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007


promovido post-mortem, para coronel, com aposentadoria correspondente à de General de Brigada. O certo é que, em vez de o governo direcionar a confiscatória carga tributária (o dobro dos países emergentes) para a melhoria da infra-estrutura, e da prestação de serviços públicos nas áreas da educação e saúde, tem-na destinado ao aumento da máquina burocrática, à manutenção de ministérios para acomodar aliados e partidários, à contratação de mão-de-obra não especializada para áreas técnicas da administração. Recentemente, uma de suas auxiliares diretas, acabando de tomar posse em ministério que depende fundamentalmente do bom funcionamento do transporte aéreo, demonstrou extrema falta de sensibilidade e de respeito pela situação caótica vivida por quem precisa utilizar-se desse meio de transporte – como eu, no momento em que escrevo este artigo –, tendo aconselhado a todos a “relaxar” e “gozar”. Pediu desculpas – é verdade –, mas o mal já estava feito. O Presidente Lula certamente tem conhecimento dos desafios que o Brasil deve enfrentar e sabe que não deve embarcar em soluções próprias das quase ditaduras de Chavez ou Morales. É inacreditável, todavia, que não reaja diante de certas situações, permitindo que o MST o desmoralize, que

Chaves o subjuge, que Morales o crucifique, que o Paraguai dite normas, que o setor aéreo permaneça em crise, que a Comissão de Anistia se aproprie do dinheiro do contribuinte para beneficiar uns poucos. Não é possível que não perceba que as coisas não andam bem, inclusive na economia, que, se comparada à dos outros países emergentes de nível, está razoavelmente atrás. Tudo isso se passa porque o governo não enfrenta os problemas que estão ocorrendo, não buscando dar-lhes solução imediata ou mediata, já transcorrido 1/8 de seu segundo mandato, com o principal projeto – o PAC – literalmente “empacado”. De bom, só assistimos à defesa que o Governo Lula fez, pela habilidade de seu Ministro Celso Amorim, de uma maior participação dos países emergentes no mercado agropecuário dos países desenvolvidos. E diga-se, também a seu favor, a excelente “performance” que apresentou nas reuniões de Lisboa e Bruxelas. De qualquer forma, para sustentar tais estruturas governamentais – que os jornais especializados do Exterior apontam como excessiva e inibidora do desenvolvimento nacional –, só resta ao esfolado contribuinte, em linguagem não técnica, lamentar: “HAJA IMPOSTO!” 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


O novo horizonte de Pernambuco Josias Albuquerque Presidente da FECOMÉRCIO/PE

“O sonho pode se tornar realidade se todos nós, que formamos uma classe de privilegiados, desenvolvêssemos esforços para mudar o quadro social injusto que atormenta a vida do cidadão.”

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á fortes razões para o otimismo do povo pernambucano com relação ao futuro do nosso Estado, em função dos diversos e vultosos investimentos que, certamente, trarão benefícios extraordinários para a população com a geração de elevado número de empregos e, como conseqüência, a melhoria do padrão de vida desse povo guerreiro que nunca perdeu a esperança de viver num país socialmente mais justo e verdadeiramente democrático. São investimentos estruturadores de grande impacto para o desenvolvimento regional que serão propiciados com a implantação da Refinaria de Petróleo, do Pólo Petroquímico, do Estaleiro para construção naval, da grande Fábrica de Resina PET/PTA que produzirá fios poliester, do Pólo dos Fármacos, do Pólo de Logística Internacional em SUAPE, além de outros investimentos de grande importância para Pernambuco e o Nordeste. Convém ainda destacar que mais de 70 (setenta) grandes empresas já se encontram funcionando ao redor do Complexo Industrial de SUAPE, oferecendo oportunidade de trabalho para milhares de pessoas. Tudo isso começou há mais de 50 anos, quando uma equipe de pernambucanos, liderada pelo Padre Lebret, idealizou a construção do Complexo Industrial de SUAPE e, na oportunidade, elaborou um plano diretor para orientar a execução do projeto que trazia em seu bojo um cuidado especial com as áreas de preservação ambiental. Assim nasceu SUAPE, que se tornou um grande marco 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

para o desenvolvimento de Pernambuco e do Nordeste. Não resta dúvida de que nosso otimismo é plenamente compreensível pelos investimentos que já ocorreram e ainda acontecerão em nosso Estado, porém nasce nossa preocupação no sentido de que as oportunidades oferecidas à população em decorrência desses investimentos não possam ser aproveitadas pelos jovens e adultos da nossa comunidade pela falta de qualificação profissional e, em muitos casos, a deficiência de nossas escolas que não estão oferecendo o nível de conhecimento necessário para que os seus alunos possam receber a formação indispensável (inclusive tecnológico) para o exercício de uma atividade profissional. Na construção dessa nova sociedade que não é tarefa exclusiva do Governo, mas daqueles que podem contribuir na prática de ações de responsabilidade social, está o Sistema “S”, especialmente do comércio de bens, de serviços e turismo, que é liderado, a nível nacional, pelo extraordinário brasileiro – capixaba Antônio Oliveira Santos, que tem dedicado a sua vida em prol do Sistema CNC/SESC/SENAC. Esse Cidadão Honorário de Pernambuco, título que merecidamente lhe foi concedido pela unanimidade dos Deputados da Egrégia Assembléia Legislativa, tem feito consideráveis investimentos neste Estado na área de educação e assistência social por acreditar que é a única forma de contribuir para o desenvolvimento sustentável do nosso País. Destaque-se que a ação da CNC, através do SESC/ SENAC, tem-se estendido a todo território brasileiro em uma


Foto: FECOMÉRCIO/PE

demonstração de responsabilidade social que preside as ações dessa respeitável entidade de classe. No caso de Pernambuco, o Sistema FECOMÉRCIO/ SENAC/SESC tem empreendido ações que justificam a credibilidade conquistada em todos os segmentos da comunidade. Com uma atuação que abrange todos os municípios do Estado, o SENAC atendeu, em 2006, um expressivo contingente de aproximadamente 106 mil pessoas, através de suas unidades operativas, com mais de 380 cursos que vão desde a iniciação profissional e ações extensivas até os cursos de graduação superior. No SESC, como o atendimento é computado pela utilização de cada serviço disponível, no ano de 2006, foram realizados 20 milhões e 400 mil atendimentos através dos programas de educação, saúde, lazer, cultura e assistência. O programa Banco de Alimentos, que integra o Mesa Brasil do SESC Nacional, foi criado em 2002 para atuar na capital e no interior do Estado, atendendo, no momento, aproximadamente, 30 mil pessoas com refeições diárias através de creches, abrigos de idosos, entidades de assistência social, entidades organizadas que trabalham com jovens, e outras instituições que recebem doações do Banco de Alimentos, enviadas por empresários dos mais diversos segmentos que entenderam o objetivo social da iniciativa. Mais de 200 toneladas por mês de alimentos que seriam desperdiçados contribuem, hoje, para combater a fome dessa população marginalizada. No entanto, nós desejamos que, no futuro, não tenhamos

necessidade de manter esse Banco de Alimentos, e que a população possa ter uma condição digna de sobrevivência. Esse sonho pode se tornar realidade se todos nós, que formamos uma classe de privilegiados, desenvolvêssemos esforços para mudar esse quadro social injusto que atormenta a vida do cidadão. A saída começa com a mudança do processo de educação, transformando o modelo atual em uma educação de qualidade que dê oportunidade ao crescimento das pessoas, cultural e socialmente. Em Pernambuco, esse é o momento propício para essas transformações. Precisamos contribuir com as autoridades constituídas para operar esse processo de mudança na área de educação, especialmente os ensinos fundamental e médio, e encaminhar esses jovens para uma formação profissional adequada às necessidades do mercado de trabalho, com o objetivo de propiciar condições para que eles possam participar do processo de desenvolvimento de Pernambuco e do Brasil. Este é o caminho que precisamos alcançar, em breve, para que essa juventude, hoje marginalizada, possa aproveitar os benefícios dos grandes investimentos que estão ocorrendo em nossa região. É urgente que as escolas, as autoridades constituídas e a sociedade, em geral, participem desse esforço para mudar o quadro atual na preparação para o novo horizonte de Pernambuco. O Sistema FECOMÉRCIO/SENAC/SESC está fazendo a sua parte. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


Carta Aberta Ao Senador Pedro Simon

Estimado Senador Pedro Simon

A

s suas lutas e posicionamentos em favor do povo e da pátria, durante toda a sua vida pública, tem lhe garantido o respeito e admiração que a população do Brasil todo lhe devota. Quando, há 400 anos atrás, o grande escritor Miguel Cervantes de Saavedra criou a legendária figura de Dom Quixote de La Mancha e o seu fidelíssimo escudeiro Sancho Pança, por certo, estaria preconizando que, em uma terra distante, que veio a se chamar Brasil, haveria de existir um homem que teria como paradigma de sua vida os mesmos ideais de liberdade, dignidade, fidelidade, moralidade, ética, coragem, renúncia, amor, desprendimento e determinação, como ficaram expressos para a posteridade o idealismo da criação exótica e sublime do cavaleiro de triste figura, Quixote, em conjugação com a fidelidade até sepulcral do escudeiro Sancho Pança, como retratado, inconfundivelmente, no cidadão Pedro Simon. Dessa forma, a participação do homem público Pedro Simon, em todas as suas atividades pessoais e políticas, durante o seu cinqüentenário de vida dedicada ao povo, tem sido sempre impregnada de idealismo e lutas em benefício da pátria e sua população. Em razão desse reconhecimento público, que me atrevo, como velho jornalista, longevo companheiro, admirador e, excepcionalmente, como cidadão, a solicitar a atenção e consideração para o assunto que envolve, pela importância e relevância social e política, o maior interesse e responsabilidade face o difícil momento que vivenciamos. Trata-se da CPMF, agora em tramitação no Senado Federal. 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

Não se discute a escorcha tributária que ela representa. Entretanto, sua criação e seu propósito, quando instituídos por iniciativa do reconhecido médico-cirurgião Jatene, foram incontestavelmente de alta valia e importância. Os interesses fazendários e a ganância política em desviar e usufruir as importâncias recolhidas desvirtuaram o essencial do objetivo social, transformando a renda financeira destinada a beneficiar a saúde, em uma máquina propulsora de desvios de verbas e a abjeta corrupção de políticos vorazes e acanalhados. É patente no país a desgraça, o horror e a miséria que grassam indiscriminadamente em todos os hospitais públicos do país, sejam eles municipais, estaduais ou federais. Enquanto isso ocorre, o dinheiro arrecadado com fim específico e a destinação específica tiveram, aos poucos, seus valores tributários aumentados e, infelizmente, desviados para outros fins. A arrecadação prevista para o próximo exercício de 2008 é divulgada em cerca de 40 bilhões de reais, e, desse valor, destina-se, para a saúde, apenas 20% do arrecadado. A Nação toda sabe que o digno Senador do Rio Grande do Sul, aliado a outros ilustres e conceituados integrantes do Senado Federal, tem demonstrado recusa ao Projeto do Governo, já aprovado pela Câmara dos Deputados e com prorrogação até o ano de 2011. Será que a maioria dos Senadores, como seria de se esperar, votará contra ou se dobrará aos achegos e benefícios políticos que o Governo oferece no usual troca-troca de cargos, obras sem licitações e concorrências fraudadas, concessões de rádios e televisão, e, inclusive, nomeações de Ministérios como vergonhosamente se assiste?


Foto: STJ

“Não se discute a escorcha tributária que ela representa. Entretanto, sua criação e seu propósito, quando instituídos por iniciativa do reconhecido médicocirurgião Jatene, foram incontestavelmente de alta valia e importância.”

Os jornais informam que a conceituada Senadora Kátia Souza, digna Relatora na Comissão de Constituição e Justiça, apresentará Emenda rejeitando o Projeto e abolindo a CPMF. Os mesmo jornais acrescentam que o líder do Governo já prepara outra Emenda substitutiva para se opor ao da Senadora. Quem levará a melhor? Diante do fato e do perigo eminente da aprovação, face às circunstâncias do Governo usar, como vem fazendo, a compra despudorada de desavergonhados representantes, não seria o caso de reverter a situação para benefício da população carente e doente, que enfrenta, diariamente, sem atendimento compatível, as portas dos hospitais e ambulatórios, apresentando e aprovando um Projeto com Emenda modificativa, mas com destinação total da arrecadação da CPMF para uso exclusivo na área da saúde? Releve, estimado Senador Pedro Simon, a minha intromissão, mas é de perguntar: como se arranjará a saúde sem a verba dessa contribuição? Com a situação atual, o atendimento médico-hospitalar, na maioria dos hospitais públicos, já é de desespero. Com falta de remédios, leitos e atendimento, imagine o horror de então se o Projeto for recusado! É claro que a opinião pública está contra a discutida CPMF; está claro também que tem de se brigar e lutar contra o violento achaque tributário do Governo, mas há de se pensar nas agruras dos doentes sem recursos e desgraçados, que pululam pelo país, miseráveis e em busca de socorro e atendimento. Estimado Senador, reitero o pedido de relevar a abordagem

que faço, em especial pela opinião, que, infelizmente, aponta pela aprovação e atendimento ao objetivo do Governo: arrecadar mais, ainda que em prejuízo da Nação, em especial da população sofrida e desamparada. Sendo assim, creio que será mais fácil, se lhe convier, tentar reverter a situação, conseguir o apoio de Senadores que, talvez mais fácil e convenientemente, votariam na destinação total da CPMF para a saúde, em vez de votar totalmente contra o Governo. Acredito, inclusive, que a própria Senadora e Relatora do Projeto na Comissão de Constituição e Justiça atenderia o seu pedido para modificar a intenção de rejeitar totalmente a CPMF. O mesmo poderia acontecer com outros líderes partidários, que colheriam melhores proveitos políticos nos seus Estados, com a evidente melhoria de atendimento na saúde para seus conterrâneos. Receba, ilustre e estimado Senador, as homenagens, o respeito e a admiração.

Rio de Janeiro, 17 de Outubro de 2007.

Orpheu Santos Salles Editor da Revista Justiça & Cidadania 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


Homenagem a um magistrado David Ribeiro Salles Secretário de Redação

M

uitas cerimônias ficam pasteurizadas pelo formalismo ou incredulidade dos que participam dela. Os gestos e as falas parecem estudados demais. Artificiais. Todos ali presentes são atores em cena e devem se ater ao script. Este déjà vu acaba por inserir uma suspeita de que tudo não passa de uma farsa. Um dos motivos desta impressão é banalização das homenagens pela necessidade de lustrar os egos de um mundo globalizado cujos habitantes são estimulados a cultivar a vaidade própria ou alheia. O conteúdo das loas obedece mais à aparência ou às conveniências do que à essência. Falta substância aos adjetivos. Assim mesmo, aceitei o convite para assistir a entrega de uma medalha e um diploma de cidadão honorário, e escrevo estas considerações para afirmar que fiquei surpreendido. O motivo de ter aceitado o convite tem ressonância no improviso do Sr. Ministro Lewandowski, que me soou inequivocamente autêntico. A Câmara de vereadores da cidade do Rio de Janeiro votou a concessão da medalha Pedro Ernesto e o título de cidadão Carioca ao primeiro descendente de japoneses a atingir a mais alta corte técnica do país, o Sr. Ministro Massami Uyeda, da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. A prova viva de que o Brasil realiza um pluralismo cultural e racial sem par no planeta. Sem dúvida, o homem merece homenagens, mas esta homenagem era apropriada? 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

Qual a razão de se conceder a cidadania carioca ao jurista paulista da cidade de Lins? O que fez para merecer a medalha de Pedro Ernesto? Seu mérito como jurista já não está reconhecido pelo fato de ter sido nomeado para a citada corte? Ora, a síntese entre os discursos do ex-vereador Ivan Moreira e do ex-Secretário de Estado, Dr. Marins, afasta quaisquer dúvidas residuais quanto ao mérito da homenagem. Como se tivessem combinado o enredo, o conselheiro do Tribunal de Contas relatou a longa trajetória profissional e acadêmica do Ministro, e o advogado subiu a Tribuna para alinhavar esta moldura de sucesso com o contexto da cerimônia. Primeiro, ficaram consignadas as vitórias e o respectivo esforço, depois veio a ênfase sobre seu significado e substância. Deixei o Palácio convencido de que o Sr. Ministro Massami Uyeda é um honorável Carioca. O improviso sincero do ministro do Supremo Tribunal Federal alertara para a questão do mosaico cultural brasileiro. O proponente da comenda nos contou como o descendente de japoneses evoluíra até sua sagração na sabatina do senado federal, e, estentoreamente, o causídico registrara a contribuição da mãe do homenageado, cuja mão firme o obrigara a estudar, sublinhando sua crença no Conhecimento e na Ciência. De Pedro Ernesto, Massami Uyeda tem a similaridade do exemplo de dedicação à Causa Pública. É


Foto: CM/RJ Da esquerda: Ministro Massami Uyeda recebendo diploma das mãos do Desembargador Murta Ribeiro, Presidente do TJ/RJ, e, ao lado, Ivan Moreira Conselheiro do TCM-RJ.

carioca por merecer cidadania no porto que oferece abrigo à cultura pluralista, antropofágica e universal brasileira. A discreta e elegante cerimônia foi apropriada e de ímpar significação para as futuras gerações. Ali, estava a condenação de cotas raciais que contaminam o futuro profissional e acadêmico de qualquer homem. Ali, estava presente um homem que alcançou elogios por mérito e por estudo. Um homem que galgou as “Torres de Marfim” da Justiça sem subterfúgios ou concessões. Ali, estava a certeza e a prova da possibilidade de equanimidade humana, independente de raça, credo ou cultura. Neste aspecto, Joaquim Barbosa e Massami Uyeda merecem estar no panteão dos nosso heróis. No palácio Pedro Ernesto, o filho brasileiro uniu o Bushido e o Cursus Honorum. Havia respeito às próprias origens e tradições no domínio do idioma japonês (no cumprimento ao representante consular), e conhecimento da cultura latina e do vernáculo ao citar Virgílio, Manuel Bandeira e Fernando Pessoa, quando a tribuna agradeceu a merecida homenagem. Ali, o autor de jurisprudências se humanizou e foi generoso ao comparar o Rio de Janeiro à mítica Pasárgada, onde agora o Honorável Carioca Massami Uyeda é exemplo, ou seja, é mais do que amigo ou samurai, é rei. A cerimônia teve significado.

“o autor de jurisprudências se humanizou e foi generoso ao comparar o Rio de Janeiro à mítica Pasárgada, onde agora o Honorável Carioca Massami uyeda é exemplo, ou seja, é mais do que amigo ou samurai, é rei. A cerimônia teve significado.”

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A responsabilidade social e pública para proteção a crianças e adolescentes Joenildo de Sousa Chaves Desembargador TJ/MS

“Para que se estabeleça uma rotina rápida e sem meandros desgastantes, é necessário envolver e cobrar a ação da sociedade, tal qual diz o ECA.”

A

criança e o adolescente são o maior bem de nossa sociedade. Zelar por eles é um dever não só da família, mas da comunidade, da sociedade e do Poder Público, segundo a Constituição Federal. Ao aprovar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, o País reconheceu os direitos fundamentais de sua população mais jovem. Conselhos de Direitos nasceram para coordenar ações, fundos dos Direitos foram criados para receber recursos e leis de isenção fiscal foram promulgadas para estimular doações, com o fim de possibilitar à sociedade contribuir para a implementação de políticas públicas nesta área. O presente tema está consagrado no art. 98 do ECA, que tem como destinatários a família, a sociedade e o Estado, quando são violados direitos das crianças, mediante ações ou omissões. O ECA foi democrático ao disparar em todas as direções para nos atribuir a responsabilidade solidária: não é só a família, não é só a sociedade, não é só o Estado. O jovem e a criança têm um tripé de apoio obrigatório previsto em lei, razão pela qual todos devem responder por essas crianças e jovens abandonados, agredidos ou maltratados. E esse dever torna-se cristalino no art. 4º: família, sociedade, comunidade e Poder Público estão apontados como devedores da criança e do adolescente e de todos os direitos fundamentais a eles inerentes, devendo assegurar tais

18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

direitos com absoluta prioridade, tal como dispõe o comando constitucional do art. 227. O mencionado art. 4º ainda assegura que a “garantia de prioridade compreende: primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; precedência do atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”. Agora, cumpre-nos perguntar se isso tem sido garantido. Será que, sobretudo, o Poder Público tem cumprido sua parte? Diuturnamente, nos deparamos com crianças e jovens a nos mostrar que não. Cruzamos com eles nos piores momentos de sua vida, olhar triste, fala de deboche e de revolta em função das agressões sofridas, sentados nos bancos de espera dos corredores das repartições e serviços públicos por este País afora, desafiando a incompetência ou precariedade dos serviços, a falta do dinheiro público, evidenciando a lentidão insuportável da implementação do sistema de atendimento, que, depois de 16 anos, ainda não consegue ter a cara do Estatuto da Criança. É neste momento que ficamos face a face com o tema das responsabilidades sociais e públicas, sobre as quais nos questionamos se estão, de fato, funcionando, pois a criança, vista no sentido de existência real, é o teste e a cobaia da eficácia ou não da implementação do ECA.


Foto: TJ/MS

Quanto à responsabilidade pública, podemos afirmar que o ECA vem sendo cumprido, mas de forma bastante precária, com demora e ineficiência quanto à implantação dos serviços necessários para que bem funcione, muitas vezes se exigindo a via judicial para fazer valer direitos. Cumpre-nos ressaltar que o ECA, desenhando a responsabilidade do Poder Público, exigível por todas as ações previstas em lei, e outorgando ao MP e entidades a defesa de direitos individuais, coletivos e interesses difusos desse segmento vulnerável da sociedade, trouxe a exigibilidade judicial de condutas dos entes públicos, que podem ser acionados por mandados de segurança, ações individuais ou coletivas, obrigações de fazer, enfim, tendo o parquet, ao seu dispor, todo o instrumental processual, inclusive as ações civis públicas que vêm sendo manejadas pelos Promotores de Justiça da Infância e da Juventude. Em todo o Brasil, nos Tribunais Superiores e também no Estado de Mato Grosso do Sul, os Tribunais não têm hesitado em assegurar os direitos das crianças com segurança e uniformidade, interpretando corretamente o sentido da urgência de que liminares devem ser garantidas, sentenças devem ser prestigiadas. E, tendo em vista que os programas públicos de apoio à família e à criança ou os programas de ensino e tratamento não existem ou são insuficientes para atenderem à demanda, presenciamos a corrida dos pais aos Promotores de Justiça da

Infância e da Juventude, a fim de que o Poder Judiciário tutele os direitos assegurados pelo art. 208 do ECA, que é claro ao dispor quanto ao dever jurídico de o Poder Público oferecer tais programas e estabelece que tal dever jurídico é judicialmente exigível por todas as ações em direito admitidas. Nesse contexto, temos que é dever do MP e de outros legitimados acionar judicialmente os Poderes Públicos, em virtude da falta ou da oferta irregular de educação, transporte, saúde, assistência social, para proteção de interesses individuais, difusos ou coletivos, sendo admitidas todas as espécies de ações judiciais pertinentes. A própria Justiça da Infância mudou para se tornar muito mais abrangente, não mais se restringindo a julgar processos de adoção, tutela e guarda, interesses tipicamente individuais, colocando-se a serviço da exigência judicial de deveres do Estado e da sociedade, quando estes vierem a violar direitos de crianças (art. 98, I, do ECA, e art. 148, IV, parágrafo único), e, por isso, admite-se ajuizamento de ações civis públicas, sobretudo para cobrar do Poder Público obrigações de fazer em favor dos infantes. Na verdade, como ainda não sabemos quais são os melhores caminhos, somos obrigados a passar por muitos intermediários antes de chegarmos àquele que efetivamente resolverá o problema. Às vezes, precisamos procurar aquele que conhece as regras insculpidas pelo ECA para podermos dialogar mais rapidamente e, assim, perdemos muito tempo para conseguir o acesso aos serviços, o que, muitas vezes, significa a perda do direito, a perda da criança, a perda do adolescente. Para que se estabeleça uma rotina rápida e sem meandros desgastantes, é necessário envolver e cobrar a ação da sociedade, tal qual diz o ECA. Não se pode olvidar que começamos por onde o ECA termina: os direitos devem ser assegurados de plano, e não mediante processos judiciais demorados e sofridos. O ECA prevê um sistema desjudicializado, despolicializado, no qual a sociedade, por sua cobrança diária, faça valer tais direitos, com a mínima necessidade de intervenção judicial. No plano da Justiça, afirmou o ECA que as questões da infância devem ser tratadas, principalmente, na escola, na família, no bairro, e só deve haver a intervenção do Judiciário em caso de risco à criança ou violação de direitos. É o que se chama de desjudicialização do direito da infância. Justamente por isso, o ECA criou os Conselhos Tutelares, que atendem mais de perto as crianças e aplicam medidas não judiciais previstas em seu art. 101, medidas de proteção, de orientação, pedagógicas, de encaminhamento para tratamentos médicos, enfim, 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


promovendo a cidadania das crianças e de seus pais. Resumindo, é dever da sociedade, em geral, e do Poder Público, em especial, além da família, assegurar às crianças e adolescentes seus direitos básicos. Nesse diapasão, falta à sociedade saber que ações podem e devem ser tomadas, constituindo-se um ledo engano imaginar que a única forma de colaborar é o assistencialismo homeopático e infindável, condenando seus destinatários a uma exclusão social permanente e definitiva. É justamente nesse contexto de responsabilidade social que deve ser inserido o setor empresarial, que detém os recursos econômico, tecnológico e social, e que, muitas vezes, tem um PIB maior que o de muitos países, detendo, exatamente por isso, o poder. E aquele que detém o poder deve arcar com a responsabilidade a ele inerente. Cumpre salientar que, por empresa socialmente responsável, não devemos entender apenas aquela que se limita a respeitar os direitos dos trabalhadores, consolidados na legislação trabalhista e nos padrões da Organização Internacional do Trabalho, ainda que esse seja um pressuposto indispensável. A empresa deve ir além e investir no desenvolvimento pessoal e profissional de seus empregados, bem como na melhoria das condições de trabalho e no estreitamento de suas relações com os empregados. Também deve estar atenta ao respeito às culturas locais, revelado por um relacionamento ético e responsável com as minorias e instituições que representam seus interesses. Portanto, trata-se de proteger cada criança, a partir de sua formação e desenvolvimento ainda no útero materno, durante a gestação, por meio de pré-natal adequado e de qualidade. Além disso, é preciso garantir o cuidado e o afeto, o registro de nascimento, o aleitamento materno exclusivo até os seis meses de idade, a imunização completa para a idade, o acesso a serviços de saúde, creches e pré-escolas, o direito de brincar, a participação dos pais e da família na vida das crianças e a proteção contra acidentes domésticos e abusos. As crianças e os adolescentes não podem ser vistos da mesma forma que o indivíduo adulto. Investir na infância é a alternativa para quebrar o círculo vicioso da pobreza e promover o desenvolvimento social e econômico do País, e, de certa forma, impedir o avanço da criminalidade. Isso implica garantir os direitos à sobrevivência, ao desenvolvimento, à educação e à proteção, com investimentos de recursos humanos e financeiros, prioridade absoluta, conforme estabelecido no art. 227 da Constituição Federal, a partir de políticas públicas integradas, com o governo, a família, o setor privado e a sociedade civil organizada sendo co-responsáveis. A revalorização do voluntariado é, também, expressão da participação cidadã e contemporânea do comprometimento crescente do empresariado brasileiro com a noção de responsabilidade social. É bem maior do que se imagina o número de empresas que não apenas financiam projetos de interesse social, mas também incentivam seus executivos e funcionários a doar tempo, trabalho e talento à viabilização dessas iniciativas. Ainda que essa filosofia de atuação possa se situar próxima ao sutil limite entre a atuação social e o patrocínio, e este se aproxime mais de uma ferramenta de marketing institucional, 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

que favorece a imagem da empresa e acaba melhorando seus resultados financeiros, a verdade é que, em última análise, isso traz, sim, benefício aos destinatários finais, e isso, para a garantia de direitos, tem de ser visto como algo muito positivo, independentemente de se exigir a motivação pura e intrinsecamente ética da ação. De qualquer modo, o diferencial dessa nova postura e atuação empresarial é que não se trata mais de doar bens ou fazer caridade, mas proporcionar apoio técnico e profissional, ceder conhecimentos da área de cada empresa ou de cada profissional dela, ações que podem variar do simples apoio informal até a criação de programas formais da empresa. Todos esses aspectos não podem, porém, nos conduzir à conclusão de privatizarmos a questão da infância e defender a tese de que o setor privado deva desempenhar um papel substitutivo na prestação de serviços que hoje são oferecidos pelo Estado. Esse é o perigo subjacente a um confortável neoliberalismo que lave as mãos a respeito do assunto. Mas o que deve ser sedimentada é a idéia de resgate do sentido de “coisa pública” no tema da proteção da infância e da adolescência, que não mais se subordina obrigatoriamente apenas à esfera governamental, mas permite, demanda e até mesmo impõe uma preocupação da sociedade, exigindo, cobrando, fiscalizando, mas também colaborando para ajudar na construção de uma sociedade em que a criança seja criança e possa crescer em perfeito desenvolvimento, para ser o jovem gradualmente encaminhado, para tornar-se cidadão pleno na idade adulta. Só assim, de fato, estarão chamados à responsabilidade todos os protagonistas que o ECA determinou como garantidores dos direitos das crianças. Para mudar, entretanto, não podemos jamais nos esquecer de que a criança e o adolescente precisam de proteção, mesmo que seja aquela “criaturinha” gentil e frágil que vai crescendo sob nossos olhares tranqüilos, portando uma mochilinha de volta às aulas na aventura de descobrir o mundo, ou mesmo aquele ser que já afirma suas razões e desafia seus pais e professores na adolescência, mas ainda ensaia passos inseguros em busca de sua maturidade e independência. Contudo, muito mais que tais, precisa de proteção a criança magra de mal-alimentada, a criança pálida de doente, a criança assustada e marcada de hematomas, a criança aterrorizada e ameaçada porque ousou chorar ao ser agredida ou denunciar seu agressor, a criança triste e de olhar sofrido trabalhando em vez de brincar e de estudar. Muito mais precisa de proteção a criança que não teve respeitada sua inexperiência, que foi aliciada para usar drogas ou para se prostituir, acreditando que, afinal, alguém vai cuidar dela em troca disso, e dar-lhe casa, comida e, talvez, até aquele tênis ou aquele vestido novo. São crianças escondidas atrás do medo, de sua fragilidade e da indiferença da sociedade, que se acostumou a aceitar que pobreza, doenças, desamparo, maus-tratos e exploração do trabalho são o destino de algumas crianças, os “menos favorecidos”, e que isso é assim desde o começo dos tempos.


2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


3ª Câmara Criminal

Reclamação nº 62/2006 Reclamante: Ministério Público Reclamado: Juiz de Direito da 34ª Vara Criminal da Comarca da Capital Relator: Desembargador Marco Aurélio Bellizze

O Relatório

Ministério Público apresentou reclamação contra decisão proferida pelo Juízo da 34ª Vara Criminal da Comarca da Capital, que indeferiu pedido de quebra de sigilo de dados cadastrais, bem como os números de IP, data e hora completa, dos membros e criadores das comunidades “Eu sei Dirigir Bêbado”, “Sou Menor Mas Adoro Dirigir” e das demais relacionadas integrantes do sítio de relacionamento Orkut. Aduz o Ministério Público a imprescindibilidade da medida para apurar a autoria e demais circunstâncias que envolveram a prática dos delitos de incitação e apologia ao crime, tipificados nos artigos 286 e 287, do Código Penal, sendo certo que a Autoridade Policial informou que já realizou inúmeras diligências para a obtenção dos dados dos usuários, que restaram infrutíferas, diante da utilização de nomes falsos para evitar a identificação. A decisão que indeferiu o requerimento teve como fundamento o fato de que os crimes investigados são apenados com detenção, daí porque seria incabível a medida com base na Lei nº 9.296/96, que regula a interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática. A interposição veio instruída com os documentos de folhas 14/38. A decisão foi mantida em sede de juízo de retratação (folha 32). Informações prestadas pelo Juízo reclamado nas folhas 42/43. A douta Procuradoria de Justiça apresentou o parecer de folhas 45/49, opinando pelo provimento do recurso. É o relatório. 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

Voto Saliente-se, de início, o cabimento da reclamação oferecida pelo Ministério Público para a insurgência contra a decisão judicial impugnada. É verdade que alguns intérpretes da lei enxergariam no mandado de segurança o remédio adequado para o combate à decisão do Juízo monocrático. De outro lado, a reclamação tem sido considerada a via idônea para superar impasses concernentes ao indeferimento injustificado de requerimentos formulados pelo Ministério Público, objetivando instruir inquéritos e ações penais com elementos de apuração e comprovação de ilícitos penais. O fato é que o exame da matéria controvertida sob as lentes da reclamação não conduz a qualquer aberração ou prejuízo, mas sim a prevalência do conteúdo meritório sobre o formalismo ultrapassado, em prestígio ao princípio constitucional da efetividade do processo, assim como a seu corolário lógico, o princípio da instrumentalidade das formas. Com efeito, os autos dão conta de que a empresa que representa legalmente o sítio de relacionamentos Orkut, a empresa Google Brasil Internet Ltda., não atendeu à requisição formulada diretamente pelo Ministério Público, argumentando que a lei de regência em casos dessa natureza é a do local onde estão situadas as informações, exigindo a legislação norte-americana determinação judicial para se proceder à quebra de sigilo de comunicação eletrônica. Diante da resistência manifestada pela Google Inc. para prestar as informações solicitadas, o Ministério Público teve de se valer de requerimento à Autoridade Judiciária, que indeferiu o pedido, dando azo à apresentação da presente Reclamação. Cabível, portanto, a reclamação para o fim postulado. No

Foto: Luiz Henrique - TJ/RJ

QUEBRA de sigilo no


“na espécie, não se cuida de interceptação telefônica ou telemática, mas sim de registros que permitam a identificação dos usuários e criadores das comunidades e de outros registros imprescindíveis à investigação levada a cabo pelas autoridades competentes.”

tocante ao mérito, a reclamação merece prosperar. O fundamento do indeferimento do pedido de requisição dos dados cadastrais dos criadores e membros das comunidades “Eu Sei Dirigir Bêbado” e “Sou Menor Mas Adoro Dirigir”, bem como dos criadores de todas as demais comunidades a elas relacionadas – a vedação legal do art. 2º, inciso II, da Lei nº 9.296/96, de deferimento da medida requerida em crimes apenados com detenção –, não se sustenta, porque é inaplicável aos fatos investigados na referida legislação. Na espécie, não se cuida de interceptação telefônica ou telemática, a abranger a transmissão, emissão ou recepção de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza, por meio da telefonia, estática ou móvel, mas sim de registros que permitam a identificação dos usuários e criadores das comunidades e de outros registros imprescindíveis à investigação levada a cabo pelas autoridades competentes. Nesse contexto, é oportuna a lição de Luis Flávio Gomes e Raúl Cervini, diferenciando comunicação telefônica (e, por extensão, comunicação telemática) e quebra de sigilo de dados telefônicos, verbis: “Uma coisa é a ‘comunicação telefônica’ em si, outra bem diferente são os registros (geralmente escritos) pertinentes às comunicações telefônicas, tais como: data da chamada telefônica, horário, número do telefone chamado, duração do uso, valor da camada, etc. Pode-se dizer que esses registros configuram os ‘dados’ escritos correspondentes às comunicações telefônicas. Não são ‘dados’ no sentido utilizado pela ciência da informática (informação em forma codificada), senão referências, registros de uma comunicação telefônica, que atestam sua existência, duração, destino, etc.” (in:

Interceptação Telefônica – Lei nº 9.296, de 24.07.96. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997, pp. 100/101) (sem destaques no original). Com efeito, a doutrina pátria percebeu a distinção entre a comunicação de dados, dinâmica, e dos dados cadastrais e registros, estáticos, que poderiam ser apreendidos como os documentos em geral, e não com base na Lei nº 9.296/96. Veja-se, a esse respeito, a lição de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, verbis: “A segunda dificuldade é delimitar a proteção constitucional: estaria protegida somente a comunicação de dados, ou seja, aquela que é feita em rede de computadores, transmitida normalmente por linha telefônica ou também os dados armazenados? A rara doutrina sobre o assunto caminha no sentido de considerar que não estão compreendidos na proteção constitucional os dados armazenados ou estanques, ou melhor, os que não estão sendo transmitidos. A vedação, portanto, é para a captação ilícita da transmissão. Os dados armazenados, segundo Geraldo Prado, William Douglas e Luiz Flávio Gomes, podem ser apreendidos como os documentos em geral.” (O Processo Penal em Face da Constituição – Princípios Constitucionais do Processo Penal. Ed. Forense, 2ª ed., p. 25) (sem destaques no original). Em idêntico sentido, Luis Flávio Gomes e Raúl Cervini concluem que: “Os dados telefônicos (registros pertinentes a chamadas pretéritas) não contam com sigilo absoluto. Por ordem judicial pode ser quebrado esse sigilo, mas sempre que houver autorização legal, distinta da Lei nº 9.296/96.” (op. cit, p. 104.) (sem destaques no original). 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


Foto: Luiz Henrique - TJ/RJ 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

Nesse contexto, os dados objetos do requerimento Ministerial indeferido, concernente aos dados cadastrais, números de IP’s, data e hora completa dos criadores e membros das comunidades “Eu Sei Dirigir Bêbado” e “Sou Menor Mas Adoro Dirigir”, bem como dos criadores de todas as demais comunidades a elas relacionadas, do sítio de relacionamentos Orkut, inserem-se no conceito de dados registrais passíveis de obtenção através de decisão da autoridade judiciária competente, cujo fundamento não é a Lei nº 9.296/96, que cuida da interceptação das comunicações. Isso não significa dizer que tais dados não mereçam proteção legal, mas sim que o direito ao sigilo de tais registros não é absoluto, tanto que a quebra daquela faceta da intimidade do usuário depende de autorização judicial, devendo o Juiz observar, no momento da decisão, o princípio da proporcionalidade. Na hipótese dos autos, é evidente que o direito à intimidade dos usuários das comunidades investigadas no inquérito policial deve ceder em função de um interesse maior, coletivo, de proteção a número indeterminado de pessoas, entre eles jovens habilitados e não habilitados para a condução de veículos, já que aquelas comunidades estariam incitando seus membros à prática de condutas que, em tese, são típicas e certamente trariam, se efetivamente já não trouxeram, nefastas conseqüências à segurança do trânsito, e, ainda, a perda de vidas humanas, estas irreversíveis. Assim, tenho como dispensável maiores considerações teóricas sobre a ponderação de interesses fundamentais aparentemente colidentes, sendo certo que o direito do Poder Público de apurar condutas ilícitas deve preponderar sobre o direito à intimidade, que não tem a finalidade de blindar praticantes de crimes que o Estado tem o dever de prevenir, apurar e reprimir.


“O direito à intimidade não é um direito absoluto, não podendo ser veículo de impunidade, de propagação de danos à esfera jurídica de terceiros e de insegurança para a coletividade. ”

Desse modo, a vinda das informações necessárias à investigação policial é providência que expressa indiscutível razoabilidade e proporcionalidade, na medida em que o eventual desconforto de restrito número de usuários e participantes das comunidades investigadas é bem inferior aos incalculáveis benefícios à sociedade, decorrentes da preservação e prevalência da lei, do resgate da autoridade e do fim da impunidade. A decisão proferida na presente reclamação tem como escopo possibilitar ao Poder Público, através dos órgãos constitucionais e legais competentes, a investigação de possíveis condutas caracterizadoras de ilícitos penais, envolvendo pessoas cuja identificação somente será possível com a medida postulada e indeferida pelo Juízo reclamado. Como já salientado, a respeitável decisão alvejada na presente Reclamação inseriu a discussão em contexto diverso do prestigiado na presente decisão, daí porque não pode prevalecer. O direito à intimidade, em suas múltiplas e variadas facetas, não é, como nenhum outro direito o é, um direito absoluto, não podendo ser veículo de impunidade, de propagação de danos à esfera jurídica de terceiros e de insegurança para a coletividade. Não se confunda a proteção concedida aos cidadãos e às partes, em geral, no Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição Federal de 1988, com o direito à prática de condutas contrárias à coletividade, ou mesmo o direito à impunidade, inexistentes em nosso ordenamento jurídico, em que pese a crença em sentido contrário, ao que parece estimulada pela inércia e ineficiência dos órgãos envolvidos com a prevenção e repressão de crimes, fato infelizmente verdadeiro. É certo que as autoridades que promovem as investigações

em curso deverão zelar pela proteção das informações e dados obtidos em decorrência da presente decisão, como também eventuais providências futuras solicitadas pela Autoridade Policial ou pelo Ministério Público, na investigação ou mesmo na deflagração ou no curso de eventual ação penal, serão, necessariamente, objeto de rigoroso e atento controle judicial, à luz dos princípios constitucionais, diante dos relevantes interesses em confronto, evitando-se abusos e ilegalidades. Tenha-se, em perspectiva, que os princípios constitucionais traçam a forma, o limite e a extensão do controle dos atos pelo Poder Público, estabelecendo o equilíbrio de armas entre a defesa e a acusação, mas não impedem a atuação estatal pautada na legalidade de investigar e punir condutas contrárias à lei penal. O que não é possível, nesse momento, a meu juízo, é fechar os olhos aos desafios e complexidade do mundo atual, mantendo postura formalista e descompromissada com a realidade, para impedir o Poder Público de exercitar e cumprir o difícil, mas indispensável, dever de investigar condutas que possam caracterizar crime, principalmente aquelas praticadas através de veículos de comunicação de amplo espectro, produto do mundo globalizado e da (r) evolução da tecnologia. À conta de tais considerações, voto no sentido de conhecer e julgar procedente a Reclamação, para, cassando-se a decisão reclamada, determinar ao Juízo reclamado que requisite à empresa Google Brasil Internet Ltda. as informações, dados cadastrais, números de IP’s, data e hora completa (referência horária, inclusive, GMT, BRT, etc) dos criadores e membros das comunidades do sítio de relacionamentos Orkut “Eu Sei Dirigir Bêbado” e “Sou Menor Mas Adoro Dirigir”, bem como dos criadores de todas as demais comunidades a elas relacionadas. É como voto. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


MONOPÓLIO E OS SERVIÇOS PÚBLICOS Maximino Gonçalves Fontes Neto Advogado

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m magnífica palestra proferida no Seminário “Questões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo”, realizado na prazerosa cidade de Campos do Jordão (SP), em 1º de julho deste ano, o procurador Marcos Juruena destacou, com proficiência e singularidade, que “toda a questão que envolve uma concessão e uma permissão envolve uma relação com o mercado”1. Há, consoante enfatizou o ilustre Professor, problemas que causam instabilidades às delegações (concessões e permissões), como, v.g., quem é o poder concedente nas regiões metropolitanas; qual o entendimento prevalente acerca da regra do art. 2º, da chamada “lei das concessões e permissões” (nº 8.987/95), se, efetivamente, somente contemplaria com a qualidade jurídica de poder concedente as pessoas políticas (União, Estado, Distrito Federal e Municípios) e não outros entes ou órgãos; qual o sentido em se declarar a inconstitucionalidade de dispositivos legais que admitem a transferência de concessão ou de permissão, uma vez que não teria sido a vencedora do certame licitatório, quando se sabe que a regra do art. 175 atenuou sobremaneira a idéia de execução personalíssima dos contratos de concessão, ao exigir que o contrato fosse executado por pessoas jurídicas, de modo que a idéia no âmbito da reforma do Estado é viabilizar o investimento privado. “Para que o investimento privado ocorra onde haja recursos privados disponíveis, é preciso tratar a concessão como um negócio que tenha liquidez, a permitir a transferência do fundo de comércio, observado o padrão de qualidade que tenha sido fixado na licitação”2. É, nesse mesmo contexto, que exsurge o tema ora proposto, “monopólio”, igualmente abordado pelo ilustre Procurador, quando afirma que: “No caso de concessões de serviços, especialmente os que envolvem o setor de transporte, 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

dada a limitação de equipamento urbano, não raro envolvem a atribuição do serviço público por meio da previsão de monopólios.” Com efeito, o termo “monopólio” tem sido empregado, muitas vezes, em leis infraconstitucionais, a versarem sobre serviços públicos de transporte coletivo de passageiros, sendo literalmente interpretado pelo Poder Concedente, para, com sua acepção econômica, utilizá-lo como argumento para desconstituir delegação para execução desses serviços, ou mesmo impedir sua delegação quando se trata de uma única empresa. Manifesta, contudo, a ambigüidade com que tem sido empregado o termo monopólio, no seio da linguagem jurídica e no texto constitucional. É, nessa moldura, que se promoverá o debate, em breves considerações, destacando-se, desde logo, que, no seu sentido mais amplo, a atividade econômica do Estado engloba não só a atuação empresarial, como também a prestação de serviços públicos. A atividade econômica do Estado, em seu sentido estrito, conforme acentua Eros Roberto Grau, referido por Nelson Eizirik3, significa a sua ação propriamente como agente econômico. Tal ação pode ocorrer em duas modalidades: em regime de competição ou em regime de monopólio. Assim, a atuação monopolística do Estado na economia importa em exercício de atividade econômica em sentido estrito, enquanto que a exclusividade da prestação de serviços públicos constitui expressão de uma situação de privilégio. Logo, um e outro são distintos entre si, como afirma Eros Roberto Grau4. Enfatize-se, com o atual e eminente Ministro do STF, que monopólio é de atividade econômica em sentido estrito. Já a


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exclusividade da prestação de serviços públicos não é expressão, senão de uma situação de privilégio. Ainda que esses serviços públicos sejam prestados, sob concessão ou permissão, por mais de um concessionário ou permissionário, o que conduziria a suposição de haver um regime de competição entre eles, o prestador do serviço o empreende, em clima diverso daquele que caracteriza a competição, tal como praticada no campo da atividade econômica em sentido estrito. Ressalte-se, a propósito, que doutrina tem feito adequada distinção entre o monopólio e o serviço público, institutos submetidos a regimes jurídicos diversos. Para tanto, é o conceito de serviço público, segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, “toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestados pelo Estado ou por quem lhe faça, às vezes, sob um regime de direito público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo”5. Há serviços públicos privativos do Estado que somente podem ser prestados pelo Estado (União, Estados, DF, Municípios) diretamente, sendo admitida a possibilidade de sua prestação por particulares apenas em regime de concessão ou de permissão (art. 175, da Constituição de 1988). Já os serviços públicos não privados podem ser prestados tanto pelo Estado quanto pelos particulares, como ocorre com os serviços de educação, saúde, conforme observa Celso Antônio Bandeira de Mello6. Nesta última categoria, aduz, ingressam os serviços que o Estado pode desempenhar, imprimindo-lhes regime de direito público, sem, entretanto, proscrever a livre iniciativa do ramo de atividades em que se inserem.

Aqui, afigura-se lícito aos particulares desempenhá-los, independentemente de concessão, submetendo-se, no entanto, à fiscalização do Poder Público, que a executa no exercício normal de sua polícia administrativa. Conforme enfatiza Celso Antônio Bandeira de Mello, referido por Nelson Eizirik, o traço caracterizador do serviço público é de natureza formal, consistente no específico regime de direito público, do qual são exemplos significativos: a estrita submissão ao princípio da legalidade; a utilização de técnicas autoritárias por parte do Estado, como possibilidade de constituir obrigações mediante ato unilateral; a presunção de legitimidade dos atos praticados; a auto-executoriedade dos atos praticados; a impossibilidade de o concessionário invocar a exceptio non adimpleti contractus para eximir-se de suas obrigações; a continuidade necessária das atividades tidas como públicas7. Consoante adverte Celso Ribeiro Bastos, não se deve confundir, no nosso Sistema Constitucional, o monopólio com serviço público8, porquanto este se submete a regime jurídico especial, de direito público. O exercício de atividade econômica sob o regime de monopólio, ao contrário, constitui atuação empresarial do Estado, regido pelo direito privado. Tem-se, neste caso, atividade econômica do Estado em sentido estrito, como agente econômico, não se tratando de serviço público, como de fato não se trata, porém de serviço governamental, desenvolvido sob as regras de direito privado9. Quando o Estado atua no domínio econômico, na exploração direta de determinada atividade econômica, seja de maneira monopolística ou não, não há qualquer traço de direito público em tal atuação10. Trata-se de intervenção excepcional, que somente se justifica quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


conforme definidos em lei (art. 173, caput, da CR/88). Por força da Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, foi dada nova redação ao § 1º desse artigo, estatuindo, in verbis: “Art. 173 § 1º. A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; IV – a constituição e funcionamento dos conselhos de administração e fiscal com a participação de acionistas minoritários; V – os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.” Assim, nota-se, por esse texto, que, na exploração direta de atividade econômica, quando através das chamadas estatais, o Estado atua como se fora empresário privado, submetendo-se a regras de direito privado, sem privilégios, em que pese se lhe aplicarem princípios normativos da administração pública (art. 37, da CR/88), pertinentes à licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações. Conforme anteriormente se ressaltou nestas considerações, o termo monopólio tem sido empregado de forma ambígua, não sendo assim unívoco, o que evidencia a necessidade de se estabelecer o seu significado. Dessa forma, segundo Ferrara, “No direito, algumas palavras revestem uma acepção técnica que não coincide nem corresponde ao seu significado popular, como as palavras ‘posse’, usufruto, boa-fé, diligência, hipoteca, caso fortuito, legado e semelhantes. Em tal caso, deve escolher-se, na dúvida, a significação técnica jurídica, pois é de presumir que o legislador usou das palavras com plena reflexão e, portanto, se serviu delas no seu significado técnico, de preferência ao vulgar”11. Na hipótese vertente, verifica-se que, na linguagem comum, o termo monopólio pode significar monopólio de propriedade, o que resultaria no exercício de um direito de propriedade, ou seja, a exclusividade da exploração econômica de determinado bem, como no caso da Petrobrás, tendo o monopólio do petróleo. Por isso, observa Eros Roberto Grau, que monopólio é de atividade econômica em sentido estrito, e não de propriedade12. Na pesquisa do seu significado técnico, Nelson Eizirik entende que a linguagem jurídica recebeu o termo monopólio da teoria econômica e adotou o mesmo significado, que não se confunde com aquele, impreciso, da linguagem comum13. 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

Desse modo, a noção de monopólio na teoria econômica constitui a antítese à de concorrência perfeita. No modelo da concorrência, cada unidade produtiva tem que aceitar preço de mercado como algo posto, inalterável pela ação individual. O mercado é quem dita os preços e cada unidade econômica é uma tomadora de preços. O monopólio, no entanto, constitui o mercado, no qual toda a mercadoria é fornecida por uma única empresa. No caso, desaparece por inteiro a competição; a característica essencial do monopolista é que a curva de procura individual de sua empresa é idêntica à curva de procura de seu produto. O monopolista tem a prerrogativa de fixar o preço de seu produto, mas seu único problema é estabelecer a mais lucrativa equação preço-quantidade na sua curva de procura. No monopólio, o preço não é fixado pelo mercado. A característica básica do monopólio é o poder de influenciar preço ou quantidade produzida. O monopolista, portanto, é o controlador da oferta de um determinado produto que não possui substituto. Seu poder básico é o de fixar preço e quantidade de determinado produto. Em determinado Município deste Estado, há regra, na sua lei orgânica, contida no seguinte texto “Fica proibido o monopólio no serviço de transporte coletivo no município”. Nesse ponto, impõe-se observar que essa alusão tem por destinatária única operadora desses serviços que, por operar há muitos anos os serviços de transporte coletivo de passageiros no Município, deteria “monopólio”, que, como continuamente tem-se afirmado, deveria ser quebrado. Cotejando-se tais afirmações com as considerações até aqui expendidas, nota-se certo baralhamento sobre dois conceitos: o de monopólio, de natureza econômica, e o de exclusividade, que não se confundem e são diversos. Desde logo, pode-se, com rigor, afirmar que, em momento algum, existiu, por parte da referida prestadora de serviços públicos, “monopólio”. O que houve foi exclusividade na execução dos serviços, pois quem o detém é o titular, o dono dos serviços, ou seja, o próprio Município, delegante da execução dos serviços. Literalmente, há, de fato, no texto da lei orgânica em pauta, vedação à existência de monopólio no serviço de transporte coletivo daquela cidade. Ante essa proibição, opõe-se esse óbice à delegação da execução indireta dos serviços de transporte coletivo de passageiros por ônibus pela operadora de serviços daquela comuna, que, neste caso, segundo se alega, estaria promovendo a dominação do mercado nela existente. Em que pese o respeito pelos que assim pensam, lastreados na mencionada regra legal, há de se objetar, em primeiro lugar, que não se pode confundir serviços públicos com atividades econômicas, conforme restou amplamente demonstrado. Com efeito, os serviços públicos, de titularidade do Estado, ou seja, dos Municípios, Estados, Distrito Federal e a União, como parte, estão fora do regime de livre iniciativa (da concorrência, onde é o mercado quem dita os preços), tendo por sede o art. 175, da Constituição da República, regulamentado


pela Lei nº 8.987, de 13 de novembro de 1995, denominada de “lei das concessões e permissões”. Por seu turno, as atividades econômicas, que caracterizam a aludida livre iniciativa, estão sob a titularidade de particulares, cujo acompanhamento cabe ao Poder Público, a teor do art. 173, da Carta Magna, regulamentado pela Lei n° 8.884, de 11 de junho de 1994, a dispor sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica. Vale enfatizar, a esse respeito, o ensinamento de Rui Barbosa, referido por Marcos Juruena Villela Souto14, por Eros Roberto Grau15, acerca da necessidade de se distinguir entre monopólio da atividade econômica e serviço público, verbis: “Absolutamente diversa, nos seus elementos materiais e legais, de outros privilégios, que não desfalcando por modo algum o território do direito individual, confiam a indivíduos ou corporações especiais o exercício de certas faculdades reservadas, de seu natural, ao uso da administração, no País, no Estado ou no Município, e por elas delegadas, em troco de certas compensações, a estes concessionários privativos. Num ou noutro caso, pois, todos esses serviços hão de ser, necessariamente, objeto de privilégios exclusivos, quer os retenha em si o governo local, quer os confie a executores por ele autorizados. De modo que são privilégios exclusivos, mas não são monopólios, na significação má e funesta da palavra.” Além dessa aguda observação, ainda há de se enfatizar que, quando a atividade realizada pelo particular tem a natureza de serviço público, a regulamentação substitui o sistema concorrencial. Assim, nos serviços públicos, o sistema regulamentar passa a estabelecer as variáveis, tais como o preço, ou seja, a tarifa, e a quantidade e qualidade dos serviços a serem prestados, sendo o prestador do serviço fiscalizado pelo próprio órgão governamental, dotado do poder regulamentar. Desnecessário é ressaltar que, nessa moldura, se encontra a referida operadora de serviços, pois o Poder Concedente é o próprio Município, aliás, o titular do serviço, por força do art. 175, da Carta Magna, sendo-lhe cometida a competência para organizar os serviços (art. 30, inciso V), fixar a tarifa e fiscalizar a sua execução indireta pela referida permissionária. Portanto, incogitável, neste caso, a figura do monopólio, pois não é a operadora quem fixa preços, pois sequer pode alterar itinerários, locais de atendimento, não podendo, inclusive, aumentar ou reduzir o número de veículos para o atendimento dos usuários. A operadora não tem disposição sobre as principais características dos serviços. A segunda observação diz respeito à previsão dessa figura na Lei Orgânica do Município, que, conforme a maioria das demais leis, com idêntico teor, datam de 1990. Naquela época, possivelmente por ainda não vigorar a Lei n° 8.987, que foi promulgada em 13 de fevereiro de 1995, não percebeu o legislador municipal que a hipótese não era de monopólio, que se refere às atividades econômicas, conforme se acentuou, porém de exclusividade, figura bem diversa que se aplica aos serviços públicos.

Efetivamente, segundo preconiza o art. 16, do referido diploma legal federal, a exclusividade é expressamente admitida, devendo, no entanto, ser justificada quando houver a sua imposição ante a impossibilidade de desempenho do serviço público em regime de competição, o que se dará por motivos técnicos e econômicos. Mormente, este último quando residir na impossibilidade de obtenção de resultados econômicos capazes de manter o desempenho da atividade, especialmente se estabelecidos determinados parâmetros mínimos de qualidade. Observa-se, pois, que o fato de haver somente uma empresa a operar com exclusividade os serviços de transporte coletivo de passageiros na cidade, provavelmente, deve-se à circunstância política de que, caso se estabelecesse competição com pluralidade de empresas, talvez os resultados econômicos por elas auferidos acabassem por comprometer a qualidade desses serviços, em prejuízo dos munícipes. Esse fato, aliado aos motivos técnicos, respaldaria a exclusividade prevista na “lei das concessões e das permissões”, existente na cidade onde opera empresa transportadora, na execução indireta dos aludidos serviços. Portanto, a questão não é de monopólio, porém de exclusividade. Por derradeiro, nunca é demais invocar os ensinamentos, sempre brilhantes e necessários de Luís Roberto Barroso, para quem somente atividades econômicas podem ser objeto de monopólio estatal, porquanto o Estado o institui exatamente para subtrair da iniciativa privada o exercício de determinada atividade econômica. O serviço público é, por sua própria natureza e definição, titularizado pelo Estado, de modo que não há necessidade de um regime de monopólio.

NOTAS Marcos Juruena Villela Souto, in “Concessões e Permissões nos Serviços Públicos”, palestra proferida no Seminário “Questões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo”, realizado em 1º de junho de 2007, em Campos do Jordão, Revista Justiça e Cidadania, setembro de 2007, págs. 26/31; 2 Marcos Juruena Villela Souto, ob. cit. p. 27; 3 Eros Roberto Grau, in “ A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e aplicação), São Paulo:RT, 1990, p.154, referido por Nelson Eizirik, RDA v. 194, p.70; 4 Eros Roberto Grau, in “Monopólio Estatal da Atividade Econômica – Petrobrás – Propriedade e empresa – Bens Públicos”, RDA v. 222, p. 359; 5 Celso Antônio Bandeira de Mello, in “Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta”, 2ª ed., São Paulo:RT, 1983, p. 20; 6 Celso Antônio Bandeira de Mello, in “O Conteúdo do Regime JurídicoAdministrativo e seu Valor Metodológico”, RDA v. 2, p. 49; 7 Neloson Eizirik, in “Monopólio Estatal da Atividade Econômica”, RDA v. 194, 63-76; 8 Celso Ribeiro Bastos, in “Comentários à Constituição do Brasil”, São Paulo:Saraiva, 1990, págs. 164 e segs.; 9 Nelson Eizirik, ob. cit. p. 70; 10 Idem; 11 Francesco Ferrara, in “Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis”, Armênio Amado – Editor:Coimbra, 1978, pág. 139; 12 Eros Roberto Grau, ob. cit. 365; 13 Nelson Eizirik, ob. cit. p. 71; 14 Marcos Juruena Villela Souto, in “Desestatização, Privatização, Concessões e Terceirizações”, Rio:Lúmen Júris, 2000, pág. 197 15 Eros Roberto Grau, ob. cit. pág. 361; 16 Luis Roberto Barroso, in Regime Constitucional do Serviço Postal. Legitimidade da atuação da iniciativa privada “, RDA v. 222, pág. 179-212. 1

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O DIREITO À SAÚDE e a PENHORABILIDADE DO BEM PÚBLICO DÉCIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2007.002.11.686 RELATOR: DESEMBARGADOR CLAUDIO DE MELLO TAVARES

DECISÃO Cuida-se de agravo de instrumento interposto por M. R. M., contra a decisão de fl. 97, do MM. Juíz da 3ª Vara Cível da Comarca de Nova Friburgo, prolatada nos autos da ação de obrigação de fazer, que move em face do Município de Nova Friburgo e Fundação Municipal de Saúde de Nova Friburgo, a qual indeferiu o pedido de bloqueio na conta do Município. Alega-se que os agravados vêm descumprindo a ordem judicial de fornecer os medicamentos necessários à saúde da agravante, razão pela qual foi formulado pedido de bloqueio dos valores na conta do Município, como meio coercitivo para a realização e efetividade da tutela jurisdicional. Ainda se alega que a decisão prolatada pelo douto magistrado de primeiro grau causará dano irreparável à agravante, uma vez que restringirá o direito à saúde, além de configurar afronta ao direito à vida. Pugna, pelo provimento do recurso, nos termos do art. 557 do Código de Processo Civil, determinando o imediato bloqueio dos valores necessários à compra dos medicamentos, pleiteados pela agravante. O direito à saúde é, em última análise, conseqüência inafastável do próprio direito à vida. Sua proteção resulta da aplicação efetiva do mandamento constitucional do invocado artigo 196 da vigente Carta Magna, a que se ajustam, em linha hierárquica, as regras legais a que se devem sujeitar todas as entidades públicas, por seus órgãos federais, estaduais e municipais. O Poder Público, qualquer que seja a esfera constitucional de sua atuação, no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ou omisso em relação ao problema da saúde da população, sobretudo dos mais desamparados da sorte e, por isso, mais carentes, sob pena de incidir em grave desvio de comportamento institucional. A regra do art. 196 da Carta Política da República – 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

que envolve e obriga, repita-se, todos os entes políticos que compõem a organização federativa do Estado brasileiro, não pode converter-se em promessa constitucional vazia e inconseqüente, sob pena de, fraudando legítimas e justas expectativas nele depositadas pela sociedade brasileira, estar descumprindo seu impostergável dever, por gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da vigente Carta Magna (art. 5º, caput, e 196), da chamada Constituição Cidadã, e representa, na concreção de seu profundo alcance, um ato reverente e solidário de apreço à saúde e à vida de quantos necessitem do benefício assim instituído. Especialmente daqueles que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência da sua humanidade e da sua essencial dignidade. Essas considerações são tanto mais oportunas quanto é certo que se conhece, por público e notório, o triste quadro da saúde pública no país, seus dramas e tragédias estampados na imprensa diária, como um estigma permanente do descaso e do desprezo a que se vê deste modo relegada a parcela mais numerosa e mais sofrida da população nacional, ao passo em que se perde, no imenso ralo do desperdício das despesas públicas, grande parte dos recursos a tal fim direcionados. Até mesmo os que acertadamente se destinam ao imenso sumidouro da assistência social e da saúde pública, de que constituem emblemático exemplo a famigerada CPMF, de tão nobilitantes propósitos e de tão lastimáveis frustrações. A fonte de custeio e as questões orçamentárias, estas muitas vezes argüidas para justificar a propositada ou descurada ausência de previsão, não podem ou não devem obstaculizar o implemento da política pública que tenha por


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superior objetivo o cumprimento da norma constitucional, à luz da legislação comum disciplinadora da matéria, de acordo com o seu verdadeiro espírito e nos limites de seu verdadeiro alcance. É verdade que, em se tratando da Fazenda Pública, qualquer obrigação de pagar quantia certa, ainda que decorrente da conversão de fazer, ou de entregar coisa determinada, está sujeita a rito próprio (art. 730 do CPC e art. 100 da C.F.), que não contemplam, expressamente, salvo em hipótese excepcional (v.g. a ordem de pagamentos de precatórios judiciários), a possibilidade de execução direta, através da expropriação mediante seqüestro de dinheiro, ou de qualquer outro bem público, havidos como impenhoráveis. Entretanto, em situações de inconciliável conflito entre o direito fundamental à saúde e o regime tradicional da impenhorabilidade dos bens públicos, deve prevalecer o primeiro, em ordem de absoluta prioridade. Se urgente e impostergável a necessidade da aquisição de medicamento, em razão e sob pena de grave comprometimento da saúde do demandante sem condições de realizá-la às suas próprias expensas, há de se ter por legítima, ante a omissão estatal, do órgão público responsável, a determinação judicial de bloqueio de verbas públicas, como meio de efetivação do direito constitucionalmente assegurado. Nesse sentido e com esse justificado entendimento, tem-se manifestado, com sobradas razões, a jurisprudência nacional, inclusive nas instâncias superiores. De modo a confirmar-se que, atenta aos reclamos sociais e em razão dos fatos a que se devem ajustar as regras legais e à evolução mesma do direito, o Poder Judiciário, neste como em outros pontos, há muito vem se antecipando ao próprio legislador no elevado propósito de extrair dos textos legais acaso controversos a inteligência que melhor se conforme com os seus superiores objetivos sociais e humanos. A esse propósito, a eminente Ministra Eliana Calmon conclui com evidente acerto, em voto proferido no Agravo Regimental no Recurso Especial 878.441/RS – por asseverar: “Tem prevalecido, nesta Corte, o entendimento de que é possível, com amparo no art. 461, § 5º do CPC, o bloqueio de verbas públicas para garantir o fornecimento de medicamentos pelo Estado. Embora venha o STF adotando a “Teoria de Reserva do Possível” em algumas hipóteses, em matéria de preservação dos direitos à vida e à saúde, aquela Corte não aplica tal entendimento, por considerar que ambos são bens máximos e impossíveis de ter sua proteção postergada.” Nessa mesma ordem de idéias, o eminente Ministro Luiz Fux profligava a insustentável opinião contrária, ao acentuar, com justificada ênfase, que: “A Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário; reclama efetividade real de suas normas, destarte, na

aplicação das normas constitucionais, a exegese deve partir dos princípios fundamentais para os princípios setoriais. E, sob esse ângulo, merece destaque o princípio fundante da República que destina especial proteção à dignidade da pessoa humana. Outrossim, a tutela jurisdicional para ser efetiva deve dar ao lesado resultado prático equivalente ao que obteria se a prestação fosse cumprida. O meio de coerção tem validade quando capaz de subjugar a recalcitrância do devedor. O Poder Judiciário não deve compactuar com o proceder do Estado, que, condenado pela urgência da situação a entregar medicamentos imprescindíveis à proteção da saúde e da vida de cidadão necessitado, revela-se indiferente à tutela judicial deferida e aos valores fundamentais por ele eclipsados.” (Ag. Rg no REsp. 888.325/RS; Agravo Regimentado no Recurso Especial 2006.0211753-6). Por tais fundamentos, dou provimento ao recurso de Agravo de Instrumento, com fulcro no artigo 557, § 1º – A, do Código de Processo Civil, para reformar a douta decisão agravada de fls. 97, determinando o bloqueio, em conta ou depósitos bancários da Prefeitura Municipal de Nova Friburgo, deste Estado do Rio de Janeiro, onde se encontrem e, especialmente, da Secretaria Municipal de Saúde, ou da Fundação Municipal de Saúde, de importância em dinheiro bastante para a aquisição, em favor da autora e ora recorrente, de medicamentos indispensáveis e destinados a seu tratamento de saúde. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31


Primavera em Israel Luiz Oswaldo Norris Aranha Engenheiro

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o próximo mês de novembro, completar-seão sessenta anos da partilha da Palestina entre árabes e judeus, aprovada pela Organização das Nações Unidas, a partir do que o grande estadista Ben Gurion pode estabelecer como Estado de Israel. Há grande desconhecimento quanto a esse evento, do qual o Brasil participou intensamente e em relação ao qual exerceu destacada liderança, bem como sobre ele são divulgadas versões contraditórias e até polêmicas, gerandose questionamentos quanto à posição de alguns homens públicos brasileiros. Na verdade, a história se iniciou anos antes, quando, pela Segunda Guerra Mundial, deu-se o alinhamento do Brasil com os aliados, na contraposição do desejo de muitos de seus dirigentes – sobretudo, alguns militares – que exibiam postura declaradamente germanófila. Afinal, a Alemanha era o berço das mais brilhantes táticas de guerra, gerando natural admiração por parte dos profissionais da área. O Presidente Getúlio Vargas era apontado como simpatizante da posição germanófila, e seu governo acolhia militares publicamente defensores do alinhamento com a Alemanha, sem falar no Chefe de Polícia Filinto Muller, cujas atividades ficaram registradas na História, de que estaria ligado à época com as prisões que comandou e com a exportação ou deportação da esposa do líder comunista Luiz Carlos Prestes. Há de se considerar, no entanto, que 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

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“Em novembro próximo, serão comemorados os sessenta anos da partilha da Palestina.Será uma festa dos judeus em todo o mundo, mas, em particular, dos brasileiros, que tanto contribuíram para esse resultado. ”

Vargas trouxe de volta, ao Brasil, Oswaldo Aranha, cujas posições liberais e favoráveis aos aliados eram por demais conhecidas, e o nomeou Ministro das Relações Exteriores. Se o Presidente da República estivesse convicto de que se deveria caminhar ao lado da Alemanha, jamais teria nomeado este nítido adversário dos germanófilos nessa função estratégica. Assim, deve-se pensar que Getúlio Vargas já se colocava, nesse momento, entre aqueles que eram favoráveis aos aliados, embora não o revelasse ostensivamente, dentro de seu espírito de ruminação política, em que procurava pesar as opiniões antes de consagrar as decisões. A tarefa de Oswaldo Aranha, contudo, não se deu com facilidade. Foi necessário mobilizar grupos liberais e de esquerda, além dos estudantes, para irem às ruas e bradarem pelo alinhamento do Brasil com os aliados. Apesar das injustas acusações que envolvem a questão e da perseguição que Filinto Muller realizava aos democratas, deu-se a abertura brasileira para que os judeus fossem recebidos como refugiados. Esta posição, aliás, representava o espírito conciliador e aberto em relação aos outros povos que os brasileiros sempre revelaram. Acresce a miscigenação das raças, em que pontificaram no Brasil os cristãos novos, fugidos da perseguição do Marquês de Pombal, em Portugal. Poucos brasileiros não têm sangue judeu, e negar essa realidade seria fugir daquilo de importante que se plantou no País ao longo


do tempo. O fato é que, com a anuência de Getúlio Vargas e a liderança de Oswaldo Aranha, os pracinhas brasileiros foram lutar na Itália contra os países do Eixo, e a atitude do Brasil ficou indelevelmente registrada. Este posicionamento trouxe a oportunidade para que o Brasil participasse da Organização das Nações Unidas de modo marcante, o que o levou a sempre ser o primeiro país a se manifestar, no momento da anual instalação da Assembléia Geral desse organismo. É evidente que, se houvesse ingressado na guerra, do lado dos alemães, não teria o Brasil assento na ONU, a qual, de início, reunia apenas os aliados e só veio a aceitar a Alemanha e o Japão muito mais tarde. O encadeamento dos fatos políticos fez com que Oswaldo Aranha apoiasse o Brigadeiro Eduardo Gomes como candidato a Presidente da República e perdesse as eleições para o General Eurico Gaspar Dutra, de postura anteriormente germanófila. Mesmo assim, em 1947, o novo Chefe da Nação indicou Aranha para liderar a delegação brasileira junto às Nações Unidas. É curioso observar esse intrincado desenrolar dos acontecimentos que, se não se dessem desta forma, não permitiriam o desenlace favorável a Israel no debate da partilha do território palestino. A posição das principais Nações era refratária à criação de um Estado Judeu ou, pelo menos, se mostrava indecisa, sem externar postura favorável e, muito menos, trabalhar por ela. Assim, usando do argumento do rodízio e como Oswaldo Aranha já havia ocupado a Presidência do Organismo, os países poderosos lançaram outro candidato, enquanto o Bloco Soviético também tinha o seu, com três nomes disputando o cargo de Presidente da Assembléia Extraordinária, a qual iria discutir o destino da Palestina. Demandava-se maioria absoluta de votos entre os participantes da reunião, e diversos escrutínios se realizaram, sem solução. Finalmente, o Bloco Soviético retirou seu postulante, e a disputa fixou-se entre apenas dois nomes, sendo Oswaldo Aranha eleito. Fica a clara imagem de que as Nações mais ricas queriam eleger um personagem que não ajudaria na articulação pró-Israel e, com isto, a decisão histórica possivelmente não se daria. Os países latino-americanos apoiaram em bloco o nome de Oswaldo Aranha e com ele permaneceram, em favor da criação do Estado de Israel. Entretanto, eram necessários dois terços dos votos e havia a oposição ostensiva de algumas das Nações mais poderosas, além da ambigüidade de outras. Iniciou-se intensa articulação para obter o número de sufrágios favoráveis. O representante brasileiro atuou com denodo, pois acreditava piamente que era necessário dar de volta aos judeus seu território, não apenas em função da mística histórica que cercava o assunto, mas, sobretudo, diante dos milhares de refugiados que fugiam da Europa após a perseguição nazista e o holocausto. Estes se dirigiam à Palestina, em busca de nova oportunidade de vida, e eram caçados pelos ingleses que apreendiam os navios de transporte e transferiam seus passageiros para campos precários e provisórios no Chipre. A

situação era insustentável e urgia uma solução. Com muito sacrifício e dedicado trabalho, foram obtidos os dois terços de votos que se faziam necessários para aprovar a proposição da partilha da Palestina. Oswaldo Aranha bateu o martelo, na qualidade de Presidente da Assembléia, martelo este que se encontra guardado no kibutz brasileiro há anos criado em Israel. Muitos pensam que o estadista brasileiro limitou-se a realizar esse ato simbólico. Outros acham que ele teria dado o voto de Minerva, desempatando a disputa. Na verdade, seu valor deu-se pela articulação que realizou, em que, usando de sua habilidade diplomática e de seu charme contagiante, atraiu o voto de países vacilantes. A lista de votação também se encontra no mesmo local citado acima, no qual judeus que se transferiram do Brasil e que acreditavam na reconstrução do Estado de Israel quiseram manter o registro da importante participação brasileira nesse processo. As coisas não ocorrem por acaso e, embora haja a junção de fatores favoráveis, para o que a explicação transcende o campo material, sem dúvidas, a história explica o que se deu. Dentro dos planos de Oswaldo Aranha, a trajetória não deveria terminar aí. Preparou também estudo para que se criasse o Estado Palestino, visando abrigar os árabes da região. Esta questão não foi mais abordada, como não o seria a instituição de Israel, se não tivesse se concretizado em novembro de 1947. A seqüela histórica, infelizmente, permaneceu, e os árabes continuam hostilizando os judeus. Estes, apesar de todas as dificuldades, estabeleceram uma Nação, na acepção da palavra, e buscaram crescer sua importância no cenário mundial. A Primavera de Israel se expressa por esse movimento. Registre-se que, em terras em que anteriormente dominava o deserto, hoje se plantam flores que são exportadas. Há fundamentos históricos, bem como o desejo dos brasileiros, materializado através de Oswaldo Aranha, de contribuir para a paz mundial. Entretanto, se sobressai a força de vontade de um povo que, após sofrer milenares perseguições e o holocausto na Europa, resolveu consolidar sua Nação. Em novembro próximo, serão comemorados os sessenta anos da partilha da Palestina, o que permitiu que se estabelecesse o Estado de Israel. Será uma festa dos judeus em todo o mundo, mas, em particular, dos brasileiros, que tanto contribuíram para esse resultado. Cabe lembrar que o território verde e amarelo tornou-se continental pela eficaz atuação dos colonizadores portugueses, diferentemente das terras de origem hispânica, que se fragmentaram, criando-se diversos países. Em Portugal, no entanto, à época do Marquês de Pombal, perseguiram-se quem tinha origem israelita, grande contingente deles se transferindo para o Brasil, transformandose em cristãos-novos e contribuindo decisivamente para seu desenvolvimento econômico e social, e para a formação de sua raça. Assim, a festa de Israel é também dos brasileiros, por sua participação na criação desse Estado e pelo sangue judeu que corre em suas veias. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


O artigo que publicamos de autoria do filho da grande personalidade da história e da política brasileira, que foi o saudoso estadista Ministro Oswaldo Aranha, descreve bem as atitudes e esforços desenvolvidos pelo consagrado e reconhecido criador do Estado de Israel, para a efetivação do acalentado sonho da sua fundação. O mundo reconhece, e os judeus de todos os rincões do Universo, especialmente em Israel, sabem que, graças às articulações e habilidade diplomática de Oswaldo Aranha, ao conseguir reunir como Presidente da Assembléia Geral da ONU a maioria dos representantes das nações em memorável sessão realizada em 29 de novembro de 1947, foi criada a nação dos judeus: o Estado de Israel E é em tributo a esse vulto glorioso da história, Ministro Oswaldo Aranha, que dedicou sua vida pública em todos os altos cargos que exerceu com honra, dignidade, coragem, renúncia, desprendimento e determinação a serviço dos interesses maiores da pátria, que nos associamos às efemérides do Estado de Israel, ao mesmo tempo em que prestamos homenagens ao grande brasileiro, com transcrição do louvor que foi prestado pelo também saudoso Tancredo Neves:

OSWALDO ARANHA Revolucionário, herói, estadista.

“Gaúcho autêntico foi Oswaldo Aranha...um gaúcho na nobreza, no cavalheirismo, na bravura, na lealdade, mas, sobretudo, na generosidade... Nunca vi um homem subir tão alto pela coragem, pela bravura indômita e disposição de resistência: toda a alma impetuosa, valente do gaúcho nele acordava... e dos Pampas parecia lhe chegar pelas sopradas do vento a mensagem de sua história: pelear por sina e morrer com glória... Oswaldo Aranha foi a mais bela e completa carreira de homem público do Brasil...” Presidente Tancredo Neves

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Foto: Arquivo Família Aranha

Nota do editor


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Agências reguladoras rumo à superação de seus desafios atuais e futuros Sérgio Luiz Barbosa Neves Procurador-Geral da Agência Reguladora de Transportes do Estado do Rio de Janeiro

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onge vai o tempo em que se discutia o que é regulação e qual a função das Agências Reguladoras. Certo? A resposta, infelizmente, é negativa. Se em sede doutrinária o debate não atinge consenso, no âmbito legal, o sentido e o alcance da regulação e das agências são dos mais variados, em número quase equivalente ao de Agências existentes no país. O desconhecimento do tema também é grande perante o Judiciário, o Ministério Público, os Tribunais de Contas, as próprias Procuradorias Estaduais e a Advocacia Geral da União e, pior, dos usuários dos serviços. À evidência e a despeito de sua necessidade, o debate não escapa ao posicionamento político, econômico e social do observador, do operador do Direito e é por estes mesmos suscitado. Primeiro, porque a regulação pressupõe a existência de serviços públicos ou de interesse coletivo passíveis de investimento e prestação por particulares, e, segundo, porque chega mesmo a pressupor a ampla delegação ou privatização daqueles serviços. Tanto admoesta o pensamento político, econômico e social de muitos, que prosseguem inconformados com as privatizações e delegações promovidas por governos passados de índole neoliberal. No âmbito jurídico, porém, esse debate é descabido. São fatos legítima e legalmente produzidos, e nosso exame tê-los-á como superados e terá por escopo fixar e auxiliar uma melhor compreensão da regulação e de como deve ser construída uma diretriz nacional de princípios para a garantia da segurança jurídica e a redução das incertezas políticoeconômicas próprias de países em desenvolvimento. Sem pretender conceituar regulação e agências reguladoras, pois a doutrina é prenhe a esse respeito, queremos trazer a 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

lume o fato de que estas só têm sentido de ser se houver a efetiva presença ou interesse de atrair investimentos e capital privado, nacional ou internacional, para a prestação ou melhoria dos serviços públicos. É, pois, ao investidor que mais interessa uma regulação que garanta a sua segurança no sentido de: estabilidade e longevidade das políticas públicas; sua imunidade às variações de governo e dos humores dos governantes; garantia de retorno de seus investimentos em um permanente equilíbrio econômico-financeiro do contrato; celeridade de julgamento das eventuais disputas; e mutabilidade e modernidade normativa constante, capaz de acompanhar a dinamicidade dos fatos socioeconômicos e da evolução tecnológica com atualidade e efetividade. Daí a necessidade de Agências dotadas de autonomia administrativa, econômica, financeira e funcional. Enfim, órgãos – mais do que isso, instituições – livres das injunções políticas, da influência dos investidores e dos usuários. Na prática, a neutralidade, atributo fundamental e esperado das agências reguladoras, ainda não foi atingida. São emendas constitucionais como a PEC 81/03 – em Trâmite no Senado Federal e já aprovada em primeira votação – e uma legislação infraconstitucional, equilibrada e isenta de casuísmos, que permitirão a elevação das Agências à condição de instituições com sede constitucional como o Ministério Público e os Tribunais de Contas, e as libertarão de uma eventual captura política ou empresarial. Sem embargo da necessidade de sua criação a partir da figura do investidor, às agências reguladoras compete emitir posicionamentos neutros capazes de conciliar objetivos aparentemente antinômicos, devendo ponderar


Foto: Arquivo Pessoal

princípios, valores e interesses do Poder Concedente (governo), dos Concessionários (investidores) e dos Usuários (consumidores). A tarefa é árdua, e a solução ao impasse está, no momento, nas mãos dos membros dos Executivos e dos Legislativos das diversas esferas de governo. De salientar-se que se encontram em trâmite no Congresso Nacional tanto a já mencionada PEC 81/04, como o Projeto de Lei substitutivo ao de nº 3.337/03, de autoria do Poder Executivo, que ainda não conferem às agências e ao povo brasileiro um modelo de agência liberto de ingerências políticas e capitalistas, muito embora o substitutivo apresentado na Assembléia Legislativa àquele último Projeto de Lei já contemple avanços consideráveis. O saudoso sociólogo francês Pierre Bourdieu (in: Contrafogos) lembra-nos que os agentes públicos e até os privados “têm duas aptidões inatas de obscurecer o sentido de suas ações: seus desconhecimentos e suas dissimulações”. Esperemos, pelo bem dos usuários dos serviços, que nosso corpo político e os investidores interessados não padeçam desse mal, principalmente pela indevida utilização política de falhas pontuais, ainda que trágicas, ou má administração de uma agência reguladora. Exceções não podem ser generalizadas. Afinal, não é à toa que “regulação” e “agência” são vocábulos do gênero feminino. Seus maiores desafios consistem em serem compreendidas e estarem sempre aptas a discutir a relação em pé de igualdade com outros órgãos que já ascenderam à condição de instituição consagrada por nossa Carta Magna.

“A tarefa é árdua, e a solução ao impasse está, no momento, nas mãos dos membros dos Executivos e dos Legislativos das diversas esferas de governo.”

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A inexistência de fraude na contratação de terceiros para a execução de serviços-meio Antônio Vanderler de Lima Advogado

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precípua atividade empresarial de uma empresa de telecomunicações é a prestação desse serviço especificamente, qual seja a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza, sendo que a de uma empresa de energia elétrica é a distribuição de energia elétrica. E é só. Melhor dizendo, a atividade-fim de uma empresa de telecomunicações ou de energia elétrica é a prestação de serviços de telecomunicação e de distribuição de energia. Por mais redundante que a assertiva possa parecer, ela representa o ponto nodal da questão em testilha. Todas as outras atividades, que não aquelas claramente previstas em lei, podem e devem ser consideradas como atividades-meio de uma empresa de telecomunicações ou de energia elétrica. O deslinde da controvérsia ora entabulada perpassa, em primeiro plano, pela investigação acerca da regularidade da contratação de terceiro para a execução das atividades-meio referentes aos serviços de telecomunicações ou de energia elétrica. Tem-se que a terceirização consiste na transferência para outra empresa de algumas atividades que guardam relação, ainda que remota, inerentes ao serviço prestado pela empresa de telefonia ou de energia elétrica, de forma a melhor atender aos usuários do serviço, a partir da concentração na atividade-mor da empresa. O ordenamento pátrio não veda; na verdade, ao contrário, autoriza as sobreditas terceirizações. Veja-se, a respeito, o que prescreve a Lei nº 9.472/97 – Lei Geral de Telecomunicações: Art. 94 – No cumprimento de seus deveres, a concessionária poderá, observadas as condições e limites estabelecidos pela Agência: (...) 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

II – contratar com terceiros o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço, bem como a implementação de projetos associados. E, também, a respeito, o que preceitua a Lei nº 8.987/95 – Lei de Concessão de Serviço Público, que rege as empresas de energia elétrica: Art. 25 – Incumbe à concessionária a execução do serviço concedido, cabendo-lhe responder por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, sem que a fiscalização exercida pelo órgão competente exclua ou atenue essa responsabilidade. § 1º – Sem prejuízo da responsabilidade a que se refere este artigo, a concessionária poderá contratar com terceiros o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço concedido, bem como a implementação de projetos associados. Portanto, emerge cristalino que não há óbices no ordenamento nacional à terceirização de atividades de apoio ao serviço de telecomunicação ou de distribuição de energia elétrica, propriamente dito, de forma que, a priori, todas as atividades acessórias, inerentes ou complementares ao serviço podem ser atribuídas a empresas distintas, o que vem expressamente previsto pelo legislador ordinário. Observe-se que não há conflito entre a disposição legal acima citada e a Consolidação das Leis do Trabalho, no que diz respeito à caracterização de grupo econômico e, em conseqüência, de responsabilidade solidária, ou mesmo no que tange ao seu art. 9º, que dispõe acerca de fraude para afastamento de condutas que visem a desvirtuar os preceitos protetivos do trabalhador. Isso porque a fraude propalada no dispositivo consolidado não pode ser presumida no caso de terceirização dos serviços de telecomunicações ou de distribuição de energia elétrica em razão da expressa autorização legal nesse sentido (Lei


Foto: Arquivo Pessoal

nº 9.472/97, art. 94, inciso II e Lei nº 8.987/95, art. 25, parágrafo 1º). Aliás, a regra geral é que a má-fé, o vício e a fraude não se presumem. Por outro lado, a construção jurisprudencial moldurada na Súmula nº 331 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho, quanto diversas vozes vindas do Judiciário Especializado e propalada pelo Douto Ministério Público do Trabalho, não tem a menor aplicação ao caso. Ao tratar da ilegalidade na contratação por empresa interposta, a referida súmula cuidou em ressalvar o trabalho temporário (Lei nº 6.019/74) e os serviços de vigilância (Lei nº 7.102/83). Isso não poderia ser de forma diversa, se não o Colendo Tribunal Superior do Trabalho estaria cristalizando jurisprudência em confronto com a lei. Cabe ser ressaltado, ademais, que, quando editada a Súmula nº 331 do TST, sequer existiam as Leis nº 9.472/97, art. 94, inciso II, e nº 8.987/95, art. 25, parágrafo 1º, bem como quando de sua revisão em 18/09/2000, que não cuidou de ressalvar qualquer ilegalidade na terceirização nelas prevista. Ora, o sistema legislativo, segundo as regras da hermenêutica, não pode conter antinomias, as quais devem ser, em realidade, sempre consideradas aparentes, em virtude da harmonia que tem de imperar no sentido de garantir a legalidade e a segurança jurídica. No caso em discussão, a Lei Geral de Telecomunicações (9.472/97) e a Lei Geral que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no artigo 175 da Constituição Federal (8.987/95) são posteriores à Consolidação das Leis do Trabalho e, não bastasse isso, regulam matéria específica, unicamente relacionada aos serviços de telecomunicações e distribuição de energia elétrica e demais atividades a elas inerentes, ao passo que a CLT é norma geral. Nesse quadrante, temos que a regra especial afasta, no caso

específico por ela regulado, a aplicação da norma genérica, por razões óbvias. Por óbvio, também, que não se sustenta à revogação ou desprestígio às normas da Consolidação das Leis do Trabalho, que continuam em pleno vigor. Entretanto, no que diz respeito aos serviços de telecomunicações e distribuição de energia elétrica e, mormente, quanto ao tratamento emprestado às atividades-meio, deve ser aplicada a norma especial, que, explicitamente, reconhece como válida a terceirização das atividades inerentes aos serviços de telefonia e distribuição de energia elétrica. Assim, fixada essa premissa, se a legislação, de forma expressa, autoriza a terceirização, não há como presumir a existência de fraude na atribuição das atividades relacionadas ao serviço-meio a empresas contratadas, sobretudo a partir de 1995 e 1997, respectivamente, quantos serviços de telecomunicações e de distribuição de energia elétrica, quando ingressaram no ordenamento pátrio as já mencionadas leis, onde consta o expresso permissivo relativo à terceirização, não deixando dúvidas às empresas do ramo de que poderiam lançar mão da terceirização para melhor exercício de suas atividades. Em suma: o fenômeno da terceirização e sua legalidade são desenhados explicitamente no ordenamento pátrio, pelo que não há como presumir fraude a partir de uma conduta empresarial em plena consonância com a legislação de específica regência da matéria. Em vista dessas considerações, a terceirização é plenamente albergada pelo ordenamento pátrio no que se refere aos serviços de telecomunicações e de distribuição de energia elétrica, não havendo qualquer labéu na sua ocorrência quanto às atividades-meio das empresas de tais ramos de prestação de serviços públicos. A partir dessa constatação, o debate ganha novo colorido, pelo que se configura como ponto nevrálgico da presente cizânia perquirir quais seriam as atividades-meio das empresas 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39


“a atividade-meio pode ser definida como sendo aquela que não se dirige propriamente ao objeto da atividade empresarial, mas que é posta como um caminho, um meio para alcançar e propiciar o exercício da atividade a que se vincula.” de serviços de telecomunicações e de distribuição de energia elétrica, que poderiam, em vista da permissão legislativa, ser terceirizadas, ou seja, poderiam ser atribuídas a empresas diversas pela empresas concessionárias de serviço público. O caminho para o delineamento do que venham a ser as atividades-meio de uma empresa de telecomunicações ou de distribuição de energia elétrica não pode ser outro, senão o critério da exclusão, isto é, esquadrinha-se qual a atividadefim, ou atividade principal, de uma empresa desse ramo e, a partir disso, conceituam-se as atividades-meio como sendo as que não se enquadrarem no conceito de atividade-fim, técnica que exsurge um tanto quanto óbvia. Em realidade, são atividades-meio todas aquelas ações que se dirigem a propiciar a prestação do serviço principal, qual seja, transmissão, emissão ou recepção de dados para as empresas de telecomunicações e a distribuição de energia para as empresas de energia elétrica, mas que não venham representar propriamente o exercício dessas atividades. Faz parte do núcleo da atividade-fim de telecomunicações, v.g., a transmissão de dados ou sons por intermédio de fios, ou, mais modernamente, por fibra ótica. Já no caso das empresas distribuidoras de energia elétrica, em síntese, a atividade-fim é a distribuição de energia. Porém, para que seja possível o regular exercício dessas atividades (atividade-fim), é necessária, por exemplo, a instalação da rede de fios nos locais de emissão e recepção, o que, contudo, não está abarcado pelo conceito de transmissão de dados ou de distribuição de energia. Presta-se, apenas, um serviço auxiliar ou acessório à transmissão de dados ou distribuição de energia, isto é, existe apenas para proporcionar a prestação do serviço de telefonia ou distribuição de energia, conquanto não se encaixe no conceito de transmissão de dados e distribuição de energia em si. Assim, a atividade-meio pode ser definida como sendo aquela que não se dirige propriamente ao objeto da atividade empresarial (transmissão de dados ou distribuição de energia, v. g.), mas que é posta como um caminho, um meio para alcançar e propiciar o exercício da atividade a que se vincula. Dessa forma, conclui-se que atividades como a instalação, leitura e manutenção de linhas telefônicas ou de distribuição de energia, ou mesmo a atividade de call center, pela qual é prestada assistência ao usuário do serviço, ficam fora do conceito legal de atividade de telecomunicação ou distribuição de energia, pelo que não podem ser consideradas atividades-

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fim de uma empresa desses ramos. Observe-se que o conceito de telecomunicação ou distribuição de energia não decorre do esforço doutrinário ou científico, mas de previsão normativa específica insculpida em Lei. Tanto não podem as atividades de instalação, leitura e manutenção de linhas ou de call center ser enquadradas no restrito conceito de atividade de telecomunicação ou de distribuição de energia que não demandam para seu exercício, concessão pelas respectivas agências reguladoras específicas (ANATEL e ANEEL). Ora, se tais atividades acessórias se enquadrassem no conceito de atividade de telecomunicação ou distribuição de energia, as empresas especializadas nessas atividades (auxiliares do serviço de telefonia e distribuição de energia), para atuar no mercado e prestar seus serviços, necessitariam de outorga da ANATEL e da ANEEL, respectivamente, pois a prestação de serviços de telecomunicações e distribuição de energia demandam a correspondente outorga do Poder Concedente, a União Federal, por seus órgãos competentes. Ter como desnecessária e incabível a concessão para o exercício de tais atividades que, nada obstante, são diretamente ligadas à atividade-fim de uma empresa de telecomunicações ou distribuidora de energia, embora não façam parte dessa atividade-fim, importa dizer que tais serviços não são de telecomunicações ou de distribuição de energia, mas somente atividades-meio: auxiliares e acessórias, regulares à prestação do serviço de telecomunicação e distribuição de energia, objeto da concessão pela União Federal, nos termos da Lei. Consideramos que existem certas atividades que, conquanto necessárias à prestação dos serviços de telefonia e de distribuição de energia, são altamente especializadas e não se confundem com o objeto principal da atividade de uma empresa de telecomunicação ou de distribuição de energia. Essa especialização e a qualidade desses serviços, de modo a melhor atender aos usuários do serviço principal, incentivam a terceirização, pois proporcionam a especialização (que melhora a qualidade do serviço, seja da atividade-fim, seja da atividade acessória), o que acarreta maior eficiência no atendimento aos anseios da população. Tratam-se, pois, de atividades como a instalação, leitura e manutenção de linhas e o serviço de call center, por exemplo, como necessidades físicas e ligadas ao compromisso em bem atender ao usuário, mas que não podem ser incluídas no núcleo


da atividade-fim da empresa de telefonia ou distribuidora de energia, que é a prestação dos serviços concedidos nos estritos termos das disposições legais aplicáveis ao caso. O fato de a empresa de telefonia ou de distribuição de energia, por um período, terem proporcionado tais serviços acessórios, não desnatura o caráter auxiliar e não impede que – uma vez constatada a possibilidade de terceirização a partir da verificação das disposições legais aplicáveis à espécie – tais serviços sejam atribuídos a empresas distintas, dentro da mais perfeita legalidade. A jurisprudência abriga o entendimento ora defendido, in verbis: 187021377 – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – CONCESSÃO DE SERVIÇO DE TELEFONIA – TERCEIRIZAÇÃO DO CALL CENTER – LEGALIDADE – A Lei nº 9742/97 autoriza a concessionária, no ramo das telecomunicações, nela inserida a telefonia, à terceirização das atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço objeto do contrato de concessão, conforme o seu art. 94, II. Assim, e verificando que o contrato de concessão, objeto de análise, não considera os serviços de call center – auxílio à lista, reclamações, pedidos de novos serviços, pedidos de novas linhas, denominados 101, 102, 103, 106, 107, 0800, back office, help desk, como atividades-fim outorgadas à concessionária, mas meras “utilidades” ou “comodidades” relacionadas com a prestação do serviço, não há falar em ilegalidade na sua terceirização. (TRT 12ª R. – RO-V 00080-2002-026-12-00-0 – (11632/20039363/2002) – Florianópolis – 3ª T. – Rel. Juiz Gerson Paulo Taboada Conrado – J. 19.11.2003) O julgado transcrito cuida de Ação Civil Pública que discutia justamente a legalidade da terceirização, tendo como mote o serviço de call center, onde é imperioso deduzir tratar-se de atividade-meio, acessória, auxiliar, e que pode ser objeto de terceirização sem qualquer vício. O mesmo se dá com os serviços de manutenção, leitura e instalação de linhas, que visam apenas propiciar a comodidade do usuário e garantir a plena prestação do serviço de telecomunicação ou de distribuição de energia, mas não configuram a própria atividade da empresa, apenas uma atividade (atividademeio) dirigida a permitir o exercício da atividade principal (atividade-fim). O mesmo ocorre, a título de exemplo, com estabelecimentos comerciais que oferecem serviço de entrega em domicílio. O objeto da atividade do estabelecimento é a venda de produtos ao consumidor. O serviço de entrega em domicílio configura apenas uma comodidade ao consumidor que não precisará sair de sua residência para adquirir o produto. Contudo, tal facilidade não integra a atividade-fim do estabelecimento comercial, que se resume à venda da mercadoria, mas mera atividade-meio, acessória, de comodidade ao consumidor e mecanismo para melhor postar-se no mercado cada dia mais competitivo.

Ademais, conforme se extrai de outro julgado, “só o fato de o empregado ter prestado serviços por todo o período nas dependências da tomadora não configura fraude, demonstrando, ao revés, que o seu ambiente de trabalho não sofreu degradação com o processo de terceirização.” (TRT 3ª R. – RO 0037/03 – 2ª T. – Relª Juíza Alice Monteiro de Barros – DJMG 12.02.2003 – p. 15). Portanto, ainda que a atividade-meio, por empresa terceirizada, seja ou tenha sido prestada no mesmo ambiente de trabalho, não autoriza a presunção da fraude, haja vista que não representa nada de anormal ou ilegal, pois não há nada mais regular do que haver a prestação dos serviços auxiliares próximos ao principal, uma vez que não há subordinação ou dependência econômica, sendo o regime da relação meramente civil e empresarial, entre a empresa de telecomunicação ou de distribuição de energia e a empresa contratada para a realização dos serviços acessórios. Conclui-se, por tudo o que foi exposto, que: (a) a terceirização das atividades-meio – inerentes, acessórias ou complementares aos serviços concedidos de telecomunicações ou de distribuição de energia – é plenamente autorizada pela legislação (Leis nº 9.472/97, art. 94, inciso II e nº 8.987/95, art. 25, parágrafo 1º); (b) as atividades como instalação e manutenção de linhas telefônicas ou linhas de energia ou de call center são serviços que não se enquadram no âmbito das finalidades de uma empresa de telefonia ou de distribuidora de energia, pois não são albergados pelo conceito de telecomunicações ou distribuição de energia, portanto, não são atividades-fim de uma empresa desses ramos, pelo que é totalmente livre, legal e legítima a terceirização nesses casos; (c) se a terceirização é autorizada pela legislação para os serviços de atividade-meio, inerentes ou acessórias, não há como presumir fraude, nos termos do art. 9º da CLT, porquanto a legislação especial, que afasta a aplicação da geral no que der específico tratamento, autoriza a prática, pelo que são necessárias provas exaustivas, e não meras presunções, para configurar eventual fraude, que não ocorre no presente caso, haja vista que a legislação alberga e protege a conduta da empresa de telefonia ou distribuidora de energia de terceirizar os serviços que, embora relacionados a sua atividade, não representam a atividade-fim da empresa, mas somente auxiliam a perfeita prestação de seus serviços, objeto do contrato de concessão. Na realidade, obstar a terceirização desses serviços, longe de representar prestígio a Constituição Federal, macula os princípios constitucionais previstos nos artigos 1º, inciso IV, 5º, inciso II, 170, caput, 175 e 177, da CF, e violaria, outrossim, o disposto no artigo 94, inciso II, da Lei nº 9.472/97 e art. 25, parágrafo 1º, da Lei nº 8.987/95, que autorizam expressamente a terceirização. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


APOSENTADORIA VESGA Manoel Carpena Amorim Presidente da ANDES

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s razões que levam o Governo a estabelecer a idade e o tempo de serviço para a aposentadoria voluntária são conhecidas de todos: as dificuldades financeiras do sistema e os cálculos atuariais. Presentemente, em razão da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, e da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, os servidores públicos se aposentam voluntariamente desde que cumprido o tempo mínimo de 10 anos de efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria, observadas as seguintes condições: sessenta anos de idade e trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e cinqüenta e cinco anos de idade e trinta de contribuição, se mulher. A regra constitucional excepcionou os homens com 65 anos de idade e as mulheres com 60 que podem aposentar-se com provimentos proporcionais ao tempo de contribuição. A lei excepciona ainda em relação aos professores, diminuindo em 5 anos os prazos para aposentadoria, desde que comprovados o efetivo exercício nas funções de magistério na educação infantil e nos ensinos fundamental e médio. Obviamente, a reforma da Previdência consubstanciada na referida Emenda Constitucional foi extremamente gravosa para os servidores públicos. O regime anterior, previsto no texto original da constituição de 1988, era muito mais brando. No tocante à aposentadoria compulsória, porém, o regime da Constituição de 88 permaneceu inalterado. Diz o artigo 40, inciso II: “Os servidores abrangidos pelo regime de previdência serão aposentados compulsoriamente aos 70 anos de idade, com provimentos proporcionais ao tempo de contribuição.” Que razões teriam levado o Legislador Constitucional a manter a aposentadoria compulsória dos servidores públicos aos 70 anos de idade? Só pode ser o limite temporal da vida. Não há outro motivo que leve a essa fixação. Sob o ponto de vista sistêmico, não há argumento capaz de 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

legitimar a manutenção de regra que, aliás, foi estabelecida na constituição de 1946, há 61 anos atrás. Só essa circunstância poria fim a qualquer tentativa de justificar a permanência da aposentadoria compulsória nesse patamar. Será que em 6 décadas a vida não mudou? Nem socialmente, nem politicamente, nem tecnologicamente, nem as condições pessoais de subsistência? Evidentemente que, nas 6 décadas referidas, a vida se transformou em todas as direções. Mais especificamente, no tocante ao indivíduo, estatística publicada pelo IBGE revela que, por ocasião da Constituição de 46, a expectativa de vida do brasileiro era de 40 anos. Hoje subimos para um patamar de 72 anos. Se considerarmos que estamos falando de classe abastada, essa média de vida cresce muito. Quem tem recursos, e ipso facto, amparado por entidades médicas especializadas de alta qualificação, dispõe de verdadeiro arsenal para perscrutar os sintomas de qualquer doença, e os exames preventivos e periódicos preservam a vida como em nenhum outro tempo. A par disso, a alimentação balanceada e monitorada por especialistas ao lado dos exercícios físicos regulares fazem com que um homem nessa idade esteja em plena forma física que vai se prolongar ainda por um bom período. Pois bem, se essa é uma realidade que ninguém discute, por que o governo insiste nessa regra ultrapassada? Que razões levariam o Poder Público a jogar contra o próprio patrimônio, como se costuma dizer? Na esteira das alterações implantadas com a Emenda Constitucional nº 20, o natural é que a aposentadoria compulsória seguisse o mesmo caminho, pois o governo economizaria 5 anos pagando um único salário e não dois, uma vez que, para a vaga de aposentado, ingressaria no serviço público mais um servidor. É realmente incompreensível. Por outro lado, cabe enfatizar que, se há uma carreira onde a experiência vale muito, é exatamente a dos juízes.


Aos 70 anos, o magistrado está no auge de sua potencialidade física e mental. Não sou contra os jovens; ao contrário, sempre os prestigiei. Quando Diretor-Presidente da EMERJ, pude conhecê-los mais de perto e pude constatar o alto nível intelectual dos nossos juízes, mas a arte de julgar exige, de regra, mais do que conhecimento. Exige reflexão e amadurecimento, coisas que só a idade traz. Não há escola que ensine prudência e sabedoria. Como dizia um grande pensador espanhol: “O tempo não perdoa quem faz as coisas sem colaboração.” Ditas essas coisas, já estamos entrando na análise do tema pelo ângulo do interesse social. A sociedade não pode prescindir dessa mão-de-obra tão qualificada e, como vimos, gratuita. Sob essa visão, a aposentadoria compulsória aos 70 anos é um injustificável desperdício. A questão é polêmica, dizem alguns, diante da reação sistemática das Associações de juízes. Aliás, nunca acreditamos que essa seja uma tese da magistratura de 1º grau, porque ela também vai se beneficiar com a extensão da carreira. Os líderes desse movimento têm interesse na preservação do status quo, pois querem chegar mais rápido, não aos tribunais propriamente ditos, mas ao poder. Não querem esperar como todos nós esperamos. Inspirados nas velhas doutrinas de extrema esquerda, querem fazer a revolução dentro do judiciário. Já tiveram algumas vitórias importantes na Reforma, mas ainda não venceram a batalha final. Nós, Ministros, Desembargadores e Conselheiros também queremos ficar mais tempo em razão do nosso interesse pessoal, mas é óbvio, como já se disse, que, paralelamente, há um indiscutível interesse social na permanência dos magistrados mais antigos. Só para exemplificar, que falta estão fazendo ao Supremo

Arquivo JC

“a arte de julgar exige, de regra, mais do que conhecimento. Exige reflexão e amadurecimento, coisas que só a idade traz. Não há escola que ensine prudência e sabedoria. ”

Tribunal Federal nomes como João Paulo Pertence, Carlos Velozo, Luiz Otávio Gallotti, Célio Borja, Aldir Passarinho, Maurício Correa, Moreira Alves, Ilmar Galvão, todos na plenitude das suas capacidades físicas e mentais, capazes, portanto, de continuar servindo à população brasileira. Aliás, para nós, essa discussão está mal colocada porque o juiz, segundo preceito constitucional, devia ser vitalício, isto é, servir enquanto viver. Ademais, não há qualquer restrição para a permanência dos maiores de 70 anos no serviço ativo, nem no legislativo, nem no executivo. Só nós do judiciário estamos submetidos a essa restrição. E nem se argumente que as pessoas mais idosas são mais suscetíveis à doença. Os mais jovens também são. Depois, trata-se da aposentadoria para os que quiserem e puderem permanecer no serviço ativo, sem nenhum caráter de obrigatoriedade. No entanto, essa é uma questão constitucional que ainda não foi ventilada. Por enquanto, vamos continuar lutando pela aprovação da PEC 475, que continua tramitando na Câmara dos Deputados, esbarrando aqui e ali na orquestração das Associações de juízes que tentam obstruir a votação da matéria, o que, certamente, dá conta da sua fragilidade. Não querem votar porque, organizados que são, sabem que vão perder. Acredito firmemente no discernimento dos Srs. Deputados para fazer sumir da Constituição Brasileira essa excrescência. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


A Imprensa e o Direito: da liberdade de expressão à responsabilidade da informação Antônio Campos Advogado e Escritor

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liberdade de expressão é habitualmente compreendida como direito de emitir juízos e opiniões acerca de temáticas ou acontecimentos, e vai decorrer da liberdade de manifestação do pensamento; daí a Constituição, em seu artigo 5º, inciso 9º, ser bem clara ao estabelecer: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura e licença”. Dessa forma, compreende-se muito bem haver uma liberdade relativa à atividade intelectual, outra à atividade artística, outra à atividade científica, sendo a quarta alusiva à atividade de comunicação, referindo-se todas ao direito de crítica, de exprimir juízo de valor. Quando se menciona a atividade comunicacional, fala-se do direito de crítica jornalística, garantido constitucionalmente e, nesse mesmo artigo, é vedada a censura prévia, seja ela de natureza política, ideológica ou artística. Na verdade, estamos aí diante do direito de informar, do direito de se informar e do direito de ser informado. Basta ler o artigo 120, caput, da Constituição federal para compreender a intenção do legislador de não permitir qualquer forma de restrição ou censura à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação, sob qualquer forma, processo ou veículo. Observa-se haver o direito da expressão de idéias, opiniões, assim como o direito à transmissão de notícias. Se o primeiro é a faculdade de expressar o pensamento, o segundo é o direito de transmitir à opinião pública notícias de qualquer espécie. Enfim, a informação jornalística faz parte do direito de informar, realizada através dos veículos específicos. Por outro lado, o direito de se informar consiste, evidentemente, no acesso de todos à informação. É o inciso XIV do art. 5º da Constituição que possibilita a qualquer pessoa esse acesso: “É assegurado a todos o acesso à informação e 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

resguardado o sigilo da fonte quando necessário ao exercício profissional”. Há quem afirme que o direito à informação conjuga o direito de informar e o direito de se informar. Quanto ao direito de ser informado, é estatuído no inciso XXXIII da Constituição: “Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informação de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral. Entretanto, quando se fala em imprensa livre, o outro lado do espelho acaba por ser a prática da censura. Também poderão surgir conflitos pela ânsia da mídia por notícias sensacionalistas.” Ainda assim, Thomas Jefferson afirmava: “Se pudesse decidir se devemos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, eu não vacilaria um instante, eu preferiria o último.” Quando observamos a origem etimológica da imprensa, vemos que a palavra vem do latim impressa, impressu que significa “prensa das artes gráficas”. A imprensa periódica era habitualmente denominada jornalismo, journalisme (francês), journalism (inglês), giornalismo (italiano), ou periodismo (espanhol). Em um sentido mais amplo, essa atividade existiria desde a mais remota antiguidade, na medida em que a comunicação social é inerente à própria natureza humana. Há quem afirme, como Giuliano Gaeta, que a origem do jornalismo teria ocorrido em Roma; para outros, ela estaria associada à expansão da imprensa na Europa: na baixa Idade Média, surgiram os manuscritos elaborados pelos copistas, com a finalidade de divulgar fatos, embora sem periodicidade; a seguir, surgiriam as primeiras gazetas semanais – no século XV, em Veneza, difundiram-se notícias e avisos que eram vendidos a políticos e comerciantes, o que se denominou Gazzetta: há quem diga


Foto: Arquivo Pessoal

que essa denominação deriva da moeda veneta com que se pagava a aquisição e leitura da folha circulante de notícias. Na França, no ano de 1631, cria-se o primeiro jornal no sentido escrito, A Gazeta de França, impresso por quase três séculos, até 1915. A imprensa, no Brasil, iniciou-se com a sua proibição: em 1747, por meio de uma carta régia, a corte portuguesa vetou a impressão de livros e avulsos – com a medida, foi destroçado o primeiro e único empreendimento gráfico da época, uma tipografia aberta um ano antes no Rio de Janeiro por Antônio Isidoro da Fonseca – medida que atrasou em quase cem anos a implantação da imprensa no país. Em 1808, quando a corte de Portugal mudou-se temporariamente para o Rio de Janeiro, veio com ela a imprensa régia, Casa Editorial Estatal, que, mais tarde, seria transformada na Imprensa Nacional, a mesma que continua a publicar o Diário da União lançado em 1862. No ano de 1888, foi criado o Correio Brasiliense, que é classificado, pelos livros de história, como o primeiro jornal em português a circular no Brasil, embora editado e impresso em Londres. Também em 1808, foi lançada a Gazeta do Rio de Janeiro, publicação estatal editada sob censura prévia e oficial. Em Salvador, igualmente censurado, foi publicado A Idade d’Ouro, no ano de 1811. Em 1821, surgem o Diário do Rio de Janeiro e Reverbo Constitucional Fluminense. Dos jornais do início do século XIX, o único que continua a ser editado até hoje é o Diário de Pernambuco, lançado em 1825, considerado o mais antigo diário em circulação ininterrupta na América Latina. Em nosso país, existem, atualmente, cerca de quatrocentos jornais diários, com uma tiragem de sete milhões de exemplares. Hoje, costuma-se indagar se os jornais impressos

sobreviverão ao jornalismo on line, pela internet, e alguns especialistas respondem afirmativamente, mas declaram que a mídia impressa sofrerá uma mudança radical, especialmente no que se refere ao enfoque da notícia: conforme Ali Camel, com a rapidez da comunicação pelo rádio, televisão e internet, o que se busca agora é a análise do fato, a crítica, a opinião e o aprofundamento dos temas relacionados à informação. O que o leitor do jornal impresso quer, atualmente, é a notícia examinada criticamente pelos profissionais da informação – de modo que a tendência é desaparecerem certas manchetes que apenas reproduzem o que o leitor já tomou com conhecimento por meio da televisão, do rádio, ou do jornalismo on line do dia anterior. Conhecemos, no âmbito do Direito, a definição romana de liberdade, na qual ela é considerada a faculdade natural de alguém fazer o que lhe apraz, a menos que seja impedido pela força ou pelo direito. Para usar os versos de Cecília Meireles, a liberdade seria “essa palavra que o ser humano alimenta/ que não há ninguém que explique/nem ninguém que não entenda”. Para conceituá-la, é preciso estabelecer uma relação 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


com os conceitos de arbítrio, de determinismo, de autonomia, de vontade, de indiferença. No preâmbulo da nossa Constituição, está assegurado o exercício da liberdade do cidadão dentro do Estado brasileiro. Como se sabe, a vida em sociedade impede as expressões individuais ou coletivas que ultrapassem determinados limites, fixados pelo Estado, daí as normatizações jurídicas invocadas para harmonizar os cidadãos na coletividade. Enfim, a liberdade consistiria em se poder fazer tudo aquilo que não é prejudicial ao outro. A constituição histórica da liberdade, ao tempo do século XVII, foi uma semente germinada por autores como Erasmo de Roterdã, Thomas Moore, Montaigne e Montesquieu. A dimensão ética da liberdade é a perspectiva de um ideal democrático que estava ainda a ser criado como conseqüência do humanismo. No século XVIII, acontece a consolidação do ideal da liberdade enquanto ideologia política, aparecendo no espaço público como o primado da soberania popular e da vontade geral, princípio máximo do homem, valor precioso dentre aqueles da modernidade. A condição de base para a conquista da liberdade era a garantia da livre expressão das opiniões no espaço público. A opinião pública nasce como reflexo dos ideais libertados dos séculos XVII e XVIII, quando o público iluminado e politizado resolve discutir os limites da autoridade do Estado e da censura. A imprensa como local privilegiado da controvérsia política contra o controle do Estado vai adquirir com a modernidade uma dimensão própria de liberdade, dada em função da sua natureza mediadora e de sua capacidade de mobilização social. A imprensa e a liberdade de imprensa consagram-se como os direitos mais legítimos, por se constituir em um espaço deliberativo da soberania coletiva, estruturado pelo princípio da tematização pública das questões políticas. A liberdade de imprensa significa que os meios de comunicação são livres para manifestar sua opinião, criticando e denunciando irregularidades verificadas dentro dos limites impostos pelas leis. Há limites chamados internos que se referem à responsabilidade para com a sociedade e o compromisso com a veracidade e o equilíbrio na divulgação das informações; já os segundos limites, também chamados externos, são os que dizem respeito ao confronto com outros direitos considerados fundamentais pela Constituição Federal. No âmbito internacional, o primeiro país a cuidar das liberdades públicas foi a Inglaterra, em 1695, tornando sem efeito um ato que estabelecia a censura prévia. A seguir, em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França, estabelecia a livre comunicação dos pensamentos e das opiniões como um dos direitos mais preciosos do homem. Também a Carta de Direitos Americana do Estado de Virgínia, em 1766, protegeu os direitos inatos do homem e a sua Constituição consagrou a liberdade de imprensa, declarando que ela é um dos baluartes da liberdade e não pode ser restringida por despotismo governamental. O direito de informar foi universalmente reconhecido em 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

“A liberdade de imprensa significa que os meios de comunicação são livres para manifestar sua opinião, criticando e denunciando irregularidades verificadas dentro dos limites impostos pelas leis.” 10 de dezembro de 1948 pela ONU e, nesse mesmo ano, em Bogotá, foi aprovada a declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem que, em seu artigo 4º, transcreve: “Toda pessoa tem o direito à liberdade de investigação de opinião e de expressão e de difusão do pensamento por qualquer meio”. Em Roma, em 1950, foi aprovado o convênio europeu para proteção dos Direitos Humanos, que, no artigo 10, estabelece: “Toda pessoa tem o direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou comunicar informações ou idéias sempre que puder haver ingerência de autoridades públicas, sem consideração de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de rádio difusão cinematográfica ou de televisão a um regime de autorização prévia.” No ano de 1966, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos que estabelece o seguinte: “1. Ninguém poderá ser molestado em razão das suas opiniões. 2. Toda pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações de toda natureza, sem limitações, na forma oral, por escrito, impressa ou artística ou com qualquer outro procedimento de sua escolha. 3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2º deste artigo compreende deveres e responsabilidades especiais; por conseguinte, pode estar sujeito a certas restrições que deverão estar expressamente previstas em lei, no sentido de assegurar o respeito aos direitos de outros ou à proteção da segurança nacional”. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, firmado em 1969, com a intenção de afiançar os direitos humanos nas Américas, prevê, em seu artigo 13, o seguinte: “1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamentos e de expressão. Este direito compreende


a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem limitações, na forma oral, por escrito, impressa ou artística ou por qualquer outro procedimento de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a prévia censura, senão a responsabilidades ulteriores, que devem estar expressamente previstas em lei e necessárias para assegurar: a) o respeito aos direitos ou a reputação de outros, ou b) a proteção da segurança nacional, a ordem pública, saúde ou moral. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel para jornais, de freqüência, ou de aparatos usados na difusão de informação ou por qualquer outro meio para impedir a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.” Sabemos que, do ponto de vista do Direito Constitucional, a censura é todo procedimento do poder público que visa a impedir a livre circulação de idéias, habitualmente contrárias aos interesses dos detentores do poder político. Na realidade, é a Constituição que estabelece as normas básicas para o jogo democrático; a dificuldade de viver sem a democracia se relaciona com a reprodução de comportamentos autoritários, na relação autocrática dos governantes para com os governados. O que se busca historicamente tem sido uma experiência pessoal que não nos permita conceituar a sociedade em que vivemos como autocrática; o que se busca é o princípio da justiça, amparado no princípio da igualdade (direitos iguais) com o princípio da diferença (tratamento das desigualdades sociais). A antinomia entre democracia e censura revelase a partir de que são termos antitéticos, antagônicos, inconciliáveis: a democracia é inconciliável com a censura porque esta obsta o regular funcionamento da democracia – a censura é uma imposição autocrática e a democracia é livre circulação de idéias, opiniões, é o pluralismo político, ideológico e artístico. Por violar um direito dos mais caros ao homem, a liberdade de expressão e informação, a censura torna-se incompatível com a democracia. A doutrina e a jurisprudência têm destacado “liberdade de expressão e direito à informação”: enquanto que a primeira compreende os pensamentos, idéias e opiniões, o segundo abrange a faculdade de comunicar e receber livremente informações sobre os fatos considerados noticiáveis. Essa distinção é de grande importância para a demarcação dos limites e responsabilidades e o exercício desses direitos. A liberdade de expressão tem um âmbito mais amplo do que o direito à informação, vez que aquela não está sujeita ao limite interno da veracidade, da prova da verdade, aplicável a este último. Conforme o promotor de justiça e professor da Universidade Estadual do Piauí e doutorando em Direito Constitucional pela UFSC, Edilsom Farias, o limite interno da veracidade, aplicado ao direito à informação, refere-se à verdade subjetiva e não à verdade objetiva. Vale dizer que, em um Estado democrático de Direito, o que se exige do sujeito

é um dever de diligência ou apreço da verdade, no sentido de que seja constatada a fonte dos fatos noticiáveis e verificada a seriedade da notícia antes de qualquer publicação. Ellen Hume, da Universidade de Massachusetts, declara ser impossível maximizar a estabilidade política, o crescimento econômico e a democracia sem o livre fluxo de informações: informação é poder – para uma Nação desfrutar das vantagens políticas e econômicas oferecidas pelo Estado de Direito, as instituições que detêm poder devem ser abertas ao escrutínio da população; para que a tecnologia e a ciência avancem, as idéias devem ser compartilhadas abertamente; uma mídia jornalística livre e independente é essencial para o processo de valorização da prestação de contas do governo à população; a mídia que trabalha honestamente para manter a transparência do governo pode ajudar no suporte ao Estado de Direito, gerando, dessa forma, maior estabilidade para o país. Destaca ainda Ellen Hume que um segundo relatório do Banco Mundial, Consultas aos Pobres, estudou vinte mil pessoas carentes em vinte e três países e chegou à conclusão de que “o que mais diferencia os pobres dos ricos é não poder se fazer ouvir. A incapacidade de representação. A incapacidade de comunicar às autoridades o que pensam, a incapacidade de projetar o holofote sobre as condições de desigualdade.” A liberdade de expressão não deve estar em risco, sob pena de instabilidade social. Uma imprensa cerceada em sua liberdade de expressão implica em um enfraquecimento das liberdades públicas, pois é fundamental garantir ao povo o acesso aos meios de comunicação. A complementariedade do que concerne às redes informativas entre os sistemas privado, público e estatal, prevista no art. 223 da Constituição, implica em um equilíbrio de forças diante de qualquer monopólio privado e poderá fazer a questão caminhar para além dos lobbies manipuladores, atravessando supostas imparcialidades e dialogando no sentido da democratização. A liberdade de expressão e informação não é absoluta, tem seus limites. Existe o direito à intimidade, à vida privada e à imagem chamados de “direitos à privacidade”. Existe, por outro lado, a liberdade de externar opiniões não suscetíveis de comprovação. Embora a Constituição Federal proíba qualquer forma de censura, não devem ser esquecidos os direitos do cidadão, sob pena de ocorrer abusos dessa mesma liberdade de expressão e informação. Acredito ser oportuno encerrar esta reflexão recorrendo às palavras do grande Rui Barbosa em sua famosa conferência “A imprensa e o dever da verdade”, ao destacar o direito do povo à informação: “A imprensa é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe mal fazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam ou roubam, percebe onde lhe alvejam ou magoam, mede o que lhe cerceiam ou destroem, vela pelo que lhe interessa e se acautela do que a ameaça”. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


Quid pro quo Daniel Renout da Cunha Advogado

Julgamento sobre a intervenção americana em 1964 Em edição de agosto, nº 85, publicamos artigo do advogado Daniel Renout da Cunha, especializado em Direito Internacional, sobre a ação de Representação de Danos da Família do ex-presidente João Goulart contra o governo dos Estados Unidos da América. O feito está sendo apreciado no Superior Tribunal de Justiça, que, após a votação de três ministros, foi adiada para a próxima data, com a convocação especial dos ministros Antônio de Pádua Ribeiro e Massami Uyeda. Sobre o ocorrido no julgamento, recebemos, do advogado citado que acompanhou a sessão no STJ, a matéria que transcrevemos a seguir.

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a véspera do 46º ano da posse de João Goulart na Presidência da República, assistimos a um julgamento histórico no Superior Tribunal de Justiça. Data relevante, pois, no dia seguinte, comemorava-se 185 anos do brado do Ipiranga e a questão versa sobre independência. Trata-se do Pedido de Reparação de Danos da Família Goulart sofridos com a queda da democracia em 31 de março de 1964, cujo patrocínio pela CIA – Central Intelligence Agency – foi confessado pelo embaixador Lincoln Gordon em 2002. O cerne da controvérsia é a reforma da extinção do feito por impossibilidade jurídica do pedido com fundamento na Imunidade de jurisdição do Estado Estrangeiro, uma vez que o juiz substituto da 10ª Vara Federal do Rio de Janeiro entendeu que os atos ilícitos da CIA – Central Intelligence Agency – se incluem nos atos de império. O dano aconteceu em território nacional e os autores da ação residem no Brasil. O nexo de responsabilidade do Réu foi estabelecido pela confissão de seu embaixador. A conclusão da Sra. Ministra relatora Nancy Andrighi é de que existe possibilidade jurídica de exigir reparação de danos com origem em atos ilícitos praticados por agentes de estado estrangeiro em território brasileiro. O debate deverá circunscrever-se a extinção do feito por imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro. O extenso voto da Sra. ministra antecipa que a classificação como atos de império é inapropriada. No 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

elenco dos argumentos, figura o fato de que a intervenção que resultou na queda do regime democrático carece de moldura legal, pois não foi autorizada pelo senado federal norte-americano, entre outros aspectos. Na conclusão de seu voto, a Sra. ministra assume uma postura de cautela e propõe adiar este debate sobre a classificação da natureza dos atos em foco (da CIA e dos Governos Kennedy/Johnson). Argumenta que é precipitado classificar estes atos como de Gestão ou de Império, antes dos Estados Unidos se manifestarem na lide. O Sr. Ministro Presidente da 3ª Turma, Humberto de Gomes de Barros, acompanhou este entendimento para conhecer e prover o recurso ordinário e determinar a citação. O voto divergente do Sr. Ministro convocado da 4ª Turma, Aldir Passarinho Júnior, teve por base o entendimento de que a imunidade de jurisdição é evidente e deve ser de pronto declarada, uma vez que os atos praticados pelo Réu, aquém do financiamento de campanhas eleitorais em 1962, incluem o envio de uma frota naval, munição, combustível e armamento, e, portanto, só podem ser atos de Estado, ou seja, atos de império. Trata-se de um entendimento que subtrai o conteúdo técnico do debate e lhe dá uma conotação política. Ou seja, deixa de examinar a tipificação jurídica em sentido estrito acerca da natureza do acta jure imperii e formula conceito com base no rótulo dado a hegemonia norte-americana no continente sul-americano: imperialismo.


Foto: STJ Fachada do STJ

(Abram-se uns parênteses sobre o voto divergente: foi citada jurisprudência sobre imunidade de jurisdição acerca de um incidente na alfândega portuguesa estranha à lide e que guarda pouca semelhança com a discussão da reparação de um dano que, ao contrário do exemplo citado, aconteceu em território brasileiro.). Além da convicção, quanto à natureza dos atos, o voto divergente do Sr. Ministro também exige que, antes da citação, já seja declarada a imunidade de jurisdição dos Estados Unidos. Ou seja, a Justiça brasileira deve declarar que o patrocínio do golpe militar que derrubou a democracia em 31 de março de 1964 está inserido no rol dos acta jure imperri e a citação deve ser realizada apenas para dar oportunidade ao Réu de renunciar à sua prerrogativa. A cautela contida na conclusão do voto da Sra. Ministra relatora (quanto à precipitação de classificar a natureza dos atos) foi ignorada. Ipso facto, o Sr. Ministro Aldir Passarinho Júnior declarou que os Estados Unidos da América romperam um tratado internacional ratificado pelo senado federal norteamericano no ano de 1949, configurando ato de agressão, conforme artigo XXIV da Carta da OEA: “Toda agressão de um Estado contra a integridade ou a inviolabilidade do território, ou contra a soberania, ou independência política de um Estado Americano, será considerada como um ato de agressão contra todos os demais Estados Americanos.” Como é que a declaração contida do voto divergente pode ter valor jurídico? Como é que a justiça brasileira

pode classificar os atos do Réu antes da citação? Qual seria a postura dos Estados Unidos quando fossem chamados a responder pelo descumprimento das Cartas da Organização dos Estados Americanos e da Organização das Nações Unidas perante Cortes Internacionais? A única certeza é de que a cortesia contida na intenção de resolver o problema antes de citar os Estados Unidos é inconstitucional. Nenhuma regra escrita estabelece o direito à imunidade de jurisdição ao Estado Estrangeiro, mas a Carta Magna estabelece o direito de exigir a reparação do dano e garante o acesso à tutela jurisdicional. Os costumes atribuem ao Estado Estrangeiro a prerrogativa de recusar a jurisdição de outro estado mediante incidente de Imunidade. Tecnicamente, a imunidade resulta apenas na declinação da competência da causa para foros internacionais. O voto divergente afirma que o ato de determinar a citação já implica uma declaração de jurisdição positiva. Ora, a citação não prejudica a apreciação do Incidente de Imunidade de jurisdição e nem fere a soberania alheia, mas o entendimento do voto divergente fere o contraditório, o devido processo legal, o acesso à Justiça. Nullum ius sine actione. A jurisdição é exercida nos mesmos limites da soberania. Os ministros da 3ª Turma foram soberanos em decidir citar o réu para depois apreciar a imunidade e concluir se haverá necessidade da declinação de competência para foros internacionais. Res integra. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49


Universidade dOS sonhos

O projeto da Universidade de Constantine foi o trabalho que me tomou mais tempo para iniciar. Durante dias, eu juntamente com Darcy Ribeiro, Ubirajara Brito, Luiz Hildebrando Pereira da Silva e Heron de Alencar, discutimos o programa dessa Universidade, para a qual Darcy tinha idéias especiais. Preocupava-o estabelecer entre os alunos das diversas escolas um contato mais íntimo que assegurasse a troca de experiências indispensável. Para atendê-lo com a minha arquitetura, evitei destinar a cada escola um edifício particular, criando dois grandes bloco – um para as salas de aulas e outro para os laboratórios. Desses dois edifícios os alunos das diversas escolas se utilizariam, permitindo assim a troca de experiências desejada por Darcy.” Assim Oscar Niemeyer inicia seu depoimento todo o processo – do projeto à construção da Universidade de Constantine, na Argélia, realizado por ele e sua equipe no início dos anos 70 do século passado, agora retratado em um belo livro editado pela Editora Revan, que apresenta, ainda, depoimentos de Lahcène Moussaqui, Heron Alencar, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Ubirajara Brito e Luiz Marçal.”

DOM Quixote vai a Recife O Tribunal Regional Federal Quinta Região e a Confraria D. Quixote, realizarão, no próximo dia cinco de novembro, uma solenidade de entrega do Troféu D. Quixote a importantes personalidades do mundo político e jurídico da região nordeste. O ato será no Salão do Pleno do Tribunal do Fórum Djaci Falcão do referido tribunal, em Recife. Abaixo, listamos os agraciados. Ministro Djaci Falcão Ministro José Delgado Ministro Humberto Martins Ministro Napoleão Nunes Maia Filho Desembargador Geraldo Apoliano Dias Desemb. Jones Figueiredo Alves Desembargador Ubaldo Ataíde Cavalcante Desemb. José Fernandes Lemos Desembargador José Baptista de Oliveira Filho Desemb. Luiz Carlos de Barros Figueiredo Desemb. Margarida de Oliveira Cantarelli Desemb. Fernando Cerqueira Norberto Santos Desembargador Paulo Gadelha Desembargador Ridalvo Costa

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Governador Eduardo Campos Governador Cássio Cunha Lima Senador Jarbas Vasconcellos Desembargador Nildo Nery dos Santos Desemb. Marcelo Navarro Ribeiro Dantas Proc.Rep. Joaquim José de Barros Dias Juiz Fed. Francisco Antônio de Barros e Silva Neto Juiz de Direito Severino Coutinho da Silva Advogada Vanuza Sampaio Advogado Antônio Campos Advogado Josias Albuquerque Advogado Armando Monteiro Filho Advogado Ademar Rigueira Neto


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