Revista Justiça & Cidadania

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2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008


EDIÇÃO 99 • OUTUBRO de 2008

CONSELHO EDITORIAL

ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES Diretor jurídico ERIkA BRANCO SECRETÁRIA DE REDAÇÃO DIOGO TOMAZ DIAGRAMAÇÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI RIO DE JANEIRO - RJ - CEP: 20020-906 TEL./FAX (21) 2240-0429 SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765 / 13°ANDAR SÃO PAULO - SP - CEP: 01311-200 TEL. (11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO, 1038 / SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO - Porto Alegre - RS CEP: 90010-272 TEL. (51) 3211-5344 SALVADOR FREDERICO DINIZ GONÇALVES RUA BARÃO DE ITAPUÃ, 60 / CONJ. 301 CENTRO EMPRESARIAL PORTO CENTER Salvador - BA - CEP: 40140-060 TEL. (71) 3264-3754 BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 – Bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK BRASÍLIA - DF - CEP: 70711-903 TEl. (61) 3327-1228/29

Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima arnaldo Lopes süssekind aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman Joaquim Alves Brito josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho

CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL. (61) 9674-7569

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SUMÁRIO CONSTITUIÇÃO DE 1988 UM SONHO DEMOCRÁTICO Realizado

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Discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988

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A palavra do relator: ontem, há vinte anos

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MANDADO DE INJUNÇÃO

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A Constituição de 1988 como superação do Estado Policial

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O SISTEMA TRIBUTÁRIO ATUAL E O PROPOSTO

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Constituição Cidadã e os desafios e gargalos da atividade jurisdicional

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OS 20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO E O “SISTEMA S”

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BREVES REFLEXÕES SOBRE RESPONSABILIDADE CIVIL NO ÂMBITO DA COMUNICAÇÃO

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Reflexão sobre o papel do transporte coletivo na vida das cidades

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A RECONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA DO BRASIL

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O ACESSO À JUSTIÇA FEDERAL E OS 20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

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ANÁLISE DA ESTRUTURA JURISDICIONAL PÁTRIA

58

A Constituição Federal e o setor elétrico brasileiro

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ADVOCACIA PÚBLICA AUTONOMIA NECESSÁRIA

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Os 20 anos de dualismo da “Constituição Coragem”

72

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

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OS SUCESSIVOS RECORDES DE ARRECADAÇÃO TRIBUTÁRIA

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A Constituição de 1988 e os direitos políticos

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CTP, IMPRESSÃO E ACABAMENTO ZIT GRÁFICA E EDITORA LTDA ISSN 1807-779X

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CONSTITUIÇÃO DE 1988 UM SONHO DEMOCRÁTICO Realizado

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inha razão o presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, quando, em 27 de julho de 1988, proferiu em seu discurso, as seguintes palavras: “Esta Constituição terá cheiro de amanhã, não de mofo”. Dentre todas as constituições, promulgadas democra­ ticamente ou impostas pelo poder ditatorial, nenhuma foi tão verdadeiramente republicana como a atual. Para quem, como este editor, vivenciou as várias cartas constitucionais desde a de 1934 até a derradeira de 1988, vale reconhecer e dar louvores aos constituintes de 1988, destacando-se indubitavelmente os grandes embates e confabulações parlamentares, assim como as grandiosas figuras do feito histórico: o timoneiro, Ulysses Guimarães, e o condutor principal, Bernardo Cabral. A Constituição brasileira encontra-se entre os melhores textos do mundo, apesar da teimosia em desrespeitá-la, quando o interesse governamental está em jogo. O mérito destes 20 anos é que, apesar de ter permitido um excessivo custo político e burocrático sobre o povo – com as estruturas públicas constantemente alargadas em função dos humores dos detentores do poder para acomodar aliados e amigos –, tem resistido. Norberto Bobbio no “A Era dos Direitos”afirmava que o século XX permitiu a descoberta para toda a humanidade de uma grande gama de direitos. Afirmava, todavia, que o grande desafio para o século XXI consistia em ofertar a garantia necessária para que estes direitos pudessem ser exercidos pela sociedade. 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

A luta pelo exercício da cidadania é fazer com que tais direitos sejam efetivamente garantidos neste século. Decorridos os 20 anos da sua promulgação, podemos com certeza afirmar que politicamente ela fez bem à Nação. Completou a transição, já que profundamente democrática, e assegurou o Estado de Direito. Tem muitas virtudes; a mais abrangente de todas, é ter trazido avanços notáveis em campos como os dos direitos e das garantias individuais, liberdades públicas, meio ambiente, fortalecimento do Ministério Público, regras de administração pública, planejamento e orçamento, dentre as cláusulas pétreas. No cerne de sua feitura, constituído de democracia, de cidadania e de esperança, manteve os princípios que foram impostos e deixados pelos congressistas. Essa Carta Magna que nos foi legada pelos constituintes não apenas declarou direitos, ela os assegurou ao criar novos instrumentos de proteção contra o arbítrio, tanto do Estado, como de cada um de seus agentes políticos e administrativos. Acresce-se que na sua formação houve intensa participação popular, com 4 milhões de cidadãos apresentando emendas populares. Isto foi algo inusitado; nunca houve nada igual no Parlamento brasileiro. O número de propostas apresentadas foi maior do que em qualquer outra Constituinte da história; mais de 66 mil proposições foram apresentadas e discutidas. Foi um momento histórico nunca antes havido no Brasil, e que, indiscutivelmente, marcou o encontro entre o Estado e a sociedade, no qual todos os segmentos foram contemplados com alguma referência muito importante para o seu interesse ou valores pessoais.


Foto: Sandra Fado

O comportamento dos congressistas durante a Constituinte, refletiu um momento especial da história brasileira: a redemocratização. Os diversos setores da sociedade acompanharam de perto os debates e pressionaram para incluir suas teses no texto constitucional. Na época, Ulysses Guimarães não fazia restrições à presença da sociedade nos corredores da Câmara, que tinha as galerias tomadas em dias de votações importantes. A laboriosa, acurada e excepcional percepção dedicada ao exame do conteúdo das propostas apresentadas pelos atentos e combativos constituintes, além da responsabilidade inerente às complicadas e complexas emendas populares – produzidas pelo incansável Relator na formatação da Carta Magna – fizeram de Bernardo Cabral o credor inconteste da admiração e respeito da sociedade brasileira. As palavras candentes do exuberante discurso, pronunciadas por Ulysses Guimarães no dia 05 de outubro de 1988, na promulgação da Constituição Federal, perante a Assembléia Nacional Constituinte, soam ainda e por todo o sempre, como se tivessem sido forjadas no bronze, e são reproduzidas nesta edição, como homenagem comemorativa aos 20 anos, para que os pósteros daquela data memorável possam conhecer e usufruir da magniloqüência do inexcedível tribuno e honrado patriota.

Orpheu Santos Salles Editor

Em tempo: Compareci, na qualidade de jornalista, à festividade programada pela Presidência da República, no Palácio do Planalto, em louvor aos 20 anos da promulgação da Carta Magna e em homenagem aos constituintes de 1988, tendo comparecido cerca de 250 homenageados. Falaram na solenidade, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, o presidente do Congresso Nacional, Garibaldi Alves, o presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia, o deputado federal Mauro Benevides, o chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Luiz Dulci, o presidente da União Planetária, Ulisses Riedel, e, finalmente, o presidente Lula. A grandiosidade da cerimônia teve destaque com o pronunciamento cáustico, mas oportuno, do senador Garibaldi Alves, que aproveitou a ocasião para, perante o Presidente da República, desancar contra o abuso das medidas provisórias, comparando-as aos decretos-leis que eram usados pelos governos militares no período da ditadura. Além desse fato que, apesar de causar estupefação, mereceu aplausos, outra imperdoável e incompreensível atitude ocorreu na citada comemoração: a principal personalidade dentre os constituintes presentes, quem, durante os trabalhos da Constituinte, aglutinou e formatou, sob a batuta de Ulisses Guimarães, a magnitude da Constituição Federal, o ex-senador Bernardo Cabral, apesar de participante da mesa, sequer foi chamado a se pronunciar, causando efetiva estranheza e decepção entre os presentes. 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5


Fotos: Acervo fotográfico ABr - 20 anos de Constituição

Discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988

Exmo. Sr. Presidente da República, José Sarney; Exmo. Sr. Presidente do Senado Federal, Humberto Lucena; Exmo. Sr. Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Rafael Mayer; Srs. Membros da Mesa da Assembléia Nacional Constituinte; eminente Relator Bernardo Cabral; preclaros Chefes do Poder Legislativo de nações amigas; insignes Embaixadores, saudados no decano D. Carlo Furno; Exmos. Srs. Ministros de Estado; Exmos. Srs. Governadores de Estado; Exmos. Srs. Presidentes de Assembléias Legislativas; dignos Líderes Partidários; autoridades civis, militares e religiosas, registrando o comparecimento do cardeal D. José Freire Falcão, arcebispo de Brasília, e de D. Luciano Mendes de Almeida, presidente da CNBB; prestigiosos Srs. Presidentes de Confederações, Sras. e Srs. Constituintes; minhas senhoras 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

e meus senhores: Estatuto do Homem, da Liberdade, da Democracia. 02 de fevereiro de 1987: ‘Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar’. São palavras constantes do discurso de posse como Presidente da Assembléia Nacional Constituinte. Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos Poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa. Num país de 30.401.000 analfabetos, – afrontosos 25% da população –, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto.


Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora. Bem-aventurados os que chegam. Não nos desencaminha­ mos na longa marcha, não nos desmoralizamos capitulando ante pressões aliciadoras e comprometedoras, não desertamos, não caímos no caminho. Alguns a fatalidade derrubou: Virgílio Távora, Alair Ferreira, Fábio Lucena, Antonio Farias e Norberto Schwantes. Pronunciamos seus nomes queridos com saudade e orgulho: cumpriram com o seu dever. A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da

democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina. Assinalarei algumas marcas da Constituição que passará a comandar esta grande Nação. A primeira é a coragem. A coragem é a matéria-prima da civilização. Sem ela, o dever e as instituições perecem. Sem a coragem, as demais virtudes sucumbem na hora do perigo. Sem ela, não haveria a cruz, nem os evangelhos. A Assembléia Nacional Constituinte rompeu contra o establishment, investiu contra a inércia, desafiou tabus. Não ouviu o refrão saudosista do velho do Restelo, no genial canto de Camões. Suportou a ira e perigosa campanha mercenária dos que se atreveram na tentativa de aviltar legisladores em guardas de suas burras abarrotadas com o ouro de seus privilégios e especulações. Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna. O enor­ me esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e vo­ tadas, no longo trajeto das subcomissões à redação final. A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam, livremente, as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento, à procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões. Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiros, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar. Como o caramujo, guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio. A Constituição é caracteristicamente o estatuto do homem. É sua marca de fábrica. O inimigo mortal do homem é a miséria. O Estado de Direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria. Tipograficamente é hierarquizada a precedência e a preeminência do homem, colocando-o no umbral da Constituição e catalogando-lhe o número não superado, só no art. 5º, de 77 incisos e 104 dispositivos. Não lhe bastou, porém, defendê-lo contra os abusos originários do Estado e de outras procedências. Introduziu o homem no Estado, fazendo-o credor de direitos e serviços, cobráveis inclusive com o mandado de injunção. Tem substância popular e cristã o título que a consagra: ‘a Constituição Cidadã’. Vivenciados e originários dos estados e municípios, os Constituintes haveriam de ser fiéis à Federação. Exemplarmente o foram. No Brasil, desde o Império, o Estado ultraja a geografia. Espantoso despautério: o Estado contra o país, quando o país é a geografia, a base física da Nação, portanto, do Estado. É 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


elementar: não existe Estado sem país, nem país sem geografia. Esta antinomia é fator de nosso atraso e de muitos de nossos problemas, pois somos um arquipélago social, econômico, ambiental e de costumes, não uma ilha. A civilização e a grandeza do Brasil percorreram rotas centrífugas e não centrípetas. Os bandeirantes não ficaram arranhando o litoral como caranguejos, na imagem pitoresca, mas exata, de Frei Vicente do Salvador. Cavalgaram os rios e marcharam para o oeste e para a História, na conquista de um continente. Foi também indômita vocação federativa que inspirou o gênio do presidente Juscelino Kubitschek, que plantou Brasília longe do mar, no coração do sertão, como a capital da interiorização e da integração. A Federação é a unidade na desigualdade, é a coesão pela autonomia das províncias. Comprimidas pelo centralismo, há o perigo de serem empurradas para a secessão. É a irmandade entre as regiões. Para que não se rompa o elo, as mais prósperas devem colaborar com as menos desenvolvidas. Enquanto houver Norte e Nordeste fracos, não haverá, na União, Estado forte, pois fraco é o Brasil. As necessidades básicas do homem estão nos estados e nos municípios. Neles deve estar o dinheiro para atendê-las. A Federação é a governabilidade. A governabilidade da Nação passa pela governabilidade dos estados e dos municípios. O desgoverno, filho da penúria de recursos, acende a ira popular, que invade primeiro os paços municipais, arranca as grades dos palácios e acabará chegando à rampa do Palácio do Planalto. A Constituição reabilitou a Federação ao alocar recursos ponderáveis às unidades regionais e locais, bem como ao arbitrar competência tributária para lastrear-lhes a independência financeira. Democracia é a vontade da lei, que é plural e igual para todos, e não a do príncipe, que é unipessoal e desigual para os favorecimentos e os privilégios. Se a democracia é o governo da lei, não só ao elaborá-la, mas também para cumprila, são governo o Executivo e o Legislativo. O Legislativo brasileiro investiu-se das competências dos parlamentos contemporâneos. É axiomático que muitos têm maior probabilidade de acertar do que um só. O governo associativo e gregário é mais apto do que o solitário. Eis outro imperativo de governabilidade: a co-participação e a co-responsabilidade. Cabe a indagação: instituiu-se no Brasil o tricameralismo ou fortaleceu-se o unicameralismo, com as numerosas e fundamentais atribuições cometidas ao Congresso Nacional? A resposta virá pela boca do tempo. Faço votos para que essa regência trina prove bem. Nós, os legisladores, ampliamos nossos deveres. Teremos de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência, a inépcia. Soma-se à nossa atividade ordinária, bastante dilatada, a edição de 56 leis complementares e 314 ordinárias. Não esqueçamos que, na ausência de lei complementar, os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo mandado de injunção. A con­ fiabilidade do Congresso Nacional permite que repita, pois tem pertinência, o slogan: ‘Vamos votar, vamos votar’, que integra o folclore de nossa prática constituinte, reproduzido até em horas de diversão e em programas humorísticos. 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008


Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia, em participativa além de representativa. É o clarim da soberania popular e direta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais. O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador, habilitado a rejeitar, pelo referendo, projetos aprovados pelo Parlamento. A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da República ao Prefeito, do Senador ao Vereador. A moral é o cerne da Pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. Pela Constituição, os cidadãos são poderosos e vigilantes agentes da fiscalização, através do mandado de segurança coletivo; do direito de receber informações dos órgãos públicos, da prerrogativa de petição aos poderes públicos, em defesa de direitos contra ilegalidade ou abuso de poder; da obtenção de certidões para defesa de direitos; da ação popular, que pode ser proposta por qualquer cidadão, para anular ato lesivo ao patrimônio público, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico, isento de custas judiciais; da fiscalização das contas dos municípios por parte do contribuinte, podem peticionar, reclamar, representar ou apresentar queixas junto às comissões das Casas do Congresso Nacional; qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato são partes legítimas e poderão denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União, do estado ou do município. A gratuidade facilita a efetividade dessa fiscalização. A exposição panorâmica da lei fundamental que hoje passa a reger a Nação permite conceituá-la, sinoticamente, como a Constituição coragem, a Constituição cidadã, a Constituição federativa, a Constituição representativa e participativa, a Constituição do Governo síntese Executivo-Legislativo, a Constituição fiscalizadora. Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita, seria irre­ formável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser emendada, até por maioria mais acessível, dentro de 5 anos. Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria. Recorde-se, alvissareiramente, que o Brasil é o quinto país a implantar o instituto moderno da seguridade, com a integração de ações relativas à saúde, à previdência e à assistência social, assim como a universalidade dos benefícios para os que contribuam ou não, além de beneficiar 11 milhões de aposentados, espoliados em seus proventos. É consagrador o testemunho da Onu de que nenhuma outra Carta no mundo tenha dedicado mais espaço ao meio ambiente do que a que vamos promulgar.

Sr. Presidente José Sarney: V.Exa. cumpriu exemplarmente o compromisso do saudoso, do grande Tancredo Neves, de V.Exa. e da Aliança Democrática ao convocar a Assembléia Nacional Constituinte. A Emenda Constitucional nº 26 teve origem em mensagem do Governo, de V.Exa., vinculando V.Exa. à efemeridade que hoje a Nação celebra. Nossa homenagem ao presidente do Senado, Humberto Lucena, atuante na Constituinte pelo seu trabalho, seu talento e pela colaboração fraterna da Casa que representa. Sr. Ministro Rafael Mayer, presidente do Supremo Tribunal Federal, saúdo o Poder Judiciário na pessoa austera e modelar de V.Exa. O imperativo de ‘Muda Brasil’, desafio de nossa geração, não se processará sem o conseqüente ‘Muda Justiça’, que se instrumentalizou na Carta Magna com a valiosa contribuição do Poder chefiado por V.Exa. Cumprimento o eminente ministro do Supremo Tribunal Federal, Moreira Alves, que, em histórica sessão, instalou em 1º de fevereiro de 1987 a Assembléia Nacional Constituinte. Registro a homogeneidade e o desempenho admirável e solidário de seus altos deveres, por parte dos dignos membros da Mesa Diretora, condôminos imprescindíveis de minha Presidência. O relator Bernardo Cabral foi capaz, flexível para o enten­ dimento, mas irremovível nas posições de defesa dos interesses do país. O louvor da Nação aplaudirá sua vida pública. Os relatores adjuntos, José Fogaça, Konder Reis e Adolfo Oliveira, prestaram colaboração unanimemente enaltecida. Nossa palavra de sincero e profundo louvor ao mestre da língua portuguesa Prof. Celso Cunha, por sua colaboração para a escorreita redação do texto. O Brasil agradece pela minha voz a honrosa presença dos prestigiosos dignitários do Poder Legislativo do continente americano, de Portugal, da Espanha, de Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Príncipe e Cabo Verde. As nossas saudações. Os Srs. Governadores de Estado e Presidentes das Assembléias Legislativas dão realce singular a esta solenidade histórica. Os líderes foram o vestibular da Constituinte. Suas reuniões pela manhã e pela madrugada, com autores de emendas e interessados, disciplinaram, agilizaram e qualificaram as decisões do Plenário. Os anais guardarão seus nomes e sua benemérita faina. Cumprimento as autoridades civis, eclesiásticas e militares, integrados estes com seus chefes, na missão, que cumprem com decisão, de prestigiar a estabilidade democrática. Nossas congratulações à imprensa, ao rádio e à televisão. Viram tudo, ouviram o que quiseram, tiveram acesso desimpedido às dependências e aos documentos da Constituinte. Nosso reconhecimento, tanto pela divulgação como pelas críticas, que documentam a absoluta liberdade de imprensa neste país. Testemunho a coadjuvação diuturna e esclarecida dos funcionários e assessores, abraçando-os nas pessoas de seus excepcionais chefes, Paulo Affonso Martins de Oliveira e Adelmar Sabino. Agora conversemos pela última vez, companheiras e companheiros constituintes. A atuação das mulheres nesta Casa foi de tal teor, que, pela edificante força 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


do exemplo, aumentará a representação feminina nas futuras eleições. Agradeço a colaboração dos funcionários do Senado – da Gráfica e do Prodasen. Agradeço aos constituintes a eleição como seu Presidente e agradeço o convívio alegre, civilizado e motivador. Quanto a mim, cumpriu-se o magistério do filósofo: o segredo da felicidade é fazer do seu dever o seu prazer. Todos os dias, meus amigos constituintes, quando divisava, na chegada ao Congresso, a concha côncava da Câmara rogando as bênçãos do céu, e a convexa do Senado ouvindo as súplicas da terra, a alegria inundava meu coração. Ver o Congresso era como ver a aurora, o mar, o canto do rio, ouvir os passarinhos. Sentei-me ininterruptamente 9 mil horas nesta cadeira, em 320 sessões, gerando até interpretações divertidas pela não-saída para lugares biologicamente exigíveis. Somadas às das sessões, foram 17 horas diárias de labor, também no gabinete e na residência, incluídos sábados, domingos e feriados. Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempes­ tades. Uma delas, benfazeja, me colocou no topo desta montanha de sonho e de glória. Tive mais do que pedi, cheguei mais longe do que mereço. Que o bem que os constituintes me fizeram frutifique em paz, êxito e alegria para cada um deles. Adeus, meus irmãos. É despedida definitiva, sem o desejo de retorno. Nosso desejo é o da Nação: que este Plenário não abrigue outra Assembléia Nacional Constituinte. Porque, antes da Constituinte, a ditadura já teria trancado as portas desta Casa. Autoridades, constituintes, senhoras e senhores, a socie­ dade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo do Estado. O Estado era Tordesilhas. Rebelada, a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do Universo. O Estado, encarnado na metrópole, resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes, sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: ‘Desobedecer a El-Rei, para servir a El-Rei’. O Estado capitulou na entrega do Acre, a sociedade retomou-o com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e dos seus seringueiros. O Estado autoritário prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das ‘Diretas Já’, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja nosso grito: – Mudar para vencer! Muda, Brasil!” 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008


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Foto: Arquivo do Senado

A palavra do relator: ontem, há vinte anos Bernardo Cabral Relator-Geral da Assembléia Nacional Constituinte Consultor da Presidência da CNC Membro do Conselho Editorial

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ongo e amadurecido processo de reflexão sobre os mais lídimos anseios da Nação brasileira encontrou há 20 anos no Congresso Nacional, em 5 de outubro de 1988, solene momento de coroamento e de concreção histórica. Àquela altura, após mais de ano e meio de estudos e acalorados debates, veio a lume a Constituição democrática do novo Brasil, há tempo reclamada e esperada. Vale lembrar que sua promulgação ocorreu após sofrimentos e tensões, pondo fim à longa noite de arbítrio e de precariedade jurídica dos governos autoritários que se haviam abatido sobre o país. A partir daí, passamos a respirar os ares saudáveis e vivificantes das liberdades públicas e das garantias civis restauradas, com a superação da longa era de autoritarismo e da prolongada fase de transição que lhe sucedeu. Como constituintes, foram titulados quinhentos e vinte e

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um brasileiros já no exercício de seus mandatos parlamentares, senadores da República e deputados federais, considerados, pelas vicissitudes e pelas circunstâncias do processo histórico, como portadores de poderes de representatividade também constituinte. Os melindres da transição democrática e a urgência de refundação da República não contemplavam outra solução. Com o respaldo dessa legitimação conferida sem limitações, fundada no próprio ato convocatório da Assembléia Nacional Constituinte, decidiu-se ab ovo pelo mais difícil e pelo mais autêntico: estruturar aos poucos, tijolo sobre tijolo, piso sobre piso, o grande edifício da Lei Maior. Abriu-se mão da comodidade do pré-moldado e das estruturas pré-fabricadas, em nome da proposta de realizar-se artigo por artigo a construção político-jurídica do novo Brasil. Diversamente do que ocorrera a priori e do que era desejado


por desautorizadas vozes tonitruantes, deliberou-se a partir do nada, até a redação final do texto definitivo. Preferiu-se à sólida estaca de um anteprojeto de encomenda, formulado por juristas ou comissões deles, o caminho mais árduo da abertura da senda constituinte primacial, a começar do próprio povo, de seus anseios, de suas idéias e convicções, de seus equívocos e de seus acertos. Uma vez mais estava o Brasil mobilizado para a tarefa de elaborar nova Carta Fundamental. Tratava-se de reordenar de forma democrática o país, e de reconciliá-lo com as suas convicções e tradições jurídicas, após rupturas recorrentes da ordem constitucional e dos desmandos derivados do exercício do poder fundado na precariedade da força. Com efeito, a necessidade para a sociedade brasileira de Constituição livremente votada era premente. Sem ela, valores fundamentais em que devem basear-se o convívio civilizado, a ordem pública e o Estado Democrático de Direito permaneciam letra morta, como discursos inconseqüentes da intelighenzia perdida nas propostas acadêmicas e nos devaneios filosóficos. A sobrepairar todas essas necessidades havia, ademais, o desafio de elaborar-se Constituição que ao tempo em que espelhasse relações sociais de sua época, sem engessar ou amordaçar as instituições, também estivesse apta a constituir instrumento de progresso social. Logo nos albores dos trabalhos preparatórios, elegeu-se o método a ser utilizado pelo Congresso Constituinte. Tratavase de forma de trabalho que privilegiava a espontaneidade das contribuições, ao invés de adotar o texto de juristas notáveis como base rígida. Metodologia extremamente fluida e com acentuado potencial dispersivo, é verdade, era portadora, no entanto, dos vícios e das virtudes do assembleísmo democrático e republicano. Realizou-se, conforme esse espírito de ampla consulta, desde os trabalhos iniciais, levantamento das aspirações nacionais mais intensas, expressas pelos constituintes e ainda pelo próprio povo, por meio das emendas populares. Nesse estágio, o objetivo era o de se elaborar documento que refletisse a consciência da maioria da população, como corolário do princípio basilar da vida em sociedade. Em ritmo de ordem de batalha, foi montada logo ao início das atividades da Assembléia Nacional Constituinte, em 1º de fevereiro de 1987, estrutura singela, mas eficiente, composta de subcomissões e comissões temáticas, como fóruns de debates e de negociação. Tinha-se, com isso, um conjunto de núcleos aptos a dar visão abrangente da realidade brasileira. A partir deles, dispunha-se de suporte aos debates específicos que iriam se seguir, conducentes à redação dos artigos e de seus consectários legais. Como resultado, temos hoje documento de marcante sincretismo e pluralismo, no qual se podem entrever os mais distintos segmentos, com as diversas partes que compõem o todo social a fazer refletir diferentes clivagens ideológicas. Tratou-se, malgrado o vaticínio pesaroso de certos inimigos declarados da Constituinte congressual brasileira, de trabalho extremamente profícuo, que permitiu que soubéssemos aquilo que segmentos importantes da sociedade brasileira tinham a propor, quais os seus anseios e quais os seus temores. Nesses palcos setoriais transcorreu a primeira etapa do

“Tratava-se de forma de trabalho que privilegiava a espontaneidade das contribuições, ao invés de adotar o texto de juristas notáveis como base rígida.” grande esforço: justapondo idéias, amalgamando propostas, formulando textos, classificando, cotejando e, ao final, buscando criar consenso para a redação comum. As subcomissões foram paulatinamente construindo a parte que lhes cabia da engenharia constituinte, a partir dos alicerces do que mais tarde seria uma grande construção. Seus trabalhos não eram um diktat setorial, pelo contrário, decorriam de intensas discussões entre os constituintes, a repercutir temas dissecados em assembléias públicas com enorme participação popular, para, ao final, serem consolidados em cuidadosos pareceres. Ao fim e ao cabo, votados em sessões de grande atividade e por vezes eletrizantes, os pareceres davam forma a textos articulados com a melhor técnica legislativa possível. Dessa maneira, sem poder contar com os prodígios das televisões legislativas e institucionais que hoje dão tanta transparência aos trabalhos legislativos, a Constituinte ganhou o Brasil sem campanhas publicitárias ou divulgações de mídia paga. Todos queriam ver-se de alguma forma representados no texto constitucional, dos mais importantes segmentos profissionais às mais debilitadas minorias, a revelar a confiança popular de que as normas que estivessem na Lei Maior iriam impor-se com efetividade e realismo. Nessa fase de maturação das grandes linhas a serem adotadas, onde o volume de contribuições era notável, foi importante o trabalho de apoio dado pelas assessorias técnicas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, por meio do Prodasen e da sua gráfica. Dirigidas por executivos da mais alta qualificação, as instituições deram suporte valioso aos trabalhos constituintes, em momento que ainda havia grande carência de recursos informáticos e de engenharia industrial. Porém, a qualidade pessoal e a dedicação de funcionários e diretores que trabalharam na Constituinte supriram todas as possíveis carências materiais e técnicas dos idos anos 1980. Aliás, dedicação e doação profissional foram tônicas do Congresso Nacional naqueles dias, com constantes tensões pairando no ar: os corredores estavam em dias de grandes deliberações, repletos de populares, cidadãos, muitos sem qualquer credencial, que circulavam de um gabinete ao outro, de uma comissão a outra, a abordar constituintes, convocando-os a ouvirem suas idéias e aspirações, em sadia prática de lobismo à outrance. Não eram 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


Fotos: Arquivo do Senado

poucos os autores de idéias geniais, sempre dispostos a salvar o Brasil a qualquer preço, oferecendo suas inteligências em troca de um cafezinho ou apenas de alguma atenção. Vivia-se a democracia de fato, um momento em que a atividade política era genuinamente de res publica, como sempre deveria sê-lo, a seguir o sentido etimológico da palavra. É oportuno recordar, que a participação da cidadania, aqui mencionada, foi poderoso vetor de atuação política, a aplacar iras e ressentimentos, e a reconverter conflitos potenciais em sinergias construtivas, com abundante exercício de ativa participação da sociedade. Aprendíamos o verdadeiro sentido da pluralidade republicana, e, como tal, a militância popular era valiosa ferramenta a serviço da transição democrática e da consolidação do Estado Democrático de Direito. Etapa ali iniciada, mas sempre por fazer, em prol da consolidação das instituições públicas e do aprimoramento da prática e da cultura política. Também merece referência, por coerência histórica, registrar o lado pesaroso do processo. Tanto na fase de instalação dos trabalhos, como já em fases avançadas do iter constituinte, lamentávamos a existência de poucas e agressivas especulações desairosas de críticos apressados, indisfarçados cultores de catástrofes. Marginalizados dos trabalhos constituintes senão por suas arrogâncias e limitações de comportamento, não se limitavam a criticar sem fundamento, para debochar e prever a falência do país. É provável que, na qualidade de RelatorGeral da Assembléia Nacional Constituinte, tenha acabado por me transformar no destinatário dos rancores acumulados de muitas dessas Cassandras desamadas de seu tempo e pour cause olvidadas até por seus contemporâneos. Perderam suas credibilidades e comprometeram suas biografias com bazófias de humor primitivo, a criticar de forma desarrazoada e rancorosa. 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

A elas a história se incumbiu de corrigir, acabando por revelar o quanto estavam erradas, e, no que diz respeito ao presente artigo, o quanto foram inimigos gratuitos da Constituição de 1988 e do povo brasileiro. Dentre ataques dos mais solertes, pela linha do escárnio e da pura provocação, questionava-se a natureza do Poder Constituinte, com argumentos precários e sem qualquer respaldo de juristas minimamente respeitáveis. Como clínicos gerais de tragédias políticas anunciadas, e com a soberba que costuma adornar os espíritos primitivos, tais aloprados de outras épocas afirmavam pretender com suas críticas delirantes “prevenir um desastre social”. Imbuído do dever de defender o processo constituinte que se desenvolvia com entusiasmo e com rara participação popular, logo em fevereiro de 1988 dei resposta a tais ataques, na forma de publicação que denominei “O Poder Constituinte: Fonte Legítima, Soberania, Liberdade” (Centro de Documentação e Informação, Câmara dos Deputados. Brasília: 1988), jamais contraditada ou minimamente questionada, tendo sido referência em recorrentes trabalhos acadêmicos que se têm publicado acerca de nosso processo constituinte, tanto na doutrina brasileira quanto em estudos comparatistas e em universidades estrangeiras. Não é sem razão que Jorge Miranda é constante em afirmar, do alto de sua cátedra na Universidade de Lisboa, que a Constituição de 1988 propiciou o desenvolvimento dos estudos constitucionais de forma sem precedentes, colocando a doutrina brasileira no cerne da comunidade juscientífica mundial. Em função desses ataques despropositados torna-se imperioso lembrar o contexto em que foi elaborada nossa última Lei Maior, na segunda metade dos anos 80. O primeiro ponto a destacar diz respeito ao perfil do órgão ao qual se houve


por bem confiar a feitura do Pacto Fundamental e os limites do possível com que se teve que lidar no decorrer dos trabalhos. Instalada a Assembléia Nacional Constituinte em 1º de fevereiro de 1987 mereceu destaque o seguinte rol de fatos, aqui situados em sua seqüência cronológica: aprovação do Regimento Interno, em 24 de março de 1987, com a instalação e inauguração de 24 subcomissões, entre 7 e 25 de maio de 1987; de 26 de maio a 15 de junho de 1987, instalação e inauguração de 8 comissões temáticas; logo em seguida, de 17 de junho a 18 de novembro de 1987, dá-se a instalação e o início do funcionamento da Comissão de Sistematização e de Plenário, fadada a transformar-se no núcleo centralizador de todo o processo em sua fase bruta, para a discussão e a apresentação de emendas. Ao final, realizadas 123 reuniões da Comissão de Sistematização, foram produzidos textos para discussão e votação e apresentadas 35.111 emendas, das quais 122 delas de natureza popular. Em 27 de janeiro de 1988 ocorre a votação do projeto-final em 1º turno. São apresentadas mais 2.045 propostas, muitas delas voltadas a propor reforma regimental, de iniciativa do autodenominado grupo político “Centrão”. Antes de iniciar-se a votação do projeto em 2º turno, de 1º de junho a 2 de setembro de 1988, já contávamos com a realização de 119 sessões e 732 votações, com o tempo de trabalho computado em 476 horas e 32 minutos. Em seguida, com a votação de 2º turno, foram apresentadas mais 1.834 emendas e realizadas 38 sessões, para as quais se utilizaram 142 horas e 10 minutos de trabalho. Com o contentamento geral, chegou-se à votação da redação final do texto constituinte, o que ocorreu de 13 a 22 de setembro de 1988, ocasião em que ainda se fizeram presentes 833 emendas, com o objetivo de corrigir artigos em

“Realizou-se, conforme esse espírito de ampla consulta, desde os trabalhos iniciais, levantamento das aspirações nacionais mais intensas, expressas pelos constituintes e ainda pelo próprio povo, por meio das emendas populares.”

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sua acepção formal, sanar omissões, falhas ou contradições. Realizadas todas as oito sessões previstas, computou-se tempo de trabalho, apenas nessa fase, de 27 horas e 41 minutos. Como resumo final de todas as atividades foram realizadas 330 sessões plenárias em 309 dias, com as comissões temáticas e as subcomissões a trabalhar por um total de 1.109 horas. A Comissão de Sistematização esteve reunida por 263 horas e o Plenário por 1.304 horas e 16 minutos. Como total geral de emendas, tivemos 62.160, excetuadas as que foram examinadas apenas nas comissões e subcomissões, em um total de 21.337. Ao todo, foram mais de 80.000 emendas, lidas uma a uma por mim e por meus assessores diretos em jornadas de trabalho insano, imbuídas de autêntico compromisso com o êxito da empreitada que a todos emulava. Devo fazer particular menção a um dos fatos marcantes de todo o processo constituinte, verificado em 22 de março de 1988, a chamada super-terça, quando se votou em definitivo o sistema de governo. Venceu, sem surpresas, a Emenda Humberto Lucena pelo presidencialismo, por 344 votos contra 212, com três abstenções. Confesso que à época me perguntava como era possível abster-se em relação a tema tão candente para a definição do processo político. Afonso Arinos liderou os discursos pelo parlamentarismo, como não poderia deixar de ser, seguido, dentre outros, por José Viana Filho e José Fogaça. Vivaldo Barbosa, depois de Humberto Lucena, encaminhou a votação pelo presidencialismo, seguido de outros inflamados oradores. Tratou-se de uma das mais longas e flamantes sessões do Congresso Constituinte, na qual se aprovou ainda o mandato de cinco anos para Presidente da República. Depois de horas de antológicos debates, discursos e apartes, Doutor Ulysses, ao meu lado, finalmente comandou: “Acionem o botão do painel vermelho, vamos votar!” A sorte do Brasil parecia estar lançada e só restava esperar pelo iminente resultado. Porém essa é outra história, que ainda haverá de ser contada.

Foto: Arquivo do Senado

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Abstraídos os detratores mencionados, o texto da Constituição de 1988 é prodigioso, descontados os naturais problemas de qualquer obra decorrente do labor humano. Hoje, não são poucos os tratadistas de Direito Constitucional comparado que citam o modelo brasileiro, classificando-o de diploma exemplar, profundamente renovador, à altura do melhor que o constitucionalismo moderno pode produzir, incluídas nesse rol as inexcedíveis virtudes das Constituições da Espanha e de Portugal. Em análise abrangente que possamos realizar sobre a Constituição brasileira, o primeiro dado a destacar é de natureza topográfica, por assim dizer, mas igualmente de conteúdo: o texto se instaura com a indicação dos princípios fundamentais, direitos individuais, garantias fundamentais e direitos sociais. Em vez de clássica exposição vestibular da estrutura do Estado e de seus Poderes, deu-se prevalência ao cidadão e ao trabalho: não apenas uma questão de ordem das coisas, mas uma cabal opção axiológica. Afinal, uma verdadeira Constituição Cidadã, como bem a qualificou o saudoso e notável homem público Ulysses Guimarães, bastando examinar de forma sumária seus títulos para reforçar tal convicção. No que concerne ao conteúdo material do texto constitucional brasileiro, cumpre destacar alguns atributos de seus dispositivos, para a consecução e a consolidação do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, vale referir: a expressa consagração do respeito aos direitos humanos como princípio fundamental; o alargamento das garantias fundamentais, com ênfase para o habeas data; o mandado de injunção; a garantia do devido processo legal; o mandado de segurança coletivo; a imprescritibilidade de certos delitos gravíssimos; a consagração constitucional dos direitos fundamentais do trabalhador, com particular referência ao fortalecimento do sindicato e à ampliação do direito de greve; a maior dimensão do sufrágio universal e do direito de votar e de ser votado; a redefinição das competências


normativas, conferindo aos estados e ao Distrito Federal poderes jamais antes concedidos; a atribuição ao município de efetivos instrumentos de autonomia; o fortalecimento e aumento de atribuições do Legislativo, que é a casa do povo, deslocando o Executivo da posição majestática, antes detida; os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais conferidas às comissões parlamentares de inquérito; a reformulação da partilha tributária, de sorte a viabilizar a federação; o estabelecimento, pioneiro no patamar da Constituição, de uma clara e ordenada política urbana; o regramento, voltado para os interesses da sociedade, do sistema financeiro nacional; a elaboração, por vez primeira, de uma estrutura integral da seguridade social; a total reformulação da disciplina fundamental da educação e da cultura, assentando a amplitude de seus fins e a generalização de seus beneficiários, priorizando o sistema público como destinatário dos recursos arrecadados da população; os capítulos absolutamente inovadores e exemplares da comunicação social, ciência e tecnologia, desportos o do meio ambiente, – primeira consagração mundial do tema em sede constitucional com a dignidade de Direito Público subjetivo, de natureza difusa; o combate sem trégua à corrupção, através do fortalecimento do Ministério Público; a preocupação específica com o idoso, a criança, o adolescente e as populações indígenas, todos, enfim, justamente considerados como titulares de atenção especial; a revalorização da família, com o reconhecimento de seu novo perfil e a abolição das discriminações entre os filhos; o fim da censura. Por oportuno, cumpre tecer alguns comentários sobre o problema da revisão constitucional. Surgiu de emenda de autoria do deputado Joaquim Beviláqua – imitando, em parte, a Carta portuguesa –, com a justificativa de que, logo após a promulgação da nossa Constituição, no ano seguinte, teríamos a eleição para Presidente da República, o que de resto efetivamente aconteceu, haveria, ainda, três anos para

concluir a legislação ordinária e complementar faltante, bem como para sanar as arestas, os senões e as imperfeições que porventura permanecessem no texto original. Infelizmente, as legislações ordinária e comple­mentar não foram realizadas com a expediência que se esperava e a revisão prevista tão pouco logrou êxito. Como se vê, os constituintes de 1988 tinham a mais absoluta razão de incluir tantos anos como prazo para a revisão. Quanto à apregoada ingovernabilidade que a nova Lei Maior causaria, trata-se de argumento que não se põe de pé, por razões inarredáveis. A mais veemente delas, a decorrer da natureza dos fatos, é a que sinaliza para a realidade circunstante, afinal, vivemos períodos dos mais estáveis da história republicana, não obstante grandes dificuldades verificadas com crises inauditas superadas, dentro da mais perfeita ordem constitucional. Presidente da República à época da promulgação da Constituição, José Sarney concluiu seu mandato em 15 de março de 1990, data em que assumiu o novo presidente eleito, Fernando Collor. Esse, afastado pelo impeachment, teve o restante do seu mandato cumprido pelo vice-presidente Itamar Franco, na mais perfeita ordem jurídicopolítica. A seguir, tivemos oito anos de mandato de Fernando Henrique Cardoso, até a eleição e reeleição do presidente Luis Inácio Lula da Silva. É importante referir que, sob a ordem da Constituição de 1988, sucessivos planos econômicos foram implantados no país, desde os mais ortodoxos até os mais experimentais, para que se pudesse finalmente pôr cobro à inflação que corroía o país e as esperanças de seu povo. Ora, se o país fosse ingovernável, só para citar o período Collor, nem o vice-presidente Itamar Franco teria assumido, tal como aconteceu com Pedro Aleixo no ciclo anterior, nem o mandato teria se concluído com forma e figura do Direito Constitucional à época vigente. Vale dizer, deve-se à Constituição de 88 a continuidade, a solidez e a estabilidade

Foto: Arquivo do Senado

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de período democrático sem precedentes na história republicana do Brasil, e mesmo inaudito em relação a nossos vizinhos e a nosso sofrido subcontinente. Houve, no entanto, quem pretendesse debitar à Constituição todos os equívocos presumíveis de uma sociedade portadora de problemas seculares. Isolar a Constituição brasileira e o processo constituinte de seu contexto sócio-histórico é esquecer a natureza humana do processo, a par de suas vicissitudes e de suas contingências. Em período de acirramentos ideológicos incontornáveis, da queda do Muro de Berlim, agravados pelas circunstâncias internacionais do fim do bipolarismo e da Guerra Fria, o Brasil da Constituinte vivia no plano interno as agruras econômicas da década perdida. Claro que tudo isso refluiu na qualidade dos trabalhos, quando participaram da sua feitura atores das mais diversas origens, de banqueiros a operários, ex-cassados, ex-guerrilheiros convertidos à vida democrática, banidos de volta à pátria, revanchistas, e toda uma gama de personagens de variegadas tendências e intenções. Se por um lado tal pluralidade conspirava para o detalhismo condenável do texto final, como se vê na parte referente às 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

relações de trabalho e ao papel do Estado na economia, por outro enriquecia a massa crítica que falava pelo Brasil. Era o respaldo do país de fato que tal pluralismo proporcionava à Assembléia Nacional Constituinte. País, não rara vez, desordenado e ilógico, sempre passional, representado com fidelidade no meio constituinte, como projeção mais que verossímil, a refletir realidade inconteste do que somos de fato, dos condomínios de luxo aos grotões, “do Brasil e dos Brasis” na expressão insuperável de Josué de Castro. Parece-me necessário agregar uma palavra sobre a questão federativa e seu deslinde no texto constitucional. Apesar de ser o Brasil uma Federação, as principais decisões sempre foram tomadas pelo Governo Central. Com a Constituição de 1988, a Federação ficou restabelecida, inclusive com a possibilidade de o Estado-membro legislar de forma concorrente sobre uma série de matérias e, o que é digno de destaque, dispor de recursos para pôr em prática sua administração. Foi com a Constituição que fizemos com que se desse ênfase à descentralização administrativa, comprovando que o melhor governo é o que governa mais perto do cidadão, apto a reclamar os seus direitos à Prefeitura ou ao Governo do Estado, com as


Foto: Acervo fotográfico ABr - 20 anos de Constituição

facilidades de que jamais disporia se fosse obrigado constantemente a recorrer ao Poder Central, no Planalto Central. Como decorrência, houve a elevação do percentual de arrecadação dos dois mais produtivos impostos federais: o imposto de renda e o imposto sobre produtos industrializados, destinados a integrar o Fundo de Participação dos Municípios e o Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal. É imperioso registrar que a perda do Poder Central, determinado pela Constituição de 1988, foi de natureza política e não derivada de questão orçamentária, tendo a Lei Maior estipulado que a destinação das verbas a que tinham direito os Estadosmembros a eles fossem repassadas dire­ ta­ mente, sem intermediários. No passado – e esse ambiente parece não de todo superado –, prefeitos e gover­ nadores vinham sistematicamente ao Poder Central, em atitude indevida de pedir e pleitear favores, sendo com freqüência destinatários de cooptação e de barganha de política menor. Em troca, a pretender apenas a percepção do que lhes era de direito, eram agravados com a obrigação de orientar suas bancadas para apoiar políticas oficiais. Quanto à volta nociva de tal ambiência, isso se dá contra o espírito constitucional. E mais, decorre do abuso de impostos indiretos e cumulativos, como o COFINS, o PIS, e a CSLL, sem ocorrer o mesmo com impostos diretos sobre a renda. Enfim, não há repasse apropriado para Estados e Municípios. Quanto à convocação de uma mini-constituinte ou das especulações acerca de novo pacto constituinte, como algumas vozes isoladas têm aventado, é necessário contrapor importantes argumentos. Quando vamos à gênese da Constituinte de 1988 verificamos ter ela decorrido de um claro processo histórico: no primeiro semestre de 1964, sob os impulsos de um movimento popular, fruto ou não de equívoco, as Forças Armadas, com o apoio, manipulado ou não, de significativa parcela da classe política (parlamentares, governadores e prefeitos), destituíram o Presidente da República e operaram lesões na ordem político-institucional vigente, por meio dos atos institucionais. Após breve convivência entre a Constituição de 1946 e os atos institucionais, o Congresso Nacional foi chamado a institucionalizar o quadro jurídico resultante, com nova Constituição, que foi promulgada a 24 de janeiro de 1967, em vigor a 15 de março do mesmo ano. Durou pouco, e no curto espaço de tempo de sua vigência

ouviram-se os primeiros clamores em favor da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, idéia que, informalmente, foi defendida, desde abril de 1964, pelo saudoso senador pela Bahia, Aluísio de Carvalho Filho. A idéia não prosperou, e a 13 de dezembro de 1968, o estamento militar impôs ao Presidente da República a edição do Ato Institucional nº 5, que promoveu a completa ruptura políticoinstitucional. Eis aí o motivo forte, de então, para a convocação da Assembléia Nacional Constituinte: a completa ruptura políticoinstitucional. E dela decorreram todas as ações políticas que então tiveram curso. Como no momento é imponderável que se cogite de qualquer crise institucional ou de rupturas jurídicas sob qualquer plano, com o pleno funcionamento dos Poderes do Estado, livres e independentes entre si, em tempo excepcional de liberdade de imprensa e da plenitude do Estado de Direito, a idéia de novo Pacto Constituinte é de todo perfunctória. A doutrina consiste em ver a Constituição como lei fundamental, onde se resguardam, acima e à margem das lutas de grupos e tendências, princípios básicos que incorporados ao seu texto tornam-se indiscutíveis e insuscetíveis de mudanças banais. Como não são todos os dias aqueles em que uma comunidade política adota novo sistema constitucional ou assume novo destino, cumpre extrair da Constituição tudo o que comporta sua virtualidade, ao invés de, a todo instante, modificar-se-lhe o texto, a reboque de interesses circunstanciais. Tendo procurado traçar – ainda que com cores esmaecidas – o retrato desses anos da instalação da Assembléia Nacional Constituinte e de seus resultados, devo, agora, à guisa de consideração final, registrar que a memória da história presente não permite a quem quer que seja – nem ao mais competente nem ao mais arguto – agredir a verdade, sob pena de ser confrontado pela realidade circunstante. E os fatos não são mera opinião: decorridas duas décadas da vigência da Constituição de 1988, período em que o país tem vivido estabilidade política paradigmática, com avanços econômicos e sociais particularmente positivos, é sempre curioso lembrar os famosos pessimistas ou inimigos da Assembléia Nacional Constituinte. Seu brado de guerra era no sentido de que a Constituição de 1988 tornaria o país ingovernável. E, de forma mais ácida, que “o único artigo irrecusável era o que previa, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a revisão em cinco anos”. Estavam errados. Viveram por códigos errados, não conseguiram ser protagonistas lúcidos de seu próprio tempo. Termino, por essa razão, com as palavras proféticas do sempre lembrado Ulysses Guimarães, proferidas no discurso intitulado “A Constituição Cidadã”, de 27 de julho de 1988: “Esta Constituição terá cheiro de amanhã, não de mofo”. 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


MANDADO DE INJUNÇÃO: A NOVA ÓPTICA CONFERIDA PELO SUPREMO AO INSTITUTO

Marco Aurélio Mello Ministro do STF Membro do Conselho Editorial

A

existência de disposições constitucionais depen­ dentes de regulamentação levou o Constituinte de 1988, em passo dos mais apropriados, a prever, no artigo 5º da Carta Federal, o mandado de injunção, fazendo-o mediante preceito a sinalizar a eficácia da impetração, tendo em conta o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania: “LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.” Tratando-se de ato omissivo de autoridade ou órgão submetido à jurisdição do Supremo, a este cabe processar e julgar originariamente o mandado de injunção. A jurisprudência do Tribunal, basicamente sedimentada em 23 de novembro de 1989, na apreciação da questão de ordem no Mandado de Injunção nº 107-3/DF, relatado pelo ministro Moreira Alves, revelava a garantia constitucional como ação voltada a obter do Poder Judiciário a declaração da omissão, considerada a mora regulamentar, dandose ciência ao legislador para a adoção das providências necessárias. Após esse julgamento, poucos foram os avanços no campo interpretativo e integrativo1. 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

Desde o início, procurei registrar o convencimento de não se poder emprestar ao mandado de injunção contornos próprios à ação direta de inconstitucionalidade por omissão, sob pena de caminhar-se no sentido de reconhecer a dualidade de institutos com o mesmo objeto, ampliandose, na via indireta é certo, a legitimidade para a primeira. Eis o que consignei em julgamento realizado em 19 de maio de 1994 – Mandado de Injunção nº 20-4/DF: “Senhor Presidente, quanto ao mérito, vencido na preliminar, continuo convencido de que ao mandado de injunção não se pode emprestar contornos próprios à ação direta de inconstitucionalidade por omissão, sob pena de caminharmos no sentido de reconhecer a dualidade de institutos com o mesmo objeto; sob pena de esvaziarmos a limitação quanto ao rol dos legitimados contida no artigo 103 da Carta. Creio que, na forma prevista no inciso LXXI do rol das garantias constitucionais, o mandado de injunção – a desaguar sempre em uma sentença não simplesmente declaratória da omissão do legislador, e sim mandamental, atente-se para a nomenclatura do instituto –, visa a proporcionar aos interessados, aos impetrantes, os parâmetros indispensáveis ao exercício do direito. É que no inciso LXXI temos preceito com o seguinte teor:


Foto: Luiz Silveira / SCO / STF

‘Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.’ A razão de ser do mandado de injunção, em um corpo constitucional que contempla a ação direta de inconstitucionalidade, está, repito, em viabilizar o exercício do direito reconhecido constitucionalmente e afastar as conseqüências desastrosas, inclusive a segurança na vida gregária, da omissão do legislador.” Em 30 de agosto de 2007, o Supremo foi chamado novamente a apreciar a matéria – Mandado de Injunção nº 721-7/DF. O quadro fático apresentava servidora, do Ministério da Saúde, que afirmava exercer, desde 22 de outubro de 1986, a função de auxiliar de enfermagem, atuando em ambiente insalubre. Evocou ela o disposto no artigo 40, § 4º, da Constituição Federal para ressaltar que a inexistência de lei complementar vinha inviabilizando o exercício do direito à aposentadoria, tomado o período como a revelar o desgaste decorrente do contato com agentes nocivos à saúde, com portadores de moléstias infectocontagiosas humanas e materiais e objetos contaminados. Então, pleiteou o preenchimento da lacuna normativa,

assegurando-se o direito à aposentadoria especial. Sucessi­ vamente, requereu a observância do regime geral de previdência social. Atuando como relator, iniciei a abordagem asseverando a natureza do mandado de injunção, que a decisão deveria ter contornos mandamentais, a ponto de viabilizar, consideradas as balizas subjetivas da impetração, o exercício do direito. Fiz ver, mais uma vez, a existência, no cenário normativo-constitucional, de instrumento capaz de dotar a Lei Fundamental de concretude maior, abandonada visão simplesmente lírica. Prossegui assentando que, na redação primitiva, a Carta de 1988, ao dispor sobre a aposentadoria dos servidores públicos, previa, ao lado das balizas temporais alusivas à jubilação espontânea, a possibilidade de lei complementar estabelecer exceções2. Ressaltei que a vinda da Emenda Constitucional nº 20/98, afastou a óptica míope quanto ao sentido do verbo “poder” – considerado o tempo, futuro do presente, “poderá” –, para prever-se, no § 4º do artigo 40 da Carta, que: “§ 4º – É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, res­ salvados os casos de atividades exercidas exclusiva­ mente sob condições especiais que prejudiquem a 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


saúde ou a integridade física, definidos em lei com­ plementar.” Consignei a manutenção do quadro ante à Emenda Constitucional nº 47, de 5 de julho de 2005, que deu nova redação ao citado § 4º.3 Salientei que era dado concluir que a jurisprudência mencionada nas informações da autoridade impetrada sobre a existência de simples faculdade ficara, sob o ângulo normativo-constitucional, suplantada. Referi-me ao que foi decidido no Mandado de Injunção nº 484-6/RJ, quando citados os precedentes formalizados nos Mandados de Injunção nos 425-1/DF e 444-7/MG. Afirmei não haver dúvida quanto à existência do direito constitucional de adoção de requisitos e critérios diferenciados para ser alcançada a aposentadoria por aqueles que tenham trabalhado sob condições especiais, permanecendo, no entanto, a cláusula da definição em lei complementar. Fiz ver que, passados mais de quinze anos da vigência da Carta, permanecia-se com o direito latente, sem ter-se base normativa para o exercício, razão pela qual cumpria acolher o pedido formulado. E deveria fazê-lo o Supremo, porque autorizado pela Carta da República, estabelecendo para o caso concreto e de forma temporária, até a vinda da lei complementar prevista, as balizas necessárias ao exercício do direito assegurado constitucionalmente. Tardava a reflexão sobre a timidez inicial do Tribunal quanto ao alcance do mandado de injunção, ao excesso de zelo, tendo em vista a separação e harmonia entre os Poderes. Era tempo de se perceber a frustração gerada pela postura inicial, transformando o mandado de injunção em ação simplesmente declaratória do ato omissivo. Impetrara-se o mandado de injunção não para lograrse simples certidão da omissão do Poder incumbido de regulamentar o direito, mas na crença de lograr-se a supremacia da Lei Fundamental, prestação jurisdicional que afastasse as nefastas conseqüências da inércia do legislador. Conclamei, por isso, o Supremo, na composição atual, a rever a óptica inicialmente formalizada, e disse que, mesmo assim, ficaria aquém da atuação dos tribunais do trabalho, no que, nos dissídios coletivos, lhes é reservada, até mesmo, a atuação normativa, desde que respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho. No caso, a dificuldade não era maior, porquanto possível adotar-se, ante o fator tempo e à situação concreta da impetrante, o sistema revelado pelo regime geral de previdência social. A crença no Direito pátrio frutificou, vindo o pedido a ser julgado procedente, não surgindo uma única voz dissonante. Portanto, é dado concluir: os ditames constitucionais acabam prevalecendo, cumprindo a insistência no convencimento formado. Com isso ganha a cidadania, ganha a sociedade, uma vez implementada a supremacia das normas constitucionais. 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

“Tardava a reflexão sobre a timidez inicial do Tribunal quanto ao alcance do mandado de injunção, ao excesso de zelo, tendo em vista a separação e harmonia entre os Poderes.”

NOTAS 1

Cito, por relevantes, os seguintes precedentes: Mandado de Injunção nº 232, relatado pelo ministro Moreira Alves, publicado no Diário de Justiça de 27 de março de 1992; Mandado de Injunção nº 283, relatado pelo ministro Sepúlveda Pertence, publicado no Diário de Justiça de 2 de outubro de 1992; Mandado de Injunção nº 284, relatado pelo ministro Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça de 26 de junho de 1992. 2 Art. 40 – O servidor será aposentado: (...) III – voluntariamente: a) aos trinta e cinco anos de serviço, se homem, e aos trinta, se mulher, com proventos integrais; (...) c) aos trinta anos de serviço, se homem, e aos vinte e cinco, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de serviço; (...) 3 § 1º – Lei complementar poderá estabelecer exceções ao disposto no inciso III, “a” e “c”, no caso de exercício de atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas.


A Constituição de 1988 como superação do Estado Policial Realidade ou Mito

Técio Lins e Silva Conselheiro Federal da OAB Membro do CNJ

Foto: Arquivo Pessoal

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erá que temos o que comemorar no aniversário da Constituição? Não há como esquecermos o momento político delicado no qual esta Constituição foi criada, há vinte anos atrás. Afinal, os anos que antecederam a sua promulgação foram marcados pelo fim de um regime ditatorial – com a eleição de um Presidente Civil pelo Colégio Eleitoral do Regime Militar –, reacendendo esperanças para o restabelecimento das liberdades públicas e as garantias democráticas. A sociedade brasileira, sufocada por duas décadas de ditadura, estava ávida por uma estrutura constitucional que preservasse os seus direitos fundamentais. Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 – para Ulysses Guimarães, a “Constituição Cidadã” –, além de dispor sobre os direitos fundamentais e sociais, destinou para o seu primeiro título, um núcleo importantíssimo denominado de “Princípios fundamentais” (artigos 1º ao 4º). Daí os princípios que serviram de base para todo o seu conteúdo normativo, destacando-se, principalmente, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Como se vê, a Constituição de Federal de 1988, exercendo o papel de personalidade político-jurídica da Nação, tinha a importante e difícil missão de transformar um obscuro Estado Policial no Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, toda a legislação anterior e contrária à Constituição deveria ser suprimida. Não há dúvida também que as leis que subsistiram à Constituição passaram a ser interpretadas conforme os novos princípios ditados por ela. Um exemplo gritante da mudança significativa nessa estrutura de Estado, pelo menos de maneira formal, 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


“Pode-se dizer, assim, diante da história recente de nosso país, que a Constituição Federal tem como corolário preservar ao máximo os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, como a vida, a liberdade, a igualdade e a intimidade. Direitos estes que, na época da ditadura, estiveram, praticamente, suprimidos pelo Poder Público.”

materializa-se quando confrontamos parte do texto da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal – criado sob o “Estado Novo” ditatorial de Vargas – e o preâmbulo da atual Constituição. Vamos ver: “Exposição de Motivos CPP II – De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do Processo Penal num Código único para todo o Brasil, impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficácia e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinqüem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. O indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico-penal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o exercício do Poder Público fora da medida reclamada pelo interesse social. Este o critério que presidiu a elaboração do presente projeto de Código. No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um malavisado favorecimento legal aos criminosos. O processo penal é aliviado dos excessos de formalismo e joeirado de certos critérios normativos com que, sob o influxo de um mal-compreendido individualismo ou de um sentimentalismo mais ou menos equívoco, 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

se transige com a necessidade de uma rigorosa e expedita aplicação da justiça penal. Preâmbulo da Constituição Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.” O preâmbulo de uma Constituição pode ser considerado como uma minuta de intenções daquele diploma legal, uma anunciação dos princípios que evidenciam o rompimento com o ordenamento anterior e o nascimento de um novo Estado. Pode-se dizer, assim, diante da história recente de nosso país, que a Constituição Federal tem como corolário preservar ao máximo os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, como a vida, a liberdade, a igualdade e a intimidade. Direitos estes que, na época da ditadura, estiveram, praticamente, suprimidos pelo Poder Público. Vale ressaltar, ainda, que esses direitos fundamentais estão diretamente relacionados com a garantia de não-ingerência do Estado na esfera individual dos cidadãos. Apesar disso, sabemos que nenhum direito fundamental é absoluto, encontrando seus limites nos demais direitos assegurados pela mesma Constituição. Tema atual e que merece ser discutido com cautela não só pelos juristas, mas por toda a sociedade, é o da possibilidade


de afastamento do sigilo das comunicações telefônicas, excepcionalmente, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, conforme prevê o inciso XII da Constituição Federal. Como se sabe a Lei nº 9.296, de 1996, veio regulamentar este inciso e estabeleceu uma série de requisitos para o deferimento dessa medida excepcional. Lamentavelmente, a medida, considerada excepcional pela Constituição, banalizou-se e tornou-se corriqueira nas relações estabelecidas entre a Polícia, o Ministério Público e a Justiça. Ou seja, a investigação começa com a interceptação telefônica, afrontando deliberadamente o espírito da lei e a intenção do legislador. A despeito da preocupação constitucional em resguardar a intimidade do cidadão, o Poder Judiciário acabou amesqui­ nhando a prática da interceptação telefônica, estabelecendo uma relação promíscua de pede-e-defere, sem respeitar os limites esta­ belecidos pela lei que regulamenta o tema. Para exemplificar, somente no ano passado, cerca de 409 mil interceptações telefônicas foram determinadas judicialmente, de acordo com as operadoras de telefonia fixa e móvel. Ora, a interceptação telefônica só pode ser deferida quando não houver outro meio para a obtenção da prova e quando já existirem razoáveis indícios de autoria ou participação em infração penal, porém, ao contrário, esta medida é utilizada renovadas vezes, de forma ilegal, como principal (e exclusivo) meio de prova. Além disso, apesar da lei estabelecer prazo de quinze dias para a duração da interceptação, prorrogável por mais quinze, se comprovada a necessidade, são usuais as renovações sucessivas e sem nenhum limite. Mas a situação já está tão descontrolada que os abusos não param por aí. Além da grande maioria das interceptações

serem ilegais em razão do seu deferimento arbitrário, não raro o teor dessas conversas vai, escandalosamente, parar no noticiário, apesar de se tratar de medida inaudita altera pars e de raríssima exceção ao direito à intimidade. A imprensa que, há pouco tempo atrás, era alvo da rigorosa censura e repressão do Estado, hoje veicula conteúdo resguardado pelo segredo de Justiça em troca de audiência, esquivando-se de sua responsabilidade sob a alegação de preservar o sigilo da fonte, direito este também concedido pela Constituição da República. Logo, o alvo das interceptações – sujeito de direitos, pelo menos em tese – além de já estar sendo submetido a uma investigação criminal, ainda fica à mercê da escárnio provocado pela opinião pública, que diante de trechos distorcidos das conversas gravadas, bate seu martelo punitivo antes mesmo de qualquer julgamento final. A situação é tão absurda que, atualmente, nem as conversas entre advogado e cliente – protegidas pelo sigilo profissional e imprescindíveis para a consagração do princípio da ampla defesa – escapam das garras do Estado. Estado Policial? Não, Estado que deveria ser Democrático de Direito. Diante do uso indiscriminado da medida excepcional e da absoluta ausência de controle em relação às interceptações em curso, vários projetos tramitam no Congresso para modificar a lei atual. É uma tentativa vã de colocar tranca na casa arrombada... Assim, quando discutimos se a Constituição de 1988 conseguiu superar o Estado Policial, ouso submeter ao debate a resposta “não”! Diferente de questionar a natureza democrática da Constituição de 1988, criada para tentar reverter o os abusos do poder arbitrariamente constituído e a ausência de direitos e garantias fundamentais em nosso país; mas questionar até que ponto esses direitos e garantias fundamentais não estão se transformando em pura demagogia. Afinal, ainda somos reféns de um Estado Policial, só que hoje em dia as torturas são de outra natureza, mais sofisticadas do que as de antigamente e atingindo outros bens jurídicos tutelados, sem deixar marcas visíveis, mas frutos da mesma covardia. Só mudaram os agentes. O deferimento desregrado de interceptações telefônicas é só um dos mal exemplos da repressão desse vigente Estado Policial. Quantas pessoas são presas por dia sem a devida fundamentação? Quanto réus são interrogados sem ao menos conversar com o defensor público que deveria estar ao seu lado? Quantos detentos vivem em condições subumanas inaceitáveis em nosso sistema carcerário? Enquanto não transformarmos nossa consciência teórica do papel que cumprimos na sociedade – e aqui me refiro aos advogados, membros do Ministério Público, da Judicatura e da própria Polícia –, na prática capaz de transformar a realidade, continuaremos a viver em um Estado Policial travestido com a bela pele de cordeiro do Estado Democrático. Vinte anos de Constituição: já é hora de livrá-la dessa fantasia... 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


O SISTEMA TRIBUTÁRIO ATUAL E O PROPOSTO

Ives Gandra da Silva Martins Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE Membro do Conselho Editorial Foto: Sandra Fado

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“Por esta razão, a legislação existente, confusa, complexa, mal elaborada, que gera as mais variadas interpretações, leva os especialistas e os contribuintes ao desnorteio.”

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pedido do amigo Orpheu para a edição comemo­ rativa dos 20 anos da Constituição, em breves considerações, abordarei o complicado e confuso sistema atual, e a proposta de reforma do mesmo pelo Governo. Se alguém disser que conhece perfeitamente a legislação tributária brasileira, podendo assegurar, com precisão, a interpretação do Direito vigente, ou é um gênio ou um mentiroso. Nos meus 50 anos de exercício profissional, principalmente na área fiscal, não encontrei nenhum gênio, embora tenha convivido com muitos talentos. Entre eles, ressalto os formuladores do Código Tributário Nacional – diploma que resiste ao tempo –, juristas que serviam “pro honore” ao Poder Público. E exatamente o trabalho desses doutrinadores – da época em que os grandes causídicos eram convidados para elaborar as leis fiscais – é que representa a parte estável do sistema brasileiro. Atualmente, o país não tem mais esta qualidade legis­ lativa. São os “regulamenteiros” que produzem até mesmo as emendas constitucionais, todos eles membros do Poder Público e com a visão empanada, por terem que gerar receitas para uma máquina esclerosada, que não pára de crescer e da qual são diretos beneficiários. Adolf Wagner, na passagem do século XIX para o XX, já dizia que as despesas públicas não tendem jamais a diminuir, graças à incrível capacidade dos detentores do poder de gerá-las para cada necessidade legítima ou ilegítima criada. Por esta razão, a legislação existente, confusa, complexa,


Foto: AIDE

mal elaborada, que gera as mais variadas interpretações, leva os especialistas e os contribuintes ao desnorteio. Mesmo quando pensam estar cumprindo rigorosamente a lei, são surpreendidos por exegeses “convenientes e coniventes”, cujo objetivo único é aumentar a arrecadação tributária através de restrições de direitos. Há alguns meses atrás, o Supremo Tribunal Federal declarou ser de 5 anos o prazo decadencial para a constituição do crédito tributário relativo às contribuições destinadas à seguridade social. No entanto, garantiu à Fazenda permanecer com o fruto da ilegalidade, dispensando-a de devolver aos contribuintes as quantias por eles pagas relativamente a créditos que já haviam sido atingidos pela decadência! Entendo que dois princípios regem o Direito Tributário brasileiro: o da legalidade e o da “ilegalidade eficaz”. É exatamente à luz desta “ilegalidade eficaz”, que a cobrança da contribuição, ao arrepio da lei e da Constituição, tornou-se “receita tributária” assegurada. Ao princípio da “ilegalidade eficaz”, acresceu-se o da “imoralidade eficaz”, pois não é ético o Fisco ficar com recursos a que, decididamente, não teria direito. Casos semelhantes a estes vi multiplicarem-se, nestes meus 50 anos de advocacia, sempre com o Governo demonstrando possuir “pele de recém-nascido”, quando alguém deixa de pagar o que deve ao Estado, lançando mão de sanções políticas e de prisões cinematográficas; e “pele de paquiderme”, quando se trata de obrigações que lhe cabe pagar. O calote dos precatórios é a consagração

“spilberguiana” da imoralidade pública. O foco do presente artigo, todavia, é realçar a comple­ xidade da legislação tributária. O Fisco pouco faz para simplificá-la ou torná-la mais clara. Dificulta ao máximo a vida do contribuinte, com exigências burocráticas que levam, segundo o Banco Mundial, a uma perda média por parte do empresariado brasileiro de 2.600 horas/ano, para administrar tributos, contra 105 horas do empresariado alemão. É que, à carga tributária elevadíssima (7 pontos percentuais acima do Japão e Estados Unidos), acrescese a carga burocrática, infernizando a vida do pagador de tributos, que, mesmo quando pensa cumprir suas obrigações corretamente, sente-se inseguro. Sempre lutei para que as relações entre o Fisco e o contribuinte fossem de tal ordem, que a primeira função fiscal deveria ser a de esclarecê-lo e simplificar as operações. Com isso, teria nele um aliado para promover a justiça tributária, e não um presumível sonegador. Infelizmente, é muito difícil obter qualquer informação segura e esclarecedora junto às repartições fiscais. Neste caldo de inflação legislativa tributária, com normas sendo publicadas todos os dias, exigências não razoáveis por parte da Administração e tribunais abarrotados de questões, é de se compreender as dificuldades que os especialistas têm em orientar o contribuinte. Qualquer aconselhamento é suscetível de encontrar convenientes interpretações fiscais em contrário. Mais do que nunca, a orientação do advogado a seu cliente deve ser seguida da expressão “s.m.j.” (“salvo melhor 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


juízo”). Embora esteja ciente de que a orientação oficial dificilmente será a melhor. Objetivando corrigir tais distorções, o Governo Federal encaminhou ao Congresso Nacional seu projeto de reforma tributária, no início de 2008, seguindo a tradição de todos os governos anteriores. Collor, com a Comissão Ariosvaldo; Itamar, tendo recebido sugestões de diversas comissões, inclusive da Comissão Miguel Reale; Fernando Henrique, com a PEC 175; e Lula, com a PEC 41, em seu primeiro mandato; apresentaram projetos ao Congresso, sem empenharemse, todavia, na alteração do sistema. Todas as tentativas trouxeram frustração e as poucas modificações realizadas pioraram a lei suprema. Estou convencido de que o Governo Federal nunca teve interesse numa reforma profunda, pois tendo assegurado, com o texto atual, em torno de 60% do bolo tributário, teme que possa vir a perder receita, se estados e municípios unirem-se para elevar a partilha fiscal. É de se lembrar que, na Constituição de 88, a União, que repassava apenas 33% da receita do IPI e Imposto de Renda para estados e municípios, passou a repassar 47%, o que a obrigou a criar a COFINS e a aumentar sua alíquota de 0,5% (antigo FINSOCIAL) para 7,6% e do PIS de 0,65% para 1,65%. Assegura, contudo, o Governo, que agora é para valer. As cinco grandes novidades são: a) compactar COFINS, PIS, CIDES, e salário-educação, num grande IVA; b) compactar IR e CSLL num só tributo; c) reduzir a contribuição previdenciária sobre a mão-de-obra; d) reformular o ICMS para evitar a guerra fiscal; e) ressuscitar o Imposto sobre Grandes Fortunas, decadente em todo o mundo, repartindo-o entre estados e municípios. A simplificação, com redução da carga tributária, é meta de impossível avaliação sem a quantificação das alíquotas, a serem ainda definidas, e sem os projetos de leis comple­ mentares e ordinárias a serem elaborados. De início, qualquer reforma constitucional em profun­ didade gerará, necessariamente, reformulações conceituais, cujo conteúdo poderá ser questionado perante os tribunais. Na mudança do IVC para o ICMS, o STF levou 20 anos para definir, conceitualmente, o que seriam “operação”, “circulação” e “mercadoria”. Teremos o IVA, que é um imposto, o qual, fora as vinculações constitucionais, é tributo desvinculado, incor­ po­ rando contribuições, que são tributos vinculados a determinada finalidade. Certamente, a definição do perfil constitucional levará tempo para ser confirmado pelo Judiciário. Por outro lado, a manutenção do artigo 149 da Constituição Federal não impedirá que o Governo crie, no futuro, por legislação ordinária, outras COFINS. A meu ver, a compactação de COFINS e CIDES poderia ser realizada por lei ordinária, sem necessidade de modificação constitucional, o mesmo ocorrendo com a do Imposto de Renda e a Contribuição Social sobre o Lucro, já com regime jurídico idêntico. Apesar de PIS e salário28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

educação estarem previstos constitucionalmente como tributos distintos, poderiam ter o mesmo regime jurídico ordinário, sem necessidade de mudança da lei suprema. É de se louvar a redução da contribuição previdenciária sobre a folha de salários, se não implicar aumento de outras imposições. No ICMS, haverão estados ganhadores e estados perdedores, ou seja, os que enviam mais mercadorias para outras unidades da federação do que recebem. O programa do Governo, de que um Fundo de Estabilização – sem perfil definido – compensará tais unidades é compromisso em que poucos acreditam, pois a tradição das autoridades federais, em matéria tributária, é não cumprir suas promessas, que comprometem apenas as pessoas que as recebem. Admitindo, todavia, que os estados ganhadores não vão abrir mão das receitas acrescidas – são a maioria do Congresso, o que é necessário para aprovar a emenda à lei suprema –, os estados perdedores precisarão recuperar as suas. Se tais recursos não vierem de aumentos internos, terão que vir, em valores consideráveis, da União, a qual deverá também partilhar com os estados o IVA, imposto que resultará da integração da COFINS e do PIS, que hoje não são partilhados. O mais grave, todavia, é que toda a regulamentação do ICMS – à luz de uma lei complementar, possivelmente, mais abrangente que a LC 87 – será elaborada pelo CONFAZ. Em outras palavras, os estados “importadores líquidos”, que são a maioria, imporão aos estados “exportadores líquidos”, a minoria, um regulamento que terá que ser seguido pelos segundos. Inclusive a definição das alíquotas será de competência do CONFAZ, cabendo ao Senado aceitá-las ou rejeitá-las, mas não modificá-las. Para um órgão que, por seu notório fracasso, gerou a guerra fiscal, parece-me que é dar-lhe força excessiva, violando, tal delegação de competência legislativa, o princípio da legalidade (cláusula pétrea). O próprio regime de destino já não é tão de destino, pois, parte do tributo, correspondente a uma alíquota de 2,3% ou 4%, será cobrado na origem. Quanto ao obsoleto Imposto sobre Grandes Fortunas, se for introduzido, não mais sairá do sistema, pois será partilhado entre 5.500 entidades federativas. Será – como ocorreu nos países que o adotaram e abandonaram –, um fantástico desestímulo à poupança e investimentos, podendo gerar fuga de capitais. E nem se fale que será um meio de distribuição de riquezas, pois, no Brasil, o custo da carga tributária beneficia mais os detentores do poder do que o povo, lembrando-se que o “Bolsa-família”, que atende a 11 milhões de brasileiros, é suportado por menos de 1,5% do orçamento federal! Qualquer avaliação, todavia, do projeto, só será possível com a apresentação dos textos de leis ordinárias e complementares a serem elaborados e do funcionamento dos fundos compensatórios para recompor as perdas dos estados lesados pela alteração do regime do ICMS.


Foto: Foto: arquivo Arquivo Pessoal Pessoal 2008 OUTUBRO OUTUBRO •• JUSTIÇA JUSTIÇA && CIDADANIA CIDADANIA •• 29 29 2008


Constituição Cidadã e os desafios e gargalos da atividade jurisdicional

Massami Uyeda Ministro do STJ Membro do Conselho Editorial

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comemoração dos 20 anos da “Constituição Cidadã”, é fato relevante na história constitucional do Brasil, pois se trata da mais longeva das constituições republicanas brasileiras, o que possibilita reflexões sobre sua importância e significado. A longa noite de exceção institucional (1964 a 1984) fez a sociedade e a Nação ansiarem por um alvorecer radiante e auspicioso que, definitivamente, afastasse os espectros e pesadelos por elas vividos durante a prolongada hibernação de valores, princípios e anseios democráticos. Assim, com o retorno à normalidade institucional, seguiuse a convocação de uma Assembléia Constituinte, a qual era integrada por um Congresso já eleito, que seguia em sua normal legislatura, muito embora grande parte de suas atividades fosse voltada para a ansiada e desejada Constituição. A promulgação do novo texto constitucional foi precedida de intenso debate, envolvendo todos os segmentos da sociedade, desde sindicatos e associações de classe e até mesmo com a apresentação de um anteprojeto elaborado por uma “comissão de notáveis”, integrada por renomados intelectuais, eminentes juristas e destacados empresários. Assim, a mobilização de toda a nação brasileira em torno da elaboração da nova Constituição foi uma manifestação espontânea e natural de uma sociedade que esperava viesse a ser a Nova Carta Constitucional a redenção de todos os males. Daí que, ao ser promulgada, passou a ser cognominada “Constituição Panacéia”. Em seu seio, os constituintes enxertaram, como resultado de 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

pressões de segmentos diversificados da sociedade, praticamente todas suas aspirações. A Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988, desponta no horizonte da Nação Brasileira, como um sol fulgurante, com augúrios de ventura e bonança. Sobre ser uma Constituição originária ou derivada, a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ensina-nos que se trata de uma modalidade híbrida, como se colhe nesta passagem doutrinária: “A ordem constitucional vigente no país é, portanto, resultado de reforma da Constituição anterior, estabelecida com restrita obediência às regras então vigentes, mas que, por resultar num texto totalmente refeito e profundamente alterado, deu origem a uma nova Constituição. Assim, tivemos, na convocação da Assembléia Nacional Constituinte, manifestação do Poder Constituinte derivado, apenas, repita-se, libertado das limitações materiais e circunstanciais que lhe eram impostas. Embora, entrando em contradição com a doutrina do Poder Constituinte, há muitos autores que sustentam haver-se manifestado, em 1988, o Poder originário. Trata-se de uma posição política, sem base científica, que atende, entretanto, ao objetivo de dar à nova Constituição um fundamento mais forte do que o que adviria de considerá-la uma mera revisão da Carta anterior”. (ut Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Editora Saraiva, 33a edição, 2007, p. 32) Em sua estrutura a Constituição de 1988 é analítica,


“A longa noite de exceção institucional (1964 a 1984) fez a sociedade e a Nação ansiarem por um alvorecer radiante e auspicioso que, definitivamente, afastasse os espectros e pesadelos por elas vividos durante a prolongada hibernação de valores, princípios e anseios democráticos.”

Foto: Sandra Fado / STJ

com seus 250 artigos, precedidos dos 95 artigos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Ao assim ser promulgada, foi alvo de severas críticas que a consideravam como “fator de ingovernabilidade”. Em seus 20 anos de existência, sofreu 56 emendas constitucionais (a primeira delas, publicada em 6 de abril de 1992 e a última, em 21 de dezembro de 2007), a despeito de tratar-se de um texto constitucional de difícil memorização, mantém sua natureza de norte e referencial da normalidade institucional e democrática, em razão de sua interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal, mediante utilização precípua dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, tão essenciais para o desate de princípios constitucionais aparentemente conflitantes. As mudanças no comportamento dos brasileiros, subseqüentes ao término do Regime Militar que havia se instalado no país, com a restituição integral das liberdades públicas e dos direitos e garantias individuais, acendeu a chama da proteção e busca de direitos suprimidos, violados ou mesmo em latência, e fizeram com que o primado do acesso à jurisdição fosse incentivado, posto que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art.5o, XXXV, CF). O despertar dos direitos de cidadania foi, dessa forma, estimulado. A busca e procura pelo Poder Judiciário para a solução de conflitos de interesses, dos mais relevantes aos menos significativos, foram intensamente evocadas e incentivadas. Se, de um lado, este fenômeno sócio-cultural é de ser

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“O despertar dos direitos de cidadania foi, dessa forma, estimulado. A busca e procura pelo Poder Judiciário para a solução de conflitos de interesses, dos mais relevantes aos menos significativos, foram intensamente evocadas e incentivadas.”

louvado, porquanto denota salutar maturidade da sociedade, ao confiar a resolução de suas lides ao juiz, de outro, não se levou em consideração que o aparelhamento estatal que se adotou chamar como “Justiça”, não estava preparado para a avalanche de ações que foram e continuam a ser ajuizadas. Registre-se que os diversos planos de estabilização econômica, editados pelos sucessivos governos que se seguiram à nova ordem constitucional – Plano Cruzado; Planos Verão I e Verão II; Plano Collor, bem como a mudança de padrão monetário para o Real, com a adoção de diferentes índices de correção monetária –, fizeram eclodir uma miríade de ações, repetitivas em sua maioria, mas que, por não poderem ser julgadas de forma padronizada, provocaram extraordinário acúmulo de processos nos escaninhos das secretarias judiciárias, sem que se pudesse dar a resposta jurisdicional em tempo razoável de duração do processo. Essa realidade processual projeta perspectiva de fixarse, como tempo médio de duração de um processo, desde o ajuizamento inicial da ação até a plena satisfação jurisdicional, um período de 15 anos. Essa constatação contrasta com qualquer proposta de “dar a cada um o que é seu, de direito”, como sonhado no pacto social. A velocidade da transformação sócio-econômico-cultural é fenômeno mundial e faz-se presente, também, no Brasil. A queda do Muro de Berlim, o avanço da informática e a comunicação em tempo real, entre outras, são causas imediatas de uma mutação de estruturas sedimentadas em vasos até então virtualmente estanques, que não se comunicavam entre si. Coincidente com a promulgação da Constituição de 1988, assiste-se a uma interação entre o Direito Público e o Direito Privado, tanto que em áreas do Direito tradicionalmente interpretadas, segundo princípios de interpretação próprios de cada ramo, presentemente devem ser interpretados como um todo homogêneo, sob o pálio e enfoque constitucional de tal sorte que se fala em Direito Civil Constitucional, em Direito Processual Constitucional, em Direito Administrativo Constitucional, demonstrando a vocação da Constituição como 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

a Lei Maior, da qual deriva todo o ordenamento jurídico. E, em razão dessa velocidade de transformação social, surgiram, entre outras novidades no cenário jurídico, o Código de Defesa do Consumidor; o reconhecimento da união estável; a proteção de direitos difusos; a exaltação de direitos afirmativos, com o estabelecimento de cotas em universidades; a utilização de embriões humanos para a cura de doenças degenerativas; a produção de alimentos transgênicos; a promulgação do novo Código Civil; o advento da Lei de Recuperação Judicial de Empresas; os delitos cometidos pelo uso indevido dos meios eletrônicos, a exigir dos operadores do Direito necessidade urgente e premente de familiarização com estes novos temas. É certo que, medidas, objetivando possibilitar a prestação em tempo razoável, foram tomadas, como a implantação primeiramente dos Juizados de Pequenas Causas, depois sucedidos pelos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, tanto no âmbito dos estados, como no da União. A promulgação da Lei de Arbitragem foi um outro grande avanço que se fez no sentido de desafogar a “Justiça” de feitos que versam sobre direitos disponíveis e que, por isso, podem ser mediados por árbitros. A criação de Juízos Especializados, como o de Recuperação Judicial e o de Direito Ambiental, também objetiva a aceleração do trâmite processual. Após um longo período de debates legislativos, veio a lume a Emenda Constitucional nº 45, em 2004, que deu início à Reforma do Judiciário, também ansiosamente aguardada pela sociedade e, na seqüência, ensejou a implantação de mudanças e adaptações nos ritos processuais, buscando tornar mais célere e eficiente a prestação jurisdicional, sob o primado da razoável duração do processo. Seguiram-se a simplificação do processo de execução; a priorização e preferência de processos em que são partes os idosos; a instituição de súmulas vinculantes e dos processos de repercussão geral; a adoção legal impeditiva de recurso de apelação em caso de flagrante divergência com a jurisprudência do STJ e do STF; a promulgação de lei para os casos de recursos em causas repetitivas no âmbito do STJ. Essas medidas devem


“Estes vinte anos de vigência da ‘Constituição Cidadã’ representam a garantia de que o Brasil tem o seu rumo constitucional iluminado por um potente farol, e, no dizer de Fernando Pessoa ‘navegar é preciso (...) viver não é preciso’.”

ser entusiasticamente saudadas, contudo, ainda não se mostram suficientes para que se restabeleça a normalidade na tramitação de processos judiciais, posto que, como já noticiado pela mídia, mesmo no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis já há endêmico congestionamento processual com a designação de audiências para além de 1 ano. Urge, pois, a adoção de medidas para sanar este grave problema, pois a postergação da resposta jurisdicional gera insegurança social e é obstáculo para o desenvolvimento nacional. Quid inde, pois, para a solução desta crise? Quais as saídas? Veja-se que a “Constituição Cidadã” incentivou o acesso à jurisdição, mas não se deteve a indicar a saída, aliás, como não lhe cumpria indicar. O vocábulo “crise”, cuja acepção é a de “situação crítica, grave, que se vivencia”, é representada, graficamente, no glossário mandarim pela justaposição de dois ideogramas, os quais significam “perigo” e “oportunidade”. Utilizando-se desta imagem gráfica, pode-se dizer que estamos vivenciando, com relação à prestação da atividade jurisdicional, período crítico, grave, com risco de provocar desestabilidade social, com repercussões no desenvolvimento do país, mas, simultaneamente, temos a oportunidade de reverter este perigo que nos assombra, mediante a adoção de medidas que possam solucionar o problema. Essa solução já foi intuída por quantos se preocupam e mostram-se atentos a esta realidade. Trata-se da utilização de meios alternativos de resolução de conflitos de interesse, mediante o incentivo e estímulo à prática conciliatória de formulação de acordos e conciliações. Essa prática, além de salutar, evita ter de ir-se à “Justiça” para a solução de conflitos de interesses que, sendo originados de fricção de posicionamentos antagônicos, podem e devem antes da busca à jurisdição, por meio de ajuizamento de ações, ser mediados por conciliadores. Se o diálogo, resultante da comunicação, é apanágio do ser humano racional, não se pode deixar de estimular

sua prática, quando da colisão de direitos e interesses. Essa exaltação à concórdia foi exortada pelo Mestre Jesus, quando lembrou que, antes de levar uma oferenda perante o altar, deve-se primeiro buscar a reconciliação com o próximo. (Mateus 5: 23 e 24) Em seu ensinamento, no tocante à contenda judicial, Jesus ensinou: “Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz, ao oficial de justiça, e sejas recolhido à prisão”. ( Mateus 5:25) A ministra Ellen Gracie, quando na Presidência do CNJ, lançou programa de conciliação, em nível nacional, fixando o dia 8 de dezembro, quando se comemora o Dia da Justiça, como o Dia Nacional da Conciliação, iniciativa esta que se mostrou bem sucedida e vitoriosa, dando início a um movi­ mento de conscientização da importância da conciliação e que se mantém permanentemente, com alentadores resultados. O Tribunal de Justiça de São Paulo, já há alguns anos, desenvolveu e implantou, em nível recursal, projeto de conciliação, com excelentes resultados. O ministro José Antonio Dias Toffoli, Advogado Geral da União, acha-se firmemente empenhado em incentivar a utilização de câmaras setoriais para a resolução de conflitos de interesses em que se envolva a União Federal. No Estado de São Paulo, desde 30 de dezembro de 1998, acha-se em vigor a Lei nº 10.117 que possibilita a celebração de acordo extrajudicial em que esteja envolvida a Fazenda Estadual. Essas iniciativas demonstram que a crise da jurisdição está sendo bem enfrentada. Faz-se necessária mudança cultural para, em lugar de uma cultura de litígio, prestigiar-se e privilegiar-se a cultura da concórdia e da transação. Essa tarefa é de toda a sociedade e, particularmente, deve ser desenvolvida no currículo acadêmico de Direito. Estes vinte anos de vigência da “Constituição Cidadã” re­ presentam a garantia de que o Brasil tem o seu rumo constitu­ cional iluminado por um potente farol, e, no dizer de Fernan­ do Pessoa “navegar é preciso (...) viver não é preciso”. 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


OS 20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO E O “SISTEMA S”

Antonio Oliveira Santos Presidente da Confederação Nacional do Comércio

A

Constituição está completando vinte anos de vigência, com os aplausos de toda a Nação brasileira. Como instrumento fundamental de nossa estabilidade política, a nova Carta garantiu ao Estado as condições necessárias para enfrentar as diversas crises que deram origem, inclusive, a sucessivos “planos econômicos”, que interferiram nas relações comerciais e nos contratos civis. Ao contrário das Cartas de outros países, que se iniciam com os capítulos referentes à Organização do Estado e à Organização dos Poderes, a nossa Constituição de 1988 destaca-se por tratar, inicialmente, dos “Princípios Fundamentais” do Estado brasileiro e dos “Direitos e Garantias Fundamentais”, afora o belo e substancioso texto preambular em que os constituintes declaram haver se reunido, em Assembléia Constituinte, para “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. Ao tratar, no primeiro Título, dos Princípios Funda­ mentais, a Constituição, com muita propriedade, estabelece os fundamentos do Estado de Direito, entre eles, “a dignidade da pessoa humana” e “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, enumerando, outrossim, os objetivos funda­mentais da República Federativa do Brasil, nos quais se incluem os de “garantir o desenvolvimento nacional” e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. No Título II, a Constituição enumera, em bem lançados 72 incisos, os “Direitos e Garantias Fundamentais”, destacandose os referentes à livre manifestação do pensamento, à liberdade

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de consciência e de crença, à liberdade de associação para fins lícitos e ao direito de propriedade, bem assim a garantia ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, essencial para a tranqüilidade dos cidadãos e das empresas e a segurança dos investimentos privados. Ainda nesse Título, são listados os “Direitos Sociais” dos trabalhadores, indispensáveis para as boas relações com os empregadores, como, por exemplo, os relativos ao segurodesemprego, Fundo de Garantia de Tempo de Serviço, saláriomínimo, jornada de trabalho, repouso semanal remunerado, gozo de férias anuais, aposentadoria e seguro contra acidentes do trabalho. O texto constitucional assegura a liberdade de associação profissional ou sindical, sendo “vedada ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical” e ainda vedada “a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial”. As primeiras entidades componentes do chamado “Sistema S” – SENAI, SENAC, SESI e SESC –, criadas, há mais de 60 anos, mediante atos dos presidentes Vargas, Linhares e Dutra, mereceram a atenção dos constituintes, diante dos excepcionais serviços prestados aos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo, da indústria, da agricultura e pecuária, da saúde e de outros setores. “A criação dessas instituições – como assinalei em artigo publicado na Gazeta de Vitória de 12/8/03 – constituiu uma verdadeira revolução no sistema educacional brasileiro, abrindo as portas do ensino profissional para milhões de jovens, que iriam guarnecer o chão das fábricas, assim chamados os que, ao nível do ensino médio, dariam suporte às novas indústrias e às cadeias comerciais que se multiplicavam rapidamente”.


Foto: Rodolfo Stuckert

Em tais condições, o art. 240 da Constituição, originado por emenda popular, com mais de um milhão de assinaturas, estabelece, a um só tempo, que, para o financiamento do Sistema: a) as contribuições dos empregadores são compulsórias; b) tais contribuições têm por base de cálculo a folha de salários; c) as receitas dessas contribuições são vinculadas às entidades de serviço social e formação profissional vinculadas ao sistema sindical, ou seja, às entidades que compõem o “Sistema S”; e d) essas entidades têm natureza privada. As referidas contribuições não são tributos. Estes, em sentido técnico, são, apenas, os impostos, as taxas e as contribuições de melhoria, conforme dispõe o art. 145, caput, da Constituição. Tais contribuições são imposições pecuniárias, compulsórias, mas isso não as transforma em tributos, a exemplo do que acontece com outras imposições da mesma natureza, como, por exemplo, as contribuições previdenciárias, as contribuições sindicais, as contribuições ao FGTS, as contribuições do interesse das categorias profissionais ou econômicas e os seguros obrigatórios. Além disso, as contribuições ao “Sistema S”, apesar de arrecadadas pela Receita Federal, não ingressam, nem se incorporam ao patrimônio público, sendo vinculadas, pelo art. 240 da Constituição, a determinadas entidades privadas e a determinados fins. Em suma, a Constituição de 1988, a par de enumerar, em cláusulas pétreas, os direitos e garantias individuais e os direitos sociais dos trabalhadores, e de dispor sobre os princípios fundamentais do Estado brasileiro e sua organização e a de seus Poderes, veio assegurar às entidades do “Sistema S” a estabilidade necessária para a consecução de suas relevantes finalidades.

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BREVES REFLEXÕES SOBRE RESPONSABILIDADE CIVIL NO ÂMBITO DA COMUNICAÇÃO

Luis Felipe Salomão Ministro do STJ Membro do Conselho Editorial

Introdução – A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e o reconhecimento do dano moral Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em outubro de 1988, inovou na ordem jurídica reconhecendo expressamente a possibilidade de reparação do dano moral, pacificando questão que desafiava controvérsia no Judiciário nacional. Quadro comparativo:

A

CRFB/1937

Art. 123 – A especificação das garantias e direitos acima enumerados não exclui outras garantias e direitos, resultantes da forma de governo e dos princípios consignados na Constituição. O uso desses direitos e garantias terá por limite o bem público, as necessidades da defesa, do bem-estar, da paz e da ordem coletiva, bem como as exigências da segurança da Nação e do Estado em nome dela constituído e organizado nesta Constituição.

CRFB/1946

Art. 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

CRFB/1967

Art. 150 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

CRFB/1988

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Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) V – É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (…) X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;


Foto: STJ

Justiça, imprensa e democracia O tema que se pretende abordar diz respeito a questões vitais para a incipiente democracia brasileira e envolve duas instituições fundamentais para a sociedade: Justiça e Imprensa. Nesses tempos de integração total da fala, texto, vídeo, áudio e telecomunicações eletrônicas, confirma-se o advento da “era da comunicação”, acelerando-se as relações sociais e jurídicas, agora quase instantâneas, estabelecendo-se que o ponteiro do relógio passa a rodar com mais rapidez. No debate em torno do assunto, fala-se do tempo urgente, urgentíssimo, do jornalista para apurar a notícia e disparar a informação; e também da necessária maturação que o juiz deve ter para o julgamento de qualquer causa. O “tempo” de um é diferente em relação ao do outro, surgindo daí muita desinformação a respeito, gerando enorme área de atrito. Também convém mencionar a linguagem empolada, quase atávica, de alguns operadores do Direito, criando barreira que dificulta adequado conhecimento sobre os conteúdos das decisões e manifestações processuais em geral. Por outro lado, fica também patente que há uma máformação e qualificação, em regra, do profissional do jornalismo, um certo despreparo em relação às questões que envolvem a Justiça e seu funcionamento. Não há, nos cursos de graduação, obrigatoriedade quanto a noções gerais de Direito, o que parece ser importante. Constata-se também certa inaptidão de alguns magistrados para o relacionamento com a imprensa, porquanto não recebem treinamento adequado para o desempenho de tão relevante tarefa.

Debate-se o problema da alegada “censura prévia” e da reclamação freqüente de parte dos jornalistas, no sentido de que há uma intervenção do Judiciário na produção jornalística. Alguns magistrados entendem que as decisões judiciais proibindo a divulgação ou circulação de informações se baseiam na Constituição Federal, que prestigia os direitos à privacidade e de imagem, em detrimento da notícia ou informação. Para muitos juízes, não há censura quando se preservam princípios assegurados no texto constitucional e ainda mais quando a decisão pode ser impugnada com os recursos típicos do processo, situação muito diferente do censor do tempo da ditadura, que percorria as redações e, ao seu sabor e conveniência, ditava o que podia ou não ser publicado. Os jornalistas, ao contrário, defendem que, sempre prevalece o direito de informar, vale dizer “dever de prestar informação”, mesmo quando contraposto a outros direitos fundamentais. Outra questão controvertida decorrente da liberdade de informar é a possibilidade de indenização por danos morais, em caso de abuso pelos meios de imprensa. Os jornalistas e as empresas sustentam que há uma “indústria da indenização”. Os juízes afirmam que, sem matéria-prima, não se pode falar em “indústria”. Melhor explicando, se há abuso ou ofensa à honra individual com a divulgação da notícia, nasce o dever de ressarcimento em razão da violação a um dos direitos da personalidade. O Judiciário, como é certo, só atua quando acionado. Há reclamação quanto ao corporativismo dos 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


“Não obstante, o momento é especialmente propício para diminuir as distâncias, encurtar as diferenças e enxergar as dificuldades de cada um desses profissionais, jornalistas e magistrados, para corretamente desempenhar seus misteres.”

magistrados no julgamento das demandas indenizatórias e, reciprocamente, lamentos em torno de matérias tendenciosas contra o Judiciário, partindo dos órgãos de imprensa. Jornalistas e juízes examinam, atualmente, temas como a ética jornalística e judiciária e o conseqüente funcionamento dos mecanismos internos de controle das atividades, assim também o aprimoramento das ações dos segmentos (sindicatos e associações) para orientação dos profissionais. A suscetibilidade excessiva de ambos os lados gera pontos de conflito. Cumpre mencionar, ainda, assunto recorrente sobre a qualidade da produção dos meios de comunicação, sobretudo no tocante à televisão. O talentoso cientista social francês Pierre Bourdieu suscitou muitos debates na França e na Europa, quando realizou análise sobre a função e a qualidade dos trabalhos televisivos. Sua crítica ácida foi transmitida publicamente. Assinalou Bourdieu: “... a televisão, ela causa o que nós, os críticos literários, chamamos de efeito de real, que é o poder de fazer ver e fazer crer naquilo que se faz ver. Esse poder de evocação tem efeitos de mobilização. Ela pode fazer existir idéias ou representações, mas também 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

grupos. As variedades, os incidentes ou os acidentes cotidianos podem estar carregados de implicações políticas, éticas, capazes de desencadear sentimentos fortes, freqüentemente negativos, como racismo, a xenofobia, o medo, o ódio e a simples narração, o fato de relatar implica em uma construção social da realidade, capaz de exercer efeitos sociais de mobilização ou de desmobilização.” O Professor Eduardo Lourenço, da Universidade de Nice, atingiu o ponto principal da questão da qualidade da programação e da real percepção que devemos ter desse espetacular instrumento de comunicação de massa: “A televisão existe e não é em si um novo império do mal, não é útil nem fácil distinguir nela uma boa ou má televisão. Que critérios para conceber isso? Mas é possível vivê-la, como um desafio à nossa capacidade de discernimento, à essência mesma da nossa liberdade que não criou a TV para que ela nos devorasse.” São inúmeros os exemplos de programas de televisão, exibidos em horário nobre, com absoluto mau gosto e sem qualquer conteúdo educativo. Justiça e imprensa – formas de resolução dos conflitos aparentes Quando o Judiciário atua no controle da atividade da comunicação social, sempre que às suas portas bate um interessado, o que deve ser levado em conta é a “ponderação de valores”. Existindo a aparente colisão de direitos fundamentais, cabe ao juiz avaliar, sopesar, estabelecer quais valores a preponderar, se há relevância da notícia e informação, ou o direito à privacidade e intimidade. Equação difícil de solucionar e que depende muito do exame do caso concreto. Não obstante, o momento é especialmente propício para diminuir as distâncias, encurtar as diferenças e enxergar as dificuldades de cada um desses profissionais, jornalistas e magistrados, para corretamente desempenhar seus misteres. Cabe aqui uma pequena digressão, apenas para ilustrar a oportunidade do momento, visando o diálogo e a busca dos pontos de consenso. No ano de 600 (d.c.), durante o Império Romano, os pretores, indicados pelo Imperador, exerciam a jurisdição com subserviência absoluta ao sistema imperial. Depois do surgimento da figura do juiz que surge a lei, de modo a controlar os abusos e balizar a atividade dos julgadores. No ano de 1454, Gutemberg, na Alemanha, inventa e cria a prensa. De uma só vez ele produz trezentas cópias da Bíblia. Esse número, para transcrição manuscrita, demandaria anos e anos. Com essa evolução científica, revolucionou-se a comunicação e surgiu a imprensa. Em 1992, um Presidente da República foi destituído do cargo, depois de um julgamento público presidido por


um Ministro do Supremo Tribunal Federal, iniciado o processo de impeachment após uma série de denúncias pela imprensa. É nítida a evolução das duas instituições no curso da história, como se percebe por essa seqüência de fatos ilustrativos. De vassalo do rei, o magistrado passa a julgar o próprio imperador, por força da vontade soberana do povo. E a imprensa transforma-se de simples multiplicador de papéis a veículo de manifestação da vontade popular. Retorna-se ao ano de 1968. Em plena ditadura militar, é decretado o AI-5, proibindo as manifestações políticas, suspendendo as garantias da magistratura, excluindo da apreciação do Judiciário os atos praticados pela Junta Militar e acentuando a censura aos meios de comunicação. Nota-se, destarte, que as instituições que ora tratamos só florescem com a liberdade. Sobrevindo o autoritarismo, as primeiras providências são as amarras aos juízes e a mordaça na imprensa. Concluindo, não há avanços possíveis para o fortalecimento da cidadania e da democracia se não houver um Poder Judiciário forte e independente e uma imprensa livre e sem censura. A responsabilidade civil dos jornalistas e das fontes Na década de 70 surge o caso Watergate, marco ainda importante para o exame da questão proposta. O episódio é relativo à escuta ilegal e violação da sede do partido democrata, supostamente por elementos vinculados à Casa Branca. O uso freqüente da fonte “garganta profunda” e a atuação dos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein resultaram na renúncia do presidente Nixon. Duas características desse acontecimento podem ser destacadas: a) liberdade plena dos repórteres que desenvolveram a investigação, com absoluta responsabilidade e ética, visando a colheita de prova dos fatos (nenhuma notícia era divulgada sem confirmação com outras fontes); b) posição transparente do jornal e de sua proprietária, que não dificultaram a atuação dos jornalistas. Discute-se, nos dias atuais, a questão da veracidade da informação. A verdade deve ser objetiva, com adequação fiel do que foi narrado ao ocorrido, ou contenta-se o interesse social com a verdade subjetiva, vale dizer, a crença, por parte do jornalista ou do órgão de imprensa, em aquilo que acredita ser real? A tendência da jurisprudência é exigir a verdade objetiva, por isso a importância de se obter fontes confiáveis, com absoluta responsabilidade na apuração da notícia. No ponto, de todo modo, o importante é encontrar standards ou padrões, que podem ser aplicados em todos os casos, como critérios gerais para balancear os interesses em conflito. A ponderação de valores, entre o dever de noticiar ensejando o direito da sociedade de estar bem informada, e o resguardo ao direito à intimidade e ao sigilo.

É o que parte da doutrina considera como o direito ao “segredo da desonra”. Como dito, alguns itens devem ser sempre e sempre considerados. Assim é que a matéria noticiosa necessita ser verdadeira; o interesse público na veiculação dos fatos deve preponderar; e o jornalista ou órgão de imprensa deve usar o princípio da razoabilidade na forma como os fatos são noticiados. A Constituição de 1988 traz alguns dispositivos que merecem ser examinados para a correta compreensão do tema. O artigo 5º, incisos IX e X, da CRFB/88: “IX – É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura e licença; X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material e moral decorrente de sua violação;” O artigo 200, parágrafo 2º, da Constituição Federal disciplina que: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.” E o artigo 21, inciso XVI, da Constituição Federal assim determina: “Art. 21 – Compete à União: (...) XVI – exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão;” Há também importantes dispositivos e leis infracons­ titucionais acerca do tema. A Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67) “regula a liberdade de manifestação do pensamento e de informação”. O artigo 229, do Código Civil de 2002 e o artigo 207, do Código de Processo Penal, tratam sobre a impossibilidade de obrigar o jornalista a depor. Todos os dispositivos merecem destaque para um aprofundado estudo das questões postas. Igualmente relevantes os enunciados das súmulas 221 e 284 do Superior Tribunal de Justiça: “Enunciado 221 – São civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente de publi­ c ação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação. Enunciado 281 – A indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na Lei de Imprensa.” Convém, para logo, delimitar o sentido do que vem se denominando de “direito à imagem”, com proteção jurídica específica e diferenciada. Constitui a imagem sinal visível de um outro direito geral e constitucional, que é o da personalidade. A imagem transmite ao mundo exterior o “ser imaterial da personalidade”. A fisionomia, o corpo, o perfil, são 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39


Foto: www.sxc.hu

exemplos do que vem sendo protegido pelo direito. Sua utilização, sem consentimento, pode gerar dano material e moral. A jurisprudência está repleta de questões a esse respeito. Alguns pontos podem ser destacados: a) vedação ao aproveitamento econômico da imagem de uma pessoa, seja alguém público ou desconhecido, sem o seu consentimento; b) possibilidade de utilização da imagem de alguém para fins comerciais, com seu consentimento e nos limites deste; c) em relação à imagem de pessoas públicas ou notórias, não havendo exploração comercial, podem ser publicadas informações acerca delas em contextos informativos, sem necessidade de consentimento; d) possibilidade de divulgação, mesmo sem consentimento, da imagem de pessoas envolvidas em eventos públicos; e) prevalência do interesse da ordem pública e sobretudo cultural na divulgação de imagens; f ) preservação do decoro e honra, sem invasão de privacidade, quando se noticia fatos envolvendo pessoas, podendo o abuso acarretar dano moral. Há, nesse particular, uma diferença entre as esferas pública, íntima e absolutamente privada dos indivíduos, notadamente daquelas pessoas “famosas e conhecidas”. Vem a pêlo interessante questão envolvendo conhecido compositor da música popular brasileira, que teve sua fotografia estampada em jornais de grande circulação, quando em uma tarde, no mar do Leblon – RJ, beijava uma mulher. 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

Qual o limite entre a notícia informativa e a violação da intimidade da pessoa pública? Sobre o tema, leciona Rui Stoco: “A divulgação de fatos verdadeiros como mera representação e projeção do ocorrido no mundo físico e no plano material, através dos meios atualmente à disposição – tais como jornal, revista, televisão, rádio e internet – como simples repasse de informações obtidas e transmitidas de forma lícita, fiel e assinada, não comporta disceptação, nem traduz em abuso ou excesso. Em verdade, significa o exercício de um direito assegurado. (...) Segundo nos parece, o grau de resguardo e de tutela das pessoas famosas e notórias não pode ser o mesmo do homem comum, até porque a fama e o prestígio costuma ser a meta optata de certas pessoas e celebridades e, assim, o meio e modo pelo qual obterão esse desiderato” (Tratado de Responsabilidade Civil. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, pg. 1765). Outra questão decorrente da utilização da imagem é aquela relativa à inserção, por exemplo, da pessoa em uma fotografia coletiva, sem qualquer destaque, mas utilizada para fins comerciais. O caso concreto é que irá separar a tênue linha divisória entre o resguardo ao direito de imagem e o aspecto econômico que dele decorre.


Estudo de casos Com base em exame de casos já julgados, passa-se ao estudo mais aprofundado da responsabilidade dos jornalistas e fontes: Caso 1: Ainda antes da vigência da atual Carta Constitucional, existe significativo precedente da Suprema Corte, em acórdão datado de 1968, relator ministro Aliomar Baleeiro, resolvendo questão em que se pleiteva a retirada de circulação da revista “Realidade” (RMS 18.534/SP, Recurso em Mandado de Segurança 18534/SP, Relator Min. Aliomar Baleeiro, julgamento: 01/10/1968, Segunda Turma). A ementa é a seguinte: “Obscenidade e pornografia. O direito constitucional de livre manifestação do pensamento não exclui a punição penal, nem a repressão administrativa de material impresso, fotografado, irradiado ou divulgado por qualquer meio, para divulgação pornográfica ou obscena, nos termos e forma da lei. À falta de conceito legal do que é pornográfico, obsceno ou contrário aos bons costumes, a autoridade deverá guiar-se pela consciência de homem médio de seu tempo, perscrutando os propósitos dos autores do material suspeito, notadamente a ausência, neles, de qualquer valor literário, artístico, educacional ou científico que o redima de seus aspectos mais crus e chocantes. A apreensão de periódicos obscenos cometida ao Juiz de Menores pela Lei de Imprensa visa à proteção de crianças e adolescentes contra o que é impróprio à sua formação moral e psicológica, o que não importa em vedação absoluta do acesso de adultos que os queiram ler. Nesse sentido, o Juiz poderá adotar medidas razoáveis que impeçam a venda aos menores, até o limite de idade que julgar conveniente, desses materiais, ou a consulta dos mesmos por parte deles.” Trechos do venerando acórdão revelam certa premonição do ministro Aliomar Baleeiro, um homem à frente de seu tempo. Por isso que as idéias trazidas com o julgado podem ser consideradas tão atuais. Por exemplo, aparecer com o tronco desnudo na praia já foi considerado erótico. O casamento inter-racial, nos estados racistas dos Estados Unidos da América, era considerado atentatório aos bons costumes. É de se concluir, portanto, que uma atitude censurável num determinado momento histórico, em outro mais adiante, ou em outra circunstância, deixa de ser. A noção de interesse público, destarte, quando em jogo os valores previstos em sede constitucional, reflete o tempo presente, com todas as nuances que envolvem a cultura, educação, informação e sociedade do momento. Caso 2: “DESPACHO: RE contra acórdão da Turma Recursal do Juizado Especial do Estado do Acre

“Discute-se, nos dias atuais, a questão da veracidade da informação. A verdade deve ser objetiva, com adequação fiel do que foi narrado ao ocorrido, ou contentase o interesse social com a verdade subjetiva, vale dizer, a crença, por parte do jornalista ou do órgão de imprensa, em aquilo que acredita ser real?”

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“O simples fato de ter a notícia partido ou ter sido obtida de uma autoridade, ainda que reconhecidamente séria, por si só não ‘purifica ou legitima’ a informação. Não há, na verdade, presunção absoluta de veracidade, devendo o repórter obter confirmação da notícia antes de publicá-la.”

que tem a seguinte ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL – IMPRENSA – PUBLICAÇÃO OFENSIVA – LESÃO À HONR A – OBRIGAÇÃO DE RESSARCIR OS DANOS MOR AIS – INVOCAÇÃO DO DIREITO À CRÍTICA INSPIR ADA NO INTERESSE PÚBLICO (ART. 27, VII, DA LEI DE IMPRENSA) – NÃO ACOLHIMENTO. 1. Jornalista que em periódico de grande movimentação envolve o nome de Senador da República em situação ilegal, sem conseguir comprová-la, maculando assim sua honra, deve responder pelos danos morais causados em vista da natureza caluniosa das afirmações. 2. A invocação do direito à crítica inspirada pelo interesse público não merece acolhimento porque o art. 27, VIII, da Lei de Imprensa não protege a crítica indiscriminada e jogada sem qualquer base, ou ilaqueada em falsas premissas. 3. Recurso conhecido e improvido. O acórdão recorrido decidiu a questão à luz das provas e da legislação infraconstitucional pertinente: a alegada ofensa à Constituição seria, acaso ocorresse, indireta ou reflexa, insusceptível de reexame pela via extraordinária. Ademais, a alegada ofensa ao art. 5º, IV, IX, da Constituição não foi examinada pelo acórdão recorrido, nem foram opostos embargos de declaração: incidem as Súmulas 282 e 356. Nego seguimento ao recurso extraordinário. Brasília, 18 de dezembro de 2003.” Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE – Relator. (RE 387.443-AC, julgado em 18/12/2003, DJ 09/02/2004, p. 51). Ainda que não conhecido o recurso extraordinário, o interessante julgado traz a lume novamente a questão relativa 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

à necessidade de ser veraz a informação veiculada. Ademais, não se pode invocar, em caso de comprovada falsidade da notícia, o direito à crítica inspirada pelo interesse público. Para fins de proteção do jornalista, nosso Direito Positivo pressupõe, repete-se, a veracidade objetiva da informação. Além do mais, ainda que verdadeira, a notícia não pode refletir crítica indiscriminada e leviana, com ofensa à honra da pessoa. Nesse particular, parece existir uma esfera íntima inviolável do indivíduo, como pessoa humana, que não pode ser ultrapassada. É claro que, em se tratando de pessoas notórias, prevalece, em regra, a liberdade de noticiar. Alguns aspectos da vida particular de pessoas públicas podem ser noticiados. Os “famosos” devem estar acostumados à “bisbilhotagem” da sociedade. No entanto, o limite para a informação é o da privacidade da pessoa, como, por exemplo, a restrição que se impõe à divulgação de doenças ou boatos envolvendo tais personalidades. Caso 3: “DIREITO CIVIL. DIREITO DE IMAGEM. TOPLESS PR ATICADO EM CENÁRIO PÚBLICO. Não se pode cometer o delírio de, em nome do direito de privacidade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente à sua imagem. Se a demandante expõe sua imagem em cenário público, não é ilícita ou indevida sua reprodução pela imprensa, uma vez que a proteção à privacidade encontra limite na própria exposição realizada. Recurso especial não conhecido.” (Superior Tribunal de Justiça - REsp 595600SC, Relator Ministro CESAR ASFOR ROCHA,


Quarta Turma, data do julgamento 18/03/2004, DJ 13/09/2004, p.259). A questão trazida pelo venerando acórdão em comento diz respeito a um misto de proteção ao direito de imagem, visto como poder de divulgação, e utilização da informação captada. Quando alguém expõe-se publicamente e sua imagem é captada, sem interesse comercial, em local aberto e freqüentado livremente, não se há falar em proteção aos direitos da personalidade. Nesse passo, convém assinalar que a divulgação da notícia não imputou à requerente nenhum fato jocoso ou vexatório, por isso que a decisão apresenta características interessantes quanto à avaliação do limite do direito de informar contraposto ao resguardo da imagem da pessoa humana. Caso 4: “Dano moral. Notícia em jornal com imputação falsa de crime. Lei de Imprensa, art. 27, VI. Código Civil, art. 160. 1. Não é ato delituoso a justificar a indenização por dano moral a notícia que informa a prisão de funcionária pública por tráfico de entorpecente, se, efetivamente, o auto de prisão em flagrante tem como base o art. 12 da Lei n° 6.368/76, especificando tratar-se de tráfico. Em tal circunstância, o conhecimento do Especial não avança sobre a Súmula n° 07 da Corte porque a base empírica do acórdão recorrido é a de imputação falsa do crime de tráfico de entorpecente, o que, como consta do auto, foi exatamente a imputação que ensejou a prisão da autora. Não há, portanto, a imputação falsa, pela conformidade da notícia com o crime atribuído pela autoridade policial. 2. Recurso especial conhecido e provido.” (REsp 263887-MS. Terceira Turma. Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito. j. 15.03.01). A orientação da jurisprudência é no sentido de que a empresa jornalística ou a mídia não são responsáveis por publicar reportagem manifestamente relevante e que consulta ao interesse social, seja em relação a autoridades públicas, seja no tocante a empresas ou entidades privadas. É dizer que, havendo no caso o interesse social, prepondera o direito de informar, inexistindo dano, em relação a qualquer fato noticiado, desde que observada a razoabilidade da forma noticiosa. O que pode surgir, em decorrência dessa afirmação, é a questão relativa à idoneidade da fonte jornalística. O simples fato de ter a notícia partido ou ter sido obtida de uma autoridade, ainda que reconhecidamente séria, por si só não “purifica ou legitima” a informação. Não há, na verdade, presunção absoluta de veracidade, devendo o repórter obter confirmação da notícia antes de publicá-la. Equivale dizer, resumindo, que a notícia, para ser di­ vulgada, necessita ser comprovada, observando o jornalista, ainda, o princípio da razoabilidade dos meios e da forma de divulgação. Mister sublinhar, deveras, que o interesse social, que

contém o interesse público, deve estar latente e perceptível pelo julgador, que poderá utilizar o critério de avaliação do “homem médio.” Outro ponto relevante e que deve ser mencionado é a transcrição de notícia, ainda que ofensiva a determinada pessoa, mas refletindo opinião de outra, externada em local público, como assembléia de condomínio ou tribuna de parlamento. Há ampla permissão para divulgação, devendo o terceiro, se for o caso, responder pela ofensa. Caso 5: “CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. LEI DE IMPRENSA. NOTÍCIA JORNALÍSTICA. ABUSO DO DIREITO DE NARR AR. ASSERTIVA CONSTANTE DO ARESTO RECORRIDO. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME NESTA INSTÂNCIA. MATÉRIA PROBATÓRIA. ENUNCIADO Nº 7 DA SÚMULA/STJ. DANO MOR AL. DEMONSTR AÇÃO DE PREJUÍZO. DESNECESSIDADE. VIOLAÇÃO DE DIREITO. RESPONSABILIDADE TARIFADA. DOLO DO JORNAL. INAPLICABILIDADE. NÃORECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. PRECEDENTES. RECURSO DESACOLHIDO. 1. Tendo constado do aresto que o jornal que publicou a matéria ofensiva à honra da vítima abusou do direito de narrar os fatos, não há como reexaminar a hipótese nesta instância, por envolver análise das provas, vedada nos termos do enunciado nº 7 da Súmula/STJ. 2. Dispensa-se a prova de prejuízo para demonstrar a ofensa ao moral humano, já que o dano moral, tido como lesão à personalidade, ao âmago e à honra da pessoa, por vez é de difícil constatação, haja vista os reflexos atingirem parte muito própria do indivíduo – o seu interior. De qualquer forma, a indenização não surge somente nos casos de prejuízo, mas também pela violação de um direito. 3. Agindo o jornal internacionalmente, com o objetivo de deturpar a notícia, não há que se cogitar, pelo próprio sistema da Lei de Imprensa, de responsabilidade tarifada. 4. A responsabilidade tarifada da Lei de Imprensa não foi recepcionada pela Constituição de 1988, não se podendo admitir, no tema, a interpretação da lei conforme a Constituição.” (REsp 85.019-RJ, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgamento em 10/03/1998, DJ 18.12.1998 p. 358). O acórdão aborda dois temas importantes, em sede de indenização por ofensas jornalísticas. O primeiro é que, para caracterização do dano moral, há dispensa da prova do prejuízo. A só ofensa acarreta lesão à personalidade, apta a ensejar a recomposição pecuniária. O segundo é a impossibilidade de se tarifar a verba indenizatória para a generalidade dos casos, pelo óbvio motivo de que as circunstâncias variam em cada situação. 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


Reflexão sobre o papel do transporte coletivo na vida das cidades

Lélis Marcos Teixeira Presidente da Fetranspor e Rio Ônibus

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omo cidadãos e seres humanos, sentimos a necessi­ dade de fazer questionamentos para entendermos a sociedade em que vivemos, como e por que motivos ela funciona de determinada maneira, o que a História nos elucida sobre essas questões e como pode­ mos alterar a realidade. Segundo Douglass North, prêmio Nobel de Economia de 1993, o desenvolvimento econômico, social e político dos países ocorre em função do desempenho de suas instituições. Quanto mais sólidas estas, mais desenvolvidos aqueles, pois itens como previsibilidade jurídica e a existência de um Estado de Direito são de importância fundamental para o crescimento, em todos os aspectos, de uma Nação. Analisemos o transporte no Brasil e, em especial, no estado do Rio de Janeiro, seu papel no desenvolvimento das cidades e nas vidas das pessoas, e tentemos entender o que está por trás desse serviço público. Trata-se de um serviço de caráter essencial, conforme reza a própria Constituição da República, em seu artigo 30, pois dele depende o ir e vir dos cidadãos. Operar transporte coletivo de passageiros é, portanto, garantir um direito fundamental do ser humano. O crescimento de nossas cidades se deu de forma tão rápida quanto desordenada. Em 1950, éramos um país agrário, em processo tímido de industrialização, com população de 51 milhões de brasileiros, 64% deles sediados nos campos. Hoje, somos 189 milhões, e nossas cidades comportam 82% de toda a população. São 155 milhões de pessoas, demandando enorme quantidade de serviços, desde alimentação a educação e lazer. Para satisfazer a todas essas necessidades, esse grande contingente precisa se deslocar, de diversas formas, utilizando

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cada um o meio de transporte que considere mais útil e oportuno. Tal cenário levou a uma relação de 3,06 habitantes por automóvel em nossas metrópoles. Some-se a este dado aquele anterior, do crescimento desordenado, e o fato de contarmos com 37 aglomerações urbanas e 12 metrópoles, e teremos a configuração de um grave problema dos nossos dias: a (i)mobilidade urbana. O Brasil está entre os países do mundo que contam com maior número de cidades com população igual ou superior a 1 milhão de habitantes. Temos duas megalópoles – segundo a Onu, cidades cuja população, em suas regiões metropolitanas, chega a 11 milhões de pessoas. O Rio já atinge esse patamar e São Paulo chega a 18 milhões. Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza, Brasília, Curitiba, Recife e Porto Alegre se enquadram no perfil de metrópoles e, além delas, temos três metrópoles regionais – Belém, Goiânia e a região de Campinas – com várias cidades conurbadas, formando grandes regiões metropolitanas. Como se movem essas pessoas, nos verdadeiros formigueiros humanos que se tornam as áreas urbanas? Toda essa movimentação, esse progresso, esse acúmulo de atividades que fazem girar a economia dependem do trabalho de milhões de cidadãos economicamente ativos, que precisam se locomover para cumprir compromissos e satisfazer necessidades das mais variadas espécies. Que modelo de cidade precisamos ter para atender à tantas demandas? Existem, basicamente, no mundo dois tipos de cidades. As do sistema americano, que privilegiam o transporte individual, e as que adotam o europeu, priorizando o coletivo em detrimento do individual. Cidades típicas do modelo europeu, como Paris


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e Londres, têm excelentes sistemas de transporte público. Diferentemente de outros países da América Latina, como Argentina e Chile, o Brasil, como dissemos anteriormente, tem grandes cidades, que exigem maior mobilidade e formam a base industrial do país – nelas residem 60% da produção industrial bruta e concentram-se os grandes núcleos produtivos –, gerando a necessidade cada vez maior de sistemas de transporte que garantam uma boa qualidade de vida à população. Hoje são feitas 170 milhões de viagens diárias nas cidades brasileiras com mais de 60 mil habitantes. São pessoas que vão trabalhar e voltam. As viagens não motorizadas são aquelas curtas, feitas a pé, ou de bicicleta, e representam 41% desse total. No transporte coletivo, os ônibus municipais já representam 21% e os metropolitanos 4,6%, atingindo um total de 25,6%. Metrô e trens têm ainda pequena participação na matriz do transporte, com 3,1%, enquanto o transporte individual ainda responde por 47%. São 46 milhões de viagens, que deslocam número proporcionalmente muito pequeno, em relação ao transporte público. A média do automóvel considerada nos estudos técnicos é de 1,8 pessoa por automóvel, a dos ônibus é de 40 a 50 por viagem, ou seja, um uso per capita das vias públicas muito menor. Ajustando o foco para o Estado do Rio de Janeiro, teremos um percentual de 46% das viagens em transporte coletivo (9,29 milhões) e 16% em transporte individual (3 milhões), ou seja, ainda temos a predominância do uso do transporte coletivo, ao contrário do que acontece em São Paulo, por exemplo. Isso explica, em parte, a diferença do trânsito nas duas capitais. Todos esses fatos, que não percebemos em nosso dia-a-dia, causam impactos na rotina de cada um de nós, cidadãos. E

cabe ao operador de transporte uma ingente responsabilidade no funcionamento dos espaços urbanos e na qualidade de vida das pessoas que neles vivem. No Rio de Janeiro, a Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor) representa 10 sindicatos patronais, a que são associadas 238 empresas, sistema que gera 95 mil empregos diretos. São profissionais que fazem circular diariamente uma frota de 18.310 ônibus, fornecendo o transporte a 133,9 milhões de passageiros por mês. Isso leva a uma rodagem mensal de 148 milhões de quilômetros e consumo de cerca de 50 milhões de óleo diesel. Trabalho da Coppe/UFRJ, recentemente publicado pelo jornal “O Globo”, estimou que chega a R$ 12 bilhões o prejuízo anual com desperdício de combustível e tempo gerado pelos congestionamentos, correspondendo a 10% do PIB. Trata-se de uma grande incoerência dos nossos tempos. De tudo que se produz neste estado, 10% são anulados e se evaporam nas retenções de tráfego, gerando emissão de poluentes que chegam, segundo a Universidade, a 550 mil toneladas anuais de carbono. O professor Max Cintra, da USP, calcula que, em São Paulo, os prejuízos atingem R$ 33 bilhões. O CitiGroup, um dos maiores grupos financeiros do mundo, em estudo comparativo da competitividade dos países, chegou à conclusão de que o brasileiro perde 5% da sua produtividade, devido aos congestionamentos. Enquanto o tempo médio que perde no trânsito é de 2,6 horas, em países desenvolvidos da Europa e nos Estados Unidos, a média é de 1 hora. 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


“O setor de transporte coletivo por ônibus é pesadamente taxado com impostos e encargos, necessariamente repassados ao consumidor final, o que contribui para que o preço das passagens seja cerca de 35% mais caro. O transportador luta pela desoneração, como forma de baratear as passagens.”

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Uma conta simples mostra que o cidadão que dispende uma hora e meia para ir, e igual tempo para voltar, no trajeto casa-trabalho-casa, em 35 anos de vida profissional, terá gasto 3 anos de sua vida retido no tráfego. No Rio de Janeiro, temos a nosso favor o índice de utilização do transporte coletivo ser maior do que em São Paulo, por exemplo. A proporção é de 46% no Rio contra 33% na capital paulistana e sua região metropolitana. No uso do transporte individual, temos São Paulo com 32% de utilização, contra 20% no Rio. Os resultados são facilmente notados no trânsito das duas regiões. Não que o Rio de Janeiro tenha uma situação que possa se considerar muito boa, mas ainda podemos evitar que cheguemos ao patamar paulistano e também melhorar o que existe hoje – com medidas de priorização do transporte coletivo, de infra-estrutura do transporte e de racionalização da oferta dos diferentes meios: trens, barcas, metrô e ônibus. E aqui cabe importante reflexão: além dos custos da baixa velocidade média dos veículos, para que o cidadão comum usufrua da liberdade de ir e vir, existe, hoje, forte condicionamento econômico. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), existem atualmente cerca de 35 milhões de brasileiros sem condições de acesso ao transporte, por incapacidade econômica. Desta forma, automaticamente, ficam essas pessoas restringidas em outras prerrogativas – buscar serviços como saúde, educação, cultura – e até imobilizadas no que tange ao trabalho, pois ficam limitadas ao entorno de suas moradias. O setor de transporte coletivo por ônibus é pesadamente taxado com impostos e encargos, necessariamente repassados ao consumidor final, o que contribui para que o preço das passagens seja cerca de 35% mais caro. O transportador luta pela desoneração, como forma de baratear as passagens. Em cidades como Londres, Paris, Roma e muitas outras, o serviço de transporte conta com assunção parcial dos custos pelo setor governamental, a fim de garantir a qualidade aos meios de transporte coletivo ao mesmo tempo em que o torna acessível aos cidadãos das camadas mais pobres da população. O segmento que opera o transporte neste estado tem consciência de todas essas questões e não pretende ficar passivo diante desse cenário. A Fetranspor e vários de seus sindicatos vêm apresentando propostas ao Poder concedente, conforme exemplos a seguir: o Setrerj, que reúne empresas de ônibus de Niterói, São Gonçalo e outros municípios daquela região, foi o autor de proposta que hoje encontra-se em execução, de corredor na Alameda São Boaventura; o sindicato de Nova Iguaçu analisa, junto com o Governo do Estado, a Via Light e suas alternativas para a priorização do transporte coletivo; o Rio Ônibus apresentou, recentemente, ao Poder Público local o projeto SIT/Rio (Sistema Integrado de Transporte), fruto do trabalho de grandes escritórios de arquitetura e urbanismo, que prevê rede integrada de transporte. A reestruturação do sistema de transporte em novo modelo, composto por linhastronco, alimentadas por linhas interligadas, com modernos terminais para integração e bilhetagem eletrônica, possibilitará


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a fácil integração intermodal e a integração ônibus-ônibus em prazos de tempo convencionados. Por meio de vias segregadas exclusivas para os ônibus, frota mais confortável e moderna, veículos articulados de maior capacidade, utilizando combustíveis limpos e com alto grau de acessibilidade para o usuário, o modelo proposto poderá levar mais passageiros em viagens menos longas. Nova identidade visual ajudará a identificação dos roteiros com mais facilidade, melhorando a qualidade de vida dos indivíduos e o funcionamento das cidades. Um exemplo curioso do papel do transporte na história mostra a relação entre os meios utilizados, desde os cavalos romanos aos foguetes americanos. O Império Romano deixou marcas importantes na cultura, na organização do Direito e na sociedade de vários países. Para o funcionamento satisfatório desse Império, eram construídas estradas. Algumas vias, como a Ápia são famosas e existem até hoje. Como utilizavam carroças (bigas), puxadas por dois cavalos, as estradas romanas foram feitas para a largura habitual desses veículos, com um eixo de 1,45m. Com a dominação pelos romanos da região da Inglaterra, entre as marcas que imprimiram na sociedade dominada estavam as estradas. A Inglaterra, por sua vez, à época da Revolução Industrial, criou suas primeiras locomotivas a vapor, testando-as nas estradas herdadas do período da dominação romana. Assim, as linhas férreas conservaram a largura das vias romanas. O domínio econômico do Império Inglês em todo o mundo tornou as ferrovias inglesas padrões de bitola. Na era da tecnologia espacial, satélites e foguetes construídos fora da Flórida, onde eram lançados, do Cabo Canaveral, tiveram

de ser adaptados à velha bitola de 1,45m, pela necessidade de transporte pela ferrovia. Desta forma, os foguetes espaciais têm a mesma largura das estradas romanas, mostrando a influência do antigo meio de transporte na história da humanidade. Com toda a tecnologia, o avanço da ciência e do design, os cavalos romanos ainda marcam a ida do homem à lua. Este é um fato pitoresco que serve bastante à nossa reflexão. Voltando ao Brasil: poucas cidades brasileiras tiveram a possibilidade de ter um traçado planejado, que permitisse a organização de suas funções, como Brasília, Belo Horizonte e Goiânia. Há, pois, necessidade de buscar alternativas para suprir essa carência, e a melhor maneira de fazer isso hoje é através de redes integradas com os outros modais – trem, metrô, barcas. Já demos ao mundo o exemplo de Curitiba, citado em obra literária pelo próprio arquiteto Richard Rogers, autor do projeto do Centro Nacional de Arte e Cultura Georges Pompidou, na França. Temos a convicção de que podemos oferecer outros modelos de rede de transporte integrada, com a utilização de moderna tecnologia de bilhetagem eletrônica e o concurso de técnicos brasileiros da mais alta estirpe profissional, com resultados extremamente positivos. Sobretudo, o setor de transporte público tem a visão de que, ao contribuir com o Poder Público por meio da oferta de propostas e projetos, concorrendo para aprimorar seus serviços, pode provocar reações em cadeia na vida das pessoas, mesmo quando estas não o percebem. Criar cidades mais funcionais, transportar o progresso e assegurar o Direito Constitucional de ir e vir dos cidadãos é a principal parte de todo o papel social que os transportadores vêm cumprindo na história do Planeta. 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


A RECONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA DO BRASIL

Luís Roberto Barroso Professor Titular de Direito Constitucional da Uerj

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Resumo

presente estudo procura analisar os 20 anos de vigência da Constituição Federal de 1988. Os capítulos iniciais são dedicados à análise do contexto histórico em que se deu a convocação da Assembléia Constituinte, bem como o desenvolvimento de seus trabalhos e as múltiplas circunstâncias a que esteve sujeita. No restante do texto, empreende-se um balanço dos avanços e revezes do período, com destaque para o desempenho das instituições ao longo dessas duas décadas. Introdução Da vinda da família real à Constituição de 1988 Começamos tarde. Somente em 1808 – trezentos anos após o descobrimento –, com a chegada da família real, teve início verdadeiramente o Brasil. Até então, os portos eram fechados ao comércio com qualquer país, salvo Portugal. A fabricação de produtos era proibida na colônia, assim como a abertura de estradas. Inexistia qualquer instituição de ensino médio ou superior, a educação resumia-se ao nível básico, ministrada por religiosos. Mais de 98% da população era analfabeta. Não havia dinheiro e as trocas eram feitas por escambo. O regime escravocrata subjugava um em cada três brasileiros e ainda duraria mais oitenta anos, como uma chaga moral e uma bomba-relógio social. Pior que tudo: éramos colônia de uma metrópole que atravessava vertiginosa decadência, onde a ciência e a medicina eram tolhidas por injunções religiosas e a economia permaneceu extrativista e mercantilista quando já ia avançada a Revolução Industrial. Portugal foi o último país da Europa a abolir a inquisição, o tráfico de escravos e o absolutismo. Um Império conservador e autoritário, avesso 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

às idéias libertárias que vicejavam na América e na Europa. Começamos mal. Em 12 de novembro de 1823, D. Pedro I dissolveu a Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, que havia sido convocada para elaborar a primeira Constituição do Brasil. Já na abertura dos trabalhos constituintes, o Imperador procurara estabelecer sua supremacia, na célebre “fala” de 3 de maio de 1823. Nela, manifestou sua expectativa de que se elaborasse uma Constituição que fosse digna dele e merecesse sua imperial aceitação. Não mereceu. O projeto relatado por Antônio Carlos de Andrada, de corte moderadamente liberal, limitava os poderes do Rei, restringindo seu direito de veto, vedando-lhe a dissolução da Câmara e subordinando as Forças Armadas ao Parlamento. A Constituinte foi dissolvida pelo Imperador em momento de refluxo do movimento liberal na Europa e de restauração da monarquia absoluta em Portugal. Embora no decreto se previsse a convocação de uma nova Constituinte, isso não aconteceu. A primeira Constituição brasileira – a Carta Imperial de 1824 – viria a ser elaborada pelo Conselho de Estado, tendo sido outorgada em 25 de março de 1824. Percorremos um longo caminho. Duzentos anos separam a vinda da família real para o Brasil e a comemoração do vigésimo aniversário da Constituição de 1988. Nesse intervalo, a colônia exótica e semi-abandonada tornou-se uma das dez maiores economias do mundo. O Império de viés autoritário, fundado em uma Carta outorgada, converteu-se em um Estado Constitucional, democrático e estável, com alternância de poder e absorção institucional das crises políticas. Do regime escravocrata, restou-nos a diversidade racial e cultural, capaz de enfrentar – não sem percalços, é certo – o preconceito e


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a discriminação persistentes. Não foi uma história de poucos acidentes. Da Independência até hoje, tivemos oito Cartas Constitucionais: 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988, em um melancólico estigma de instabilidade e de falta de continuidade das instituições. A Constituição de 1988 representa o ponto culminante dessa trajetória, catalisando o esforço de inúmeras gerações de brasileiros contra o autoritarismo, a exclusão social e o patrimonialismo, estigmas da formação nacional. Nem tudo foram flores, mas há muitas razões para celebrá-la.

Ascensão e ocaso do Regime Militar O colapso do regime constitucional, no Brasil, se deu na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964, quando um golpe militar destituiu o presidente João Goulart. Veio o primeiro Ato Institucional – primeiro de uma longa série – e, na seqüência histórica, tornou-se inevitável a trajetória rumo à ditadura, que duraria mais de vinte anos. Em 1965, foram canceladas as eleições presidenciais e prorrogado o mandato do presidente Castelo Branco. Em 1966, foram extintos os partidos políticos. Em 1967, foi editada uma nova Constituição, votada por um Congresso pressionado e sem vestígio de soberania popular autêntica. Em 1968, baixou-se o Ato Institucional nº 5, que conferia poderes quase absolutos ao Presidente, inclusive para fechar o Congresso, cassar direitos políticos de parlamentares e aposentar qualquer servidor público. Em 1969, em golpe dentro do golpe, impediu-se a posse do vice-presidente Pedro Aleixo, quando do afastamento por doença do presidente Costa e Silva, e uma nova Constituição foi outorgada pelos ministros militares. Nesse mesmo ano, indicado pelas Forças Armadas, toma posse o presidente Emílio Garrastazu Médici. Seu período de governo, que foi de 30 de outubro de 1969 a 15 de março de 1974, ficou conhecido pela designação sugestiva de “anos de chumbo”. A censura à imprensa e às artes, a proscrição da atividade política e a violenta perseguição aos opositores do Regime criaram o ambiente de desesperança no qual vicejou a reação armada à ditadura, manifestada na guerrilha urbana e rural. A tortura generalizada de presos políticos imprimiu na história brasileira uma mancha moral indelével e perene. A abertura política, “lenta, gradual e segura”, teve seu início sob a presidência do general Ernesto Geisel, que tomou posse em 15 de março de 1974. Apesar de ter se valido mais de uma vez de instrumentos ditatoriais, Geisel impôs sua autoridade e derrotou resistências diversas à liberalização do Regime, que vinham dos porões da repressão e dos bolsões de anticomunismo radical nas Forças Armadas. A posse do general João Baptista Figueiredo, em 15 de março de 1979, deu-se já após a revogação dos atos institucionais, que

representavam a legalidade paralela e supraconstitucional do Regime Militar. Figueiredo deu continuidade ao processo de descompressão política, promovendo a anistia e a liberdade partidária. Centenas de brasileiros voltaram ao país e inúmeros partidos políticos foram criados ou saíram da clandestinidade. A derrota do movimento pela convocação imediata de eleições presidenciais – as “Diretas Já”–, em 1984, após ter levado centenas de milhares de pessoas às ruas de diversas capitais, foi a última vitória do governo e o penúltimo capítulo do Regime Militar. Em 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral elegeu, para a Presidência da República, a chapa contrária à situação, encabeçada por Tancredo Neves, que tinha como vice José Sarney. O Regime Militar chegava ao fim e tinha início a Nova República, com a volta à primazia do poder civil. Opositor moderado da ditadura e nome de consenso para conduzir a transição pacífica para um regime democrático, Tancredo Neves adoeceu às vésperas da posse e não chegou a assumir o cargo, morrendo em 21 de abril de 1985. José Sarney, que fora um dos próceres do Regime que se encerrava – mas que ajudou a sepultar ao aderir à oposição –, tornou-se o primeiro presidente civil desde 1964. Convocação e atuação da Assembléia Constituinte Cumprindo compromisso de campanha assumido por 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49


“A Constituição de 1988 é o símbolo maior de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento, para um Estado Democrático de Direito.”

Tancredo Neves, o presidente José Sarney encaminhou ao Congresso Nacional proposta de convocação de uma Constituinte. Aprovada como Emenda Constitucional nº 26, de 27.11.1985, nela se previu que “os membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal” reunir-seiam em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana. Instalada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro José Carlos Moreira Alves, em 1º de fevereiro de 1987, a Assembléia Constituinte elegeu em seguida, como seu presidente, o deputado Ulysses Guimarães, que fora o principal líder parlamentar de oposição aos governos militares. Da Constituinte participaram os parlamentares escolhidos no pleito de 15 de novembro de 1986, bem como os senadores eleitos quatro anos antes, que ainda se encontravam no curso de seus mandatos. Ao todo, foram 559 membros – 487 deputados federais e 72 senadores – reunidos unicameralmente. Não prevaleceu a tese, que teve amplo apoio na sociedade civil, da Constituinte exclusiva, que se dissolveria após a conclusão dos seus trabalhos. A ausência de um texto que servisse de base para as discussões dificultou de modo significativo a racionalização dos trabalhos, que se desenvolveram em três grandes etapas: a) das comissões temáticas; b) da comissão de sistematização; e c) do Plenário. O processo constituinte teve início com a formação de oito comissões temáticas, cada uma delas dividida em três subcomissões, em um total de 24. Coube às subcomissões a apresentação de relatórios, que foram consolidados pelas comissões temáticas, surgindo daí o primeiro projeto de Constituição, que foi encaminhado à comissão de sistematização. Na elaboração do projeto da comissão de sistematização, prevaleceu a ala mais progressista do PMDB, liderada pelo deputado Mário Covas, que produziu um texto “à esquerda do Plenário”: nacionalista, com forte presença do Estado na economia e ampla proteção aos trabalhadores. Em Plenário, verificou-se uma vigorosa reação das forças liberal-conservadoras, reunidas no Centro Democrático (apelidado de “Centrão”), que impuseram mudanças substantivas no texto ao final aprovado. Em 5 de outubro de 1988, após dezoito meses de trabalho, encerrando um processo constituinte exaustivo e desgastante, 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

muitas vezes subjugado pela política ordinária, foi aprovada, em clima de moderada euforia, a Constituição da República Federativa do Brasil. Aclamada como Constituição Cidadã e precedida de um incisivo Preâmbulo, a Carta Constitucional foi promulgada com 245 artigos, distribuídos em nove títulos, e setenta disposições transitórias. O sucesso institucional da Constituição de 1988 A Constituição de 1988 é o símbolo maior de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento, para um Estado Democrático de Direito. Sob sua vigência, realizaram-se cinco eleições presidenciais, por voto direto, secreto e universal, com debate público amplo, participação popular e alternância de partidos políticos no poder. Mais que tudo, a Constituição assegurou ao país duas décadas de estabilidade institucional. E não foram tempos banais. Ao longo desse período, diversos episódios poderiam ter deflagrado crises que, em outros tempos, teriam levado à ruptura institucional. O mais grave deles terá sido a destituição, por impeachment, do primeiro presidente eleito após a ditadura militar, sob acusações de corrupção. Mas houve outros, que trouxeram dramáticos abalos ao Poder Legislativo, como o escândalo envolvendo a elaboração do orçamento, a violação de sigilo do painel eletrônico de votação e o episódio que ficou conhecido como “mensalão”. Mesmo nessas conjunturas, jamais se cogitou de qualquer solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional. Não há como deixar de celebrar o amadurecimento institucional brasileiro. Até aqui, a trágica tradição do país sempre fora a de golpes, contra-golpes e quarteladas, em sucessivas violações da ordem constitucional. Não é difícil ilustrar o argumento. D. Pedro I dissolveu a primeira constituinte. Logo ao início do Governo Republicano, Floriano Peixoto, vice-presidente da República, deixou de convocar eleições – como exigia a Constituição – após a renúncia de Deodoro da Fonseca, permanecendo indevidamente na presidência. Ao fim da República Velha, vieram a Revolução de 30; a Insurreição Constitucionalista de São Paulo, em 1932; a Intentona Comunista, de 1935; bem como o Golpe do Estado Novo, em 1937. Em 1945, ao final de seu período ditatorial, Getúlio Vargas foi deposto


pelas Forças Armadas. Reeleito em 1950, suicidou-se em 1954, abortando o golpe que se encontrava em curso. Eleito Juscelino Kubitschek, foi necessário o contra-golpe preventivo do marechal Lott, em 1955, para assegurar-lhe a posse. Juscelino ainda enfrentaria duas rebeliões militares: Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959). Com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, os ministros militares vetaram a posse do vice-presidente João Goulart, levando à ameaça de guerra civil, diante da resistência do Rio Grande do Sul. Em 1964, veio o Golpe Militar. Em 1968, o Ato Institucional nº 5. Em 1969, o impedimento à posse do vice-presidente Pedro Aleixo e a outorga de uma nova Constituição pelos ministros militares. A enunciação é meramente exemplificativa, mas esclarecedora. A Constituição de 1988 foi o rito de passagem para a maturidade institucional brasileira. Nos últimos vinte anos, superamos todos os ciclos do atraso: eleições periódicas, presidentes cumprindo seus mandatos ou sendo substituídos na forma constitucionalmente prevista, Congresso Nacional em funcionamento sem interrupções, Judiciário atuante e Forças Armadas fora da política. Só quem não soube a sombra não reconhece a luz. Um balanço preliminar Alguns avanços Em inúmeras áreas, a Constituição de 1988 consolidou ou ajudou a promover avanços dignos de nota. No plano dos direitos fundamentais, a despeito da subsistência de deficiências graves em múltiplas áreas, é possível contabilizar realizações. A centralidade da dignidade da pessoa humana se impôs em setores diversos. Para que não se caia em um mundo de fantasia, faça-se o registro indispensável de que uma idéia leva um tempo razoável entre o momento em que conquista corações e mentes até tornar-se uma realidade concreta. Nada obstante isso, no âmbito dos direitos individuais, as liberdades públicas, como as de expressão, reunião, associação e direitos como o devido processo legal e a presunção de inocência incorporaram-se com naturalidade à paisagem política e jurídica do país. É certo que ainda não para todos. Os direitos sociais têm enfrentado trajetória mais acidentada, sendo a sua efetivação um dos tormentos da doutrina e da jurisprudência. Nada obstante, houve avanços no tocante à universalização do acesso à educação, apesar de subsistirem problemas graves em relação à qualidade do ensino. Os direitos coletivos e difusos, por sua vez, como a proteção do consumidor e do meio ambiente, disciplinados por legislação específica, incorporaram-se à prática jurisprudencial e ao debate público. A Federação – mecanismo de repartição do poder político entre a União, os estados e os municípios –, foi amplamente reorganizada, superando a fase do regime de 1967-69, de forte concentração de atribuições e receitas no Governo Federal. Embora a União tenha conservado ainda a parcela mais substantiva das competências legislativas, ampliaramse as competências político-administrativas de estados

e municípios, inclusive com a previsão de um domínio relativamente amplo de atuação comum dos entes estatais. A partilha das receitas tributárias, de outra parte, embora um pouco mais equânime do que no regime anterior, ainda favorece de modo significativo à União, principal beneficiária da elevadíssima carga tributária vigente no Brasil. De parte disto, ao longo dos anos, a União ampliou sua arrecadação mediante contribuições sociais – tributo em relação ao qual estados e municípios não têm participação –, o que colaborou ainda mais para a hegemonia federal. A verdade inegável é que os estados brasileiros, apesar da recuperação de sua autonomia política, não conseguiram, em sua grande maioria, encontrar o equilíbrio financeiro desejável. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também seguiu, como regra geral, uma lógica centralizadora. O reequacionamento do federalismo no Brasil é um tema à espera de um autor. A nova Constituição, ademais, reduziu o desequilíbrio entre os Poderes da República, que no período militar haviam sofrido o abalo da hipertrofia do Poder Executivo, inclusive com a retirada de garantias e atribuições do Legislativo e do Judiciário. A nova ordem restaura e, em verdade, fortalece a autonomia e a independência do Judiciário, assim como amplia as competências do Legislativo. Nada obstante, a Carta de 1988 manteve a capacidade legislativa do Executivo, não mais através do estigmatizado decreto-lei, mas por meio das medidas provisórias. A Constituição, juntamente com suas emendas, contribuiu, também, para a melhor definição do papel do Estado na economia, estabelecendo como princípio fundamental e setorial a livre iniciativa, ao lado da valorização do trabalho. A atuação direta do Estado, assim na prestação dos serviços públicos (diretamente ou por delegação), como na exploração de atividades econômicas, recebeu tratamento sistemático adequado. Algumas circunstâncias O processo constituinte teve como protagonista uma sociedade civil que amargara mais de duas décadas de autoritarismo. Na euforia – saudável euforia – de recuperação das liberdades públicas, a Constituinte foi um notável exercício de participação popular. Nesse sentido, é inegável o seu caráter democrático. Mas, paradoxalmente, essa abertura para todos os setores organizados e grupos de interesse fez com que o texto final expressasse uma vasta mistura de reivindicações legítimas de trabalhadores e categorias econômicas, cumulados com interesses cartoriais, reservas de mercado e ambições pessoais. A participação ampla, os interesses múltiplos e a já referida ausência de um anteprojeto, geraram um produto final heterogêneo, com qualidade técnica e nível de prevalência do interesse público oscilantes entre extremos. Um texto que, mais do que analítico, era casuístico, prolixo e corporativo. Esse defeito o tempo não curou: muitas das emendas, inclusive os ADCT, espicharam ainda mais a Carta Constitucional ao longo dos anos. Outra circunstância que merece ser assinalada é a do contexto histórico em que se desenrolaram os trabalhos constituintes. Após muitos anos de repressão política, o 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 51


pensamento de esquerda finalmente podia se manifestar livremente, tendo se formado inúmeros partidos políticos de inspiração comunista, socialista, trabalhista e socialdemocrata. Mais organizados e aguerridos, os parlamentares dessas agremiações predominaram amplamente nos trabalhos das comissões, até a reação, de última hora, já narrada, das forças de centro e de direita. Ainda assim, o texto aprovado reservava para o Estado o papel de protagonista em áreas diversas, com restrições à iniciativa privada e, sobretudo, ao capital estrangeiro, aí incluídos os investimentos de risco. Pois bem: um ano após a promulgação da Constituição, caiu o Muro de Berlim e começaram a desmoronar os regimes que praticavam o socialismo real. Simultaneamente, a globalização, com a interconexão entre os mercados e a livre circulação de capitais, impôs-se como uma realidade inelutável. Pelo mundo afora, ruíam os pressupostos estatizantes e nacionalistas que inspiraram parte das disposições da Constituição brasileira. Alguns revezes A Constituição brasileira, como assinalado, consubs­ tanciou-se em um texto excessivamente detalhista e que, além disso, cuida de muitas matérias que teriam melhor sede na legislação infraconstitucional. De tais circunstâncias, decorrem conseqüências práticas relevantes. A primeira delas é que a constitucionalização excessiva dificulta o exercício do poder político pelas maiorias, restringindo o espaço de atuação da legislação ordinária. Em razão disso, diferentes governos, para implementar seus programas, precisaram reunir apoio de maiorias qualificadas de três quintos, necessárias para emendar a Constituição, não sendo suficientes as maiorias simples, próprias à aprovação da legislação ordinária. O resultado prático é que, no Brasil, a política ordinária – i.e., a implementação da vontade das maiorias formadas a cada época – se faz por meio de emendas constitucionais, com todo o incremento de dificuldades que isso representa. Chega-se, assim, sem surpresa, à segunda conseqüência da constitucionalização excessiva e minuciosa: o número espantoso de emendas, que antes do vigésimo aniversário da Carta já somavam 56. Houve modificações constitucionais para todos os gostos e propósitos: limitação da remuneração de parlamentares, restrições à criação de municípios, realização de reformas econômicas, administrativas, previden­ciárias, do Judiciário, prorrogação de tributos provisórios, desvinculação de receitas, atenuação da imunidade parlamentar formal, contenção das medidas provisórias, redução do mandato presidencial, admissão da reeleição e daí por diante. Há risco de se perder o fôlego, a conta e a paciência. Tudo isso sem qualquer perspectiva de inversão de tendência. Naturalmente, essa disfunção compromete a vocação de permanência da Constituição e o seu papel de simbolizar a prevalência dos valores duradouros sobre as contingências da política. O desempenho das instituições Cabe, antes de concluir, fazer uma breve anotação sobre aspectos relevantes associados ao funcionamento dos três 52 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

Poderes ao longo dos vinte anos de vigência da Constituição. São examinadas, ainda que brevemente, algumas das mudanças constitucionais que repercutiram sobre a atuação de cada um deles, bem como o desempenho concreto de seus papéis constitucionais pelo Executivo, Legislativo e Judiciário. No tocante ao Poder Executivo, o plebiscito previsto no art. 2º do ADCT, realizado em 21 de abril de 1993, manteve, por significativa maioria, o sistema presidencialista. Dentre as emendas constitucionais aprovadas, merecem registro a que reduziu o mandato presidencial de cinco para quatro anos, a que passou a admitir a reeleição e a que criou o Ministério da Defesa, marco simbólico relevante da submissão do poder militar ao poder civil. As medidas provisórias, concebidas como um mecanismo excepcional de exercício de competência normativa primária pelo Executivo, tornaramse instrumento rotineiro de o presidente legislar. A disfunção só veio a ser coibida, ainda que não integralmente, com a edição da Emenda Constitucional nº 32, de 12.09.2001. Apesar da redemocratização, não se superou integralmente o presidencialismo hegemônico da tradição brasileira, que se manifesta em domínios diversos, inclusive e notadamente, no poder de contingenciar verbas orçamentárias. Quanto ao Poder Legislativo, cabe assinalar a recuperação de suas prerrogativas após a Constituição de 1988, embora permaneça visível o decréscimo de sua importância na produção de leis. De fato, além das medidas provisórias já referidas, a maior parte dos projetos relevantes resultaram de iniciativa do Executivo. Nesse cenário, a ênfase da atuação do Congresso Nacional deslocou-se para a fiscalização dos atos de governo e de administração. O principal instrumento dessa linha têm sido as comissões parlamentares de inquérito (CPIs). Por outro lado, um problema estrutural da representação política no Brasil é a desproporcionalidade da composição da Câmara dos Deputados. De fato, o número máximo de setenta deputados e o mínimo de sete, determinados pelo art. 45, § 1º da Constituição, provoca a sobre-representação de alguns estados e a sub-representação de outros. Por fim, a Emenda Constitucional nº 35, de 21.12.2001, introduziu modificação substantiva no regime jurídico da imunidade parlamentar, deixando de exigir prévia licença da Casa Legislativa para a instauração de processo criminal contra parlamentar. O Poder Judiciário, por sua vez, vive um momento de expressiva ascensão política e institucional. Diversas são as causas desse fenômeno, dentre as quais se incluem a recuperação das garantias da magistratura, o aumento da demanda por justiça por parte de uma sociedade mais consciente, a criação de novos direitos e de novas ações pela Constituição, em meio a outros fatores. Nesse cenário, ocorreu entre nós uma expressiva judicialização das relações sociais e de questões políticas. O Supremo Tribunal Federal (STF) ou outros órgãos judiciais têm dado a última palavra em temas envolvendo separação de Poderes, direitos fundamentais, políticas públicas, regimes jurídicos dos servidores, sistema político e inúmeras outras questões, algumas envolvendo o dia-a-dia das pessoas, como


mensalidade de planos de saúde ou tarifa de serviços públicos. Essa expansão do papel do Judiciário, notadamente do STF, fez deflagrar um importante debate na teoria constitucional acerca da legitimidade democrática dessa atuação. Conclusão O que ficou por fazer A comemoração merecida dos vinte anos da Constituição brasileira não precisa do falseamento da verdade. Na conta aberta do atraso político e da dívida social, ainda há incontáveis débitos. Subsiste no país um abismo de desigualdade, com recordes mundiais de concentração de renda e déficit dramático em moradia, educação, saúde, saneamento. A lista é enorme. Do ponto de vista do avanço do processo civilizatório, também estamos para trás, com índices inaceitáveis de corrupção, deficiências nos serviços públicos em geral – dos quais dependem, sobretudo, os mais pobres – e patamares de violência que se equiparam aos de países em guerra. Por outro lado, o regime de 1988 não foi capaz de conter a crônica voracidade fiscal do Estado brasileiro, um dos mais onerosos do mundo para o cidadão-contribuinte. Sem mencionar que o sistema tributário constitui um cipoal de tributos que se superpõem, cuja complexidade exige a manutenção de estruturas administrativas igualmente custosas. Há, todavia, uma outra falha institucional, que, por sua repercussão sobre todo o sistema, compromete a possibilidade de solução adequada de tudo o mais. Nos vinte anos de sua vigência, o ponto baixo do modelo constitucional brasileiro, e dos sucessivos governos democráticos, foi a falta de disposição ou de capacidade para reformular o sistema político. No conjunto de desacertos das últimas duas décadas, a política passou a ser um fim em si mesma, um mundo à parte, desconectado da sociedade, visto ora com indiferença, ora com desconfiança. As repetidas crises produzidas pelas disfunções do financiamento eleitoral, pelas relações oblíquas entre Executivo e parlamentares, bem como pelo exercício de cargos públicos para benefício próprio, têm trazido, ao longo dos anos, uma onda de ceticismo que abate a cidadania e compromete sua capacidade de indignação e de reação. A verdade, contudo, é que não há Estado Democrático sem atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem parlamento atuante e investido de credibilidade. É preciso, portanto, reconstruir o conteúdo e a imagem dos partidos e do Congresso, assim como exaltar a dignidade da política. O sistema político brasileiro, por vicissitudes diversas, tem desempenhado um papel oposto ao que lhe cabe: exacerba os defeitos e não deixa florescer as virtudes. É preciso desenvolver um modelo capaz de resgatar e promover valores como legitimidade democrática, governabilidade e virtudes republicanas, produzindo alterações profundas na prática política. Há inúmeras propostas na matéria, apesar da pouca disposição para o debate. Uma delas defende para o Brasil, como sistema de governo, o semipresidencialismo, nos moldes da França e de

“Chega-se, assim, sem surpresa, à segunda conseqüência da constitucionalização excessiva e minuciosa: o número espantoso de emendas, que antes do vigésimo aniversário da Carta já somavam 56.” Portugal; como sistema eleitoral, a fórmula do voto distrital misto, que vigora, por exemplo, na Alemanha; e, como sistema partidário, um modelo fundado na fidelidade e na contenção da pulverização dos partidos políticos. O que se deve celebrar O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século XX. O imaginário social contemporâneo vislumbra nesse arranjo institucional, que procura combinar Estado de Direito (supremacia da lei, rule of the law, Rechtsstaat) e soberania popular, a melhor forma de realizar os anseios da modernidade: poder limitado, dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais, justiça social, tolerância e – quem sabe? – até felicidade. Para evitar ilusões, é bom ter em conta que as grandes conquistas da humanidade levam um tempo relativamente longo para passarem do plano das idéias vitoriosas para a plenitude do mundo real. O curso do processo civilizatório é bem mais lento do que a nossa ansiedade por progresso social. O rumo certo, porém, costuma ser mais importante do que a velocidade. O modelo vencedor chegou ao Brasil com atraso, mas não tarde demais, às vésperas da virada do milênio. Os últimos vinte anos representam, não a vitória de uma Constituição específica, concreta, mas de uma idéia, de uma atitude diante da vida. O constitucionalismo democrático, que se consolidou entre nós, traduz não apenas um modo de ver o Estado e o Direito, mas de desejar o mundo, em busca de um tempo de justiça, fraternidade e delicadeza. Com as dificuldades inerentes aos processos históricos complexos e dialéticos, temos nos libertado, paulatinamente, de um passado autoritário, excludente, de horizonte estreito, e vivido as contradições inevitáveis da procura do equilíbrio entre o mercado e a política, entre o privado e o público, entre os interesses individuais e o bem coletivo. Nos duzentos anos que separam a chegada da família real e o vigésimo aniversário da Constituição de 1988, passou-se uma eternidade. 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 53


O ACESSO À JUSTIÇA FEDERAL E OS 20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Marli Marques Ferreira Presidente do TRF-3ª Região

A

Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, completa vinte anos como um marco de estabilidade do Estado Democrático de Direito. Alterada por 06 emendas revisionais e 56 emendas constitucionais, sua força normativa continua inabalável, posto que restou sobrepujado o paradigma de cunho essencialmente político, pelo caráter vinculado e obrigatório de seu texto. Essa força vinculante da Constituição de 1988 decorre do modelo de constitucionalização do Direito por meio de um sistema coeso composto por valores, princípios e regras, cuja manutenção foi atribuída ao Estado, por seus Poderes constituídos, na forma preconizada pelo princípio da separação dos Poderes. Ao Poder Judiciário foi destinada posição de extrema responsabilidade no processo democrático, na medida em que a prática de sua função jurisdicional, por meio do exercício da interpretação e da dicção da norma a ser aplicada ao conflito, configura uma das maiores garantias do Estado Democrático de Direito. Totalmente superada a idéia da Constituição como mero instrumento político do Estado, o texto de 1988, denominado “Constituição Cidadã”, extrai a sua força normativa de sua legitimidade, no intuito de concretizar o Estado de justiça social, traduzido, especialmente, pelos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil enumerados no artigo 3º do texto constitucional. Para tanto, a Carta de 1988 incorporou, desde o seu preâmbulo, os mais diversificados mecanismos para assegurar a sua efetividade, cuja violação deve ser coibida pelo Poder 54 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

Judiciário, ao exercer o monopólio da jurisdição, a sua função precípua de efetivar e concretizar a ordem jurídica. Dentre esses instrumentos está o acesso à Justiça, “o mais básico dos direitos humanos”, segundo Mauro Cappelletti, e sustentáculo do Estado Democrático de Direito, que precisa ser protegido em sua plenitude. Daí porque o constituinte de 1988 tê-lo consagrado, inclusive, para a proteção aos direitos simplesmente ameaçados, conforme decorre do chamado “princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional”, insculpido no inciso XXXV, do artigo 5º, do Texto Magno, bem assim o princípio do devido processo legal, originado da cláusula due process of law do Direito anglo-americano, expressamente previsto no inciso LIV, e os princípios do contraditório e da ampla defesa, inciso LV, do mesmo artigo. O acesso à Justiça traduz-se, assim, pelo exercício do direito de invocar o Poder Judiciário (art. 5º, XXXV) bem como pelo direito de obter uma decisão justa e célere (art. 5º, LXXVIII). A efetividade dessa garantia constitucional está intrinsecamente relacionada ao tipo de estrutura do serviço oferecido pelo Poder Judiciário. A Assembléia Nacional Constituinte, após muitos debates sobre o assunto, preservou a repartição constitucional das competências moldada pelo feitio do Estado federado, revigorando o modelo iniciado pela Constituição republicana, quando foram fixadas duas estruturas judiciárias básicas: a Justiça Estadual e a Justiça Federal. A Justiça Federal foi instituída pelo Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, tendo sido referendada pelo artigo 55


Foto: Arquivo Pessoal

“Dentre esses instrumentos está o acesso à Justiça, ‘o mais básico dos direitos humanos’, segundo Mauro Cappelletti, e sustentáculo do Estado Democrático de Direito, que precisa ser protegido em sua plenitude.”

da Constituição de 1891 que limitou a sua composição pelo Supremo Tribunal Federal a tantos juízes e tribunais federais quantos o Congresso criasse. O artigo 78 da Constituição de 1934 não trouxe alterações a essa estrutura, mantendo a Justiça Federal e os seus tribunais, que até então ainda não haviam sido criados, restando à Corte Suprema funcionar como órgão de segunda instância na esfera federal. Em 1937, a Justiça Federal foi extinta formalmente pelo art. 101, II, 2, da Carta imposta, que transformou a estrutura dual, estabelecida em 1891, em sistema único composto apenas pelas Justiças estaduais, destinando aos juízes dos feitos da Fazenda Nacional o julgamento de todos os processos de interesse da União, assegurado o recurso ordinário ao Supremo Tribunal Federal. A Constituição de 1946 alterou a competência recursal da Suprema Corte criando o Tribunal Federal de Recursos, que foi instituído pela Lei nº 33, de 13 de maio de 1947. Foi pelo Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, que a Justiça Federal de primeiro grau foi restabelecida junto ao Tribunal Federal de Recursos e, após, disciplinada pela Lei nº 5.010, de 30 de maio de 1966, com o referendo da Constituição de 1967, bem como da Emenda Constitucional nº 1, de 1969. A Constituição de 1988 prestigiou a Justiça Federal como órgão essencial à prestação do serviço judicial. Extinguiu o Tribunal Federal de Recursos, criou o Superior Tribunal de Justiça e dotou a Justiça Federal de duas instâncias: a primeira, constituída pelas varas distribuídas nas Seções Judiciárias de cada estado e do Distrito Federal e, a segunda, descentralizada,

formada pelos tribunais regionais federais, previstos nos termos dos artigos 106 a 108 do texto constitucional que dispõem verbis: “Art. 106 – São órgãos da Justiça Federal: I – os Tribunais Regionais Federais; II – os Juízes Federais. Art. 107 – Os Tribunais Regionais Federais compõem-se de, no mínimo, sete juízes, recrutados, quando possível, na respectiva região e nomeados pelo Presidente da República dentre brasileiros com mais de trinta e menos de sessenta e cinco anos, sendo: I – um quinto dentre advogados com mais de dez anos de efetiva atividade profissional e membros do Ministério Público Federal com mais de dez anos de carreira; II – os demais, mediante promoção de juízes federais com mais de cinco anos de exercício, por antiguidade e merecimento, alternadamente. Parágrafo único - A lei disciplinará a remoção ou a permuta de juízes dos Tribunais Regionais Federais e determinará sua jurisdição e sede. Art. 108 – Compete aos Tribunais Regionais Federais: I – processar e julgar, originariamente: a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral; 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 55


“Nesse sentido, durante os vinte anos de promulgação da Constituição de 1988, merecem registro as emendas constitucionais nos 22 e 45, cujo teor permitiu a melhoria do serviço judicial na esfera da jurisdição federal.”

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b) as revisões criminais e as ações rescisórias de julgados seus ou dos juízes federais da região; c) os mandados de segurança e os habeas data contra ato do próprio Tribunal ou de juiz federal; d) os habeas corpus, quando a autoridade coatora for juiz federal; e) os conflitos de competência entre juízes federais vinculados ao Tribunal; II – julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição.” O artigo 27, parágrafo 6º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabeleceu incontinente a criação de cinco Tribunais Regionais Federais. A Lei nº 7.727, de 09.01.1989, criou o Tribunal Regional Federal da 3ª Região definindo a sua primeira composição, que foi integrada por 18 desembargadores federais, sendo um Presidente, um acumulando as funções de vice-presidente e corregedor-geral e duas Seções integradas por quatro Turmas compostas por quatro membros cada uma no total de 16 desembargadores federais. A Lei nº 8.418, de 27.04.1992, autorizou a primeira ampliação dos Tribunais Regionais Federais, de tal forma que a Corte Regional da 3ª Região passou a ser integrada por 27 desembargadores federais: um Presidente, um VicePresidente, um Corregedor-Geral, duas Seções compostas cada qual por três Turmas, computando seis Turmas formadas por 24 membros. Foi criado também o Órgão Especial. Por fim, a Lei nº 9.968, de 10.05.2000, tratou de disciplinar a segunda ampliação dos Tribunais Regionais Federais, contemplando a Corte da 3ª Região com 16 novos cargos de desembargadores federais passando, assim, a ser integrada por 43 desembargadores federais: um Presidente, um Vice-Presidente, um Corregedor-Geral e outros 40 membros compondo 10 Turmas e três Seções, o que permitiu a criação da 3a Seção, composta de quatro Turmas e especializada nas matérias de Direito Previdenciário e Assistência Social. Todo esse escorço histórico-constitucional culmina por justificar o extenso delineamento do rol de competência da Justiça Federal de primeiro grau, previsto no artigo 109 da Constituição de 1988, restando à Justiça Estadual a competência residual. A concepção da excelência da prestação jurisdicional na Justiça Federal tem sofrido transformações e todas convergem essencialmente a um mesmo anseio: a busca da celeridade no oferecimento do serviço judicial. Não é suficiente que o ordenamento jurídico nacional proclame os direitos, mais do que isso, o cidadão necessita e espera ver reparada qualquer lesão aos direitos proclamados. Nas palavras de Norberto Bobbio: “Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas


sim qual o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.” Não se cuida, portanto, de assegurar simplesmente o ingresso com a ação. Não bastam tampouco as decisões, sentenças, acórdãos e remédios heróicos. Trata-se, isto sim, de garantir a utilidade da resposta judicial capaz de produzir resultado prático na vida das pessoas. Essa é a promessa do constituinte: a pacificação das pessoas em conflito por meio do direito à tutela jurisdicional efetiva. Para tanto, o grau de excelência no cumprimento da função judicial estava a depender da inadiável renovação dos instrumentos e formas de atuação da máquina judiciária diante da singularidade crescente das relações sociais, especialmente no que se refere à ordem econômico-financeira. Nesse sentido, durante os vinte anos de promulgação da Constituição de 1988, merecem registro as emendas constitucionais nos 22 e 45, cujo teor permitiu a melhoria do serviço judicial na esfera da jurisdição federal. A Emenda Constitucional nº 22, de 18.03.1999, verdadeiro marco histórico, alterou o artigo 98 da Carta para, atendendo aos apelos da magistratura federal, permitir à Justiça Federal a possibilidade de oferecer a prestação jurisdicional por meio dos Juizados Especiais Federais, nos seguintes termos: “Art. 98 – (...) Parágrafo único – Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal.” A Lei nº 10.259, de 12.07.2001, disciplinou os Juizados Especiais Federais estabelecendo no caput de seu artigo 19 que a sua instalação nas capitais dos estados dar-se-ia, necessariamente, depois de decorridos seis meses de sua publicação. O Tribunal da 3º Região cumpriu o seu mister e em 14 de janeiro de 2002 instalou os Juizados Especiais Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul. A criação dos Juizados Especiais Federais não tem, em princípio, a função de desafogar a Justiça comum federal, mas, isto sim, de garantir o acesso dos cidadãos ao Poder Judiciário Federal. A Emenda Constitucional nº 45, promulgada em 08 de dezembro de 2004, inclui o inciso LXXVIII ao artigo 5º e os parágrafos 2º e 3º ao artigo 107, bem como altera a redação do artigo 93, inciso XIII, verbis: “Art. 5º – (...) .................................................................................. LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação; .................................................................................. Art. 93 – (...) .................................................................................. XIII – o número de juízes na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população; ................................................................................. Art. 107 – (...)

................................................................................. § 2º – Os Tribunais Regionais Federais instalarão a Justiça itinerante, com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários; § 3º – Os Tribunais Regionais Federais poderão funcionar descentralizadamente, constituindo Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à Justiça em todas as fases do processo.” A denominada emenda da “Reforma do Judiciário” veio atender aos anseios do próprio Poder Judiciário no sentido de proporcionar aos cidadãos um serviço judicial de excelência. A criação de novos tribunais dependeria de alta cifra de recursos para facilitar o acesso do jurisdicionado à 2ª Instância do Poder Judiciário. Contudo, a criação da Justiça Federal itinerante e das Câmaras Regionais descentralizadas, previstas pelos parágrafos 2º e 3° do artigo 107, facilitará o efetivo acesso à Justiça Federal sem maiores custos. É inegável a valorosa contribuição das experiências obtidas por dezenas de trabalhos itinerantes dos Juizados Especiais Federais da 3ª Região que, fundados nas singelas normas da Lei nº 10.259, de 12.07.2001, atenderam a milhares de pessoas, muitas delas à margem da cidadania, abandonadas à sua própria sorte, que verdadeiramente não acreditavam mais nas instituições do Estado. Pois, conforme afirma Boaventura de Sousa Santos “quanto mais caracterizadamente uma lei protege os interesses populares e emergentes maior é a probabilidade de que ela não seja aplicada”, daí porque o mestre português recomenda esforços ao Poder Judiciário no sentido de transformar o direito formalmente vigente em direito socialmente eficaz. A Corte da Terceira Região não tem medido esforços na busca da efetividade do princípio constitucional da celeridade processual. A racionalização do trabalho tem sido a meta diária da Presidência do Tribunal da Terceira Região visando o aperfeiçoamento e a excelência da prestação jurisdicional por meio de ações nas áreas de: tecnologia da informação, treinamento e capacitação de servidores e magistrados, convênios com os mais diversos órgãos públicos para acesso rápido aos cadastros e informações, modernização dos prédios, desenvolvimento de novos procedimentos eletrônicos para facilitar a transição do processo em mídia papel para a mídia eletrônica, utilização da videoconferência na esfera jurisdicional e administrativa como forma de diminuir as distâncias e cortar os custos, incentivo perene à conciliação em demandas de primeiro e segundo graus, utilização do processo virtual nos Juizados com a absoluta eliminação do papel, enfim, tudo o que for necessário e bom à administração judicial. É esse o mister a ser renovado dia-a-dia pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região: garantir a efetividade da Constituição da República de 1988 pelo oferecimento de um serviço judicial federal eficaz. 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 57


ANÁLISE DA ESTRUTURA JURISDICIONAL PÁTRIA

José Carlos Schmidt Murta Ribeiro Presidente do TJ/RJ Membro do Conselho Editorial

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umpre, inicialmente, agradecer ao honroso convite que recebo com extrema felicidade e singular gratidão, para delinear singelas considerações acerca dos 20 anos de vigência da Constituição da República, notadamente nas substanciais modificações que geraram nos tribunais de Justiça do país, tornando-os mais humanos e acessíveis. O Constitucionalismo moderno, com alicerce na Teoria do Contrato Social, aclamada por John Locke e Rosseau aplicado o conceito de um contratualismo entre os homens e entre estes e o Estado, tem o povo como titular do Poder Constituinte, inaugurando o Estado de Direito, que para se tornar legítimo, necessita de um documento elaborado por representantes do povo, a Constituição. Há inúmeras acepções, cunhadas por ilustres pensadores de nossa história, para conceituar o termo Constituição. Ferdinand Lassale valeu-se do sentido sociológico do termo, referindo-se a ela como o somatório dos fatores reais de poder dentro de uma sociedade; Carl Schmitt a enxergou sob a ótica política, alegando que se trataria da decisão política do titular do Poder Constituinte; já no que tange ao sentido jurídico da Magna Charta, Hans Kelsen a tomou sob dois prismas: como norma fundamental hipotética (sentido lógico-jurídico) e como norma positivada suprema (sentido jurídico-positivo). Explica o ilustre professor Fábio Ulhôa Coelho que a Constituição histórica em Kelsen “será aquele texto 58 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

fundamental cuja elaboração não se encontra prevista em nenhuma disposição normativa anterior; aquele cujos editores não foram investidos de competência por nenhuma outra norma jurídica”. Para nos valermos da expressão de Kelsen, a primeira constituição histórica deriva da revolução na ordem jurídica, tendo em vista que não encontra suporte nesta ordem, mas inaugura uma nova. Os brasileiros, ávidos por mudanças, viram nascer, no dia 05 de outubro de 1988, um novo Estado, decorrente de ideais e anseios que careciam materializar-se com brevidade. O desígnio primordial dessa mudança calcava-se na organização do Estado Democrático de Direito, que se concretizou com o advento da Constituição da República. Iniciava-se um novo ordenamento jurídico, com alicerce no Liberalismo Político, que segundo Norberto Bobbio, objetiva a limitação do Poder Público para a tutela do indivíduo. Todavia, o Estado Democrático de Direito não se caracteriza apenas por liberdades individuais, mas possui alicerce basilar na participação de todos os cidadãos na vida política pátria. Nesse sentido, Alexandre de Moraes conceituou a democracia pátria como a exigência de regerse por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais. Com esse intuito a Constituição de 1988 apresentou um capítulo inteiro tratando diretamente de direitos e garantias


Foto: TJ/RJ Foto: TJ/RJ

fundamentais, que em razão da evolução social foram sendo conquistados, tornando-se primordiais para a realização de um Estado Democrático de Direito. Daí dizer que é ela a “Constituição Cidadã”. A doutrina com base na ordem histórica cronológica em que os direitos fundamentais passaram a ser constitucionalmente reconhecidos classificou-os em gerações. Assim, têm-se os direitos de 1ª geração, aqueles inerentes aos direitos e garantias individuais, às liberdades públicas; os direitos de 2ª geração, caracterizados pelos direitos sociais, em que a intervenção estatal tornou-se essencial para a efetivação do princípio da igualdade; e, por fim, os direitos de 3ª geração, conhecidos como direitos de solidariedade e fraternidade, inerentes à coletividade como um todo, e não mais apenas ao indivíduo de forma unitária. Manoel Gonçalves Ferreira Filho sintetiza com maestria a classificação cronológica dos direitos fundamentais proclamados pela Constituição da República, in verbis: “a primeira geração seria a dos direitos de liberdade, a segunda, dos direitos de igualdade, a terceira, assim, complementaria o lema da revolução francesa: liberdade, igualdade, fraternidade.” (Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva 1995. p. 57). Com efeito, na atual arena jurídica constitucional, consubstanciada pela “Nova Ordem”, em vigor há 20 anos, o art. 5° da Constituição pátria destaca-se como norma

de maior destaque, uma vez que dispõe sobre direitos e garantias fundamentais, englobando os direitos individuais e coletivos. Cumpre, neste ponto, destacar certas garantias imprescindíveis à prestação jurisdicional, tema mais de perto vinculado ao título deste pequeno opúsculo. A garantia primordial inerente à prestação jurisdicional exterioriza-se no princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5°, XXXV, CF), também denominado direito de ação ou, nos termos de Pontes de Miranda, princípio da ubiqüidade da justiça. O dispositivo preceitua que: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Ressalta-se que as Constituições anteriores restringiam a amplitude do conceito de “direito”, o que foi sanado pela nova Lei Maior, que o tratou da forma mais extensa possível, conferindo proteção constitucional a direitos privados, públicos ou transindividuais (difusos, coletivos ou individuais homogêneos). As expressões “lesão” e “ameaça a direito” garantem a postulação da tutela jurisdicional tanto preventiva como repressiva. A doutrina prefere, ainda, a expressão “acesso à Justiça”, mais conhecida por todos, para denominar o princípio em questão. Entretanto, há de se observar que não se trata apenas de possibilitar o acesso aos órgãos judiciais, mas à ordem jurídica justa, dotada de isonomia. O destinatário da tutela jurisdicional tem direito ao tratamento isonômico, respeitoso, eficiente, transmitindo a certeza de que os ditames constitucionais e do Direito material pátrio serão aplicados em consonância com a concepção de justiça.

“Os brasileiros, ávidos por mudanças, viram nascer, no dia 05 de outubro de 1988, um novo Estado, decorrente de ideais e anseios que careciam materializar-se com brevidade.”

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“Como os conflitos se multiplicam e se diversificam, a instituição judiciária, para manter-se fiel à missão de que se incumbe na sociedade, necessita, sem sombra de dúvida, modernizar a gestão de seus meios de atuação, coisa bem diferente de alterar a sua finalidade ou de flexionar a sua ética.”

Outro princípio relevantíssimo para a prestação jurisdicional é o devido processo legal, que se encontra expresso nos incisos do artigo 5º da Carta Política. Neste ponto, a Constituição de 1988 inovou em relação às demais incorporando ao texto constitucional o referido princípio, que possui como corolários os princípios da ampla defesa e do contraditório. O devido processo legal deve ser entendido como uma dupla proteção ao indivíduo, atuando no plano material e formal, configurando proteção ao direitos à liberdade, bem como à plenitude de defesa dentro do processo. Acrescente-se aos novos princípios supracitados, outras duas inovações que auxiliaram na revolução da prestação jurisdicional, acarretando uma espantosa alteração nos tribunais, em razão da facilitação do acesso à Justiça. A primeira grande inovação foi a coletivização das tutelas jurisdicionais e a segunda foi a constitucionalização da defesa dos direitos dos consumidores. Essas inovações são frutos de uma sociedade massificada em suas relações sociais, tendo como característica principal a celeridade. Essa tendência apresenta-se marcante nas leis nº 7.347/85, nº 8.078/90 e nº 9.099/95. Com essa massificação da prestação jurisdicional, os tribunais tiveram que se adequar à nova realidade. Assim, tornou-se imprescindível a adoção de medidas de efetiva mutação da estrutura orgânica do Judiciário, com fito de torná-lo mais célere, ou seja, menos formal e burocrático. Essa alteração da prestação jurisdicional está latente nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, que representam uma ruptura com o formalismo excessivo, necessitando das administrações dos tribunais uma atenção especial, pois possuem uma função social relevantissíma, pacificando a sociedade nas relações sociais do dia-a-dia. Sem dúvida, esse é o braço da “Justiça” que mais se aproxima do cidadão, sendo a “vitrine” da atuação do Poder Judiciário para a população. E, a cada dia, a sociedade impõe ao Judiciário, principalmente, aos tribunais de Justiça, a obrigatoriedade da eficiência, efetividade e celeridade em sua atuação. Assim, constata-se que no ordenamento jurídico pós 60 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

constituinte, a Jurisdição passou por uma revitalização, com fito de se adaptar aos novos preceitos decorrentes do Estado Democrático de Direito, mormente, para a efetivação dos direitos e garantias individuais. Iniciava-se uma novel concepção da função jurisdicional, que possuía como finalidade precípua a eficiência da prestação da Jurisdição, entendendo o demandante não mais como mero espectador da atuação dos tribunais, mas sim como verdadeiro “consumidor” dos serviços prestados pelo Estado-Juiz. Com o fito de atender à nova realidade social, o legislador constituinte derivado, mas, ainda assim criador de norma fundamental, aprovou emenda constitucional que alterou profundamente a estrutura do Poder Judiciário, sendo, desta forma, denominada a “Reforma do Judiciário”. A Emenda Constitucional nº 45 de 2004 constitucionalizou expressamente o princípio da razoável duração do processo, apesar de alguns doutrinadores, entre eles Alexandre de Moraes, proclamarem, acertadamente, ao meu sentir, que este princípio já possuía respaldo constitucional e legal, in verbis: “Essas previsões – razoável duração do processo e celeridade processual –, em nosso entender, já estavam contempladas no texto constitucional, seja na consagração do princípio do devido processo legal, seja na previsão do princípio da eficiência aplicável à Administração Pública (CF, art. 37, caput). Conforme lembrou o ministro Celso de Mello, ‘cumpre registrar, finalmente, que já existem, em nosso sistema de Direito Positivo, ainda que de forma difusa, diversos mecanismos legais destinados a acelerar a prestação jurisdicional (...), de modo a neutralizar, por parte de magistrados e tribunais, retardamentos abusivos ou dilações indevidas na resolução dos litígios’.” (Alexandre de Moraes, Direito Constitucional. 21ª Ed., p. 96). A EC nº 45/04 foi o início de uma série de reformas que exteriorizam uma prestação jurisdicional massificada, caracterizando-se pela celeridade, publicidade e qualidade dos julgados. Essa transparência almejada efetivou-se com a criação do


Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que possui a função de controlar administrativamente os atos praticados nos tribunais de Justiça estaduais. Outro fator de controle da atuação dos tribunais de Justiça é a vinculação dos julgadores às estatísticas de produtividade, que são, em regra, públicas, demonstrando o empenho dos tribunais, colocando-os em perfeita harmonia com os princípios da publicidade e eficiência, norteadores da Administração Pública. Como os conflitos se multiplicam e se diversificam, a instituição judiciária para manter-se fiel à missão de que se incumbe na sociedade, necessita, sem sombra de dúvida, modernizar a gestão de seus meios de atuação, coisa bem diferente de alterar a sua finalidade ou de flexionar a sua ética. Há que se agir sempre com eticidade. Hodiernamente, dois atributos principais da prestação jurisdicional são cobrados dos juízes: celeridade e qualidade. Esses dois atributos, que a princípio poderiam supor uma contradição – contradição que não acontece – se equalizam pelo emprego do conhecimento jurídico acoplado à informática. Assim, as decisões não podem se resumir apenas a um destes atributos, muito rápida, mas sem conteúdo, ou de muita qualidade, contudo tomadas em tempo excessivo. Os juízes são profissionais do conhecimento. No trabalho do conhecimento, a definição da tarefa e a eliminação de etapas desnecessárias são ainda mais prementes e geram resultados ainda maiores. Pensese no número de tarefas e de atos desnecessários que integram o processo judicial e as atividades dos cartórios que dão suporte ao trabalho dos juízes, e aí se encontrará um sem-número de rotinas que deles subtraem, em todos os graus de jurisdição, tempo precioso para tomar as decisões que as partes em litígio aguardam. Daí a premente necessidade da reforma das leis ordinárias adaptando-as ao novo tempo. Nesse diapasão, não podemos mais conceber a Administração Pública como meio “burocrático” de prestação de serviços à sociedade, principalmente, na função jurisdicional, que se caracteriza como de suma importância para o convívio social. Destarte, com a finalidade de alcançarmos o desiderato

precípuo da Jurisdição, a efetiva pacificação social, é imprescindível a implementação de dois instrumentos de gestão nos tribunais pátrios: a reforma administrativa e a informatização dos tribunais. Seguindo esse raciocínio, temos a reforma administrativa como meio mais efetivo para dinamizar a atividade jurisdicional, através da retirada de etapas burocráticas e formais, tornando o procedimento mais enxuto e conseqüentemente mais célere. Isto se apresenta factível com uma gestão participativa, somada ao controle do cumprimento de metas prioritárias definidas pela Administração. Está mais do que na hora de os gestores do Poder Judiciário, os juízes e os servidores da Justiça se tornarem parceiros no diálogo que conduzirá ao estabelecimento de processos de trabalho inteligentes, que efetivamente elevem a produtividade em termos de quantidade e qualidade, com o fim de prevenir, mediar e pacificar conflitos. Outro fator importantíssimo para a celeridade da jurisdição é a informatização e virtualização dos tribunais, tendo como vantagem a otimização das rotinas cartorárias e administrativas. O processo virtual é o objetivo a ser atingido, mas isto deve ser feito com segurança e prudência. Recentemente foi editada a Lei nº 11.419/2006 que, a meu sentir, terá que ser aplicada de modo gradual, eis que uma reforma desta natureza não se faz exclusivamente com a mudança legal, há que haver um prazo para sua implementação, máxime quando se sabe que no nosso país de dimensões continentais existem estados, municípios e comarcas que ainda não estão informatizados a este nível. Porém, tudo isso somente será possível quando todos os tribunais de Justiça do País tiverem efetivado a sua autonomia financeira, direito que se encontra proclamado na Lex Fundamentallis, em seu artigo 99: “Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira”. O Poder Judiciário necessita de verbas para arcar com os gastos na implementação das necessárias transformações estruturais e tecnológicas e que se apresentam tão abrangentes. Neste tópico não poderia deixar de ressaltar o exemplo pioneiro e positivo do nosso Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, uma vez que, se na atualidade é considerado um dos tribunais mais céleres do país, isso somente foi possível com a efetivação da sua autonomia financeira, através da criação do Fundo Especial do Tribunal de Justiça (FETJ), que transferiu a taxa judiciária e o percentual incidente sobre os atos extrajudiciais praticados por serventias oficializadas e privatizadas para o Poder Judiciário. Nestes 20 anos desta “Nova Ordem Constitucional” a prestação jurisdicional, e, em particular, aquela prestada pelas Justiças Estaduais, passou por profundas alterações na tentativa de estar em consonância com as constantes evoluções sociais. Sinto que estamos conseguindo realizar, na medida do possível e com relativo sucesso, nossa função social precípua: a pacificação social. No entanto, muito ainda há a ser feito para alcançamos o equilíbrio social ideal. 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 61


A Constituição Federal e o setor elétrico brasileiro

Jerson Kelman Diretor-Geral da Aneel Membro do Conselho Editorial

Luiz Antonio R. Veras Especialista em Regulação da Aneel

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Introdução o completar 20 anos, a despeito do expressivo número de emendas, a Constituição Federal de 1988 ainda é fonte de debates, principalmente naquilo que não conseguiu transformar em realidade. Até a presente data, foram 56 emendas à Constituição. Todavia, no que se refere ao setor elétrico, prevalece a essência do texto constitucional original, promulgado em 1988. Desde então, o setor sofreu importantes alterações no seu arranjo institucional, passando de um modelo essencialmente estatal para um parcialmente competitivo, com razoável capacidade de atração do capital privado para promover a sua expansão, ao contrário do verificado em outros setores, como, por exemplo, o do saneamento básico. Dos potenciais de energia hidráulica Ao tratar da organização do Estado brasileiro, a Constituição Federal, no seu art. 20, VIII, preceitua que os potenciais de energia hidráulica são bens da União. O mesmo artigo, em seu §1º, assegura participação no resultado da exploração de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica ou compensação financeira por essa exploração aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, bem como a órgãos da administração direta da União. Desde 1997 até 2008 (parcial), por força do comando previsto no art. 20, §1º da CF/88, o setor elétrico transferiu recursos da ordem de R$ 12 bilhões, a 62 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

título de royalties e compensação financeira. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) gerencia o sistema de arrecadação e de distribuição dos recursos entre os beneficiários. Tendo a regularidade por característica, o sistema, além de constituir importante fonte de receita para muitos municípios, serve de exemplo de encargo bem sucedido, instituído pela Constituição de 1988, que beneficia as áreas de educação, saúde e segurança. Ao tratar dos potenciais energéticos, o legislador constituinte não descuidou das comunidades indígenas. Assim, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas ficaram condicionados à prévia autorização do Legislativo. Conforme preceitua o art. 49, XVI , da CF/88, é da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar tal exploração.


Para efeito de exploração ou aproveitamento, os potenciais n° 652/03). A limitação da área do lago tem por efeito mitigar de energia hidráulica constituem propriedade distinta da o impacto sócio-ambiental (menor relação de área alagada do solo e pertencem à União. O art. 176 da CF/88 foi claro por mW). Geralmente situadas em rios de pequeno e médio ao atribuir à União a propriedade dos potenciais de energia porte, dependem de autorização da Aneel (art. 26, I, Lei nº hidráulica. Significa que o proprietário de imóvel no qual existe 9.427/96 ) e representam uma alternativa viável por estarem determinado potencial hidráulico não tem domínio sobre mais próximas do mercado das regiões Sudeste e Sul do país. ele, por ser propriedade do Poder Público federal, que poderá Em operação existem 310 PCHs, totalizando mais de 2.000 autorizar ou conceder a sua exploração. O § 3º do art. 176 prevê a mW, pouco mais de 2% da potência instalada no país. Outras hipótese de cessão ou transferência de concessões ou autorizações 77 estão em construção, totalizando mais de 1.000 mW. Nos de pesquisa e lavra de recursos minerais e de aproveitamento de últimos anos, a concessão de novas usinas de grande porte tem potenciais de energia hidráulica, desde que com prévia anuência escasseado, principalmente devido à dificuldade na obtenção do Poder concedente. No caso dos potenciais de energia das licenças ambientais. Em contrapartida, existe uma expressiva hidráulica, tal competência é exercida pela Aneel (art. 3º, XIII, atividade para projetar e obter autorizações para novas PCHs. Lei nº 9.427/96). Posteriormente, o caput do art. 27 da Lei nº Atualmente (setembro de 2008), há manifestações de interesse 8.987/95, veio dispor que: junto a Aneel para a construção de mais de 700 PCHs. Dessas, “Art. 27. A transferência de concessão ou do controle apenas 66 apresentam projetos básicos em condições de análise societário da concessionária sem prévia anuência do pela equipe técnica. Poder concedente implicará a caducidade da concessão.” Em 2003, o Procurador-Geral da República argüiu a Do aproveitamento hidrelétrico de potência superior inconstitucionalidade do art. 27 da Lei nº 8.987/95 (ADIn a 30 mW nº 2.946), sob a alegação de que “formaliza a transferência da A implantação de usinas com potência instalada maior que concessão e da permissão do serviço público sem prévia licitação, 30 mW ou até 30 mW, que não se enquadram na condição de quando o artigo 175 da Constituição Federal preconiza sua PCH, é objeto de concessão, mediante licitação, por força de obrigatoriedade”. A respeito da impugnação, a Advocacia-Geral disposição constitucional (art. 21, XII, “b”, CF/88). Registreda União (AGU) assim se manifestou: se que, apesar da Constituição Federal definir que os potenciais “Por fim, observa-se que o próprio texto constitucional, de energia hidráulica são de propriedade da União, não quando trata acerca da pesquisa e lavra de recursos acarretou óbice ao desenvolvimento dos projetos hidrelétricos. minerais e aproveitamento dos potenciais de energia Atualmente, o Brasil possui 1.750 empreendimentos em hidráulica, prevê, no art. 176, a possibilidade da cessão operação, com capacidade superior a 100.000 mW de ou transferência da concessão ou autorizações, desde potência. Para os próximos anos está prevista uma adição de que com prévia anuência do Poder concedente. mais de 7.000 mW na capacidade de geração proveniente de Diante de todo exposto, conclui-se que o artigo 27 da 137 empreendimentos em construção. Lei nº 8.987/95 não contraria o disposto no art. 175 da Empreendimentos em Operação Empreendimentos em Operação Constituição Federal.” Potência (kW) A controvérsia permanece, pois a ADIn nº 2.946 encontraTipo Quantidade Outorgada Fiscalizada % se pendente de julgamento na Suprema Corte, onde aguarda CGH 227 119.809 119.187 0,12 EOL 16 248.250 247.050 0,24 manifestação do Procurador-Geral da República, em razão da PCH 310 2.208.848 2.166.989 2,13 Lei nº 11.196/05, cujo art. 119 alterou a redação do art. 27 da SOL 1 20 20 0 Lei nº 8.987/95. UHE 159 74.572.295 75.066.931 73,89 UTE

1.035

24.654.520

21.988.616

21,64

UTN 2 2.007.000 2.007.000 1,98 Do aproveitamento hidrelétrico de potência Total 1.750 103.810.742 101.595.793 100 reduzida A porcentagem é da Potência Fiscalizada, igual a potência a partir da Empreendimentos em Operação Há uma exceção na regra geral. Conforme dispõe o art. 176, operação comercial da primeira unidade geradora. Empreendimentos em Operação Potência (kW) CGH Hidrelétrica UHE - Usina Hidrelétrica Tipo- Central Quantidade §4º, da CF/88, a exploração e aproveitamento de potencial de Potência (kW) Fiscalizada Outorgada Tipo Quantidade EOL - Central Eolielétrica UTE - Usina Termelétrica % energia renovável de capacidade reduzida independem de autoriza­ Empreendimentos em Construção Outorgada Fiscalizada % CGH 119.809 119.187 0,12 PCH - Pequena227 Central Hidrelétrica UTN - Usina Termonuclear Potência (kW) CGH 227- Central 119.187 0,12 EOL 16119.809 248.250 247.050 0,24 ção ou concessão. Assim, o aproveitamento de potencial hidráulico SOL Fotovoltaica Tipo Solar Quantidade Outorgada % EOL 16 247.050 2.166.989 0,24 PCH 310248.250 2.208.848 2,13 igual ou inferior a 1.000 kW independe de concessão ou autoriza­ CGH 12.208.848 1 848 0,01 PCH 310 SOL 202.166.989 202,13 0 ção, devendo, entretanto, ser comunicado à Agência Nacional EOL 159 2016 74.572.295 149,430 1,96 SOLde 1 20 75.066.931 0 UHE 73,89 PCH1.035 77 24.654.520 1.263.90021.988.616 16,54 21,64 UHE 159 74.572.295 75.066.931 73,89 Energia Elétrica (Aneel) para fins de registro estatístico. UTE UTE UTN entre Total

UHE 24.654.520 21 2.007.000 4.317.5002.007.000 56,49 1.035 21.988.616 21,64 UTN 2 1,98 UTE1.750 22 103.810.742 1.911.234 25,01 2 2.007.000 2.007.000 1,98 Total 101.595.793 100 Total 103.810.742 137 Fiscalizada, 7.842.912 100,00 1.750 101.595.793 100 a partir da A porcentagem é da Potência igual a potência

Do aproveitamento hidrelétrico de potência 1 mW e 30 mW A porcentagemoperação é da Potência Fiscalizada, igual a potência a partir da comercial da primeira unidade geradora. operação primeira unidade geradora. UHE - Usina Hidrelétrica CGH - da Central Hidrelétrica O aproveitamento hidrelétrico com potência superior a 1 comercial CGH - Central EOL Hidrelétrica Hidrelétrica - Central Eolielétrica UHE - UsinaUTE - Usina Termelétrica mW e igual ou inferior a 30 mW, com área do reservatório EOL - Central Eolielétrica UTE - UsinaUTN Termelétrica PCH - Pequena Central Hidrelétrica - Usina Termonuclear inferior a 3 km², é caracterizado como PCH (Resolução PCH Aneel - PequenaSOL Central Hidrelétrica UTN - Usina Termonuclear - Central Solar Fotovoltaica SOL - Central Solar Fotovoltaica

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Foto: Elza Fiúza/ABr

“Complementada via legislação ordinária (Lei nº 8.987/95), a nova disciplina dada aos serviços públicos, a partir da Constituição Federal, foi, em essência, bem sucedida, notadamente naqueles setores em que houve clareza e objetividade dos dispositivos constitucionais.”

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Da prestação dos serviços públicos Ainda que a prestação de serviços públicos seja incumbência constitucional do Poder Público, é admitida a possibilidade de prestação de serviços públicos por particulares, mediante concessão ou permissão. No caso do serviço público de energia elétrica, esta possibilidade está amparada nos artigos 21 e 175 da Constituição Federal. Apesar da permissão constitucional, a responsabilidade pela proteção dos interesses coletivos permaneceu com o Estado. O parágrafo único do art. 175 exigiu lei específica para tratar das regras aplicáveis às empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, bem como do contrato e de sua prorrogação, além das condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão. Complementada via legislação ordinária (Lei no 8.987/95), a nova disciplina dada aos serviços públicos, a partir da Constituição Federal, foi, em essência, bem sucedida, notadamente naqueles setores em que houve clareza e objetividade dos dispositivos constitucionais. Em conseqüência, o Estado se obrigou a executar as funções de planejamento, regulamentação e fiscalização das concessionárias, ensejando o surgimento das agências reguladoras, entes de Estado voltados ao exercício da regulação e fiscalização estatal, conforme previsto no art. 174 da CF/88 . Com as emendas constitucionais nos 8 e 9, ambas de 1995, as agências reguladoras foram incluídas no ordenamento jurídico constitucional brasileiro. Assim, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Agência Nacional de Petróleo (ANP) passaram a ter previsão constitucional (art. 21, XI e art. 177, § 2º, III , respectivamente). Em sintonia com o art. 174 da CF/88, a Exposição de Motivos com os fundamentos relativos à criação da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), assim registrou: “Ressaltamos que é da responsabilidade constitucional do Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, a fiscalização, o incentivo e o planejamento das ações setoriais, tendo em vista um desenvolvimento nacional equilibrado e compatibilizado com os interesses regionais. Em face dessa disposição, torna-se imperiosa uma abordagem integrada do planejamento energético, de modo a conciliar, estrategicamente, pesquisa, exploração, uso e desenvolvimento dos insumos energéticos, dentro de uma política nacional unificada e ajustada às diretrizes de governo e às necessidades do país. Trata-se, também, de garantir credibilidade, representatividade e transparência às ações envolvidas nesses processos.” Com a criação da EPE, o Poder Executivo visou o desen­ volvimento de estudos de planejamento integrado dos recursos energéticos, não só para a energia elétrica, mas também para os demais energéticos, como petróleo, gás natural e biomassa. Competência material da União Prescreve o art. 21, XII, “b”, da CF/88 que é da União a competência material para explorar, diretamente ou por terceiros (autorização, concessão ou permissão), os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos


de água. Neste último, em articulação com os estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos. Competência legislativa da União No art. 22, inciso IV, a Constituição Federal atribui à União competência privativa para legislar sobre energia, espaço que abriga a energia elétrica. O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.729, bem ilustra a competência legislativa da União preceituada no art. 22 da CF/88. O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente a ADIn em questão, na qual o Executivo do Estado de São Paulo questionava a expressão “energia elétrica” contida no caput do art. 1º da Lei Estadual nº 11.260/02, de iniciativa da Assembléia Legislativa. A norma proibia o corte no fornecimento de energia elétrica, água e gás canalizado por falta de pagamento, sem prévio comunicado ao usuário. O ministro Gilmar Mendes, relator da ação, declarou: “O Supremo possui firme entendimento no sentido da impossibilidade de interferência do estado-membro nas relações jurídico-contratuais entre Poder concedente federal e as empresas concessionárias, especificamente no que tange a alterações das condições estipuladas em contrato de concessão de serviços públicos sob regime federal, mediante a edição de leis estaduais.” Certamente, a firmeza de interpretação da Suprema Corte decorreu da clareza das disposições constitucionais, em particular do art. 22, IV, que confere à União competência exclusiva para legislar sobre a matéria energia, aí incluída a elétrica.

Foto: Marcio Guaranys

Encargos e tributos A parcela que engloba tributos e encargos tem peso expressivo nas tarifas de energia elétrica. A alíquota e o método de apuração do PIS-COFINS mudaram e diversos estados revisaram a alíquota do ICMS. Ademais, considerando a decisão do STF no sentido de que os recolhimentos realizados ao PIS e à COFINS devem compor a base tributária, confirmando a forma de cálculo (por dentro) praticada pelos estados, temos, por exemplo, que uma alíquota de 25% de ICMS equivale, na prática, a 33%, e, uma de 30% a 43%. No sentido inverso, o que é pago de ICMS é agregado à base de cálculo de PIS e COFINS, constituindo um movimento circular e multiplicativo – uma espécie de vórtice arrecadatório – que drena as economias do consumidor. Tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional no 233/08, que busca simplificar o sistema tributário federal, criando o Imposto sobre o Valor Adicionado Federal (IVA-F). Sem adentrar no mérito da iniciativa, o legislador, ao promover a reforma tributária, deve atentar para a natureza essencial da energia elétrica, insumo fundamental para o crescimento econômico do país, e evitar o risco de elevação da carga tributária do setor elétrico, onerando ainda mais os consumidores. As operações com energia elétrica, em razão da sua essencialidade, deveriam ter alíquotas reduzidas para o ICMS. Porém, na prática, o que ocorre atualmente é exatamente o oposto. Espera-se que a PEC no 233/08, não venha a agravar tal situação. Os demais encargos que recaem sobre os consumidores de

“As operações com energia elétrica, em razão da sua essencialidade, deveriam ter alíquotas reduzidas para o ICMS. Porém, na prática, o que ocorre atualmente é exatamente o oposto. Espera-se que a PEC nº 233/08, não venha a agravar tal situação.”

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energia elétrica não têm origem constitucional, pois resultam da vontade do legislador ordinário e são utilizados para subsidiar: a) a geração térmica nos sistemas isolados da Amazônia Legal, que tem crescido devido à elevação de consumo – principalmente em Manaus –, e ao preço do petróleo; b) a ampliação da oferta de energia de fontes alternativas, a promoção da universalização da energia elétrica e a tarifa social para os consumidores de baixa renda; c) a provisão de recursos para reversão e/ou encampação dos serviços públicos de energia elétrica e para financiar a sua expansão e melhoria; d) a compensação financeira distribuída aos municípios e estados afetados pela implantação de usinas hidroelétricas; e) a diversificação da matriz energética (eólica, bioeletricidade e pequenas centrais hidroelétricas – PROINFA); f) a receita para o custeio das atividades da Aneel; g) o custo incorrido para manter a confiabilidade e a estabilidade do sistema elétrico para o atendimento do consumo; h) custeio das atividades do ONS; i) a geração térmica a carvão na região Sul; j) as pesquisas científicas e tecnológicas relacionadas à eletricidade e ao uso sustentável dos recursos naturais; e k) as térmicas “emergenciais” que foram contratadas por ocasião do racionamento de 2001. Quando analisado isoladamente, cada encargo ou tributo criado por lei pode ser plenamente justificado. Entretanto, quando somados, constata-se que a conta pode estar ultrapassando a capacidade de pagamento do consumidor. Encargos Setoriais - R$ milhões

CCC - Conta de Consumo de Combustível CDE - Conta de Desenvolvimento Energético RGR - Reserva Global de Reversão CFURH - Compensação Financeira pelo Uso de Recursos Hídricos PROINFA

Judicialização das decisões regulatórias – Taxa de Fiscalização de Serviços de Energia Elétrica A TFSEE estabilidade do quadro regulatório pressupõe o fiel cumprimento das deregras dodojogo, não só por parte da Agência ESS - Encargos Serviços Sistema Reguladora, mas também por parte dos agentes regulados. Tão ONS - Operador Nacional do Sistema melhor será o ambiente sob regulação quanto maior a credibilidade 
 da entidade reguladora. Certamente, tal credibilidade decorre não só da capacidade de mitigação de conflitos, mas, principalmente, da sua capacidade de fazer valer as obrigações a que se vinculam os agentes do setor sob regulação, de modo a preservar o interesse público. As normas e regras regulatórias nem sempre correspondem às expectativas dos agentes em razão das múltiplas escolhas técnicas possíveis. Todavia, a inexistência de “solução única” não deveria servir de estímulo aos agentes para a excessiva judicialização das matérias administrativas. 66 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

Lamentavelmente, no caso do setor elétrico, verifica-se o aumento das decisões liminares da Justiça, fato que reaviva o risco da inadimplência setorial, que foi custosamente banido das relações intra-setoriais. O seu recrudescimento não atende aos interesses do país e provoca sérios prejuízos à economia pública, pois a deficiência dos fluxos financeiros impede a boa prestação dos serviços e atinge, em última instância, à toda coletividade. A impugnação dos cálculos tarifários e o questionamento das opções metodológicas, bem como dos critérios técnicos adotados, comprometem a discricionariedade técnica, fundamento de validade das normas expedidas pela Agência. Daí decorre preocupante insegurança jurídica, que aumenta a percepção do chamado “risco regulatório”. Como efeito colateral, as concessionárias deixam de ter previsibilidade de seus níveis tarifários, elemento essencial para uma política de investimentos. Por outro lado, a percepção de risco diminui o interesse na prestação do serviço e, conseqüentemente, as empresas demandam maior remuneração do capital. Ao final, os consumidores pagam a conta, por meio de tarifas mais elevadas. Como as decisões das agências reguladoras não podem ser revistas ou modificadas por qualquer autoridade no âmbito administrativo, nem mesmo pelo Presidente da República, os inconformados, em geral, recorrem à Justiça. A Constituição brasi­ leira, assim como a de outros países, assegura às partes esse direito. Todavia, não é razoável esperar que todas as instâncias do Judi­ ciário conheçam, na profundidade requerida, os fatores téc­­nicos que freqüentemente geram disputas em relação às decisões. Aliás, essa é uma das razões principais para se criar agências reguladoras. Assim, ainda que o Judiciário tenha papel relevante a cumprir nessa área, o ideal seria que as suas intervenções se limitassem ao con­trole da legalidade e da razoabilidade dos atos e à garantia de respeito às normas processuais por parte das autoridades reguladoras. Não se trata de usurpar a função jurisdicional, principalmente em respeito à nossa tradição e ao princípio da proteção judiciária, insculpido no art. 5º, XXXV, da CF/88. Contudo, não é descabi­ do reconhecer que o Judiciário, dificilmente conseguirá superar o desafio de solucionar, de forma célere e eficaz, os conflitos de na­ tureza cada vez mais complexa gerados pela dinâmica dos setores regulados. Além disso, muitas das questões envolvidas requerem decisões rápidas, sob risco de prejuízos elevados para as partes. Por outro lado, a possibilidade de uso excessivo de medidas liminares de primeira instância contra as decisões das autoridades regulado­ ras poderá restringir a efetividade da ação reguladora do Estado. Uma solução razoável seria ampliar a competência originária dos tribunais regionais federais. A proposta requer emenda constitucional, de modo a atribuir aos tribunais regionais federais competência para processar e julgar, originariamente, as ações judiciais propostas contra atos e decisões de autoridade reguladora de atividade econômica ou de serviço público mediante autorização, concessão ou permissão. Uma alternativa seria a criação de varas especializadas em Direito Regulatório, no âmbito da Justiça Federal, para a apreciação dos feitos que envolvam atos praticados pelas agências reguladoras ou matérias sujeitas à sua competência, nos termos do disposto no art. 96, I, “d”, da Constituição Federal.


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ADVOCACIA PÚBLICA AUTONOMIA NECESSÁRIA

Ronald Bicca Presidente da Associação Nacional dos Procuradores de Estado

A

Advocacia Pública encontra-se em processo de construção e quanto maior for a demora para o término de tal ajuste, mais a sociedade brasileira será onerada em não conviver com instituições confiáveis, pois, na forma atual, não se encontram protegidas por um efetivo controle de legalidade, a não ser que seja por vontade política isolada. Tal deficiência no controle de legalidade tem como conseqüência uma inadequação, na prática, do Estado brasileiro com as leis vigentes. São palavras duras as anteriores, mas infelizmente verdadeiras, pois as instituições têm que possuir os instrumentos para funcionarem de forma ideal por força normativa, não devendo ficar a mercê da boa vontade de governantes que se alternam no poder. No caso, é função da Advocacia Pública fazer um controle eficaz de legalidade, não simplesmente observar regras formais e burocráticas que somente servem para ludibriar e, por muitas vezes, chancelar práticas ilícitas, travestindo-as de jurídicas, em setores e lugares que possíveis governantes mal intencionados não têm o devido comprometimento com a causa do interesse público. Explicamos: não há atuação estatal fora da ordem jurídica. Qualquer ação fora desse campo não é lícita nem política, muito menos jurídica, tendo que, dessa forma, ser repelida. E quem detém a atribuição constitucional de fazer o controle da legalidade, ou seja, o serviço de consultoria jurídica estatal? Respondemos: os advogados públicos, que a fazem com exclusividade por imposição constitucional! Todavia, para melhor justificar as afirmações acima – que para alguns que preferem a forma ao conteúdo podem parecer 68 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

deselegantes fora de um contexto específico –, faremos uma breve digressão visando demonstrar em que estado estamos e onde as opções legislativas de se fortalecer ou não as instituições da Advocacia Pública nos levarão. Sem intenção de sermos cansativos, em breve síntese, abordaremos rapidamente um importante aspecto histórico, por ser de fundamental importância para entendermos a questão sob deslinde. Todavia, no caso, vamos somente dar uma pequena pincelada nesta abordagem, pois não cabe neste momento explicar as funções do Procurador da Coroa ou outros institutos do Direito colonial ou imperial. Sabemos que até a Proclamação da República era o Ministério Público que fazia a função da Advocacia Pública. Após tal movimento militar, houve muitas idas e vindas no que tange à Advocacia de Estado, principalmente com a existência de uma clara distinção entre as funções do Ministério Público Federal e as dos estados, no que refere, principalmente, à função da defesa dos interesses da unidade federada em juízo. Somente após o Brasil ter se transformado em República Federativa, é que se entendeu por bem que o Ministério Público Estadual não mais faria a representação judicial (Pontes de Miranda diz que os advogados públicos não representam, mas presentam) da unidade federada (não podemos nos esquecer que no Império éramos um Estado unitário, não vivíamos em uma Federação onde os estados são autônomos para se organizarem), entretanto, o Ministério Público Federal somente deixou de fazê-la após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Dessa forma, após a promulgação da Constituição de


Foto: Arquivo Pessoal

1988, necessitou-se, o que de fato ocorreu, da criação de uma nova instituição que fizesse a representação judicial da União em juízo, pois a Procuradoria-Geral da República não mais tinha essa importante atribuição. Em face disso, foi instituída a Advocacia-Geral da União mediante a edição do artigo 131 em tal diploma. Na esteira de tal entendimento – no qual ao Ministério Público Federal não cabia representar (ou presentar) a União em juízo, criando-se, conforme já mencionamos, a AdvocaciaGeral da União –, pensou-se por bem que o constituinte, da mesma forma, deveria resolver a questão de forma clara nos estados, sendo então constitucionalizada a carreira de Procurador do Estado na forma constante do novel artigo 132 da mesma Constituição. Vale ressaltar que, de fato, a grande maioria dos estados já possuía suas respectivas Procuradorias-Gerais de Estado, todavia, não havia tal obrigatoriedade constitucional no sentido de ser privativo aos procuradores estaduais o exercício da representação judicial dos estados e a realização de suas consultorias jurídicas. Aliás, até hoje, nem mesmo tal questão chegou a bom termo, pois, apesar da maioria dos estados terem como procuradores-gerais membros da classe de Procurador, há ainda alguns que insistem na prática inconstitucional de nomear pessoas estranhas à carreira. Nem adianta se alegar uma simetria com a Advocacia-Geral da União, pois no caso desta há previsão constitucional do provimento do Ministro não ser necessariamente das carreiras de Advogado Público federal, todavia, tal exceção não consta do artigo 132 que trata da carreira de Procurador do Estado.

Ora, dado o fato de haver previsão constitucional que o ministro da AGU não precisa ser da carreira, é claro que se o texto constitucional não quisesse que os PGEs não fossem da carreira, também teria excepcionado tal cargo da mesma forma que fez com a Advocacia Pública federal. A interpretação constitucional não pode fugir ao bom senso e o óbvio é o coroamento dessa forma de se analisar o conteúdo do texto. Ademais, visto que o Procurador-Geral do Estado recebe citações e pratica atos em nome do Estado em juízo, como poderá ser este alheio à carreira de Procurador, se o artigo 132 da Constituição Federal reza que é exclusiva atribuição dos procuradores realizarem a consultoria jurídica e a representação judicial do Estado? E mais, o texto constitucional é claro quanto aos procuradores dos estados serem organizados em carreira, sendo tais cargos providos por concurso público, portanto, resta claro que o procurador-geral não sendo da carreira não foi recrutado na forma de concurso, obviamente, muito menos pertence à carreira e, sendo assim, é terminantemente impossível que o cargo de procurador-geral seja provido por profissional alheio à classe. Contudo, somente demos uma pincelada em tal assunto de PGE de carreira, que somente é mais um aspecto da problemática. Entretanto, atualmente, a grande maioria dos estados possuem como procuradorgeral um membro da respectiva carreira, ressaltando que há uma tendência que em futuro próximo tal previsão conste na totalidade dos textos normativos dos estados. Outro aspecto importante a observar é que, apesar de na prática, a Advocacia-Geral da União e as procuradoriasgerais dos estados estarem vinculados aos respectivos Poderes Executivos, esta não foi a vontade do legislador constituinte. Tanto isto é verdade que estas instituições (não digo órgãos por opção) foram elencadas no Capítulo IV do Título IV da Carta Magna, sendo classificadas como Funções Essenciais à Justiça ao lado do Ministério Público, que já goza de diversas autonomias e garantias, sendo praticamente um novo Poder. Ora, se o constituinte quisesse que a Advocacia Pública fosse subordinada ao Poder Executivo, por que posicionar-se-ia a Advocacia Pública num capítulo alheio a tal Poder? No caso, não há mistério algum! Um exemplo simples pode elucidar esta questão. Se por acaso houver um ilícito 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 69


“E onde queremos chegar com todas estas duras afirmações e por que estamos repisando tais questões? Porque muito se diz em combate à corrupção, em Constituição, em leis e em cidadão, dentre outros temas correlatos, que soam muito idealistas, mas todos sabem que a corrupção é proveniente do Estado e a ausência de instrumentos que permitam a quem tem a atribuição constitucional de fazer o controle de legalidade do Estado é, na verdade, um incentivo a práticas ilícitas.”

praticado por membros dos Poderes Judiciário ou Legislativo no exercício de suas funções e que atinjam terceiros, que se sentirem prejudicados e processaram o Poder Público por tais condutas, quem defenderá tais entes em Juízo em decorrência disto? Respondemos novamente: é claro que será a Advocacia-Geral da União, se forem os Poderes federais, e as procuradorias-gerais, se forem Poderes estaduais. Destarte, se a Advocacia Pública representa em juízo o ente federado, que possui três Poderes, por que tal instituição deverá pertencer ao Poder Executivo? Não deve, então, os Poderes Judiciário e Legislativo, da mesma forma que o Executivo, ter o direito de tal representação judicial? Ora, não reza o artigo 2º da CF que a República Federativa do Brasil possui três Poderes independentes e harmônicos entre si? Dessa forma, a subordinação da Advocacia Pública ao Executivo atenta até mesmo contra a independência dos Poderes, por isso, exige-se ser autônoma e desvinculada de qualquer um destes, sendo somente uma função essencial à Justiça a serviço do ente como um todo e da população, sob pena de ilegitimidade e parcialidade. Para exemplificar novamente, vejamos outra aberração hipotética: imaginem um Presidente de Tribunal ter interesse em interpor um mandado de segurança na defesa de seus interesses em face do Executivo e não poder acionar 70 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

a Advocacia Pública para defender-se de atos ilegais. É bom frisar que a criação da Procuradoria de Tribunal de Justiça é totalmente inconstitucional. Destarte, o critério de legalidade deve ser feito por uma instituição autônoma que deverá acionar o Judiciário na defesa da ordem jurídica, não por vontade ou autorização do Chefe do Poder Executivo, sob pena de inferiorizar os outros Poderes da unidade federada. Dizendo de forma clara: tal subordinação da Advocacia Pública ao Executivo é ainda totalmente inconstitucional por outros motivos, v.g., diz o texto constitucional que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. E, se por acaso os outros dois Poderes sentirem-se lesados, quiserem buscar o Judiciário e houver uma negativa por parte do Chefe do Executivo? Ninguém poderá socorrêlos, pois somente aos advogados públicos, subordinados ao Executivo, é dada a representação judicial do ente! Enfim, poderíamos elencar diversos outros conflitos de interesse que se delineiam devido a uma errônea interpretação do papel do Advogado Público, mas fugiríamos do escopo do presente texto. Voltando ao ponto da promulgação da Constituição de 1988, quando da nova formatação da Advocacia Pública no texto, podemos afirmar que apesar do avanço da previsão da exclusividade da representação da unidade federada em juízo,


houve um grande lapso na feitura de tal Carta. No caso, à Advocacia Pública foi deferida a importante atribuição da representação judicial da unidade federada, entretanto, apesar das respectivas carreiras terem sido constitucionalizadas, esqueceu-se o constituinte de deferir expressamente as garantias correspondentes que permitiriam aos advogados públicos exercerem na plenitude, com independência e sem subordinação, uma efetiva consultoria jurídica dos entes. Talvez, era tão óbvio que uma função que adviria do Ministério Público necessitaria das mesmas prerrogativas, que nem seria necessário frisar tal questão. Ora, não precisamos nos esforçar muito para concluir que é impossível se fazer controle de baixo para cima, ou seja, como poderá um Advogado Público fazer um efetivo e rígido controle de legalidade sendo subordinado a diversas hierarquias, inclusive com a possibilidade concreta de ser subordinado a possíveis beneficiários das ilegalidades? É claro que na prática não poderá, pois não se pode controlar quem manda em si, o senso comum demonstra, não precisamos, então, tecer elucubrações cerebrinas. E onde queremos chegar com todas estas duras afirmações e por que estamos repisando tais questões? Porque muito se diz em combate à corrupção, em Constituição, em leis e em cidadão, dentre outros temas correlatos, que soam muito idealistas, mas todos sabem que a corrupção é proveniente do Estado e a ausência de instrumentos que permitam a quem tem a atribuição constitucional de fazer o controle de legalidade do Estado é, na verdade, um incentivo a práticas ilícitas. Não há que se falar em cidadania sem um Estado pautado na ordem legal, sendo tais gritos por moralidade somente uma palavra de ordem, ou seja, simplesmente um slogan vazio para alimentar a demagogia. O irônico é que assistimos a muitas carreiras, que inclusive fazem duros discursos contra a corrupção, mas lutam bravamente contra qualquer fortalecimento da Advocacia Pública, por medo de serem ofuscadas em seus interesses corporativos e vencimentais. É impossível se combater a corrupção sem se dar instrumentos efetivos e sem as autonomias devidas à Advocacia Pública, pois a consultoria jurídica, que é a forma preventiva de se combater a corrupção, é a melhor maneira de se impedir que os recursos saiam na forma de locupletamento dos cofres públicos. A experiência já nos demonstrou que depois do dinheiro desviado não adianta reprimir, pois é cediço que, após o recurso sair do erário, dificilmente é recuperado. Pode até se prender o agente, todavia, o dinheiro nunca mais retornará, e o Estado ainda será onerado com gastos no sistema penitenciário. No caso, frise-se que, apesar de entendermos que a Advocacia Pública já possui, por vontade do legislador, sua autonomia, pelo fato de ser função essencial à Justiça, não adianta tê-la sem os instrumentos para exercê-la. Por isso, a Anape vem lutando bravamente pela aprovação de tal conquista que será uma vitória para a sociedade brasileira. Tivemos diversos avanços, fomos constitucionalizados em 1988, fomos fortalecidos pela Emenda nº 19, que tratou

sobre a Reforma Administrativa, e quase tivemos aprovada nossa autonomia na Reforma do Judiciário. Entretanto, forças políticas nocivas, que vivem às custas do locupletamento e dos vícios políticos tão conhecidos de nosso Brasil, uniramse no último instante e derrubaram essa inovação que seria revolucionária para trazer o país para um efetivo Estado Democrático de Direito, vivendo dentro de uma sólida ordem jurídica. Uma mudança de mentalidade é necessária em muitos governantes que não entendem que o Estado não os pertence, nem fora dado para si em uso no decorrer de seus mandatos, e, muito menos que, a Advocacia Pública é um escritório de advocacia privada para atender a seus interesses. Esta é, sim, uma instituição permanente do Estado, uma Função Essencial à Justiça e que deve servir aos interesses da sociedade. Todos os dias a Advocacia Pública sofre ataques na forma da tentativa de sua subordinação ou enfraquecimento. O motivo é óbvio, somente ataca-se o erário público enfraquecendo-se o sistema imunológico do Estado, que no caso é a Advocacia Pública, pois esta é quem faz o controle da legalidade dos atos estatais. Nesta tentativa, já tivemos normas que procuravam repassar a cobrança da dívida ativa para os bancos, que tentaram terceirizar o serviço jurídico, que deferiam atribuições aos procuradores de comissionados, etc. Verdadeiras aberrações, disfarçadas de normas de toda a espécie, por parte de maus governantes que desejam simplesmente capturar o Estado para servir à interesses privados em detrimento do interesse geral. Ademais, há ainda muitos maus advogados que com o fim do processo inflacionário e das farras tributárias que os tornaram milionários, procuraram dirigir seus interesses nada republicanos para abocanhar o rico mercado da Advocacia de Estado. Nem conseguimos imaginar qual o resultado, se escritórios de advocacia, que sabem que podem perder seus contratos a qualquer momento, tomassem conta das negociações de dívidas tributárias e transações em processos milionários que envolvam o Estado. Vale ressaltar que a Anape interpôs as devidas ações judiciais em face de todas estas tentativas e obteve êxito em sua totalidade, pois a máfé de quem deseja o enfraquecimento do Estado em juízo é tão cristalino, que é imediatamente rechaçado pelo Poder Judiciário. Enfim, teríamos muito mais a dizer, pois tal assunto é muito vasto e provocante, todavia, devido ao valioso espaço nas publicações, resumo que é impossível se fazer um efetivo combate à corrupção sem se deferir as devidas autonomias à Advocacia Pública, que só então poderia se estruturar devidamente, vindo a exercer na plenitude suas atribuições constitucionais de se fazer um efetivo e rigoroso controle da legalidade dos atos da Administração pública, na forma preventiva e repressiva (via ação civil pública e outros instrumentos) na defesa do erário, que é efetivamente patrimônio de todo o povo brasileiro. Dessa forma, urgem tais mudanças legislativas, pois cada vez que o processo é adiado, mais o Estado brasileiro é espoliado. Autonomia já! 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 71


Os 20 anos de dualismo da “Constituição Coragem” Paulo Skaf Presidente da Federação e do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp/Ciesp)

Foto: Roosewelt Pinheiro/ABr

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aniversário de 20 anos da Constituição de 1988, principal marco institucional do processo de redemocratização do país, remete-nos a uma profunda reflexão sobre os seus paradoxos, pois é, ao mesmo tempo, redentora política e uma das responsáveis pelo elevado “custo Brasil”. A despeito de seu anacronismo no tocante à economia, é inegável o avançado teor de seus dispositivos referentes à liberdade e à garantia dos preceitos democráticos e dos direitos individuais e coletivos. Prova disto foram as eleições que se seguiram à sua promulgação, como o pleito municipal de 2008. O exercício do voto, garantido pela Carta Magna, tem sido um positivo exemplo da consolidação da democracia brasileira. Mais do que isso, coloca-se como inexpugnável guardião da normalidade institucional. A legitimidade do processo constituinte, em 2007, e de sua promulgação, em 5 de outubro de 1988, tem sido a fiadora das prerrogativas democráticas nas mais duras provas, como o impeachment de um Presidente da República, crises econômicas graves, e casos lamentáveis de corrupção. Os vícios da República, expostos em carne viva pela liberdade de imprensa, também consagrada no conteúdo constitucional, já não são capazes de abalar os alicerces do Estado de Direito e tampouco de ameaçar os fundamentos do regime político desencadeado pela campanha das “Diretas Já”, em 1984. Todas essas considerações são essenciais para se fazer justiça ao significado da Constituição de 88 e referendar as conquistas que ela representa para os brasileiros no campo dos direitos humanos, políticos, individuais e coletivos. Este é um arcabouço legal a ser preservado e cultuado por todos. No entanto, ainda é preciso converter liberdade política e pluralismo em desenvolvimento. Assim, urge rever, como tanto se falou e se reivindicou nesses vinte anos, os dispositivos constitucionais inimigos do crescimento econômico e inadequados à realidade nacional e internacional do século XXI. O nosso sistema democrático já conseguiu dar uma


“O Brasil já esperou 20 anos pelas reformas estruturais, dentre elas a tributária. Portanto, não pode perder mais uma oportunidade de melhorar seu anacrônico, burocrático, ineficiente e oneroso sistema de impostos.” resposta satisfatória à inflação e, apesar dos juros ainda muito altos, ao fomento do crédito, fundamental no contexto das economias de mercado. Também avançou no tocante ao contingenciamento da dívida externa e acumulação de reserva cambial como jamais tivéramos, fatores que nos tornam menos suscetíveis a crises internacionais como o presente crash financeiro urdido na orgia das hipotecas imobiliárias dos Estados Unidos. É preciso reconhecer, no entanto, que o exercício da liberdade política ainda não encontrou solução capaz de empreender o crescimento sustentado da economia e o efetivo desenvolvimento brasileiro. É este o principal desafio persistente, com direta congruência e analogia com a Constituição de 88. Como se sabe, são muitos os dispositivos da Carta, incluindo princípios regulamentados e/ou convertidos em leis ordinárias, com impacto direto no “custo Brasil”. Dentre eles, podemos citar leis trabalhistas na contramão da economia contemporânea e negativas para empresas e trabalhadores. Outro item grave é a estrutura previdenciária, uma bomba de efeito retardado, que irá tornar-se cada vez mais explosiva à medida que for aumentando a proporção de idosos na estrutura demográfica. Alguns países enriqueceram antes de envelhecer. O Brasil, a despeito dos inegáveis avanços, está envelhecendo antes de se tornar rico. Entretanto, dentre todos os princípios vinculados à Constituição de 88, o de maior impacto no “custo Brasil” é a questão dos impostos, a começar pela prerrogativa da União, estados e municípios poderem legislar de modo livre e autônomo na criação de tributos e taxas a serem pagos pela sociedade. Desse modo, é imprescindível a reforma tributária. Nesse sentido, o projeto do Executivo sobre o tema, em trâmite no Congresso Nacional, precisa ser aperfeiçoado (e muito!) e aprovado com agilidade. Infelizmente, parece que não assistiremos a isso em 2008. Já seriam avanços importantes a simplificação dos tributos, desburocratização e desoneração. Estes são os pontos mínimos que defenderemos, com ênfase na redução das alíquotas,

alongamento dos prazos de recolhimento e fim da guerra fiscal. Esses seriam consistentes passos para que o sistema tributário brasileiro deixasse de ser repressor e se tornasse indutor do crescimento do PIB. Até meados do ano, a conjuntura era muito propícia para caminharmos nessa direção, considerando que nossa economia estava muito aquecida, com boas perspectivas e acabara de conquistar o grau de investment grade. Agora, continuamos com boas perspectivas, apesar do agravamento da crise internacional, mas, também devido a essa ameaça que se abate sobre a civilização, o Brasil necessita reordenar com urgência o seu sistema tributário. Assim, mais do que nunca, deputados federais e senadores precisam contemplar o desenvolvimento nacional, conciliando a agenda política com a votação e aprimoramento da reforma tributária. É imprescindível muito foco e bom senso na discussão do projeto do governo, pois não se trata de algo simples. Estamos diante de um tema gerador de conflitos e que envolve interesses dos estados, municípios e União. Entretanto, é fundamental que todas as instituições e seus representantes atendam ao bem maior do País, que é remover obstáculos aos sistemas produtivos e à prosperidade. O Brasil já esperou 20 anos pelas reformas estruturais, dentre elas a tributária. Portanto, não pode perder mais uma oportunidade de melhorar seu anacrônico, burocrático, ineficiente e oneroso sistema de impostos. Nossa carga é muito alta, em torno de 37% do PIB, contra 22% da Argentina e 20% de outros vizinhos latino-americanos. O ideal seria criar um mecanismo capaz de limitar sua expansão, uma espécie de “gatilho”, que repassasse de imediato à sociedade qualquer aumento de arrecadação, por meio da queda de alíquotas e maiores prazos de recolhimento. Outro aspecto a ser considerado é a transparência dos impostos cobrados. É primordial entender que a Constituição de 88 teve o teor possível naquele momento de alta ebulição política, no qual todos os segmentos da sociedade, ramos de atividade, empresas, trabalhadores e minorias reivindicavam a expressão de seus direitos no conteúdo constitucional. Não havia como negá-los, inclusive na forma exagerada como se apresentaram alguns, após um período superior a duas décadas de um regime de exceção. Por isto mesmo, as disposições transitórias, sabiamente inseridas na Carta, facilitaram as reformas: num prazo de cinco anos após a promulgação, as emendas poderiam ser aprovadas em turno único e por maioria simples. Perdeu-se tal oportunidade de extinguir o dualismo e conferir plena coerência à Carta Magna. Agora, como se sabe, a aprovação de emendas institucionais exige maioria absoluta e votação em dois turnos na Câmara dos Deputados e no Senado. Entretanto, por maiores que sejam as dificuldades, é preciso realizar essa tarefa, vencendo todos os obstáculos políticos que a têm postergado ao longo de vinte anos. Por isso, talvez a melhor e mais oportuna memória a ser resgatada neste momento é o gesto de Ulysses Guimarães, deputado e presidente da Assembléia Constituinte e da Câmara dos Deputados, ao erguer um livro verde e amarelo, naquele inesquecível 5 de outubro, e o denominar de “Constituição Coragem”. 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 73


O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E A PROBLEMÁTICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO SISTEMA CARCERÁRIO

Jorge Antonio Maurique Juiz Federal do TRF-4ª Região Membro do CNJ

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Introdução

presente artigo busca abordar o problema da superpopulação e da precariedade das casas prisionais no Brasil, suas origens e situação atual, à luz da Constituição Federal de 1988. O enfoque parte da visão de planejamento estratégico do Poder Judiciário brasileiro, missão constitucional do Conselho Nacional de Justiça, consagrada pela reforma do Poder Judiciário, com o advento da Emenda Constitucional n° 45/2004. Longe de apontar soluções “mágicas” ou imediatistas, este trabalho visa a analisar – a partir de casos concretos, tanto na seara administrativa, como no campo jurisprudencial – onde estão localizados os gargalos que ainda prendem o sistema prisional dentro da incapacidade estatal de geri-lo (ou administrá-lo). Origens sociológicas do problema prisional O problema de fundo da questão prisional concerne, em verdade, à notória incapacidade do Estado em gerir de modo adequado a execução penal. As razões sociológicas são inúmeras para tentar explicar os motivos pelos quais dificilmente políticas de execução penal pautam de modo prioritário as agendas dos governos. A origem do problema, contudo, não se encontra somente em motins, rebeliões e violações sistemáticas de direitos humanos; ela remonta à 74 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

própria noção de estrutura da sociedade, seus fins e métodos de controle social. O problema social da marginalização dos apenados progrediu para uma especialização da sociedade em confinar aquela minoria da qual buscava se defender justamente por não identificar seus valores anti-solidários no “espírito coletivo”, no “espírito do povo” ou na “consciência coletiva”. Entre as vozes que se insurgem contra esse mecanismo, estava a de Foucalt, o qual pugnava por uma reforma desse sistema punitivo de confinamento para “(...) fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade”. Inegável, todavia, submeter o controle social dos homens à tutela oficial do Estado, por meio do aprimoramento do Estado de Direito, definido pelas inter-relações de neutralidade, uniformidade e previsibilidade, sustentáculos de aplicação do poder governamental, que surge com a produção normativa e impessoal do legislador e com a aplicação dessas no caso concreto pelo seu administrador oficial – o juiz. Nesse diapasão, Habermas ressalta que “(...) o Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução, porque os direitos têm de ser implantados, porque a comunidade de direitos necessita de uma jurisdição organizada e de uma força


Foto: Paula Simas

para estabilizar a identidade, e porque a formação da vontade política cria programas que têm que ser implementados”. Situação atual: a superpopulação carcerária Introduzido historicamente o problema em suas raízes sociológicas, mister analisar o resultado na questão prisional atual. Não se pode ignorar a grave situação enfrentada pelas casas prisionais em todos o país. O Brasil possui atualmente uma população carcerária de 422.590 presos, conforme dados do Sistema Nacional de Informação Penitenciária, levantados em 2007 pelo Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça. Por outro lado, embora o número impressione, fato é que o problema não está adstrito apenas a países de economia emergente como o nosso: os Estados Unidos da América são freqüentemente questionados perante organizações ligadas à proteção dos Direitos Humanos acerca do tópico overincarceration (superpopulação carcerária); a ONG Human Rights Watch estimou que a população de presos em solo norte-americano já seria a maior do mundo, com cerca de 2 milhões de encarcerados em 1999. O Departamento de Justiça norte-americano, através de seu Escritório de Estatística Legal, revela que o número de prisioneiros em dezembro de 2006 alcançou a população de 2.258.983 presos.

O problema, portanto, é macro, sistêmico, mundial e complexo. Para um problema de tamanha grandeza, são necessárias soluções igualmente complexas e adotadas com suporte de um número maior de pessoas e instituições. Caso o sistema em si esteja errado, será, pois, necessário revê-lo. Conselho Nacional de Justiça e o controle da execução penal O planejamento estratégico proposto pelo Conselho Nacional de Justiça em 2007, por exemplo, visa a estruturar o Sistema Integrado da População Carcerária na esfera de atuação do Poder Judiciário. A edição da Resolução nº 33/CNJ, a qual dispõe sobre a criação do mencionado Sistema, é motivada principalmente pela necessidade de conferir efetividade aos direitos da população carcerária, pelo fomento de uma tramitação célere dos processos de execução penal e pela democratização do acesso às informações jurídicas dos condenados. O sistema visa a obter uma visão ampla da situação dos apenados nacionais, orientando a tomada de ações concretas no âmbito do Poder Judiciário, além de facilitar a vigilância dos direitos dos presos, a reeducação, a inserção no mercado de trabalho, a diminuição da reincidência criminosa, além da prática de ações proativas contra a criminalidade interestadual. O Sistema Integrado da População Carcerária possibilita 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 75


Foto: Marcello Casal Jr./ABr

um tratamento individual – e não apenas coletivo – dos presidiários, propiciando melhor adequação. Na esteira do aperfeiçoamento do referido Sistema, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 47/CNJ, a qual versa sobre a inspeção nos estabelecimentos penais pelos juízes de execução criminal e permite que, desse modo, sejam colhidos os dados relevantes da população carcerária e da observância dos direitos dos presos assegurados na CF/88 e na LEP. Separação dos Poderes e políticas públicas Contudo, deve ser lembrado que não é de competência isolada do Poder Judiciário a definição das políticas públicas relativas à administração penitenciária, não podendo, ainda, imiscuir-se nos assuntos pertinentes ao Poder Executivo, sob pena de violar o princípio da separação dos Poderes (art. 2º da CF/88). A questão, é fundamentalmente de eleição de prioridades governamentais de competência do Poder Executivo, cuja efetivação possui seus mecanismos próprios no atual regime democrático. Qualquer invasão dessa competência poderia criar situação de conflito que, eventualmente, poderá redundar em usurpação dos critérios de oportunidade e conveniência privativos da Administração. É ela que detém o planejamento de curto, médio e longo prazo, na busca da melhor acomodação dos presos, não se mostrando razoável desconsiderá-los mediante tomada de medidas graves e de enorme repercussão no sistema como um todo, como ocorre no caso de uma interdição prisional. O Estado, portanto, possui limitações em seu campo de atuação. Esse limite de atuação do Estado foi conceituado na cláusula, advinda da jurisprudência constitucional alemã, 76 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

da “reserva do possível” (Vorbehalt des Möglichen). Essa doutrina foi acolhida pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião dos julgamentos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45/DF, de relatoria do e. ministro Celso de Mello, que advertiu que: “(...) a cláusula da ‘reserva do possível’ – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerarse do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. (...) Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do possível”, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração – de implantação sempre onerosa –, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuarse, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação


“Assim, na presente questão prisional, em face da inércia do Estado, há verdadeiro conflito de princípios constitucionais – i.e., os princípios da individualização da pena, da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade versus os princípios da reserva do possível e da separação dos Poderes.” popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável, ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificarse-á, como precedentemente já enfatizado – e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico –, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.” Assim, na presente questão prisional, em face da inércia do Estado, há verdadeiro conflito de princípios constitucionais – i.e., os princípios da individualização da pena, da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade versus os princípios da reserva do possível e da separação dos Poderes. Esse conflito é evidenciado pelo permanente e disseminado problema da acomodação dos presos no Brasil e da necessidade de se buscar meios racionais para melhorar tal situação, sob pena de tornar o art. 85 da LEP letra morta em sua determinação de lotação compatível dos estabelecimentos penais com as suas estruturas e finalidades. Essa compatibilidade de lotação dos presídios estaduais

foi igualmente prevista nas normas sobre presídios federais. Com a novel regulamentação da transferência e inclusão de presos em estabelecimentos penais federais de segurança máxima, consubstanciada na Lei n° 11671/2008, ressalvouse, no art. 11 e parágrafos, que a lotação máxima do estabelecimento não será ultrapassada, além do que o número de presos será, na medida do possível, mantido abaixo do limite de vagas, para disposições em casos emergenciais. Questiona-se o que será feito quando tal limite invariavelmente for superado; aliás, o que dirão os tribunais, quando julgarem os conflitos de competência entre os juízos de execução penal estaduais e federais (art. 9° do referido diploma), acerca da vedação estabelecida no mencionado dispositivo? Considerações finais Definida a natureza do ato de interdição dos estabeleci­ mentos prisionais como sendo um ato administrativo típico, ou seja, sujeito ao controle hierárquico da Administração Judiciária, seus critérios de conveniência e oportunidade, tem-se que, conforme visto, a situação de precariedade e de lotação prisional no Brasil não está adstrita a um ou outro estado da Federação. O problema, aliás, não é circunscrito ao nosso país, tomando, inclusive, a pauta de nações muito mais economicamente desenvolvidas. Compreende-se a difícil situação enfrentada pelos executores das medidas de internação e encarceramento, bem como daqueles responsáveis pela fiscalização do cumprimento das penas, de tal modo que não se exige muito esforço para prever que cada caso de interdição decretada pelo Poder Judiciário, em verdade, busca conter uma explosão de uma caldeira de conflitos sob pressão constante e diária, tanto de dentro (entre os próprios apenados), como por fora (crescente criminalidade e parcos recursos do Estado para construir mais prisões). Para identificar e mapear melhor o problema brasileiro, o Conselho Nacional de Justiça, em seu papel planejador, instituiu a Comissão Temporária de Acompanhamento do Sistema Prisional para analisar a situação dos presídios e execuções de pena em todo o território nacional, por meio de decisão tomada por seu Plenário em 13 de maio de 2008. A idéia lançada é trabalhar as políticas públicas do sistema prisional em três vertentes mais sensíveis, a saber: situação dos presos provisórios, o uso de penas alternativas e as alterações institucionais e legislativas na execução penal. Com a formalização das subcomissões temáticas, o trabalho a ser desenvolvido contará com participação de instituições e autoridades externas ao Conselho, constituindo o marco inicial do compromisso do Poder Judiciário com a melhora da situação carcerária. Hoje, comemoram-se 20 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988. Espera-se chegar o dia em que comemoraremos, também, o fim da necessidade do Poder Judiciário ter de intervir no problema prisional. 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 77


OS SUCESSIVOS RECORDES DE ARRECADAÇÃO TRIBUTÁRIA ANALISADOS À LUZ DOS 20 ANOS DA Constituição federal Leonardo Pietro Antonelli Professor da Emerj e Uerj

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onvidado pela Emarf para falar sobre a nova proposta de reforma constitucional do Governo Federal, ou seja, a futura 16ª Emenda Constitucional em matéria tributária, inevitavelmente, surgiu-me a seguinte indagação: para que reformar, mais uma vez, a Constituição? Certamente não é para arrecadar mais. O Brasil vem batendo recordes de arrecadação, tanto é assim que, pós Constituição de 88, esses números foram subindo vertiginosamente. Iniciaram com 22% do PIB e, hoje, atingem a 38% (carga tributária), ou seja, um crescimento de 72%. Este é o fiel retrato do que foi arrecadado nos últimos 20 anos. Malgrado o crescimento notório da economia brasileira, indaga-se: quais seriam os motivos, sob o ponto de vista consti­ tucional, que acarretaram esse incremento da arrecadação? ARRECADAÇÃO TRIBUTÁRIA É UM SUCESSO Evolução da Carga Tributária

EM 20 ANOS DE CFRB – SALTO DE 72%

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Sinteticamente temos, de um lado, as sucessivas correções legislativas da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). Do outro, a febre no sistema tributário brasileiro das “contributizações”. Explico. Das correções legislativas da jurisprudência A chamada correção legislativa da jurisprudência ocorre quando o Congresso reage e modifica, conscientemente, uma interpretação judicial. Nesse caso, a atividade do legislador implica no “radical repúdio à interpretação judicial, pela edição de norma intencionalmente contrastante com a jurisprudência e na retificação da norma anterior, que, por ambigüidade ou falta de clareza, tenha levado o Judiciário a adotar interpretação incompatível com os pressupostos doutrinários da matéria”. Prima facie, pode parecer que a atividade do Congresso acarreta no controle ativo de um Poder do Estado sobre o outro. Para Canotilho, trata-se de combinação de Poderes. Para A. Hamilton, J. Jay e J. Madison, autores de “O Federalista”, um verdadeiro sistema de pesos e contrapesos. O fato é que tivemos 56 emendas constitucionais, das quais 15 em matéria tributária, muitas promulgadas como instrumento que visa unicamente ao interesse fiscalista do Estado. Para não me alongar, separei quatro notórios exemplos onde havia decisões unânimes do Supremo Tribunal Federal (STF), reconhecendo as inconstitucionalidades: a) da progressividade do IPTU/IPVA; b) do ICMS de pessoas físicas e jurídicas não contribuintes na importação; c) da taxa de iluminação pública cobrada dos proprietários de imóveis, inespecífica e indivisível. O que fez o legislador constituinte derivado? Editou as


“Contributizações” Neste 20º ano de CRFB, constata-se que as contribuições arrecadam muito mais do que os impostos federais. A COFINS, por exemplo, arrecada mais que o Imposto sobre a Renda Federal, todavia com uma grande vantagem para a União, a qual não necessita partilhá-la com estados e municípios, tal como é obrigada a fazer em relação a este imposto, por força da disposição constitucional de repartição das receitas tributárias (CRFB, art. 157, ss). Fica fácil, entendermos o porquê dessa febre de contribuições. A citada COFINS um dia já foi 0,5% do faturamento das empresas, sendo majorada sucessivas vezes (para 1%; 1,2%, 2%, 3%). Hoje, a alíquota é de 7,6%, todavia, sobre o total das receitas, independentemente da classificação contábil, com a adoção de um esdrúxulo regime cumulativo e não-cumulativo em que a própria Receita Federal do Brasil, dependendo da região fiscal que se consulte, esposa entendimentos divergentes sobre o que pode ser creditado da etapa anterior. Maior perplexidade é causada, d.v., quando analisamos a jurisprudência construída no Supremo Tribunal Federal (STF), acerca dessa espécie tributária tupiniquim, desconhecida das legislações alienígenas. Primeiro, foi chancelado pelo Guardião da Constituição, a ilegal e imoral “tredestinação”, ou seja, o desvio da arrecadação de determinada contribuição para finalidade diversa daquela que ela foi criada não afasta a sua exigibilidade, mas, tãosomente, acarreta na possível punição do administrador público! A derradeira, pululam instituições de contribuições de intervenção no domínio econômico, que ficam, ano após ano, contingenciadas para fazer frente ao superávit primário. Um exemplo clássico dessa distorção é a contribuição FUST devida ao Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, cujo objetivo é dar acesso aos cidadãos localizados em áreas que não há viabilidade econômica para as operadoras. Um verdadeiro subsídio legal. Pois bem, o leitor, certamente titular de linha telefônica, paga mensalmente a contribuição FUST incluída na sua conta. Constitucionalmente deveria servir para intervir na economia, propiciando a acessibilidade; todavia, existem bilhões de

Foto: Arquivo Pessoal

emendas constitucionais n° 29 (IPTU), n° 33 (ICMS), n° 39 (CIP) e n° 42 (IPVA), tornando constitucional, doravante, tais incidências tributárias, apesar de inexistir jurisprudência contraditória, incompleta ou contrastante com os princípios gerais do Direito. Aumentou-se a arrecadação. Sobre o tema, reporto-me ao artigo “O Limite das Reformas Constitucionais em Matéria Tributária”, (Princípios de Direito Financeiro e Tributário – Estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres, páginas 691-718, Editora Renovar, 2006), em que pude enfrentar a orientação jurisprudencial brasileira, de que somente se declara inconstitucional uma norma se ela ofender uma cláusula pétrea (ADIn nº 939).

reais contingenciados – aliás, desde que foi criada. O pior é que, segundo essa mesma jurisprudência, a legitimidade para suspender a exigibilidade ou requerer o ressarcimento é da operadora de telefonia, posto ser ela a contribuinte. Registre-se que na seara das contribuições se observa essa perversa fixação do contribuinte nas grandes empresas (v.g., em relação aos combustíveis, na Petrobras), dificultando, quando não impossibilitando, o acesso ao Judiciário daquele que suporta o ônus tributário. Conclusões Lamentavelmente, no Direito brasileiro, a doutrina ficou presa, em grande parte, aos princípios formais do Estado de Direito, maxime a legalidade, preocupando-se casuisticamente com questões meramente formais. Sou daqueles que luta para um dia ver julgados em que a interpretação extensiva seja utilizada na sua plenitude, da forma como o eminente autor português Jorge Miranda defende: seja afastada a exigibilidade de contribuições cujos recursos são desviados ou represados há vários anos; sejam exterminados os fundos de combate a alguma coisa social que desvincula receitas carimbadas, distorcendo o orçamento e, por fim, a não aplicação de leis legitimadas por emendas constitucionais casuísticas, anti-sistêmicas, fiscalistas, mesmo que por meio da interpretação conforme, sem redução de texto. 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 79


A Constituição de 1988 e os direitos políticos

Pedro Simon Senador da República

Foto: Valter Campanato/ABr

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enso que a Constituição de 1988 – promulgada por um dos mais destacados brasileiros de todos os tempos, o meu amigo Ulysses Guimarães –, representou um passo formidável para o fortalecimento e consolidação das instituições democráticas no Brasil. Ao final de uma ditadura que durou vinte anos, marcada

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por sistemáticos golpes contra a democracia, a Nação estava ansiosa pela volta à legalidade. Por isso, ganhou tanto espaço nos debates daquela época a defesa dos direitos políticos. Os brasileiros ansiavam por uma cidadania plena. Creio que é bom esboçar aqui um rápido quadro do que foram os anos que vão de 1964 a 1985, quando com a eleição de Tancredo Neves encerramos o ciclo que teve início com o golpe militar de 1964. Sistematicamente, ao longo desse tempo, os governos militares lançaram mãos de incontáveis expedientes “jurídicos” para se manter no poder, para encurralar ou eliminar os adversários e para calar quem ousava erguer a voz. Eram os famosos casuísmos, inventados a cada eleição, a cada vitória da oposição. O mais destacado desses episódios foi o envio pelo Governo ao Congresso do famoso “pacote de abril” de 1977, um conjunto de leis outorgado em 13 de abril pelo então Presidente da República do Brasil, Ernesto Geisel, que, dentre outras medidas, fechou temporariamente o Congresso Nacional. Este “pacote” era constituído por uma emenda constitucional e seis decretos-leis que alteravam em profundidade as futuras eleições. Determinava o “pacote” que um terço dos senadores não mais seriam eleitos por voto direto, mas sim indicados pelo Presidente da República. Surgiam então os “senadores biônicos”, que acabariam dando ao Regime Militar um maior apoio no Congresso Nacional. Outra medida do “pacote” estabelecia a extensão do mandato presidencial de cinco para seis anos, a manutenção de eleições indiretas para governador e


a diminuição da representação dos estados mais populosos no Congresso Nacional. Assim, metade das vagas para o Senado, que em 1978 renovou dois terços de seus integrantes, foi preenchida por votação indireta através de um Colégio Eleitoral reunido nas respectivas Assembléias Legislativas. Portanto, em 1998 o nosso sistema político estava no chão, destruído. Naquele ano, começaram os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, que fora uma das principais bandeiras da oposição ao longo da ditadura. Penso que, num texto destinado à revista de Direito, o mais indicado é que se faça, ao tratar da Constituinte, um mergulho mais profunda na História. O conceito de governo do povo, expresso, literalmente, pela palavra democracia, foi inicialmente institucionalizado na Grécia antiga, onde se estabeleceu a essência do princípio democrático, com a participação popular na deliberação dos assuntos afetos àquela sociedade. Essas ações constituíram, de fato, os primórdios daquilo que entendemos hoje como atividade política: formação de lideranças, articulações entre líderes, confronto de idéias e objetivos. Segundo Bobbio, a verdadeira consolidação do que chamamos de atividade política, e, por conseqüência, seus direitos e deveres, adveio com a Constituição americana aliada aos princípios fundamentais da igualdade, da liberdade e da fraternidade adotados na Revolução Francesa, em 1789. No Brasil a criação de nossa democracia têm sido um

enorme e lento desafio, com idas e vindas, avanços e retrocessos em sua institucionalização. Rigorosamente, podemos falar com certa convicção, quer seja por oportunidades históricas, seja pelos sucessivos estados de exceção por que passamos, que este amadurecimento e esta busca de nossa emancipação democrática veio somente com a Constituição Cidadã de 1988. Na verdade, alguns de seus mandamentos, principalmente no que se refere à fixação dos chamados direitos políticos, em muitos casos resgataram dispositivos que em certa época já haviam sido objeto de normatização. Talvez, a conjectura que nos leva a crer que a Carta de 88 realmente é inovadora, baseia-se no fato de neste diploma haver uma “amarração jurídica” coerente, que em seu conjunto, enumera e organiza todo o conceitual do chamado Direito Político. Por exemplo, a nossa primeira Constituição, de 1824 – outorgada pelo Imperador –, concentrou muitos poderes nas mãos do Poder Imperial ou, eufemisticamente, Poder Mode­ rador, dando-lhe plenos poderes de intervir nos outros Po­ deres Montesquianos. Contudo, já vislumbrava-se na Carta Magna as primeiras garantias dos direitos civis, políticos e até humanos. Em 1891, surgiu a primeira Constituição Republicana, de nítida identificação com a Constituição americana. Lá, já constam dispositivos, entre outros, que regulam a forma federativa da União, a forma e o sistema de governo (República Presidencialista). Manteve aqueles poucos direitos políticos e civis consagrados na Constituição Imperial e, timidamente, os ampliou, para permitir a uma parcela da sociedade apenas, o voto direto para deputados, senadores, presidente e vicepresidente da república. A Constituição de 34, chamada de “Constituição social”, que veio após a revolução constitucionalista de 1932, teve pouca participação popular. Mas, mesmo assim, esta Carta ampliou os direitos individuais e foi inovadora ao introduzir os direitos sociais, notadamente centrada na pro­ teção ao trabalhador. No aspecto político, esta Norma Maior significou muito para as mulheres, na medida em que insti­ tuiu o voto feminino. Como já havíamos observado antes, nossa história constitucional é cíclica em alguns aspectos. No caso do período de 37 a 46, nosso país viveu a “ditadura de Vargas”. A Constituição do “Estado Novo”, de 1937, foi um completo retrocesso. Toda espécie de direitos e garantias já consagrados foram suprimidos. Nossa tenra democracia deu um largo passo para o passado. Felizmente, veio a Constituição democrática de 46, onde as liberdades políticas e os direitos humanos foram reconquistados e ampliados. Como exemplo de direitos ampliados, temos a proibição do trabalho noturno a menores de 18 anos, a institucionalização do direito de greve e o fortalecimento da Federação. Quase 20 anos depois, veio o golpe de 1964, o mais grave movimento de retrocesso em nossa construção de uma democracia. Novamente, os direitos humanos e as liberdades são suprimidos. Em vez de Cartas Constitucionais, nosso 2008 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 81


“Sem a sociedade organizada participando das questões estatais, há sempre o risco de que regimes autoritários surjam e ocorram retrocessos nos direitos conquistados.”

ordenamento jurídico passa a ser regulado pelos abomináveis atos institucionais com punições e arbitrariedades, tendo no AI-5 a expressão máxima do terror e do medo provocado pela ditadura militar. A tortura, a ausência de liberdade, as perseguições e assassinatos políticos marcaram este período. Com uma desfaçatez incomensurável, os agentes do regime autoritário deram suporte legal à ilegalidade dos AIs, via “Constituição de 1967” e sua sucessora, na verdade uma grande emenda substitutiva, a “Constituição de 1969”, que incorporou as aberrações e arbitrariedades dos atos institucionais. Finalmente, chegamos à Constituição de 1988 que institui o Estado Democrático de Direito destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social. Estabelece ainda, o fortalecimento da Federação, formada pela união indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal, declara seus princípios fundamentais e afirma a soberania popular. Além de instituir como novo paradigma, aí sim uma grande novidade, a democracia participativa. Todo cidadão, inclusive os analfabetos, possui direitos políticos garantidos na Constituição Federal de 1988. O principal direito político e o mais exercido por todos é o direito de votar e ser votado. Mas a participação da população não se limita ao voto para a escolha de seus representantes no Poder Executivo e no Poder Legislativo. Estão previstos no artigo 14 da Constituição Federal, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, também como direitos políticos. “Art. 14 – A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: 82 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2008

I – Plebiscito; II – Referendo; III - Iniciativa Popular.” Estes direitos políticos foram regulamentados apenas dez anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, com a publicação da Lei nº 9.709 de 18 de novembro de 1998. O plebiscito é a consulta inicial ao cidadão, sobre como deve o Poder Legislativo agir em relação a determinado assunto. A iniciativa popular também foi regulamentada na Lei nº 9.709/98, e já deu bons frutos legais. Se o significado de democracia é governo do povo, sem a garantia de participação da população não existe democracia de fato. Sem a sociedade organizada participando das questões estatais, há sempre o risco de que regimes autoritários surjam e ocorram retrocessos nos direitos conquistados. Nessa perspectiva, a Constituição Federal de 1988, ao incorporar os direitos humanos e a democracia plena em nosso país, impôs ao Legislativo a regulamentação de tais direitos e o incentivo de uma participação cada vez maior dos cidadãos e cidadãs. Além destas inovações atinentes aos cidadãos, cumpre observar os avanços na liberdade e na legitimação das representações políticas. É esse anelo que cria o quadro de estabilidade institucional, que antes não existia, pois, ou não havia a sustentação legal, ou as prerrogativas e a segurança das garantias dos direitos políticos estavam dispersas no arcabouço legal. É com este intuito que a partir de 1988 os vários setores da sociedade organizada pressionam e colaboram na elaboração e aprovação das legislações complementares, com o objetivo de regulamentar e aprofundar os direitos humanos, os direitos sociais e a democracia participativa.


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