Revista Justiça & Cidadania

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2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007


EDIÇÃO 88 • novembro de 2007 O SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO

TRANSPORTE PÚBLICO E A JUSTIÇA FLUMINENSE

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Foto de capa: Sandra Fado/STJ

ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO

FRAUDE E FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA

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DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DÉBORA MARIA M. A. R. DIAS REVISÃO DIOGO TOMAZ E MAURíCIO FREDERICO DIAGRAMAÇÃO VINÍCIUS GONÇALVES EXPEDIÇÃO E ASSINATURA

CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares

CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO

Antônio souza prudente

EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-100. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429

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SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611

CELSO MUNIZ GUEDES PINTO CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI denise frossard

GILMAR MENDES PEDE QUALIFICAÇão DAS LEIS

48 SUMÁRIO

O CRISTO MUTILADO

4

A JURISPRUDÊNCIA DO stj EM mATÉRIA TRIBUTÁRIA DO sETOR ELÉTRICO

6

DOM QUIXOTE EM RECIFE

10

A CRISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

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A DEMOCRATIZAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO

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APLICAÇÃO JUDICIAL DO DIREITO

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NATUREZA JURÍDICA DO RESSARCIMENTO DE CUSTOS E ENCARGOS

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A PRECE DE UM JUIZ

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Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA

PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP: 90010-272 TEL.(51) 3211 5344

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Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Ives Gandra martins Jerson Kelman josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello

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ISSN 1807-779X

Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata SEBASTIÃO AMOÊDO

Ilustração:

Sergio Cavalieri filho Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho

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Foto: Arquivo Pessoal

O Cristo mutilado

“Espero que, vendo-me, assim, mutilado, afinal, te apercebas de que há milhares de irmãos que convivem contigo, ignorados e distantes, e que estão, como EU, mutilados, doentes, esmagados pelo sofrimento.” (Ramón Cué, em o Cristo Mutilado)

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oi nas meditações quaresmais de insigne jesuíta espanhol, Ramón Cué, que fomos buscar a idéia básica para a confecção deste artigo. Dentre as histórias, lendas e narrativas que quase sempre ilustram os milhares de compêndios de pregação cristã, editados pelo mundo afora, nenhuma nos afigura tão pungente – tão pungente e tão farta de sadio simbolismo – quanto a que abre as páginas de uma das mais conhecidas obras evangélicas do renomado sacerdote espanhol – a história do Cristo Mutilado. Conta-nos o padre Ramón que, certa vez, em Sevilha, ao visitar, casualmente, o estabelecimento comercial de próspero antiquário, ali encontrou uma imagem mutilada de Cristo, que, certamente, fora profanada pelo vandalismo de algum ateu. Após demorada discussão com o comerciante, em torno do preço pelo qual a imagem lhe poderia ser cedida, o sacerdote comprou-a, afinal, com indisfarçável hesitação – e levou-a para casa. Mais tarde, ao fixar os olhos na imagem desfigurada, à qual faltavam um dos braços, uma das pernas e o próprio rosto, o piedoso jesuíta assim falou para si mesmo: “Não te importes, meu Cristo. Vou mandar restaurarte. Não quero e não posso ver-te, assim, mutilado. Restaurando-te, pensarei que te desagravo por mim e pelos outros. Sim, vou mandar restaurar-te, ainda que o restaurador me exija mil e quinhentas pesetas. Não as tenho, mas hei de obtê-las. Mereces tudo e custa-me ver-te assim. Amanhã mesmo, levar-te-ei à oficina do restaurador. Aquele que está na ‘Casa do Artista’, junto ao Jueves, onde te comprei.” E eis que uma voz, ao mesmo tempo doce e irada, respondeu-lhe na solidão da noite: “Não me restaures. Proíbo-te. Ouves? Proíbo-te. Espero que, vendo-me, assim, mutilado, afinal, te percebas de que há milhares de irmãos que convivem contigo, ignorados e distantes, e que estão, como Eu, mutilados, doentes, esmagados pelo sofrimento. Sem braços, porque não têm possibilidades e nem meios de trabalho, sem pés, porque lhes bloquearam os caminhos da vida e sem olhos, porque os perderam tragicamente. Não! Não me restaures. Talvez, vendome assim, desfigurado, os teus olhos se volvam para o sofrimento dos teus irmãos. Para o sofrimento dos teus irmãos também mutilados e vencidos pela vida.” E quantas pessoas existem, entre nós, por este Brasil imenso – pessoas que, graças aos votos do povo, tornaramse poderosas, ufanas –, e que hoje, indiferentes e esquecidas dos seus mandantes, mostram-se presunçosas – e também se mostram alheias, pasmosamente alheias aos sofrimentos de seus enganados compatrícios que pervagam miseráveis nos caminhos em busca de lenitivo para suas doenças, de leitos nos hospitais públicos e medicamentos para curar suas desgraças. Todos vítimas do descaso, do abandono e da injustiça.

“É inconcebível que os membros do Congresso Nacional não se comovam com as desgraças de seus conterrâneos que mínguam, sofrem e morrem nas portas dos nosocômios.” No entanto, todos são nossos irmãos em Cristo. Todos são nossos irmãos em Cristo Mutilado. A transcrição da obra do Padre Ramón Cué, em seu pungente significado cristão, vem muito a propósito da tramitação do Projeto governamental que prorroga a CPMF, criada por iniciativa do emérito médico-cirurgião Adib Jatene, cuja destinação financeira para a saúde foi desvirtuada para atender fins políticos, em detrimento dos infelizes e desgraçados doentes, que se quedam desamparados nas filas dos hospitais. É inconcebível que os membros do Congresso Nacional – em especial os Senadores da República, que, no momento, decidem a sorte de milhões de brasileiros deserdados e refugados da assistência médica e hospitalar, que se encontram aos montes, jogados nas enfermarias imundas e corredores sujos dos horrendos hospitais públicos, em todos os Estados e Municípios deste Brasil, esperando receber de seus representantes no Senado Federal um mínimo de piedade e misericórdia – não se comovam com as desgraças de seus conterrâneos que mínguam, sofrem e morrem nas portas dos nosocômios. Por que, então, para solucionar esse terrificante problema nacional, nossos Senadores e Deputados não se compadecem dessa multidão de desgraçados brasileiros, doentes e abandonados, e destinam toda a contribuição da CPMF, isto é, os QUARENTA BILHÕES DE REAIS, para sanar as dificuldades da saúde e solucionar o atendimento dos infelizes que aguardam, desesperados, o socorro e a assistência que lhes é devida pelo Poder Público? Que haja boa vontade nos homens públicos, e que o grito do Cristo Mutilado ecoado no quarto do padre Ramón chegue ao coração dos Senadores da República.

Orpheu Santos Salles Editor

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A jurisprudência do STJ em matéria tributária do setor elétrico Eliana Calmon Ministra do STJ

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os dias atuais, a velocidade das informações e a escassez de tempo vêm aproximando os povos, e diminuindo as distâncias e as diferenças. Fala-se em um mundo global ou um mundo plano. O fenômeno também se estende à esfera do Poder Judiciário e, hoje, podemos afirmar que estão praticamente imbricados os sistemas da common law (sistema de precedentes) e da civil law (sistema da segurança jurídica). Como reflexo, temos a importância assumida no Brasil, tradicionalmente adepto do sistema da segurança jurídica, pelos precedentes, fazendo realçar a jurisprudência como uma das mais importantes fontes do direito. Por outro ângulo, temos, na revisão crítica promovida no Brasil com a Constituição de 88, com imenso atraso cronológico, registre-se, o fenômeno da judicialização dos conflitos de interesses. Tudo passa e termina no Poder Judiciário, perdendo a sociedade brasileira, lamentavelmente, as tradicionais formas alternativas de resolução de conflitos. No passado, os conflitos mais simples – como desavenças de vizinhos, entre marido e mulher, entre parentes, discordância quanto a contratos de pequena monta, acidentes de automóvel, etc. – eram resolvidos por acordo, com a intermediação do pai de família, do líder comunitário, do chefe político, do padre ou da professora. Atualmente, todos buscam na Justiça Estatal a solução. Faço o destaque para dizer da importância da jurisprudência quando se pretende saber do desempenho do setor elétrico, como se comportam as concessionárias para com os usuários e como ambos se relacionam com o Estado, provedor último pela responsabilidade que tem sobre assuntos básicos e estratégicos, como é a questão da energia elétrica. 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

Diante da importância assumida pelo Judiciário na realização da paz social nos mais diversos quadrantes da vida, podemos dizer que a análise da produção judicial é também uma análise política. Antes de tratar especificamente sobre tributos, é preciso atentar para o fato de que existem determinadas causas históricas e sociais que dificultam e influenciam a condução dos processos, a partir da magistratura de 1º Grau. A primeira dificuldade está na aceitação do modelo político-ecomômico instalado no Brasil, o qual passou pelo enxugamento da intervenção estatal no mercado, tendo na privatização um dos mais eficientes instrumentos para alcançar o objetivo. A dificuldade tem início, pois, na não aceitação ideológica do modelo econômico traçado. A segunda dificuldade diz respeito ao exato conhecimento do papel das agências reguladoras dentro da economia privatizada, compreensão dificultada pela deformação procedida pelo próprio Governo, que teima em não aceitar com largueza a independência técnica e administrativa das agências. A solução para as duas dificuldades apontadas virá com o tempo, com uma nova visão ideológica do que é efetivamente a privatização no Brasil. Essa minha percepção vem das conversas que tenho tido com os magistrados, desde a época dos leilões de privatizações, ou seja, o que eles pensam sobre a privatização, como estão vendo a atuação das agências reguladoras em parceria com as concessionárias dos serviços públicos privatizados. Dentro desse quadro de dificuldades, há ainda um outro fator: o Executivo traça a política energética, mas o Legislativo forma o arcabouço regulatório. A divergência entre os Poderes tem reflexos no Judiciário,


Foto: STJ

ensejando os mais diversos questionamentos suscitados pelas concessionárias, pelos usuários e pelos mesmos contra a União, via agência reguladora. A pobreza do povo brasileiro, em uma sociedade absurdamente excludente, com alto índice de concentração de renda, aliada aos movimentos em torno dos direitos de terceira geração, destacando-se a valorização de defesa do consumidor, tem ensejado uma série de questionamentos em torno do valor da tarifa, da forma de sua cobrança, da política de preço mínimo traçada pela Agência Reguladora, etc. Na outra ponta, temos as concessionárias, que atenderam ao chamamento estatal com a privatização, realizando altíssimos investimentos, pautados em contratos milionários. É óbvio que os investidores não podem ficar à mercê de injunções políticas e/ou de disputas ideológicas, necessitando de um mínimo de segurança, que é emanada das regras contratuais preestabelecidas e garantidas pelo Judiciário. A alteração constante das decisões judiciais, fazendo oscilar a jurisprudência sem razões plausíveis, é preocupante para os investidores, ocasiona imensurável prejuízo para as finanças públicas e desacredita a Justiça aos olhos dos jurisdicionados. O ideal, em qualquer sociedade organizada, é a manutenção da segurança jurídica pela sedimentação das decisões judiciais e da harmonia de entendimento entre os diversos graus de jurisdição: o dos juízes de 1º Grau, com uma visão mais acanhada, mas profundamente imbuída nos fatos que lhes são trazidos pelas partes, e o dos Tribunais, norteadores das decisões dos magistrados de 1º Grau, pela visão mais abrangente, fruto da amplitude territorial dos julgados. Na atual conjuntura, a preocupação é fazer a aproximação

da base à cúpula, diminuindo-se o hiato criado entre os diversos graus de jurisdição. Nesse trabalho, estamos a reunir a visão política dos Tribunais à visão fática da base, envolvendo todos os operadores do direito, responsáveis pela produção do direito pretoriano e que, por isso mesmo, devem estar sintonizados e harmônicos no entendimento quanto aos valores da sociedade. Assim, luta-se para pôr fim à guerra das liminares, das cassações constantes das decisões dos juízes de 1º Grau pelo Poder de cúpula, divergências que levam a uma avalanche de demandas, de questões pontuais de natureza processual. Após essa introdução, inicio o exame da jurisprudência do STJ pelos questionamentos referentes às tarifas, aspecto que tem contribuído para um assustador volume de litígios A tarifa é o preço pago pelo usuário pela utilização de um serviço que, sendo considerado essencial, está sob controle estatal, mesmo quando prestado por empresa privada. Pergunta-se, então: como é feita a fixação das tarifas? A tarifa é fixada a partir dos critérios estabelecidos pelo Estado, por meio da agência reguladora própria (ANEEL), definindo os reajustes e as revisões tarifárias, determinados sobre critérios técnicos e políticos. À União cabe, por disposição constitucional, estabelecer a forma de investimento no setor, competindo-lhe a exploração, os serviços e as instalações no setor de energia elétrica, seja de forma direta, pelo próprio Estado, ou por intermédio de concessões ou de permissões. Assim, tem-se, no seio do Estado, a política de consumo, para a qual se deve levar em consideração, dentre outros fatores, o meio ambiente, o poder aquisitivo da população, o valor dos investimentos e o percentual de retorno desses investimentos, em equação eminentemente política. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


Lembre-se, ainda, que, dentro dos critérios políticos, considerase uma espécie de subsídio, dos consumidores mais abonados, para com os consumidores de baixa renda, selecionados pelo tamanho do consumo. Em outras palavras, quem consome mais paga tarifa unitária mais alta para subsidiar a unidade tarifária de quem consome menos. A partir daí, estabelecem-se relações jurídicas que se apresentam imbricadas, seja entre o Estado e as concessionárias, seja entre as concessionárias e os consumidores, seja entre Estado, concessionárias e consumidores, esclarecendose que o Estado está representado pela agência reguladora. O valor das tarifas, como visto, fixado pela agência reguladora, deve ainda cobrir os encargos tributários, bastante altos no sistema tributário nacional, não podendo se perder de vista o fato de haver, com o valor pago pelos consumidores, parcela considerável de retorno aos cofres públicos, correspondente aos tributos incidentes sobre a energia elétrica consumida. Há, atualmente, forte reivindicação dos órgãos de defesa dos consumidores no sentido de barateamento das tarifas, defendendo, inclusive, a proporcionalidade da atualização dos preços pelo IPCA (Índice de Preço ao Consumidor Amplo) ou pelo IPCM (Índice Geral de Preço do Mercado). Ocorre que os ingredientes de formação do preço das tarifas são inteiramente diversos dos que compõem a formação do IPC, o que levaria a um desequilíbrio na política de preços, considerando-se, inclusive, o subsídio existente dos consumidores mais abastados para com os consumidores de baixa renda. Por outro lado, a remuneração do capital estrangeiro, financiador dos programas de ampliação e modernização da rede elétrica, tem como parâmetro a moeda estrangeira, adredemente, o que afasta a possibilidade de se seguir a atualização pelos índices de consumo interno. As decisões judiciais que atendem às reclamações quanto à forma de reajuste das tarifas pelo IPCA ou pelo IGPM, em desobediência aos contratos assinados pelas concessionárias com o Governo Brasileiro, estão a causar grande tumulto na esfera judicial. É grande o volume dessas ações que estão lotando a Justiça de 1º Grau, os Juizados Especiais, a Justiça Estadual e a Justiça Federal. Lamentavelmente, a jurisprudência do STJ, seguindo um critério eminentemente prático, entendeu que o consumidor pode escolher, ao seu alvedrio, em litigar apenas com a concessionária, o que leva a demanda para a Justiça Estadual, ou com a concessionária e a agência reguladora, caso em que se torna competente a Justiça Federal, diante da presença da autarquia. A posição jurisprudencial prevalente não contou com o meu entendimento, pois penso que não é possível mexer em cláusulas contratuais preestabelecidas com o Estado, como sói acontecer com o valor das tarifas, sem a presença do Estado, via agência reguladora. Entretanto, quando o STJ foi chamado a decidir sobre o tema, em conflito de competência, já estavam as Justiças – Estadual e Federal –, abarrotadas de demandas. Entendeuse, então, para evitar tumulto, manter as demandas da forma escolhida pelo autor. 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

“ Tudo passa e termina no Poder Judiciário, perdendo a sociedade brasileira, lamentavelmente, as tradicionais formas alternativas de resolução de conflitos.” Sobre o tema de fundo, valor das tarifas, vem o Superior Tribunal de Justiça afirmando não ser possível a atualização pelos índices de preços ao consumidor, em razão dos contratos de concessão estabelecerem outro parâmetro de atualização. A partir daí, já existe um posicionamento bastante explícito em diversas decisões tomadas pela Presidência da Corte e confirmadas na Corte Especial, posição que se reflete nos julgamentos das Turmas de Direito Público, no sentido de observar-se o contrato firmado entre o Estado e as concessionárias, cujas cláusulas são consideradas quando a ANEEL traça a política de tarifas, pois se obedece ao contrato. Uma outra questão, que é digna de realce, diz respeito à incidência do ICMS sobre o consumo de energia elétrica. Até a Constituição de 88, havia, a respeito do consumo de energia elétrica, imposto único, e os questionamentos eram bem menores. Com a nova Carta, extinto o imposto único, passou a incidir o ICMS sobre o consumo de energia elétrica, surgindo muitas divergências, e mesmo dúvidas, visto que é o ICMS imposto extremamente complexo. A grande discussão foi sobre a forma de cálculo. Houve discussões acirradas, ainda à época do Decreto-Lei 406, e o Superior Tribunal de Justiça, contra meu voto, estabeleceu que, até a vigência do Decreto-Lei 406, era absurdo o cálculo do ICMS integrando a base de cálculo do seu próprio imposto. Após a Lei Complementar 87/96, pacificou-se a jurisprudência na Corte, prevalecendo o entendimento de que o ICMS incide sobre si mesmo, afirmando-se, então, que se faz o cálculo por dentro. Esta posição está hoje estabilizada com a também posição do Supremo Tribunal Federal. A sistemática causa considerável aumento no preço da energia. Diferentemente das demais mercadorias, a energia elétrica, assim considerada para efeitos tributários, tem base de cálculo com a sua própria inclusão, ou seja, o ICMS inclui o próprio ICMS. Muitos outros aspectos estão, ainda hoje, sendo questionados, como, por exemplo, o questionamento quanto à dedução e creditamento do ICMS incidente sobre a energia elétrica utilizada como insumo.


Em relação à energia elétrica, o tratamento vinha sendo diferente, pois não se via, no seu consumo, um insumo, mas o Superior Tribunal de Justiça, em um precedente de grande importância e de grande alcance social, afirmou o seguinte: “Temos de estabelecer qual é o objeto social da empresa para saber se na mercadoria negociada a energia elétrica pode ser considerada como insumo”. Por exemplo, nas padarias e estabelecimentos afins, que usam a energia elétrica para fazer funcionar os fornos e estufas, entende-se que há utilização da energia elétrica como matéria-prima, permitindo-se a dedução como tal. O mesmo não ocorre, por exemplo, com as lojas e os shoppings centers, uma vez que o consumo de energia elétrica não pode ser considerado como matéria-prima, e sim despesa operacional. Essa posição ficou chancelada pelo Superior Tribunal de Justiça, embora existam, ainda, algumas resistências com relação a esse entendimento. Um outro questionamento muito interessante diz respeito ao momento de geração da energia elétrica. Os Estados produtores de energia elétrica, onde estão as usinas hidroelétricas, fazem reivindicação do ICMS incidente sobre a energia produzida nos seus territórios. O Estado de Goiás, por exemplo, é um dos que vêm reivindicando, por ter dentro da sua área territorial usinas hidroelétricas que fornecem energia para outros Estados, como Minas Gerais e Tocantins – Estados que, pela sistemática atual, geram a energia a partir das usinas de distribuição. O entendimento do STJ foi de que, na primeira operação, que é a de produção de energia elétrica, não existe geração de ICMS, o que só existe na segunda operação, que é a distribuição, cabendo a arrecadação do ICMS ao Estado onde estão as empresas concessionárias ou permissionárias. Ainda há uma outra questão de relevância, que ainda hoje é objeto de disputa pelos Estados, referente à incidência do ICMS sobre a chamada “demanda reservada”. O que vem a ser “demanda reservada”? As empresas, preocupadas com a precariedade de energia, reservam um determinado percentual de fornecimento perante as concessionárias, a fim de não prejudicar sua produtividade, caso haja um gasto maior. Entretanto, o quantitativo reservado não vem a ser utilizado em sua totalidade, pois, ao final de um certo período, o consumo vem a ser menor do que o previsto e reservado. Pergunta-se, então: o ICMS incide sobre a energia efetivamente consumida ou sobre a energia reservada? As decisões que chegam dos tribunais, e até dos juízes de 1º Grau, são riquíssimas em detalhes técnicos. Foi preciso entender os detalhes técnicos do processo de geração de energia elétrica para decidir sobre a incidência do ICMS. A jurisprudência que tem prevalecido nas Turmas de Direito Público é no sentido de que o ICMS incide sobre o consumo efetivo de energia elétrica e não sobre uma mera expectativa. Esse entendimento retira das empresas uma considerável sobrecarga de tributo, o que, entretanto, não agrada aos Estados, que continuam a tentar alterar a jurisprudência, até agora sem sucesso.

Temos um questionamento, hoje, muito sério, e que não diz muito respeito às concessionárias de energia elétrica, nem à ANEEL, mas à própria União, via ELETROBRÁS: tratase da devolução do compulsório de energia elétrica da Lei 4.156/62. E por que é importante essa questão? A devolução do compulsório de energia elétrica é importante porque, na realidade, o desfalque econômico não é pequeno e o preço será pago por todos os brasileiros. O empréstimo compulsório de que tratamos obedece a uma legislação especial, estando prevista, em princípio, a devolução sobre a forma de ações da ELETROBRÁS. Como a empresa teve um fabuloso lucro, foi conveniente, à época, alterar a legislação para fazer-se a devolução em dinheiro. O primeiro questionamento em torno desse empréstimo está no quantitativo a ser devolvido, entendendo-se que, por se tratar de empréstimo, deverá ser devolvido no mesmo quantitativo tomado com a promessa de devolução, característica primeira do contrato coativo, empréstimo compulsório. Assim, discutese: esse empréstimo deve ser devolvido pelos índices de correção monetária, que atuam em todos os processos judiciais? Adotando-se essa forma de devolução, grande será o volume de dinheiro a ser desprendido pela ELETROBRÁS, além de se descartar a legislação específica que rege a espécie empréstimo compulsório. Também está em discussão o prazo prescricional quanto ao creditamento dos juros do empréstimo, considerando-se as diversas alterações legislativas sobre a incidência dos frutos civis. O STJ, em alguns julgamentos já concluídos, estabeleceu que o prazo é de 20 anos, mas o questionamento é em relação ao início do prazo da prescrição. Toda a sociedade jurídica espera uma definição. Uma outra controvérsia que já está no Judiciário, embora não tenha chegado ao STJ, é o encargo emergencial da Lei 10.438/02, que consiste em um adicional tarifário específico, exigência compulsória instituída aos consumidores em geral, com a finalidade de incentivar o racionamento de consumo. A pergunta que se faz é a seguinte: qual a natureza jurídica desse adicional? É adicional em razão de intervenção no domínio econômico e, dessa forma, regulado pelas regras do direito tributário ou se trata de uma mera sobretarifa? As discussões espraiam-se na imaginação dos doutrinadores e já nos preparamos para enfrentá-las no STJ. Contudo, parece que o maior problema da incidência tributária exacerbada diz respeito ao PIS e à COFINS. Tratase de contribuições extremamente injustas, por gravarem o resultado econômico do empreendimento, sem questionar se incidem sobre o lucro ou não. Em tese, pode uma empresa operar com prejuízo e, assim mesmo, pagar o tributo pelo faturamento bruto. A política tributária exacerbada onera, sobretudo, o consumidor da energia elétrica, principalmente quando se trata de mercadoria cujo consumo é de absoluta indispensabilidade. Essas são as questões que, atualmente, estão sendo apreciadas no STJ e que foram aqui realçadas por me parecerem relevantes. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


Plenário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Recife, onde foi realizada a outorga dos troféus Dom Quixote de La Mancha e Sancho Pança, com a mesa composta por (da esquerda) Orpheu Santos Salles, Editor da Revista Justiça & Cidadania, Desembargador Federal José Baptista Filho, Presidente do TRF– 5, 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007


Recife, 05.11.07

Ministro Francisco Peçanha Martins, 1º Vice-Presidente do STJ e Presidente da Confraria Dom Quixote, Dr. Tadeu Alencar, Procurador-Geral do Estado de Pernambuco, representando o Governador Eduardo Campos, e Desembargador Jones de Figueiredo Alves, Diretor da Escola de Magistratura de Pernambuco. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


solenidade de out Dom quixote e Sa

Ministro Djaci Falcão recebendo o troféu Dom Quixote de seu filho Dr. Luciano Falcão.

Ministro Djaci Falcão entregando o troféu Sancho Pança ao seu filho Ministro Francisco Falcão.

Ministro José Augusto Delgado, que recebeu das mãos do Dr. Luciano Ramos Volk o troféu Sancho Pança. 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007


orga dos troféus ncho Pança

A

solenidade de outorga dos troféus Dom Quixote de La Mancha e Sancho Pança, patrocinadas pela Confraria Dom Quixote e Revista Justiça & Cidadania, realizada no Plenário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em Recife, deu oportunidade a que as aventuras vividas pelas figuras criadas por Miguel Cervantes de Saavedra fossem expostas com vigor e dramaticidade cultural, expressando o sentido da festividade. Dom Quixote nos transmite uma lição de purificação do mundo pelo heroísmo, não por um heroísmo de tipo hercúleo, mas de outro feito de fé intangível, de pureza perfeita, e de um atributo que a todos define – o dom de si mesmo. O dom de si mesmo salva o Quixote, e o faz triunfar de seus fracassos e enganos pelo exemplo de que deixou semeada a consciência dos tempos seguintes. Este mundo de hoje reclama a volta de Dom Quixote pelo sentido de pureza, fidelidade, amor, coragem, renúncia, dignidade e determinação, por sentir que sem ele a sua vida não teria sentido. De todos os lados, sob os mais variados e diversos nomes e as mais contraditórias aparências, o que o homem dos nossos dias pede e reclama, o que ansiosamente espera é o retorno de Dom Quixote. Eis a razão pela qual, mais do que estivesse vivo e presente entre nós, Dom Quixote é hoje de maior atualidade do que era para os seus contemporâneos, quando percorria os ensolarados caminhos de Espanha. O Ministro Francisco Peçanha Martins, na presidência da mesa e como presidente da Confraria Dom Quixote, expôs os objetivos da festividade que visava consagrar as personalidades que iriam ser outorgadas por merecedoras e terem se destacados pelas lutas em defesa da moralidade e direitos da cidadania. Dando início à solenidade como mestre de cerimônia, o Diretor da Revista, Tiago Salles, chamou o Dr. Luciano Falcão para fazer a

Ministro Humberto Martins recebendo o troféu Dom Quixote das mãos de seu irmão Dr. Mário Martins, Proc. de Justiça de Alagoas.

Desembargador José Baptista de Almeida Filho, Presidente do TRF-5, que recebeu do Ministro Peçanha Martins o troféu Dom Quixote.

Desembargadora Federal Margarida Cantanelli, do TRF-5, entregando troféu Sancho Pança ao Desembargador Federal Carlos Fernando Mathias, do TRF-1. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


Desembargador Federal Ridalvo Costa, do TRF-5, recebendo o Troféu Dom Quixote do Minstro José Delgado.

Desembargador Federal Geraldo Apoliano, do TRF-5, recebendo o Troféu Dom Quixote do Ministro Humberto Martins.

Desembargador Ubaldo Ataíde Cavalcante recebendo o Troféu Dom Quixote de sua esposa Ana Kérsia Cavalcante. 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

entrega ao seu pai, o eminente Ministro Djaci Falcão, enquanto o nosso Editor referenciava o homenageado com a enumeração dos seus méritos, desde o seu ingresso na magistratura em 29/12/1944, até a sua aposentadoria, em 30/01/1989, tendo, nesse período, exercido os cargos de Presidente do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal. A seguir, foi chamado o Diretor Jurídico da Revista, Luciano Ramos Volk, para fazer a entrega do troféu Sancho Pança ao Magnífico Ministro José Augusto Delgado. Na oportunidade, nosso Editor fez referência ao homenageado, descrevendo a fulgurante carreira jurídica desse ilustre e culto magistrado e emérito professor, cuja dedicação e fidelidade à justiça o consagra como um dos mais eminentes juristas do país. É constante colaborador da Revista Justiça & Cidadania. Em seguida, foi chamado o Ministro Djaci Falcão para fazer a entrega do troféu Sancho Pança ao seu filho, Ministro Francisco Falcão Neto, que, após ter desempenhado, na magistratura de Pernambuco, os altos cargos de Presidente do Tribunal Regional Eleitoral e do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, galgou com desempenho jurídico ímpar a magistratura no Superior Tribunal de Justiça. É colaborador da Revista Justiça & Cidadania. O Ministro Humberto Soares Martins foi chamado para fazer a entrega do troféu Dom Quixote ao Desembargador Fernando Cerqueira Norberto Santos do Tribunal de Justiça de Pernambuco, ocasião em que o homenageado foi referenciado por seu desempenho na magistratura, desde o seu ingresso em outubro de 1982, tendo exercido funções no Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco, coordenado o programa de treinamento de magistrados com a Universidade e a Suprema Corte da Geórgia (USA). O presidente da Confraria, Ministro Peçanha Martins, foi chamado para fazer a entrega do troféu Dom Quixote ao Desembargador Federal José Baptista de Almeida Filho, Presidente do Tribunal Regional Federal da 5º Região. Nas referências feitas ao ilustre presidente do TRF pelo Editor da Revista, sobressaem os cargos exercidos na Justiça do Trabalho, 6ª Região, em 1971, na Procuradoria da República, em 1983, e seu ingresso na Justiça Federal, em 1984. Convidada, a ex-presidente do TRF da 5ª Região, Desembargadora Federal Margarida


de Oliveira Cantarelli, fez a entrega do troféu Sancho Pança ao Desembargador Federal Carlos Fernando Mathias, que exerce funções no TRF da 1ª Região, em Brasília, estando convocado como Ministro no Superior Tribunal de Justiça, sendo já membro da Confraria Dom Quixote. É assíduo colaborador da Revista Justiça & Cidadania. O Ministro José Augusto Delgado foi chamado para fazer a entrega do troféu Dom Quixote ao Desembargador Federal Ridalvo Costa, decano dos Desembargadores, tendo ingressado na justiça Federal em 1968 e exercido as presidências do Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco e do Tribunal Regional Federal. Exerceu a advocacia e o magistério. O Promotor de Justiça de Alagoas, Dr. Mario Martins, foi chamado para fazer a entrega do troféu Dom Quixote ao Ministro Humberto Soares Martins, seu amigo e companheiro das lides judiciais em Alagoas. O homenageado exerceu a advocacia em Alagoas, tendo sido presidente da OAB em 4 biênios. Foi professor catedrático nas cadeiras de Direito Penal e Processo Penal na Universidade Federal de Alagoas, e Desembargador do Estado, nomeado em 22/03/2002, exerceu a Vice-Presidência e Corregedoria do Tribunal Regional Eleitoral. Tem várias obras publicadas e é colaborador costumeiro da Revista Justiça & Cidadania. O Desembargador Federal Francisco Geraldo Apoliano Dias, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal de Pernambuco, recebeu o troféu Dom Quixote das mãos do Ministro Humberto Martins. O homenageado exerceu as funções de Fiscal do Trabalho em Salvador, Bahia, foi Procurador da República no Piauí, exerceu a judicatura federal em Teresina, Fortaleza e Recife, exerceu também a Vice-Presidência e a Corregedoria do TRF da 5ª região, e, inclusive, atuou como Desembargador no Tribunal Regional Eleitoral. É detentor de vários cursos de Direito, além de Doutorado em Direito pela Universidade de Buenos Aires. É colaborador da Revista Justiça & Cidadania. O Desembargador Federal Ubaldo Ataíde Cavalcante recebeu o troféu Dom Quixote de sua esposa, Sra. Ana Kersia Cavalcante. O homenageado exerceu funções de Agente Fiscal de Tributos do Distrito Federal, Defensor Público do Distrito Federal, Promotor do Ministério Público Federal, Procurador da República, Juiz Federal nos Estados do Paraná, Paraíba, Rio de

Desembargador Federal Marcelo Navarro, do TRF-5, recebendo o troféu Dom Quixote das mãos da Desembargadora Federal Margarida Cantarelli, do TRF-5.

Desembargador Federal Marcelo Navarro, do TRF-5, depois de ter recebido o troféu Dom Quixote do Ministro José Delgado.

Procurador da República Dr. Joaquim de Barros Dias recebendo o Troféu Dom Quixote de sua esposa Janete Falcão de Barros Dias. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


Desembargador Jones de Figueiredo Alves, Diretor da Escola de Magistrados de Pernambuco, recebendo o troféu Dom Quixote de sua esposa Socorro Figueiredo Alves.

Desembargador José Fernando Lemos recebendo o troféu Dom Quixote do Desembargador Jones Figueiredo Alves.

Desembargador Fernando Cerqueira Norberto Santos, do TJ/PE, recebendo o troféu Dom Quixote de sua esposa Zulene de Lima Norberto. 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

Janeiro e Pernambuco, e Desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. É colaborador da Revista Justiça & Cidadania. A Desembargadora Federal Margarida de Oliveira Cantarelli, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, recebeu o troféu Dom Quixote das mãos do Desembargador Federal Marcelo Navarro Ribeiro Dantas. A homenageada exerceu a advocacia, tendo sido VicePresidente da OAB/PE, além de vários cargos na Administração do Estado de Pernambuco. Foi Chefe de Gabinete do Ministro da Educação em 1990/1991, tendo sido nomeada Desembargadora em 09/12/1999 e exerceu a Presidência no biênio 2003/2005. É professora catedrática da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco e da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. O Ministro José Augusto Delgado procedeu a outorga do troféu Dom Quixote ao Desembargador Federal Marcelo Navarro Ribeiro Dantas. O homenageado foi nomeado para o Tribunal Regional Federal da 5ª Região em dezembro de 2003. Exerceu o Ministério Público, a Presidência do Conselho Penitenciário e a Procuradoria-Geral da Assembléia, no Rio Grande Norte. Foi Procurador da República. É Vice-Diretor da Escola da Magistratura Federal da 5ª Região, Coordenador-Regional dos Juizados Especiais da 5ª Região e Professor do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte desde janeiro de 1993. O Procurador Regional da República em Pernambuco, Joaquim José de Barros Dias, recebeu o troféu Dom Quixote da mãos de sua esposa, Sra. Janete Falcão de Barros Dias. O homenageado é colaborador da Revista Justiça & Cidadania. O Desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Jones Figueiredo Alves, recebeu o troféu Dom Quixote das mãos de sua esposa, Sra. Socorro Figueiredo Alves. É diretor da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco. O homenageado ingressou na Magistratura em 1995, atuando como Juiz em várias Comarcas do interior. Presidiu os Colégios Recursais dos Juizados Especiais de Pequenas Causas e dos Juizados Especiais Cíveis por dois biênios. É autor de várias monografias e colaborador da Revista Justiça & Cidadania. O Desembargador Luiz Carlos de Barros Figueiredo, do Tribunal de Justiça de Pernambuco, fez a outorga do troféu Dom Quixote ao


seu colega José Fernandes de Lemos. O homenageado exerceu a advocacia até 1981, quando foi nomeado Juiz de Direito com exercício no interior do Estado. Em 1985, foi promovido para a Capital. Assumiu a presidência da Associação dos Magistrados de Pernambuco por três biênios. Em 2000, integrou a composição do Tribunal de Justiça de Pernambuco no cargo de Desembargador. É colaborador da Revista Justiça & Cidadania. O Desembargador Luiz Carlos de Barros Figueiredo, do Tribunal de Justiça de Pernambuco, recebeu o troféu Dom Quixote pelas mãos de sua esposa, Sra. Maria Tereza Vieira de Figueiredo. O homenageado é Pós-graduado, com especialização em Direito Público e Privado pela Faculdade de Direito de Recife. Coordena a Comissão Nacional Pró Convivência Familiar e Comunitária. Tornou-se Desembargador no ano de 2005. É autor de vários livros e matérias publicadas. O Juiz Federal, Francisco Antonio de Barros e Silva Neto, exerce função em Vara Cível da Capital. Foi Juiz substituto em Petrolina e é altamente conceituado, estudioso, culto, tendo se revelado altamente capacitado nas letras jurídicas. Recebeu a outorga do troféu Dom Quixote das mãos do Decano do Tribunal, Desembargador Rivaldo Costa. É colaborador da Revista Justiça & Cidadania. A advogada Vanuza Sampaio é graduada pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. É membro do Insituto Brasileiro de Direito Tributário e do Instituto Brasileiro do Petróleo, e mestranda em Direito Empresarial pela Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro. Transferiu-se para o Rio de Janeiro onde mantém com pleno sucesso uma renomada banca de advogados. Recebeu a outorga do troféu Dom Quixote pelas mãos do Secretário de Redação da Revista, David Ribeiro Salles, por delegação do editor da Revista, que preferiu usar da palavra no momento para expressar a sua admiração e respeito à valorosa e conceituada causídica pernambucana. O advogado Josias Albuquerque da Silva, Presidente da Federação do Comércio de Pernambuco, dirigente do SENAC/SESC de Pernambuco, onde realiza extenso e qualificado programa educacional em benefício da juventude de Pernambuco. Recebeu a outorga do troféu Dom Quixote pelas mãos de sua dileta esposa, Sra. Erotides Albuquerque. O homenageado é

Desembargador Luiz Carlos de Barros Figueiredo, do TJ/PE, recebendo o troféu Dom Quixote de sua esposa Maria Tereza Vieira de Figueiredo.

Juiz Federal Francisco Antonio de Barros e Silva Neto recebendo o troféu Dom Quixote das mãos do Desembargador Federal Ridalvo Costa, do TRF-5.

Doutora Vanuza Sampaio recebendo o troféu Dom Quixote do Secretário de Redação da Revista Justiça & Cidadania, Dr. David Salles. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17


Dr. Josias Albuquerque da Silva, Presidente da FECOMERCIO/ PE, recebendo o Troféu Dom Quixote de sua esposa Sra. Erotides Albuquerque.

Dr. Armando Monteiro Filho, que recebeu o troféu Dom Quixote das mãos de seu neto Dr. Sérgio Monteiro Cavalcanti.

Dr. Antonio Campos recebendo o troféu Dom Quixote das mãos do Ministro Francisco Falcão. 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

colaborador da Revista Justiça & Cidadania. O advogado Antonio Campos, além de competente profissional operador do direito, é também exímio e delicado poeta, além de magnífico letrista, revelando-se culto seguidor do jurista e também extraordinário escritor e poeta, o seu saudoso pai Maximiano Campos, que produziu belíssimos versos, como no significativo “Apelo ao Quixote”: “Na loucura, só na loucura, estarás liberto. O teu mito é sol, liberdade e céu aberto”. O Dr. Antonio Campos recebeu o troféu Dom Quixote das mãos do Ministro Francisco Falcão. É colaborador da Revista Justiça & Cidadania. A solenidade trouxe, além da satisfação de aumentar o rol dos que comungam com as idéias e princípios transmitidos por Cervantes ao cavaleiro Dom Quixote, fazendo mais membros da confraria Dom Quixote, e entre os novos companheiros, esta figura extraordinária do varão pernambucano, Armando Monteiro Filho, que recebeu o troféu Dom Quixote das mãos de seu neto, Dr. Sergio Monteiro Cavalcanti. O homenageado iniciou-se cedo na política universitária, foi presidente da União dos estudantes de Pernambuco e da UNE. Em 1947, com 22 anos, participou ativamente na campanha de Barbosa Lima Sobrinho ao Governo de Pernambuco. Em 1950, foi eleito Deputado Estadual na campanha que elegeu Agamenon Magalhães, seu sogro. Em 1954, foi eleito Deputado Federal com a maior votação do Estado, sendo reeleito em 1958. Foi Ministro da Agricultura, indicado pelo Ministro Tancredo Neves, no Governo Parlamentarista do Presidente João Goulart. Foi amigo do Presidente Jango, combateu o regime militar em 1964, o que lhe valeu sérias represálias. Pertence à estirpe da geração de homens públicos que engrandeceram a Pátria e a terra de Pernambuco, como os saudosos varões Agamenom Magalhães, Pedro Ernesto, Gilberto Freire, Helder Câmara, Apolônio Salles, José Ermírio de Moraes, Maximiano Campos, Marcos Freire, Barbosa Lima Sobrinho, Miguel Arraes, e outros viventes como ele, Oswaldo Lima, Marco Maciel, Roberto Magalhães, Senador Jarbas Vasconcellos, Ariano Suassuna, Governador Eduardo Campos e o jurista emérito, o Ministro Djaci Falcão.


Foto: CEDI/Câmara dos Deutados

Miguel Arraes A propósito da homenagem póstuma prestada em memória do saudoso Governador Miguel Arraes, nosso editor fez o pronunciamento que transcrevemos pela oportunidade do evento e acréscimo ao merecido elogio à figura do homenageado. É oportuno, nesta homenagem, lembrar um episódio ocorrido em Paris, em uma das reuniões que o Presidente João Goulart promovia, em suas viagens, com exilados e políticos. Nessa reunião, estavam presentes, entre outros: Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Rubens Paiva, Roberto Alves, José Gomes Talarico, Florestan Fernandes, Caio Prado Junior, Raul Riff, Pedro Toloais, Glauber Rocha e Fernando Gaspariam. A causa que motivou a torpeza decorreu de uma discussão pública havida no aeroporto de Recife, entre o Deputado e o comandante do IV Exército, General Joaquim Justino Alves Bastos, Governador Miguel Arraes (in memoriam) uns quinze dias antes do golpe militar, por ter o General chamado Gregório de comunista e agitador, tendo sido retrucado pelo Deputado, que o chamou de reacionário e mal-educado, tendo havido uma calorosa discussão, com ameaça de prisão, que só não ocorreu devido à imunidade do parlamentar. Depois de várias horas de muita conversa sobre perspectivas na política no Brasil, o Presidente João Goulart perguntou a Arraes: “Governador Miguel Arraes, o senhor relatou sua deposição do Governo de Pernambuco, a prisão e o degredo em Fernando Noronha, detalhando as condições dos tratamentos que lhe foram dispensados. Ocorre que, entre os fatos que me contaram das torturas, mortes e outras excrescências praticadas pelos militares em Pernambuco, avultam de crueldade a prisão e as torturas sofridas pelo Deputado Federal Gregório Bezerra. Eu gostaria de saber, em detalhes, o que realmente ocorreu e o porquê das barbaridades contra o velho Deputado.” O que aconteceu ao Gregório Bezerra, Presidente João Goulart, foi o ato mais torpe e desprezível praticado pela Revolução, porque foi feito em público e em desprezo à condição de um ser humano. Na história do Brasil, esse ato horroroso e acanalhado, Deputada Federal Ana Arraes recebendo do Ministro acontecido a um membro do Congresso Nacional, só é comparável Peçanha Martins o quadro do Quixote e Sancho ao esquartejamento de Tiradentes nas ruas do Rio de Janeiro. Pança, em homenagem póstuma a seu pai, o glorioso Ao ser preso, foi brutalmente espancado e encaminhado ao Governador Miguel Arraes. Quartel do Comando do Exército em Recife, onde foi despido e jogado numa cela, permanecendo incomunicável e a pão e água. Vestido apenas com um calção de física e descalço, prestou seguidos depoimentos, acusado de ter organizado, juntamente com Julião, as invasões de terras de Usinas e fazendas, sendo continuadamente espancado. Numa sessão de espancamento, estando algemado, foi chicoteado pelo próprio General Justino, que, em altos brados, o chamava de comunista, traidor da Pátria e a serviço da Rússia e de Cuba. Amarrado nos pulsos com uma corda, foi colocado num jipe descoberto e levado a desfilar pela cidade, descalço e vestido com um calção. Ao chegar no centro da cidade, apearam-no do jipe, amarraram-no na carroceria do jipe e foi obrigado a caminhar. Depois de caminhar por várias ruas, esgotado e sem condições de continuar, pediu para parar, o que lhe foi negado, ocorrendo um fato extraordinário: o povo que se postava atônito com o degradante espetáculo, vendo o estado do velho deputado, esgotado e trôpego, sem condições de caminhar, puseram-se a gritar: “Pára! Pára! Pára!” O oficial do exército que comandava o torpe e triste espetáculo, diante da reação popular, parou o jipe, e Gregório Bezerra, exausto, sentou-se na rua. Esta cena foi fotografada e publicada nos jornais, e constitui o fato mais degradante praticado pela “Revolução em Pernambuco”. Ao terminar a tristonha exposição, o Governador Miguel Arraes tinha os olhos marejados de lágrimas, no que foi acompanhado pelos presentes, e o cineasta Glauber Rocha, em lágrimas, bradava: “Bandidos! Bandidos!” 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


O sistema financeiro imobiliário: Algumas reflexões Sylvio Capanema de Souza 1º Vice-Presidente do TJ/RJ

O

redirecionamento do eixo f ilosóf ico do direito brasileiro, provocado pelo advento da Constituição Federal de 1988, está nos conduzindo à socialização, deixando para trás o individualismo, característico do Séc. XIX. Do patrimonialismo exacerbado do Estado Liberal caminhamos em direção à solidariedade social. O positivismo estrito deu lugar a um direito principiológico, amparado em valores fundamentais, que devem pairar, soberanamente, sobre o texto da lei. Novos paradigmas, emanados da Carta Magna, passaram a inspirar o direito privado, tornando cada vez mais tênue a velha dicotomia entre o direito público e o privado. Fácil será compreender o imediato e decisivo impacto que estes novos valores provocaram no mundo dos contratos imobiliários, tão impregnados de densidade socia l e econômica. A função social e a boa-fé objetiva passaram a ser cláusulas implícitas em todos os contratos, especialmente os imobiliários, o que permitirá ao Poder Judiciário aferir se eles estão atendendo ao interesse coletivo e se os contratantes estão se conduzindo como se conduziriam homens honestos. No passado, não muito distante, o mercado de compra e venda de imóveis era regido pelos princípios da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda, levados ao exagero, como verdadeiros dogmas, e era exercido de maneira quase amadorística, sem que houvesse mecanismos eficientes para proteger os construtores e os adquirentes de imóveis. O Código Bevilacqua, fiel à tradição liberal, pouco interferia na formulação dos contratos imobiliários, e o Estado entendia que seu único dever era o de assegurar a liberdade das partes, no momento da celebração do contrato, como se bastasse ela para garantir seu equilíbrio ético e econômico, o que se revelou, com o tempo, uma das mais perversas falácias. Muitos empreendimentos imobiliários eram lançados, sem a menor base de sustentação jurídica e econômica, 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

atraindo iludidos compradores, ávidos pela realização do acalentado sonho da casa própria. No curso da construção, eram as obras abandonadas, surgindo, no perfil urbano, os trágicos “esqueletos”, que eram o mais eloqüente atestado da insegurança jurídica e da falta de uma legislação adequada, capaz de assegurar, o mais possível, o cumprimento dos contratos. A disciplina do condomínio voluntário, constante do Código Civil passado, era de todo inadequada para os novos tempos de concentração urbana, com a inevitável necessidade de criar novas unidades habitacionais, capazes de absorver a demanda cada vez mais aquecida. A perversa especulação do solo urbano, cada vez mais inacessível às classes média e pobre, fez surgir o fenômeno da verticalização das cidades, “empilhando” as moradias umas sobre as outras e obrigando as pessoas a viverem confinadas em espaços cada vez menores. Um novo modelo de condomínio nascia, em planos horizontais, sem uma disciplina jurídica própria, capaz de enfrentar e compor os inevitáveis conflitos que explodiam nestes espaços comuns. A Lei 4.591/64, que se deve ao gênio criador do mestre Caio Mário, veio mitigar esses problemas, criando, pela vez primeira, instrumentos poderosos para proteger os adquirentes das unidades imobiliárias. O condomínio, mais tarde denominado edifício, permitiu a coexistência de partes comuns e exclusivas, e foi disciplinado em suas duas fases distintas: a da incorporação, quando lançado e vendido o empreendimento, e a da convivência entre os moradores, depois de entregue e instalado o edifício. Ao criar a figura do incorporador, tornando-o civil e penalmente responsável pela conclusão do empreendimento, ao tornar obrigatório o registro prévio do memorial descritivo, do contrato de construção e da minuta da Convenção, a Lei 4.591/64 conseguiu enfrentar o desafio e vencê-lo, mitigando os riscos dos negócios e transmitindo confiança ao mercado. Contudo, o crescimento contínuo e quase incontrolável


Foto: Rosane Naylor / EMERJ

das cidades, aliado à especulação e ao caos econômico provocado pela inf lação, que alcançou patamares apocalípticos, logo tornou a Lei 4.591/64 insuficiente para manter o equilíbrio do mercado. O problema mais instigante era a obtenção de financiamentos, indispensáveis à realização das obras, e a garantia de seus retornos, com o pagamento pontual dos mútuos concedidos. Todos sabemos que a ponte que liga a economia ao direito chama-se crédito, e seu pilar de sustentação é sua garantia. O mecanismo clássico da garantia hipotecária foi se mostrando cada vez mais inadequado, principalmente em razão da enorme dificuldade em executar o devedor e levar o imóvel à hasta pública, o que, na prática, demanda vários anos, afastando e apavorando os investidores e incorporadores. A solução da chamada execução extrajudicial, que garantiria a realização rápida dos créditos, para não onerar os demais condôminos, durante a construção, não se revelou tão eficiente, como se supunha, diante de recursos protelatórios, manejados pelos inadimplentes e que sustavam a realização das praças. Tornou-se indispensável que novos mecanismos de captação de recursos fossem criados, a fim de garantir o fluxo dos capitais necessários para manter o equilíbrio entre a oferta e a demanda de novas unidades, além de proteger todos os segmentos do mercado, incluindo os investidores, incorporadores e compradores. A garantia da alienação fiduciária, quando estendida aos imóveis, pela Lei 9.514/97, deu novo ânimo ao mercado, facilitando, e muito, o acesso ao crédito, já que o financiador não mais ficava na exasperante dependência da execução hipotecária, quando se tornava o comprador inadimplente, bastando-lhe manejar o interdito de reintegração de posse, ao qual a lei assegurava a concessão de liminar, uma vez atendidos determinados pressupostos. A velocidade vertiginosa das transformações sociais e econômicas, em pouco tempo, tornou defasada a legislação em que tantas esperanças foram depositadas. O advento do Código de Defesa do Consumidor e o impacto dos paradigmas da função social do contrato e da boa-fé objetiva, fizeram com que fossem admitidas, em número cada vez maior, ações aparelhadas pelos adquirentes, pugnando pela revisão dos contratos, sob o argumento da lesão ou da onerosidade excessiva. As teorias revisionistas, alicerçadas todas na velha cláusula rebus sic stantibus, conquistaram seu lugar de destaque na lei consumerista e no novo Código Civil. Mas não era só isso. Havia muito mais. Era freqüente que os adquirentes das unidades suspendessem os pagamentos das parcelas do preço, e, o que é dramaticamente pior, das cotas condominiais e do IPTU, enquanto litigavam por anos, mantendo a posse dos imóveis, onerando os demais condôminos e a sociedade como um todo. Quando, finalmente, ao longo de dolorosa via crucis, as ações se ultimavam, e era julgada improcedente a pretensão,

o débito condominial e fiscal era, muitas vezes, superior ao real valor de mercado do imóvel. Como se não bastasse, essa situação afugentava os possíveis arrematantes, principalmente depois que o artigo 1345 do novo Código Civil passou a responsabilizar o adquirente pelos débitos condominiais existentes antes da alienação. Continuava também em aberto a torturante questão da falência da construtora ou incorporadora, o que paralisava a obra, para desespero dos compradores. Os recentes episódios que abalaram o mercado imobiliário, com a falência de uma das maiores incorporadoras, são prova eloqüente de que a legislação já não mais atendia às necessidades do mercado, mergulhando-o na falta de credibilidade. Foi neste quadro desestimulante que adveio, finalmente, a Lei 10.931/04, que trouxe ao sistema novas modalidades de garantias para todos os seus segmentos. Um de seus objetivos prioritários era o de assegurar, com o fortalecimento da efetividade e da credibilidade do novo sistema financeiro, a manutenção de um fluxo contínuo de capitais, o que é indispensável para atender a uma demanda cada vez mais aquecida. O mercado não pode mais sobreviver em sístoles e diástoles, ao sabor das conjunturas nacionais e internacionais, e das oscilações das bolsas. É necessário captar recursos próprios, fazendo circular, com 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


“Muitos empreendimentos imobiliários eram lançados, sem a menor base de sustentação jurídica e econômica, atraindo iludidos compradores, ávidos pela realização do acalentado sonho da casa própria.”

agilidade, os créditos imobiliários, criando um novo mercado financeiro, lastreado em títulos vinculados a imóveis. A Lei 10.931/04 preencheu as lacunas deixadas pela legislação anterior, criando mecanismos poderosos de garantia a todas as partes envolvidas. A segurança dos incorporadores passou a repousar no sistema fiduciário e na securitização de seus créditos. A dos compradores, com a criação, ainda que facultativa, do patrimônio de afetação, que segrega os recursos para o empreendimento, permitindo a sua continuação, pelos condôminos, mesmo diante da falência da construtora. Neste passo, é oportuno lembrar que o criticável caráter facultativo do novo sistema já vem sendo, na prática, superado, já que cada vez mais os agentes financeiros só vêm concedendo financiamentos se adotado a afetação patrimonial. Finalmente, para os investidores e financiadores, a nova lei, como já se disse, criou um sofisticado sistema de circulação de créditos. Basta lembrar, a título exemplificativo, a criação das Letras de Crédito Imobiliário (LCI), das Cédulas de Crédito Imobiliário (CCI), das Cédulas de Crédito Bancário, que asseguram os investimentos e a continuação dos fluxos, inserindo o mercado, definitivamente, na economia de primeiro mundo. Além disso, a Lei 10.931/04 garante a uniformização dos índices e critérios de reajustes, desde que as operações de crédito tenham prazo igual ou superior a 36 meses, e isto foi possível graças à criação da CCI, que é o instrumento que representa créditos vinculados e negócios imobiliários, especialmente os créditos decorrentes de comercialização de unidades imobiliárias. Com isso, imprime-se celeridade à circulação dos créditos, como se depreende da simples leitura dos artigos 18 a 25 da Lei 10.931/04. Quanto a este aspecto financeiro, a lei é moderna e se ajusta às necessidades atuais do mercado e às características mais avançadas da tecnologia de negociação e circulação de créditos. 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

A angústia do tempo não nos permite maior aprofundamento no estudo da Lei 10.931/04. Daí preferir me concentrar nas inovações trazidas pelos seus artigos 49 e 50, que se aplicam às pretensões de revisão dos contratos, e que já se mostram afinados com os princípios de função social e da boa-fé objetiva, evitando os males do passado, já antes referidos. O art. 49, em muito boa hora, veda a interrupção do pagamento das cotas condominiais e tributos incidentes sobre o imóvel, autorizando, em caso contrário, que o juiz cancele a liminar ou a tutela antecipatória antes concedida. Já o art. 50 disciplina o depósito judicial das parcelas devidas, distinguindo as partes incontroversas e as que são objeto do conflito. A simples leitura do dispositivo nos permite perceber, sem maior esforço, que ele se inspirou na pioneira regra do art. 67 da Lei do Inquilinato, ao disciplinar os procedimentos a serem adotados na ação de consignação de aluguéis e acessórios da locação. Ali, pela primeira vez, autorizou-se o locador-credor a levantar a parte incontroversa do depósito, prosseguindo o feito quanto à controvertida, cabendo ao autor continuar a fazer os depósitos dos aluguéis vincendos, até decisão final de mérito. Este sistema, já premonitoriamente comprometido com o princípio da efetividade, acabou sendo absorvido pelo Código de Processo Civil, ao tratar da ação consignatória. Com as devidas adaptações, é o que se pretende agora, com o art. 50, que se aplica às ações judiciais que tenham por objeto obrigação decorrente de empréstimo, financiamento ou alienação imobiliários. Exige-se, agora, que o autor-comprador discrimine na petição inicial, dentre as obrigações contratuais, aquelas que pretende controverter, quantificando o valor incontroverso, sob pena de inépcia, o que melhor seria dizer de indeferimento. No que concerne ao valor incontroverso, terá que continuar a ser pago no tempo e modo previstos no contrato. A suspensão da exigibilidade do valor controvertido dependerá do depósito do montante correspondente, que


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ficará sujeito a remuneração e atualização nas mesmas condições previstas no contrato. Neste particular, a Lei 10.931/04 avançou mais que o Código de Processo Civil e a legislação inquilinária, já que, encerrado o feito, a quantia depositada terá tido atualização e rendimento maior do que teria pelos índices aplicados aos depósitos judiciais, sem falar que a própria instituição financeira credora pode vir a receber a parte controvertida. A grande dúvida, quanto ao bom funcionamento do sistema, está na regra inserida no § 4º do artigo 50, que permite ao juiz dispensar o depósito de que trata o § 2º em caso de relevante razão de direito e risco de dano irreparável ao autor, por decisão fundamentada, na qual serão detalhadas as razões jurídicas e fáticas da ilegitimidade da cobrança no caso concreto. Trata-se de evidente cláusula aberta, que desafia o prudente arbítrio do julgador e que deve ser “fechada” diante do caso concreto, sem se perder de vista os objetivos saneadores da lei. Será preciso ter cautela para impedir aventuras judiciais, propostas por adquirentes inadimplentes, e que não se enquadram nos parâmetros da boa-fé objetiva. O depósito pretendido deve ter um mínimo de razoabilidade, traduzindo a real intenção do autor de cumprir o contrato, na medida do possível. A justa e necessária proteção da parte mais vulnerável na relação contratual não se confunde com paternalismo, capaz de conduzir a um clima de perigosa insegurança jurídica. O grande desafio que se põe diante do julgador é o de aplicar os novos paradigmas, especialmente o da função social do contrato, mas sem destruir os valores do passado, e, entre eles, o da sua força obrigatória. Ainda mais por que não se pode olvidar que, nesses casos, o adquirente conserva a posse do imóvel, o que traduz significativo valor econômico. Merece elogios o que dispõe o § 5º, que impede a suspensão da liminar da exigibilidade da obrigação principal sob a alegação de compensação com valores pagos a maior, sem o valor integral desta. Assim se impede que o autor nada pague ou deposite durante o curso da lide, sob a simples alegação que já pagou, anteriormente, mais do que seria o devido, o que, aliás, era bastante comum, sob o império do regime anterior. O dispositivo se impõe, até porque só se admite a compensação quando se trata de prestações recíprocas, líquidas e exigíveis, o que não seria a hipótese. Como se vê, as regras salutares dos artigos 49 e 50 da Lei 10.931/04 não colidem, nem de leve, com os princípios constitucionais e, muito menos, com os paradigmas da função social e da boa-fé. O fortalecimento necessário da teoria revisionista do contrato exige prudência do julgador para evitar o aproveitamento dos que buscam o Judiciário com objetivo de obter vantagem exagerada ou indevida. Pena é que a construção pretoriana tenha se mostrado ainda vacilante na aplicação das regras dos artigos 49 e 50. 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

A simples afirmação de que os valores cobrados pelo credor desrespeitam o contrato não é suficiente para caracterizar a necessidade de suspensão da execução, ainda mais quando a inadimplência já é antiga. No que tange ao depósito judicial do valor que o mutuário considera devido, a jurisprudência mais respeitável, com o objetivo de impedir abusos atentatórios à função teleológica do § 2º, tem exigido que ele seja em patamar razoável. Também é preciso que se exija do autor a perfeita discriminação da parte que pretende controverter, e da que considera incontroversa, até para que se assegure ao réu o exercício pleno do direito de defesa. Estamos convencidos de que o depósito em valor razoável e capaz de demonstrar o interesse do mutuário em adimplir a obrigação assumida com o mutuante, constitui exigência necessária para a suspensão da execução e da inscrição no cadastro de inadimplentes. A densidade social do mercado imobiliário recomenda a maior prudência quanto à solução do conflito entre o mutuante e o mutuário para que não se ponha em risco a sua preservação, em prejuízo de toda a sociedade. A Lei 10.931/04, como já se disse, trouxe maior segurança e efetividade ao mercado, mas os resultados perseguidos só se produzirão se a construção pretoriana se consolidar segundo seus objetivos. A manutenção de fluxo de capitais para a construção civil é de transcendental importância, e isso só se alcançará assegurando aos investidores um mínimo de garantia de seus créditos. Tal como ocorreu durante muitos anos com a legislação inquilinária, não se pode adotar, na regulamentação do mercado imobiliário, uma visão maniqueísta, em que o investidor e o incorporador serão sempre perversos especuladores, e os mutuários e adquirentes, vítimas indefesas. O que se procurou alcançar com a Lei 10.931/04 é uma composição razoável dos interesses em conflito para se assegurar a preservação e crescimento do mercado. Seus diversos segmentos contam, agora, com mecanismos de proteção e de defesa, mas que devem ser manejados com os olhos sempre postos na conduta honesta. É imperioso, ainda, para o êxito do sistema, agilizar a entrega da prestação jurisdicional para impedir que a sentença, pela demora em ser prolatada, perca a sua utilidade, mesmo para a parte vencedora. Não são raros os casos em que, ao final do processo, o débito do adquirente ultrapasse o valor de mercado do imóvel, o que inviabiliza a execução e a alienação. Um país que avança em direção a uma sofisticada economia de mercado, que se pretende ser de primeiro mundo, exige uma legislação equilibrada e eficiente, capaz de promover o fortalecimento de seu mercado imobiliário. A alienação fiduciária, o patrimônio de afetação, a criação das CCIS e os mecanismos de revisão dos contratos, com a garantia da preservação dos pagamentos incontroversos, são indicadores animadores de que estamos no caminho certo.


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TRANSPORTE PÚBLICO E A JUSTIÇA FLUMINENSE Entrevista com Julio Lopes, Secretário de Transporte do Estado do Rio de Janeiro

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evista Justiça & Cidadania – As concessionárias de transportes de passageiros têm reclamado que a Justiça vem determinando, em alguns casos, o seqüestro de sua receita para pagar indenizações. Como o senhor vê estas decisões? Julio Lopes – Vejo com preocupação. E acredito não estar sozinho na avaliação deste problema. É preciso esclarecer que não são todas as decisões que estão sendo questionadas. Na verdade, ocorre que, algumas vezes, as concessionárias têm sido declaradas pela Justiça sucessoras e condenadas a pagar indenizações, resultantes de ações movidas contra as antigas estatais que operavam o serviço. Tal fato, se não é recorrente, também não é isolado. Há casos em que, claramente, o julgamento pode ser considerado falho. Cito como exemplo uma recente decisão da Justiça contra a SuperVia, concessionária que opera o sistema de trens urbanos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, determinando o seqüestro de R$ 20 milhões da receita da empresa para pagar indenizações por conta de um acidente ocorrido em 1996. Essa decisão trouxe certa dose de apreensão e perplexidade ao meio empresarial, pois, ao determinar o arresto, a Justiça deixou de considerar um aspecto relevante da questão: o acidente ocorreu muito antes da concessionária assumir a concessão, e ainda que tivesse acontecido depois de ela assumir, deu-se em no ramal ferroviário GuapimirimSaracuruna, que nunca foi privatizado nem operado por ela. J&C – Que tipo de problemas isso tem gerado? Tais decisões podem prejudicar os investimentos previstos nos contratos de concessão? JL – Decisões desse gênero têm promovido um desequilíbrio no caixa das empresas, que se vêem obrigadas

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a reduzir drasticamente ou adiar os investimentos previstos nos contratos de concessão, necessários para a melhoria da qualidade dos serviços prestados à população. A SuperVia por exemplo, já desembolsou mais de R$ 200 milhões para cumprir decisões judiciais equivocadas. A Secretaria de Transportes do Estado do Rio de Janeiro, por orientação do governador Sérgio Cabral, tem negociado com as empresas investimentos na melhoria dos serviços públicos de transporte de passageiros. Entretanto, este ambiente de insegurança jurídica tem assustado os empresários e afastado os investidores. J&C – O que é preciso ser feito, na sua opinião, para minimizar este problema? JL – Antes de mais nada, é preciso olhar o problema e debater as soluções à luz da Lei. O assunto é tão preocupante que a Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro, atendendo sugestão feita pela Secretaria de Transportes, realizou, no início de novembro, um seminário para debater o impacto das decisões judiciais sobre a sucessão obrigacional nos transportes de passageiros. Na oportunidade, tivemos a honra de compartilhar a discussão com juristas renomados, como o ministro Luiz Fux, do STJ, os desembargadores Luiz Felipe Salomão e Marcus Faver, o presidente da Associação dos Procuradores do Estado do Rio de Janeiro, Leonardo Espíndola, o jurista Sérgio Bermudes, e o presidente da Amaerj, Cláudio Del’Orto. Os ilustres juristas concordaram que a Justiça está diante de uma situação delicada e que é preciso buscar alternativas para os processos judiciais oriundos da época em que o Estado administrava os serviços de transportes de passageiros e que foram ‘herdados’ pelas concessionárias. Sugeri ao presidente da Amaerj que o conteúdo do seminário fosse editado e


Foto: Fábio Fereira/Sectrans Julio Lopes, Secretário de Transporte do Estado do Rio de Janeiro.

distribuído a todos os juízes e desembargadores do estado. A disseminação das observações e conceitos formulados pelos eminentes juristas presentes ao seminário pode ajudar a dirimir algumas dúvidas e balizar futuras decisões. J&C – Mas as sentenças são proferidas e as indenizações têm de ser pagas. Quem então é o responsável? JL – Não estamos defendendo, ou sequer sugerindo, que se postergue ou se deixe de pagar as indenizações reivindicadas, ou de não cumprir o que determina a Lei. Mas, como bem ressaltou o ministro Luiz Fux durante o seminário, a Justiça tem a obrigação de identificar, corretamente, quem tem o dever de indenizar e que o equilíbrio econômico-financeiro das empresas faz parte dos contratos firmados entre elas e o Estado. As regras estabelecidas durante o processo de licitação precisam ser respeitadas. São estas regras, definidas no início do jogo, que vão permitir às empresas decidirem se participam, ou não, do negócio. Opinião unânime no

debate, em casos como o exemplificado acima, a Justiça não observa o contrato. Tais condenações, em dissonância com a estrutura jurídica atual, criam um estado de insegurança legal e significam grande obstáculo ao desenvolvimento dos transportes no Estado. J&C – Como está o andamento do projeto dos corredores viários para diminuir o tempo das viagens? JL – Estamos em fase adiantada de planejamento e implantação de alguns corredores expressos de tráfego, interligando diversos municípios da Região Metropolitana como, por exemplo, o Corredor Viário da Alameda São Boaventura, em Niterói, a ligação expressa entre Niterói e São Gonçalo, e entre a Barra da Tijuca e a Baixada Fluminense, o chamado Corredor T5. A construção do corredor da Alameda São Boaventura é um dos grandes projetos da Secretaria de Transportes, feito em parceria com a Secretaria Municipal de Serviços Públicos, Trânsito e Transportes de Niterói.Entre outras intervenções, será feita a cobertura de trechos do canal 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


da Alameda para construção de seis plataformas de embarque e desembarque. Os ônibus contarão com uma faixa exclusiva, no meio da via, em ambos os sentidos do tráfego. Cada plataforma terá capacidade para receber seis ônibus de cada vez. Os outros veículos trafegarão por duas pistas laterais, próximas à calçada. Faixas de pedestres cruzando a alameda, com semáforos controlados eletronicamente, permitirão o acesso dos passageiros aos terminais de embarque e a travessia de pedestres. Nossa expectativa é que, com a implantação do corredor, a velocidade média dos carros na Alameda São Boaventura e na Avenida Feliciano Sodré, no horário de rush, deverá dobrar, com reflexos inclusive em São Gonçalo. Vai facilitar também a vida de quem mora na região e trabalha no Rio, e de quem viaja no fim de semana para a Região dos Lagos e enfrenta quilômetros de engarrafamento na volta pra casa. J&C – A Lei 4.510 instituiu a fonte de custeio para a gratuidade no transporte intermunicipal. O repasse desse custeio tem sido efetuado? JL – A Secretaria de Transportes instrui rotineiramente os processos de repasse de custeio de gratuidades nos modais que são responsabilidades do estado e os envia para a Secretaria de Fazenda, que é a responsável pelo pagamento. Até agora, os repasses têm sido feitos dentro da normalidade. J&C – Quais as medidas que o governo do estado vem tomando para coibir o transporte ilegal de passageiros? JL – O combate ao transporte ilegal é uma das prioridades da secretaria e faz parte dos compromissos assumidos pelo governador Sérgio Cabral em seu programa de governo. Desde o início do governo, tem sido uma de nossas preocupações. Em junho deste ano, contratamos 120 fiscais que foram aprovados em concurso em 2006 e reequipamos o Detro (Departamento de Transportes Rodoviários do Estado do Rio de Janeiro) com novas viaturas. Depois de passarem por um treinamento no Departamento, em setembro passado, eles foram para as ruas a fim de reforçar a fiscalização do transporte de passageiros em todo o estado. De lá para cá, as ações têm sido diárias, apoiadas pela Polícia Militar, pela Secretaria Municipal de Transportes e pela Guarda Municipal. Os fiscais se colocam em pontos estratégicos, nos trajetos principais habitualmente feitos pelos veículos piratas e em rotas de fuga, multando e rebocando os veículos irregulares. Já é possível perceber uma redução neste tipo de transporte. Entretanto, sabemos que somente estas ações não bastam, é preciso repensar o sistema de transportes no estado. Por isso, já estão em desenvolvimento na secretaria várias mudanças e melhorias nos transportes de passageiros, algumas delas em fase de implantação. Estamos negociando com as concessionárias e órgãos 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

de financiamento uma série de investimentos para trens, metrô e barcas, com vistas à compra de novas composições e à reforma e modernização das já existentes, a expansão destes modais e a criação de corredores expressos de tráfego, entre várias outras ações. Também já estamos promovendo, através do Detro, uma licitação para linhas de vans intermunicipais. O processo de concorrência pública, que começou no final de outubro pela Região Serrana, está licitando linhas regulares para as regiões Centro-Sul, Médio Paraíba, Norte e Noroeste Fluminense. Outro instrumento que consideramos importante na luta contra a ilegalidade é o do Bilhete Único, que pretende integrar os vários modais de transportes, com a previsão de redução de tarifa nas integrações entre modais. A idéia é oferecer vantagens, tanto financeiras como de agilidade e conforto no deslocamento, que estimulem os passageiros a optar pelo sistema formal, contribuindo, com isso, para combater a pirataria. J&C – As empresas de transporte de passageiros podem ser responsabilizadas por danos aos usuários provocados por assaltos? JL – A segurança pública é uma das responsabilidades mais claras dentre as atribuições do Estado. E essa tarefa, como a sociedade tem tido oportunidade de observar, tem sido levada a cabo com firmeza pelo atual governo do Estado. Embora seja uma luta árdua, o poder público não pode se esquivar nem transferir suas responsabilidades. J&C – Nos últimos 5 anos, mais de 600 ônibus foram incendiados e depredados. De quem é a responsabilidade pelos danos ocorridos às empresas e aos passageiros, tendo em vista que as manifestações, na maioria das vezes, são previsíveis? JL – Esta é uma questão que envolve diretamente a sociedade. Se é verdade que, na maioria das vezes, as manifestações são previsíveis, cabe à população, às pessoas de bem, denunciar estas ações, alertar ao poder público e à polícia, que não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Como dissemos anteriormente, segurança pública é uma atribuição do Estado, assim como todas as implicações decorrentes dela. O governo do Estado coloca um instrumento à disposição do cidadão de bem, o disque-denúncia, que pode ser usado por qualquer um, com garantia do mais absoluto sigilo. Aliás, o número do disque-denúncia (2533-1177) vem estampado no vidro traseiro de todos os ônibus que circulam no Estado, justamente para estimular seu uso. O disquedenúncia é um instrumento já consagrado pela população e um grande apoio às forças policiais. Por isso, recomendo que as pessoas de bem façam uso dele, para ajudar a combater qualquer tipo de violência contra a sociedade, como é o caso de incêndio e depredação de ônibus.


Fraude e furto de energia elétrica Claudio Girardi Procurador-Geral da ANEEL

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ara se iniciar uma análise do tema, é imperioso que se parta da premissa de que todos somos responsáveis pelo combate ao furto de energia elétrica, se não por outros motivos, pela simples razão de que todos iremos pagar – via tarifa – parcela considerável dessa conta. Tal fato se agrava ainda mais quando inserido no contexto atual de busca por novas fontes energéticas, corolário da crise mundial que se verifica no setor energético, cujo reflexo é bastante sentido no Brasil, conforme se observa a partir das recentes medidas tomadas pelo Governo Federal para satisfação da demanda interna. Diversas são as formas empregadas para o furto e a fraude à medição de energia elétrica. Para se compreender o conflito objeto deste artigo, vale destacar que já foram detectadas mais de 40 formas diferentes de se burlar a medição, de modo que o consumo auferido pela concessionária seja inferior ao consumo real. Dentre elas, cabe mencionar o desvio de energia elétrica (“gambiarra”), o rompimento dos lacres do medidor, de forma que se tenha acesso ao seu interior, sem contar os inúmeros detritos e objetos (areia, chicletes, arames etc.) que são jogados dentro do medidor, na tentativa de impedir que o disco gire ou tenha seu movimento de alguma forma prejudicado. Há também a prática de ardis imperceptíveis pelo fiscal a olho nu, somente podendo ser reveladas por meio de exames mais precisos em laboratório especializado. O tema ganha em importância devido à constatação de demandas judiciais cujas sentenças proíbem a suspensão do fornecimento ou determinam o religamento em casos típicos de fraude e furto de energia elétrica, situações claramente distintas da inadimplência. Nestas, o consumidor, por fatores, muitas vezes, alheios a sua vontade, não consegue pagar a conta em dia. No caso do furto de energia elétrica, o consumidor, dolosamente, comete um crime. Contudo, parece que no afã de se garantirem os direitos dos consumidores, com base na argumentação de que a energia elétrica é serviço essencial e a ausência de seu fornecimento configuraria violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, esquece-se de seus deveres e, assim, prejudica-se a concessionária e os demais consumidores que honram com suas obrigações. Alude-se, ainda, às decisões onde se mitiga o direito material da concessionária em reaver o valor referente à energia elétrica consumida e não paga, sob a fundamentação de que há erro material no respectivo laudo pericial. A argumentação exposta no parágrafo anterior não mais

recebe guarida do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, que, conforme suas decisões, expressam a possibilidade da suspensão do fornecimento, caso constatado o inadimplemento. Vejase, por exemplo: “ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA EM RAZÃO DE INADIMPLEMENTO DO CONSUMIDOR. POSSIBILIDADE. OMISSÃO (CPC, ART. 535). INOCORRÊNCIA. 1. Não viola o art. 535 do CPC, nem importa negativa de prestação jurisdicional, o acórdão que, mesmo sem ter examinado individualmente cada um dos argumentos trazidos pelo vencido, adotou, entretanto, fundamentação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia posta. 2. Nos termos do art. 22 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), ‘os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos’. 3. A Lei 8.987/95, por sua vez, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, em seu Capítulo II (Do Serviço Adequado), traz a definição, para esse especial objeto de relação de consumo, do que se considera ‘serviço adequado’, 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29


prevendo, nos incisos I e II do § 3º do art. 6º, duas hipóteses em que é legítima sua interrupção, em situação de emergência ou após prévio aviso: (a) por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; (b) por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade. 4. Tem-se, assim, que a continuidade do serviço público assegurada pelo art. 22 do CDC não constitui princípio absoluto, mas garantia limitada pelas disposições da Lei 8.987/95, que, em nome justamente da preservação da continuidade e da qualidade da prestação dos serviços ao conjunto dos usuários, permite, em hipóteses entre as quais o inadimplemento, a suspensão no seu fornecimento. 5. Recurso especial provido”. (REsp 591692/RJ, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, julgado em 03 de agosto de 2004, publicado no DJ de 14 de março de 2005, p. 205). Ora, se é assim que vem sendo decidido com relação ao inadimplemento, de forma igual deveria ser decidido no caso de furto de energia elétrica, se o consumidor fraudador, solicitado a pagar valor incorretamente faturado (por motivo alheio à concessionária), não o faz, ressalvados os casos de insuficiência de prova. Sendo pressuposta de toda a concessão a prestação de serviço adequado, é justa e necessária a preocupação do legislador em proteger o consumidor, conforme se depreende do art. 175, parágrafo único, inciso IV, da Constituição Federal de 1988; do art. 7º da Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; e dos arts. 6º, inciso X, e 22, ambos do Código de Defesa do Consumidor. A propósito, saliente-se que a regulação e a fiscalização dos serviços de energia elétrica constituem a razão de ser da ANEEL, e, nesses dez anos de sua existência, testemunhamos o quanto foi realizado em prol da melhoria da qualidade do serviço. Não vamos aqui falar sobre a complexidade de que se constitui o serviço de energia elétrica, se considerarmos as três etapas (geração, transmissão e distribuição), o que exige, continuamente, a realização de altíssimos investimentos e o cumprimento dos diversos contratos que regem as obrigações dos concessionários de geração, transmissão e de distribuição. Tudo para que se possa ter energia disponível aos consumidores. A par do que se alude e na medida em que a ANEEL tem estado sempre vigilante no sentido de fazer com que as concessionárias prestem o serviço dentro dos critérios de qualidade estabelecidos, sob pena de sofrerem as sanções legais previstas de advertência e multa – inclusive a intervenção administrativa e a pena maior de perda da concessão, por meio de um Processo de Declaração de Caducidade da Concessão –, convive-se com o paradoxo da existência de posturas daqueles 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

que deveriam engajar-se no processo de combate à prática dos mencionados ilícitos, mas, por questões menores, ou por não compreenderem o processo de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, manifestam-se contrários às concessionárias e, às vezes, à própria ANEEL. Posturas contrárias são construtivas e bem-vindas quando fundamentadas em ações de interesse da coletividade, não de usuários infratores que causam prejuízos às empresas prestadoras do serviço e, como se viu, aos demais usuários adimplentes e honestos. Corroborando com o que até então foi explanado, merece destaque também o art. 90, inciso I, da Resolução ANEEL nº 456, de 29 de novembro de 2000, que permite a suspensão do fornecimento de energia elétrica quando verificada a ocorrência de utilização dos procedimentos irregulares decorrentes de ação do próprio usuário. Tal dispositivo se coaduna com a inteligência do § 3º do art. 6º da Lei 8.987, de 1995, que afirma não se tratar de descontinuidade do serviço sua interrupção em situação de emergência ou após aviso prévio, quando: motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e, por inadimplemento do usuário, considerado o interesse coletivo. De outro lado, em respeito ao inciso VIII do art. 6º da Lei 8.078/90 e ao inciso LV do art. 5º da Constituição Federal, não se pode suspender o fornecimento de energia elétrica até conclusão final do processo administrativo, caso o consumidor tenha apresentado recurso discordando das medidas adotadas pela concessionária. Em face dos dispositivos apresentados, é de se concluir, no entanto, por meio de uma interpretação sistemática do tema, que o que deve prevalecer é o interesse público em detrimento do fornecimento de energia elétrica à unidade consumidora de determinado consumidor, na medida em que a descoberta, por parte da concessionária, de uma irregularidade comprometedora de grande parte do sistema elétrico da região, deve ser imediatamente coibida com a suspensão do fornecimento. Em suma, se for descoberta a utilização de procedimento irregular que ponha em risco o interesse público ou, em casos extremos, a vida e a integridade física dos moradores próximos às instalações onde se cometeu a irregularidade e, até mesmo, do próprio consumidor, a atitude mais sensata a ser empreendida é a imediata suspensão do fornecimento de energia elétrica, buscando-se preservar a necessária segurança das redes de distribuição. Como exemplo, pode-se destacar os casos comuns de fios que atravessam diversas unidades consumidoras ou um emaranhado de fios (conhecido como “ninho de pombo”) que se subdividem para atender a diversas residências, com possibilidade de ocorrência de curtocircuito. Ademais, não pode ser olvidada a contrapartida do


consumidor, que é a de arcar com suas obrigações perante a concessionária, por meio do pagamento da energia elétrica consumida. Embaraçando ainda mais o ambiente em que se inclui tal realidade, verifica-se o constante aperfeiçoamento de tais práticas ilícitas. Da mesma forma como novos golpes surgem diariamente para ludibriar os cidadãos de bem, assim ocorre no caso de fraude e furto no âmbito da energia elétrica. Esse é o perfil do criminoso: a constante busca por novos meios fraudulentos com o fito de garantir o sucesso de sua empreitada delituosa. Assim também se comporta o consumidor fraudador. É criativo e está sempre inventando novas maneiras de furtar energia elétrica, dificultando cada vez mais o trabalho das concessionárias e das equipes de fiscalização. Destarte, a ANEEL, como agente regulador e fiscalizador, tem o dever de amparar igualmente a criatividade das concessionárias nos métodos e procedimentos de combate ao furto de energia, prática tida como crime, de acordo com o disposto no art. 155, § 3º, do Código Penal, merecendo destaque a Medição às Claras e a Medição Eletrônica Externa. A primeira consiste na retirada do medidor do interior da unidade consumidora, instalando-o nos postes localizados na via pública, facilitando a leitura e dificultando a manipulação do aparelho. Não obstante, ainda assim, têm-se casos de violação do medidor, merecendo ser citado o caso em que um mesmo medidor foi danificado cinco vezes, tendo a concessionária, todas as vezes, de substituí-lo. É de se perguntar quem mais, senão o próprio consumidor, teria o interesse em causar os referidos danos, visando o benefício da medição incorreta. A Medição Eletrônica Externa mostra-se ainda mais segura. Foi implantada, inicialmente, como objeto de um projeto-piloto em um bairro da cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, no qual, em determinada rua, cerca de 90% dos consumidores praticavam furto de energia elétrica. Caracterizar-se-ia omissão da ANEEL e da concessionária caso se abstivessem de tomar medidas impeditivas à continuação da lamentável conduta acima transcrita. Por meio desse novo aparelho de medição, o consumo pode ser lido através de sistema de comunicação remota ou pelas leitoras já utilizadas pelas concessionárias. Ademais, é garantida ao consumidor a ciência do efetivo consumo, a fim de lhe ser proporcionada ampla transparência da medição. Diante de tudo isso, retrocede-se à premissa inicialmente citada, qual seja, todos somos responsáveis pelo combate ao furto e à fraude à medição de energia elétrica, sob pena de se estimular o aumento dessa prática criminosa, em detrimento da coletividade.

“Os cálculos feitos no setor de distribuição de energia elétrica indicam que são desperdiçados cinco bilhões de reais por ano em perdas comerciais (leiase furto e fraude à medição)”.

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A crise da representação política Antonio Carlos Simões Martins Soares Procurador Regional da República Membro do Conselho Editorial

“O discurso político na atualidade não está mais voltado para a solução dos grandes problemas sociais, mas enredado em uma esfera de interesses autônoma e imediata.”

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democracia moderna nasceu sob a idéia da representação. Os representantes eleitos pelo povo exercem o poder em nome deste (§ único, art. 1º, da CF). Este é o princípio fundamental da democracia, único a legitimar o exercício do poder político. Existe, pois, uma relação necessária entre o poder, a lei e a vontade coletiva que lhe dá legitimidade. A lei pode, todavia, ser formalmente válida e, ao mesmo tempo, ilegítima quando não expressa essa vontade coletiva. A exigência democrática é que a lei possua legalidade e legitimidade, pois somente assim o exercício do poder estaria justificado. Em nosso país, pode-se afirmar que houve uma ruptura entre o conceito e a realidade, ou seja, a prática não se ajustou à teoria democrática. Com o advento do neo-liberalismo, entra em crise a ideologia que reflete a proposta do modelo político e entra em crise o partido que é o instrumento para, uma vez alcançado o poder, realizar o novo modelo proposto pela ideologia. O discurso político na atualidade não está mais voltado para a solução dos grandes problemas sociais, mas enredado em uma esfera de interesses autônoma e imediata. Os partidos políticos renunciam a ideologia e abandonam os programas partidários, transformando-se, não raro, em agências de negócios. Porém, quaisquer que sejam as mudanças experimentadas no mundo real e quaisquer que sejam os desajustes entre a teoria e a prática, a idéia essencial do regime democrático segue sendo a representação, pois, sem ela, não há democracia. A Revolução Francesa de 1789 consolidou a doutrina 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

da duplicidade segundo a qual o representante, após a eleição, goza de absoluta independência política em relação ao representado. Na assembléia constituinte de 1791, Sieyés asseverava: “É para a utilidade comum que os cidadãos nomeiam representantes, bem mais aptos que eles próprios, a conhecerem o interesse geral e a interpretar sua própria vontade”. Portanto, conforme este célebre constituinte, ao povo falta instrução e tempo para o exercício das funções parlamentares. A ascensão do Estado Liberal consolidou a teoria da duplicidade que servia adrede a uma ordem política de cunho aristocrático que afastava o povo do exercício imediato do poder. Essa doutrina perdurou até o início do século XX, adotada, até então, ainda pela maioria das Constituições européias, inclusive a Carta Alemã de 1919, que vedava o mandato imperativo e assegurava a plena autonomia aos representantes. Com a organização da classe operária e o recrudescimento dos movimentos reivindicatórios agravados pela crise entre o capital e o trabalho, verga o sistema representativo com base nesse modelo de cunho liberal. A vontade popular, fonte da autêntica soberania, volta a ser perseguida. Todavia, na sociedade de massas, a vontade do povo que deveria resultar de um modelo de inspiração genuinamente popular acaba por se perder no seio dos partidos e dos grupos de pressão. Como dizia o célebre Rousseau: “O cidadão que se fizera rei na ordem política, como titular de um poder soberano e inalienável, acabou se alienando no partido e no grupo a que vinculou seus interesses”.


Foto: Vinícius Gonçalves

Nessa nova fase, busca-se a identidade entre as aspirações das classes sociais emergentes e as instituições representativas daqueles valores fundamentais do regime democrático. Sem embargo das transformações sociais efetivamente ocorridas, o que se vê, mais uma vez, é o aumento da distância entre a vontade geral e a ação política dos representantes. Ao invés da vontade popular, prevalece a vontade dos grupos, seus interesses, suas reivindicações. A realidade de nossos dias nos leva a buscar, na dinâmica e na defesa dos interesses desses grupos e das categorias profissionais e econômicas, a única resposta satisfatória do que restou da representação. Assim, o sistema de representação hoje só se explica se o vincularmos aos interesses políticos, econômicos e sociais de cada segmento da sociedade. Dirse-á, porém, que, em uma democracia, a pluralidade dos interesses em jogo torna natural a formação de grupos na consecução de seus mais variados e múltiplos objetivos. Todavia, a decomposição da vontade popular através da criação da vontade autônoma de grupos, impedindo a formação daquela vontade geral soberana, estreitamente ligada aos interesses coletivos, fere de morte o sistema representativo baseado no princípio da identidade. Cabe aqui, a propósito, relembrar Hegel: “A representação não devia ser do indivíduo com seus interesses, mas antes das esferas essenciais da sociedade e seus grandes interesses“. Por outro lado, há quem prefira explicar a representação como um processo de assimilação da política e das opiniões, uma ação recíproca de aproximação entre governantes e governados (Sobolewsky). O processo de representação é

assim, processo de adaptação do mérito das decisões políticas às opiniões dos grupos envolvidos e, majoritariamente, as crenças e convicções da classe dominante. O que realmente importa ressaltar nesse contexto é que a crise da representação política, a ruptura entre representantes e representados tem como causa principal a ruptura entre o Estado e a sociedade civil. Essa ruptura é uma das mais dramáticas da atualidade, pois se trata de duas entidades que, na verdade, são únicas. O Estado é a forma mais orgânica e complexa da sociedade. O Estado é a própria sociedade organizada. A sociedade tem sido, até hoje, o antecedente necessário do Estado. Sem sociedade, não existe Estado, pelo menos sob a ótica das teorias contratualistas que inspiraram os sistemas democráticos. A sociedade é anterior ao Estado, seja do ponto de vista cronológico, seja sob o prisma ontológico. Isso significa que a sociedade não apenas precede ao Estado, mas determina sua natureza, sua essência e existência. A sociedade é o ser do Estado. O restabelecimento dessa verdade, isto é, a dependência do Estado à sociedade e, em conseqüência da vontade geral de que bradavam os revolucionários franceses, é condição de sua justificação histórica, exigência mesmo da própria sobrevivência da democracia. Em uma percepção realista, a verdade é que hoje os representantes respondem aos interesses do poder político, que, por sua vez, responde aos interesses do poder econômico nacional e internacional, muito mais que aos interesses de seus próprios eleitores. O poder político ganhou autonomia em relação a sua fonte legítima, ao mesmo tempo em que passou a integrar outra estrutura: o poder econômico. Contudo, o mercado atuando sobre a sociedade tecnológica de nossos dias não poderá resolver esse problema, mas tenderá a agravá-lo ainda mais. A única solução possível deve partir de uma política que reconcilie os efeitos mecânicos do mercado para um fim social formulado pela sociedade e pelo Estado. Enquanto a política não voltar a ser formulada de acordo com os interesses da nação e da sociedade, ela continuará, cada vez mais, sendo um jogo sem outro propósito do que a busca do poder pelo poder em todos os níveis. Daí porque nossa reforma política deve começar pelo aperfeiçoamento das regras que disciplinam a representação popular. Repugna a sociedade brasileira, a cada eleição, a deplorável constatação do estado de indigência moral e intelectual dos candidatos às casas legislativas. A cada eleição, fortalece-se, entre os operadores do direito eleitoral, a convicção da necessidade da exigência de certo grau de escolaridade mínima aos postulantes a cargos eletivos. A pretexto de que seria antidemocrático exigir-se certo grau de escolaridade aos candidatos, permite-se um verdadeiro atentado a nossas instituições democráticas. Toda a nossa experiência à frente do Ministério Público Eleitoral no Estado do Rio de Janeiro por mais de cinco anos reforça essa convicção. Por outro lado, estamos na era da informação e, como não podia deixar de ser, o mundo caminha na inevitável direção 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


“A expressão tem um significado bem mais abrangente. Relaciona-se com a vida pregressa profissional e social daquele que postula o exercício de um mandato político.”

da educação dos povos, sobretudo os emergentes, situação historicamente irreversível e incompatível com as condições de elegibilidade, nesse particular, postas pelo constituinte de 1988. O analfabetismo não se coaduna com o exercício de direitos políticos. Acreditar que um analfabeto é capaz de construir juízos de valor a fim de fazer escolhas de nomes e programas de políticas públicas é mera demagogia. De igual sorte, o princípio constitucional da moralidade pública não se coaduna com a elegibilidade de pessoas que, embora sem condenação transitada em julgado, respondem a processo criminal ou por improbidade administrativa. Diz a norma constitucional que a lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato (art.14, § 9º). O princípio da moralidade adotado, expressamente, pela Constituição de 1988, revela, sobretudo, quando direcionado à proteção do regime democrático, a necessidade de impedir o deferimento de candidaturas que não reúnem aquele mínimo de seriedade capaz de legitimar o exercício dos mandatos legislativos. Quando o Constituinte se refere à vida pregressa do candidato, certamente, não quis limitarse à ausência de antecedentes criminais. A expressão tem um significado bem mais abrangente. Relaciona-se com a vida pregressa profissional e social daquele que postula o exercício de um mandato político, e devem ser excluídos todos aqueles cuja conduta pessoal não se enquadra nos padrões de moralidade média vigorantes na sociedade. É importante observar, outrossim, que a moralidade pública não é apenas indissociável de toda atividade estatal, mas guarda estreita correlação com a conduta de todo 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

integrante de determinado grupo em relação a assuntos afeitos à coletividade. É o que se passa no relacionamento entre filiado e partido político, onde prevalece qualquer tipo de interesse em detrimento de seus fins institucionais. É indispensável, para tanto, introduzir, no art. 16 da Lei 9096/95, a obrigatoriedade, no ato da filiação, da comprovação de ausência de antecedentes criminais e de atos de improbidade administrativa, sem a exigência de decisão definitiva na esfera do judiciário. Essa providência associada à exigência de um determinado grau de escolaridade (médio ou fundamental), tanto no ato de filiação partidária quanto no pedido de registro de candidatura, responde, neste tópico, aos anseios do constituinte de 1988 com a moralidade para o exercício do mandato eletivo. Por outro lado, como vimos, a essência do mandato político encerra uma relação de representação e, nesta, uma relação de confiança. Essa confiança depositada pelo povo em seus representantes é que dá legitimidade ao exercício do mandato. Ora, é público e notório que a opinião pública brasileira vem revelando uma crescente e preocupante perda de credibilidade em relação ao Congresso nacional e, mais diretamente, na atuação dos parlamentares. Recente pesquisa realizada pelo Ibope, no segundo semestre do ano passado, revelou que apenas 20% dos entrevistados manifestaram confiança no Senado, 15% na Câmara dos deputados, 10% nos partidos políticos e 8% nos políticos em geral. Essa decepção generalizada com a atuação de nossos parlamentares fortalece, a cada dia, a imperiosa necessidade de se introduzir entre nós o instituto da revogação popular de mandatos eletivos, denominado pelos norteamericanos de recall, único instrumento capaz de restabelecer a confiança do povo em nossas instituições democráticas. Oportuno salientar que o referido instituto não é novidade entre nós, visto que algumas de nossas primeiras Constituições estaduais republicanas já contemplavam a revogação popular de mandatos eletivos: a do Rio Grande do Sul, em seu art. 39, a do Estado de Goiás, em seu art. 56, e as Constituições de 1892 e 1895 do Estado de Santa Catarina. Na América Latina, a Constituição da República da Venezuela, promulgada em 1999, adotou o referendo revocatório em relação a todos os cargos públicos providos pelo voto popular (art. 72). Nos Estados Unidos da América do Norte, 14 Estados introduziram o recall em suas Constituições, tendo sido o primeiro deles a Califórnia, em 1911, e o último o Estado da Geórgia, em 1978. O referendo proposto, aliás, presente em alguns projetos em tramitação no Congresso Nacional, realizar-se-ia, por iniciativa popular, dirigida ao Superior Tribunal Eleitoral, mediante a assinatura de, pelo menos, 2% do eleitorado nacional, distribuído ao menos por sete Estados da Federação, com, pelo menos, 0,5% em cada um deles. A Justiça Eleitoral assumiria, dessa forma, a função de convocar e realizar o referendo, que só poderia ocorrer um ano após a posse dos eleitos, assegurando a necessária isenção em todas as fases do procedimento.


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A democratização do poder judiciário

Foto: Arquivo Pessoal

Marcelo Anátocles Juiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro

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a recente decisão do Senado Federal, analisando representação contra o Presidente da Casa, presenciamos deplorável sessão secreta, com votos igualmente secretos, absolvendo-se o senador acusado. Um julgamento nada democrático, pois a sessão existiu para absolver e pronto, sem qualquer fundamentação. O episódio permite uma reflexão sobre o hiato que, por vezes, existe entre os que exercem o poder e a sociedade. No Poder Judiciário, nos últimos anos, houve muitos avanços, abolindo-se as sessões e votações secretas, instalandose os Juizados Especiais que aproximam o povo da justiça, reivindicando os Juízes que tenham voz na elaboração do orçamento interno, como membros integrantes de Poder. Em muitas dessas lutas, a participação do movimento associativo da magistratura, independente e despido de corporativismo, foi fundamental para os avanços ainda tímidos, pois há muito por fazer. As sessões hoje abertas e o voto fundamentado para os atos delicados e cruciais de promover e remover magistrados de suas varas ainda são impregnados de subjetivismo, causando incômodo a alguns juízes que devem se submeter à busca de votos para a movimentação na carreira. A resistência aos avanços é fruto da falta de democracia interna no Poder Judiciário. Atualmente, apenas os magistrados no último degrau da carreira, os Desembargadores, podem eleger os órgãos dirigentes dos Tribunais, via de regra, Presidente do Tribunal de Justiça, Vice-Presidentes, Corregedor-Geral da Justiça e Titulares do Conselho da Magistratura. Esse colégio eleitoral não representa normalmente mais do que


“Por fim, e não menos importante, temos visto, nos últimos anos, que se impôs a tendência da escolha democrática dos órgãos de direção das demais funções essenciais à justiça, aquelas sem as quais não se pode dizer que exista Justiça ou Poder Judiciário de forma autônoma.”

10% do total de magistrados, eis que não participam das eleições os juízes de primeiro grau, a esmagadora maioria. Contra esse costume, os juízes de São Paulo tentaram, em 1999, modificar a Constituição daquele Estado, estabelecendo que os cargos dirigentes do Tribunal de Justiça passariam a ser eleitos não apenas pelos Desembargadores, mas também por todos os Juízes vitaliciados, isto é, aqueles que foram confirmados na carreira após o estágio probatório. O Supremo Tribunal Federal, contudo, analisando ação direta de inconstitucionalidade contra esta modificação, declarou-a inconstitucional. Em 2002, diversos magistrados fluminenses atravessaram os cem metros que os separavam da Assembléia Legislativa para levar aos Deputados o projeto de Emenda à Constituição do Estado, visando compatibilizar a decisão do STF com a democracia, prevendo, assim, a escolha dos cargos dirigentes do Tribunal de Justiça do Estado mediante a composição de listas tríplices, tal como é feito em outras instituições. O projeto de emenda da Constituição Estadual não foi apreciado. A democracia é o sistema pelo qual se estabelece a igualdade entre todos os que se acham em uma mesma situação, para que decidam sobre o seu destino comum, já que “tudo o que interessa a todos deve ser decidido por todos”, como observa Leonardo Boff. Em qualquer comunidade, o princípio é adotado naturalmente. Aceitamos como razoável que o síndico de um prédio deva ser eleito por todos os condôminos, que os dirigentes do sindicato devem ser escolhidos por seus filiados e que o reitor e vice-reitor das Universidades do Estado do Rio de Janeiro devam ser escolhidos em lista tríplice pelo

Governador, após sua composição por eleição direta dos membros da Universidade. Até mesmo no Poder Legislativo, todos os seus membros escolhem, em igualdade de condições, os seus respectivos presidentes e órgãos diretores. Por fim, e não menos importante, temos visto, nos últimos anos, que se impôs a tendência da escolha democrática dos órgãos de direção das demais funções essenciais à justiça, aquelas sem as quais não se pode dizer que exista Justiça ou Poder Judiciário de forma autônoma. Tal escolha se dá de duas formas básicas: pelo voto direto de todos os advogados, onde o mais votado é escolhido, na Ordem dos Advogados do Brasil ou por intermédio do mesmo sistema, mas pela formação de listas tríplices, que se compõem dos nomes dos três candidatos mais votados por todos os membros da instituição, para que o Governador do Estado indique o escolhido para a chefia da instituição. É o que ocorre, desde 1990, no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e a partir de 2000 na Defensoria Pública. Hoje também assim se procede no Ministério Público Federal. Visto como fator de aperfeiçoamento e democratização da Instituição, passa a ser momento (essencial) de tornar o conjunto da magistratura partícipe das políticas judiciárias, a par de conferir enorme legitimidade àqueles escolhidos para dirigir os destinos do Poder Judiciário. “As melhores escolhas são justamente as escolhas que são feitas”, assinalou o humanista Jared Diamond. É preciso avançar para que o Judiciário Republicano realize suas melhores escolhas. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


Aplicação judicial do direito – juízos de verossimilitude e probabilidade Adolpho C. de Andrade Mello Jr. Juiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro

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Introdução proposta deste ensaio, e o próprio título já sugere, é transitar sobre escopos do exercício de Jurisdição, o processo judicial como base dialética e capaz de instrumentalizar a argumentação, assim também, ponto nodal, abordar aspectos atinentes à formação de juízo na aplicação do Direito, atento aos fatores de probabilidade e verossimilhança. Na verdade, a grande dificuldade em laborar o Direito e o complexo normativo que formalmente o revela é sempre fazê-lo atual, mormente para o julgador chamado a discernir os conflitos sociais, individuais ou coletivos. Conhecer o Direito é apreender sua essência e finalidade. E só é possível a apropriação da lógica que o Direito encerra através dos métodos de interpretação, procedimentos intelectivos voltados para a aproximação congruente do fato social à norma adequada. Em exercício de jurisdição, a aproximação pré-falada resulta em uma solução normativa, revelada pela sentença, ato jurisdicional que encerra inteligência e vontade, em uma simbiose de componente declarativo. Na aplicação do Direito, outrossim, é sempre necessário buscar a razão social de existência da norma adequada para servir de preceito à solução judicial do litígio, do caso submetido à atividade jurisdicional. Há de se ter em mente que a ordem normativa destina-se a trazer uma vantagem social. Harmonia entre a regra a ser aplicada, depreendida pelos critérios e métodos de interpretação, e dos fins sociais do Direito e às exigências do bem comum. 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

Todo o trabalho de apropriação, aproximação e solução normativa desenvolve-se no transcurso do processo judicial. É o processo que aconchega os fatos e emoldura o tema da decisão. É o processo judicial que, na otimização do debate, participação no transcurso de uma relação jurídica, possibilita à luz da construção histórica dos fatos (provas) a enumeração dos argumentos que constituirão os motivos da sentença. A sentença judicial, por conseguinte, deve ser resultado de induções e deduções, sem a preocupação de estabelecer verdade universal ou proposição geral, mas só certeza jurídica do caso concreto. E aí entra, para a formação de juízo, a reflexão sobre os conceitos de probabilidade e verossimilhança, tópico específico e final deste trabalho. Jurisdição, seus escopos Uma das expressões do Poder de soberania denominase jurisdição. O exercício de jurisdição, por conseguinte, tem assento constitucional. É a Constituição da República que lhe dá vida, delimita a atuação, e impõe a observância de normas inafastáveis, dentre as quais a que exige a fundamentação antecedente ao dispositivo, decisum, ato conclusivo de julgamento. É na fundamentação, motivos e razões de decidir, onde o magistrado deverá alinhar as premissas, proposições de formação do convencimento. São os motivos que dão legalidade e legitimam o julgamento, desde que estejam aqueles em harmonia com a ordem jurídica, social e justa. A nosso sentir, não pode ser outra concepção, posto que a República Federativa do Brasil, além de constituir um Estado Democrático de Direito,


Foto: Vinícius Gonçalves

é flagrantemente social, pois é assentada nos objetivos fundamentais da liberdade, justiça e solidariedade. Sem o ingrediente da vantagem social, o exercício da jurisdição não exsurge legítimo. Em uma perspectiva de resultado final, é possível compreender como três os escopos da jurisdição. Declarase o direito aplicável para a preservação da ordem jurídica, para proteção do bem juridicamente tutelável. Dispõe-se a norma jurídica de solução do litígio, de forma a alcançar uma regra de justiça. Preservação da ordem jurídica, proteção dos bens e justiça são as finalidades da jurisdição. Cada uma das partes, no exercício de técnica de argumentação sentencial, deve resultar em um todo lógico, ou melhor, quase-lógico, sabido que a formação de juízo é dedutiva e indutiva, sem foro de irrefragável verdade, absoluta e universal. A manutenção da ordem jurídica, pondo-a livre de perigo, dano ou subversão corruptiva, é a finalidade legalista da jurisdição, de conteúdo positivista. Preserva-se a ordem jurídica constituída, arrostando o perigo através de tutelas inibitórias, ou quando já violada, restaurando-a com a disposição de comando judicial hábil a ensejar a prevalência da Lei. Também se espera do exercício da jurisdição a proteção do bem juridicamente tutelável, desde que compossível o abrigo dentro do ordenamento, do complexo normativo que, além de disciplinar a vida de relação, o dever-ser, define a sanção para as hipóteses de quebra ou ameaça dos imperativos, obrigando o intérprete e o operador do Direito a extraírem do contexto legal o que melhor se acomode com os fins sociais e às exigências do bem comum.

Sendo assim, segue-se que só se cumpre a quase-lógica da jurisdição, modelando o exercício dentro dos parâmetros de justiça. É a idéia de justiça social que se encontra no núcleo da nossa ordem constitucional, onde se quer uma sociedade livre, justa e solidária. Destarte, pode-se afirmar que as três partes resultam em um todo cuja parametricidade é a justiça, solução justa dos conflitos. Não é o menoscabo à lei, mas sua interpretação consoante com os objetivos fundamentais da República, insculpidos na Constituição Federal. Não é tratar com desdém o bem tutelável, mas sim ver se, em um contexto conflituoso, merece tutela concreta por estar em harmonia com a ordem normativa, social e solidarista; em congruência com o Direito plasmado na Constituição. Instrumentalidade do Processo judicial O processo judicial é um meio de debate que o Direito põe à disposição do Estado para que este possa se desincumbir da relevante tarefa de julgar; julgar os conflitos de interesses, os abusos contra as liberdades públicas e a ilegitimidade ou não da norma ou ato do Poder Público frente à Constituição Federal. É certo, ante o tema proposto e que ousamos tratar, que iremos incursionar pelo processo como instrumento de jurisdição ordinária, capaz de possibilitar a solução das lides. Sendo um meio de debate judicial, o processo é essencialmente dialético, dinâmico, finalístico, progressivo e encerra uma relação entre partes da qual exsurgem direitos, deveres, ônus e sujeições. O processo contém uma relação jurídica, e é em seu transitar que se concretiza o diálogo 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39


unido por um objetivo comum, a sentença do Estado. Daí, não é forçoso afirmar que a sentença do Estado decorre do processo, não como trabalho pronto, mas como peça que se delineia durante a instância, o movimento da relação. É o por, o contrapor e o compor. Cada personagem do processo exerce papel de relevância, e, durante a trama, cobra-se do Juiz a prestação jurisdicional com eqüidistância e imparcialidade, e das partes litigantes, que obrem com lealdade e boa-fé. Como já ressaltado, podemos identificar, no processo judicial, um instrumento de participação democrática, das mais eloqüentes, uma vez que direta, isonômica e decisiva para a legitimidade da sentença do Estado, que é definitiva e inafastável; primeiro momento para a positivação da certeza jurídica do caso concreto. Fala-se no primeiro momento, porque só se alcança a certeza jurídica na imutabilidade dos efeitos da sentença que decorre da coisa julgada. A proteção do processo judicial advém da própria Constituição Federal, que o quis como garantia dos direitos individuais e coletivos. Garantia que se exprime no contraditório, no direito de cientificação e reação que compõe o cerne do denominado devido processo legal. Para a aplicação judicial do Direito, o processo judicial é indispensável. Não há a possibilidade de argumentação judicial, em forma de decisão, sem o processo. Primeiro, a dialética, seu desenvolvimento, depois, e ao final, a fala do Estado, o qual, em forma de sentença, deverá estabelecer não a demonstração do seu juízo, mas a síntese da discussão e controvérsia jungida à linha argumentativa que elegeu para a solução do litígio. Na argumentação, busca-se encontrar a regra de justiça, que deve se concretizar com o processo judicial. Não é uma regra pronta, apriorística e impermeável, mas elaborada no curso do processo judicial, e nele moldada para o caso concreto submetido à dicção do Estado-Juiz. A instrumentalidade do processo judicial situa-se na concepção de meio. O processo é um meio e não um fim. O fim é a concretização da regra de justiça, que com ele possibilita-se. E a chamada regra de justiça, preceito da decisão judicial, nada mais é do que o todo, o resultado dos três escopos da jurisdição, sobre os quais aludimos no tópico antecedente. Ademais, e por importante, há de se aduzir que a argumentação judicial deve amoldar-se no que foi processualmente feito, até porque um ato final de uma série de outros que o antecederam de forma legitimante exsurge do convencimento instruído pelo trabalho de hermenêutica jurídica, e valoração das provas. É o ponto máximo. E aí se situa a problemática da percepção necessária para extrair-se das deduções e induções as proposições que irão servir para o julgamento. Nessa seara, vem à lume a formação de juízos de probabilidade e verossimilhança. Juízos de verossimilitude e probabilidade Conforme acentuado por Piero Calamandrei, em ensaio 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

publicado nos Studi in onore di Giuseppe Valeri, vol. I, Milano, Giuffré, 1955, e inserido na obra Direito Processual Civil, editada pela Bookseller, Campinas, volume III, 1999, “... todo juízo de verdade se reduz logicamente a um juízo de verossimilitude...“. Na esteira do citado mestre, trata-se de asserção de relativismo processual, onde o processo judicial concebe-se como instrumento capaz de possibilitar a construção de juízo histórico a respeito de fatos conflituosos, mas ante a falibilidade humana, marcada pela subjetividade do julgador. A busca da verdade, dita real, ou substancial, é labor insano e compromete a efetividade do processo enquanto instrumento da jurisdição. Nos escritos de Calamandrei, página 270 da obra citada, observa-se: “...Todo o sistema probatório civil está preordenado, não a consentir, senão diretamente a impor ao juiz que se contente, ao julgar a respeito dos fatos, com o sub-rogado da verdade que é a verossimilitude. Ao juiz não lhe é permitido, como se lhe permite ao historiador, que se permaneça incerto a respeito dos fatos que tem que decidir; deve de qualquer jeito (essa é sua função) resolver a controvérsia em uma certeza jurídica. Para obtê-lo, vê-se constrangido com extrema ratio a contentar com o que alguém continua chamando verdade formal, conseguida mediante o artifício das provas legais e o mecanismo autônomo da distribuição da carga da prova. Entretanto, mesmo quando, no sistema das provas livres, parece que a liberdade de apreciação fosse instrumento mais adaptado para a consecução da chamada verdade substancial, a avaliação, mesmo que livre, leva em todo caso a um juízo de probabilidade e de verossimilitude, não de verdade absoluta...” Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, em Tratado da Argumentação, enfatizam que “...O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa às certezas do cálculo...”. Seqüenciando, argumentam que: “...a verossimilhança se aplica a proposições, notadamente as conclusões indutivas e, por isso, não é uma quantidade mensurável, ao passo que a probabilidade é uma relação numérica entre duas proposições que se aplicam a dados empíricos específicos, bem definidos, simples...” (Tratado da Argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 01 e 78). Na apreciação dos fatos relevantes, evidenciados no processo judicial, e na aplicação do Direito, o juiz deve se valer, em sua argumentação, dos conceitos de verossimilitude e probabilidade, em uma simbiose perfeita e suficiente capaz de legitimar a ordem decisória. A verossimilitude advém de juízo por indução, intelectivo, instruído pelas regras de experiência que se prestam para harmonizar a mens legis à realidade social, com definição de atualidade. As chamadas regras de experiência exsurgem de percepções do intelecto e do sensorial hauridas da interação do observador


“O juízo de verossimilitude estimula-se pela percepção indutiva do Direito, a possibilidade (não verdade absoluta) do complexo normativo que encerra conformar-se como solução razoável do caso submetido a julgamento.”

com o meio social. A repetição dos resultados, dá margem ao surgimento das chamadas presunções hominis, as quais, nada mais revelam do que o direito aparente na concepção do que é justo e atual, e podem ser utilizadas como proposições argumentativas de decisão judicial. A vantagem da prática é a de fazer com que o Direito cumpra a sua finalidade de atuar sobre as tensões sociais de forma efetiva. O juízo de probabilidade, ao contrário do de verossimilitude, não decorre da aparência do direito por indução, mas da percepção de dados concretos traduzidos no processo judicial. A aquisição do conhecimento é necessária para possibilitar a argumentação judicial, não com vistas ao estabelecimento de verdades absolutas, mas de certeza do caso concreto, que é subjetiva ante a pessoalidade do agente judicial. A probabilidade suficiente retira o juiz daquele estado de angústia que a procura da certeza objetiva, verdade real, impõe-lhe. O juízo de probabilidade permite que o julgador conviva com as suas limitações, e bem assim, que ele não se transforme no algoz do processo judicial, contaminando sua essencialidade como instrumento de paz social que é. Julgase com segurança, não quando se procura o humanamente inalcançável, mas quando se atinge um número suficiente de dados que, ligados entre si, possibilitem a argumentação silogística, com fundamento na instrução processual. A argumentação judicial é fruto de análise realística e funcional. Não é o desenvolvimento meramente hipotético, e nem a retórica do que poderia ser. E aí se situam os juízos de verossimilitude e probabilidade como concepções de julgamento hábeis a ensejar a teleologia da Jurisdição e do Processo judicial que lhe serve de instrumento, sempre tendo em vista não a segurança jurídica inatingível, mas a efetividade da função jurisdicional atenciosa com os valores da Justiça do caso concreto. Conclusão À guisa de conclusão, ouso reflexionar sobre o assentado pelo professor Cândido Rangel Dinamarco, em sua Instrumentalidade do Processo, onde, com proficiência, alude: “Mesmo não sendo o juiz equiparado ao legislador, seu momento de decisão é um momento valorativo e, por isso, é preciso que ele valore situações e fatos trazidos

a julgamento de acordo com os reais sentimentos de justiça correntes na sociedade de que faz parte e dos quais ele é legítimo canal de comunicação com as situações concretas deduzidas em juízo. Ele tem na Lei o seu limite, não competindo ao Poder Judiciário impor os seus próprios critérios de justiça ou de eqüidade, mas esses limites têm valor relativo, a saber: sempre que os textos comportem mais de uma interpretação razoável, é dever do juiz optar pelo que melhor satisfaça ao sentimento social de justiça, do qual é portador (...) Ele há de interpretar a prova e os fatos, também, por esse mesmo critério...” (A Instrumentalidade do Processo. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 458). Lição sobre formação de juízo. A solução do litígio é a resultante da aplicação do Direito. E a aplicação advém com a demanda e o processo judicial, onde ao julgador impõe-se a percepção da normativa adequada e a valoração das provas ante os fatos principais do conflito. A percepção é indutiva, exercício de raciocínio, e a valoração é dedutiva, relação numérica aferível concretamente. O juízo de verossimilitude estimula-se pela percepção indutiva do Direito, a possibilidade (não verdade absoluta) do complexo normativo que encerra conformar-se como solução razoável do caso submetido a julgamento. E aí entram os ingredientes da atualidade e da escala axiológica da sociedade, além dos fins sociais da norma, contextura solidarista do ordenamento constitucional, e os padrões de justiça social. O final deve revelar a chamada regra de justiça, conclusiva da argumentação judicial a preambular o comando das decisões. Quanto ao juízo de probabilidade, este é numérico, dedutivo, como dito. É o juízo dos fatos e das provas. Decide-se com segurança quando o somatório dos dados traduzidos pelas provas alcançar patamar de suficiência dentro de um senso comum. A argumentação do julgamento, trabalho de formação do decisum, deve se instruir na verossimilhança e na probabilidade, induções e deduções hauridas do processo judicial que é instrumento essencialmente dialético hábil e capaz de legitimar a função jurisdicional, de aplicação do Direito, como certeza jurídica do caso concreto, e não como meio para a revelação de verdades e certezas absolutas. 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


Natureza jurídica do ressarcimento de custos e encargos advindos da impressão do selo especial de controle do IPI Gustavo Soares Aguiar Analista Judiciário do STJ

A

Introdução aplicação do selo especial de controle em determinados produtos é medida cuja origem remonta à Lei 4.502/64, que dispunha sobre o imposto de consumo, tributo criado pela Constituição Federal de 1934 e hoje denominado imposto sobre produtos industrializados – IPI (art. 153, IV, da CF/88). Segundo o CTN, mais precisamente em seu art. 46, esse imposto tem por fato gerador, conforme o caso, o desembaraço aduaneiro, a saída do estabelecimento ou a arrematação de produtos industrializados, que são artigos submetidos a “...qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo”. Em vista disso, até mesmo para garantir a efetividade do recolhimento da exação, instituíram-se mecanismos de controle quantitativo desses produtos, dentre os quais se destaca a selagem, objeto de análise desse estudo, que se inicia com o exame do art. 46, caput e § 1º, da Lei 4.502/64, abaixo transcrito: “Art . 46. O regulamento poderá determinar ou autorizar que o Ministério da Fazenda, pelo seu órgão competente, determine a rotulagem, marcação ou numeração, pelos importadores, arrematantes, comerciantes ou repartições fazendárias, de produtos estrangeiros cujo controle entenda necessário, bem como prescrever, para estabelecimentos produtores e comerciantes de determinados produtos nacionais, sistema diferente de rotulagem, etiquetagem, obrigatoriedade de numeração ou aplicação de selo especial que possibilite o seu controle quantitativo. § 1º. O selo especial de que trata este artigo será de emissão oficial e sua distribuição aos contribuintes será feita gratuitamente, mediante as cautelas e formalidades que o regulamento estabelecer.” 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

Atendidas as disposições regulamentares, a distribuição dos selos fazia-se gratuitamente no início. Entretanto, com o advento do Decreto-lei 1.437/75, tornou-se possível a provisão onerosa desses impressos, pois se passou a admitir a arrecadação de valores a título de “ressarcimento de custos e demais encargos”. Assim ficou definida a questão: “Art. 3º. O Ministro da Fazenda poderá determinar que seja feito, mediante ressarcimento de custo e demais encargos, em relação aos produtos que indicar e pelos critérios que estabelecer, o fornecimento do selo especial a que se refere o artigo 46 da Lei 4.502, de 30 de novembro de 1964, com os parágrafos que lhe foram acrescidos pela alteração 12ª do artigo 2º do Decreto-lei 34, de 18 de novembro de 1966.” O Decreto 4.544/2002, que atualmente regulamenta a tributação, fiscalização, arrecadação e administração do IPI, segue essa orientação (art. 237), mas acrescenta em seu art. 223 que os produtos submetidos à selagem estarão relacionados em ato do Secretário da Receita Federal, “que poderá restringir a exigência a casos específicos, bem assim dispensar ou vedar o uso do selo (Lei 4.502, de 1964, art. 46)”. Os selos, também por força do RIPI, serão confeccionados pela Casa da Moeda do Brasil – CMB –, que se encarregará de sua distribuição às repartições da Secretaria da Receita Federal (art. 227). Essas últimas, por sua vez, entregarão os selos aos fabricantes, importadores, adquirentes em licitação e comerciantes de acordo com as regras de fornecimento definidas na mesma norma. Estabelecidas essas considerações, passa-se a discutir a natureza jurídica do dever de se apor o selo de controle do IPI em determinadas mercadorias.


Foto: Sandra Fado/STJ

Selagem de produtos industrializados: obrigação acessória A selagem, já se disse, funciona como instrumento de controle quantitativo de produtos industrializados. Isso ocorre porque, com a exigência de se apor o selo singularmente em cada mercadoria fabricada, importada, adquirida ou comercializada, permite-se ao Fisco a exata apuração do número de artigos submetidos à tributação e, conseqüentemente, viabiliza-se o correto cômputo do imposto devido. Vê-se, com isso, que a selagem de produtos industrializados realiza-se em função de um determinado propósito: garantir a efetividade da arrecadação do IPI. Tal aspecto, de pronto, denuncia a natureza jurídica da imposição, que tem completa simetria com o conceito descrito no art. 113, § 2º, do CTN, relativo à obrigação acessória. Tem-se, na espécie, uma prestação positiva estabelecida pela lei no interesse da arrecadação de tributo. Essa circunstância, atente-se, não passou despercebida pelo legislador pátrio, que, na Lei 4.502/64, inseriu o capítulo “Da Rotulagem, Marcação e Controle dos Produtos” no título “Das Obrigações Acessórias”. A estampilha de produtos industrializados, portanto, está compreendida na categoria das obrigações acessórias, as quais, nas palavras de Onofre Alves Batista Júnior... “São deveres instrumentais, ou como preferimos, deveres de polícia fiscal, que possibilitam o controle, pela Administração, do cumprimento das obrigações tributárias principais pelos contribuintes. São deveres que circundam a obrigação tributária e se prestam a possibilitar a realização do interesse público ‘tributação’”.1 Então, consiste a obrigação examinada em uma manifestação do poder de polícia fiscal, poder esse que se exerce para o fim de se assegurar a justa, suficiente e regular arrecadação de recursos para o Estado. Essa noção ficou bem delineada nas judiciosas considerações de Batista Júnior, que abaixo se transcreve: “Como sabemos, o Poder Tributário não vem desacompanhado de um complexo de poderes à disposição da pessoa política tributante, capaz de possibilitar a imposição de deveres aos particulares, com o fim de conseguir o adequado fluxo de recursos para os cofres públicos. Nesse complexo de poderes, compreendem-se os poderes do Estado-Legislador – que se manifestam na criação das chamadas “obrigações acessórias”, por exemplo – e os Poderes do Estado-Administração, como nas funções fiscalizadoras e arrecadadoras – Poder de Polícia Administrativa Fiscal. Embora a doutrina englobe o poder de “instituir” tributos e este complexo de poderes no termo Poder Tributário, este se apresenta com características bem distintas do Poder de Polícia Fiscal. Fixemos, inicialmente, a idéia do que podemos chamar de Poder de Polícia Fiscal: poder de limitar liberdades dos indivíduos, de forma a assegurar

o efetivo e adequado fluxo de recursos derivados para os cofres públicos. Como já frisamos, a tributação é a contraface da prestação de um benefício à coletividade, portanto, a idéia do tributo está, necessariamente, associada à realização do bem comum, ao interesse público. E, nesse sentido, as idéias de fluxo de recursos e de interesse público se misturam e se completam de forma inseparável.”2 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


Definido que a determinação de se apor o selo de controle do IPI consiste em uma obrigação tributária acessória, cumpre agora se perquirir a respeito da natureza jurídica do pagamento efetuado a título de “ressarcimento de custo e demais encargos” pela confecção dos selos previstos na Lei 4.502/64. Natureza jurídica do pagamento efetuado a título de ressarcimento de custo e demais encargo O dever de selagem, como obrigação acessória que é, não tem conteúdo patrimonial em si, porque, com a imposição, não se pretende obter recursos financeiros para o Estado, mas apenas garantir a efetividade da arrecadação do imposto sobre produtos industrializados. A medida, entretanto, impõe um gasto ao sujeito passivo, porque, com o fundamento de se ressarcir os custos e encargos experimentados com a feitura dos selos de controle, exigese o pagamento de valores em razão da aquisição desses documentos fiscais. A existência de um custo relativo ao exercício de uma obrigação acessória não causa qualquer estranheza, pois, como bem anotou Roque Antonio Carraza: “De regra, para cumprir seus deveres instrumentais, o contribuinte, ou o terceiro a ele ligado, precisa mobilizar pessoal, efetuar gastos (adquirindo livros, mandando imprimir notas fiscais, etc.), dispor de espaço (para acondicionar as guias de recolhimento, a fim de possibilitar, aos agentes do Fisco, o exame da documentação, etc.), contratar mão-de-obra especializada (contadores, advogados, economistas, etc.) e assim por diante. Tais providências demandam, indubitavelmente, tempo e dinheiro.”3 Os aludidos gastos, que são revertidos em favor do Estado, ingressam nos cofres públicos de maneira definitiva e, por isso, constituem espécie de receita pública – entrada de dinheiro não sujeita à condição devolutiva ou à baixa patrimonial correspondente, que se incorpora permanentemente ao patrimônio público como elemento novo.4 As receitas públicas, leciona Luiz Emygdio F. da Rosa Júnior, podem ser derivadas ou originárias. “Receitas originárias são as auferidas pelo Estado em decorrência da exploração do seu próprio patrimônio, agindo sem exercer o seu poder de soberania, não havendo, pois, obrigatoriedade no seu pagamento pelo particular, sendo, portanto, receitas voluntárias e contratuais de direito privado (receitas patrimoniais). Ricardo Lobo Torres leciona que as receitas originárias compreendem os preços públicos, as compensações financeiras e os ingressos comerciais. O referido jurista assim explica as referidas receitas: a) preço público ou tarifa significam ‘o ingresso não-tributário devido ao Estado Administrativo Intervencionista como contraprestação por benefício recebido’; b) 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

compensação financeira corresponde à participação dos Estados, Distrito Federal, Municípios e órgãos da administração direta da União no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação econômica por essa exploração (CF, art. 20, § 1º), sendo a compensação financeira regulada pela Lei nº 7.990, de 28.12.89; c) ingresso comercial é o proveniente da exploração de monopólios e da manutenção de empresas estatais e também da exploração do negócio de loterias. (...) Receitas derivadas são as provenientes de bens pertencentes ao patrimônio dos particulares, impostas coercitivamente aos cidadãos, constituindo receitas obrigatórias, de direito público. Tais receitas decorrem de atividades financeiras que o Estado desempenha investido de sua soberania, sendo, portanto, receitas legais. As receitas derivadas compreendem os tributos e as multas, fiscais ou não.”5 O traço distintivo dessas duas classes de receitas é, indubitavelmente, a aplicação ou não, na sua cobrança, do poder de soberania do Estado, porque, em uma hipótese, o dever de pagar exsurge de obrigação voluntariamente assumida, ao passo que, na outra, o recolhimento de valores decorre de imposição legal. No caso em análise, tem-se que o “ressarcimento de custo e demais encargos” é condição para a aquisição dos selos de controle do IPI, impressos sem os quais não pode o fabricante, importador, adquirente ou comerciante exercer a sua atividade. A compra do documento fiscal não é, portanto, uma faculdade do contribuinte, mas uma obrigação imposta por lei – art. 3º do Decreto-lei 1.437/75 –, porque, para se realizar determinadas operações com produtos industrializados, não se pode abrir mão da utilização dos selos oficiais. Com isso, conclui-se não se tratar de receita originária o pagamento devido em razão da impressão das estampilhas, estando excluída dessa investigação, desde já, a possibilidade de se tratar a exigência de preço público (tarifa), compensação financeira ou ingresso comercial. Assim, restam para exame apenas as aludidas receitas derivadas, que se subdividem em tributos e multas. Tributo, diz o art. 3º do CTN, “é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. Multa, por outro lado, é a referida “sanção de ato ilícito” a que o tributo não pode corresponder. Caso se admita que a contraprestação pela confecção dos selos de controle não equivale a uma pena advinda da realização de conduta legalmente proibida, há de se deduzir


que a remuneração em análise apenas se identifica com a noção de tributo ou, mais propriamente, com uma de suas espécies: imposto, contribuição de melhoria, empréstimo compulsório, contribuição especial e taxa. Considerando-se que, para justificar a cobrança da quantia equivalente ao “ressarcimento de custos e demais encargos”, deve o Estado realizar uma atividade específica em relação ao contribuinte – “fornecimento do selo especial a que se refere o art. 46 da Lei 4.502, de 30 de novembro de 1964” (art. 3º do Decreto-lei 1.437/75) –, não se pode falar em imposto, porque essa é uma modalidade de tributo não-vinculado (art. 16 do CTN). Não cabe alusão, outrossim, à contribuição de melhoria, visto que não procede o pagamento analisado de valorização imobiliária decorrente de obra pública (art. 145, III, da CF/88), tampouco ao empréstimo compulsório, pois não destina a quantia ao atendimento de despesa extraordinária originada de calamidade pública, guerra externa ou sua iminência ou ao custeio de investimento de caráter urgente e relevante interesse nacional (art. 148, I e II, da CF/88). Também não se pode admitir referência às contribuições especiais – contribuições sociais, contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE), contribuições de interesse de categorias profissionais ou econômicas e contribuição para custeio do serviço de iluminação pública (COSIP) –, porquanto não serve a arrecadação do “ressarcimento de custo e demais encargos” como instrumento de atuação na área social, econômica ou corporativa (art. 149 da CF/88), nem como fonte de custeio do serviço de iluminação pública (art. 149-A da CF/88). A cobrança, todavia, toma o caráter de taxa, tributo que, nos termos do art. 77 do CTN, pode ser cobrado pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios e tem como fato gerador o exercício regular do poder de polícia ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível prestado ao contribuinte ou colocado à sua disposição. Observa-se que o mencionado “ressarcimento de custos e demais encargos”, uma prestação pecuniária compulsória em moeda instituída pelo art. 3º do Decreto-lei 1.437/75, é devido em razão do “fornecimento do selo especial a que se refere o artigo 46 da Lei 4.502, de 30 de novembro de 1964”, ou, em outras palavras, legitima-se como contraprestação ao oferecimento de uma utilidade material. Essa utilidade material é o selo de controle do IPI, documento fiscal que, por força do art. 46 da Lei 4.502/64, deve ser aposto a todo produto indicado pelo órgão competente do Ministério da Fazenda e cujo fornecimento, desde a vigência do Decreto-lei 1.437/75, deve ser oneroso. Sua emissão, dispõe também o art. 46 da Lei 4.502/64 em seu § 1º, deve ser oficial, daí porque, presentemente, a Casa da Moeda do Brasil, empresa pública atuante no mercado de produtos gráficos de segurança, encarrega-se de sua confecção (art. 227 do RIPI). Ora, caso se tenha uma atividade material que, por força de lei, deve ser desempenhada pelo Estado e, conseqüentemente,

submete-se a regras de direito administrativo, fala-se aqui de serviço público, expressão que assim foi conceituada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “(...) toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público.”6 A definição exposta é resultado da conjugação de três elementos: subjetivo, formal e material. O primeiro deles, denominado subjetivo, impõe-se porque o serviço público é incumbência do Estado, que o cria por lei e o presta direta ou indiretamente (concessão ou permissão – art. 175 da CF); o segundo, formal, refere-se ao fato de que a atividade é submetida, total ou parcialmente, ao Direito Administrativo; e, por fim, o material, que identifica prestações cujo objetivo é o atendimento de necessidades de interesse público. A produção oficial dos selos especiais do IPI certamente atende à necessidade de fabricantes, importadores, adquirentes e comerciantes que dependem da aposição das estampilhas para, de modo regular, desempenhar seu ofício. Em outra perspectiva, porém, realiza-se no interesse de toda a coletividade, porque aumenta a segurança do procedimento, dificultando a ocorrência de fraudes e falsificações e proporcionando maior controle. Não se pode esquecer, afinal, que a compra dos selos, ao possibilitar o cumprimento de uma obrigação tributária acessória, garante melhor resultado na arrecadação do IPI, imposto que, como todos os outros, constitui receita do Estado e se presta a custear os gastos públicos em geral, tais como as despesas com saúde, educação, segurança e outras. Esclareça-se que essa finalidade de satisfação do interesse público não possibilitaria o reconhecimento da manufatura de estampilhas como exercício do poder de polícia. Atos dessa natureza, explica o art. 78, caput, do CTN, devem constituir limite ou disciplina de um direito, interesse ou liberdade, aspectos que não se identificam na impressão e distribuição onerosa de documentos fiscais, simples atividades materiais. A manifestação do poder de polícia, já comentado em tópico anterior, está presente na obrigação de se apor o selo especial em determinados produtos industrializados, mas não na obrigação de se pagar pelo fornecimento das estampilhas. Aqui se atinge um ponto importante dessa investigação: distingue-se a exigência de selagem de produtos cujo controle quantitativo seja necessário, uma obrigação tributária acessória, da imposição de pagamento pelo serviço de impressão dos selos, uma nova obrigação tributária principal, distinta da do recolhimento do IPI, concretizada na modalidade de taxa. Situação semelhante é a que se dá com o documento de nota fiscal. Para alguns contribuintes, como obrigação tributária acessória, estabelece-se a ordem de emitir nota fiscal. Dessa determinação, decorre a necessidade de aquisição dos respectivos boletos, que, tal como os selos, devem ter seus custos ressarcidos. A peculiaridade reside na circunstância de que os boletos de 2007 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA PRINCIPAL

NOTA FISCAL

SELO DE CONTROLE DO IPI

Recolhimento de tributo

OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA ACESSÓRIA

DOCUMENTO FISCAL DECORRENTE DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA ACESSÓRIA

ENTIDADE RESPONSÁVEL PELA IMPRESSÃO DO DOCUMENTO FISCAL

PAGAMENTO RELATIVO À IMPRESSÃO DO DOCUMENTO FISCAL

Emitir nota fiscal

Nota fiscal

Estabelecimentos gráficos particulares

Preço (privado)

Apor selo especial em determinados produtos

Selo especial

Estado, por meio da Casa da Moeda do Brasil

Taxa

notas fiscais são confeccionados por estabelecimentos gráficos particulares, os quais se encarregam de sua impressão mediante prévia autorização do órgão competente. Em retribuição a esse serviço, paga-se o preço, quantia que engloba as despesas de produção e a expectativa de lucro do empresário. No caso dos selos, por opção política do legislador, que se orienta por razões de segurança e conveniência, quem se ocupa de sua elaboração é o próprio Estado, por meio da Casa da Moeda do Brasil – CMB. Como contraprestação pela realização do serviço, paga-se a taxa, tributo que se destina a ressarcir os custos e encargos do processo fabril. Os pontos de identidade e dissimilitude existentes entre as duas espécies ficam bem destacados no quadro acima. Então, no “ressarcimento de custos e demais encargos”, tem-se um tributo devido em razão do “fornecimento do selo especial a que se refere o artigo 46 da Lei 4.502, de 30 de novembro de 1964”, um serviço público de utilização efetiva prestado ao contribuinte que, além disso: a) é específico, pois congrega meios materiais, pessoal e organização7 ou, em outras palavras, é destacado pelo Estado do conjunto de suas tarefas e dele exige aparelhamento para a sua execução8 – já que se cria e se mantém estrutura especializada na fabricação notas: BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. O poder de polícia fiscal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001, p.184. 2 Idem, ibidem, p. 184. 3 CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.332. 4 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro e direito tributário. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 50. 5 Idem, ibidem, p. 59-60. 6 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Administrativo.17. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 99. 7 Celso Antônio Bandeira de Mello apud BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 565. 8 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 34. 9 BALEEIRO, ibidem. 1

46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

e distribuição dos selos; b) é divisível, visto que admite a identificação de cada contribuinte-usuário e a medida de sua utilização9 – porquanto os selos somente são fornecidos aos estabelecimentos e pessoas que os requerem, se atendidas as condições para tanto e mediante o pagamento das unidades que se recebe. Trata-se o pagamento, portanto, de uma taxa. Conclusão O dever de apor o selo de controle em determinados produtos industrializados, exigência instituída pelo art. 46 da Lei 4.502/64, é obrigação tributária acessória estabelecida no interesse da arrecadação do IPI. O cumprimento dessa obrigação impõe a compra das referidas estampilhas, que são produzidas pela Casa da Moeda do Brasil e distribuídas pelas repartições da Secretaria da Receita Federal mediante o pagamento de taxa. Esse tributo, na hipótese, remunera o Estado pela prestação de um serviço público. Assim, não se confundem as obrigações de recolhimento do IPI, de aposição do selo especial em determinados produtos industrializados e de pagamento pela atividade de impressão do documento fiscal. Referências bibliográficas AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. O poder de polícia fiscal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001. CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Consti-tucional Tributário. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Administrativo.17. ed. São Paulo: Atlas, 2004. ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro e direito tributário. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar,

2001.


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Gilmar Mendes pede qualificação das leis Giselle Souza Jornal do Commercio

O

vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, sugeriu ontem ao Legislativo a implantação de um projeto que objetive a qualificação das leis que são produzidas no Brasil. A sugestão foi feita durante o lançamento do livro Curso de Direito Constitucional, escrito pelo ministro em conjunto com os juristas Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco. O livro, da Editora Saraiva, foi lançado no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, com a presença de seu presidente, desembargador José Carlos Murta Ribeiro. Indagado sobre os prejuízos que o volume excedente de normas pode trazer ao ordenamento jurídico do País, Gilmar Mendes ressaltou a necessidade de haver meios que visem ao aperfeiçoamento do processo legislativo. "Na verdade, talvez pudéssemos até estimular um projeto de qualidade legislativa, que hoje, por exemplo, a União Européia vem celebrando. Seria um trabalho para melhorar a qualidade das leis, de modo que tenham um perfil técnico mais adequado, para que haja discussões mais aprofundadas sobre a qualidade das leis. Isso é importante porque influi na reforma do Judiciário. Se temos leis precisas, temos menos controvérsias", disse o ministro, elogiando a iniciativa da Câmara dos Deputados que objetiva a consolidação das leis. No início deste ano, a Casa instituiu uma comissão para padronizar e revogar as normas que caíram em desuso ou foram declaradas inconstitucionais. Os trabalhos vão abranger 21 áreas do Direito. Segundo o deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), líder do grupo, em entrevista recente, 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2007

os projetos de consolidação deverão ser entregues até fevereiro do ano que vem. A expectativa é que sejam votados em maio. "Acho (a iniciativa) extremamente importante. Já trabalhamos isso, inicialmente no governo Collor e depois no governo Fernando Henrique. É importante para a segurança jurídica", afirmou Gilmar Mendes. De acordo com o ministro, o Judiciário é o principal interessado na iniciativa. "Já tivemos algumas reuniões informais com o deputado. Claro que não é uma tarefa nossa, mas existe a preocupação, sem dúvida, quanto à segurança jurídica. Esse é um projeto que pode dar sucessivos frutos", disse. Na avaliação de Gilmar Mendes, a consolidação das leis evitará que as demandas pacificadas cheguem à Justiça. "Pode haver uma dúvida hoje, que pode ser judicializada, sobre se uma lei está ou não em vigor. A consolidação pode resolver isso, dizendo claramente quais as leis que estão ou não em vigor", ressaltou. Para o ministro, o trabalho também impedirá a aprovação de novas leis para definir temas já regulados e, conseqüentemente, diminuirá o volume de normas já em vigor. Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Direito Tributário, divulgado em outubro, mês em que a Carta Magna completou 19 anos, mais de 3,6 milhões de leis estão em vigor. Em média, são editadas 766 normas por dia útil, nas esferas municipal, estadual e federal. "Tem-se discutido muito sobre o excesso de leis inconstitucionais das assembléias legislativas, que chegam ao Supremo ou série de recursos normais ou de ação direta de inconstitucionalidade. Esse não é o nosso maior trauma, mas acho que é algo a ser discutido. Acredito que o


Foto: STF

conhecimento das leis em vigor nos poupará de leis novas. Pode ser que estejamos ‘chovendo no molhado`, tentando inventar soluções que já existem. Tem que haver maior cuidado. Tudo isso envolve a segurança jurídica", disse. Gilmar Mendes afirmou também que entende a crítica de alguns de que o Judiciário tem assumido a função do Legislativo. Ele explicou, no entanto, que se manifestar a respeito de temas ainda não regulados não é uma opção. Se a Justiça não decidir, parecerá incapaz de dar uma resposta ao jurisdicionado. O magistrado citou como exemplo o direito de greve do servidor público, tema julgado recentemente pelo Supremo. "Nesse caso específico, a primeira decisão do Supremo, salvo engano, foi em 1989. Portanto, há 18 anos de mora do Congresso. Tenho a impressão que o tribunal foi bastante minimalista porque mandou aplicar a lei de greve e o sistema de competência já existentes, ambos fixados pelo legislador. Os juízos criarão o direito para o caso concreto com base nessas balizas. Então, o Tribunal não cedeu a tentação de sair por aí fazendo, ele próprio, as leis. No entanto, era necessário (o julgamento), pois estávamos a ter abuso de greve, sem que houvesse nenhuma resposta adequada, com violação frontal da Constituição", disse o ministro, acrescentando: “Se consideramos o tempo, parecia que a inércia era do próprio tribunal, que não estava também capaz de dar uma resposta. E justo num tema específico em que parece que há um tipo de aliança perversa: de um lado, o governo que não consegue romper com essa inércia, e de outro os sindicados que não querem mais a lei de greve.”

Ministro Gilmar Mendes, Vice-Presidente do STF.

“Pode haver uma dúvida hoje, que pode ser judicializada, sobre se uma lei está ou não em vigor. A consolidação pode resolver isso, dizendo claramente quais as leis que estão ou não em vigor”.

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A PRECE DE UM JUIZ João Alfredo Medeiros Vieira Juiz de Direito Aposentado

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enhor! Eu sou o único ser na terra a quem Tu deste uma parcela da Tua Onipotência: o poder de condenar ou absolver meus semelhantes. Diante de mim as pessoas se inclinam; à minha voz ocorrem; à minha palavra obedecem, ao meu mandado se entregam, ao meu gesto se unem, ou se separam, ou se despojam. Ao meu aceno as portas das prisões se fecham às costas do condenado ou se lhe abrem, um dia, para a liberdade. O meu veredicto pode transformar a pobreza em abastança e a riqueza, em miséria. Da minha decisão depende o destino de muitas vidas. Sábios e ignorantes, ricos e pobres, homens e mulheres, os nascituros, as crianças, os jovens, os loucos e os moribundos, todos estão sujeitos, desde o nascimento até a morte, à Lei, que eu represento, e à Justiça, que eu simbolizo. Quão pesado e terrível é o fardo que puseste nos meus ombros! Ajuda-me, Senhor! Faze com que eu seja digno desta excelsa missão! Que não me seduza a vaidade do cargo, não me invada o orgulho, não me atraia a tentação do Mal, não me fascinem as honrarias, não me exalcem as glórias vãs. Unge as minhas mãos, cinge a minha fronte, bafeja o meu espírito, a fim de que eu seja um sacerdote do Direito, que Tu criaste para a Sociedade Humana. Faze da minha Toga um manto incorruptível. E da minha pena não o estilete que fere, mas a seta que assinala a trajetória da Lei, no caminho da Justiça. Ajuda-me, Senhor, a ser justo e firme, honesto e puro, comedido e magnânimo, sereno e humilde. Que eu seja implacável com o erro, mas compreensivo com os que erraram. Amigo da Verdade e guia dos que a procuram. Aplicador da Lei, mas, antes de tudo, cumpridor da mesma. Não permitas, jamais, que eu lave as mãos como Pilatos diante do inocente,

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nem atire, como Herodes, sobre os ombros do oprimido, e túnica do opróbrio. Que eu não tema César e nem, por temor dele, pergunte ao poviléu se ele prefere “Barrabás ou Jesus”. Que o meu veredicto não seja o anátema candente, e sim a mensagem que regenera, a voz que conforta, a luz que clareia, a água que purifica, a semente que germina, a flor que nasce no azedume do coração humano. Que a minha sentença possa levar consolo ao atribulado e alento ao perseguido. Que ela possa enxugar as lágrimas da viúva e o pranto dos órfãos. E quando diante da cátedra em que me assento desfilarem os andrajosos, os miseráveis, os párias sem fé e sem esperança nos homens, espezinhados, escorraçados, pisoteados, cujas bocas salivam sem ter pão e cujos rastos são lavados nas lágrimas da dor, da humilhação e do despreza, ajuda-me, Senhor, a saciar a sua fome e sede a Justiça! Ajuda-me, Senhor! Quando as minhas horas se povoarem de sombras, quando as urzes e os cardos do caminho me ferirem os pés, quando for grande a maldade dos homens, quando as labaredas do ódio crepitarem e os punhos se erguerem, quando o maquiavelismo e a solércia se insinuarem nos caminhos do Bem e inverterem as regras da Razão, quando o tentador ofuscar a minha mente e perturbar os meus sentidos, ajuda-me, Senhor! Quando me atormentar a dúvida, ilumina o meu espírito; quando eu oscilar por falta de firmeza, alenta a minha alma; quando eu esmorecer, conforta-me; quando eu tropeçar, ampara-me. E, quando um dia, finalmente eu sucumbir e já então, como réu, comparecer à Tua Augustia Presença para o último Juízo, olha compassivo para mim. Dita, Senhor, a Tua sentença. Julga-me como um Deus. Eu julguei como homem.


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