Revista Justiça & Cidadania

Page 1


2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007


EDIÇÃO 89 • dezembro de 2007 A REVISÃO CONTRATUAL EX OFFICIO: QUESTÕES ATUAIS

estado brasileiro desonra a constituição federal

12

Foto de capa: Editora JC

ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO

infidelidade partidária

20

DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DÉBORA MARIA M. A. R. DIAS REVISÃO DIOGO TOMAZ E MAURíCIO FREDERICO DIAGRAMAÇÃO VINÍCIUS GONÇALVES EXPEDIÇÃO E ASSINATURA

CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares

CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO

Antônio souza prudente

EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-100. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429

aurélio wander bastos

Arnaldo Esteves Lima Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso

SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611

CELSO MUNIZ GUEDES PINTO CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI denise frossard

POLÍTICAS PÚBLICAS: Confiabilidade e Credibilidade

26 SUMÁRIO

DEUS, OS PRESOS E A MISÉRIA HUMANA

4

EDUCAÇÃO é a base da evolução humana

6

um estímulo à consciência de cidadania

10

Eis o homem!

11

A função social da jurisdição

24

Redução da idade penal: Alteração inconstitucional é maléfica para a sociedade brasileira

30

Lei Maria da Penha, afirmação da igualdade

34

ainda a questão dos juros

36

penhora on-line – um ato extremamente ilícito

40

presidente João Goulart – Um mártir

42

Direitos Fundamentais e Relações privadas direito à moradia e bem de família

46

Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA

PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP: 90010-272 TEL.(51) 3211 5344

fernando neves

SALVADOR FREDERICO DINIZ GONÇALVES RUA BARÃO DE ITAPUÃ, 60 CONJ. 301 CENTRO EMPRESARIAL PORTO CENTER CEP: 40140-060 TEL.(71) 3264 3754

Humberto Gomes de Barros

BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 - BLOCO E Ed. CENTRAL PARK FONES: (61) 3327-1228 / 29

José Eduardo carreira Alvim

Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Ives Gandra martins Jerson Kelman josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello

CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL (61) 9674-7569

revistajc@revistajc.com.br www.revistajc.com.br CTP, IMPRESSÃO E ACABAMENTO ZIT GRÁFICA E EDITORA LTDA

ISSN 1807-779X

Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata SEBASTIÃO AMOÊDO Sergio Cavalieri filho Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho

2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 3

16


EDITORIAL

DEUS, OS PRESOS E A MISÉRIA HUMANA

S

ocorreu-me a memória, para a redação do presente editorial, uma passagem do santo Papa João XXIII, que, logo nos primeiros dias do seu pontificado, decidiu visitar uma prisão em Roma, condoído da situação dos presos e em lembrança do tempo em que teve a desdita de ter sido prisioneiro. O significado do ato de caridade do santo Papa na demonstração humanista e simplória deixou para a cristandade uma lição de humildade, que deveria servir de exemplo para os detentores do Poder em todos os graus e circunstâncias. O sistema prisional brasileiro com o tratamento dispensado aos reclusos, na sua quase totalidade das cadeias públicas, pouco difere dos horrores dos porões dos navios negreiros, como descrito, na trágica e terrível dramaticidade, pelo condoreiro Castro Alves, nos versos que transcrevo e que deveriam ficar gravados na memória de todos quantos, em nome do Estado, são responsáveis pela guarda dos presos no Brasil: “Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura...se é verdade Tanto horror perante os céus! ? ................................................ Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!” O clamor como o vate baiano bradou aos céus, invocando o nome de Deus, contra os tenebrosos suplícios dados aos negros trazidos da África, para se sujeitarem à escravidão no Brasil, foi, por certo, o mais terrível libelo e repúdio ao desumano tratamento impingido contra a criatura humana no século XVIII. Entretanto, as candentes misérias descritas por Castro Alves, dos sórdidos, imundos e fétidos porões dos navios negreiros, talvez sejam hoje menos graves e terríveis do que o tratamento vil dado aos homens, mulheres e menores submetidos ao sistema prisional do país. Foi preciso que esse tratamento desumano acontecesse com uma menina de 15 anos, que foi jogada numa cela imunda de uma cadeia no município de Abaetetuba, no Pará, servindo de pasto para cerca de 20 homens, sendo estuprada

4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

e obrigada, durante 25 dias, à prática de todas as excrescências sexuais, para que o mundo dito civilizado despertasse para a catastrófica miséria que acontece nas prisões brasileiras. A desgraçada humilhação a que estão submetidos os presos na quase totalidade das cadeias no país, onde ocorrem as cenas de violência mais degradantes e indignas, deveria servir de motivo e incentivo aos governantes para tentarem, em nome da civilização, cristianizar o tratamento imposto cruelmente aos presidiários que vivem como párias da sociedade, pagando em absurda crueldade a pena a que foram condenados pela sociedade. As cenas degradantes que são mostradas publicamente nas televisões, nas fotos, na imprensa e nos relatos, como constantemente são relevados, demonstram, efetivamente, que o Poder Público, responsável pela miséria humana exposta cotidianamente, está alheio e completamente omisso a essa iniqüidade que desqualifica a moral e a dignidade dos governantes. Os quadros e aparições dantescas exibidos constantemente envergonham o gênero humano e, em especial, os responsáveis maiores pela guarda dos prisioneiros, como mostram as cenas reveladas das prisões abarrotadas. Em celas onde deveriam estar apenas 20 presos, ficam encarcerados 200, que, para dormirem, fazem escala de turnos ou dormem amontoados como animais numa pocilga. As violências sofridas, como estupro, obrigação e sujeição a sexo oral e outras excrescências sexuais indignas que ocorrem comumente, ferem a condição humana dos desgraçados seres que não têm como se livrar dessa miséria a que estão submetidos pelo Poder Público. A revolta pública produzida pela violência sofrida pela infeliz menina de 15 anos, com a conivência da polícia e omissão do Ministério Público, inclusive, da Juíza responsável pelo feito, deveria servir, ao menos, como triste exemplo para minorar esses nauseabundos espetáculos deprimentes que envergonham toda a Nação. Os dados do levantamento da CPI do Sistema Carcerário apontam que o contingenciamento de recursos e a falta de interação entre os governos federal, estaduais e municipais colocaram os 1.116 estabelecimentos penais do país em estado


Foto: Arquivo JC

de penúria. Os observadores que percorreram, em verdadeira via crucis, os presídios puderam constatar que, efetivamente, o desrespeito aos direitos humanos tem como conseqüência o aumento da violência nas prisões e o fortalecimento do crime organizado. O relator da CPI, Deputado Domingos Dutra, fez declarações alarmantes sobre as constatações feitas, afirmando que o problema crucial é a superlotação, considerando ser um dos principais problemas o desprezo do agente público em relação à população carcerária, com um índice de cerca de 80% dos detentos que não estudam nem trabalham, e mais, quando são libertados, não têm sequer dinheiro da passagem para ir para casa. Já o assessor jurídico da Pastoral Carcerária, Davi Pedreira, afirma que a ausência de uma política nacional de ressocialização dos presos é a principal causa dos casos de reincidência, e, segundo sua opinião, 85% deles voltam a cometer crimes quando ganham a liberdade, acrescentando que dizer que os presos são tratados para se ressocializarem é uma falácia. Eles são presos para serem punidos. São tratados como animais e, conseqüentemente, viram bichos. Para o relator da CPI, “o nó do sistema é a ineficiência da defesa dos presos, resultando em penas altas, falta de penas alternativas e superlotação, que é a mãe de todas as mazelas: doenças e o domínio do crime organizado, entre outras.” E prosseguiu o relator: “Em junho, a população carcerária do país era de 419.55l, 4,6% a mais do que o verificado em dezembro do ano passado e não haviam sido julgados ainda 122.320 homens e mulheres. Outro gargalo do sistema é a saúde. Sujos, úmidos e superlotados, os estabelecimentos penais são ambientes que facilitam a propagação das doenças.” Deus, que ouviu os vibrantes brados do poeta Castro Alves e o clamor da luta dos abolicionistas que extinguiram a escravatura no Brasil, também há de ouvir os defensores dos direitos humanos, para que não esmoreçam nas denúncias contra as misérias e desgraças a que estão submetidos e inflingidos os miseráveis prisioneiros, que, infelizmente, sofrem com a omissão e o descaso dos detentores do Poder Público. As autoridades se quedam silentes ante a barbaridade e o crime contra a humanidade praticados contra os infelizes apenados que se encontram em todas as prisões do país. As condições desumanas das prisões brasileiras – denunciadas pela Agência-Geral das Nações Unidas, que aprovou com o voto expresso do delegado brasileiro, Austregésilo de Athayde, em 10 de dezembro de 1948, a Declaração dos Direitos Humanos – constituem escabroso motivo de vergonha e opróbrio no seio das nações civilizadas do mundo. Entretanto, apesar do compromisso expresso em pactuar na defesa dos direitos humanos, o Brasil foi palco dos maiores horrores, tortura e barbaridades cometidos durante a ditadura militar, e que ainda continuam hoje, como denunciado pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto. O presidente lembrou que “cárcere não é depósito de lixo humano ou mercadoria estragada a ser conservada, e tem

duas funções: dar punição a quem delinqüiu e ressocialização. Não podemos aceitar que seres humanos sejam tratados como animais. Eles voltam à sociedade bem piores, e, por isso, o país precisa acabar com essa aberração que existe no sistema carcerário, que mantém os presídios como verdadeiros chiqueiros, verdadeiros depósitos de seres humanos.” Essa situação execrável não pode continuar e cabe ao Poder Judiciário, através dos seus organismos próprios das corregedorias criminais, fiscalizar e impedir que as prisões continuem mantendo essa condição de miséria humana que envergonha a Nação. Ao preso pobre, despojado de todos os bens e repelido pela sociedade que o condenou, só resta uma derradeira esperança: que a justiça exija do Estado o tratamento humano que, por direito, lhe é assegurado na Declaração dos Direitos Humanos, firmado pelo Brasil perante a Assembléia da Organização das Nações Unidas-ONU e introduzido na nossa Constituição.

Orpheu Santos Salles Editor P.S. - Este editorial já estava redigido quando recebemos do Secretário de Comunicação do Tribunal Superior Eleitoral, o discurso do Ministro Marco Aurélio Mello, pronunciado em agradecimento ao Prêmio “Franz de Castro” concedido pela Ordem dos Advogados de São Paulo (OAB-SP), cujo teor publicamos na página doze. 2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5


EDUCAÇÃO é a base da evolução humana Ives Gandra Martins Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE Membro do Conselho Editorial

Indicado por um seleto colégio eleitoral formado por acadêmicos, empresários e autoridades em todo o Brasil, o professor Ives Gandra Martins foi condecorado com o título de Professor Emérito 2007, consubstanciado pelo Troféu Guerreiro da Educação, instituído pelo Centro de Integração Escola-Empresa (CIEE), que é presidido pelo professor Paulo Nathanael.

D

izia o fundador da Universidade de Navarra que as pessoas que têm ideais e por eles lutam devem sonhar, porque seus sonhos ficarão aquém da realidade. Jamais imaginei, no distante 1954, quando ingressava com Ruth, minha mulher e companheira de todas as lutas e de todos os sonhos, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, e quando principiei a ensinar alunos para os vestibulares de Direito, em aulas particulares de latim, português e francês, que um dia aquele professor menino receberia o mais importante Prêmio de Educação no Brasil. Todos meus sonhos de professor, preparador de estudantes para admissão em Faculdades de Direito, e, posteriormente, de professor universitário, jamais incluíram o recebimento de láurea de tal magnitude, até porque, mais do que ninguém, tinha e tenho consciência de minhas limitações. Muitas vezes, passam elas despercebidas, por força da lição que aprendi de meu saudoso pai, de que todos nós fomos programados, na vida, “para não desistir” e que temos que batalhar sempre, nos momentos bons ou ruins, objetivando fazer o mundo melhor, mesmo que tudo sinalize em contrário, e as circunstâncias e o ambiente privilegiem vícios e defeitos que ganham ares de “politicamente correto”, os quais perfilam na sociedade atual, em permanente conflito. Programados para não desistir, tínhamos a obrigação, os quatro filhos, quando jovens, de ler “If ”, de Kipling, porque o velho José da Silva Martins procurava preparar-nos para compreender que é na adversidade que se cresce e costumava dizer que, se continuássemos a remar contra a maré, nos tempos de contradições, quando a maré viesse a ser favorável, 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

estaríamos muito adiante dos outros, que desistiram de lutar ou se acomodaram. Era um sábio e um educador. Nunca cursou uma escola, mas como autodidata transformou-se no primeiro escritor brasileiro a entrar no Guiness Book, por ter começado sua carreira literária aos 84 anos. Cobrava de seus filhos a leitura diária de um livro de moral, assim como obrigava-nos a redigir pequeno resumo do texto lido, com o que foi, ao lado da ternura educativa de minha mãe, nosso primeiro e grande educador. Creio que o mundo seria melhor se todos os pais compreendessem que sua principal missão é a de serem educadores de seus filhos, sendo a escola oficial apenas o complemento para forjar a personalidade do jovem e capacitá-lo tecnicamente. Tais lembranças ocorrem-me, agora, quando recebo a maior láurea da educação deste país, que é o prêmio instituído pelo CIEE para pessoas que, em uma nação que ainda não descobriu sua potencialidade e vocação, lutam para mostrar que a ponte para o futuro do Brasil só pode ser atravessada pelos caminhos da educação. Luiz Gonzaga Bertelli, Paulo Nathanael, Ruy Altenfelder e Antonio Penteado Mendonça, meus confrades na Academia Paulista de História, por cujas mãos ingressei naquele sodalício, conhecem, por serem brilhantes historiadores, que a humanidade, nos grandes ciclos civilizatórios, cresceu à luz da educação de seu povo, e os ciclos mais longos de duração dos impérios pré-modernidade foram aqueles em que a educação e a cultura embasaram a evolução de um povo em sua época. A história narrada nos últimos 6 mil anos e a pré-história


Foto: CIEE

dos últimos 194.000 anos do ser humano, na convivência, inclusive, do homo sapiens, erectus e habilis ou dos povos menos ou mais evoluídos (Cro-Magnon e Neandertal), revelam uma permanente e insaciável busca da verdade pelo homem, com perguntas que nunca foram respondidas apenas pela relação ontognoseológica, ou seja, entre o ser conhecedor e objeto conhecido, tais como: de onde viemos, para onde vamos, o que somos e o que devemos fazer. Tais elementares e não respondidas questões – pelo uso exclusivo da razão – lançaram, todavia, o homem na busca dos horizontes da percepção, no que a educação foi o instrumento permanente de descobertas e reflexões que, quanto mais avançaram no desventrar a humana aventura, mais descortinaram a realidade incomensuravelmente maior e indesvendável do que aquela que se imaginara. A história da humanidade, entretanto, descerra o papel da educação e da cultura no seu evoluir, na conformação de reinados e impérios diferenciados por sua arte e filosofia. A China, mais pragmática que mística, em que sobreleva os práticos objetivos de Sun Tzu e de Confúcio, contrapõe-se ao perfil do Japão e das Coréias, em que o idealismo samurai tornou valores, como a honra, prevalecentes sobre outros mais atuais, como a liberdade de divergir. A mística da Índia, nas diversas regiões e, principalmente, quando do império centrado em Mohenjo-Daro e da dominação do Imperador Ashoka – onde a educação conforma uma explosão caleidoscópica de povos, nos quais as castas e a ressurreição se completavam para justificar as injustiças sociais dominantes –, desenha seu retrato na história. E o que dizer dos povos do oriente próximo, desde os 2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


Foto: CIEE

sumerianos, elamitas, babilônios, assírios, hititas e outros, para os quais a educação circunscrevia-se às elites dominantes, que se consideravam representantes privilegiadas dos deuses? A civilização egípcia, por outro lado, que por mais de 4.000 anos isolou-se do mundo, protegida por fronteiras naturais, teve na educação elitista o segredo de sua evolução. Todas elas conformaram, no dizer de Arnold Toynbee, à luz de suas características diferenciais plasmadas pela educação e forjadas nos costumes que preservaram a sua passagem pela história. O povo hebreu, inclusive, nada obstante sua pouca expressão territorial e numérica, graças à educação de natureza fundamentalmente religiosa, manteve sua unidade que, por rotas diferenciais, permitiu que sobrevivesse até o presente, com os mesmos valores defendidos à época de seu nascimento. É interessante notar como a educação e a religião encontram-se, em todos estes povos, inteiramente ligadas, ao ponto de constatar-se que, apenas com os filósofos gregos, após a excelência dos questionamentos levantados pelos pré-socráticos, é que se conseguiu uma desvinculação entre ensino e religião, muito embora permaneçam até hoje – o que é bom – pontos de ignição e contato, em zonas fronteiriças, absolutamente vinculadas, fenômeno que é fácil diagnosticar. 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

Tome-se, por exemplo, a redescoberta do direito natural, segundo a religião, alicerçado na lei eterna, que gera um admirável pequeno núcleo de direitos fundamentais – a declaração universal dos direitos fundamentais da ONU é uma carta de direito natural –, sem interferir na conformação dos direitos positivos, que cabem ao homem produzir e não apenas reconhecer, como ocorre com aqueles princípios de direito natural, imutáveis e permanentes. Graças aos filósofos gregos pré-socráticos, aos três gênios que conviveram em Atenas (Sócrates, Platão e Aristóteles), e ao Helenismo, posterior, desenhou-se a civilização romana, que, ao instrumentalizar o direito, o conceito de cidadania e a educação, em seu império ocidental e oriental, permaneceu com forças de dominação durante 2.100 anos (754 A.C. a 1453 D.C.). A característica maior desta evolução humana, captada pela história das civilizações, não é empanada, durante a Idade Média, período que, historicamente, não corresponde à leitura superficial de alguns exegetas, ou seja, a um período de obscurantismo, mas, ao contrário, é período, de um lado, preservador da cultura greco-romana e, de outro, semeador do grande instrumento da educação moderna, que é a Universidade, a maior das contribuições para a vida temporal ofertada pela Igreja Católica.


Daniel Ropps entendia que foi este o período de superior idealismo na humanidade, gerador das cruzadas e de adoração ao Deus Supremo, representada pelas catedrais. Foi, todavia, também – e principalmente –, o tempo do despertar da educação profissionalizada, através da Universidade. É interessante notar que, à época, a pujante civilização árabe explodia em admirável riqueza cultural, filosófica e artística. Não é despiciendo lembrar que o maior filósofo cristão de todos os tempos, Tomás de Aquino, lastreou seus estudos, não só nas lições de Aristóteles, mas de Averrois e Avicena, filósofos árabes, sobre ofertar a visão cosmogâmica mais abrangente daquela religião, fundada por Jesus Cristo, ou seja, a única religião – em que a expressão aqui é utilizada à luz do verbo religare, que permite o retorno, o recontato de relações entre o homem e Deus –, na qual seu fundador não é um profeta, um mensageiro, mas o próprio filho de Deus encarnado. À evidência, graças a esta estupenda contribuição da Idade Média, desperta a aurora renascentista e a evolução cultural, científica e humana, pelos caminhos da educação, que terminam por descobrir, três séculos depois, no admirável mundo moderno, a era das Constituições, dos direitos fundamentais de 1a, 2a, 3a e 4a gerações, e a convicção de que todos os seres humanos têm dignidade própria e direito à educação para inserirem-se no mundo. E cada ser humano recebe esta vocação desde a concepção pois os seres humanos são seres humanos desde a concepção –, e não, como alardeiam os áulicos da conveniência e do egoismo, apenas após o nascimento. Hoje, o elemento diferencial que distingue – não se pode ainda falar em uma civilização pós-moderna do século XXI à falta de detecção de seus elementos conformadores – o universo de mais de 200 nações é a educação, a qual permite o crescimento de todos os cidadãos do mundo, que travam sua luta pela construção de tempos melhores. Só desta forma haverá possibilidade de criar-se e ofertar-se à humanidade melhores condições de preparo e melhor qualidade de vida. Escusando-me desta longa disgressão sobre o papel da educação no forjar das civilizações, pela história, que fiz apenas para realçar o quanto me sensibilizou receber a maior láurea que um professor poderia almejar, em nosso país e em vida, não poderia deixar de enaltecer o admirável trabalho que o CIEE realiza, que é de abertura ao jovem do mercado de trabalho, após sólida formação que lhes ministra, hoje atingindo a fantástica cifra de 7.000.000 de brasileiros, que tiveram nesta instituição o deslanchar de sua vida educacional e profissional, com notável contribuição para o crescimento do Brasil. O CIEE realiza para o país a mais extraordinária obra de integração entre educação e oportunidade de trabalho, servindo de modelo para as autoridades e para o mundo, tantos foram os magníficos resultados que, no curso de sua história, apresentou. O próprio prêmio “Guerreiro da Educação” tem, em seu nome, a marca da luta permanente por um Brasil melhor através da educação.

“O CIEE realiza para o país a mais extraordinária obra de integração entre educação e oportunidade de trabalho, servindo de modelo para as autoridades e para o mundo, tantos foram os magníficos resultados que, no curso de sua história, apresentou.”

2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


Foto: CIEE

um estímulo à consciência de cidadania Mauro Chaves

C

Advogado e Jornalista

om certeza me é honroso e difícil me desincumbir da tarefa de representar o jornal O Estado de São Paulo, na pessoa de seu diretor, o jornalista Ruy Mesquita – que, infelizmente, não pôde saudar pessoalmente o nosso novo Guerreiro da Educação, como pretendia –, porque Ives Gandra da Silva Martins é uma personalidade cuja riqueza de conhecimentos e de atuação, na vida pública nacional – e com destacável reconhecimento internacional –, não caberia em um pronunciamento de poucos minutos. Entretanto, aproveito para dar ênfase a apenas alguns dos muitos motivos de o amigo Ives merecer o honroso Prêmio Professor Emérito de 2007 e o Troféu Guerreiro da Educação, do Centro de Integração Empresa-Escola e do nosso Estadão. Deixando de lado o reconhecimento público e notório de uma competência profissional – o que é a motivação mais óbvia de ouvir o jurista e advogado Ives – percebi que a linguagem clara, compreensível, sem jurídico-economês, e, ao mesmo tempo, as posições diretas, corajosas, sem subterfúgios, ambigüidades ou prosopopéias, é o que de fato interessa aos profissionais da imprensa passar à opinião pública, pois nisso consiste a melhor e mais legítima informação. Como ninguém, ele remexe, criticamente, na máquina estatal de criação e cobrança de impostos, para denunciar as distorções fiscais, a ganância arrecadatória, o apetite pantagruélico do Leão, que, a cada santo dia, devora muitas presas – e o advogado e jurista Ives Gandra procura, com toda a força de sua competência, defender aqueles que lutam para sobreviver, heroicamente, com a tenacidade de seu tão massacrado e extorquido esforço de produção. Ives tem denunciado, incansavelmente, o sistema desconfigurado de 12 impostos, cada um deles com enorme peso na arrecadação; tem denunciado a infinidade de contribuições que foram criadas com a única intenção de substituir os impostos existentes e ludibriar os Estados, na partilha da arrecadação; tem denunciado os impostos regulatórios, como o imposto de importação, que ganharam caráter claramente arrecadatório; tem denunciado os impostos diferentes que incidem sobre o mesmo fato gerador, considerando isso uma “irracionalidade absoluta”; tem denunciado o fato de, no Brasil, quando governos falam de reforma tributária, o que só pretendem é aumentar a arrecadação; enfim, Ives Gandra está sempre pondo o dedo na ferida ao dizer que a União, os Estados e os Municípios querem mais tributos.

10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

Da esquerda: Mauro Chaves, Paulo Nathanael e Ives Gandra recebendo

Ives prega um sistema simplificado, com apenas um imposto sobre a renda, um imposto sobre o patrimônio e um imposto sobre a circulação de bens e serviços – e o órgão com melhor capacidade de arrecadação, entre os diversos entes públicos (União, Estados e Municípios), é que recolheria e partilharia esses tributos por definição constitucional. Idéia ousada e polêmica, sem dúvida, mas que Ives sempre soube defender com arguta argumentação. Assim como também defende a proposta de um Tríplice Poder Judiciário: com uma Corte Constitucional – o Supremo Tribunal Federal –, um tribunal destinado exclusivamente aos conflitos de competência e harmonização de jurisprudência, que seria o Superior Tribunal de Justiça, e um Tribunal de Contas da União (parte do Judiciário e não do Legislativo), com autonomia de decisão e execução, na função de fiscalização do Poder Público. Estes são apenas alguns exemplos da corajosa participação, no debate público, de um pensamento que não teme transformar-se em libelo, quando necessário. Entendo que o teatro de operações de um guerreiro da Educação vai muito além das salas de aula e se capilariza, pela via da comunicação, por todo o espaço público. E tanto melhor será se o conteúdo primordial dessa docência for um estimulo à consciência de cidadania. Neste sentido, o Troféu Guerreiro da Educação de 2007 estará em excelentes mãos.


o Diploma e o Prêmio Guerreiro da Educação

Eis o homem! Paulo Nathanael Presidente do Conselho Diretor do CIEE Nacional e do Conselho de Administração do CIEE/SP

I

ves Gandra da Silva Martins é um advogado por profissão e um educador por opção. Em ambas as atividades, pôs sempre a inteligência e o sentimento, a cultura e o talento, o cérebro e o coração. Estudioso incansável, guerreiro destemido e mestre inexcedível, chegou hoje, a este pódio, portando todas as exigências para tornar-se um Professor Emérito, não apenas desta ou daquela universidade, e sim do nosso CIEE, que se tornou, por reconhecimento global da sociedade brasileira, a maior e a mais exitosa ONG da América Latina, até mesmo por incluir, em sua atividade, dezenas de milhares de empresas e de escolas, entre colégios de ensino médio e instituições de educação superior, espalhadas por 2/3 do Brasil.

A escolha axiomática de nomes, como o de Ives, que dispensam razões e argumentos para justificá-la, honra a nossa instituição, fortalece a educação brasileira e vitaliza a convicção dos homens de bem deste país, de que – apesar das barbaridades, que, de tempos a esta parte, parecem deteriorar a alma nacional – ainda se pode confiar no fato de que nem tudo está perdido, e Varões de Plutarco existem para nos infundir fé e semear esperança. Assim como o fruto podre pode apodrecer os bons, quando a eles se mistura, o contrário pode acontecer. O fruto sadio poderá ter reconhecida a sua virtude de reverter os apodrecidos, e, ao final, prevalecer sobre eles, para impor seu estilo e permitir a refundação dos costumes e dos valores. Essa alternância entre o bem e o mal faz a história da humanidade e, se o mal precisa de hordas para impor-se ao bem, o bem depende apenas de líderes como Ives, para restabelecer a justiça e promover o progresso. Por isso tudo que dissemos, está, mais do que nunca, abonada a escolha do seu nome para receber esta homenagem, assim como o troféu que lhe dá concretude. Criado em segurança e sabedoria, iniciou Ives a brilhante carreira de advogado e professor, que o consagraria como uma das maiores cerebrações do Brasil contemporâneo, e lhe valeu este momento de aplausos e consagração do CIEE paulista e nacional. Integra 21 academias, das quais se destacam a Paulista de Letras, a Internacional de Cultura Portuguesa, a Lusíada de Ciências, Letras e Artes, a Paulista de História e a Cristã de Letras, onde dividimos as funções de Presidente e Vice. Presidiu e preside diversas entidades associativas no campo profissional e da cultura, e o que nada tem de despiciendo: é conselheiro vitalício do Conselho Consultivo dessa universidade brasileira de futebol, que é o São Paulo Futebol Clube. Participou e coordenou mais de quinhentos congressos e simpósios diversos (científicos, acadêmicos e culturais), além de compor bancas examinadoras de mestrados, doutorados, professores titulares e da livre docência em universidades públicas e privadas. Por esses e outros feitos, Ives acumulou láureas e condecorações da importância dos Colares do Mérito Judiciário dos Tribunais de Justiça de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, do Mérito do TCU, do Mérito Judicial do Trabalho (TST), e as medalhas Anchieta, da Câmara Municipal de São Paulo, do Mérito Militar do Exército e João Ribeiro da Academia Brasileira de Letras, entre outras, além de ostentar a cidadania honorária em relação a vários municípios do interior paulista. Para encerrar esse infindável rol de sucessos e troféus, não poderia deixar de referir-me a uma prática por ele amada e exercitada com maestria: a arte da poesia consubstanciada nos “Cem Sonetos”, em que, ao lirismo dos versos, junta-se o expressionismo plástico, pintor dos sonhos de todos. 2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


Foto: Cristóvão Bernado / OAB/SP 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007


“é o próprio estado brasileiro que desonra a constituição federal” Discurso proferido na solenidade de entrega do prêmio “Franz de Castro” de Direitos Humanos, organizada pela OAB/SP. Marco Aurélio Mello Ministro do STF Presidente do TSE

H

á pouco, há bem pouco tempo, manchetes veicularam, com o estardalhaço ufanista de praxe, a notícia de que o País fora promovido, por decisão da Organização das Nações Unidas, ao patamar daqueles com alto índice de desenvolvimento humano. Ainda no calor das comemorações, entretanto, O Globo divulgou fato dos mais humilhantes para governos com pretensões progressistas: 52% dos menores presos ou são mortos nos cárceres disfarçados de centros de ressocialização ou, livrandose soltos, retornam à prática delituosa. Antes, celebrou-se com fogos e bravatas de nuances hegemônicas, além da auto-suficiência em petróleo, a descoberta de colossal jazida do óleo na região de Santos, a elevar-nos à condição de “magnata do ouro negro”, com reivindicado assento na Opep, a organização que congrega os sultãos que o produzem. Na outra ponta dessa bússola, na Amazônia tão distante dos palácios governamentais, índios perecem como moscas. Morrem de fome ou suicidam-se, porque o alcoolismo, a miséria, o descaso de quem os devia amparar já lhes ceifaram toda esperança, a exemplo dos 831 indígenas encontrados, nas mais degradantes condições, em trabalho escravo no Mato Grosso do Sul, na Fazenda Brasilândia, de propriedade de um dos conselheiros do Instituto Ethos, cuja proposta é justamente estimular a responsabilidade social das empresas brasileiras. Para muitos, contudo, o que são todas essas mazelas humanas se o Brasil não tarda em obter o tão sonhado grau de investimento, a senha para a entrada no seleto rol dos países desenvolvidos e, quem sabe, o passaporte para um assento no Conselho de Segurança da ONU? Somos grandes! A sanha do capital externo se exacerba diante da quebra de outro recorde nacional – mais de 33 bilhões de dólares de investimento estrangeiro foram injetados na economia brasileira até o mês passado, o fatídico novembro em que o mundo soube, estarrecido, que uma jovem de 15 anos foi trancafiada, sob

a acusação de furto de um celular, com mais de 20 homens durante longos 26 dias, nos quais foi molestada sexualmente, além de espancada e queimada com pontas de cigarros. Cúmplices da tortura, policiais não satisfeitos em presenciar o espetáculo de horrores, ainda o filmaram, ao tempo em que olvidaram os gritos e os apelos da adolescente por comida. Descoberta a barbárie, ameaçaram de morte vítima e família. A notícia vazou e, então, nova encenação de auto-engano tomou conta do enredo, agora com agentes públicos na berlinda. Falemos sério: há o que comemorar no Brasil-potência? Sevícias, torturas, execuções, abuso de autoridade, extorsão; policiais corruptos, autoridades negligentes, servidores envolvidos com a criminalidade mais repugnante. O que causa perplexidade é que, de escândalo em escândalo, de barbárie em barbárie, a atingir tanto delegacias e presídios quanto os grotões mais miseráveis, palcos da prostituição e do tráfico de drogas, o próprio Estado aparece cada vez mais como partícipe, por ação ou omissão, por desconhecimento ou despreparo, por negligência, comodidade ou conformismo. Quando se cuida de acusados por algum delito – por menor que seja, não importa –, ao Estado brasileiro parece justificar-se um tratamento penoso, declinando de atenção mais acurada aos direitos humanos, numa lógica das mais perversas, a do “bem feito”! É como se, desrespeitadas as regras de convivência social, fizesse parte do jogo deportar o desgraçado que claudicou para os mais tenebrosos calabouços medievais, como aquela delegacia na capital catarinense, onde 5 presos preferiram ser acorrentados do lado de fora da cela porque, apesar de não tomarem banho e ficarem obrigados a satisfazer as necessidades em garrafas e sacos plásticos, pelo menos não teriam que suportar o cheiro de suor e a poeira ou dormir uns por cima dos outros, já que do privilégio de dormir sentado no vaso sanitário assenhorearam-se outros três. Na cela para 4, espremem-se 17. Escolheram bem os 5 que optaram por 2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


“Se, como cidadãos, os brasileiros não são respeitados por quem tem o dever de protegê-los, então que o faça uma entidade estrangeira, sob o argumento irrefutável da simples humanidade que ampara e distingue cada qual, pouco importando a natureza do desvio de conduta ocorrido.“ correntes nos pés, renunciando à condição de humanos. Pelo menos tiveram direito ao vento que areja o corredor da delegacia catarinense. Sob esse ângulo, parece claro que a mentalidade reinante é a de puramente castigar, e não recuperar. Os métodos, em certos casos, fariam enrubescer nazistas. Na época de exceção, os torturadores legitimavam as mais terríveis selvagerias com panacéias ideológicas. E hoje, o que justifica tanto desprezo pelos mais básicos direitos humanos, pela humanidade de quem delinqüiu? País de contrastes evidentes, a população se mostra acostumada com os paradoxos, quando não os cultua, sob a rubrica muito em voga de “diversidade”, que, em tempo algum, jamais, viabiliza o benefício das classes mais pobres. Na base da pirâmide, grassa o racismo, a discriminação, os depoimentos extorquidos. Ou não se trata de tortura o amontoamento de gente como se fosse gado em cadeias imundas, sem luz, sem banheiros, sem ar, sem comida, sem um mínimo de dignidade, depósitos fétidos em que presos cumprem pena sem passarem por um julgamento sequer? À vista desse quadro tão pouco surpreendente, chegase com facilidade à conclusão de que é o próprio Estado brasileiro que desonra a Constituição Federal, em cujo artigo 5° – o das garantias individuais – assegura-se que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; que a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do acusado; que aos presos é devido o respeito à integridade física e moral. Sendo assim, a quem recorrer? Não há falar-se em intromissão, em afronta à soberania interna, quando, apanhados em flagrante, expostos à reprovação internacional, repercutem as reprimendas do Alto Comissariado da ONU sobre a falta de compromisso no tocante à ratificação de quatro convenções daquela organização mundial – relativas exatamente a direitos humanos, tortura, direitos dos deficientes e das pessoas desaparecidas –, sobretudo, em face do recorrente e ostensivo desrespeito aos tratados já assinados. Com respaldo em acontecimentos como o das execuções no Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, ou nas denúncias de depoimentos viciados, arrancados à força, representantes da ONU acham-se confortáveis para palpitar em assuntos da economia interna brasileira, a exemplo da recente recomendação de que sejam instaladas nos presídios e 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

delegacias câmaras de segurança de modo a viabilizar, entre outros procedimentos, a gravação de interrogatórios. Não há o que retrucar quando o algoz é o próprio Estado. Se, como cidadãos, os brasileiros não são respeitados por quem tem o dever de protegê-los, então que o faça uma entidade estrangeira, sob o argumento irrefutável da simples humanidade que ampara e distingue cada qual, pouco importando a natureza do desvio de conduta ocorrido. No dia em que se completam 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos – solene e prontamente endossada pelo Brasil –, afigura-se mais do que pertinente refletir sobre qual tipo de nação almejamos para os próximos 60 anos. Pois o que vem a ser efetivamente o progresso senão o bem-estar de todos ou, pelo menos, da maioria? De que serve um PIB maior que o da Índia ou da Rússia se a imensa população de miseráveis vê-se excluída da rede de proteção social do Estado e, portanto, privada de serviços básicos como o acesso à saúde, educação, segurança e até ao esgoto? Por quanto tempo ainda o Brasil ostentará, sem demonstrar preocupação ou vergonha, o título de líder em concentração de renda, mesmo que a ninguém mais escape a certeza de ser a pobreza tanto causa como conseqüência da violação de direitos humanos? Honra-me sobremaneira receber um prêmio como este. Orgulha-me a companhia de brasileiros tão ilustres, alguns cuja vida foi dedicada inteiramente à causa dos direitos humanos, mormente num país em que tais garantias são confundidas com “mimos” à “bandidagem”, premissa a decorrer mais da falta de esclarecimento quanto à necessidade de ressocialização dos infratores, postos sob a tutela estatal não para serem barbarizados, mas a fim de retornarem recuperados ao convívio pacífico na sociedade. Com doses maciças de educação, não tarda que se resolvam esses mal-entendidos. A inobservância da cláusula constitucional que impõe ao Estado proporcionar ensino fundamental obrigatório e gratuito a todos, com a progressiva universalização do ensino médio gratuito, com acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, sem falar no atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a cinco anos, é suprida graças ao esforço de idealistas do porte do Professor Edevaldo Alves da Silva, que capitaneia o grupo educacional FMU de maneira despojada e voltada a propiciar aos alunos formação suficiente ao enfrentamento do impiedoso mercado de trabalho.


Foto: STF

Disso, como professor do grupo, sou testemunha, sendo exemplo encontrarem-se nesta sala egressos das Metropolitanas, inclusive – e eis ímpar destaque –, o diligente, o combativo advogado e presidente da OAB/SP, o Dr. Luiz Flávio Borges D’urso. Surge a valia da opção do constituinte de 1988 pela ênfase ao setor privado, fenômeno que certos homens públicos fingem desconhecer e, em vez de promoverem incentivos, criam obstáculos – diretos e indiretos –, dificultando o acesso ao ensino superior, como se este já fosse viável em larga escala, consideradas faculdades públicas. Nesse ponto, o Brasil, comparado com outras nações, até mesmo da América Latina, caminha a passos lentos. O percentual dos alunos que completam o ensino fundamental e chegam ao ensino superior é ínfimo. Mais satisfeito ficarei no dia em que distinção como esta da qual sou alvo vier a tornar-se desnecessária, porque entranhada, nas instituições e em cada qual dos brasileiros, a devida atenção, o acatamento incondicional aos direitos humanos, como forma coerente de atingir, além do objetivo maior do Estado – o bemestar de todos, a tão almejada paz social –, o respeito inconteste – e não apenas na esfera econômica – de toda a comunidade internacional. Oxalá não se afigure esse sonho mera utopia, mas realidade que se avizinha próxima e definitiva.

Nota do editor O pronunciamento do Ministro Marco Aurélio Mello, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, na solenidade de outorga do Prêmio “Franz de Castro” de Direitos Humanos, pela OAB-SP, constitui, pela oportunidade, contundente libelo contra o sistema carcerário, desrespeitos aos direitos humanos, distorções sociais e econômicas, apontando, inclusive, os incontáveis erros do Estado, partícipe efetivo pela omissão, pela negligência, pelo despreparo e pelo conformismo.

2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


A REVISÃO CONTRATUAL EX OFFICIO: QUESTÕES ATUAIS Humberto Martins Ministro do STJ

U

A revisão judicial e as espécies contratuais m dos problemas que mais afetam a dogmática e a jurisprudência no Direito dos Contratos está na revisão ex officio das cláusulas dos negócios jurídicos. A revisão contratual exige, de início, que se estabeleça uma suma divisio antes do exame da espécie a ser analisada em juízo. Essa distinção exige o conhecimento sobre a natureza do contrato, se cível ou se de consumo. O Superior Tribunal de Justiça, após longo debate, tomou uma posição sobre a polêmica entre as Escolas Maximalista e Minimalista. O maximalismo, também conhecido por Escola Jurídica ou Escola Objetiva, prega a tese da interpretação abrangente das relações de consumo. Essa escola “baseia-se no ato de consumo, desconsiderando afetações de caráter subjetivo quanto ao consumidor atuar ou não profissionalmente. A aquisição ou o uso de bens ou serviços para o destinatário final fático caracteriza o liame de consumo, permitindo a incidência das normas protetivas.” Essa linha era adotada na primeira e na terceira turmas do Superior Tribunal de Justiça. O minimalismo, ainda conhecido por Escola Econômica ou Subjetiva, que tinha o sufrágio da quarta e da sexta turmas do Superior Tribunal de Justiça, restringe o conceito de consumidor à idéia de destinatário final, desvinculando-o da atividade lucrativa e do repasse de bens no tráfego jurídico. Em suma, prevalece o juízo de que, se todos são consumidores, termina-se por ninguém o ser, dada a excessiva proteção a um segmento excessivamente amplo de pessoas. A uniformização da jurisprudência quanto a esse importante tema ocorreu em 2004. Em um primeiro momento, no julgamento do Conflito de Competência 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

41.056/SP, prevaleceu a Escola Maximalista, porém, de forma mitigada. O caso dizia respeito a seguinte tese: uma farmácia pode ser tida como consumidora em relação a uma operadora de cartões de crédito? A segunda seção do Superior Tribunal de Justiça compreendeu que sim, guardadas as peculiaridades do caso. Transcrevo a ementa, que é bem explicativa quanto ao resultado da atividade hermenêutica desse órgão fracionário: “Processo civil. Conflito de competência. Contrato. Foro de eleição. Relação de consumo. Contratação de serviço de crédito por sociedade empresária. Destinação final caracterizada. Aquele que exerce empresa assume a condição de consumidor dos bens e serviços que adquire ou utiliza como destinatário final, isto é, quando o bem ou serviço, ainda que venha a compor o estabelecimento empresarial, não integra diretamente – por meio de transformação, montagem, beneficiamento ou revenda – o produto ou serviço que venha a ser ofertado a terceiros. O empresário ou sociedade empresária que tenha por atividade precípua a distribuição, no atacado ou no varejo, de medicamentos, deve ser considerado destinatário final do serviço de pagamento por meio de cartão de crédito, porquanto esta atividade não integra, diretamente, o produto objeto de sua empresa.” Todavia, no mesmo ano, precisamente em 10/11/2004, a segunda seção reformulou essa ordem de conceitos e passou a adotar, de forma moderada, a teoria minimalista. Essa virada na jurisprudência ocorreu no julgamento do Recurso Especial 541.867/BA, quando prevaleceu a divergência suscitada pelo Ministro Barros Monteiro.


A revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor A revisão contratual, no âmbito do Código de Defesa do Consumidor, está vinculada à conservação do sinalagma genético e ao sinalagma funcional, conforme as categorias clássicas do Direito Privado. De modo objetivo, as normas consumeristas permitem que o juiz intervenha no negócio jurídico para “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” (art.6o, inciso V, CDC). Em relação ao Código Civil, a sedes materiais da estabilidade do sinalagma funcional encontra-se nos arts. 478-480, que conjugam as teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva para reger a intervenção do juiz no contrato. A interpretação

Foto: STJ

Interessa extrair do voto-condutor alguns fundamentos. Segundo esse, a relação entre a operadora de cartão de crédito e o titular da cártula eletrônica dá-se a partir de um vínculo de “consumo intermediário”: “Vale dizer, a pessoa natural ou jurídica comerciante emprega o sistema de crédito ou de pagamento à vista por meio eletrônico, fornecido pela administradora de cartão de crédito, como forma de incrementar suas atividades comerciais.” Dessa forma, o uso do cartão, em tais condições, é indissociável do objetivo de “facilitar a prestação de serviços a seus clientes, até mesmo com a finalidade de ampliar os lucros.” A idéia central era de que o Código de Defesa do Consumidor não visava à proteção do empresário, no exercício de seu mister comercial, quando atuava em prol de sua atividade negocial específica. Em outras palavras: “O produto adquirido não se destina ao consumo próprio, daí porque inexiste a relação de consumo a atrair a competência da vara especializada”. Posteriormente, em outros prejulgados, a segunda seção tem reafirmado a tese econômico-minimalista em sua feição mitigada. Assim, decidiu-se que: a) não há relação de consumo em “contrato de financiamento para incrementação da atividade econômica de empresa”, pois os mutuários “não são considerados destinatários finais, afastando-se, assim, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor”; b) “hospital adquirente do equipamento médico não se utiliza do mesmo, como destinatário final, mas para desenvolvimento de sua própria atividade negocial; não se caracteriza, tampouco, como hipossuficiente na relação contratual travada, pelo que, ausente a presença do consumidor, não há de se falar em relação merecedora de tutela legal especial. Em outros termos, ausente a relação de consumo, afasta-se a incidência do CDC, não havendo de se falar em abusividade de cláusula de eleição de foro livremente pactuada pelas partes, em atenção ao princípio da autonomia volitiva dos contratantes”. Estabelecida essa distinção entre relações de consumo e relações de direito privado comum, interessa resolver o problema da intervenção judicial ex officio para revisão de cláusulas contratuais.

“A idéia central era de que o Código de Defesa do Consumidor não visava à proteção do empresário, no exercício de seu mister comercial, quando atuava em prol de sua atividade negocial específica.” 2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17


literal do art. 478 induz que se conclua estar limitado o julgador à resolução do contrato por onerosidade excessiva. No entanto, a dogmática conferiu a esse dispositivo um sentido mais amplo, que compreende as hipóteses de resolver ou revisar o contrato, desde que presentes os requisitos necessários à incidência do art. 478. Essa óptica obedece ainda à trajetória das construções pretorianas brasileiras, das mais antigas às contemporâneas. Ressalte-se que, em muitas dessas decisões, seu fundamento consistia na admissão de estarem presentes os requisitos da antiga cláusula rebus sic stantibus, algumas vezes erroneamente confundida com a teoria da imprevisão. É sintomático quanto à evolução da hermenêutica em torno do art. 478 que se vislumbre em seu teor, conquanto não se trate expressamente da atividade revisional em seu texto, da preeminência da atividade de revisão sobre a resolutiva. Nas Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo Conselho da Justiça Federal, aprovou-se um enunciado específico que reforça essa idéia: “Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos, e não à resolução contratual”. No respeitante ao sinalagma genético, o Código Civil dele ocupou-se nos arts. 157 e 158, respectivamente, alusivos ao estado de perigo e à lesão. Diferentemente do Código de Defesa do Consumidor, o direito comum exige para essas duas figuras jurídicas a presença de requisitos subjetivos. Ao estado de perigo é necessária a prova do estado de necessidade, somado ao dolo de aproveitamento. A lesão, outrossim, exige a premente necessidade ou a inexperiência da parte. Quanto aos efeitos da sentença, o estado de perigo comporta exclusivamente a anulação do negócio. A lesão, porém, contempla a abertura para que o réu se ofereça para modificar o equilíbrio das prestações. A melhor doutrina, de um modo geral, preleciona que não se pode revisar contratos eivados do defeito do art. 156 do Código Civil. A revisão contratual ex officio e suas implicações jurídicas Após as delimitações teóricas sobre os dois principais regimes jurídicos da contratação privada (cível e consumerista), apresentaram-se as diferentes formas legalmente previstas para a manutenção do sinalagma contratual. Resta, por fim, enfrentar o problema do modo como o juiz se relaciona com essas pretensões. O Superior Tribunal de Justiça, especialmente nas ações envolvendo liames de consumo, em um primeiro momento, decidiu-se pela ampla revisibilidade das cláusulas contratuais. Esses juízos eram alicerçados na idéia de que a natureza abusiva das convenções permitia ao magistrado interferir na avença, independentemente de provocação da parte. O abuso convertia-se em nulo. Problemas de índole processual, como a incidência do princípio da inércia (ne procedat iudex ex officio) ou da eficácia devolutiva dos recursos (tantum devolutum, quantum appellatum) eram afastados pela Corte, sob o influxo de que a 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

abusividade da cláusula revestia-se de caráter de ordem pública: “os precedentes deste STJ, que se firmaram no sentido de que é possível ao juiz reconhecer, de ofício, o caráter abusivo de cláusulas contratuais, anulando-as, por se tratar, nos termos do art. 51, IV, do CDC, de nulidade de pleno direito.” Na verdade, essa hermenêutica parece ter sido causada por uma migração do problema da análise da cláusula de foro de eleição, prevista no art.112, CPC, em seu texto primitivo. O Superior Tribunal de Justiça, de muito antes, havia relativizado a força da autonomia da vontade, quando as partes escolhiam o foro competente para interpretar o negócio. Hipóteses como contratos de adesão, hipossuficiência da parte, cláusulas escritas em letras minúsculas ou escolha de foro que inviabilize o exercício do direito de ação eram tidas como causais ao efeito de ser anulada ex officio a convenção das partes, quanto ao juízo competente. A essa ampliação excessiva, a Corte mostrou-se corretamente equilibrada e procedeu a uma necessária virada em sua jurisprudência, sob a égide de precedentes como o brilhantemente relatado pelo Ministro César Asfor Rocha. O caso-líder é o Resp n.541.153/RS. Na espécie, analisava-se um contrato de arrendamento mercantil, discutido em ação revisional. O relator, atentando para os óbices processuais do art.515, CPC, definiu ser inviável ao Poder Judiciário reduzir ex officio o valor de juros, sem requerimento da parte. Ao exemplo do que firmou o relator: “A capitalização mensal, matéria acerca da qual não houve exame de ofício, é de ser inadmitida na hipótese. Isso porque, embora a orientação firmada na Segunda Seção a partir do julgamento do Resp 602.068-RS (relator o eminente Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, DJ 21.03.2005) seja no sentido de que é possível a pactuação de capitalização mensal, essa contratação só é admitida para contratos firmados posteriormente à edição da MP 1963.” Posteriormente, as emanações da segunda seção adotaram esse critério de modo uniforme, criando um novo norte para os estudos dogmáticos. O Ministro Massami Uyeda, a esse propósito, confirma a nova orientação do STJ: “O entendimento mais recente desta egrégia Corte é no sentido da impossibilidade do reconhecimento, de ofício, de nulidade de cláusulas contratuais consideradas abusivas, sendo, para tanto, necessário o pedido expresso da parte interessada.” No que tange ao Direito do Consumidor, as construções do STJ não fazem qualquer discrímen. A hipossuficiência do consumidor não será causa para interferência ex officio do magistrado. Com maior razão e fundamento, no Direito Civil, no qual se presume a igualdade das partes, é de ser vedado esse atuar jurisdicional. A evolução do Direito no século XXI exige do magistrado a necessária percepção de que as conquistas sociais devem ser contempladas à luz da realidade contemporânea. O excesso de intervenção judicial pode ocasionar um aumento excessivo do custo das relações jurídico-econômicas. As restrições à revisão ex officio de cláusulas contratuais inserem-se nesse contexto.


2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


Infidelidade partidária Roberto Felinto Desembargador do TJ/RJ Presidente eleito da AMAERJ

A

Constituição de 1988 estabelece, em seu artigo 1º, que a República se constitui em Estado Democrático de Direito, esclarecendo ainda, no parágrafo único do referido dispositivo, que todo o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos. Em síntese, podemos definir o Estado Democrático de Direito como a verdadeira consagração do poder popular. Como o exercício do poder diretamente pelo povo ocorre apenas nas hipóteses previstas no artigo 14 da Carta Magna (plebiscito, referendo e iniciativa popular), tem-se que a regra geral é a da representatividade. O Poder Legislativo, objeto dessas breves considerações, é exercido pelo Congresso Nacional, integrado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, casas que se compõem, respectivamente, por representantes do povo e dos Estados e Distrito Federal. Os deputados são eleitos pelo sistema proporcional e os senadores, segundo o princípio majoritário (artigos 44 a 46 da Constituição). Por outro lado, o exercício do mandado político que o povo outorga a seus representantes ocorre por intermédio dos partidos políticos, entidades cuja existência e fortalecimento mostram-se imprescindíveis para a preservação do Estado Democrático de Direito. 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

O partido político é instância associativa permanente e estável, dotada de ideologia e programa próprios, destinados à arregimentação coletiva, buscando conquistar o poder, seja pela ocupação de cargos, seja pela capacidade de influenciar nas decisões políticas. Portanto, o partido político possui como função primordial organizar a vontade popular e exprimi-la na busca do poder. Em suma: o partido político é o instrumento pelo qual se realiza a representação política do povo, uma vez que nosso sistema eleitoral não admite candidaturas avulsas, haja vista a regra do artigo 14, parágrafo 3º, inciso V, da Lei Maior, que exige a filiação partidária como uma das condições de elegibilidade. A corroborar tal entendimento, prevê a legislação infraconstitucional a possibilidade, nas eleições proporcionais, do voto de legenda, ou seja, aquele que é dado exclusivamente ao partido, sem menção ao nome do candidato, sendo contado como válido para o cálculo dos quocientes eleitoral e partidário, os quais, por seu turno, determinarão o número de candidatos eleitos por cada agremiação. Não é demais salientar, também, que, se a Constituição põe a democracia como princípio fundamental, como acima se observou, e estabelece o pluripartidarismo como princípio de organização partidária (artigo 17, caput), infere-se como


Foto: Arquivo Pessoal

“Certamente, a conseqüência da infidelidade é o enfraquecimento da democracia e das instituições que a compõem.” corolário lógico a possibilidade de dissenso e a alternância no poder, o que pressupõe a existência, sempre, de uma maioria governante e uma minoria discordante. Assim, enquanto o partido da situação e seus eventuais aliados desempenham a função governamental, procurando exercer o poder segundo as concepções constantes de seus programas, os partidos de oposição têm por encargo controlar os atos dos governos eleitos, nos âmbitos federal, estadual e municipal, constituindo-se, ainda, em alternativa válida para assumir a condução do Estado (aí incluídos todos os entes federativos), em eleições futuras, além de, no plano legislativo, constituir maiorias parlamentares. Destarte, um dos pilares do regime democrático é a existência de partidos fortes e ideológicos, com programas de governo bem elaborados, discutidos e socialmente conhecidos. Tecidas essas ponderações preliminares, passa-se a abordar o tema que dá título ao presente artigo. Como exemplo da importância atribuída pela Constituição aos partidos políticos, tem-se a regra estatuída pelo parágrafo 1º do artigo 17, segundo a qual devem os respectivos estatutos estabelecer normas de fidelidade e disciplina partidária. E isso não se traduz em mera faculdade, mas em efetivo dever, já que se cuida de norma que tem natureza cogente.

Como observa José Afonso da Silva, em sua festejada obra Curso de Direito Constitucional Positivo (Malheiros, 25ª ed., p. 406), a disciplina deve ser entendida como respeito e acatamento do programa e dos objetivos do partido, às regras de seu estatuto, cumprimento de seus deveres e probidade no exercício dos mandatos, bem como a aceitação das decisões tomadas pela maioria de seus filiados e militantes. Ainda segundo o mesmo autor, o ato indisciplinar mais sério é o da infidelidade partidária, que se manifesta de dois modos: a oposição, pela atitude ou pelo voto, a diretrizes legitimamente estabelecidas pelo partido, e o apoio ostensivo ou disfarçado a candidatos de outra agremiação. Além das duas hipóteses relacionadas pelo insigne constitucionalista, não se pode deixar de reconhecer também como infidelidade o fato de o candidato eleito se desligar do partido. As constantes trocas que se verificam imediatamente após as disputas eleitorais, tendo como protagonistas os parlamentares recém-eleitos (as quais, com raras e honrosas exceções, são motivadas não por questões ideológicas, mas por inconfessáveis interesses particulares), constituem espetáculos deprimentes, que debilitam os partidos e desqualificam os envolvidos. Com efeito, ao migrar para outra agremiação, acabam despeitando a escolha do eleitor, 2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


“É necessário alterar a constituição para coibir migração partidária e uso da política como jogo de interesses pessoais, contribuindo, assim, para o aperfeiçoamento da democracia no brasil.”

22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

que, bem ou mal, ainda que mirando a pessoa do candidato, votou na legenda partidária. E isso porque, em tese, ao escolher seu representante, o eleitor se baseia nas idéias apresentadas, as quais devem estar sintonizadas com a linha estabelecida pelo partido. Certamente, a conseqüência dessa conduta é o enfraquecimento da democracia e das instituições que a compõem. Todavia, em que pese estarem os partidos obrigados a prever sanções para os atos de indisciplina e infidelidade, os quais poderão ir da simples advertência à exclusão, é certo que a Constituição não permite a perda do mandato por infidelidade partidária, vedando-a nas hipóteses distintas daquelas previstas em seu artigo 15, dentre as quais a mesma não se insere. Embora não se desconheça que boa parte dos eleitores assuma “não votar em partidos, mas em candidatos”, tratase de cultura que não deve ser incentivada, pois acaba estimulando o surgimento de líderes messiânicos, que, via de regra, se apresentam como verdadeiros salvadores da pátria, sem qualquer vinculação com as idéias e o programa dos partidos em cujas legenda tiveram abrigo. Aliás, a história recente da República registra muitos exemplos nesse sentido, merecendo menção, pela notoriedade que dispensa até mesmo referências pessoais, dois casos de eleição de Presidentes da República com esse viés, ambas com resultados desastrosos, pelas crises institucionais que provocaram: uma culminou em renúncia precoce (apenas sete meses depois da posse), por motivos até hoje não suficientemente esclarecidos, e a outra, cujo desfecho foi também a renúncia, diante da iminente decretação, pelo Congresso Nacional, de impeachment do eleito, por suposto envolvimento naquilo que o genial Chico Buarque de Holanda, em uma de suas obras-primas, denominou de “tenebrosas transações”. À conta de tais considerações, conclui-se que o mandato parlamentar pertence ao partido, e não ao candidato, que, ao menos teoricamente, se elegeu graças ao programa que apresentou ao eleitor. Esse entendimento, aliás, já foi manifestado pelo Tribunal Superior Eleitoral, cujos ministros, em resposta à Consulta no 1398, formulada pelo então Partido da Frente Liberal (atual Democratas), definiram, por maioria de 6 votos a 1, que os mandatos obtidos nas eleições proporcionais (deputados federais, estaduais e vereadores) são do partido. Faz-se necessário, pois, alterar a Constituição de modo a permitir não apenas a perda do mandato por parte dos infiéis, mas também a aplicação de sanções aos partidos que os receberem, a fim de coibir a migração partidária e o uso da política como jogo de interesses pessoais, com o que certamente se contribuirá para o aperfeiçoamento da democracia no Brasil.


2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


A função social da jurisdição Renato Ricardo Barbosa Juiz da 15ª Vara Cível/RJ

J

urisdição define-se como “poder atribuído a uma autoridade para fazer cumprir determinada categoria de leis e punir quem as infrinja em determinada área”. O Pergaminho Processual Civil, em seu artigo 1º, classifica a jurisdição civil em contenciosa e voluntária. Entretanto, a doutrina moderna predominante no Brasil reconhece que, do ponto de vista científico, somente é jurisdição a chamada contenciosa, pois, a tradicionalmente denominada voluntária, não é jurisdição e nem voluntária. “O Estado defende com a jurisdição a sua autoridade de legislador” (Calamandrei, Instituzioni di Diritto Processuale Civile sesecondo il nuovo Códice, § 9). No magistério de Gabriel José Rodrigues de Resende Filho, in Curso de Direito Processual Civil, p. 98, com amarras na assertiva de Calamandrei, está dissertado, verbis: “Pelos seus juízes e tribunais, o Estado se confirma a si mesmo, fazendo que a sua autoridade, do empíreo das leis abstratas, desça ao nível das vicissitudes humanas e regule eficazmente a conduta dos indivíduos.” Esta duas formas axiomáticas de dizer o direito já nos dão os traços do perfil social da jurisdição. Quando o Estão busca no empíreo, isto é, na morada dos deuses, as leis abstratas, trazendo-as ao nível das vicissitudes humanas, outra coisa não faz senão socializar o direito e, em conseqüência, a jurisdição. Estreme de dúvida, a jurisdição é uma função da soberania do Estado. É o poder de declarar o direito aplicável aos fatos. “No regime de legalidade, é missão precípua do Estado manter o prestígio e a autoridade da lei.”, conclui Gabriel Resende Filho, Obra citada, p. 88. Hoje é inadmissível que outras instituições ou pessoas, além dos juízes e tribunais, possam tornar-se, no território nacional, órgãos da atuação da lei. A evolução histórica e a dinâmica da jurisdição Em tempos recuados, contudo, no florescer do Direito, não tinha o Estado a competência exclusiva, através dos seus juízes e tribunais, para julgar os conflitos. Para estudarmos este instituto fundamental da Proces-

24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

sualística Civil, a jurisdição, em sua angularidade temporal, e discuti-la, com segurança, mister se faz enquadrá-la em uma larga visão histórica. Seu ponto principal de partida é o processo romano, já que os povos mais antigos como os egípcios, os judeus e os gregos tiveram juízes e tribunais também. Entretanto, seus ensaios de prática processual eram indistintos e confusos, mesclando-se com a interferência de líderes de tribos, sem oferecer, em conseqüência, elementos valiosos para o estudo da evolução do processo civil. Não tiveram, contudo, importância técnica e social, revelando-se ausentes da história, uma vez que, induvidosamente, o berço do direito foi Roma. Povo guerreiro e prático, o romano, segundo lição de Gabriel Resende Filho, antes de tudo, respeitava, profundamente, as leis, razão pela qual podemos dizer que, já naquela época, esboçava-se procedimentos jurisdicionais. Constata-se, então, àquele tempo, não só o período formulário e o período da cognitia extraordinária, sem dúvida, características iniciais da jurisdição, mas também o processo primitivo que se caracterizava por duas fases distintas: • procedimento in jure, perante o magistrado, órgão do Estado; • procedimento in judicio, perante os cidadãos escolhidos como árbitros ou jurados. À época, havia apenas cinco fórmulas para as denominadas ações da lei – legis actiones, a saber: actio sacramenti, actio per judicia postulationem, actio per condictionem, manus injectio e pignoris capio. Todas com suas ritualísticas próprias. No entanto, indiscutivelmente, surge a jurisdição, envolta em aspectos tipicamente sociais com o Imperador Diocleciano, simplificando bastante o processo com a dispensa das fórmulas pretorianas, dirigindo-se as partes diretamente aos juízes. Extingue-se, então, a tradicional divisão do procedimento in jure e in judicio, cometendo aos juízes, funcionários do Estado, a competência para conhecer os litígios, desde a petição inicial até a execução de sentença, o que perdura até os dias atuais. Diocleciano, àquele tempo, vicejava a função social da jurisdição, pois, ao confiar ao juiz, e só a ele, como funcionário do Estado, o poder de dizer o direito, está, antes de mais nada,


Arquivo JC

Foto: Vinícius Gonçalves

não só através da jurisdição, procurando realizar o direito material, como, também, revelar a idéia superior de que os objetivos buscados são, sobretudo, objetivos sociais. A jurisdição no processo moderno e o aspecto científico de sua aplicação Hoje, mais do que nunca, floresce a proverbial afirmativa latina: Ubi societas ibi jus. Em verdade, no atual estágio dos conhecimentos científicos sobre o direito, é predominante o entendimento de que não há sociedade sem direito. Inegavelmente, a causa desta correlação, entre sociedade e direito, está na função que o direito exerce na sociedade: a função ordenadora, isto é, de coordenação dos interesses que se manifestam na vida social, de modo a organizar a cooperação entre as pessoas e compor os conflitos que se verificarem entre os seus membros. Podemos dizer, por isso, baseados no magistério de Ada Pellegri Grinover, que a tarefa da ordem jurídica é, exatamente, a de harmonizar as relações sociais intersubjetivas, a fim de ensejar a máxima realização dos valores humanos, com o mínimo de sacrifício e desgaste. O critério que deve orientar essa coordenação ou harmonização é o critério do justo e do equitativo, de acordo com a convicção prevalente em determinado momento e lugar. Ressalta-se que, assim, pelo aspecto sociológico, o direito é, geralmente, apresentado como uma das formas – sem

dúvida, a mais importante e eficaz dos tempos modernos – do chamado controle social, dos ideais coletivos e dos valores que persegue, para a superação das antinomias, das tensões e dos conflitos que lhe são próprios. A jurisdição, em seu pervagar por veredas tortuosas, face às mudanças abruptas por que passou, evoluiu até os dias de hoje, pois, atualmente, como se pode ver, somente os juízes dizem o direito, agindo em substituição às partes, que não podem fazer justiça com as próprias mãos (vedada a autodefesa); a elas, que não mais podem agir, resta a possibilidade de fazer agir, provocando o exercício da função jurisdicional, já que um de seus princípios é a inércia. Diga-se, contudo, que, em seu tracejar evolutivo, a jurisdição não prosperou, linearmente, de maneira límpida e nítida. A história das instituições faz-se através de marchas e contramarchas, entrecortada, freqüentemente, de retrocessos e estagnações, de modo que a forma de seu evoluir constitui apenas uma análise macroscópica da tendência no sentido de chegar ao Estado todo o poder de dirimir conflitos e pacificar pessoas. Esse poder de pacificar pessoas é justamente o que distingue a jurisdição das demais funções do Estado (legislação, administração), é, precisamente, insista-se, em primeiro plano, a finalidade pacificadora com que o Estado a exerce. Em realidade, são três os objetivos visados pelo Estado em seu exercício: social, político e jurídico. A pacificação é o escopo magno de jurisdição e, por conseqüência, de todo o sistema processual. É, sem dúvida, um escopo social, uma vez que se relaciona com o resultado do exercício da jurisdição perante a sociedade e sobre a vida gregária dos seus membros e felicidade pessoal de cada um. Desta forma, podemos conceituar a jurisdição como uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação da contenda que os envolve com justiça. Convinhável ressaltar também os princípios inerentes à jurisdição, exponenciando, nitidamente, seu caráter social. São eles: investidura, aderência ao território, indelegabilidade, inevitabilidade, inafastabilidade, juiz natural e inércia. Entre estes princípios, que informam a jurisdição, sobressai o importante princípio da inafastabilidade, imprimindo a verdadeira função social do instituto em apreço. Esse princípio, expresso no artigo 5º, inciso xxxv, da Carta Fundamental, revela a função social como uma de suas principais características, quando garante a todos os cidadãos o acesso ao Poder Judiciário, o qual não pode deixar de atender a quem o procura para se socorrer de seu direito. Por isso, compõe-se a palavra jurisdição, oriunda do latim ius (direito) e dicere (dizer), significando a “dicção do direito”. Conclui-se, pois, que nada obstante as diversas definições, jurisdição é, em resumo, a atividade através da qual os juízes resolvem as lides. 2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


POLÍTICAS PÚBLICAS: Confiabilidade e Credibilidade A questão da prorrogação das concessões e permissões de serviço público na Lei 8.987/95. Sérgio Luiz Barbosa Neves Procurador-Geral da Agência Reguladora de Transportes do Estado do Rio de Janeiro

A

o falar-se em políticas públicas, é comum iniciarse com uma referência inicial à feliz distinção ocorrente na língua inglesa entre os termos politics e policies, o primeiro para designar políticas de um governo e o segundo para as ações de Estado ou, como mais freqüentemente utilizado no direito pátrio, políticas públicas. Em vernáculo, porém, política é a única e, portanto, usada ou deturpada o mais das vezes como retrato de desígnios de governo, no sentido de vontade partidária do bloco dominante, prevalecendo tal acepção prática em relação ao sentido de ações ou propósitos de Estado em prol do interesse público e da defesa da coisa pública. Dessa observação, interessa-nos extrair as instabilidades administrativas daí decorrentes e suas conseqüências concretas no direito e na economia nacional. Iniludivelmente, um ordenamento jurídico que se propõe a assegurar princípios, como o da segurança jurídica e da continuidade do serviço público, não pode conviver com variações volitivas de relevo no âmbito legislativo e administrativo das diversas esferas de governo, ainda que equivalentes ao período do mandato. Dificuldades na captação de investimentos, perda dos mesmos e impossibilidade de prestar serviços públicos universais, adequados e custeados por tarifas módicas, são algumas dos inexoráveis prejuízos concretos que advêm dessa 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

nefasta dissonância entre, de um lado, discurso e propósitos políticos e, de outro, as ações de estado. Como bem assinala Mauro Nicolau Junior “Os dois fundamentos do Estado de Direito são a segurança e a certeza jurídica. A segurança e a certeza do direito são indispensáveis para que haja justiça, porque é óbvio que na desordem não é possível reconhecer direitos ou exigir o cumprimento de obrigações”. Prossegue, mencionando lições de Carlos Aurélio Mota de Souza, afirmando que a “segurança é fato, é o direito como factum visível, concreto, que se vê. A segurança se traduz objetivamente (Direito objetivo a priori), através das normas e instituições do sistema jurídico (como a norma agendi dos romanos). Já a certeza do direito (como um posterius) forma-se intelectivamente nos destinatários dessas normas e instituições (a facultas agendi, embora esta analogia não seja completa). (...) Dessa forma, a Segurança objetiva das leis dá ao cidadão a Certeza subjetiva das ações justas, segundo o Direito”. Mais adiante, conclui que, “em resumo, pode-se afirmar que a segurança jurídica e a certeza do direito integram o acervo do direito público subjetivo exigível de parte-a-parte entre indivíduo e Estado.”1 Uma premissa impende ser fixada neste momento: a segurança jurídica é de fundamental importância para o Estado Democrático de Direito e está intimamente relacionada


Foto: Arquivo Pessoal

com a conduta do Estado em sua atuação pragmática, isto é, não basta a sua inserção no ordenamento jurídico seja como princípio ou regra; é necessário que o Estado a respeite na prática rotineira de suas políticas públicas. As políticas públicas devem assentar-se e traduzir o binômio confiabilidade e credibilidade. O Poder Público deve agir, no que diz respeito às políticas públicas, da forma mais neutra (política) e coerente possível, evitando comportamentos contraditórios, próprios de variação de humor, inapropriados à consecução do interesse público. A conduta há de ser examinada sob o prisma objetivo, vedando-se, em nome da segurança jurídica, o comportamento contraditório capaz de atingir direitos ou expectativas lícitas e negociais de terceiros. Essa incoerência, cognominada por venire contra factum proprium, deve ser repudiada por nosso Direito. Originário do direito privado germânico, esse princípio não encontra óbices em sua aplicação no âmbito do direito público, em especial no momento atual, em que o consensualismo e a flexibilização ascendem em relevo no direito administrativo. Concernente a essa aplicação do princípio acima anotado ao direito público, Pietro Perlingieri admite e ensina que: “Le forti trasfromazioni sociali, l’internacionaliz-zazione dell’economia, le innovazioni tecnologiche hanno avuto

sulla nozionedi contratto um impatto dirompente. In pochi anni la figura contrattuale, anche in séguito a mutati climi politici, ha avuto ora forti diffidenze, quali símbolo di lebrale sopraffazione, ora notevoli utilizzazioni anche in settori tradizionalmente destinati alla prevalenza dell’interesse pubblico e colletitivo (...) Altrettanto significativo è l’uso Del strumento contrattuale da parte delle pubbliche amministrazioni, impegnate piú di ieri a misurarsi sulle apparenti antinomiche frontiere della discrezionalità amministrativa e dell’autonomia negoziale e a utilizzare, sia pure a volte sotto forme apparentemente innovative, strumenti di marca civilistica, pur nel rispetto delle loro prerogative specifiche collegate all’interesse pubblico.”2 Confiar e acreditar devem ser tidos em uma acepção muito mais ampla do que aquela restrita a um contrato ou a prática de alguns atos. Essa confiança e credibilidade são resultados de uma conduta longeva, baseada em princípios e valores estáveis. Trata-se não de uma confiança individual, mas de uma confiança da sociedade em geral. “Sociological approaches to trust emphasize the ability to take for granted the relevant motivations and behaviours of other. (...) the notion of trust as presumed reliability is very different from the rationalistic, or risky conceptions of trust in rational choice approaches. From a sociological 2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


“há de se ter como premissa que os atos e contratos administrativos praticados antes da Carta de 1988 gozam de presunção de legitimidade, legalidade e validez.”

perspective, such an instrumental calculation reduces .”3 A sobredita confiança-cega está longe de ser uma realidade brasileira. A criação das agências reguladoras foi um grande passo nessa conquista, entretanto, a implementação do projeto das agências não é convergente a seus propósitos iniciais de criação consubstanciados na independência e autonomia administrativa e financeira em relação ao Poder Concedente, o que compromete a neutralidade de suas decisões e reduz a confiança nesse sistema. Em resumo, confiança e credibilidade (Treu und Glauben) estão relacionadas com a boa-fé contratual e protegem expectativas lídimas. Podem ser tidas como: “El mandato de justificar em cualquer situación la confianza del outro en que quedarán a salvo la fidelidad y la rectitud, como es usual y necesario entre camaradas alemanes. En el pasado, por ignorancia liberal Del Derecho, se entendia parcialmente por Treu und Glauben um arreglo equitativo de los intereses encontrados de las partes contratantes, lo que no era sino uma atrofia de su verdadero contenido. La exigencia de fidelidade representa mucho más que una medíocre limitación de los propios intereses; require una acción que en ningún momento pierda de vista la compenetración con los demás y, por ende, la gran comunidad (nacional) de la que somo responsables.”4 A confiança no Poder Público há de ser vista, também, do ponto de vista do usuário, que tem por expectativa a continuidade de sua prestação, sua adequação e a modicidade tarifária. Todavia, ausente a confiança por parte do investidor, comprometidas restarão tais expectativas do usuário. “Por força deste princípio, que, tal como os demais, não é exclusividade de nosso Direito, tendo sido igualmente formulado por Louis Rolland, a prestação do serviço público não pode ser interrompida sem motivo justificável. Este princípio tem por destinatários, a um só tempo, o concessionário e o Poder Concedente. Ao primeiro, incumbe evitar que a atividade de seu cargo sofra soluções de continuidade em detrimento do interesse dos usuários, assim considerados coletivamente ou individualmente.”5 A conduta esperada do Poder Público é a da manutenção das regras e, na medida em que prospecte uma alteração 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

legal ou contratual, espera-se que tal medida seja precedida de prévia audiência pública. Interessa ao presente trabalho, mais proximamente, sublinhar o trauma que o art. 42 da Lei 8.987/95 causou ao disciplinar que as concessões de serviços públicos outorgadas antes de sua entrada em vigor seriam válidas pelo prazo do contrato, impondo-se, vencido este prazo, a sua licitação. Essa mesma regra seria aplicada às concessões havidas em caráter precário, que estivessem com o prazo vencido e que estivessem vigorando por prazo indeterminado (§§ 1º e 2º do art. 42). A norma é aplicável, também, às permissões de serviço público (art. 41) e, a bem da verdade, proíbe a prorrogação de contratos, assim considerados como tal tanto as concessões quanto as permissões. Trata-se de um ato legislativo, que demostra que a segurança jurídica não consiste na coerência de conduta do Executivo, mas sim de todos os Poderes do Estado. Sob o propósito de editar norma geral e de encontrar abrigo no art. 175 da CF/88, o dispositivo sobredito foi introduzido em nosso ordenamento jurídico há mais de uma década e, até hoje, gera dissidências doutrinárias. Primeiramente, porque essa norma não possui caráter geral e, portanto, não poderia ser aplicada a Estados e Municípios. Neste sentido, as lições do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello: “Tais prorrogações não poderão jamais ser admitidas como operantes e produtoras de efeitos válidos para as órbitas estaduais, municipais ou distrital, porque só mesmo no âmbito autônomo de tais pessoas é que tais medidas, se e quando cabíveis, poderiam ser adotadas. Fora daí, o que ocorreria seria invasão inconstitucional de suas respectivas esferas jurídicas.”6 Assim, resta duvidosa a aplicabilidade do art. 42 da Lei nº 8.987/95 a Estados e Municípios, por força do princípio federativo e da autonomia conferida a esses entes, ex vi dos arts. 2º e 18 da CF/88, como também as suas competências suplementares consignadas nos arts. 24, 25 e 30, da Lei Maior. De mais a mais, não se pode afirmar que o art. 175 da Carta Magna teve por escopo proibir as prorrogações dos contratos em curso ao exigir prévia licitação para as concessões e permissões de serviços públicos. O legislador infraconstitucional parece ter ido além neste passo. Observese que a Constituição e a Lei 8.987 receberam um sistema


posto em relação às concessões e permissões. A Constituição andou bem e exigiu licitação para as contratações a serem realizadas após a sua entrada em vigor. Todavia, a lei encontrou contratos em curso, nos quais residiam expectativas lídimas de recuperação dos investimentos, como também neles estão ínsitas a capacidade e a legitimidade administrativas do Poder Executivo em avaliar, por critérios de conveniência e oportunidade, a utilidade da prorrogação e da realização de uma nova outorga por licitação. Nessa nova outorga, residem outros aspectos passíveis de questionamento: (i) a eventual usurpação de competência administrativa do Executivo pelo art. 42 da Lei nº 8.987; e (ii) o não reconhecimento da presunção de legalidade, de validez e de legitimidade dos atos administrativos que procederam à permissão de serviço público sem licitação, uma vez que esta não era exigida para tal fim antes da Carta de 1988. Quanto ao primeiro, o dispositivo é passível de críticas por violação ao art. 2º da CF/88, por violação ao princípio da harmonia e independência dos Poderes. Essa espécie de ato imposto pela lei é de caráter administrativo e reside no campo do exercício do poder discricionário. Hodiernamente, “um entendimento correcto do poder discricionário implica, pois, a superação dos ‘mitos’ de uma noção restritiva de legalidade. (...) No Estado prestador de nossos dias, conforme se viu, uma boa Administração não se pode limitar à pura execução da lei, pois que aplicação da lei não é sinônimo de simples execução da lei.”7 Isto é, a atribuição de poderes discricionários mais amplos ao administrador é típica do Estado social, sendo fundamental que a lei contemple conceitos jurídicos indeterminados e um campo de atuação discricionária considerável para o administrador, conferindo-lhe, também, maiores responsabilidades. A regra do art. 42 da Lei 8.987 não se coaduna com o Estado brasileiro, que se propõe como garantidor de direitos fundamentais e de princípios como os da dignidade da pessoa humana. Trata-se de um Estado que considera maduro o suficiente para um controle a posteriori da atuação do Executivo e não a subtração de competências e redução de seu espectro discricionário por uma lei. “Em um Estado de Direito, o poder discricionário deve ser entendido como forma de a Administração manifestar a vontade do ordenamento jurídico relativo a uma situação concreta. A lei não pode prever todas as situações, pelo que à Administração é, muitas vezes,

atribuída uma possibilidade de escolha entre várias situações legalmente possíveis, a fim de que sejam os órgãos administrativos a concretizar a vontade legislativa, em função das situações jurídicas que vão ser reguladas. O que tem como conseqüência é uma constelação normativa que atribui à Administração uma responsabilidade muito maior do que aquela que existe na normal aplicação da lei.”8 No que concerne ao segundo aspecto, há de se ter como premissa que os atos e contratos administrativos praticados antes da Carta de 1988 gozam de presunção de legitimidade, legalidade e validez. O novo ordenamento jurídico construído a partir de então (1988) recebeu um conjunto de atos perfeitamente válidos se cumpridos os requisitos vigentes à época de sua concretização. Por exemplo, se a prévia licitação não era um requisito de validade das permissões de serviço, aquelas havidas antes da entrada em vigor do art. 175 da CF/88 eram válidas e assim permaneciam após a entrada do novel texto constitucional, não podendo uma norma infraconstitucional por em dúvida a legitimidade, a legalidade, a validez e a probidade daqueles atos, impedindo que produzam efeitos que lhe são próprios, como a prorrogação, o que seria plausível ante a consagrada teoria dos efeitos imediatos da norma jurídica pugnada por Paul Roubier, que tem por fim solucionar os aparentes conflitos de leis no tempo. A segurança jurídica resta, neste aspecto, comprometida. Independentemente de um posicionamento definitivo a respeito da constitucionalidade do art. 42 e de sua aplicação a Estados, Municípios e DF, fato é que o legislador andou mal ao editar a norma em comento, tanto que, logo em seguida, após alguns debates, editou a Lei nº 9.074/95 para atenuar o alcance da proibição da prorrogação das concessões e das permissões em algumas hipóteses. A dúvida persiste em relação a outras modalidades de serviço público que ficaram ao desabrigo daquela lei e, por conseguinte, os princípios da confiança e da segurança jurídica não foram prestigiados e estão a produzir efeitos, ainda que não explicitamente, tanto no âmbito do direito quanto no da economia em detrimento dos interesses do povo. Tanto, por si só, é bastante para consignar que o preceito legal em comento produziu um grande mal à confiabilidade e à credibilidade da execução das políticas públicas brasileiras.

Notas Bibliográficas 1 NICOLAU JUNIOR, Mauro. Internet, site saraivajur.com.br, página http://www.saraivajur.com.br/doutrinaArtigosDetalhe.cfm?doutrina=699 (acesso em 11.12.07). 2 PERLINGIERI, Pietro. Nuovi Profili Del Contratto, in Rassegna di Diritto Civile, 2002, III, pp. 545-546. 3 ANHEIER, Helmut e KENDALL, Jeremy. Interpersonal trus and voluntary associations: examining three approaches, in The British Journal of Sociology, vol. 53, n 3, 2002, p. 349. 4 HATTENHAUER, Hans. Conceptos fundamentales del derecho civil – Introducción histórico-dogmática, Barcelona: Ariel, 1987, p. 91. 5 BLANCHET, Luiz Alberto. Curso de Direito Administrativo, Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 62. 6 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22ª. Edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 743. 7 DA SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira. Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Ed. Livraria Almedina, Coimbra, 2003, p. 86. 8

DA SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira. Op. cit., p. 87.

2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29


Redução da idade penal: alteração inconstitucional é maléfica para a sociedade brasileira Guaraci de Campos Vianna Juiz Titular da VIJ/RJ Presidente da ABRAMINJ

A

Introdução violência praticada por jovens é um tema cada vez mais presente e assustador na vida cotidiana e nos meios de comunicação de muitos países. No Brasil, o grave momento de crise social alimenta ainda mais o temor que a população vivencia, em meio a múltiplas formas de violência. Entretanto, em alguns países desenvolvidos, esforços têm sido feitos no sentido de prevenção, desde a primeira infância. Para tanto, enfatizam a mobilização comunitária, criando uma rede de suporte calçada na família, escola, treinamento para o trabalho, atividades recreacionais e mudanças comunitárias. A capacitação profissional para aqueles trabalhadores sociais que atuam diretamente com os jovens em risco para a delinqüência é atividade prioritária, além de ênfase nas estratégias legais que visam reforçar a segurança pública. A articulação de todas essas atividades e o maior número de pessoas e instituições envolvidas são responsáveis pelo sucesso ou fracasso das tentativas de solução para a delinqüência juvenil. O que fazer então? Durante anos, pregou-se o antagonismo entre as idéias do paternalismo ingênuo e do retributivismo hipócrita. Tratar os jovens como se não tivesse violado direitos de outras pessoas é fomentar a trajetória de desrespeito a direitos alheios e negligenciálos. Puni-los é uma solução paliativa para um problema de causas muito mais enraizadas, tratando o adolescente como um ser irracional, uma patologia social. Por isso, precisamos ter o Direito como um instrumento 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

social funcional para a solução do problema. Mas como? Primeiro, protegendo os bens jurídicos através do efeito dissuasivo que as cominações legais – e a eventual aplicação delas – produzem nos infratores em potencial. É a ameaça do mal como retribuição a uma conduta anti-social. Segundo, produzindo um efeito psicológico que a proibição gera na mente dos governantes e governados, um misto de satisfação e tranqüilidade, capaz de fazer com que os indivíduos que se sentem inferiorizados saibam que eles são tão destinatários das Leis quanto os demais, e que estes saibam que também estão sob a égide da Lei, podendo sofrer a ação dela, no caso de violação. Terceiro, é preciso transformar as hoje simbólicas penas e as medidas socioeducativas em instrumentos reais de prevenção e recuperação. Marquês de Beccaria já defendia, há mais de 200 anos, que a pena não deve ser exageradamente curta nem exageradamente longa, mas funcional, afastando a falsa idéia que, se, no sistema atual, quando se faz “justiça” retirando o indivíduo de circulação, ao Estado fica a satisfação de haver “feito algo” e ao povo, a impressão de que os problemas estão “sob controle”. Destarte, o sistema socioeducativo precisa ser funcional, eficiente e capaz de ressocializar. As medidas devem ter um alto percentual de eficiência, sendo pedagogicamente impostas, executadas na forma dos artigos 99 e 100 da Lei 8.069/90. A responsabilização e a ressocialização das crianças e dos adolescentes infratores, nesse sentido, não são direitos dos adultos e do Estado, e sim um dever. Um dever em relação aos próprios infratores. Como dever, está limitado pelo direito


Foto: Luis Henrique

“A responsabilização e a ressocialização das crianças e dos adolescentes infratores não são direitos dos adultos e do Estado, e sim um dever.”

da criança e do adolescente ao pleno desenvolvimento de sua personalidade. Assim, a responsabilização legal se torna um dever do Estado de buscar, por intermédio da aplicação da lei, possibilitar à criança o desenvolvimento de um superego capaz de reprimir os impulsos de destruição e inseri-la em um convívio social pacífico. Portanto, não parece haver outra forma conseqüente de controle da violência e do envolvimento de jovens com o crime, que não o modelo de proteção integral, que agrega educação e responsabilidade, conforme estabelecido pelo ECA. Limite etário para a imputabilidade penal. Por que 18 anos? Verifica-se, no ordenamento jurídico brasileiro, que o parâmetro de idade, para a fixação da norma, varia de matéria para matéria, pois, enquanto que no Direito Civil de 1916 (Lei 3.071 de 01/01/1916) era de 21 anos, só passando para 18 anos recentemente pelo Código Civil, instituído pela lei 10.406 de 10/01/2002, que entrou em vigência em 10/01/2003, e, no Direito Penal, é de 18 anos, o Direito Trabalhista traz distinções normativas para as idades de 12, 14, 18 e 21 anos. No Direito Político, a Constituição de 1988 rebaixou o direito facultativo de alistamento e de voto aos maiores de 16 anos. Washington de Barros Monteiro comenta sobre a capacidade civil (à época, aos 21 anos, conforme previa o CC/16). Embora esta já tenha sido alterada para 18 anos pelo novo Código Civil, a fim de ilustrar as diferenças em face de cada tipo de responsabilidade, cabe citar seus seguintes esclarecimentos:

“(...) essa capacidade não deve ser confundida coma eleitoral, nem com a idade limite para o serviço militar. As leis que às duas últimas se referem cuidam de atividades, direitos e deveres específicos. Assim, já se pronunciou o STF (arquivo judiciário, 113/283). Mutatis mutantis, a idade em que tem início a responsabilidade penal não exerce qualquer influência na capacidade civil, que continua regida por dispositivos próprio, consubstanciados no Código Civil.” (1958, p. 73). Contudo, existem segmentos importantes da camada culta da sociedade que apóiam a tese de que se deve atribuir responsabilidade penal aos cidadãos a partir de 16 anos de idade, “porque eles podem votar” e “sabem o que fazem”. É óbvio que, a partir de tenra idade, eles sabem o que fazem. Em 1884, Tobias Barreto já havia demonstrado que o discernimento pode ser encontrado, para os atos de sua idade, em uma criança de cinco anos. Toda esta dúvida tem sua origem na Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, quando o Ministro Francisco Campos escreveu que os menores ficavam fora daquela lei porque eram imaturos. Desde 1940, os professores incutem nos alunos a idéia da imaturidade dos menores, o que é um absurdo absoluto, formulado de maneira tão genérica pelo Ministro Campos. Segundo ele, todos os menores de 18 anos no Brasil eram imaturos. Absurdo completo. E nós contaminamos toda a nação com esta insólita concepção. Não há dúvida de que o adolescente de hoje esteja muito informado e melhor preparado do que o adolescente dos anos 70. No entanto, a questão não é só de informação, mas 2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31


de formação; não é só de razão, mas de equilíbrio emocional; não apenas de compreensão, mas de entendimento. Essa condição de pessoa em desenvolvimento, que ainda está construindo sua estrutura psicológica, sua inteligência emocional, é a base científica que levou o legislador constituinte a erigir em presunção absoluta de inimputável o menor de 18 anos de idade, elevando-o à condição de garantia individual, nos termos do artigo 228 da CF. Impossibilidade da redução da maioridade penal Não parece que a redução da maioridade penal seja a solução ideal, pois, simplesmente, vai encher os presídios, já superlotados e sem qualquer programa eficaz de readaptação do detento, de jovens em formação que poderiam se tornar cidadãos e conviver, pacificamente, na sociedade. Abrir-se-á mão da prevenção para valorizar a repressão. Entende-se que a melhor solução está na modificação do ECA (Lei 8.069/90), ajustando-o às novas exigências sociais, juntamente com os investimentos necessários para criação de um verdadeiro e eficiente sistema socioeducativo de atendimento. Comumente, diz-se que o grande marco de mudança paradigmática da questão da infância no Brasil foi o advento do ECA. Entretanto, tal afirmação é equívoca. A Lei nº 8.069/1990 nada mais é do que a integração legislativa do que estabelece a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227. O conteúdo do artigo 227 da Constituição é reconhecido como veiculador da síntese da doutrina da proteção integral, que restou plasmada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada por unanimidade pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 20/11/1989. Os defensores da diminuição da idade da imputabilidade penal cometem um grande equívoco, não reconhecendo que sua fixação foi uma opção política do Constituinte de 1987/1988. Logo, toda e qualquer discussão com base na teoria do discernimento, como vem sendo travada, é desfocada. O critério para estabelecer a idade penal mínima foi político, não tendo relação com a capacidade ou incapacidade de entendimento. Aceitar-se que a fixação constitucional da imputabilidade penal baseia-se na falta de compreensão do caráter ilícito ou anti-social de uma conduta criminosa implica equiparar adolescentes a insanos mentais, e isso, à evidência, é algo que padece de um mínimo de coerência. Ninguém tem dúvida de que o jovem e mesmo a criança têm plena capacidade de entender que é reprovável furtar, danificar, matar e etc. Também não se pode falar na adoção, pelo Constituinte, de um critério puramente biológico. A decisão foi no sentido de valorização da dignidade humana de todas as pessoas menores de dezoito anos, de acordo com a tendência internacional de reconhecimento jurídico da doutrina da proteção integral, que acabou consubstanciada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Entende-se que o artigo 228 da Constituição é um 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

direito fundamental, razão pela qual serão feitas algumas considerações gerais a respeito dessa espécie de direito. Os direitos fundamentais garantem o respeito dos direitos individuais e a promoção social baseada na valorização da dignidade humana, cumprindo a função de descortinar o horizonte emancipatório a alcançar no Estado Democrático de Direito, o que decorre de seu compromisso antropológico. Por força do papel que desempenham, os direitos fundamentais gozam, em nosso ordenamento, de um reforço de efetividade, pois, de acordo com o § 1º do art. 5º da CF, as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Tal disposição implica uma juridicidade reforçada, que é uma característica comum e diferenciada dos direitos fundamentais. Além disso, são os direitos fundamentais protegidos contra a possibilidade de extirpação da Constituição, já que são protegidos pela intangibilidade fixada no artigo 60, § 4º, inciso IV, da Lei Maior. A Constituição Federal, conforme se vê no § 2º do artigo 5º, abriga o caráter materialmente aberto dos direitos fundamentais, pois permite localizar tais direitos em todo o seu texto, e não só aqueles que estão elencados no catálogo que apresenta (Titulo II). Além disso, autoriza o reconhecimento de outros direitos fundamentais que não se encontram no texto constitucional (direitos materialmente fundamentais), desde que decorram do regime e princípios por ela adotados, bem como de tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte (art. 5º § 3º da CF). Vale dizer, o rol de direitos fundamentais elencados na Constituição é exaustivo, permitindo a localização de outros. A idade penal mínima é autêntico direito fundamental, localizada fora do catálogo elencado pela Constituição no Título II, pois é inequivocamente vinculado ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Não só em sede doutrinária há o reconhecimento de direitos fundamentais fora do catálogo e com caráter de cláusula pétrea, pois o STF já deixou isso assentado, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 393/93, questionadora da constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 3, de 17/03/1993, que instituía a arrecadação do Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras, IPMF, a partir de agosto daquele ano, conforme estabeleceu a Lei Complementar nº 77, de 13/07/1993, que também foi objeto da argüição de inconstitucionalidade. As forças conservadoras da sociedade e a imprensa sensacionalista batem-se insistentemente pela alteração do artigo 228, apresentando o rebaixamento da maioridade penal como a solução para o problema da violência urbana. A tese vem ganhando apoio em ambos segmentos da sociedade, em decorrência, sobretudo, do sentimento de insegurança da população ante a ineficácia dos poderes públicos no combate satisfatório à criminalidade. As distorções sobre tal questão são gigantescas e precisam ser corrigidas. A primeira grande distorção consiste em pensar que os atos infracionais praticados por adolescentes


representam parcela significativa dos crimes ocorridos no país. Segundo levantamento realizado em vários estados do Brasil, os crimes praticados por maiores de 18 anos representam cerca de 90% do total. Assim, os adolescentes estariam praticando apenas 10% das infrações. O segundo grande ponto que precisamos ter em mente é que essas forças conservadoras insistem em confundir inimputabilidade penal dos menores de 18 anos com impunidade, ou total irresponsabilidade. É mentirosa a visão de que os adolescentes autores de infrações penais não respondem pelo ato que praticam. Respondem sim, e o fazem, segundo as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), sendo submetidos a julgamento dentro do devido processo legal. No Estatuto, para o jovem autor de infração penal, estão previstas medidas chamadas socioeducativas. A medida de internação, considerando apenas o aspecto da privação de liberdade, é idêntica às penas criminais. Na esteira da Constituição Federal, o ECA impõe a responsabilidade do infrator, sujeitando-se à privação de liberdade. O período de internamento, no módulo máximo de três anos, considera a condição de pessoa em desenvolvimento do adolescente e o próprio período de metamorfose que caracteriza esta fase. Após esse período, o adolescente estará apto, se adequadamente trabalhado, para a reinserção na sociedade. Em um paralelo com o sistema aplicável ao adulto, se ele praticou um roubo a mão armada, a pena que receber como regra deverá se situar ao redor de 5 anos e 4 meses de reclusão, observados os critérios do Código Penal. Desta pena, vai cumprir preso apenas um terço dela, ou seja, mais ou menos 2 anos, dada a sistemática da Lei de Execuções Penais. O art. 112 da LEP estabelece a progressão do regime fechado após cumprimento de 1/6 da pena. Livramento condicional após a metade. O adolescente pode cumprir medida até os 21 anos. Muitas vezes, acaba cumprindo mais tempo de pena do que a maioria dos adultos. Se nos for dado espaço, voltaremos a mencionar este tema onde propusemos o aumento da idade de liberação compulsória para 24 anos. Outro grande equívoco nesta questão da redução da idade é o entendimento de que ela se resume à discussão sobre capacidade de discernimento, ou seja, se o jovem sabe ou não o que ele faz quando pratica uma infração penal. Pensando-se assim, poderíamos chegar ao absurdo de dizer que uma criança de sete anos deve receber uma pena criminal? Em um presídio? Porque ela sabe que matar alguém é errado ou porque sabe que furtar o lápis do amiguinho na escola também é. Não se trata de ter ou não discernimento. O enfoque correto do tema é buscar o que é mais adequado e eficaz à reinserção do adolescente infrator na comunidade, considerando sua condição de pessoa humana em desenvolvimento, dentro da realidade político-econômica da Nação, da própria falência do sistema penitenciário. A fixação da idade em 18 anos vem se revelando com uma

“O segundo grande ponto que precisamos ter em mente é que essas forças conservadoras insistem em confundir inimputabilidade penal dos menores de 18 anos com impunidade, ou total irresponsabilidade.” adequada solução de política criminal. O que falta é a efetiva implementação das medidas socioeducativas previstas no Estatuto. Conclusão Não se deve alterar a Constituição Federal diante a insuficiência de políticas governamentais. Corrigir programas governamentais, fazer ajustes na legislação ordinária não implicam, necessariamente, alteração constitucional. Vamos preservar nossa memória institucional, vamos valorizar nosso pacto de 1988, que resgatou a cidadania, evitando, mais uma vez, alterar o texto, especialmente diante de cláusula pétrea, especialmente diante da inexistência de qualquer mudança social e, por fim, diante da existência de um sistema de punição do adolescente infrator? Que poderia perfeitamente ser ajustado mediante mudanças de políticas governamentais e diante de pequenas alterações legislativas ordinárias. Não é aceitável confundir um direito de exercício de cidadania, votar aos 16 anos, com a reponsabilização por um ato infracional praticado. Inimputabilidade penal não rima com impunidade. Quem faz tal confusão age de má-fé, e sem base na legislação brasileira e nas normas internacionais, das quais o Brasil é signatário. Cabe assinalar que, se a redução da maioridade penal baixasse os altos índices de violência/criminalidade presentes na sociedade brasileira, as pessoas com mais de 18 anos não poderiam/deveriam praticar a esmagadora maioria dos crimes. Reduzir a idade penal é romper também com os tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário. As alternativas, portanto, não estão no endurecimento das penas. É mais do que urgente e necessária a correta e efetiva aplicação das medidas socioeducativas definidas no Estatuto da Criança e do Adolescente. 2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


Arquivo Pessoal

Lei Maria da Penha, afirmação da igualdade Maria Berenice Dias Desembargadora do TJ/RS

O

princípio da igualdade é consagrado enfática e repetidamente na Constituição Federal. Está em seu preâmbulo como compromisso de assegurar a igualdade e a justiça. A igualdade é o primeiro dos direitos e garantias fundamentais (CF, art. 5º): todos são iguais perante a lei. Repete o seu primeiro parágrafo: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. É proibida qualquer discriminação fundada em motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.” (CF, art. 7º, XXX). Para garantir a igualdade, a própria Constituição concede tratamento diferenciado a homens e mulheres. Outorga proteção ao mercado de trabalho feminino, mediante incentivos específicos (CF, art. 7º, XX) e aposentadoria aos 60 anos, enquanto, para os homens, a idade limite é de 65 (CF, art. 202). A aparente incompatibilidade dessas normas solve-se ao se constatar que a igualdade formal – igualdade de todos perante a lei – não conflita com o princípio da igualdade material, que é o direito à equiparação mediante a redução das diferenças sociais. Trata-se da consagração da máxima aristotélica de que o princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Marcar a diferença é o caminho para eliminá-la, por isso há a necessidade das leis de cotas, quer para assegurar a participação das mulheres na política, quer para garantir o ingresso de negros no ensino superior. Nada mais do que mecanismos para dar efetividade à determinação constitucional da igualdade. Também não é outro motivo que leva à instituição de microssistemas protetivos ao consumidor, ao idoso, à criança e ao adolescente. Portanto, nem a obediência estrita ao preceito isonômico constitucional permite questionar a indispensabilidade da Lei 11.340/06, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica. A Lei Maria da Penha veio

34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

atender compromissos assumidos pelo Brasil ao subscrever tratados internacionais que impõem a edição de leis visando assegurar proteção à mulher. A violência doméstica é a chaga maior da nossa sociedade e berço de toda a violência que toma conta da nossa sociedade. Os filhos reproduzem as posturas que vivenciam no interior de seus lares. Assim demagógico, para não dizer cruel, é o questionamento que vem sendo feito sobre a constitucionalidade de uma lei afirmativa que tenta amenizar o desequilíbrio que ainda – e infelizmente – existe nas relações familiares, em decorrência de questões de ordem cultural. De todo, descabido imaginar que, com a inserção constitucional do princípio isonômico, houve uma transformação mágica. É ingênuo acreditar que basta proclamar a igualdade para acabar com o desequilíbrio nas relações de gênero. Inconcebível pretender eliminar as diferenças tomando o modelo masculino como paradigma. Não ver que a Lei Maria da Penha consagra o princípio da igualdade é rasgar a Constituição Federal, e não conhecer os números da violência doméstica é revelar indisfarçável discriminação contra a mulher, o que não mais tem cabimento nos dias de hoje. Ninguém mais do que a Justiça tem compromisso com a igualdade, e esta passa pela responsabilidade de ver a diferença e tentar minimizá-la, não torná-la invisível.


2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35


Ainda a questão dos juros Paulo Mauricio Pereira Desembargador do TJ/RJ

A

figura dos juros nos contratos bancários, como é sabido, tem como finalidade remunerar o dinheiro emprestado pela instituição financeira ao cliente, estando consolidado na jurisprudência pátria o entendimento no sentido de que tais instituições não estão sujeitas a limitações quanto ao respectivo percentual (Súmula 596 – STF), a não ser àquelas impostas pelo Banco Central e pelo Conselho Monetário Nacional, que, em última análise, são nada. Efetivamente, nas palavras de Carlos Roberto Siqueira Castro, as instituições financeiras, “a partir de 1964, contaram com a cumplicidade, intencionada ou não, das entidades governativas da Federação, que, desse modo, tornaram-se dependentes ou mesmo reféns do processo especulativo de rolagem da dívida pública.” (Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política – 26/95) Outrossim, induvidoso que o lucro é objetivo de qualquer negócio ou profissão, salvo algumas exceções que não é a de que se trata. Entretanto, o lucro exagerado não se coaduna com o estado democrático de direito em que vivemos. É bem verdade que inexiste lei que fixe a taxa de juros em determinado percentual. Entretanto, não vejo razoabilidade naquelas cobradas pelos bancos, muito acima da taxa básica de juros e também daquelas que paga na captação de dinheiro em público. A Selic, hoje, é de 12.5% ao ano, enquanto a captação gira em torno de 1% ao mês. A única justificativa dos bancos é o mercado, o que entendo insuficiente. 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

Partindo de tais premissas e tendo presentes o objetivo constitucional de construir uma sociedade justa e solidária (art. 3º), os princípios da defesa do consumidor (art. 170, V) e da vedação ao abuso do poder econômico e ao aumento arbitrário dos lucros (art. 173, § 4º) e o ditame expresso no art. 5º, da LICC (“Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”), é que volto a insistir no tema da taxa de juros, especialmente aquelas praticadas nos contratos de cartão de crédito e de cheque especial. Conforme lição do festejado mestre Carlos Maximiliano, citando Saleilles (Hermenêutica e Aplicação do Direito. Forense. 16ª edição, 1997, p. 160), verbis: “Não queremos o arbítrio do juiz. Não o admiti-mos por preço nenhum. Pretendemos, entretanto, quando a lei não ordene com uma certeza im-perativa, que o magistrado possa marchar com o seu tempo, possa levar em conta os costumes e usos que se criam, idéias que evolvem, necessidades que reclamam uma solução de justiça”. Daí me convenci de que a intervenção estatal se faz necessária em alguns contratos bancários, principalmente naqueles já referidos, “no intuito de relativizar o antigo dogma da autonomia da vontade com as novas preocupações de ordem social, com a imposição de um novo paradigma, o princípio da boa-fé objetiva. É o contrato, como instrumento à disposição dos indivíduos na sociedade de consumo, mas,


Foto: Vinícius Gonçalves

assim como o direito de propriedade, agora limitado e eficazmente regulado para que alcance a sua função social.” (Cláudia Lima Marques. Contratos no CDC. RT. 4ª edição, p. 176) Com efeito, se o juiz pode intervir nas leis propriamente ditas (o direito positivo), inclusive declarando-as inconstitucionais, por que não poderia fazê-lo nas leis de economia, não escritas, buscando compatibilizá-las com aquilo que seria razoável admitir em cada caso concreto? Em primeiro lugar, e ninguém diz o contrário, induvidoso que as taxas de juros aplicadas nos contratos de cartão de crédito e cheque especial sejam exorbitantes e abusivas mesmo, ressaltado que a abusividade não está nas cláusulas da avença firmada, mas sim no modo como são elas executadas, ao facultar ao credor fazer incidir taxas arbitradas de forma unilateral e que não deixa ao devedor outra saída senão aceitar a imposição que lhe é feita. Assim, eventual intervenção não se fará no contrato propriamente dito, mas sim na sua forma de execução. Nem mesmo a justificativa de que a composição daquela taxa inclui outros fatores, inclusive o lucro do banco, é suficiente para justificar o seu exagero. Ela está longe daquilo que seria razoável admitir, repito, acarretando mesmo desequilíbrio contratual e excessiva onerosidade para o usuário, e ferindo seus direitos econômicos, visto que, por outro lado, enseja lucro demasiado para as instituições financeiras, como constantemente anunciado na mídia.

Isto é incompatível com a boa-fé e a eqüidade. Por outro lado, nos contratos de mútuo propriamente dito, consegue-se taxa de juros mensal abaixo da metade, mais ou menos, daquela que vem sendo repassada aos usuários de cartões de crédito e do cheque especial. Esta taxa, bem menor, é aquela do chamado “crédito pessoal” que, conforme noticiário de publicações especializadas e site do Banco Central, gira em torno de 5% ao mês, ou até menos, em algumas instituições. Ora, se o cliente do banco, pessoalmente, consegue esta taxa bem menor, como justificar aquelas cobradas no cartão de crédito e no cheque especial? Nem se diga que tal diferença advém dos riscos de cada negócio, pois eles não diferem tanto. Em todas as situações, é colocada determinada quantia à disposição do tomador. Será que tais riscos aumentam ou diminuem, no mesmo banco, só por que contrato muda de denominação? Outro detalhe que sempre me chamou a atenção, caracterizando a abusividade da taxa de juros cobrada naqueles contratos, está no fato de os bancos, depois do inadimplemento do cliente, conceder empréstimo ao mesmo, com aquelas taxas do “crédito pessoal” bem mais baixas, exatamente para cobrir o débito do cheque especial ou pagar o saldo devedor do cartão de crédito, novando a obrigação. Ora, como uma mesma pessoa, no mesmo banco e envolvendo o mesmo débito, pode ser alvo de tratamento tão diferenciado? Apenas por que o contrato muda de nome? 2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


“o lucro exagerado não se coaduna com o estado democrático de direito em que vivemos.”

Acrescentem-se as propostas de acordo, principalmente nos contratos de cartão de crédito, em que são dados descontos substanciais, quase que expurgando todos os juros cobrados, para pagamento em prestações a perder de vista e até com as parcelas em valores fixos. Isso, no meu entender, demonstra que as taxas cobradas ensejam um ganho elevadíssimo para a instituição financeira, pois não é de se crer que o banqueiro dê tais descontos e fique no prejuízo. Mais lógico é concluir que os descontos referem-se àqueles ganhos excessivos, dos quais abre mão o mutuante para receber um mínimo e afastar qualquer prejuízo. Registre-se noticiário do “Jornal do Commercio”, do dia 16 de maio passado, dando conta de que o Bradesco lançará novos cartões de crédito com taxas reduzidas para expandir o número de clientes. Lá está dito que as taxas variarão de 2,725, no cartão consignado, a 4,90%, no Fix Card, ao mês. O primeiro, garantido por consignação, ainda pode justificar a baixa taxa anunciada; mas, e o outro? Não bastassem as regras de mercado, econômicas, não escritas, não imperativas e que, em conjunto com diversos outros fatores, influenciam as taxas de juros, temos o substancial reforço do arbítrio e apetite de alguns banqueiros e dirigentes bancários, componentes importantes no encarecimento do crédito e que só pensam no lucro, retratado em repetidos balanços publicados pela imprensa, citando cifras astronômicas, com a receita advinda dos financiamentos em constante elevação. Não se diga, como dizem, que a taxa de juros cobrada resulta da média de mercado. Um exemplo pessoal afasta tal assertiva. Tenho três cartões de crédito. No “A” e no “B”, os juros estão girando, atualmente, na faixa de 9% ao mês, enquanto no “C”, tal taxa é de apenas 4,70%. Se é cobrada 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

a taxa média de mercado, como se explicar tal discrepância entre uma instituição e outra? Será que cada instituição tem a sua média ou o seu mercado próprios? A conclusão mais lógica que se tira das situações acima relatadas é que está caracterizado o abuso do direito de crédito, posto que, no seu exercício, o credor “excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes” (NCC, art. 187), lesando o interesse de outrem ao “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva.” (CDC, art. 39, V) e violando a norma legal que veda o enriquecimento sem causa (NCC, art. 884) Aliás, os argumentos acima foram brilhantemente defendidos pelo eminente Desembargador Rudi Loewenkron, no julgamento da Ap Civ nº 5685/2005, cujo acórdão contém o seguinte trecho: “Mas sendo deferida a captação de capital para as administradoras reforçarem o seu caixa nas condições tratadas, preciso é definir o real significado dessa permissão, que implica no seu repasse para os devedores originais, não se equiparando a uma dação de carta branca facultando uma livre cobrança embutindo os juros realmente dispendidos mais uma margem de lucro extremamente exagerada, o que é ao mesmo tempo uma estupidez financeira, um alimentador inflacionário e uma agressão ao cidadão, que não pode tugir ou mugir, preso ao leonino contrato de adesão imposto pelos credores, obrigando-o a se submeter a essa extorsão sob o apelido de teoria dos juros flutuantes. No caso vertente como documentado de fls. 21 a 28 debitou a R ao A uma taxa mensal de janeiro a outubro de


2002 igual a 10,82% ao mês, enquanto o site do Banco Central informa que, no mesmo período, as taxas do chamado crédito pessoal bancário variaram de 5,06% a 5,44% ao mês. Está aí o exemplo vivo da ganância dos banqueiros explorando o desaviso do inexperiente cidadão que, iludido pelas facilidades do cartão, não procura um banco para tomar um empréstimo direto e quitar a dívida do cartão com um custo menor. Uma coisa é a cobrança de altos juros prefixados. Ninguém é obrigado a aceitar um contrato com a sua imposição. O comprometimento com valores previamente estabelecidos bilateralmente deve, em regra, ser prestigiado, mas, no caso do cartão de crédito, cuida-se de relação futura sob a contrapartida de um financiamento a custo flutuante deixado potestativamente a critério do credor. Tratase de excelente instrumento de facilitação de gastos, incrementando negócios e possibilitando aquisições e pagamentos sem a imediata utilização do papel moeda e sem a necessidade do endividamento imediato. Entre-tanto, quando o portador excede a data do vencimento, e, por uma necessidade qualquer, é obrigado a assumir um saldo devedor, é nesse momento que se defronta com a taxa de juros escolhida pelo credor, sempre muito mais elevada do que a já alta do cheque especial e mais ainda do que a do crédito pessoal bancário. Por que isso?” Recoloco o tema em discussão, através deste pequeno trabalho, propondo a redução via judicial da taxa mensal de juros dos contratos de cartão de crédito e cheque especial para o equivalente à média do “crédito pessoal”, o que não caracterizará qualquer absurdo ou quebra de contrato.

“... as taxas cobradas ensejam um ganho elevadíssimo para a instituição financeira, pois não é de se crer que o banqueiro dê descontos e fique no prejuízo.”

2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39


Penhora on-line – um ato extremamente ilícito Marcus F. Donnici Sion Advogado

M

ontesquieu dizia que “Quando se quer mudar os costumes e as maneiras, não se deve mudá-las pelas leis”. Atualmente, na Justiça do Trabalho, o devedor é citado (sobre esse tema faremos algumas críticas abaixo) para pagar o valor da execução, sob pena de, não o fazendo, ficar submetido aos meios executivos de penhora eletrônica – penhora on-line – na forma da lei (art. 652, CPC). Excluiu-se o direito de o devedor nomear bens a penhora. Os juízos trabalhistas têm tripudiado, grosseira e violentamente, dos mais básicos direitos dos devedores, sem levar em consideração, inclusive, o artigo 620 do Código de Processo Civil, que assim dispõe: “Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”. Está se tornando inócuo argumentar judicialmente, contrariamente, à penhora eletrônica com única forma de resguardar o direito dos credores, eis que a legislação trabalhista impõe, antes desta medida extrema, o direito do devedor de ter a penhora realizada e efetivada por oficial de justiça, ou seja, o devedor tem de ser citado antes para pagar em 48h – qualquer devedor pode querer quitar seu débito e não ficar sujeito a qualquer penhora, muito menos a on-line, que é utilizada indiscriminadamente – ou nomear bens à penhora, “para que a penhora corra pela forma menos gravosa”. Hoje, na Justiça do trabalho, não têm validade a penhora menos gravosa, a intimação por meio de Oficial de Justiça e a citação do devedor antes de ser penhorado. Em alguns casos (para não falar em sua grande maioria), a Justiça vem se utilizando de um procedimento denominado “desconstituição da personalidade jurídica do devedor empresa”. Trocando em miúdos, o Juiz abandona o CNPJ da empresa e utiliza, indiscriminadamente, os CPFs dos sócios, ex-sócios e, em alguns casos horrendos, de todos os sócios de uma vez só,

40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

sem, inclusive, levar em consideração a situação societária para preferência de penhora do sócio atual, pois, em diversas ocasiões, para não generalizar como sempre, há o bloqueio online de contas bancárias de sócios que já não figuram mais da sociedade e sequer fizeram parte da Empresa no período em que o empregado-credor trabalhou para a firma desconsiderada. O critério de precedência de busca por outros bens penhoráveis, em detrimento da penhora on-line, encontrase obscuramente prejudicado e ilegalmente imposto pela Lei 11.382/06, se for utilizada (de forma equivocada) a temerosa combinação do art. 652, § 2º, com o art. 659, § 6º do CPC. Como resultado, os Juízes Trabalhistas vêm entendendo que: indicado pelo Credor em sua petição inicial de execução o pedido de penhora on-line, o julgador poderá providenciar a imediata penhora por meios eletrônicos do devedor – a autoritária penhora on-line –, repudiando todos os mandamentos determinados pela legislação processual trabalhista, mais precisamente os artigos 882 e 883 da Consolidação das Leis do Trabalho, que determinam que “não pagando o executado, nem garantido a execução, seguirse-á penhora dos bens, tanto quanto basta ao pagamento da importância da condenação (...)”, sendo efetivada via citação por notificação postal (artigo 886, parágrafo 1º da CLT), bem antes da manipulada afronta da penhora eletrônica, onde o Magistrado, por seu computador, acessa o Banco Central do Brasil – denominado BacenJud – e bloqueia imediatamente a conta do devedor. Vale ressaltar que não sou totalmente contra a penhora on-line, mas as medidas introdutórias processuais trabalhistas devem ser levadas em consideração preliminarmente, sob pena de estarmos vivendo um período negro de insegurança jurídica por interpretação equivocada de legislação que não revogou a Consolidação das Leis do Trabalho.


Foto: Arquivo Pessoal

Fácil perceber que a intenção da Justiça do Trabalho é extirpar o critério da precedência de busca por outros bens penhoráveis, direito concreto do devedor, transformando-o, definitivamente, em peça de museu. Não podemos deixar que este entendimento prevaleça. A Penhora on-line não está livre de críticas. Tramitam, no STF, duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, ainda sem julgamento. Alegam-se, de modo geral, os seguintes problemas: a penhora desrespeita a determinação da execução de forma menos gravosa para o devedor; excesso de penhora; demora para o desbloqueio de valores superiores à dívida; bloqueio de valores impenhoráveis e bloqueio de valores que pertencem a terceiros e não ao devedor. Não são poucos os casos de bloqueio de valor até 1000 vezes superior ao valor da dívida (em alguns casos, o Magistrado – chega a ser arrepiante – penhora as contas de dezenas de sócios de uma só vez), assim como o bloqueio de salários, proventos de aposentaria, pensões e outras verbas de caráter alimentar e absolutamente impenhoráveis pela legislação vigente, inviabilizando a manutenção do devedor e de sua família (inciso I a X, do artigo 649, do Código de Processo Civil). Chegou a hora de a sociedade dar um basta em seu lídimo direito violentado, eis que os valores executados eletronicamente na grande maioria das ocasiões, por questões de segurança, transitam pelo sistema bancário. O bloqueio de todas as contas de uma empresa provoca sua imediata morte econômica e financeira, pelo engessamento de seu fluxo de caixa, retirando do empregador seu direito de comerciar e sobreviver, além de algemar o seu empreendimento e o salário dos seus empregados. Tal atitude equivale, de forma paradigma, à odiosa figura já banida da “morte civil”, prevista nos artigos 116/119 da “Constituição” de 1937.

“Chegou a hora de a sociedade dar um basta em seu lídimo direito violentado, eis que os valores executados eletronicamente na grande maioria das ocasiões, por questões de segurança, transitam pelo sistema bancário.”

2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


presidente João Goulart – Um mártir José Roberto Rutkoski Advogado

“Mas, se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta, nem teme, quem te adora, a própria morte...” JOAQUIM OSÓRIO DUQUE ESTRADA

U

m divisor de águas ocorreu no momento dos atos ilícitos praticados pelos Estados Unidos da América do Norte, quando, por ordem do governo estrangeiro, aprovou e financiou o golpe no Brasil, em 1964; remunerando militares, políticos, legisladores, agentes do governo e sindicalistas, por intermédio de seus agentes lotados na CIA – Central de Inteligência América. Notadamente, o Presidente João Goulart, com visão aguçada, planejou e aplicou a regra de boa vizinhança com os países em emergência – China, Índia e demais países, na obtenção de tecnologia, economia, cultura, comércio, abrindo, desta forma, as portas para as importações e exportações. Numa expressão clara de democracia, pensando no desenvolvimento Industrial, Comercial e de Serviços, buscou novos caminhos de crescimento para a nação continental brasileira. Acompanhado de uma equipe coesa de sentimento progressista, não mediu esforços para atingir os objetivos de governar e dar sustentação ao crescimento do Brasil. O governo norte-americano, embora demonstrasse ser um bom parceiro comercial, recebendo e sendo recebido com honras, traiçoeiramente articulava uma ação danosa de irreversíveis conseqüências, não só para o Brasil, mas também contra os familiares do Presidente. Quando o embaixador Lincoln Gordon esteve no Brasil para lançar seu livro “A 2ª chance do Brasil no caminho do primeiro mundo”, confessando que o planejamento, a execução e as conseqüências preestabelecidas pelo governo norte-americano, muito embora de forma ilícita e dolosa, não tinham divulgação e, muito menos, a aprovação dos órgãos internacionais, praticou um ato de gestão contra um estado estrangeiro.

42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

Hoje, reconhecemos o Presidente Goulart como um “mártir”, pois abdicou de seus direitos constitucionais, até ser assassinado em 06 de dezembro de 1976, para que não houvesse uma mortandade entre irmãos brasileiros. Através do financiamento feito pelo governo americano, concomitante com o fornecimento de armas, munições, e uma vasta estrutura bélica, vimos que seu intento estava em articular um movimento para instaurar uma guerra civil em nosso país, com conseqüências danosas imensuráveis, tanto materiais quanto morais Uma das conseqüências traumáticas, com sérias seqüelas, aconteceu quando, ilicitamente, declararam a vacância do cargo de Presidente, sendo que o mesmo encontrava-se no Estado do Rio Grande do Sul, e, sem escrúpulos, entregaram o país nas mãos dos militares, que, abusando do poder, sem limitar seus deveres e direitos, mataram, torturaram, desapropriaram e praticaram muitos outros atos ilícitos contra todos os que não aceitaram o golpe. As cicatrizes, ainda expostas, acompanham os sobreviventes da ditadura militar, causado pelo trauma psicológico e físico, prejuízos irreparáveis, com danos morais, materiais, de imagem e existência. A família, após declarações do embaixador Lincoln Gordon, em 2002, indignada com os fatos narrados e por não haver, ao menos, um representante público brasileiro que tomasse apenas a iniciativa de questionar as atitudes praticadas pelo governo norte-americano, procurou então um escritório advocatício para que, em foro competente e tempestivamente, impetrasse uma ação de indenização por danos materiais, morais, de imagem e existência. Para instruir o processo, os advogados buscaram entender melhor sobre as declarações de Lincoln Gordon através de


Foto: Arquivo JC

pesquisas em livros, revistas, artigos e documentos no Brasil e em território estrangeiro. Lincoln Gordon, em entrevistas e declarações, não poupando seu entusiasmo, levantou a bandeira de sua vitória contra um povo sofrido e honesto, pólo ativo das corrupções de pessoas que, até os anos de 1964, não haviam praticado nada que desonrasse suas condutas. Desta forma, pudemos transcrever alguns trechos declarados por Lincoln Gordon, em seu livro “A segunda chance do Brasil a caminho do primeiro mundo”, da Editora Senac, 2002, no qual revela o plano doloso dos Estados Unidos. Vejamos: “Nestas circunstâncias, nosso objetivo deveria ser ajudar a frustrar as tendências (de Goulart) e sustentar as perspectivas de uma eleição autêntica em 1965, mantendo a imagem mais favorável possível dos Estados Unidos e das relações brasileiro-americanas, opondo-nos ou adiando ações antagônicas. Isso, no mínimo, aumentaria a probabilidade de uma quebra de continuidade constitucional assumir forma favorável aos nossos interesses. A atuação, neste sentido, exigirá um grande aperfeiçoamento de alguns dos nossos atuais métodos operacionais, como, por exemplo, na rapidez da ação em projetos de assistência sempre que eles puderem ser usados para nossa vantagem política. Os recentes atrasos com relação à Companhia Hidrelétrica do Vale do Paraíba (Chevap) e aos geradores de Fortaleza são típicos do sério fracasso da deficiente avaliação de Washington da natureza das circunstâncias políticas brasileiras e da urgência da adoção de movimentos rápidos e afirmativos, sempre que precisemos

movimentar-nos. Mas a nossa grande carta neste jogo é a visita presidencial”. P.104/105.(grifo nosso) Ainda relata, em seu livro, que militares americanos estariam envolvidos com a finalidade de garantir o golpe, mesmo por meios de ações bélicas. Vejamos: “Nesse ponto, as alegações se baseiam na força-tarefa naval Brather San, que reuniu um porta-aviões e contratorpedeiros de escolta. Ela partiu do Caribe no dia 31 de março de 1964, dirigindo-se ao Brasil. Sua existência se tornou conhecida publicamente quando telegramas pertinentes que se encontravam na biblioteca presidencial de Johson foram liberados para consulta no fim dos anos 1970, e com a publicação da dissertação doutoral de Phyllis Parker, U.S. Policy Prior to the Coup of 1964. Nenhum brasileiro, militar ou civil, teve conhecimento da formação dessa força-tarefa naquele momento. Ela foi organizada atendendo à minha recomendação, no sentido de reagir à contigência de que uma crise do governo Goulart pudesse levar à situação de guerra civil, com as forças armadas, inclusive as milícias estaduais, divididas geograficamente em grupos pró e contra o presidente.” (p.108) (grifo nosso) “(...) Nos últimos dias de março de 1964, quando a crise brasileira estava chegando ao clímax, Washington fez também planos de emergência para fornecer armas ligeiras e munição, que poderiam ser enviados via aérea, ao passo que a força-tarefa naval viajaria onze dias para chegar ao Sul do Brasil.” (109) “(...) Em meados de março, à medida que crescia a instabilidade política e a mídia especulava sobre a possibilidade de violência, aceitamos também o pedido de um empresário contrário a Goulart para carregar combustível de três petroleiros, como medida para enfrentar uma possível sabotagem dos oleodutos da região de São Paulo. As belonaves e os petroleiros partiram do Caribe para o Brasil em 31 de março, e, seguindo o meu conselho, regressaram aos seus portos muito antes de alcançar águas brasileiras.”(p.109) grifamos) “(...) Que nós saudamos a derrubada de Goulart é um fato conhecido.” (p.111) (grifo nosso) Oportuno, também, transcrever trechos do telegrama 1296, do Departamento de Estado para a Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, datado de 30 de março de 1964, às 9h52 da noite (hora de Washington): “Para o Embaixador do Secretário. A política dos Estados Unidos com relação ao Brasil se baseia na nossa determinação de apoiar, de todas as formas possíveis, a manutenção do governo representativo e constitucional, livre da contínua ameaça de uma ditadura da esquerda baseada na manipulação de Goulart-Brizola. É muito importante que se presuma a posição de legitimidade daqueles que se oponham à influência comunista e a outros extremismos.(...) Com respeito à capacidade de apoio pelos Estados Unidos, podemos atuar prontamente com medidas finan2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


“A ação proposta pela família Goulart tem como objetivo mostrar ao Brasil que não cabe a ninguém violar as Leis constitucionais de uma Nação e ocasionar danos a outrem.” ceiras e econômicas. Com respeito à assistência militar, os fatores logísticos são importantes. Navios de superfície transportando armas e munição não poderiam chegar ao Brasil meridional antes de, pelo menos, dez dias.” Em seguida, trechos do telegrama 2125, da Embaixada no Rio de Janeiro para o Departamento de Estado, datado de 31 de março de 1964, às 13h (horário local do Rio de Janeiro): “Para o Secretário, do Embaixador Re Deptel 1296 (...). O discurso de Goulart sobre os sargentos [amotinados], na noite de segunda-feira, que estava terminando quando o senhor me telefonou, parece seu gesto derradeiro. Fez as reverências apropriadas à Constituição e à legalidade, à Igreja, ao nacionalismo verde e amarelo, e não ao modelo vermelho, mas isso era um evidente disfarce para apoiar ativamente a subversão dos sargentos e também uma ofensiva psicológica contra o grupo de oficiais, assim como o Congresso, a imprensa, os círculos de negócios estrangeiros e nacionais. (...) (...) minha atual avaliação é que essa pode não ser a última oportunidade, mas poderia ser a última boa oportunidade de apoiar a ação do grupo contrário a Goulart (...). Acredito que sua decisão será afirmativa, e estarei me preparando para recomendar os meios de dar às forças de resistência um ímpeto maior.” (ob. cit. pp. 114 e 115) (grifamos) A prova da ilicitude, colacionada aos autos, foi confirmada pela CIA em documentos, corroborando o intento da prática de gestão de atos em território estrangeiro (neste caso Brasil), financiados pelo governo norte-americano com finalidade de desestabilizar uma nação e derrubar o governo legítimo, eleito pelo povo brasileiro. Contudo, o mais cruel dos atos ilícitos foi a prisão de Maria Thereza Fontella Goulart, esposa do presidente, e de seu filho João Vicente Fontella Goulart, que, com 16 anos, encapuzaram, torturaram fisicamente e psicologicamente, deixando-o incomunicável. Este é apenas um exemplo. Os demais estão contidos na peça inaugural protocolada na Justiça Federal. Não cabe a nós questionarmos o porquê desta operação, acontecida não só no Brasil como em toda a América Latina. Porém, está em nossas mãos resgatar a honra de um presidente que deu sua vida para proteger uma nação, para retomar a honra de uma soberania já encontrada com sua carta magna rasgada, ultrajada e aviltada. 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

A ação proposta pela família Goulart tem como objetivo mostrar ao Brasil que não cabe a ninguém violar as Leis constitucionais de uma Nação e ocasionar danos a outrem, muito menos tratando-se de estados estrangeiros que firmaram compromissos internacionais – como exemplo, a carta de 1949 de OEA. Também, não é coerente da parte norte-americana afetar outras organizações instituídas legalmente, que disponibilizam seus componentes para estudar e solucionar casos semelhantes. Os valores pecuniários requeridos pelos autores são ínfimos em relação às atrocidades sofridas no Brasil, na época do golpe, pela família do Presidente, como também nos países em que viveram exilados sob pressão psicológica de um poder oculto (americano), tais como: perseguições e ameaça de morte; patrimônio dilapidado por ações predadoras; rebanho de gado de suas fazendas roubado, além de seus ativos pessoais de grande valor econômico e sentimental furtados – relíquias jamais recuperadas! Os fundamentos jurídicos que embasaram a petição inicial fundamentaram-se nas Leis em vigência em nosso país, corroboradas com as Leis internacionais e acordos firmados entre países que adotam diretrizes de direito semelhantes às que praticamos no Brasil. Os danos materiais foram apurados e demonstrados através de uma planilha, por um profissional qualificado, assim como os danos morais, de imagem e existência. Após essas avaliações, serão mensurados também os lucros cessantes. Se a história pudesse dar continuidade sem a ingerência do Estado Estrangeiro Americano, em 1964, hoje estaríamos numa posição mais confortável, se equiparado aos países de primeiro mundo. Nossos filhos desfrutariam de uma vida menos fragilizada e traumatizada, contribuindo melhor para a comunidade mundial. Acreditamos em nossa justiça e depositamos, irrestritamente, a presente ação nas mãos de magistrados sapientes, para que, após tomarem conhecimento de tudo o que se passou ao longo dos anos, num gesto justo, julguem pelo provimento dos pedidos. Cremos também que os Estados Unidos da América do Norte virá a reparar, pecuniariamente, os danos sofridos por Maria Thereza Fontella Goulart, Denise Fontella Goulart e João Vicente Fontella Goulart, sem que haja a necessidade de buscarmos estes direitos em outras esferas judiciais internacionais, tendo em vista que os atuais governantes americanos demonstram ser pessoas sérias e coerentes, reconhecedoras do direito.


2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


Direitos Fundamentais e Relações privadas direito à moradia e bem de família Roberto Rosas Prof. Titular da Universidade de Brasília Presidente do IBDC

D

iscute-se, no presente, se o imóvel residencial do fiador pode ser bem de família impenhorável para pagamento da dívida do afiançado (art. 3º da Lei 8.009 e art. 6º da Emenda Constitucional n.º 26). Este tema é de alta indagação, requer debate, na repercussão para o mercado locatício, onde a exigência de fiador é drama para o locador e para o locatário. Certamente, a exclusão do único bem do fiador na garantia fidejussória levará o mercado a mais uma preocupação: como alguém garantirá o aluguel, tão aviltado diante de outros custos, como imposto de renda, decadência física do imóvel, inadimplentes, mora, a acarretar a fuga de investidores para esse importante segmento da economia brasileira? Debate-se, então, o alcance do direito social de segunda geração: o direito à moradia. Como esse direito é explicitado somente na Emenda Constitucional nº 26, recolham-se seus antecedentes externos, nas Constituições de Portugal e Espanha, como vemos: “Art. 65 – (Portugal) Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar. ............................................ Adiante, para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado – progresso, construções... ............................................ Art. 47 – (Espanha) Todos os espanhóis têm direito a desfrutar de uma vivenda digna e adequada. ........................................ Adiante, os poderes públicos promoverão as condições necessárias para fazer efetivo esse direito.” No entanto, veremos como a doutrina portuguesa reduz o direito a uma exigência aos poderes públicos, segundo dois eminentes comentadores: “O direito à habitação consiste no direito a obtê-la,

46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

traduzindo-se na exigência das medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objetivo. Neste sentido, o direito à habitação apresenta-se como verdadeiro e próprio ‘direito social’. Enquanto tal, o direito à habitação implica determinadas obrigações positivas do Estado.” (Canotilho e Vital Moreira – Constituição anotada, 2ª ed. 1º/346) Canotilho observa entre os direitos sociais aqueles direitos a prestações, ao contrário daqueles direitos auto-executáveis (liberdade de expressão, direito de propriedade). Esses direitos a prestações são dependentes da atividade mediadora, dos poderes públicos (Direito Constitucional, 5ª ed., 474). O professor ainda acentua: “Os poderes públicos têm uma significativa ‘quota’ de responsabilidade no desempenho de tarefas econômicas, sociais e culturais, incumbindo-lhes por à disposição dos cidadãos prestações de várias espécies, como instituições de ensino, saúde, segurança, transportes, telecomunicações.” (p. 474) Toda a tônica dos direitos sociais está num direito fundamental, cuja ausência transforma o Estado em infrator. Sobre isso, observa Canotilho que os direitos sociais realizamse através de políticas públicas (Curso, pg. 511). Da mesma forma, Canotilho e Vital Moreira, para não discutir essas normas programáticas, dão aos direitos sociais como titular direto os cidadãos, pelo “que as atividades ou prestações reclamadas do Estado surgem como verdadeiras obrigações deste.” (Fundamentos da Constituição, pg. 128). Como o Judiciário pode ativar esses direitos sociais? Canotilho responde: “Os tribunais não são órgãos de conformação social ativa.”, e cita eloqüente acórdão do Tribunal Constitucional Português, assim sintetizado: “As normas consagradoras de direitos sociais podem e devem servir de parâmetro de controle judicial, mas eles ficam dependentes, na sua exata configuração e


dimensão, de uma intervenção legislativa conformadora e concretizadora, só então adquirindo plena eficácia e exeqüibilidade.” (Curso, 513) Referiu-se, então, a esse expressivo acórdão, que trata do direito à habitação, direito à morada condigna. Nessa decisão, arrendatário impugnava a denúncia do contrato, à luz do art. 65 da Constituição Portuguesa (direito à habitação). Aquele tribunal entendeu esse direito como a “reserva do possível” – um direito com fim político de realização gradual cometida ao Estado –, e faz o paralelo entre o sacrifício do locatário em confronto com o sacrifício do proprietário; excluindo-se um ao outro, vale a regra legal de benefício do proprietário. Ainda na interpretação constitucional portuguesa, a doutrinadora brasileira Cristina Queiroz traz outros julgados lusitanos sobre esse tema: “109. Cf., inter alia, Ac. TC 44/1984, 131/1992, DR, II Série, de 24.7.1992, e 151/1992, DR II Série, de 28.7.1992, referentes ao ‘mandato de despejo’ e ao ‘direito de denúncia’ nos contrato de arrendamento para habitação, regulador no Código Civil. Aí se configurou o direito à habitação como um ‘direito a uma prestação não vinculada’, reconduzível a uma mera ‘pretensão jurídica’. O direito à habitação não confere ao cidadão um ‘direito imediato’ a uma ‘prestação efetiva’, mostrando-se, em conseqüência, insuscetível de aplicação direta, não lhe assistindo o regime jurídico contido no nº 1 do art. 18º da Constituição. Ou seja, não se configura como um direito diretamente aplicável, nem exeqüível por si mesmo. Em suma, ainda que seja um ‘direito fundamental’, pela sua natureza, o direito à habitação não é suscetível de conferir, por si mesmo, um direito ao arrendatário, jurisdicionalmente exercitável, de impedir que o senhorio denuncie o contrato de arrendamento

quando necessitar do prédio para sua habitação.” (Cristina Queiroz – Direitos Fundamentais. Sócias, em Interpretação Constitucional, org. Virgílio Afonso da Silva, Malheiros, p. 205) Na doutrina portuguesa, o mais acatado e citado doutrinador dos direitos fundamentais, José Carlos Vieira de Andrade, defensor da eficácia imediata desses direitos, no que concerne ao direito à moradia, é restritivo: “Esse tipo de direito cumpre-se pela organização de um sistema estadual, que, especialmente através de lei e de acertos da Administração...” (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª ed., p. 59). Mais adiante: “Ou mesmo dos direitos a prestações (como os direitos à habitação ou à segurança social), porque não está em causa nessas hipóteses a atuação dos indivíduos, mas fundamentalmente a atuação dos poderes públicos.” (p. 162) Esse autor, mesmo em relação ao Estado, reduz essa exigência à existência de recursos suficientes (p. 190). Vejase, em Jorge Miranda, esse direito sendo sujeito passivo, o Estado em sentido amplo (Constituição Portuguesa, Anotada, Coimbra Editora, I, p. 669). É importante relembrar a tentativa da inserção da moradia como direito social. Sobre isso, Luiz Roberto Barroso expõe: “Analise-se, de outra parte, o ‘direito’ que fora delineado no art. 368 do Anteprojeto de Constituição elaborado pela Comissão de Estudos Constitucionais (Comissão Afonso Arinos, 1986), cuja dicção era seguinte: ‘é garantido a todos o direito, para si e para a sua família, de moradia digna e adequada, que lhe preserve a segurança, a intimidade pessoal e familiar’. Assumindo, hipoteticamente, que tal dispositivo houvesse incorporado à Constituição, ninguém 2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


“Toda a tônica dos direitos sociais está num direito fundamental, cuja ausência transforma o Estado em infrator.”

ousaria discordar de que este ‘direito’ à moradia não investe seu titular numa situação jurídica comparável à dos exemplos anteriores. Entendimento diverso conduziria à conclusão de que, no dia seguinte à promulgação de tal texto, todo indivíduo que fosse capaz de demonstrar que não possui moradia nos moldes previstos na norma teria ação contra o Poder Público para recebê-la. Seria insensato supor que este tenha sido o objetivo da norma. Logo, tem-se de admitir que ela não visou investir alguém no poder jurídico de exigir prontamente uma prestação positiva do Estado. Se assim é, porque não poderia ser diferente, verifica-se que o vocábulo direito recebeu conteúdo variado e enseja efeitos diversos em cada uma das normas apreciadas. Este exemplo é extremo. Outros, no entanto, sujeitam o intérprete a uma incerteza grave e indesejável.” (Luís Roberto Barroso – O Direito Constitucional e a Efetividade de suas normas – 2ª ed., p. 105) Como esse direito explicita-se no direito brasileiro (EC – 26)? A eficácia das normas constitucionais, por si, já daria excelente diálogo na dicotomia eficácia limitada e eficácia contida, como bem colocado no voto do Em. Ministro Carlos Velloso, no Mandado de Injunção nº 20 (direito de greve do servidor) (RTJ 166/767), numa linguagem brilhante, com a devida vênia, aplicável ao caso concreto, norma de eficácia limitada, não auto-aplicável, e, portanto, não imediata, na linha de José Afonso da Silva: “O que se pode admitir é que a eficácia de certas normas constitucionais não se manifesta na plenitude dos efeitos jurídicos pretendidos pelo constituinte, enquanto não se emitir um norma jurídica ordinária 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

ou complementar executória, prevista ou requerida.” (Aplicabilidade das normas constitucionais, 1968, p. 253) José Afonso da Silva observa quanto à eficácia do direito à moradia: “A nota principal do direito à moradia, como dos demais direitos sociais, consiste no direito de obter um moradia digna e adequada, revelando-se como um direito positivo de caráter prestacional, porque legitima a pretensão do seu titular à realização do direito por via de ação positiva do Estado.” (Curso, 24ª ed.,2005 p. 315) Esses direitos existem na “forma desta Constituição” (art. 6º, in fine), consignada no art. 23, IX – promoção de programas de construção de moradias. E essa foi a justificação do projeto da PEC que se transformou na EC nº 26, principalmente para atender aos sem-teto. Entre a proteção ao fiador, que livremente decidiu proteger a dívida locatícia de outrem, e a proteção ao proprietário, locador, muitas vezes, de um único imóvel, sua fonte de renda, é necessário o socorro à ponderação dos interesses, como solução, de um arauto dos direitos humanos – Norberto Bobbio: “Na maioria das situações em que está em causa, um direito do homem ocorre que dois direitos igualmente fundamentais se enfrentam, e não se pode proteger incondicionalmente um deles sem tornar o outro inoperante.” (A Era dos Direitos, 1992, p. 42) Aqui se resolve por um princípio maior – o direito de propriedade, no antagonismo entre o direito de propriedade do locador, e, naturalmente, os frutos desse direito (os aluguéis), e o direito de propriedade do fiador – que dispôs livremente


da sua garantia, que não é só verbal, e sim patrimonial. Esse insigne mestre, no trato da norma constitucional (superior) com a norma ordinária (inferior), decide, na elementar primazia da primeira, porém, aplicado o critério da especialidade – prevalece a inferior. Estão em jogo dois valores fundamentais do ordenamento jurídico. Conclui o mestre: “A exigência de adaptar os princípios gerais de uma Constituição às sempre novas situações leva freqüentemente a fazer triunfar a lei especial, mesmo que ordinária, sobre a constitucional.” (Teoria do Ordenamento Jurídico, 9ª ed., p. 109) Uma das maiores autoridades no direito de habitação, direito à moradia, enfim, tudo em decorrência do direito urbanístico, Ricardo César Pereira Lira, Professor Titular da Faculdade de Direito da UERJ, já colocou em Conferências Nacionais da OAB sobre o tema em linhas de conduta do poder público no fito da moradia. Esse ilustre jurista preconizou a necessidade de diretrizes nacionais para o desenvolvimento urbano, e não medidas de prejuízo à propriedade devidamente utilizada (Ocupação da terra e direito à moradia – XVI Conferência Nacional da OAB, Fortaleza, 1996). Novamente, voltou ao tema do direito à moradia, vendo esse direito da EC-26, e conclui: “É crucial que esse direito de habitação não seja entendido como exercitável contra o Estado, como obrigação positiva específica a ser por ele adimplida, pois será através de uma política consistente de desenvolvimento urbano, como parcela de realização do desenvolvimento econômico, social e cultural, que se chegará à meta escolhida, que constituem, na sua gama de princípios, os já citados fundamentos da República.” (Direito de habitação e direito de propriedade – XVII Conferência da OAB, Rio, 1999) Em conclusão, na linha desse mestre, os planos governamentais chegarão à plenitude do direito à moradia. O Desembargador do TJ/SP, Luiz Camargo Pinto de Carvalho, ao tratar sobre o direito à moradia e sobre a construção do imóvel residencial do fiador, à luz do art. 6º, afirma: “Evidentemente, a simples inserção da moradia entre os chamados direitos sociais não os converteu em direitos individuais, cuja prestação deve ser prestada positivamente pelas pessoas físicas. Não, pois, se assim for, ninguém mais poderá ser despejado, mesmo que seja inadimplente com os locativos; nenhum esbulhador de imóvel residencial dele poderá ser retirado; nenhuma hipoteca poderá ser cobrada proveitosamente, se a excussão recair sobre o imóvel residencial do devedor, não obstante ele tenha sido o objeto da garantia real. Portanto, inaceitável sob todos os títulos o apressado e desfundamentado entendimento de que o direito à moradia inserto no art. 6º da Carta possa alcançar os locadores particulares, impedindo-os de executarem seu créditos locatícios, com a penhora do imóvel residencial do fiador.”

(Revista da EMERJ, v.6, n.º 24, 2003, p. 213) Cabe, ainda, reflexão sobre outro ponto – sobre o princípio isonômico: “tratando desigualmente situações iguais”. Essa ofensa ocorreria se sujeitos em igualdade de condições fossem tratados de maneira desigual. Locatário e fiador estão em situações distintas, como explica o especialista em locação, Francisco Carlos Rocha de Barros: “O princípio constitucional que proclama a igualdade de todos perante a lei é respeitado, na medida em que todos os locatários, sem distinção, são iguais perante a lei, da mesma forma como o são todos os fiadores. Se locatário e fiador não se assemelham, não há razão para levantar questão de isonomia.” (Comentários à lei do inquilinato, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 694/695) As leis locatícias sempre estabeleceram diferenciação entre fiador e locatário, para proteger o locador e, desse modo, estimular a oferta de imóveis para locação, como observa o Desembargador Sylvio Capanema de Souza, do TJ/RJ, grande especialista em locação: “A nova exceção, acrescida ao art. 3º da Lei nº 8.009, se impunha no interesse do mercado, pois estava se tornando quase impossível o oferecimento da garantia da fiança, já que, raramente, o candidato à locação conseguia um fiador que tivesse, em seu patrimônio, mais de um imóvel residencial.” (Sylvio Capanema de Souza, Da Locação do Imóvel Urbano, Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 646) A regra de impenhorabilidade vem exatamente ao encontro do desígnio constitucional ali posto: a garantia fidejussória é reforçada, o locador é estimulado a alugar, a oferta de imóveis no mercado cresce e, conseqüentemente, melhora a moradia e aumenta a efetividade do direito social acrescentado pela Emenda nº 26/2000. Várias outras observações podem aflorar a partir da importante e problemática recepção de normas anteriores ao texto constitucional. Como será a sobrevivência do art. 3º da Lei nº 8.009, onde está inserido o inciso VII, agora debatido no despacho? Nesse inciso, inserem-se outras importantes garantias – pensão alimentícia, tributos, etc. Reflita-se sobre o art. 1715, do recente Código Civil: “O bem de família é isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas de condomínio.” O afastamento da garantia prejudica a proteção ao direito de crédito, garantia do princípio da livre iniciativa (CF – art. 170). O Estado garante a atividade econômica e seu desenvolvimento. O patrimônio do devedor sujeita-se às dívidas, porque não há prisão por dívida. Se há o afastamento desse patrimônio, torna-se baldia a regra do art. 5º, LXVII da C.F. Deseja-se, então, a razoabilidade da norma. Aquele que acredita numa garantia para tornar efetivo um direito, que, positivada, aumentará a efetividade do direito social – à moradia, na linguagem do acórdão português mencionado 2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49


–, a reserva do possível. (v. Oscar Vilhena Vieira – Direitos Fundamentais, p. 393) Esse debate foi enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal, no RE 407 688, relatado pelo Ministro Cezar Peluso. Disse o Relator: “Não me parece sólida a alegação de que a penhora do bem de família do recorrente violaria o disposto no art. 6º da Constituição da República. (...) A regra constitucional enuncia direito social, que, não obstante, suscetível de qualificar-se como direito subjetivo, enquanto compõe o espaço existencial da pessoa humana independentemente de sua justiciabilidade e exeqüibilidade imediatas.” A dimensão objetiva do relator supõe provisão legal de prestação aos cidadãos, donde entrar na classe dos chamados “direitos a prestações, dependentes da atividade mediadora dos poderes públicos”. Entendeu que a Constituição não repugna que o direito social à moradia possa ser implementado por uma norma jurídica que estimule ou favoreça o incremento da oferta de imóveis para fins de locação habitacional, “mediante previsão de reforço das garantias contratuais dos locadores”. Lembrou que o direito à moradia não está restrito apenas aos proprietários. Então, caso se acabasse com a penhora do bem de família do fiador, acabaria se restringindo as formas de garantia nos contratos locatícios. Assim sendo, muitos dos que têm imóveis e vêem no fiador a única possibilidade de garantia para a locação ficariam sem chances de alugar. De acordo como o Minisro Peluso: “Castrar essa técnica legislativa, que não pré-exclui ações estatais concorrentes de outra ordem, romperia o equilíbrio do mercado, despertando exigência sistemática de garantias mais custosas para as locações 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007

residenciais, com conseqüente desfalque do campo de abrangência do próprio direito constitucional à garantia”. O Ministro Eros Grau divergiu. Invocou o princípio da dignidade da pessoa humana e o da isonomia para sustentar sua tese. A isonomia seria ferida caso um locador, para manter uma poupança com o intuito de compra uma casa própria, deixasse de pagar os aluguéis, recaindo o ônus sobre o fiador. Ele explicou: “A impenhorabilidade do imóvel residencial é instrumento da proteção do indivíduo e sua família, quanto a necessidades materiais, de sorte e prover sua subsistência. A propriedade, quando existe, consiste em um direito individual e cumpre função individual. Como tal, garantia pela generalidade das constituições do nosso tempo. A essa propriedade, aliás, não é imputável função social. Apenas os abusos cometidos no seu exercício encontram limitação adequada nas disposições que implementam o chamado poder de polícia”. Nos debates, o Ministro Joaquim Barbosa lembrou que a locação também é uma forma de concretização do direito de moradia. Como observa Robert Alexy, o princípio da proporcionalidade tem grande função como método interpretativo na ocorrência de colisão entre direitos fundamentais, como solução conciliatória, para dar primazia a um dos direitos (Teoria de los Derechos Fundamentales, 1993, p. 89). As colisões dos discursos reais terão de ser supervisionadas a partir de colisões de valores ideais (a vida, a segurança) que integram o justo de uma comunidade. (JJ. Gomes Canotilho – Estudos sobre direitos fundamentais, Coimbra Editora, 2004, p. 129)


2007 dezembro • JUSTIÇA & CIDADANIA • 51


52 • JUSTIÇA & CIDADANIA • dezembro 2007


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.