Revista Justiça & Cidadania

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Edição 155 • Julho 2013


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Justiรงa & Cidadania | Julho 2013


S umário Foto: Andre Correa/Agência Senado

Capa

10 “Ninguém me pauta” 6

Editorial – Justiça ou descrédito?

44

Os Tribunais de Contas e a lei eleitoral

8

Constituinte exclusiva?!

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20

Testemunho da História

Os contratos eletrônicos no âmbito do Direito do Consumidor

22

Legislação trabalhista do Brasil

48

“Caloura Chica da Silva”: a Lei 10.639/2003 e a questão do racismo

26

O CNJ não pode surtar

52

Acumulação de cargos públicos

28

Interpretação da Lei de Anistia

57

32

Cidadania fiscal e Direito Financeiro

Dom Quixote – Uma guerra que se vence com a prevenção

36

Vá de ônibus!

62

O último a errar

40

Saco cheio

64

Em Foco – Cartilha do MTE explica as diretrizes do Plansat

43

A judicialização da saúde no Brasil Foto: SCO/STF

Foto: Fecomercio

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Para esclarecer o óbvio

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IAB – Guardião do melhor pensamento jurídico do país


Edição 155 • Julho de 2013 • Capa: Andre Correa/Agência Senado

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Ano II - nº 4 - Outubro 2007

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2013 Julho | Justiรงa & Cidadania 5


E ditorial

Justiça ou descrédito?

O

Judiciário atravessa hoje, no bojo da instituição republicana que vivencia, uma delicada situação decorrente dos reflexos e injunções demandadas pelas sentenças proferidas no julgamento do “Mensalão”. A expectativa do julgamento dos embargos infringentes pelo Plenário do Supremo, aceitando ou não a rejeição, como proferida pelo presidente da Corte, Ministro Joaquim Barbosa, gera a expectativa de uma crise de grandes proporções, cujas consequências, se acolhido o pedido, redundará na perda do colossal conceito e grandioso prestígio alcançado pelo Judiciário perante a Nação. No dia 13 de maio passado, o ministro Joaquim Barbosa rejeitou o embargo considerado infringente apresentado pela defesa do ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares, condenado a mais de oito anos de prisão. Na sua defesa, Delúbio pleiteava novo julgamento com base no argumento de que a condenação pelo crime de formação de quadrilha foi decidida contra o voto de quatro ministros. Para o ministro Joaquim Barbosa, aceitar os embargos infringentes no referido processo seria gesto “gracioso, inventivo, ad hoc, magnânimo”, mas absolutamente “ilegal”. A definição do ministro Joaquim Barbosa abre dura discussão que o “STF terá de enfrentar nos dias vindouros quando o assunto for levado ao Plenário”. Ainda segundo Joaquim Barbosa, a legislação que rege os processos no STF deixou de prever a existência de embargos infringentes: “Não estando os embargos infringentes no rol dos recursos penais previstos na Lei 8.038/90, que regula taxativa e inteiramente a competência recursal desta Corte, não há como tal recurso ser admitido”. Em seguida, o ministro denunciou a evidente intenção dos recursos que possuem como objetivo apenas “eternizar o feito” e advertiu que, caso a defesa obtenha êxito, a Justiça Brasileira cairá em um inevitável descrédito perante o povo brasileiro. Essa reversão será lamentável e irá destruir o prestígio da Suprema Corte com relação à renovada fé nacional que a Ação Penal 470 promoveu, para gáudio e ganho de conceituação da justiça perante a população, 6

que passou a acreditar na aplicação da lei contra a classe política corrupta, desclassificada e desmoralizada. A questão dos embargos infringentes, que vem sendo defendida pelos defensores dos réus, deveria ter sido analisada desde a Constituição de 1988, e, posteriormente, na Lei 8.038/90 para evitar tais brechas escapatórias. Mas, devido a essa falha, continua constando no regimento interno. Baseados nisso, juristas entendem que os “embargos infringentes” devem ser acatados pelo Supremo. Entretanto, as já conhecidas opiniões e posições exaradas pelos eminentes ministros da alta Corte de Justiça brasileira, deixam antever que o resultado do julgamento da Ação 470 pende pela confirmação das penalidades aplicadas e conhecidas. Sobre a controvérsia formada e divulgada sobre os recursos apresentados pelas defesas dos condenados, foi de extrema importância a contribuição ao exame da Ação Penal 470, prestado pela ex-ministra e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Ellen Gracie Northflleet, ao afirmar em recente solenidade no Instituto dos Advogados Brasileiros: Os embargos infringentes por meio dos quais se pretende o rejulgamento da Ação Penal 470, são letra morta no Regimento Interno do Supremo. Documento histórico abordado com temor reverencial, o Regimento Interno do Supremo não pode ser lido como um documento contemporâneo. Os ilustres defensores cumprem seu papel em insistir na “sobrevivência” de dispositivos caducos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, mas é importante que se esclareça à opinião pública por quê eles não tem mais aplicação.

A perda da tranquilidade que a questão infunde é a dúvida que o ministro Joaquim Barbosa passa à sociedade, que se queda perplexa com a postergação do julgamento e a expectativa da evidente impunidade. Acresce ainda o espetáculo deprimente patrocinado através da campanha soez e abusiva com a divulgação do repto acintoso dos condenados liderados por José Dirceu, e, infelizmente, com apoio público de ONGs desconsideradas e organizações

Justiça & Cidadania | Julho 2013


Foto: Sandra Fado

político-sindicais, culminando inclusive e absurdamente pelo inusitado uso espúrio e indevido da ABI, patrocinada pelo empedernido estalinista Maurício Azêdo, esperneando e jogando, como presidente, o prestígio e conceito da entidade contra o Poder Judiciário e os ministros do Supremo Tribunal Federal, como denunciamos e apontamos em editorial anterior. Raras vezes houve demonstrações e manifestações da sociedade e da opinião pública como ocorre agora, desde a denúncia formulada pelo então Procurador da República Antonio Fernando de Souza, acolitado pelo seu digno sucessor Roberto Gurgel do Amaral, que promoveu a extraordinária peça acusatória, repleta de provas contundentes e indícios irrefutáveis, acolhida pelo eminente ministro Joaquim Barbosa, que, como Relator, esmiuçou o processo contendo 50.000 páginas e apontou os crimes públicos e as incríveis bandalheiras perpetradas sob a sombra e o escudo de membros da cúpula do governo. Nunca antes aflorou dentro do próprio governo, um grupo de indivíduos tão desqualificados para afrontar as instituições da República – que foram usadas em benefício do partido governista para alimentar a corrupção no Legislativo e em todas as áreas do Executivo –, locupletandose com as verbas da saúde, cuja falta é evidente nos hospitais, por ausência de leitos, de remédios e de assistência médica; no ensino, com a falta de escolas e a irregularidade no fornecimento da merenda escolar; e, ainda, deixando completamente abandonados dezoito milhões de brasileiros que se encontram no nordeste, sofrendo miseravelmente com a mais terrível seca de todos os tempos, desassistidos da ação do governo e entregues à própria desdita, neste Brasil desafortunado de bons políticos. As oportunas preocupações do eminente presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, deixa-nos um laivo de tristeza e amargor com a possibilidade de que venha a ocorrer qualquer modificação que, justificada ou não pelo Plenário do STF, venha trazer no seu bojo pequena parte que seja de modificação das sentenças aplicadas aos corruptos políticos, propiciando no ânimo e na esperança da sociedade o desencanto do alto prestígio e conceituação alcançados pela Justiça. Espera-se, com fundados desejos, que a justiça seja feita e a população possa comemorar uníssona o primado do direito e da lei, assegurado por uma Nação cuja Constituição garante, defende e aplica os princípios da ética, dignidade e moralidade pública.

O clamor popular e o ronco das ruas contra a corrupção e os políticos, demonstrados nas passeatas do Movimento do Passe Livre, trouxeram, sem sombra de dúvidas, uma forte e expressiva pressão a favor da confirmação das penas dos réus já condenados na Ação Penal 470, cujo resultado, alicerçado pelas provas levadas ao processo, assim como pelas bem fundamentadas rejeições dos inaplicáveis embargos infringentes, por certo terá plena e total aceitação no Supremo Tribunal Federal. A decisão que vier a ocorrer na finalização do julgamento do Mensalão, seja qual for – alvissareira, como se espera ou tristemente melancólica –, representará uma sentença a ser cumprida sem reparo e discussão. Oxalá a expectativa esperançosa da Nação, como expressivamente demonstrado nas ruas, não venha a ser frustrada com a ausência de sentenças justas, devidas e apropriadas, aplicáveis em razão de como as indignidades e os malefícios dos fatos ocorridos estão a exigir, para que a ética e a moralidade pública venham a prevalecer contra a corrupção desbragada que, infelizmente, ainda continua a grassar no País.

Orpheu Santos Salles Editor

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Constituinte exclusiva?! J. Bernardo Cabral

ão é de agora que há numerosas declarações sobre a convocação de uma Constituinte restrita ou Mini-Constituinte, etc... No entanto, hoje é a própria presidente Dilma Rousseff que vem de propor um amplo debate sobre a convocação de um plebiscito para fazer uma reforma política “ampla e profunda” via Constituinte exclusiva. Quero, de logo, me insurgir contra qualquer proposta nesse sentido – com o respeito que os seus defensores merecem – eis que não vive o país sob o signo de uma ruptura político-institucional. Não é necessário fazer em retroação mais longínqua no tempo. Basta 1964. Qual a semelhança entre o Brasil de hoje e o daquele ano? No primeiro semestre de 1964, sob os impulsos de um movimento popular, fruto ou não de equívoco, as Forças Armadas, com o apoio, manipulado ou não, de significativa parcela da classe política (parlamentares, governadores e prefeitos), destituíram o Presidente da República e operaram lesões na ordem político-institucional vigente, através dos chamados atos institucionais. Após um período de convivência da Constituição de 1946 com os atos institucionais, o Congresso Nacional foi chamado a institucionalizar o quadro jurídico resultante, através da elaboração da nova Constituição, que foi promulgada a 24 de janeiro de 1967 e entrou em vigor a 15 de março do mesmo ano. Durou pouco e, no curto espaço de tempo de sua vigência, ouviram-se as primeiras vozes em favor da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, ideia que, informalmente, foi defendida, desde abril de 1964, pelo saudoso Senador pela Bahia, Aluísio de Carvalho Filho. A ideia não prosperou, uma vez que a 13 de dezembro de 1968 o estamento militar impôs ao Presidente da República a edição de ato institucional de no 5, que promoveu a completa ruptura político-institucional. Eis aí o motivo forte de então para a convocação da Assembleia Nacional Constituinte: a imperiosa saída da 8

Foto: Ana Wander Bastos

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Presidente do Conselho Editorial Consultor da CNC

excepcionalidade institucional para a plenitude do Estado de Direito. Como pois, no momento atual pretender alguém negar a existência de um tempo de liberdade e da plenitude do Estado de Direito? É o que me leva a adotar opinião contrária ao chamado novo pacto constituinte. Ademais, a doutrina consiste em ver a Constituição como lei fundamental, onde se resguardam, acima e à margem das lutas de grupos e tendências, alguns poucos princípios básicos, que uma vez incorporados ao seu texto tornam-se indiscutíveis e insuscetíveis de novo acordo e nova decisão. Como não é todos os dias que uma comunidade política adota um novo sistema constitucional ou assume um novo destino, cumpre extrair da Constituição tudo o que permite a sua virtualidade, ao invés de, a todo instante, modificar-lhe o texto, a reboque de interesses meramente circunstanciais.

Justiça & Cidadania | Julho 2013


Para esclarecer o óbvio Ives Gandra da Silva Martins

Membro do Conselho Editorial Professor emérito das universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE

Foto: Fecomercio

A

meu ver, não haveria necessidade de um projeto de emenda constitucional para assegurar aos delegados de polícia a exclusividade para presidir os inquéritos policiais. Já a têm na CF, pois o § 4o do artigo 144 está assim redigido: § 4o - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

O Ministério Público não é polícia judiciária; tem o direito de requisitar às autoridades policiais diligências investigatórias (art. 129, inciso VIII), assim como a instauração de inquérito policial aos delegados, que, todavia, serão aqueles que os instaurarão. O exercício do controle externo da atividade policial (inciso VII do artigo 130), de rigor, é controle semelhante ao que exerce sobre todos os poderes públicos (inciso II), para que não haja desvios de conduta. Não há que confundir a relevante função de defesa da sociedade e de zelar pelo bom funcionamento das instituições, com aquela de dirigir um inquérito, que é função exclusiva da “polícia judiciária”. À evidência, com o direito de requisição, o MP pode pedir aos delegados todas as investigações de que precisar, como também o tem o advogado de defesa, que se coloca no inquérito judicial no mesmo plano do MP. Não sem razão, o constituinte definiu a advocacia e o Ministério Público como “funções essenciais à administração de Justiça” (arts. 127 a 135). O direito de defesa, a ser exercido pelo advogado, é o mais sagrado direito de uma democracia, direito este inexistente nas ditaduras. Não sem razão, também, o constituinte colocou no inciso LV do art. 5o, como cláusula pétrea, que aos acusados é assegurada a “ampla defesa administrativa e judicial”, sendo o adjetivo “ampla” de uma densidade vocabular inquestionável. Permitir ao MP que seja, no inquérito policial, parte (acusação) e juiz (condutor da investigação) ao mesmo tempo, é reduzir a “ampla defesa” constitucional a sua

expressão nenhuma, de vez que, na dúvida, o MP deve acusar. Se o magistrado, na dúvida, deve absolver (in dubio pro reo), o MP, na dúvida, deve acusar para ver se durante o processo as suas suspeitas são consistentes. Pelo texto constitucional, portanto, não haveria necessidade de um projeto para explicar o que já está na Constituição. Como, todavia, nos últimos tempos, houve invasões nas competências próprias dos delegados, é que se propôs um projeto de emenda constitucional para que o óbvio ficasse “incontestavelmente óbvio”. Eis porque juristas da expressão do presidente do TJ de São Paulo, Ivan Sartori; do presidente do Conselho de Ética da República, Américo Lacombe; de Márcio Tomás Bastos, Vicente Greco Filho, José Afonso da Silva, José Roberto Batocchio, Luiz Flávio D’Urso e Marcos da Costa colocaram-se a favor da PEC-37. Com todo o respeito aos eminentes membros do “Parquet”, parece-me que deveriam concentrar-se nas suas relevantes funções, que já não são poucas, nem pequenas. Uma última observação. Num debate de nível, como o que se coloca a respeito da matéria, não me parece que agiu bem o MP quando intitulou a PEC 37 de “PEC da corrupção e da impunidade”, como se todos os membros do MP fossem incorruptíveis e todos os delegados corruptos. Argumento desta natureza não engrandece a Instituição, visto que a Constituição lhe outorgou função essencial, particularmente necessária ao equilíbrio dos poderes, como o tem a Advocacia e o Poder Judiciário, em cujo tripé se fundamenta o ideal de justiça, na república brasileira.

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C apa, da Editoria

“Ninguém me pauta”

A

bem recebida nomeação do professor Luís Roberto Barroso, ilustre membro de nosso Conselho Editorial, para compor a Corte do Supremo Tribunal Federal, agradou a gregos e troianos. Sua designação era aguardada desde o governo de Fernando Henrique, quando seu nome surgiu como um dos mais conceituados e dignos juristas sugeridos para participar do excelso Tribunal. As declarações feitas à imprensa e as respostas dadas aos senadores que o sabatinaram na Comissão de Constituição e Justiça, no Senado Federal, reafirmaram a aprimorada cultura jurídica e humanista do consagrado jurista, aprovado no Plenário por 59 votos dos senadores presentes. São oportunas e vale transcrever algumas das importantes e definidas respostas e declarações dadas pelo Ministro Roberto Barroso durante a sabatina: Aborto de fetos anencéfalos: “Se o feto depende do corpo da mãe, e a mãe, no exercício de sua autonomia, não deseja levar a gestação a termo, obrigá-la a fazê-lo seria instrumentalizá-la para um projeto de vida que não é seu, transformando-a em um meio e não um fim em si mesmo.” “Ativismo judicial”: “Onde há uma decisão política, respeita-se; onde não há uma decisão política é preciso resolver o problema e, mais do que isso, onde haja um direito fundamental e de uma minoria, o Judiciário precisa ser mais diligente.” Lei da Anistia: “Quem tem competência política é que deve decidir se a hora é de uma missão de justiça ou se a hora é de uma missão de paz”, se referindo à divergência – que para ele deve ser resolvida pelo Congresso – criada com a decisão do STF que validou a Lei da Anistia e com a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil por não punir torturadores. 10

Liberdade da Imprensa: “Acho que a melhor forma de lidar com a liberdade de expressão e com eventuais abusos da liberdade de expressão é multiplicar a liberdade de expressão, dar voz a todos, inclusive, tentar dar voz a quem não tem.” Manifestações: “Eu acho que as instituições têm o dever de levar em conta a voz das ruas e procurar atender às demandas sociais. Acho que há demanda social por reforma política, há demanda social pelo fim da corrupção e, portanto, as instituições têm que estar atentas a isso e ser capaz de dar respostas adequadas à população.” “Mensalão”: “Vou fazer o que acho certo, o que meu coração disser. Ninguém me pauta: nem governo, nem imprensa, nem opinião pública, nem acusados.” STF x Congresso: “Acho ruim para o país e para as instituições que o Supremo se transforme no terceiro tempo da disputa política do Congresso”. Em entrevista recente o Ministro Barroso apoiou a atuação do Supremo ao garantir direitos que depende­ riam, ordinariamente, de lei aprovadas pelo Congresso. Segundo Barroso, “o ativismo judicial tem sido parte da solução, e não do problema”, afirmando que “o Judiciário tem contribuído para o avanço social em momento de imobilismo do Congresso”. Entretanto, para Barroso, é preciso mudar esse cenário: “Precisamos pensar, e com urgência, uma forma de recompor o Poder Legislativo porque não há democracia sem um Poder Legislativo com credibilidade, atuante e com funcionalidade”. União homoafetiva: “As pessoas, na vida, têm direito de escolher seus projetos existenciais, sem interferir no direito de ninguém.”

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Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Ministro Luís Roberto Barroso assina o termo de posse 2013 Julho | Justiça & Cidadania 11


Foto: Carlos Humberto/SCO/STF

“Creio no bem, mesmo quando não posso vê-lo. Como uma energia positiva e crescente, que vem desde o início dos tempos. A força propulsora do processo civilizatório, que nos levou de uma época de aspereza, sacrifícios humanos e tiranias diversas à era dos direitos humanos, da democracia e da busca por dignidade humana.”

Ministro Celso de Mello e Luís Barroso durante a execução do Hino Nacional

A apresentação do Ministro Luís Roberto Barroso na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, transcrita a seguir, na íntegra, configura a sua grandeza jurídica e humanista. “Excelentíssimo Senhor Presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, Senador Vital do Rego; Excelentíssimos Senhores Senadores; Autoridades presentes, queridos amigos, colegas, senhoras e senhores: É um prazer e uma honra estar aqui e poder merecer a atenção de Vossas Excelências. Eu espero estar inspirado e, sobretudo, à altura do cargo para o qual submeto o meu nome à deliberação desta Casa. Penso ser um direito do Senado Federal e da sociedade brasileira saberem um pouco mais sobre minha trajetória, minha concepção de mundo e minha visão das instituições. Este é um momento de transparência e de prestação de contas. De modo que mais por dever do que por desejo, e certamente inibido com a exposição pública, passo a me desincumbir da tarefa, com empenho e humildade. E lembro-me agora, como me lembro sempre, da advertência 12

de Ortega y Gasset, um antídoto contra a presunção: ‘Entre o querer ser e o crer que já se é, vai a distância entre o sublime e o ridículo’. Origem e trajetória Eu nasci em Vassouras, uma adorável cidade do interior, próxima ao Rio de Janeiro. Curiosamente, três antigos Ministros do Supremo Tribunal Federal também nasceram lá: Sebastião de Lacerda (1912), Edgar Costa (1945) e Ary Franco (1956). Por isso mesmo, sempre achei que a cota da cidade estava completa e que, portanto, esta era uma aspiração que eu não deveria ter. Meus pais se formaram na antiga Faculdade Nacional de Direito, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Minha mãe foi uma das raras mulheres a se tornarem advogadas, naqueles tempos ainda patriarcais da década de 50. Em 1963, nossa família mudou-se para o Rio de Janeiro, onde meu pai prestou um concurso para promotor de justiça. Gosto de brincar que, mais do que ninguém, eu sei o que é ter o Ministério Público em casa. Fiz o ensino fundamental, então denominado curso primário, na Escola Roma, na Praça do Lido, em Copa­

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“Creio, também, na justiça, apesar de todas as circunstâncias e vicissitudes. Mesmo sabendo que ela tarda, às vezes falha e que tem uma queda pelos mais ricos. Toda sociedade precisa de um sistema adequado de preservação de direitos, imposição de deveres e distribuição de riquezas.”

cabana. Tive uma professora notável – Da. Zoraide –, cujo nome jamais esqueci. Fiz a maior parte do ensino médio, à época ginásio e científico, em uma escola pública modelo chamada Colégio Estadual Pedro Álvares Cabral, também em Copacabana. Acho, desde sempre, por experiência própria, que oferecer ensino público de qualidade, da préescola até o final do ensino médio, é a coisa mais importante que um país pode fazer por seus filhos. Formei-me em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, onde ingressei em 1976. Dividi meu tempo entre os estudos e uma intensa militância no movimento estudantil. Ao final da Faculdade, tive de fazer uma escolha entre a vida acadêmica e a política. Escolhi a academia e iniciei minha carreira de professor em 1982. Mesmo não tendo seguido carreira política, tornei-me, desde bem cedo, um observador engajado da vida nacional. Fiz graduação, doutorado e livre-docência na UERJ. Sou perenemente grato a dois professores extraordinários que tive, pessoas que iluminaram meu caminho: Jacob Dolinger e José Carlos Barbosa Moreira. Ao longo de mais de 30 anos, só estive longe da UERJ em alguns poucos períodos, por motivos acadêmicos ou profissionais. Foi

assim quando fiz o meu mestrado na Universidade de Yale, no final da década de 80, ou no tempo em que passei na Universidade de Harvard como visiting scholar. Salvo esses intervalos eventuais, nunca me ocorreu ficar mais longamente distante do Brasil. Mesmo quando as opções se ofereceram. Todos os meus afetos e sentimentos estão aqui. Eu certamente poderia dizer, parodiando Pablo Neruda: mil vezes tivera de nascer, e eu queria nascer aqui. Mil vezes tivera de morrer, e eu queria morrer aqui. Minha concepção de mundo Filosoficamente, eis o meu credo: creio no bem, na justiça e na tolerância. Creio no bem, mesmo quando não posso vê-lo. Como uma energia positiva e crescente, que vem desde o início dos tempos. A força propulsora do processo civilizatório, que nos levou de uma época de aspereza, sacrifícios humanos e tiranias diversas à era dos direitos humanos, da democracia e da busca por dignidade humana. Creio, também, na justiça, apesar de todas as circunstâncias e vicissitudes. Mesmo sabendo que ela tarda, às vezes falha e que tem uma queda pelos mais ricos. Toda sociedade

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precisa de um sistema adequado de preservação de direitos, imposição de deveres e distribuição de riquezas. E creio na tolerância. O mundo contemporâneo é marcado pelo pluralismo e pela diversidade. Diversidade racial, diversidade de orientação sexual, diversidade religiosa, diversidade política. A verdade não tem dono. Não existe uma fórmula única para a vida boa. Cada um é feliz à sua maneira. É claro que existe um núcleo essencial do bem. Nem tudo é relativo. Mas não é possível trafegar pela vida com uma mochila cheia de certezas plenas e verdades absolutas. O tempo dos dogmatismos passou. Bastar-se a si próprio, escreveu Vinicius de Moraes, é a maior solidão. O respeito e a consideração pelo outro, por aquele que é ou pensa diferente de mim, é o símbolo da tolerância, da fraternidade e da compaixão. Levar em conta o outro não significa abrir mão de si. Há um lindo verso do poeta espanhol Ramón de Campoamor que espelha essa ideia de que na vida existem múltiplos pontos do observação. Escreveu ele: En este mundo traidor Nada es verdad, ni mentira. Pues todo tiene el color Del cristal con que se mira. As coisas na vida têm a cor da lente pela qual se olha. Minha visão das instituições Considero que o constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século XX, derrotando diversos projetos alternativos e autoritários que com ele concorreram. Também referido como Estado democrático de direito, o constitucionalismo democrático é o produto da fusão de duas ideias que têm origens históricas diversas, mas se aproximaram para produzir o arranjo institucional considerado ideal no mundo contemporâneo. O constitucionalismo moderno surge com o Estado liberal – isto é, com as revoluções liberais do final do século XVII e do século XVIII – e significa Estado de direito, poder limitado, respeito aos direitos fundamentais. Democracia , por sua vez, traduz a ideia de soberania popular, governo do povo, vontade da maioria. Constitucionalismo democrático, portanto, quer dizer governo da maioria, observadas as regras do jogo democrático e os direitos fundamentais de todos, inclusive das minorias. A teoria, nessa matéria, é relativamente clara. Decisões políticas, que são a concretização do governo da maioria, devem ser tomadas pelos agentes públicos eleitos, isto é, pelo Congresso Nacional e pelo Chefe do Executivo. De outra parte, decisões jurídicas – isto é, aquelas que interpretam a Constituição e as leis – devem ser tomadas pelo Judiciário, com distanciamento crítico e imparcialidade. 14

No mundo ideal, política é política, direito é direito. São domínios diferentes. No mundo real, todavia, as fronteiras nem sempre são demarcadas de maneira nítida. E, assim, surgem tensões inevitáveis. Quando isso ocorre, é preciso critérios para equacionar a questão. Penso ser próprio aqui distinguir duas situações: a) quando tenha havido uma atuação do Legislativo ou do Executivo em relação ao tema; e b) quando não tenha havido tal atuação. A primeira situação, portanto, se dá quando o Legislativo, por exemplo, tenha deliberado acerca de determinada matéria. Por exemplo: (i) a edição de uma lei permitindo e disciplinando as pesquisas com célulastronco embrionárias; ou (ii) a edição de lei disciplinando a ação afirmativa em favor de negros. Nesses dois casos, embora exista controvérsia política, o Judiciário deve ser deferente para com as escolhas feitas pelo Legislativo. Não cabe ao Judiciário sobrepor a sua própria valoração política à dos órgãos cujos membros têm o batismo da representação popular. Situação diversa é a que ocorre quando o Legislativo não atuou, porque não pôde, não quis ou não conseguiu formar maioria. Aí haverá uma lacuna no ordenamento. Mas os problemas ocorrerão e o Judiciário terá de resolvê-los. Por exemplo: a) o Congresso não havia ainda regulado a greve no serviço público. A despeito disso, as greves ocorriam, surgiam disputas e o STF viu-se na contingência de estabelecer as regras que deveriam ser aplicadas até que o Congresso viesse a dispor a respeito. Ou b) o caso das relações homoafetivas. Elas existem. São um fato da vida, independentemente do que cada um pense a respeito. Não há lei a respeito. Pois bem: o Judiciário tem de decidir se há direito de herança, direito à pensão alimentícia, patrimônio comum. Portanto, o papel do Judiciário, quando não tenha havido deliberação política, é mais abrangente do que quando ela tenha ocorrido. Se há lei, o STF só deve invalidá-la se a afronta à Constituição for inequívoca. Se não há lei, o Judiciário não pode deixar de decidir a questão alegando omissão normativa. Nesse caso, seu poder se expande. Portanto, no fundo no fundo, quem tem o poder sobre o maior ou menor grau de judicialização é o Congresso: quando ele atua, ela diminui; e vice-versa. Conclusão É boa hora de concluir, fazendo uma síntese do que sou e penso. O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa da nossa geração. Nele se condensam as grandes promessas da modernidade: governo do povo, poder limitado, centralidade da dignidade da pessoa humana, proteção dos direitos fundamentais e – quem sabe? – até felicidade. Trata-se de uma fé racional, que ajuda a acreditar no bem e na justiça, mesmo quando não estejam ao alcance da vista.

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Foto: Jonas Pereira/Agência Senado

Ministro Luís Roberto Barroso sendo saudado pelo senador Renan Calheiros, presidente do Senado Federal

O Estado democrático de direito significa o ponto de equilíbrio entre o governo da maioria, o respeito às regras do jogo democrático e a promoção dos direitos fundamentais. Naturalmente, se em uma sala houver seis cristãos e três muçulmanos, os cristãos não podem deliberar sobre jogar os muçulmanos pela janela. A maioria pode muito, mas não pode tudo. A judicialização das relações políticas e sociais – que é inevitável em algum grau – não pode, no entanto, suprimir o espaço da política, eliminar o governo da maioria. O Judiciário não pode presumir demais de si mesmo. Na frase feliz de Gilberto Amado: ‘Querer ser mais do que se é, é ser menos’. É preciso buscar, permanentemente, o equilíbrio adequado a cada momento entre supremacia da Constituição, interpretação judicial da Constituição e processo político majoritário. A vida institucional, assim como a vida social e a vida individual de cada um, é a busca permanente de equilíbrio. E a vida é a travessia contínua de uma corda bamba. Ora se inclina um pouco para um lado, ora um pouco para o outro lado. Por vezes, o público poderá ter a ilusão de que o equilibrista está voando. Não há problema nisso. A vida

é feita de certas ilusões. Mas o equilibrista tem que saber que não está voando. Porque se ele acreditar nisso, se ele presumir ser mais do que pode ser, não haverá salvação. Ele vai cair. Um juiz da Suprema Corte, na minha visão, deve atuar do modo como a vida deve ser vivida: com valores, com determinação, com uma dose de humor e com humildade.” Em síntese, essa explanação, proferida pelo Ministro Roberto Barroso no Senado, é a base do discurso por ele declamado no jantar em homenagem à sua posse no Supremo Tribunal Federal. Por oportuno, cabe transcrever apenas a conclusão do discurso do magistrado, diferente do acima apresentado, e que reflete perfeitamente a sua crença e ideologia. Em suma: creio no bem, na justiça e na tolerância como valores filosóficos essenciais. Creio na educação, na igualdade, no trabalho e na livre-iniciativa como valores políticos fundamentais. E no constitucionalismo democrático como forma institucional ideal. Essa minha fé racional, procurarei expô-la de modo simples, claro e autêntico. Espero ser abençoado para continuar fiel a ela e a mim mesmo no Supremo Tribunal Federal.

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Foto: SCO/STJ

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IAB – Guardião do melhor pensamento jurídico do país Ellen Gracie, ministra do STF aposentada, em discurso proferido em sua posse no IAB – Instituto dos Advogados Brasileiros

Nota do editor O pronunciamento da ex-ministra e presidente do Supremo Tribunal Federal, Ellen Gracie, por ocasião de sua honrosa posse no Instituto dos Advogados Brasileiros, que publicamos a seguir, reveste-se de suma importância face ao momento presente, em que se discute a questão dos embargos infringentes no julgamento da Ação Penal 470, vulgarizada como Mensalão. A ministra Ellen Gracie esmiuça o assunto e assume, com argumentos absolutos, o mesmo posicionamento do ministro Joaquim Barbosa e de outros juristas, que entendem, diante das disposições da Constituição Federal, o não cabimento desse preceito processualista na ação em julgamento no STF.

Senhor Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, Dr. Fernando Fragoso, Ilustres integrantes da Mesa, Sras. e Srs. Membros do Instituto dos Advogados Brasileiros, Senhoras e Senhores, Sejam minhas primeiras palavras para manifestar a profunda honra com que adentro este sodalício, cuja história coincide com a própria História do Brasil, naquilo que de mais nobre e desinteressado se concebe e que consiste em contribuir para a formulação de um projeto de sociedade verdadeiramente democrática. Dedico palavras de sincero agradecimento pela acolhida neste Instituto onde tenho a alegria de encontrar tantos amigos ilustres.

E me regozijo por encontrar essa Casa, velha de quase 170 anos, na postura que lhe foi a habitual ao longo de sua existência: a de guardiã do melhor pensamento jurídico do país, sem fugir a controvérsias e apoiando o debate livre de ideias, fórmula indispensável para o progresso das instituições. Dá-nos conta desta vivacidade sempre presente o rol de pareceres com que o Instituto tem, recentemente, contribuído para o debate de temas fundamentais, em alguns deles funcionando como o verdadeiro amicus curiae, aquele que não tendo interesse direto ou indireto na solução do litígio, busca trazer à instância julgadora, com o cabedal de seu conhecimento acumulado, melhores fundamentos ao processo decisório. Temas que dizem com a higidez do tecido social, como o superendividamento de classes vulneráveis de cidadãos (Parecer 38/2012), o aperfeiçoamento da ação coletiva no âmbito do Direito do Consumidor (Parecer 37/2012), ou a alteração dos critérios de rateio do tempo de televisão para fins de propaganda eleitoral (Parecer 100/2012), dão mostra do espectro de preocupações que tem ocupado os integrantes da Casa e de como ela tem buscado contribuir para a solução dos problemas nacionais. Nem é possível que fosse de outra forma. Por essa assembleia passaram todos os grandes debates nacionais desde nossos primórdios: da questão religiosa ao abolicionismo, dos difíceis anos da consolidação republicana à ditadura de Vargas e ao Regime Militar de 1964. É este o berço criador da hoje poderosa Ordem dos Advogados do Brasil. Por tudo isso, contrita recebo ‘esta demasia da vossa benevolência’, como dizia Rui Barbosa na oração que lhes dirigiu ao assumir a cátedra presidencial desta assembleia. E de nosso maior jurista e da mesma manifestação colho a constatação da infeliz coincidência de conjuntura

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então e agora apresentada. Quando o grande tribuno em 1914 pronunciou o discurso magistral, levantavam-se vozes contra o “autoritarismo judiciário” e tramitava no Congresso projeto que pretendia subordinar as decisões do Supremo Tribunal Federal ao Senado da República, em flagrante inversão da lógica do sistema adotado a partir da Constituição de 1981. Seria de se esperar que decorrido um século de experiência republicana, organização federal e forma de governo presidencial, o país já houvesse amadurecido de tal modo as suas instituições democráticas que fosse impensável imaginar a reapresentação de propostas de semelhante teor. Lamentavelmente é o que vemos ocorrer na atualidade. Pretendem os proponentes do absurdo, tal como perorava Rui que, ‘Em vez de ser o Supremo Tribunal Federal, qual a nossa Constituição o declarou, o derradeiro árbitro da constitucionalidade dos atos do Congresso, uma das Câmaras do Congresso passaria a ser a instância de correição para as sentenças do Supremo Tribunal Federal’. Pois agora, como antes, a justificativa, o pretexto que apresentam está na suposta atuação abusiva do Supremo Tribunal Federal que, no dizer de seus detratores, avança sobre competências que seriam exclusivas do Congresso Nacional. Ora, como diria Rui, ‘Os tribunais não usam espadas. Os tribunais não dispõem do Tesouro. Os tribunais não nomeiam funcionários. Os tribunais não escolhem deputados e senadores. Os tribunais não fazem Ministros, não distribuem candidaturas, não elegem e deselegem presidentes. Os tribunais não comandam milícias, exércitos e esquadras. Desarrazoada a fixação do alvo das suscetibilidades parlamentares no Poder Judiciário. Não é ele que emperra as pautas, com a edição do sem número de Medidas Provisórias com que o país tem sido governado. Não é ele que consistentemente tem feito por aviltar a nobre prática da atividade política – que é arte do possível no tempo adequado – mediante a costura de maiorias sem denominador comum que não seja a reivindicação de benesses indevidas. ‘Ninguém aqui se importa’, como diria Rui, ‘com as ditaduras presidenciais. Ninguém se inquieta com as candidaturas caudilhescas. Ninguém se acautela, se defende, se bate contra as ditaduras do Poder Executivo. Embora o Poder Executivo, no regímen presidencial, já seja, de sua natureza, uma semiditadura, coibida e limitada muito menos pelo Corpo Legislativo, seu cúmplice habitual, do que pelos diques e freios constitucionais da justiça, embora o Poder Executivo seja o erário, o aparelho administrativo, a guarda nacional, a polícia, a tropa, a armada, o escrutínio eleitoral, a maioria parlamentar. 18

Embora nas suas mãos se reúnam o poder do dinheiro, o poder da compensação e o poder das graças’. ‘Seja ele embora, entre nós, o poder dos poderes, o grande eleitor, o grande nomeador, o grande contratador, o poder da bolsa, o poder dos negócios, e o poder da força, quanto mais poder tiver, menos lhe devemos cogitar da ditadura, atual, constante, onímoda, por todos reconhecida mas tolerada, sustentada, colaborada por todos’. Fica à consideração dos colegas a oportunidade em que tais tentativas de cerceio ao Poder Judiciário se colocam. Justamente quando, após laborioso trabalho de análise de fatos e provas, em que nenhum arranhão se alegou o sagrado direito de defesa dos acusados, o STF alcançou afinal conclusão condenatória de algumas figuras de relevo no partido que ora detém o poder. Exigem-se novos e protelatórios recursos de há muito decaídos do ordenamento vigente. Os embargos infringentes por meio dos quais se pretende o rejulgamento da Ação Penal no 470, são letra morta no Regimento Interno do Supremo. Recepcionados os dispositivos regimentais com força de lei, é curial que, por lei posterior, terão de ser alterados ou revogados. Foi o que ocorreu com a edição da Lei no 8.038/1990 que deu nova configuração ao processamento das causas de competência originária dos Tribunais Superiores e que – no que toca às ações penais originárias – por não prevê-los, tornou as decisões insuscetíveis de recursos modificativos do julgado. Posição diversa é inconsistente com a adequada valoração da eficácia presente de algumas das normas que persistem no texto do Regimento Interno, embora sejam incompatíveis com a evolução constitucional e legal do país. Documento histórico abordado com temor reverencial, o Regimento Interno do Supremo não pode ser lido como um documento contemporâneo. Muito se resiste, dentro daquela augusta Casa, a de todo reeditá-lo, e eis que persiste como colcha de retalhos, adesivado de um sem número de alertas, de referências e de emendas parciais. Como seu manuseio se faz por poucos e doutos, para ser aplicado por quem lhe dá a interpretação definitiva, vai-se deixando ficar assim, composto de parcelas vivas e outras já decaídas. É certo que, anteriormente à Constituição de 1988, era reconhecida ao Supremo Tribunal Federal a competência de editar – com força de lei – as normas de seu Regimento Interno. Muitas delas foram recepcionadas pela nova ordem constitucional, outras tantas caíram em desuso, porque com ela incompatíveis. É o caso das deliberações em sessão secreta em que sequer ao Procurador Geral da República se admitia o ingresso e que permanecem na regra do art. 245, VII. É o caso das competências que foram transferidas ao Superior Tribunal de Justiça, como a de Homologação das Sentenças Estrangeiras, objeto dos

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arts. 215 a 224, ou a Avocação de Causas, procedimento banido de nosso sistema e que ainda figura nos arts. 259 a 262, entre outros. Pois o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal regrava por igual o processamento da Ação Penal Originária que perante a Corte se desenvolvesse. Essa normativa, contida entre os arts. 230 a 246, todavia, se fez substituir pela lei nova posterior que sobre a matéria dispôs integralmente. Essa lei nova, a de no 8.038/1990, não previu recorribilidade às decisões de única instância dos tribunais superiores em matéria penal. Não o tendo feito, cai por terra, revogada nos termos do § 1o do art. 2o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, vale dizer, ‘a lei posterior revoga a anterior (...) quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior’. A norma regimental, aliás, constituía demasia extravagante ao sistema processual penal brasileiro, posto que o art. 609 do CPP ‘não se aplica às hipóteses de condenação criminal, ainda que não unânime, resultante de ação penal originária ajuizada perante os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais de Justiça dos Estados (Lei no 8.658/93), eis que os embargos infringentes somente são oponíveis a acórdão proferido em sede de apelação ou de recurso em sentido estrito. Precedentes: HC 71.949 e HC 71.951, Rel. Min. Ilmar Galvão’. É o que leciona, com maestria, o Min. Celso de Mello no HC 72.465, julgado em 5/9/95. Algumas poucas vezes o Tribunal enfrentou a tentativa de fazer reviver o recurso de Embargos Infringentes, previsto no mesmo Regimento Interno para a deliberação não unânime produzida no exercício do controle concentrado de constitucionalidade. Nestes casos, decidiu-se sempre pela irrecorribilidade das decisões, com base no disposto pelo art. 26 da Lei no 9.868/19991. No âmbito penal, os embargos infringentes tiveram aplicação para as decisões desfavoráveis ao réu, extraídas no recuso criminal ordinário ‘que era previsto para os casos referidos no art. 3072 [do Regimento Interno] do art. 129 §§ 1o e 2o, da Emenda Constitucional no 1/69, e para cujo julgamento a Corte era competente por força do art. 119, II, ‘b’, da mesma emenda’, como expôs magistralmente o Min. Moreira Alves no julgamento do Agravo Regimental nos Embargos Infringentes no Recurso Ordinário em Habeas Corpus no 79.788, julgado em 7/11/2001. E concluía aquele ilustre Ministro, ‘... ainda que se pretenda que esses embargos infringentes [os do inciso V, do art. 333], criados pelo Regimento Interno desta Corte – quando tinha ela, no sistema constitucional anterior, competência para legislar sobre o processo e o julgamento dos feitos de sua competência originária ou recursal, o que não persiste no sistema constitucional atual – continuem existentes, somente serão eles cabíveis

contra o julgamento de recurso ordinário relativo a crime político (art. 102, II, ‘b’, da Constituição de 1988), mas não contra o do recurso ordinário em habeas corpus (art. 102, II, ‘a’, da Carta Magna de 1988), recurso este que também existia na vigência da Emenda Constitucional no 1/69, mas que, nem por isso, era suscetível de ser impugnado por tais embargos”. Nos julgamentos que se procedem em instância única – resultantes da prerrogativa de foro por exercício de função de relevo político – as decisões finais são terminativas e irrecorríveis, salvo os esclarecimentos que se verifiquem necessários e que serão produzidos mediante a oposição dos Embargos de Declaração. Mutatis mutandis, retomo as palavras do Min. Moreira Alves, em seu voto no já citado RHC 79.788 EI-Agr.: ‘...são improcedentes as alegações de que o não-cabimento dos embargos infringentes contra o julgamento pelo Plenário ou pelas Turmas deste Tribunal, de recurso ordinário em habeas corpus ofende o artigo 102, II, ‘a’, da atual Constituição ou os incisos LIV e LV do artigo 5o dela. De feito, do primeiro desses dispositivos resulta, apenas, a existência de recurso ordinário em habeas corpus e não a de embargos infringentes interpo­níveis contra o julgamento dele. E, no tocante aos princípios do devido processo legal (ainda quando entendido em seu sentido formal), do contraditório e da ampla defesa, eles se exercitam com os meios e os recursos que a lei estabelece, não dando azo a que se criem meios ou recursos sem previsão legal ou não abarcados por ela’. Os ilustres defensores cumprem seu papel em insistir na ‘sobrevivência’ de dispositivos caducos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, mas é importante que se esclareça à opinião leiga por que eles não tem mais aplicação. Aliás, é tempo de que o STF faça por reeditar um Regimento atualizado, do qual sejam expurgadas as demasias obsoletas. Durante minha gestão na Presidência da Casa tentei, infelizmente sem sucesso, incentivar a Comissão de Regimento para que procedesse a esta necessária revisão. Ela se mostra cada vez mais indispensável.

Notas

Emb. Infr. na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.591, Rel. Sepúlveda Pertence. Ementa: I – Ação Direta de Inconsti­tucionalidade – Irrecorribilidade da decisão definitiva declaratória da inconstitucionalidade ou da constitucionalidade de normas, por força do art. 26 da L. 9.868/99, que implicou abolição dos embargos infringentes previstos no art. 333, IV, RISTF – Inaplicabilidade, porém, da nova lei que abole recurso aos casos em que o acórdão, então recorrível, seja proferido em data anterior ao do início da sua vigência: análise e aplicação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. (decisão em 27/11/2002) 2 Recurso extraído de decisão de última ou única instância da Justiça Militar, norma não prevista na Constituição de 1988 e, portanto, caduca. 1

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Testemunho da História Aurélio Wander Bastos

Membro do Conselho Editorial Jurista, Cientista Político e Professor Titular da UniRio e UCAM

B

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Foto: Ana Wander Bastos

ernardo Cabral, um Estadista da República, do escritor amazonense Júlio Antonio Lopes, é uma obra ímpar no contexto da literatura política brasileira, combinando a descrição da ação do personagem com a visibilidade convincente das fotos. Título inspirado no livro Joaquim Nabuco, o Estadista do Império, recupera a ação do monarquista abolicionista, provocando, comparadamente, resguar­ dadas as dimensões políticas e de grandeza, nos seus efeitos geográficos, a trajetória do republicano Bernardo Cabral, que construiu sua história de homem público nas lutas pela emancipação preservacionista do desenvolvimento da Amazônia. Este mesmo homem que viu nos compromissos de justiça social, não apenas com o homem das águas o barranqueiro, a força política impositiva dos direitos humanos, na sua dimensão existencial e nos seus espaços de vida imprescindíveis a todos os povos. Nesse contexto, o autor desvenda um Bernardo Cabral, deputado federal destemido, enfrentando as vicissitudes e excessos do governo revolucionário na virada dos anos de 1968/69, fazendo do seu propósito enfrentar a quebra dos compromissos democráticos e a violação dos direitos individuais à redução da rebelião democrática a imposição revolucionária. Cassado no exercício de seu legítimo mandato de Deputado Federal, voltou à advocacia, faina de sua própria vida, para reconstruir sua história como parte inerente da mobilização profissional dos advogados na OAB – liame de ligação entre o Direito como referência de construção do Estado e a desconstrução autoritária. Por outro lado, o conjunto dos tantos e diversificados capítulos da obra fala a todos do homem Bernardo Cabral no seu habitat político e acadêmico, nas dimensões serenas de suas ações, como se verifica nos depoimentos de seus companheiros de geração transcritos ordenadamente no livro e daqueles que, pelas circunstâncias da vida, acompanharamno como advogado Presidente do Conselho Federal da OAB.

Prof. Aurélio Wander Bastos

Foi nesta corporação profissional que abriu a discussão sobre a modernização do ensino jurídico, e, tanto quanto esta iniciativa, a luta pelo Direito, como diria Rudolph Von Ihering, como instrumento de construção dos parâmetros da felicidade do homem no contexto democrático. Nessa jornada de reencontro com a democracia, mostra o autor o papel de Bernardo Cabral no enfrentamento da brutalidade e as consequências do atentado à OAB, onde, mesmo na profundidade paradoxal do conflito, encontrou os meios de decisivamente articular a conciliação. Essa

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Foto: Christina Bocayuva

postura conciliadora, esse especialíssimo papel nos tempos da abertura política, já Senador eleito pelo Estado do Amazonas, lhe valeu, na ampliação de sua formação intelectual e alcance político, ser o “relator histórico da Assembleia Nacional Constituinte, que tem a marca de seu talento” nas palavras de Ulysses Guimarães, Presidente da Constituinte, com quem, conjuntamente com tantos outros brasileiros, contribuiu para a construção da mais avançada e corajosa Constituição do Brasil de 1988, que consagrou em dispositivos irremovíveis os direitos e garantias indivi­ duais e coletivos, esta última, originalíssima posição no quadro dos direitos constitucionais contemporâneos. Finalmente, este livro não consolida apenas a história de um republicano nas suas proposições democráticas e na fervorosa defesa federativa de seu torrão natal, convivendo com tantas realidades quanto os seus tantos sonhos, como em nossa observação na própria obra, “Quixote com os pés plantados na realidade”, como descreveu em elegante afirmação o prefaciador Marcos Vinícios Vilaça, exPresidente da Academia Brasileira de Letras, que completa, no “Império ou na República o que vale são os estadistas. Aqui se cuida de um deles”. Não apenas o homem de letras, mas o executivo empreendedor, Antonio Oliveira Santos, Presidente da Confederação do Comércio, registrou na

Bernardo Cabral e o autor de sua biografia, Júlio Antônio Lopes

mesma linha, reconhecendo que a titulação de Bernardo Cabral como Doutor Honoris Causa, pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – iniciativa da Diretora da Escola de Ciências Jurídicas à época, em 2003, Rosalina Corrêa de Araújo –, foi a oportunidade especial de prestar “homenagem não apenas ao constituinte dos novos tempos, mas ao notável homem público”.

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Legislação trabalhista do Brasil Uma breve análise crítica

Ney Prado

A

Membro do Conselho Editorial Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia

1. Introdução análise temática deste artigo está centrada na descrição crítica do atual modelo trabalhista brasileiro, abrangendo sua origem, princípios, estruturas e fins, cuja característica fulcral reside na exagerada confiança na capacidade interventiva do Estado de legislar, fiscalizar, compor interesses e dirimir conflitos individuais e coletivos nas relações de trabalho. O resultado desta abordagem volta a equacionar respostas a perguntas cruciais sobre a validade do modelo intervencionista estatal nas relações capital-trabalho; a existência e a dimensão da crise que o compromete; e até mesmo a respeito do futuro reservado ao Direito do Trabalho. Antes de adentrar propriamente no mérito do tema, entende o autor ser aconselhável explicitar os verdadeiros propósitos da crítica ao modelo trabalhista vigente. Deseja o autor deixar claro que sua crítica ao intervencionismo não significa nenhum preconceito ou atitude apriorística em relação à importância da presença do Estado nas relações de trabalho. Advogar a redução drástica do papel interventivo do Estado não significa optar radicalmente pelo absenteísmo oficial, eximindo-o totalmente de responsabilidade. O que se condena não é a ausência de intervenção do Estado, muitas vezes necessária, mas sim o intervencionismo trabalhista enquanto ideologia ou doutrina. 22

Ao denunciar o excessivo intervencionismo do Estado, o propósito é evitar que os inúmeros erros e equívocos do atual modelo trabalhista brasileiro persistam e, simultaneamente, demonstrar a necessidade de se buscar uma perfeita dosagem do grau mínimo de intervenção do Estado, de um lado, e do grau máximo de autonomia individual e coletiva, do outro. Em resumo, o alvo da crítica e os reparos feitos referem-se à origem, à forma e ao conteúdo cristalizados no atual modelo trabalhista, partindo do pressuposto da prevalência do primado do direito privado do trabalho sobre o direito público do trabalho. 2. Vícios do modelo A primeira metade do século vinte se caracterizou pelo predomínio das ideologias, pela crescente hipertrofia do Estado, pela proliferação de regimes autocráticos e pelas grandes conflagrações. No Brasil, esse período foi marcado por uma dramática sucessão de movimentos revolucionários, em 1922, 1924, 1930 e 1932, que culminaram em dois eventos antípodas: a instituição do Estado Novo, reforçando a ditadura pessoal de Getúlio Vargas, em 1937, e a reconstitucionalização da democracia representativa, em 1946. Foi, entretanto, entre esses dois marcos que o inegável talento político de Vargas, esvaziando, hábil e simultaneamente, os discursos ideológicos de esquerda

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Foto: Arquivo pessoal

e de direita, produziu o modelo trabalhista formalmente mais bem estruturado de sua época: a Consolidação das Leis do Trabalho, promulgada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943. A CLT, como viria a ser chamada, representava a culminância da política nacional populista de Getúlio Vargas. Foi recebida com ufanismo pelas elites políticas e ungida pela confiança popular com fundamento na mística do dirigismo estatal e, em consequência, na excelência do protecionismo legal nas relações entre capital e trabalho. Ninguém denega a existência de uma sistemática bem construída, institutos bem definidos, uma processualística simples e um sistema judiciário aparelhado para aplicá-la. Enfim, aí estão todos os elementos necessários à existência de uma proteção ao trabalhador avançada e modelar. Se isso é verdade, então o que está faltando? Por que, não obstante o seu alto nível ético, nossa legislação do trabalho vem sendo descumprida na maioria das relações laborais que se travam no País? Por que vem sendo objeto de constantes críticas negativas por parte de quase todos os setores da sociedade brasileira? A razão é simples: o atual modelo revela pelo menos cinco sérias deficiências: os vícios técnicos, os custos econômicos, a ineficácia da Justiça do Trabalho, o descumprimento habitual das leis e decisões judiciais e o seu descompasso com a nova realidade nacional e internacional.

Desde logo, e como não poderia deixar de ocorrer, os vícios do modelo se acumulam, e tornam-se mais evidentes e vêm se agravando com o passar do tempo. Mais de meio século revelou defeitos de origem, de forma e de conteúdo que cada vez mais concorrem para tornálo inadequado para o eficaz regramento dos fenômenos sociais a seu cargo. Não menos importantes, e hoje cada vez mais considerados pelos analistas políticos e econômicos, são os custos do modelo. De fato, dentre os custos institucionais mais ponderáveis nas relações econômicas, hoje fundamentais para definir investimentos e fluxo de capitais e, por isso, decisivos para o desenvolvimento de um País, estão os custos com os encargos trabalhistas e os encargos sociais. Na aferição dos encargos, alguns mensuráveis, outros não, deve-se considerar os custos psicológicos, os econômicos, os políticos, os sociais e os jurídicos, inclusive os da preservação e da solução dos conflitos, a par dos custos de transação oriundos da regulação e da fiscalização pelo seu cumprimento. Um modelo trabalhista intervencionista, como o nosso, afeta direta ou indiretamente as próprias categorias envolvidas: o trabalhador, que vê escassear as oportunidades de emprego e de progressão; o empregador, que não se estimula para investir; o consumidor, que deixa de beneficiar-se pela falta de

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competição; a empresa, que não se aperfeiçoa para competir; o sindicato, que perde espaço para reivindicar; a sociedade, que não se desenvolve; e o Estado, que perde receita para investir nas suas atividades próprias. Como séria agravante, a Justiça do Trabalho, criada como uma alternativa barata, pronta e desburocratizada para a solução dos conflitos, tornou-se cada vez mais onerosa, pesada e ineficiente. Algumas das causas da sua atual disfuncionalidade apontadas pela doutrina são: a incapacidade de resolver questões geradas por conflitos coletivos atípicos, a complicação procedimental, o alto custo da burocratização de sua estrutura, o despreparo intelectual e a visão estreita de juízes, bem como a criação de novos direitos pela Constituição de 1988. Até mesmo como resultado dessa ineficiência, o descumprimento das leis e das decisões judiciais tem posto em risco todo o modelo, dando azo à expansão da economia informal, à proliferação de greves abusivas e, o que é pior, ao desacato sistemático à ordem jurídica instituída. Alguns indivíduos e empresas fizeram a opção pela informalidade por vontade própria; a grande maioria, no entanto, permaneceu à margem da legislação porque, se tivesse que cumpri-la integralmente, seus negócios se tornariam inviáveis. Culmina, enfim, a constatação, hoje cada vez mais evidente, de que o modelo não ficou apenas obsoleto, mas, além disso, tornou-se um estorvo ao desenvolvimento do País, tal o seu grau de descompasso com a nova realidade nacional e internacional. O modelo atual, dogmático, positivista e inflexível, contrasta aberrantemente com os sistemas pragmáticos, autonomistas e flexíveis que caracterizam os países de vanguarda, nos quais as relações entre os fatores de produção já evoluíram da confrontação para a cooperação. Nos últimos setenta anos ocorreram no mundo e na sociedade brasileira profundas transformações políticas, econômicas, sociais e jurídicas, com sérias implicações nas relações de trabalho. Mas, salvo pequenas alterações, o sistema trabalhista brasileiro se mantém estruturalmente o mesmo. 3. A crise do modelo varguista O nosso “legalismo”, calcado no positivismo jurídico, nos tem levado à crença ingênua de que os conflitos de interesses no âmbito das relações de trabalho são mais adequadamente resolvidos por intermédio da regulamentação legal do que pela via da negociação direta entre as partes. Persiste na cultura trabalhista a confusão entre o papel da norma como estimuladora do progresso e o seu papel como geradora do progresso, 24

independentemente dos processos reais da sociedade. “A norma facilita ou dificulta o progresso, mas jamais materialmente o gera. A materialização do progresso pertence à ordem dos fatos, não à dos preceitos”1. Destaca-se a crise de funcionalidade, resultante da perda de capacidade técnica do sistema para atender às reais finalidades a que teoricamente se propõe. Não basta a CLT e a Constituição de 1988 elencarem um infindável número de liberdades e garantias para o trabalhador. 0 problema não é uma questão de número e de forma, mas de qualidade e de eficácia. Em resumo, o importante é saber se o que está escrito na lei atinge efetivamente as suas finalidades. É preciso, portanto, avaliar, com espírito crítico e de forma desapaixonada, a adequação do atual modelo trabalhista à luz dos seus resultados concretos. Nesse sentido, importantes perguntas se impõem ao analista: o trabalhador brasileiro, o destinatário principal da lei, está sendo efetivamente protegido? A legislação do trabalho atual atende aos interesses do empregador, da empresa, dos sindicatos, da sociedade e do próprio governo? Suas normas facilitam a solução dos problemas sociais? Estimulam a expansão do mercado de trabalho? Estão consentâneas com o estádio de desenvolvimento do País? Contribuem para a promoção do bem-estar geral e a criação de uma sociedade mais justa e solidária? As respostas a essas instigantes e complexas indagações exigem comprovação empírica. Somente a evidência concreta é capaz de mostrar se o modelo varguista é ou não funcional em nossos dias. Sua disfuncionalidade é notória, porque mais de 50% da população economicamente ativa do país estão na informalidade; porque restringe excessivamente o gerenciamento das empresas em função da rigidez e da inflexibilidade da maioria de suas normas; porque dificulta as fusões e incorporações das empresas pela vultosidade do passivo trabalhista; porque enfraquece os sindicatos, lhes tirando boa parte da sua autonomia; porque dificulta a elaboração de políticas públicas, em razão das inúmeras normas “pétreas” contidas na Constituição; porque multiplica as demandas judiciais, em razão da inexistência de mecanismos de autocomposição; porque encarece o custo da produção, pelos altos encargos sociais; porque, além disso, dificulta a integração do Brasil num mundo globalizado e competitivo. Tudo isso está a indicar que é chegado o momento da mudança. Estão dadas as condições históricas, políticas, econômicas, sociais e científicas para esse salto qualitativo e, quiçá, para realinhar o País na vanguarda da modernidade no campo das relações entre os novos fatores de produção: capital, trabalho e conhecimento. Não cabe aqui indagar se, em algum momento, o modelo teve virtudes. Provavelmente, sim. Caso contrário

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não teria sobrevivido tanto tempo, em diferentes regimes políticos. Mas, o fato incontestável é que estamos vivendo os últimos estertores dos paradigmas implantados a partir da Revolução de 1930. Por isso a dialética entre o velho e o moderno está marcando, de forma cada vez mais intensa, os debates destes últimos anos. Nesse debate, de um lado ficarão os conservadores, favoráveis à manutenção do atual modelo; do outro os progressistas, a favor da sua modernização. Os primeiros, não obstante posarem de campeões da inovação, de fervorosos humanistas, de portadores de grande sensibilidade social, na verdade, nas judiciosas palavras de Diogo Figueiredo Moreira Neto: “em última análise são passadistas de boa fé, que continuam a adorar o bezerro de ouro estatal ou corporativistas de má fé, que continuam a adorar seus próprios privilégios”.2 Continuarão assim a defender, dogmaticamente, a ampliação da proteção ao empregado sem se preocupar com a sobrevivência da empresa; a enfatizar a importância do direito do trabalho sem levar em conta os aspectos econômicos do trabalho; a privilegiar o direito do trabalho sobre o direito ao emprego; a estimular o conflito de classes, ao invés da parceria; a priorizar o sistema de unicidade sindical compulsória sobre o de pluralidade sindical; a defender a contribuição sindical compulsória, ao invés da voluntária; a preferir a representação sindical por categoria, ao invés da representação por empresa; a advogar o princípio da irredutibilidade salarial, ao invés da flexibilização; a apoiar a remuneração fixa, ao invés da remuneração pelo resultado; a defender a jornada de trabalho rígida, ao invés da individualização do tempo do trabalho; a defender o direito de greve irrestrito, ao invés das limitações ao seu exercício abusivo; a priorizar a solução estatal dos conflitos, ao invés das formas alternativas de autocomposição; a defender o poder normativo da Justiça do Trabalho, ao invés da negociação direta entre as partes; a reafirmar as vantagens do intervencionismo estatal na economia, ao invés de fortalecer a livre-iniciativa; e continuarão a defender, enfim, a primazia do Estado sobre o indivíduo e a sociedade. Estamos diante de uma tendência claramente manifestada e em curso, não mais de uma mera opção. Isso significa que o desejo da modernidade nas relações de trabalho já deixou de ser um exercício alternativo, como tantas vezes foi no passado, para se tornar uma necessária realidade.

Notas 1 Hélio Jaguaribe. Três Problemas e Seis Cenários, Folha de São Paulo, 21 de julho de 1998, Folha A-3. 2 Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Reforma Econômica para Reinserir o Brasil na Modernidade, p.3.

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O CNJ não pode surtar

Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho

Membro do Conselho Editorial Desembargador TJRJ

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ntre as atribuições cometidas pela Constituição Federal ao Conselho Nacional de Justiça não se inclui a de legislar. E isso, por uma razão muito simples: sendo ele um órgão administrativo do Poder Judiciário obviamente não pode extrapolar das suas funções, que sequer são jurisdicionais, mas apenas, ainda que em escala constitucional superlativa, administrativas. Embora com poder regulamentar e disciplinar em seu amplo âmbito de atuação, o regime democrático jamais reconheceu a órgão administrativo o poder de legislar, criando normas gerais vinculantes para a sociedade, ainda mais quando versam sobre matéria constitucional. A Resolução no 175 de 14/5/2013 do CNJ viola o preceito. A continuar nesse trôpego passo, o Incra poderá legislar sobre reforma agrária, a Funai sobre o regime jurídico dos indígenas e o Confea (Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia) acerca da reforma urbana, sem que haja mais necessidade dos competentes – e por isso passíveis de cobrança democrática – canais legislativos. Não se discute a aceitação do casamento homoafetivo e de seus efeitos civis, mas, sim, que nenhum órgão administrativo pode interferir na vida civil-constitucional do cidadão. Não é à toa que como importante valor fundante da família o casamento está previsto nos artigos 5o, inciso I, e 226, e seus parágrafos, da Constituição, daí sua inquestionável situação de base da família e da sociedade. 26

“Embora com poder regulamentar e disciplinar em seu amplo âmbito de atuação, o regime democrático jamais reconheceu a órgão administrativo o poder de legislar, criando normas gerais vinculantes para a sociedade, ainda mais quando versam sobre matéria constitucional.”

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Foto: Luis Henrique/TJRJ

O Ministro Gilmar Mendes (STF) abriu polêmica no meio jurídico, assinalando que a decisão do STF de 2011 usada para justificar a medida não tratava de casamento, mas apenas de união estável. Segundo ele, a decisão não legitimou automaticamente o casamento homoafetivo, afirmando que “O tribunal só tratou da questão da união estável, mandou aplicar a união estável. Até o ministro Ayres Britto se estendeu, mas depois foi ponderado que o próprio pedido só se afetava para a questão da união homoafetiva”, explicou. Também o subprocurador-geral da República Francisco Sanseverino, que atuou no CNJ quando a atual resolução foi discutida, afirmou que “embora respeitando a posição do CNJ, [...] é necessária ou a edição de uma lei ou uma nova decisão em outra ação por parte do STF”, concordando com a ampliação de direitos, mas rejeitando a justificativa usada pelo CNJ para aprovar a Resolução. Aliás, até mesmo a Conselheira Maria Cristina Peduzzi, evitando que a votação da Resolução fosse unânime, votou pela sua rejeição, destacando que a regra não poderia ser estabelecida pelo CNJ sem previsão legal e que não o fazia por razões de fundo ou de mérito da proposta, mas apenas por considerar a ausência de poder legisferante e muito menos da disciplina de matéria constitucional. Assim, a ousadia do CNJ parece ter ido além dos seus próprios limites, entortando a boca pelo uso indevido do cachimbo. As pessoas precisam se tocar que, no regime da separação de poderes, órgão administrativo, quando legisla,

atua com usurpação, viola o ordenamento legal e avança contra o direito dos cidadãos, praticando verdadeira heresia jurídica. O fantástico laboratório de casuísmos nacionais estaria produzindo, como nova assombração, a Medida Provisória – ainda mais gravosa pela maior imunidade a meios de controle – gestada no ventre surreal de órgão administrativo do Judiciário. A Família não recebe destacado tratamento constitu­ cional sem seríssima motivação, mas por ser seu regramento essencial à ordem social, por isso não podendo ter sua estrutura modificada à deriva, por simples resolução de mero órgão administrativo. Se assim for, amanhã outra resolução poderá alterar a atual para estabelecer a proibição de casamento entre pessoas do mesmo sexo, ainda que este último derive dos reconhecidos postulados de liberdade e de dignidade. Mas, se a admissão da união estável homoafetiva veio da decisão do STF, não há razão para que o instituto do casamento receba tratamento diverso. A legislação sobre Direito civil é privativa da União, competindo ao STF a interpretação final da Constituição. A nação não suporta o papel de uma instituição-curinga que, ao invés de cumprir sua finalidade, enverede pelo perigoso surto da usurpação de poder. Pela magnitude de sua relevância, pela importância do que já realizou e do que poderá fazer pelo Poder Judiciário Nacional, o CNJ não deve vulgarizar-se, escorregando pelo movediço terreno do delírio institucional.

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Interpretação da Lei de Anistia

Luiz Augusto de Salles Vieira

Desembargador do TJSP

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inalizo a biografia de meu saudoso pai, dr. Benedicto Vieira, onde conto um pouco da história da ditadura militar em Taubaté, com a interpretação da Lei da Anistia, a qual entrou em vigor no final do Governo do General João Batista Figueiredo, o último Governo do regime militar. Por ser a parte mais polêmica, vou me restringir a interpretar apenas o artigo 1o da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, e seus parágrafos. Dispõe a citada norma: Art. 1o É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado). § 1o - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. § 2o - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.

A Lei da Anistia excetua dos benefícios da anistia, no § 2o do art. 1o, os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, 28

ainda que preencham os requisitos constantes do § 1o caput da lei. A lei é clara ao negar os benefícios da lei aos que foram condenados por crimes de “terrorismo”, “assalto”, “sequestro” e “atentado pessoal”. I - A primeira questão que se coloca é a seguinte: estaria o crime de “tortura” (comumente praticado por militares e policiais civis) alcançado pelos benefícios constantes do caput e no § 1o da Lei da Anistia, ou estaria dentro da exceção constante do § 2o? Levando-se em consideração o momento político em que a lei entrou em vigor e as regras de hermenêutica, penso que o crime de tortura não foi perdoado. Creio que o legislador, embora não tivesse usado a expressão “tortura”, a considerou, ao fazer constar a expressão “atentado contra a pessoa”. Nem todo “atentado contra a pessoa” é um “ato de tortura”, mas toda “tortura” é um “atentado contra a pessoa”. É muito mais lógico considerá-la como um “atentado contra a pessoa”, do que considerá-la como um crime conexo com crimes políticos. O legislador, ao elaborar a lei, ao invés de usar a expressão “tortura”, preferiu outra, mais abrangente, a qual denominou de “atentado pessoal”. Pelo meu entendimento, portanto, o crime de tortura ou “atentado contra a pessoa”, está dentro da exceção constante do § 2o da Lei 6.638, de 28 de agosto de 1979, e seus parágrafos. A mens legislatoris, ou seja, a vontade do legislador, no momento da elaboração da norma, não deixa dúvida, a meu ver, de que todos aqueles que praticaram “atos de terrorismo”, “assalto”, “sequestro” e “atentado pessoal”,

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Foto: Arquivo pessoal

ainda que por motivação política, ou conexa com esta, não foram alcançados pela anistia, e por esta razão os crimes que praticaram não foram anistiados. Se alguma dúvida existir, entretanto, devemos pensar na mens legis, ou seja, na vontade da lei, no momento da sua aplicação. Quando a lei é elaborada prevalece o espírito do legislador. Ao ser aplicada, impõe-se o espírito da lei. O jurisfilósofo Miguel Reale, já falecido, autor do novo Código Civil Brasileiro, em sua teoria tridimensional do direito, via na elaboração da lei, três dimensões: o fato, o valor e a norma. A valoração da norma deve levar em consideração, segundo aquela teoria, a época em que a lei é elaborada e a época em que é interpretada e aplicada. Se os fatos se modificam, a interpretação deve se modificar também, acompanhando a evolução dos tempos. O positivismo jurídico cede terreno, na visão do mestre, à Sociologia Jurídica. Tenham os atos de “tortura” sido praticados por civis ou militares, estes não podem se beneficiar, sob qualquer aspecto (civil ou criminal), da anistia. Aqueles que, nos porões da ditadura ou fora dele, por ato próprio ou por ordem superior, praticaram “atentados contra a pessoa”, ou seja, “tortura”, devem responder pelos seus crimes. Acaso os “atentados contra a pessoa”, ou seja, “atos de tortura”, tenham sido praticados por “civis”, na defesa das suas motivações ou interesses políticos, contra civis ou militares, devem responder, igualmente, pelos mesmos crimes. Igual raciocínio há que se fazer em relação ao “terrorismo”, “assalto” e “sequestro”.

Em que pese entendimentos em sentido contrário, o exposto se afina com o que veio a se convencionar como “tortura”, por meio da Lei no 9.455/97, de 7.4.97. Citada norma, sancionada no governo Fernando Henrique Cardoso, tipificou o crime de tortura no art. 1o, inciso I, letras “a”, “b” e “c”, II, §§ 1o a 7o, usque 4o, o qual, pela sua importância, transcrevo na integra: Art. 1o: Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito anos. § 1o - Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. § 2o - Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos. § 3o - Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos. § 4o Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

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I - se o crime é cometido por agente público; II - se o crime é cometido contra a criança, gestante, deficiente e adolescente; III - se o crime é cometido mediante seqüestro. § 5o - A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. § 6o - O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. § 7o O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2o, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado. Art. 2o: O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira. Art. 3o: Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 4o: Revoga-se o art. 233 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.

Referida lei não retroage para prejudicar, mas tem inteira aplicação para definir o que vem a ser o crime de tortura, revelando que está contido no tipo penal “atentado contra pessoa”. II - A segunda questão que se coloca é a seguinte: ainda que não esteja sob o manto da Lei da Anistia, estariam os crimes de “terrorismo”, “assalto”, “sequestro” e “atentado pessoal”, praticados com motivação política, protegidos pelo instituto da prescrição? O termo inicial da prescrição, não pode ser óbice à punição, por serem aqueles crimes, considerados como hediondos ou praticados contra a humanidade, regulamentados por convenções, pactos e tratados internacionais, dos quais o Brasil já era signatário, segundo a Constituição Federal em vigor, ao tempo da entrada em vigor da Lei da Anistia. A pessoa humana, civil ou militar, tem o mesmo valor. São irrelevantes as ideologias e a posição social que ocupam. Todos são iguais perante a Lei. Qualquer crime hediondo contra a pessoa humana tem que ser punido exemplarmente, para que o ato não se repita. A motivação política não justifica a prática de “atentado contra a pessoa” ou “tortura”. Seja para proteger a “sociedade” de um suposto “governo comunista” ou para que a “ditadura” seja derrotada e se retorne à democracia. Quando da entrada em vigor da Lei da Anistia, a Constituição Federal já protegia a pessoa humana, no capítulo que tratava dos direitos e garantias individuais. Ainda que a lei houvesse excluído da punição os crimes conexos aos políticos praticados contra a pessoa humana, seria aquela inconstitucional neste aspecto. Em inúmeros artigos, a Constituição Federal de 24 de 30

“A lei entra em vigor para regular fatos futuros. Por isso é redigida com a expressão: ‘os que foram condenados’.”

janeiro de 1967, vigente ao tempo da entrada em vigor da Lei da Anistia (28.08.79), admitia a celebração de tratados, convenções e atos internacionais, pela Presidência da República “ad-referendum” do Congresso Nacional. Sobre a questão, veja-se: Art. 47: É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sobre os tratados celebrados pelo Presidente da República. Art. 83: Compete privativamente ao Presidente: VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, ad referendum do Congresso Nacional.

Paralelamente a inúmeros artigos fundados em convenções, tratados e pactos, que sustentam a imprescritibilidade do crime de “tortura”, cita-se, abaixo, decisão proferida pelo Colendo Superior de Justiça, onde figurou como Rel. o Min. Luiz Fux. Jurisprudência em Revista – Início Expediente – Equipe Contato – RESPONSABILIDADE – ESTADO – NOMEAÇÃO TARDIA – AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – INDISPONIBI­ LIDADE – BENS – INDENIZAÇÃO – PRESO – REGIME MILITAR – TORTURA – IMPRESCRI­ TIBI­ LIDADE. Trata-se de ação ordinária proposta com objetivo de reconhecimento dos efeitos previdenciários e trabalhistas, acrescidos de danos materiais e morais, em face do Estado, pela prática de atos ilegítimos decorrentes de perseguições políticas perpetradas por ocasião do golpe militar de 1964, que culminaram na prisão do autor, bem como em sua tortura, cujas consequências alega irreparáveis. Há prova inequívoca da perseguição política à vítima e de imposição, por via oblíqua, de sobrevivência clandestina, atentando

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contra a dignidade da pessoa humana, acrescida do fato de ter sido atingida sua capacidade laboral quando na prisão fora torturado, impedindo atualmente seu auto-sustento. A indenização pretendida tem amparo constitucional no art. 8o, § 3o, do ADCT. Deveras, a tortura e morte são os mais expressivos atentados à dignidade da pessoa humana, valor erigido como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. À luz das cláusulas pétreas constitucionais, é juridicamente sustentável assentar que a proteção da dignidade da pessoa humana perdura enquanto subsiste a República Federativa, posto seu fundamento. Consectariamente, não há falar em prescrição da ação que visa implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade. Outrossim, a Lei n. 9.140/1995, que criou as ações correspondentes às violações à dignidade humana perpetradas em período de supressão das liberdades públicas, previu a ação condenatória no art. 14, sem lhe estipular prazo prescricional, por isso que a lex specialis convive com a lex generalis, sendo incabível qualquer aplicação analógica do Código Civil no afã de superar a reparação de atentados aos direitos fundamentais da pessoa humana, como sói ser a dignidade retratada no respeito à integridade física do ser humano. Adjuntem-se à lei interna as inúmeras convenções internacionais firmadas pelo Brasil, a começar pela Declaração Universal da ONU, e demais convenções específicas sobre a tortura, tais como a convenção contra a tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU, a Convenção Interamericana contra a Tortura, concluída em Cartagena, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). A dignidade humana violentada, in casu, decorreu do fato de ter sido o autor torturado, revelando flagrante atentado ao mais elementar dos direitos humanos, os quais, segundo os tratadistas, são inatos, universais, absolutos, inalienáveis e imprescritíveis. Inequívoco que foi produzida importante prova indiciária representada pelos comprovantes de tratamento e pelas declarações médicas que instruem os autos. Diante disso, a Turma, ao prosseguir o julgamento e por maioria, deu provimento ao recurso para afastar, in casu, a aplicação da norma inserta no art. 1o do Decreto n. 20.910/1932, determinando o retorno dos autos à instância de origem para que dê prosseguimento ao feito. Precedentes citados do STF: HC 70.389-SP, DJ 10/8/2001; do STJ: REsp 449.000-PE, DJ 30/6/2003. REsp 845.228-RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 23/10/2007 (ver Informativo n. 316). Fonte: Informativo STJ no 337 - Jurisprudência em Revista Ano I - no 018.

Faz-se referência, de forma especial, ainda que tenham entrado em vigor em data posterior à Lei da Anistia, a

“Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes”, por meio do Decreto no 40, de 15 de fevereiro de 1991, e o “Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos”, através do Decreto no 592, de 6.7.1992. Um último aspecto a ser considerado, é a de que o “crime de tortura”, ou “atentado contra a pessoa”, em particular, é cometido, via de regra, por autoridade, ou emanado de autoridade, de forma a dificultar a identificação do seu autor e a se promover a ação penal. Dentro de uma lógica jurídica, o “termo inicial” da prescrição será a data em que houver fundamento ou argumento para se promover a ação penal, tal qual vem entendendo a comunidade europeia. III - A terceira questão que se coloca reside no seguinte fato: somente excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de “terrorismo”, “assalto”, “sequestro” e “atentado pessoal”, até a entrada em vigor daquela, ou se excetuariam também os que vierem a ser condenados oportunamente? Não se nega que o legislador, ao excetuar do benefício, usou a expressão “condenados pela prática de crimes de “terrorismo”, “assalto”, “sequestro” e “atentado pessoal”. Passa a impressão, portanto, que estão anistiados os que foram absolvidos, até a entrada em vigor da lei. Os condenados, até a entrada em vigor da lei, não se beneficiam dela. E aqueles que praticaram crimes “hediondos”, como o de “tortura”, por exemplo, mas não foram absolvidos ou condenados? Como não tinham sido absolvidos ou condenados, ficam os atos no esquecimento, ainda que não alcançados pela prescrição? Óbvio que não. Nada é insignificante para o Direito Penal. Para se saber se alguém foi condenado ou absolvido, somente resta uma alternativa. Investigar e processar todos os que praticaram “atentados contra a pessoa”, “atos de terrorismo”, “assalto” e “sequestro”. Se forem absolvidos, ainda que por ausência de provas, farão jus aos benefícios da Lei da Anistia, que não se limita ao perdão. Se forem condenados, estarão fora dos benefícios da citada lei e deverão cumprir as penas que lhes forem impostas. A lei entra em vigor para regular fatos futuros. Por isso é redigida com a expressão: “os que foram condenados”. Seria um exagero redacional o legislador usar a expressão “os que vierem a ser condenados”. Ainda que os juízes criminais possam vir a ter entendimento diverso, no caso concreto, pensa-se que já não mais se admite a omissão dos órgãos competentes (Polícia Civil e Ministério Público) para proceder a apuração e a denúncia dos crimes de tortura e dos crimes hediondos praticados com motivação política ao tempo da didatura.

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Cidadania fiscal e Direito Financeiro

Marcus Abraham

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Desembargador Federal do TRF-2a Região Professor Adjunto de Direito Financeiro - UERJ

m um país de tantas diferenças sociais, econômicas e culturais como é o Brasil, o conhecimento do Direito Financeiro e o exercício pelo cidadão dos seus direitos fiscais – sem descuidar do cumprimento dos seus deveres – se faz extremamente relevante. Mais do que um conjunto de normas sobre o ingresso, a gestão e a aplicação dos recursos financeiros do Estado, o Direito Financeiro constitui uma ferramenta de mudança social. Isto ocorre porque esta ciência trata, além de tudo, da redistribuição de riquezas, do equilíbrio financeiro entre os entes federativos, da participação direta e indireta da coletividade na elaboração do orçamento, do controle da arrecadação e dos gastos públicos e do compromisso dos seus princípios com o bem-estar da comunidade a que se aplicam. Enfim, versa sobre tudo o mais que se faz necessário para que a justiça fiscal se traduza em justiça social. E, nos dias de hoje, a participação do cidadão neste processo passa a ganhar foro fundamental, prerrogativa que denominamos de cidadania fiscal. Inegável reconhecer que sempre houve maior preocupação com a arrecadação das receitas públicas, especialmente a tributária, do que com a gestão e a aplicação de tais recursos. Os gastos públicos acabavam sempre por ficar em segundo plano de importância se comparados com a tributação e o Direito Tributário. Tanto assim que este ramo do Direito ganhou destaque 32

e autonomia própria. Mas, hoje, é preciso redirecionar o foco e dar a devida relevância e efetividade ao Direito Financeiro, suas normas e objetivos. A Constituição brasileira de 1988 estabelece no seu art. 3o os objetivos da República Federativa do Brasil. Construir uma sociedade livre, justa e solidária, desenvolver o país, acabar com a pobreza e a marginalização e minimizar as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos, são os nobres intentos a serem atingidos, segundo prevê a nossa Carta Maior. Estes desígnios têm como fundamentos, consignados no art. 1o, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a valorização do trabalho e da livre iniciativa. Diante de tantas pretensões, recursos financeiros se fazem mais do que imprescindíveis para atingir tais objetivos. Mas não basta arrecadar o necessário, de forma equitativa e equilibrada. A administração de tais recursos deve ser feita de forma eficiente. E, na mesma linha, a sua aplicação precisa ser realizada criteriosamente, para que se possa atender às necessidades públicas da maneira mais ampla e satisfatória possível. É neste ponto que vemos o Direito Financeiro brasileiro se destacar como sendo um complexo, porém avançado, sistema jurídico. Se bem observado, é capaz de direcionar positivamente os atos dos governantes e influenciar para melhor a vida em sociedade.

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Foto: Raphael P.Moreira/UCAM

Um aspecto desta ciência jurídica ganha grande relevância no cenário contemporâneo: a preocupação com a administração da coisa pública. A responsabilidade na atividade financeira é requerida em todas as etapas do processo fiscal, desde a arrecadação, passando pela gestão, até a aplicação dos recursos na sociedade de maneira responsável, ética, transparente e eficiente. Neste passo, o cidadão é convocado a participar ativamente deste processo, tendo a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) função fundamental. Através dela, introduz-se uma nova cultura na Administração Pública brasileira, baseada no planejamento, na transparência, no controle e equilíbrio das contas públicas e na imposição de limites para determinados gastos e para o endividamento. A partir da LC 101/2000, confere-se maior efetividade ao ciclo orçamentário, por regular e incorporar novos institutos na lei orçamentária anual e na lei de diretrizes orçamentárias, voltadas para o cumprimento das metas estabelecidas no plano plurianual. Impõe-se a cobrança dos tributos constitucionalmente atribuídos aos entes federativos para garantir a sua autonomia financeira e estabelecem-se condições na concessão de benefícios, renúncias e desonerações fiscais. Obriga-se a indicar o impacto fiscal e a respectiva fonte de recursos para financiar

aumentos de gastos de caráter continuado, especialmente em se tratando de despesas de pessoal. Fixam-se limites para a ampliação do crédito público com vistas ao controle e redução dos níveis de endividamento. E criam-se sanções de diversas naturezas em caso de descumprimento das normas financeiras. Porém, mais importante do que instituir toda uma nova metodologia para a gestão financeira dos recursos públicos, a Lei de Responsabilidade Fiscal vem estimular o exercício da cidadania, através dos mecanismos que incitam participação ativa da sociedade nas questões orçamentárias, desde o processo deliberativo até o acompanhamento e avaliação da sua execução, conferindo maior efetividade à democracia brasileira. Além de instituir relatórios específicos para a gestão fiscal – Relatório Resumido de Execução Orçamentária, Relatório de Gestão Fiscal e Prestação de Contas – e determinar a sua ampla divulgação, inclusive por meios eletrônicos, a Lei de Responsabilidade Fiscal incentiva a participação popular nas discussões de elaboração das peças orçamentárias e no acompanhamento da execução orçamentária, através de audiência pública, e permite o pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público (art. 48, LRF). A cidadania participativa nas finanças públicas se expressa não apenas através das previsões legais que permitem o conhecimento e envolvimento do cidadão nas deliberações orçamentárias e no acompanhamento da sua execução, mas também encontra respaldo no comando da Lei (art. 73-A, LRF), que prevê que qualquer cidadão será parte legítima para denunciar ao respectivo Tribunal de Contas e ao órgão competente do Ministério Público o descumprimento das prescrições estabelecidas na LRF. No mundo moderno, o Direito Financeiro acumula funções de estatuto protetivo do cidadão-contribuinte, de ferramenta do administrador público e de instrumento indispensável ao Estado Democrático de Direito para fazer frente às suas necessidades financeiras. Sem ele não seria possível ao Estado oferecer os serviços públicos, exercer seu poder de polícia e intervir na sociedade, colaborando na redistribuição de riquezas e na realização da justiça social, com respeito à dignidade da pessoa humana e à manutenção do equilíbrio econômico e da prosperidade. Não à toa, atualmente apresenta-se como objeto de interesse a chamada “Teoria dos Custos dos Direitos” (The Cost of Rights. HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass. New York), pela qual se preconiza que até mesmo os direitos liberais clássicos – como a propriedade privada, por exemplo – apresentam custos para serem garantidos pelo Estado. Neste momento, desponta o tributo como

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“Servir de instrumento de mudanças positivas para a sociedade, reduzindo as desigualdades sociais, extirpando a miséria da realidade brasileira e alavancando o desenvolvimento da economia, como mola propulsora de um círculo virtuoso, é o objetivo imanente às normas do Direito Financeiro brasileiro moderno.”

principal fonte de receita financeira, ganhando status de dever fundamental constitucionalmente previsto (O dever fundamental de pagar impostos. NABAIS, José Casalta. Coimbra). Sendo o tributo o “preço da liberdade”, custo este originário do pacto social firmado entre o cidadão e o Estado (e cidadãos entre si), em que o primeiro cede parcela do seu patrimônio (originário do capital ou trabalho), em favor do segundo, que lhe fornecerá bens e serviços para uma existência digna e satisfatória em sociedade, deverá o cidadão possuir direitos e amplos mecanismos para participar ativamente, desde a formulação das políticas públicas, passando pelo dispêndio dos recursos, até o controle da execução orçamentária. Esse contexto faznos lembrar da célebre frase de Oliver Holmes, Justice da Suprema Corte norte-americana: “I like to pay taxes. With them, I buy civilization.” Assim, reduzir o Direito Financeiro apenas àquelas normas que regulam as políticas e as operações direcionadas à arrecadação, administração e aplicação de recursos financeiros para satisfazer as necessidades da coletividade é uma forma simplista de estudar esta ciência. Em tempos de neoconstitucionalismo (RAWLS, John; DWORKIN, Ronald; ALEXY, Robert), em que os valores passam a ter preponderância, é inegável reconhecer a preocupação com a ética, com a moral e com o debate dos direitos humanos fundamentais, sobretudo pela efetivação da sua função social. Servir de instrumento de mudanças positivas para a sociedade, reduzindo as desigualdades sociais, extirpando a miséria da realidade brasileira e alavancando o desenvolvimento da economia, como mola 34

propulsora de um círculo virtuoso, é o objetivo imanente às normas do Direito Financeiro brasileiro moderno. O conhecimento de todos os elementos jurídicos que envolvem a atividade financeira – competências financeiras, receitas e despesas públicas, técnicas de contabilidade pública, normas orçamentárias e de responsabilidade fiscal – passa a ser de suma importância para qualquer aluno, seja de graduação ou de pós-graduação, nas áreas das ciências sociais, seja em Direito, Administração, Economia ou nas demais disciplinas conexas. É, pela mesma razão, uma ciência indispensável ao operador do Direito ou de Finanças Públicas, responsável por dar efetividade às atividades e às políticas públicas sociais. Mas, sobretudo, são eles que farão chegar ao cidadão brasileiro o conhecimento e a extensão dos seus direitos, para que possam exercer, em sua plenitude, a sua cidadania fiscal. Arrecadar com justiça, administrar com zelo e gastar com sabedoria são os comandos que subjazem às normas do Direito Financeiro brasileiro. Acredito no Direito como fundamental instrumento de transformação social, por oferecer ao cidadão os mecanismos necessários para a criação de uma sociedade mais justa e digna. Mas para isso ocorrer, não basta conhecê-lo. É imperioso exercê-lo com sabedoria, aproximando os seus ideais utópicos da nossa realidade fática e telúrica.

* Texto inspirado no Curso de Direito Financeiro Brasileiro, 2a edição, Editora Elsevier, Rio de Janeiro, 2013, de autoria de Marcus Abraham.

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Vá de ônibus! Baseado em tecnologia de georreferenciamento, o novo aplicativo desenvolvido pela Fetranspor permite criar rotas de deslocamento por toda a cidade do Rio de Janeiro, indicando quais são as melhores opções de linhas de ônibus e caminhos a serem percorridos.

Da Redação, por Ada Caperuto

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ntre junho e julho deste ano, a capital fluminense recebeu dois grandes eventos: a Copa das Confederações e a Jornada Mundial da Juventude (de 23 a 28 de julho). No ano que vem, teremos a Copa do Mundo FIFA e, em 2016, as Olimpíadas. Pensando em facilitar a vida dos cariocas e visitantes de outras cidades, estados e países que estarão circulando pela cidade durante todos esses eventos, a Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor) aprimorou o site Vá de ônibus. O sistema de informações baseado em tecnologia de georreferenciamento identifica as melhores opções de deslocamento entre um lugar e outro, utilizando o ônibus como meio de transporte. O Vá de Ônibus, acessível pelo site www.vadeonibus.com.br, oferece várias opções de busca, a partir da informação “Onde você está” (origem) e “Aonde você quer ir” (destino). Assim, para traçar sua rota, basta informar os endereços de origem e destino, ou ainda os chamados “Locais especiais” (aeroportos, restaurantes, pontos turísticos, entre outros), obtendo-se uma rota sob medida, indicando os números das linhas de ônibus que o usuário deverá utilizar e os locais onde o passageiro deve realizar seu embarque e desembarque. De acordo com a Diretora de Mobilidade Urbana, Richele Cabral, a Fetranspor possui uma parceria de longa data com o Google para fornecer as informações 36

de transporte público que são disponibilizadas aos usuários por meio do Google Transit. “Por se tratar de uma ferramenta amplamente difundida, essa parceria é de vital importância para a Fetranspor, no que tange permitir que o máximo possível de pessoas tenham acesso à informação de como planejar suas viagens. Por outro lado, o caráter global deste sistema acaba deixando de fora algumas peculiaridades da realidade carioca e fluminense. Por isso, optamos em manter no ar o serviço Vá de Ônibus, que nos permite uma maior flexibilidade de personalização dos resultados”, explica ela. A diretora enumera alguns dos diferenciais entre as duas ferramentas: • as opções de integração através de Bilhete Único também são apresentadas no resultado; • existe a possibilidade de busca pelo itinerário em texto de uma linha; • há, também, maior variedade de opções de busca, tais como “menor custo” e “menor distância percorrida”; • é possível, ainda, noticiar alterações especiais de itine­ rário, em função da realização de eventos; e, • por fim, existe um melhor tratamento de resultados que envolvam BRTs, que não são um modo de transporte previsto na ferramenta da Google (Bogotá, por exemplo, cadastrou o seu BRT no Google como se fosse um metrô). Richele avisa que, no momento, a Fetranspor está trabalhando para agregar novos recursos de interação ao site. “Para um prazo imediato, estamos finalizando o novo layout do site, que será mais moderno e terá um formato

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mais adequado para a utilização em tablets. Além disso, ao longo dos últimos meses realizamos uma extensa revisão dos dados disponibilizados no site, aumentando a sua confiabilidade”. De fato, a fim de garantir toda a facilidade ofertada pelos dispositivos móveis, como smartphones e tablets, está em curso na Fetranspor um extenso projeto na área de informação móvel ao usuário de transporte público. Além do próprio site Vá de Ônibus, foi iniciado um processo de parcerias com desenvolvedores, para aumentar a área de atuação no mercado mobile. “Os aplicativos BRS Rio e Buus, campeões do concurso Rio Apps 2012, já fazem uso de dados fornecidos pela Fetranspor – que são distribuídos sem custos para os interessados. Atualmente, parceria similar está sendo acordada com a israelense Moovit e com a Nokia, ampliando ainda mais a disseminação da informação em plataformas móveis”, declara Richele. Projetos futuros Atualmente as empresas de ônibus estão trabalhando na uniformização das informações de “tempo real”, que são aquelas que permitem ao cliente saber quanto tempo falta para o ônibus chegar, se ele está preso no congestionamento etc. Assim que este trabalho estiver concluído, as informações serão oferecidas através do site Vá de Ônibus e disponibilizada aos desenvolvedores parceiros.

Outros projetos estão em estudo pela Fetranspor no sentido de disponibilizar ferramentas e aplicativos, colocando-os em operação quando estivermos mais próximos da realização da Copa do Mundo FIFA. “Nossos planos são o de fortalecer cada vez mais as relações de parceria com os desenvolvedores, disponibilizando o algoritmo de planejamento de viagem do site Vá de Ônibus para contarmos com parceiros que queiram incluí-lo em suas aplicações. Ao mesmo tempo, temos como objetivo otimizar o site Vá de Ônibus também para os celulares mais simples, atingindo o maior número de pessoas possível”, diz Richele. Além das ferramentas e aplicativos, a entidade vem atuando em outras frentes para gerenciar o transporte público. De acordo com a Diretora, o projeto de informação ao usuário da Fetranspor não se resume às mídias online – um grande esforço também está sendo feito para melhorar a qualidade da informação física nas ruas, através da implantação dos corredores BRS. “A falta de informação sempre é o maior obstáculo na realização de eventos deste porte, já que teremos um grande número de turistas na cidade que devem ser informados sobre qual a melhor opção de deslocamento”. Ela garante que, com a entrada em operação de novos BRTs, uma grande racionalização será realizada no sistema, com a implantação de um sistema tronco-alimentado, alterando a forma como as pessoas realizam deslocamentos na

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cidade. “É de vital importância que esta nova configuração da rede de transportes seja informada aos passageiros, garantindo cada vez mais uma experiência plena de mobilidade com qualidade”, conclui Richele. Vai Rio Os cariocas contam com outro sistema exclusivo para facilitar a movimentação pela cidade, o aplicativo VaiRio, desenvolvido pelo jornal O Globo e disponível gratuitamente para iOS e Android. A ferramenta informa em tempo real como está a fluidez do trânsito, permite que os usuários vejam, ao ativarem o GPS de seus aparelhos, os problemas que acontecem ao seu redor num raio de cinco quilômetros. O VaiRio também pode traçar rotas e, a partir delas, receber informações sobre as condições de tráfego no caminho escolhido. Quem estiver na Praia de Botafogo, por exemplo, e precisar chegar à Avenida Rio Branco, no Centro, poderá digitar este trajeto no celular. O aplicativo fornecerá, então,

as alternativas de caminhos, mostrando o tempo que será gasto nas condições de tráfego daquele momento – informações sobre o trânsito ao redor da rota selecionada e até mesmo acidentes também são visualizados. O aplicativo permite ainda que as rotas diárias sejam salvas. O usuário pode optar por receber alertas sobre tudo o que acontece em seus trajetos mais frequentes, ou nos bairros que o interessam, escolhendo, inclusive os horários e os dias para que as notificações sejam enviadas. Os alertas com as condições das rotas surgem como mensagens na tela inicial do celular, e o usuário não precisa abrir o aplicativo para ver o que está acontecendo em seus roteiros. E mais, as pessoas também poderão reenviar para amigos, pelas redes sociais ou por e-mail, os alertas que receberem. E como o estilo de vida do carioca jamais combinará com estresse, nos dias em que o engarrafamento for muito complicado, o VaiRio vai ajudá-los a relaxar e aproveitar; no aplicativo, será possível ver as dicas de cinemas e restaurantes perto do local onde o usuário estiver parado.

Aplicativos gratuitos ajudam a fugir do trânsito

Fale Trânsito Contém informações de trânsito de ruas e estradas de diversas cidades do país. Funciona por comando de voz e as instruções de rotas são, igualmente, dadas em voz alta.

MapLink Trânsito A função do aplicativo é oferecer aos usuários detalhes sobre a rota escolhida, como lentidão e acidentes. A interface é simples e intuitiva e cobre diversas cidades, entre elas o Rio de Janeiro.

Meus Carros Funciona a partir do conceito de atuar como um centro de informações sobre os veículos da família. Com ele, é possível verificar, em um gráfico, a eficiência do combustível e os quilômetros rodados em cada automóvel da casa.

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FuelLog Oferece ferramentas para o gerenciamento e monitoramento do consumo de combustível. Seus módulos auxiliares gerenciam os gastos com manutenção, pedágios, estacionamentos e até seguro. Útil para os esquecidos, o aplicativo envia lembretes ao usuário quando está próximo da data das revisões periódicas.

Waze É um GPS que mistura funções de geolocalização com redes sociais. Permite criar grupos e adicionar amigos; trocar mensagens sobre rotas alternativas, pontos de interesse no mapa e até acidentes de trânsito; e criar um avatar para seu carro, que evolui conforme a distância percorrida.

Olho na Estrada Para quem depende das rodovias para chegar ao trabalho ou à faculdade, ou viaja com frequência de carro, o aplicativo mostra, por meio de imagens, a condição do trânsito em tempo real nos estados de São Paulo e Paraná. Não há informações sobre se atenderá o Rio de Janeiro.

Wabbers Aqui, quem fornece as informações a respeito do trânsito são os próprios usuários. Trata-se de uma rede social colaborativa de motoristas, que informam as melhores opções de rota, congestionamentos e seus motivos (acidente, semáforo quebrado, obras, polícia, veículo quebrado, excesso de veículos e alagamentos), entre outros.

Trânsito Estadão Este aplicativo oferece informações sobre o trânsito nas seguintes cidades: Barueri, Belo Horizonte, Cuiabá, Curitiba, Diadema, Goiânia, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Vitória. A informação é apresentada diretamente nos mapas dos locais. Obs.: Todos eles estão disponíveis para o sistema iOS e Android Fontes: O Globo, Veja e CanalTech 2013 Julho | Justiça & Cidadania 39


Saco cheio Fernando Foch

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Desembargador do TJRJ Membro da COMCI – Comissão Mista de Comunicação Institucional do TJRJ

reocupa a incapacidade de os políticos enten­ derem as manifestações que têm sacudido a rotina brasileira e delas extrair lição. Sem se compreender esse não se diga movimento, mas fenômeno, as multidões não serão caladas com conversa fiada em se assumir o discurso que as ruas sugerem e em se lançar propostas espetaculares, como a de uma assembleia constituinte exclusiva para a reforma política, que bem poderia ser feita pelos poderes instituídos. Ou de um plebiscito de igual jaez. Tudo tem jeito de manobra 40

de marketing, a objetivar ocupação de espaço na mídia, e por longo tempo, através de encontros da Presidente da República com setores do Estado e da sociedade civil. Não é suficiente anunciar e efetivar redução de tarifas de transportes, com o comprometimento de investimentos públicos, dado que, por força de subsídios, a parcela de solidariedade social dos concessionários e permissionários permanece no crédito do povo. É inócuo decidir destinar todos, ou quase todos, os royalties do pré-sal para educação, até porque o que urge melhorar é a qualidade do ensino em

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Foto: Fernando Frazão/ABr

todos os níveis, seja a prestada pelo Estado, seja a que está a cargo da iniciativa privada. É preciso mudar a filosofia do ensino, fazer com que os dois primeiros graus não sejam uma usina de formação de analfabetos funcionais, mudar radicalmente o superior, retomar e incentivar a pesquisa científica, formar profissionais competentes. Importar médicos por certo não abre leitos, não conserta equipamentos nem supre falta de material. Acenar com boa parcela dos recursos do pré-sal também não elimina de imediato essas carências nem as minora, não diminui o sofrimento de quem hoje, agora, precisa de socorro e não o tem. Dar tratamento de crime hediondo aos de corrupção ativa, de corrupção passiva e a alguns outros da mesma natureza, tampouco elimina essa forma de delinquência, até porque torna utópica a execução da pena o precário sistema penitenciário brasileiro. Sem contar como disse o Ministro da Justiça, ante condenação imposta a seleto rol de condenados, entre nele ficar preso e morrer, melhor morrer. Sem contar, sobretudo, com o que isso quer dizer.

Todas essas medidas visam a adiar o problema, com o demérito de incentivar protestos não mais difusos, como os das primeiras semanas da onda de manifestações, mas tópicos, localizados, dos paroquiais aos nacionais. É a realimentação da crise, num claro sinal de novos tempos. Os políticos não o percebem e se empenham em acalmar, não exatamente resolver. Adia-se, empurra-se com a barriga, como, aliás, é o caso da rejeição da PEC 37, quanto ao que não é demais lembrar que “matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa” (CRFB, art. 60, § 5o). Em outra, pode. Tampouco as multidões serão caladas, levando-se à Justiça uma meia dúzia de arruaceiros que têm aproveitado as oportunidades para apedrejar, incendiar, depredar e de permeio saquear o comércio, dado que essas brigadas, se são compostas por um grupelho trotskista que com certeza nunca leu Leon Trótski, hão de ter o reforço prestimoso de quem tenha interesse em justificar repressão policial mais contundente, além, é claro, do concurso indisfarçado de delinquentes de variadas especialidades criminosas. Aliás, a imprensa tem dado sua contribuição para acalmar as multidões, como se panaceias fossem o suficiente. Nas transmissões ao vivo das manifestações e nos noticiários, derramou-se em elogios à imensa maioria ordeira dos manifestantes. Disse que as passeatas eram bonitas. Afirmou que elas, pacificamente realizadas, eram saudável exercício da democracia. E deplorou a ação dos depredadores, a quem, com razão, chamou de vândalos. Adjetivou, tomou partido, mudou a regra de ouro da reportagem. Isso não ajuda. Acostumados à assessoria não de sociólogos, cientistas políticos e outros cientistas sociais, mas de marqueteiros e prestidigitadores políticos, eles, os políticos, se mostram apenas preparados para ganhar eleições e exercer o Poder na base do fisiologismo e da barganha de cargos públicos, disputados quase a tapa não pelo que neles se possa fazer no interesse público, mas pelo que representam em lucros eleitorais. A eles há de ter sido dito que a legitimidade do Poder é tão maior quanto maior for a aprovação popular de quem o exerce, e aí o que se vê, envolta em maciça propaganda, é a política da bica d’água e do açude – a bica d’água na favela, o açude no agreste, o mínimo do mínimo onde não há nada, para o máximo de clientelismo – que com o tempo se transmudou nas bolsas-isso, nas bolsas-aquilo e em coisas como a política de pacificação de favelas que, a qual se tem algum mérito, tem o defeito de empurrar delinquentes para lugares menos visíveis. Põe o lixo sob o tapete. São apenas exemplos. É enorme o rol de medidas que atacam os efeitos e não as causas dos graves problemas sociais brasileiros, como é de nossa triste tradição político-administrativa.

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“Antes que seja tarde, é preciso perceber que o saco está cheio. As massas, ao que parece, dele tiraram a viola. E mais: o saco pode se transformar numa Caixa de Pandora.”

No entanto, está claro que no país da propaganda política, das palavras vãs e das promessas descumpridas ou mal cumpridas, a opinião pública, esse implacável juízo coletivo da verdade, vê qualquer palavrório como mera fanfarrice. Sintomaticamente, ao fim do outro evento marqueteiro inspirado na crise, um jovem integrante do Movimento Passe Livre, de São Paulo, sentiu-se autorizado a dizer à imprensa que a Presidente não está preparada para discutir a pauta que propusera ao grupo, restrita, é verdade, a transporte. O fato ocorreu nessa sucessão de seus encontros com setores do Estado e com representantes da sociedade civil, de estudantes a sindicalistas, passando pelo pessoal do LGBT, o que, se nada adianta, pelo menos garante espaço na mídia e por semanas a fio. Tudo isso desnuda a perplexidade, a surpresa, a estupefação nas quais as ruas acuaram os políticos, mudos no primeiro momento. É preciso, no entanto, que eles entendam o que se passa, o que tem levado multidões às ruas, em impressionantes manifestações sem líderes e sem partidos, sem chefes e sem centrais sindicais, aliás, expressamente, estas e aqueles, rejeitados pela massa. Buscar essa compreensão é dever de quem exerce o Poder. Não é difícil. Se alguma dificuldade nisso existe, ela é a de se exercer o Poder com sincera consciência de que quem o detém dele deve-se desincumbir em consonância com a vontade média do povo e em prol do interesse público, não em benefício próprio, de um grupo de apaniguados, de um partido político ou de uma coligação partidária, aliás, no Brasil, de inconvincente substância ideológica. Se essa dificuldade for vencida, entender-se-á que na malversada democracia brasileira o povo tem enfiado a viola no saco das insatisfações. Insatisfações com palavrório vazio dos detentores do Poder e com os serviços públicos, com marketing político e com a corrupção, com a educação e com a insegurança, com a desordem urbana e com a carga tributária, com a compra de parlamentares e com as licitações fraudadas, com as chacinas e com a 42

falta de saneamento básico, com a Polícia e com a saúde pública, com a criminalidade e com a Justiça, com o desvio de verbas e com obras faraônicas para agrado da FIFA, com dólares em cuecas e com o dinheiro público jogado fora em coisas como, por exemplo, no Rio de Janeiro, a Cidade da Música e as praças esportivas (mal) construídas para os últimos Jogos Pan-Americanos. Mas não é só. Há evidente insatisfação com a iniquidade nas relações sociais, do que são exemplo as de consumo, as quais, tendo todo um Direito de proteção ao consumidor e, de um lado, toda uma estrutura vocacionada à sua efetividade, tem, de outro, planos de saúde, bancos, grandes organizações varejistas e concessionárias de serviço público em teimosa resistência ao cumprimento das obrigações que assumem, em renitente adoção de práticas abusivas e perseverante impingimento de cláusulas leoninas. Isso, sem falar na Administração Pública das várias esferas federativas, que recalcitram no cumprimento do Direito e tergiversam na hora de cumprir as condenações judiciais que recebem. Comprovam-no as demandas aos milhares, senão milhões, levadas ao Judiciário, que, por seu turno, a elas não dá pronta resposta porque, afora o volume de feitos, um arsenal de recursos, não por acaso engendrado, conspira contra a efetividade da prestação jurisdicional. Aliás, a Justiça tem sido poupada. Mas ninguém se engane. Está aí a Ação Penal 470, que teria sido, segundo abalizada voz, um ponto fora da curva do Supremo Tribunal Federal. Ela estará no foco das massas a partir do momento em que uma profusão de recursos puder levar à absolvição de qualquer dos condenados do “mensalão”. Ou à prescrição dos crimes que lhes foram imputados. Antes que seja tarde, é preciso perceber que o saco está cheio. As massas, ao que parece, dele tiraram a viola. E mais: o saco pode se transformar numa Caixa de Pandora. É preciso ainda entender que os líderes não são identificáveis. Eles não têm corpo nem mente. Nem RG, endereço ou CPF. A liderança é a informação, que sempre pressupôs o direito de ser informado e o de informar, este antes restrito ao Estado e à mídia. Todavia, a rede mundial de computadores, a world wide web, ou, como se prefira, a internet, especialmente através das redes sociais, o democratizou. Hoje, ele é efetivamente de todos. Por tudo isso, a lição que tem de ser aprendida pelos políticos é a de que a aprovação que legitima o poder exige políticas públicas de efetivos conteúdo, eficiência e eficácia. Não há lugar nem para a bica d’água nem para o açude, na velha ou na nova acepção. Também não há lugar para os marqueteiros nem para prestidigitadores políticos. Nesse cenário, novo pela amplitude do direito de informar, se exercita a verdadeira política e a verdadeira política não é mercadoria nem ação entre amigos.

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Felipe Dutra Asensi

Foto: André Telles

A judicialização da saúde no Brasil Professor da FGV Direito Rio

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Foto: Arquivo pessoal

progressiva constitucionalização que os di­reitos sociais passaram na década de 1980 no Brasil, associada aos desafios de imple­ mentação efetiva por parte do Estado, fez com que tais direitos fossem cada vez mais submetidos ao crivo das instituições jurídicas para a sua efetivação. A judicialização do direito à saúde, mais especificamente, tem versado sobre diversos serviços públicos, tais como o fornecimento de medicamentos, a disponibilização de exames e a cobertura de tratamentos para doenças. No Brasil, foi constituído um modo de sociabilidade em que a centralidade do Estado influenciou decisivamente a forma através da qual os atores sociais concebem o seu direito e o reivindicam. Esta centralidade do Estado no Brasil foi fundamental para a constituição de uma cultura política de reivindicação da saúde pelas vias formais estatais, recebendo cada vez mais destaque o Judiciário. O cenário da efetivação do direito à saúde, nos dias de hoje, passa não somente por uma relação estanque e episódica entre a sociedade, que figura como demandante, e o Estado, que é o responsável pela política (Executivo) ou por resolver conflitos (Judiciário). De fato, as instituições jurídicas têm cada vez mais se debruçado sobre as questões de saúde, e isto pode ser pensado como uma “faca de dois gumes” para o Sistema Único de Saúde. Por um lado, as instituições jurídicas podem potencializar e qualificar as deliberações nos espaços de participação – inclusive participando deles – e contribuírem para a intensificação das estratégias de efetivação do direito à saúde. De outro, tais instituições podem contribuir para o “apequenamento” ou “sufocamento” dos mecanismos participativos ou podem promover um relativo “abalo” na gestão continuada do SUS. Basicamente, observa-se no Judiciário brasileiro um boom de processos judiciais para a efetivação da saúde. Um exemplo paradigmático de julgado foi a decisão da Suspensão de Tutela Antecipada no 175, no Supremo Tribunal Federal, cujo relator foi o Min. Gilmar Mendes.

Este julgado, dentre tantos outros, revela que a intervenção judicial na saúde pode produzir resultados significativos no processo de efetivação deste direito. Porém, apesar de ter o potencial significativo de efetivar o SUS, o Judiciário possui desafios internos para lidar com as demandas de saúde, tais como: a) a predominância de ações judiciais de feição individual nos diversos tribunais brasileiros, inclusive na seara da saúde; b) a incipiente utilização de mecanismos extrajudiciais – a exemplo da arbitragem, auto-composição, etc -, exceto quando desenvolvidos pelas demais instituições jurídicas; c) a colonização por um perfil de classe média e classe média alta na judicialização, especialmente em municípios em que a Defensoria Pública não se encontra bem estruturada; d) a reprodução de uma visão medicalizada da saúde também pode ocorrer, principalmente com a sobrevalorização do saber médico e farmacêutico no processo decisório judicial; e) se comparado aos Conselhos e Conferências, o Judiciário pode ser visto pelos cidadãos como uma estratégia mais rápida, menos custosa e que requer menos esforços físicos e psicológicos em matéria de saúde; f) a decisão judicial pode produzir um impacto financeiro e orçamentário significativo, especialmente para pequenos municípios; g) a predominância da dimensão curativa na judicialização, que versa sobre a concessão de medicamentos, deferimento de exames, etc, em detrimento da dimensão preventiva. Na medida em que o Judiciário se fortalece no Brasil e assume o protagonismo na efetivação do direito à saúde, estaria este Poder necessariamente efetivando o SUS? Talvez sim, talvez não. O protagonismo das instituições jurídicas – e, em especial, do Judiciário – não esteve isento de contradições no Brasil, mas isso é um processo compreensível. O que se observa, na verdade, é uma “faca de dois gumes” na relação entre Estado, sociedade e instituições jurídicas no processo de efetivação do direito à saúde e de consolidação do SUS. Uma questão é certa: apesar dos desafios, é melhor com ele do que sem ele!

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Foto: Divulgação TCE

Os Tribunais de Contas e a lei eleitoral Jonas Lopes de Carvalho Junior

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Presidente do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ)

nossa Constituição Federal construiu um sistema que reforçou o princípio democrático e o controle dos governantes pelos governados, o denominado controle social. Este sistema, baseado na separação, equilíbrio e controle entre os Poderes Políticos, originou um novo direito do cidadão, reconhecido como o direito fundamental à boa administração. 44

O conceito da boa governança foi sendo construído tendo como pilares, além da legalidade, legitimidade e eficiência no gerenciamento dos recursos públicos, os princípios da relação ética, conformidade, transparência, e responsabilidade de prestar contas dos atos de gestão. Nos termos dos artigos 70 e 71 da Carta Magna, a fiscalização da administração pública é exercida pelo

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Foto: Arquivo pessoal

Poder Legislativo, mediante controle externo, com o auxílio dos Tribunais de Contas. Qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos tem o dever de prestar contas aos Tribunais de Contas. Para manter o equilíbrio entre os poderes, a Constituição prevê dois regimes jurídicos de contas públicas: contas de governo, exclusivo para a gestão política do presidente, governador e prefeito, nas quais o Tribunal de Contas emite um Parecer Prévio, favorável ou contrário à aprovação das contas, que constitui uma análise técnica da avaliação do desempenho do Chefe do Executivo no resultado da gestão orçamentária, financeira e patrimonial, e o julgamento político levado a efeito pelo Legislativo, que poderá aprovar ou não as contas; e as contas dos administradores de recursos públicos, prestadas ou tomadas, que sofrem um julgamento técnico realizado em caráter definitivo pela Corte de Contas, pela regularidade ou não, podendo imputar débito (reparação de dano patrimonial) ou aplicar multa (punição), nos caso de irregularidade. Atualmente, muito se fala sobre as consequências da irregularidade das contas, principalmente no tocante à possível inelegibilidade do responsável por contas irregulares. A competência para decidir se determinado agente público pode se candidatar ou não, isto é, se o mesmo será declarado inelegível é da Justiça Eleitoral. A lei eleitoral, a Lei Complementar no 64/90 com as alterações promovidas pela recente Lei Complementar no 135/10, popularmente conhecida como Lei da Ficha Limpa, dispõe que são inelegíveis os que tiverem suas contas relativas a cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável, nos termos do inciso II do art. 71 da Constituição Federal, se referindo, portanto, ao julgamento efetuado pelo Tribunal de Contas sobre as contas dos administradores públicos. A Lei da Ficha Limpa acresceu que aplica-se a inelegibilidade “a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”. Assim, a legislação submete os chefes do Poder Executivo, especialmente os prefeitos, nos casos em que além das funções de governo exercem as de ordenador de despesas, a julgamento de suas contas, com caráter de exclusividade, pelos Tribunais de Contas, nos termos do inciso II do art. 71 da CF. Ora, a prestação de contas ao TCE é um dever constitucional. Quando o Tribunal de Contas julga as contas de um administrador, cumpre um mandamento constitucional e propicia o controle social dos governantes pelos governados. Esse é o valor jurídico do julgamento das contas pelo Tribunal e ele é definitivo porque assim dispõe nossa Carta Magna.

“Infelizmente, quando falam em retirar poder dos Tribunais de Contas, pretendem retirar os critérios técnicos de avaliação da gestão pública, esvaziar a transparência, impedir o controle social e, portanto, ofender a democracia participativa.”

Quando o TCE emite um Parecer Prévio nas contas de governo, ele é uma peça técnica, que também vai propiciar a transparência e o controle social. Mas a Constituição prevê que o julgamento final quanto à aprovação das contas de governo é o julgamento político pelo Legislativo, obedecendo ao equilíbrio entre os poderes. Os Tribunais de Contas não impedem a candidatura de ninguém, apenas cumprem o dever constitucional de julgar contas de administradores de recursos públicos. A lei eleitoral e o julgamento da Justiça Eleitoral definem quem é inelegível por ter contas rejeitadas pelo Tribunal de Contas por irregularidades insanáveis. Porém, negar o valor jurídico do julgamento das contas do ordenador de despesas e do Parecer Prévio das contas de governo emanados dos Tribunais de Contas é negar o valor expresso em nossa Constituição. E mais do que isso, é negar os princípios basilares do nosso regime democrático, do equilíbrio entre os poderes e da transparência e controle social. O exercício da cidadania pressupõe o direito e o dever de participação na gestão pública. A Constituição Federal e a legislação garantem diversos instrumentos para o exercício do controle social na atividade do Estado, inclusive instituiu deveres de transparência e responsabilidade fiscal. Infelizmente, quando falam em retirar poder dos Tribunais de Contas, pretendem retirar os critérios técnicos de avaliação da gestão pública, esvaziar a transparência, impedir o controle social e, portanto, ofender a democracia participativa.

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Os contratos eletrônicos no âmbito do Direito do Consumidor Thiago Ferreira Cardoso Neves

E

Professor da Emerj

m boa hora veio a lume regulamentação acerca da contratação no comércio eletrônico no âmbito do Direito do Consumidor. Mais precisamente em 15 de março de 2013 foi editado, pela Presidenta da República, o Decreto no 7.962, o qual veio dirimir as tormentosas controvérsias que envolvem a celebração de contratos no meio eletrônico. O crescimento e expansão da internet são fatos inexoráveis. O avanço da tecnologia e o anseio da sociedade pelo acesso rápido e seguro aos mais variados serviços e bens materiais levam os fornecedores a expandir os seus horizontes, ingressando no mar da rede mundial de computadores pelo qual navegam milhões de internautas. Estes, incentivados pelo acesso fácil aos mais variados bens de consumo, e pelas inúmeras ofertas disponibilizadas com pagamentos facilitados, concretizam os negócios sem o mínimo de cautela. Ocorre que, por conta da celeridade desse assombroso crescimento das relações virtuais, o Poder Legislativo brasileiro não logrou êxito em acompanhar o mesmo ritmo de desenvolvimento, deixando descobertos os milhares de consumidores que, no afã de contratar, acabam lesados pelos fornecedores que, na omissão da lei, não se cansam de praticar condutas abusivas. Por isso, diz-se que é oportuna a chegada do Decreto no 7.962/2013, editado com o fim de regulamentar a contratação no comércio eletrônico. Note-se que não houve alteração no texto do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. A Presidenta da República, no uso das atribuições conferidas pelo constituinte originário no art. 84, caput e inciso IV da Magna Carta, editou o presente 46

decreto e, assim, sanou inúmeras controvérsias até então existentes, tornando inequívoca a plena aplicação do CDC a essas modernas relações. Desde logo é importante observar que o comércio eletrônico não se restringe às relações travadas no âmbito da internet. O comércio eletrônico, ou e-commerce, pode ser conceituado como o conjunto de relações travadas entre fornecedor e consumidor, realizada em um estabele­ ci­mento empresarial virtual, através, ou não, da internet. Isso porque, toda e qualquer relação travada virtual­ mente entre o fornecedor e consumidor, através da transmissão eletrônica de dados em que não há o contato físico entre as partes, pode ser conceituada como atividade de comércio eletrônico. Firmada essa premissa, passaremos ao exame, propriamente, das inovações trazidas pelo Decreto no 7.962/2013. Dispõe o art. 1o do Decreto em exame que a contratação no comércio eletrônico deve abranger os seguintes aspectos: informações claras a respeito do produto e serviço do fornecedor; atendimento facilitado ao consumidor; e respeito ao direito de arrependimento. Vê-se, de plano, que o legislador consagrou, como pedra de toque dessas modernas relações, a observância ao princípio da transparência e do dever de informar, previstos nos arts. 6o, III e 31 do diploma consumerista. Tal aspecto decorre, obviamente, do fato de que as contratações no comércio eletrônico são feitas à distância, sem que o consumidor tenha contato direto com o produto ou serviço oferecido. Por essa razão, imperioso é que o fornecedor, no estabelecimento virtual em que é feita a oferta, disponibilize ao consumidor todas as informações necessárias do

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Foto: Arquivo Pessoal

produto ou serviço ofertado para que ele possa exercer livremente o seu direito de escolha, bem como possa discernir sobre a verdadeira necessidade ou utilidade do bem posto à sua disposição. Consagrou o legislador, também como pedra funda­ mental, o respeito ao direito de arrependimento, o que é fundamental nas compras feitas à distância. Esse direito é uma garantia contra práticas abusivas e propagandas enganosas, de modo que, o consumidor que não tem contato direto com o produto ou serviço, e o adquire pelo meio eletrônico, incentivado e estimulado pela propaganda formulada no site do fornecedor, tem o direito de devolvê-lo, no prazo de 07 dias a contar da data do recebimento do produto ou serviço, nos termos do art. 49 do diploma consumerista, fazendo ainda jus à devolução de todo e qualquer valor pago. Tal direito será exercido na forma do art. 5o do próprio Decreto, que impõe ao fornecedor o dever de informar ao consumidor, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do arrependimento. Assegura-se, dessa forma, que o consumidor não seja surpreendido e vilipendiado por um produto ou serviço que não corresponde ao que ele efetivamente desejava. Ademais, é possível que o consumidor, diante de uma propaganda agressiva e predatória, acabe por adquirir aquilo que, em verdade, não necessitava. Assim, tem ele um prazo de reflexão, após o recebimento do bem, para decidir por permanecer, ou não, com a coisa, independentemente da existência de vício. Em seu art. 2o, o Decreto no 7.962/2013 exige que os fornecedores disponibilizem todas as informações necessárias à sua identificação, como nome empresarial e o número de cadastro no CNPJ, além de obrigatoriamente

indicar seu endereço físico para sua localização e contato pelo consumidor. Trata-se de medida salutar que assegura ao consumidor a fácil identificação do fornecedor, garantindo-lhe o contato físico com este quando necessário para a solução de imbróglios envolvendo a contratação eletrônica. No art. 3o, o Decreto em estudo regulamenta a questão dos já muito difundidos sites de compras coletivas, através dos quais os consumidores logram obter melhores preços e condições de pagamento, desde que aquele mesmo produto ou serviço seja adquirido por um número mínimo de pessoas. Prevê o mencionado dispositivo que, além de tais sítios eletrônicos deverem conter, obrigatoriamente, as informações previstas no artigo anterior, deverão, ainda, informar a quantidade mínima de consumidores para a efetivação do contrato; prazo para utilização da oferta pelo consumidor; e identificação do fornecedor responsável pelo sítio eletrônico e do fornecedor do produto ou serviço ofertado. Objetiva-se, ainda uma vez, proteger o consumidor mediante o fácil acesso aos dados dos fornecedores, conferindo ao adquirente do produto ou serviço meios eficazes para contatar o fornecedor, bem como de satisfazer a sua pretensão reparatória no caso de dano. Ademais, prestigiou-se, novamente, o dever de informar o consumidor, dever esse corolário dos princípios da transparência e boa-fé. Por fim, traz o art. 4o do Decreto regras acerca da própria contratação, assegurando ao consumidor o amplo acesso aos termos do contrato, antes mesmo da efetivação do vínculo, assegurando-lhe, assim, toda segurança, desde o conhecimento dos termos do instrumento contratual, até as formas possíveis e seguras de se efetivar o pagamento do preço. É essa mais uma medida que visa permitir ao consumidor ter a plena consciência e certeza daquilo que se está para contratar, possibilitando-lhe, inclusive, desistir da contratação mesmo antes da celebração do vínculo, evitando-se, assim, o posterior e muitas vezes tormentoso exercício do direito de arrependimento, o qual é disciplinado, como já se expôs anteriormente, no art. 5o do próprio Decreto. Vê-se, pois, que o Decreto no 7.962/2013, embora com um pouco de atraso, ante o assombroso crescimento do comércio eletrônico, tem nítido objetivo de proteger o consumidor, assegurando-lhe o amplo acesso à informação, bem como compelindo os fornecedores a agir com maior transparência. Foi, portanto, salutar a medida, tendo em vista os inúmeros conflitos que exsurgem dessa relação, a qual é travada sem o contato físico das partes, o que traz, ainda para um grande número de pessoas, um sentimento de insegurança, o qual deve ser superado, uma vez que o futuro já se faz presente, e a ninguém se permite fugir dos inexoráveis avanços da tecnologia.

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“Caloura Chica da Silva” Lei 10.639/2003 e a questão do racismo

Carlos Alberto Lima de Almeida

Diretor Geral da Escola Superior de Advocacia – OAB Niterói

Quem ama mesmo de verdade, tem que correr todo o risco”, disse a escrava ao Comendador João Fernandes, quando lhe instigava a lhe dar a carta de alforria. Anos atrás, retornando de Brasília, quem sentou ao meu lado foi a atriz Zezé Motta, que viveu a personagem no premiado filme brasileiro, baseado no livro “Memórias do Distrito Diamantino”, de João Felício dos Santos. A lembrança da agradável conversa que tive me veio à lembrança quando li a notícia de que um aluno veterano do curso de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em março de 2013, segurava uma estudante acorrentada, com a pele pintada e com um cartaz escrito “caloura Chica da Silva”. Mas que ninguém pense que o aluno estava fazendo uma homenagem ao talento de Zezé Motta, premiada como melhor atriz por sua atuação na referida obra cinematográfica. O trote foi repudiado pela Reitoria da UFMG, pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE) e em diversas manifestações em nossa sociedade. A Diretora da Faculdade de Direito, ainda no mês de março, designou professores para uma Comissão de Sindicância a fim de apurar as responsabilidades decorrentes dos fatos ocorridos no dia 15 de março na referida instituição de ensino. Durante debate sobre o trote, realizado no mês de abril, segundo noticiado no site da UFMG, a ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), teria dito que a reflexão 48

é mais importante que a punição. “Em uma instituição de educação, como a Universidade, o mais importante é a reflexão – para que o trote não aconteça mais e para que os próprios jovens repensem o seu posicionamento e o seu modo de agir”1. No mês de maio as instituições de ensino celebraram a Lei Áurea, lembrando que há 125 anos foi abolida a escravatura no Brasil. Mas também podemos dizer que há 10 anos foi aprovada uma lei que tinha como um dos objetivos implícitos que episódios como o trote da “caloura Chica da Silva” não acontecessem mais em nosso país. Do Projeto de Lei no 259/1999 a Lei 10.639/2003 No dia 11 de março de 1999 foi apresentado o Projeto de Lei no 259, com a seguinte ementa: Dispõe sobre a obrigatoriedade da inclusão, no currículo oficial da Rede de Ensino, da temática “História e Cultura AfroBrasileira” e dá outras providências. No seu art. 1o, o Projeto de Lei fixava que nos estabelecimentos de ensino de 1o e 2o graus, oficiais e particulares, se tornava obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. No § 1o determinava que o conteúdo programático relacionado ao art. 1o incluiria o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a

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Foto: Ulisses Franceschi

contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil. No § 2o determinava que os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira seriam ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e de História Brasileiras. No § 3o fixava que as disciplinas História do Brasil e Educação Artística, no ensino de 2o grau, deveriam dedicar pelo menos 10% de seu conteúdo programático anual ou semestral à temática referida naquela lei então proposta. No seu art. 2o, o Projeto de Lei fixava que os cursos de capacitação para professores deveriam contar com a participação de entidades do movimento afrobrasileiro, das universidades e de outras instituições de pesquisa pertinentes à matéria. No seu art. 3o, o Projeto de Lei fixava que o calendário escolar deveria incluir o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. O art. 4o do projeto fixava que a lei entraria em vigor na data da sua publicação e o art. 5o fixava a revogação das disposições em contrário. Para os proponentes, justificava-se a apresentação do Projeto de Lei, entre outros aspectos sustentados, como meio de viabilizar o resgate da verdadeira história de contribuição do povo negro no desenvolvimento do país, até então renegada tanto no que era transmitido nas salas de aula pelos professores, quanto pelo material didático utilizado pelos alunos. Segundo a visão dos congressistas, o

sistema oficial de ensino, cada vez mais, apresenta-se como um dos principais veículos de sustentação do racismo. Em 10 de janeiro de 2003, o Projeto de Lei no 259/1999, após aprovado e com ajustes em sua redação final, foi transformado na Lei 10.639/2003, alterando a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dando outras providências. Para os que não acompanham a trajetória de luta para o reconhecimento da importância do negro na construção do nosso Brasil, vale lembrar que no mês de março daquele mesmo ano, ocorreu a mais expressiva vitória e conquista do Movimento Negro com a criação, com status de Ministério, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, órgão de assessoramento direto e imediato ao presidente da República na coordenação de políticas para a promoção da igualdade racial, o que foi feito por intermédio da Medida Provisória no 111, de 21 de março de 2003. O Conselho Nacional de Educação e a regulamentação da Lei 10.639/2003 O Conselho Nacional de Educação (CNE), por intermédio do Parecer CNE/CP no 3/2004, se pronunciou sobre as diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afrobrasileira e africana. O referido parecer é especialmente dirigido aos administradores dos sistemas de ensino, de mantenedoras de estabelecimentos de ensino, aos estabelecimentos de ensino, seus professores e a todos implicados na elaboração, execução, avaliação de programas de interesse educacional, de planos institucionais, pedagó­ gicos e de ensino. Além destes, também é dirigido às famílias dos estudantes, a eles próprios e a todos os cidadãos comprometidos com a educação dos brasileiros. E por que é importante tal destaque? Porque tais sujeitos não podem ser, como também se depreende da articulação com o Estatuto da Criança e do Adolescente, negligentes em suas responsabilidades no que se refere às relações étnico-raciais, ao reconhecimento e valorização da história e cultura dos afrobrasileiros, à diversidade da nação brasileira, ao igual direito à educação de qualidade, isto é, não apenas direito ao estudo, mas também à formação para a cidadania responsável pela construção de uma sociedade justa e democrática. Ao discorrer sobre questões introdutórias o Parecer é contextualizado como uma política social focalizada nos negros, de modo a estimular seu reconhecimento ao sentido de que pertença à cultura nacional, seja expressando visões de mundo próprias, manifestando com autonomina, individual ou coletiva, seus pensamentos,

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direito que lhe é assegurado pelo conjunto normativo vigente no país. Conclama seus destinatários à adoção de postura pró-ativa, mais do que apenas reconhecerem que são todos, ou melhor, que somos todos responsáveis pela reconstrução dessa realidade social já reconhecida no conjunto normativo do Estado brasileiro, no Movimento Negro, na doutrina, em decisões judiciais, mas que para muitos ainda permanece opcionalmente ignorada de modo que não seja necessário sair da zona de conforto e mudar os meios de enfrentamento da questão étnicoracial no dia a dia das escolas. No que se refere à educação das relações étnicoraciais se posiciona demonstrando que o sucesso das políticas públicas de Estado, institucionais e pedagógicas, visando a reparações, reconhecimento e valorização da identidade, da cultura e da história dos negros brasileiros depende de uma estrutura para o seu desenvolvimento, o que envolve condições físicas, materiais, intelectuais e afetivas favoráveis para o ensino e para aprendizagem. Além do mencionado, também destaca que todos os alunos negros e não negros, bem como seus professores, precisam sentir-se valorizados e apoiados. Este contexto, depende também, de maneira decisiva, da reeducação das relações entre negros e brancos, o que, como exposto no documento, se designa como relações étnico-raciais. Em seguida, também afirma que a referida educação étnicoracial depende de trabalho conjunto, de articulação entre processos educativos escolares, políticas públicas, movimentos sociais, visto que as mudanças éticas, culturais, pedagógicas e políticas nas relações étnicoraciais não se limitam à escola. Mas como reeducar as relações étnico-raciais no Brasil? Tal pergunta deve passar pela cabeça de vários profissionais envolvidos com a educação escolar, muitos deles, com o pensamento consolidado no sentido da inexistência de racismo no Brasil. Para responder tal questão o parecer explica que para reeducar as relações étnico-raciais no Brasil, é necessário fazer emergir as dores e medos que têm sido gerados. Neste sentido, é preciso entender que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade impostas a outros. E então decidir que sociedade nós queremos construir daqui para frente, ou seja, significando a adoção de uma postura pró-ativa de transformação da sociedade. Para reeducar as relações étnico-raciais no Brasil, combater o racismo, trabalhar pela redução das desigualdades, entre outros tantos pontos relevantes, as escolas e os profissionais terão que enfrentar desafios de revisão de suas posturas pessoais, profissionais, de projetos escolares já consolidados, enfim, será necessário sair da zona de conforto, investir e ter um trabalho de planejamento previsto no projeto político pedagógico. 50

O parecer propõe toda uma mudança na maneira de se pensar e agir nas instituições de ensino, dentro e fora da sala de aula. Não se destina a mudar apenas condutas, mas tradições culturais persistentes em nossa sociedade, que mascaram e perpetuam estruturas racistas e opressoras. Além disso, destaca o tema racismo para a inserção na bibliografia e documentos normativos da escola, bem como a importância da disponibilização do parecer aos professores. O referido parecer foi homologado por despacho do Ministro, publicado no Diário Oficial da União de 19/5/2004. Em decorrência, o Conselho Nacional de Educação editou a Resolução CNE/CP no 1/2004, que instituiu Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. A pesquisa sobre a Lei 10.639/2003 e a percepção dos alunos e dos profissionais da educação Defendida em dezembro de 2012 na conclusão do Doutorado em Política Social na Universidade Federal Fluminense, minha tese discute, a partir de reflexões relacionadas à alteração instituída nas diretrizes e bases da educação nacional por intermédio da Lei 10.639/2003 (que alterou a Lei 9.394/1996 para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”), a problemática das relações étnico-raciais no ambiente escolar, revelando a importância do tema no campo da política social brasileira. A pesquisa teve como objetivos gerais contribuir para a produção de conhecimentos relativos à operação do racismo na sociedade brasileira, em especial no campo da política de educação; e verificar as estratégias que os profissionais da educação, tais como professores, coordenadores e diretores de instituições de ensino vêm utilizando para enfrentar o problema. O conjunto de ideias e informações sobre temas como raça/cor, racialismo, racismo à brasileira e discriminação racial, bem como os conceitos extraídos do Estatuto da Igualdade Racial, tais como discriminação racial ou étnicoracial, desigualdade racial, desigualdade de gênero e raça, população negra, políticas públicas e ações afirmativas, acabaram por me fazer, na perspectiva de examinar os objetivos implícitos e explícitos na Lei 10.639/2003 e a percepção dos sujeitos pesquisados, enfrentar o desafio de revisar a literatura, examinar documentos, refletir sobre dados históricos, enfim, percorrer um longo caminho até esse momento de apresentação dos resultados encontrados, a partir de uma análise efetuada com um olhar da área do direito em permanente diálogo com a educação. No contexto da pesquisa, portanto, é possível, a partir das respostas dos sujeitos pesquisados, verificar se o

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fato de existir no Brasil uma imposição legal no sentido da inclusão no currículo oficial da Rede de Ensino da obrigatoriedade da temática “História e Cultura AfroBrasileira”, por si só garante que nas escolas particulares – frisem-se intencionalmente escolhidas no bairro onde há concentração do poder econômico da cidade e nas quais, nesse pequeno recorte social, em tese estão matriculados os filhos daqueles que supostamente estão neste contexto de renda familiar elevada – são identificadas informações que, de fato, possam confirmar a lógica do discurso da democracia racial no Brasil ou situações que revelem discriminação racial, em qualquer contexto, contribuindo, como já explicado, para a produção de conhecimentos relativos à operação do racismo na sociedade brasileira, em especial no campo da política de educação. Ao investigar as situações de racismo presenciadas pelos alunos nas escolas pesquisadas, vemos que os 37,6% que responderam afirmativamente, identificaram 80 situações supostamente relacionadas ao racismo. O emprego das variantes de cor para expressar as situações de racismo pode ser percebido na resposta de 33 alunos, nelas contidas falas discriminatórias, entre outros exemplos, a partir do emprego de expressões como “neguim”, “preto”, “pretinho” e “negrinho”. A segunda resposta mais expressiva quantitativamente não permitiu identificar o contexto da discriminação. Assim, 16 relatos foram agrupados em outras situações presenciadas, porém não descrita a causa determinante da interpretação do aluno, mas tão somente, em alguns casos, a indicação imprecisa envolvendo “brincadeira”, “jogo de futebol na hora do recreio”, “apelido”, entre outros exemplos o que me faz concluir que deve ser feito um trabalho direcionado aos desenvolvimento de relações interpessoais respeitosas, inclusive e especialmente nas áreas livres, tais como corredores, banheiros e pátio escolar, onde grande parte dessas relações são travadas. Também foram percebidas ofensas relacionadas com a natureza do sujeito, em que o contexto da associação do sujeito à raça teve por objetivo a discriminação, revelada em 12 relatos. Para seis alunos, ocorreu a situação de racismo envolvendo a expressões macaco(a) para a realização da afronta discriminatória. Em seguida, com quatro relatos de cada, foram encontradas situações em que o emprego das expressões teve por objetivo associar pessoas negras ou a contextos de delinquências e defeitos morais ou para expressar situação de hierarquia social entre o ofensor e a vítima. Por fim, um relato de ofensa na associação animal/ deficiência, com o emprego da palavra burro para designar a pessoa discriminada e uma associação de ordem moral/ sexual, guardando a ofensa em relação à orientação sexual do sujeito ofendido. Dois alunos não responderam e um respondeu fora do contexto, perfazendo 100% daqueles que responderam a pergunta aberta.

A conclusão é que as respostas dos alunos apontam para variados tipos de insultos raciais que precisam receber tratamento adequado por parte dos profissionais da educação. As respostas me conduzem para levantar a hipótese de que algumas das situações de racismo não chegam ao conhecimento da escola e dos profissionais que nela trabalham, o que me foi confirmado numa das respostas de um aluno: “Preconceito devido à cor de pele de um indivíduo, mas a escola não teve conhecimento.” Confrontando as situações de discriminação racial percebidas e as providências adotadas pelas escolas, percebe-se, a partir das vozes dos alunos, que o encaminhamento cinge-se majoritariamente ao plano disciplinar. Mesmo nas situações que optei por classificar como relacionadas ao diálogo/orientação é possível perceber, no contexto dos relatos, que não há uma identificação clara dos alunos sobre a atitude da escola em situações de racismo. Num universo de 213 entrevistados, apenas 18 relatos de providências significam muito pouco num cenário de responsabilidades fixadas constitucionalmente e na legislação infraconstitucional acerca do racismo, afinal 185 responderam sim, representando 86,9% da amostra. O conjunto formado pelos que responderam sim e mais ou menos representa 99,5% dos pesquisados, o que é muito expressivo no contexto envolvendo cinco escolas privadas. Porém, o racismo identificado é do outro, uma vez que 82,2% dos alunos pesquisados não se consideram racistas. O exame das respostas apresentadas para a questão “Você identifica alguma atividade educacional para evitar situações de racismo na escola?” foi um expressivo não, dito por 158 dos 213 entrevistados, indicando que não há identificação de alguma atividade educacional para evitar situações de racismo na escola, ou seja, nesta dimensão podemos afirmar que majoritariamente não são percebidas ações preventivas por 74,6% da amostra. Apenas 54 dos 213 entrevistados conseguiram identificar alguma atividade educacional para evitar situações de racismo na escola, representando 25,4% da amostra, o que me permite concluir que se existem medidas adotadas pelas escolas no recorte da prevenção, esse trabalho está sendo ineficiente porque não é percebido pela franca maioria do alunado. O trote denominado “caloura Chica da Silva” desafia a reflexão de todos os profissionais que trabalham com a educação, pois da educação infantil ao ensino superior ainda há muito trabalho a ser feito para que episódios assim não se repitam em nosso país.

Nota Disponível em https://www.ufmg.br/online/arquivos/027937.shtml Acesso em 22 de abril de 2013.

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Acumulação de cargos públicos Limite de jornada para verificação de compatibilidade de horários

Erika Cilena Baumann

Advogada

A

Constituição federal veda em seu artigo 37, XVI, a acumulação remunerada de cargos, empregos e funções públicas, salvo, exceções expressamente previstas e quando houver compatibilidade de horários. Verbis:

O próprio texto constitucional estende a proibição às empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público, conforme literalidade do inciso XVII, do artigo 37.

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI. a) a de dois cargos de professor; b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico; c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas; (g.n.)

Art. 37 omissis (...) XVII - a proibição de acumular estende-se a empregos e funções e abrange autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público; (g.n.)

José dos Santos Carvalho Filho1 assevera que: O fundamento da proibição é impedir que o cúmulo de funções públicas faça com que o servidor não execute qualquer delas com a necessária eficiência. Além disso, porém, pode-se observar que o Constituinte quis também impedir a cumulação de ganhos em detrimento da boa execução das tarefas públicas. 52

Da leitura do inciso XVI, do art. 37, supracitado, depreende-se que a acumulação remunerada de cargos, empregos e funções pública só será lícita quando decorrente do exercício de dois cargos de professor; um cargo de professor com outro técnico ou científico; ou dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas, e, desde que haja compatibilidade de horários e respeito ao teto remuneratório. A celeuma que se traz aqui, contudo, diz respeito à verificação do requisito relativo à compatibilidade de horários. À primeira vista, poder-se-ia concluir que a simples verificação quanto a não coincidência de horários seria

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Foto: Mariana Fróes

suficiente para aferir a ausência de ilicitude na acumulação de cargos prevista no art. 37, XVI, acima comentado. Contudo, a questão afigura-se controvertida. Isso porque, embora não haja fixação legal acerca da jornada máxima permitida, em se tratando de hipótese de acumulação lícita de cargos, a Advocacia Geral da União AGU manifestou-se por meio do parecer AGU/WM-9/98 (Anexo ao Parecer GQ-145), cuja ementa segue abaixo transcrita: Ilícita a acumulação de dois cargos ou empregos de que decorra a sujeição do servidor a regimes de trabalho que perfaçam o total de oitenta horas semanais, pois não se considera atendido, em tais casos, o requisito da compatibilidade de horários.

Nessa esteira, o Tribunal de Contas da União vem se posicionando no seguinte sentido: ADMISSÕES. MINISTÉRIO DA SAÚDE. ACUMULAÇÃO DE CARGO PÚBLICO COM EMPREGOS NA INICIATIVA PRIVADA. INCOMPATIBILIDADE DE HORÁRIO. ACUMULAÇÃO DE TRÊS CARGOS PÚBLICOS. VEDAÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL. ILEGALIDADE DE DOIS ATOS. NEGATIVA DE REGISTRO. LEGALIDADE DOS DEMAIS ATOS. REGISTRO. - A jurisprudência do TCU é pacífica no sentido da ilegalidade de jornadas de trabalho superiores a sessenta horas por semana (acórdãos 533/2003, 2.047/2004,

2.860/2004, 155/2005, 933/2005, 2.133/2005, 544/2006, todos da 1a Câmara). - Viola o princípio da legalidade e da moralidade administrativa a acumulação do cargo público de médico do Ministério da Saúde, no regime de vinte horas semanais, com o exercício de outros três empregos na iniciativa privada, totalizando oitenta horas de expediente semanais. - Ofende, também, a Constituição Federal a acumulação de três cargos públicos de médico, com o exercício de oitenta e três horas de expediente. - A possibilidade constitucional de dupla acumulação de cargos, no caso de médicos, não prescinde da compatibilidade de horários, plenamente exigível pelo administrador público competente.”2 (grifou-se)

Nessa linha de raciocínio, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) adotou a tese do Tribunal de Contas da União, permitindo a acumulação de cargos e empregos públicos, somente se o módulo semanal de trabalho for limitado em 60 (sessenta) horas, como forma de dar eficácia ao preceito constitucional, bem como preservar a higidez do trabalhador: RECURSO DE REVISTA. ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS. PROFISSIONAL DE SAÚDE. COMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS. 1. A Constituição da República, em seu artigo 37, XVI, -c-, dispõe que é possível a acumulação de dois cargos públicos

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pelo profissional de saúde, desde que a profissão seja regulamentada e exista compatibilidade de horários. 2. No entanto, na hipótese dos autos, verifica-se que o acúmulo de cargos exigiria da Reclamante trabalho com carga horária de setenta e duas horas semanais. Significa que a Autora teria que trabalhar de segunda-feira a sábado, seis vezes por semana, cumprindo jornada de doze horas. Portanto, verifica-se que a Reclamante pleiteia o acúmulo de cargos com carga horária de trabalho muito superior ao limite constitucional e legal estabelecido. Tal situação caracterizaria jornada de trabalho exaustiva, em ofensa à legislação trabalhista vigente. 3. O Tribunal de Contas da União, em razão da competência do art. 71, III, da Constituição da República, tem se manifestado no sentido de que o limite máximo de jornada de trabalho em casos de acumulação de cargos ou empregos públicos é de 60 (sessenta) horas semanais. Precedentes da Corte de Contas. 4. Por todo o exposto, pode-se concluir que o requisito da compatibilidade de que trata o texto constitucional para acumulação de dois cargos públicos não deve ser interpretado meramente com base na colisão de horários. Deve considerar, também, a possibilidade efetiva de cumprimento de jornada, sem prejuízo ao desempenho do cargo ou à saúde do trabalhador. Recurso de Revista não conhecido.3 (grifou-se)

Recentemente, a Advocacia-Geral da União – AGU enfrentou novamente o tema em apreço, por meio da Nota no 114/2010/DECOR/CGU/AGU, citada no parecer no 0075 3.20/2011/JPA/CONJUR/MP4, o qual, por sua vez, concluiu: 22. Essas peculiaridades que circundam o caso ora analisado denotam a impossibilidade de se sustentar o entendimento que a limitação ao regime de 60 (sessenta) horas semanais de trabalho seria uma condição suficiente e necessária para autorizar a acumulação de cargos públicos. A compatibilidade de horários reclamada pela Constituição Federal não há de ser entendida a partir do parâmetro único do somatório das jornadas de trabalho. Deve ela ser encarada sob duas perspectivas diversas: primeiramente, tomando por base a própria condição existencial do servidor, que não poderá ser privado e tampouco se privar voluntariamente do tempo necessário ao seu repouso, à preservação de sua higidez física e mental e ao desenvolvimento de atividades relacionada a sua vida privada; sob outro prisma, é mister considerar o interesse da Administração Pública em ter à sua disposição um agente física e mentalmente apto a desenvolver regularmente as suas atribuições, sem comprometer a idéia de eficiência que permeia a atuação do Poder Público (art. 37, caput, CRFB). 23. Com efeito, nos casos em que o exercício simultâneo 54

de cargos públicos implique supressão de direitos sociais previstos na CRFB/88 (v.g, repouso semanal remunerado), não será lícito falar em compatibilidade de horários. O simples fato de inexistir choque ou superposição de horários entre as jornadas dos cargos acumulados não dispensa a observância das normas constitucionais de natureza cogente incidentes sobre a relação travada entre o servidor e a Administração Pública. Não se pode defender a idéia de compatibilidade de horários contra constitutionis ou à margem das disposições constitucionais referentes aos direitos sociais do trabalhador/servidor. (destaques no original)

Não obstante, verifica-se que o próprio TCU possui entendimento divergente: ADMISSÃO DE PESSOAL CONSIDERADA ILEGAL. ACUMULAÇÃO DE CARGOS POR PROFISSIONAIS DA ÁREA DE SAÚDE CONSIDERADA IRREGULAR, POR ULTRAPASSAR A CARGA HORÁRIA DE 60 HORAS SEMANAIS. DESCUMPRIMENTO DE DETERMINAÇÃO DO TRIBUNAL. MULTA. PEDIDOS DE REEXAME. PRECEDENTE JURISPRUDENCIAL QUE ADMITE O EXERCÍCIO CUMULATIVO DE FUNÇÕES, LEGALMENTE PERMITIDAS, SEM LIMITE DE CARGA HORÁRIA SEMANAL, DESDE QUE SEJA DEMONSTRADA, CASO A CASO, A COMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS. EXCLUSÃO DA MULTA, POR TER SIDO TORNADA INSUBSISTENTE A DETERMINAÇÃO QUE ORIGINOU TAL PENALIDADE.5 (grifou-se)

Na decisão supracitada, restou consignado que a Constituição permite a acumulação, sem nenhuma limitação, bastando para tanto haver compatibilidade horária, conforme argumentos transcritos abaixo: Não havendo norma legal, limitando as acumulações à jornada semanal de 60 horas, torna-se arbitrária e injurídica aquela restrição, pela via que foi feita. Conquanto a CLT estabeleça que deve haver intervalo não inferior a 11 horas, entre o término de uma jornada e o início da subseqüente (CLT, art. 66), esta regra é restrita a cada vínculo empregatício, não se aplicando aos cargos ou empregos diversos, nem a trabalho em órgãos ou entidades diferentes. Por outro lado, a jornada semanal de trabalho, necessariamente, não se distribui, apenas, por cinco dias, visto como pode haver caso de expediente aos sábados, sobretudo nos estabelecimentos oficiais de ensino. (...) Cumpre salientar que o Constituinte assegurou a possibilidade de acumulação de dois cargos privativos de profissionais de saúde, mas não estabeleceu previamente a limitação da carga horária total, razão pela qual a pos-

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sibilidade de exercício desse direito constitucionalmente assegurado deverá ser verificada caso a caso, principalmente levando-se em consideração as peculiaridades da função. Não cabe à Administração instituir uma limitação genérica não prevista e nem autorizada pela Carta Magna, haja vista o nítido tratamento excepcional estabelecido no inciso XVI do seu art. 37. (grifou-se)

O Supremo Tribunal Federal – STF e o Superior Tribunal de Justiça - STJ, também já se pronunciaram de maneira diversa à posição majoritária do TCU, conforme acórdãos a seguir: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO. ACUMULAÇÃO DE CARGOS. EXISTÊNCIA DE NORMA INFRACONSTITUCIONAL QUE LIMITA A JORNADA SEMANAL DOS CARGOS A SEREM ACUMULADOS. PREVISÃO QUE NÃO PODE SER OPOSTA COMO IMPEDITIVA AO RECONHECIMENTO DO DIREITO À ACUMULAÇÃO. COMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS RECONHECIDA PELA CORTE DE ORIGEM. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO IMPROVIDO. I - A existência de norma infraconstitucional que estipula limitação de jornada semanal não constitui óbice ao reconhecimento do direito à acumulação prevista no art. 37, XVI, c, da Constituição, desde que haja compatibilidade de horários para o exercício dos cargos a serem acumulados. II – Para se chegar à conclusão contrária à adotada pelo acórdão recorrido quanto à compatibilidade de horários entre os cargos a serem acumulados, necessário seria o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, o que atrai a incidência da Súmula 279 do STF. III - Agravo regimental improvido.6 (grifou-se) CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS. PROFISSIONAL DA SAÚDE. ART. 17 DO ADCT. 1. Desde 1o.11.1980, a recorrida ocupou, cumulativamente, os cargos de auxiliar de enfermagem no Instituto Nacional do Câncer e no Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro - IASERJ. A administração estadual exigiu que ela optasse por apenas um dos cargos. 2. A recorrida encontra-se amparada pela norma do art. 17, § 2o, do ADCT da CF/88. Na época da promulgação da Carta Magna, acumulava dois cargos de auxiliar de enfermagem. 3. O art. 17, § 2o, do ADCT deve ser interpretado em conjunto com o inciso XVI do art. 37 da Constituição Federal, estando a cumulação de cargos condicionada à compatibilidade de horários. Conforme assentado nas instâncias ordinárias, não havia choque de horário nos

dois hospitais em que a recorrida trabalhava. 4. Recurso extraordinário conhecido e improvido.7 AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS. LIMITAÇÃO DA CARGA HORÁRIA SEMANAL: IMPOSSIBILIDADE. REQUISITO NÃO PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AGRAVO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO.8 ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. AGRAVO REGIMENTAL. SERVIDOR PÚBLICO. ACUMULAÇÃO DE CARGOS. PROFISSIONAL DA SAÚDE. LIMITAÇÃO DA CARGA HORÁRIA. INEXISTÊNCIA. EXEGESE DO ART. 37, XVI, DA CF/88 E ART. 118, § 2o, DA LEI 8.112/90. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Comprovada a compatibilidade de horários e estando os cargos dentro do rol taxativo previsto na Constituição Federal, não há falar em ilegalidade na acumulação, sob pena de se criar um novo requisito para a concessão da acumulação de cargos públicos. Exegese dos arts. 37, XVI, da CF e 118, § 2o, da Lei 8.112/90. 2. Agravo regimental improvido.9 ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. MINISTRO DE ESTADO DA SAÚDE. ACUMULAÇÃO DE CARGOS. DEMISSÃO. VERIFICAÇÃO DE COMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS. MERA APLICAÇÃO DO PARECER AGU GQ-145. VIOLAÇÃO DO DIREITO LÍQUIDO E CERTO, PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. Cuida-se de impetração efetuada por servidora pública federal demitida por acumulação supostamente ilícita de dois cargos públicos da área de saúde, na qual a administração tão somente cotejou o quantitativo máximo de horas fixado pelo Parecer GQ-145, da Advocacia-Geral da União, com o que era laborado pela servidora. Do cotejamento, instou-se que a servidora reduzisse a carga ou se exorasse de um dos cargos. Da negativa, iniciou-se processo administrativo disciplinar em rito sumário para demitir a servidora por acumulação ilícita de cargos, ou seja, por infração ao art. 118, da Lei n. 8.112/90. 2. No caso concreto, a servidora possuía uma jornada de 40 horas semanais, num cargo, combinada com plantões noturnos de 12 horas de trabalho, por 48 horas de descanso, noutro cargo, sem sobreposição de horários. A administração entendeu que a simples totalização semanal de 72 horas e meia, por si, configura a ilegal cumulação. 3. Os Tribunais Regionais Federais possuem jurisprudência assentada de que o Parecer AGU GQ-145, de 30.8.1998, não assenta em força normativa a autorizar a aplicação

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de demissão por acumulação ilegal de cargos. Diversos precedentes do TRF-1, TRF-2, TRF-3 e TRF-4. 4. Anote-se que a observância à jurisprudência dos tribunais de origem se justifica, porquanto o STJ possui a função central de evitar discrepâncias notórias quanto ao modo de aplicar o direito entre os tribunais da federação. Esse cariz uniformizador das construções pretorianas federais evita desvios hermenêuticos entre plexos jurisdicionais de diferentes estados ou regiões da União, coibindo que o direito dos cidadãos seja aplicado de forma incoerente. 5. O Tribunal Regional Federal da 2a Região, inclusive, já se deparou com situações idênticas à que é encontrada nos autos, nas quais não acolheu que a existência de carga horária semanal de 72 horas e meia, por si, seja autorizadora de similar demissão por violação ao art. 118, da Lei n. 8.112/90. Precedentes do TRF-2. 6. O Supremo Tribunal Federal examinou a matéria e negou provimento ao recurso extraordinário, do Estado do Rio de Janeiro, que produziu Decreto similar ao Parecer AGU GQ-145, de 3.8.1998, considerando a regulamentação como violadora, aduzindo ser “regra não prevista” e “verdadeira norma autônoma” Precedente: Recurso Extraordinário 351.905, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 24.5.2005, publicado no Diário da Justiça de 1o.7.2005, p. 88, Ementário vol. 2.198-05, p. 831, republicação no Diário da Justiça de 9.9.2005, p. 63, publicado na LEX-STF, v. 27, n. 322, 2005, p. 299-303. 7. O direito líquido e certo da impetrante decorre de que a Constituição Federal permite a acumulação de dois cargos na área de saúde (art. 37, XVI, da CF; art. 118, da Lei n. 8.112/90) e, assim, cumpre à Administração Pública comprovar a existência de incompatibilidade de horários em cada caso específico, não bastando tão somente cotejar o somatório de horas, com o padrão derivado de um parecer ou, mesmo de um Decreto. Segurança concedida.10 (grifou-se)

Conclusão Desse modo, embora a norma constitucional não tenha fixado limite objetivo à compatibilidade de horários, a jurisprudência do TCU esposa que a extrapolação do limite de 60 (sessenta) horas semanais pelo exercício dos cargos acumuláveis implica na ilicitude da acumulação. Atente-se, contudo, que há decisão divergente desta tese, de lavra do próprio TCU, consignando que se a Constituição Federal não estabeleceu limite objetivo para a aferição da compatibilidade de jornada, não cabe ao intérprete fazê-lo. Destaque-se que os Tribunais Superiores – STF e STJ – pronunciaram-se no sentido de que a compatibilidade de horários deve ser comprovada de forma casuística, não avalizando, portanto, a tese desenvolvida e adotada majoritariamente pelo TCU. 56

O TST, por seu turno, sem ainda ter posição pacificada, entende que jornada superior a 60 (sessenta) horas traduz-se em “jornada de trabalho exaustiva, em ofensa à legislação trabalhista vigente”. Assim, conclui-se que, se por um lado à administração pública (direta e indireta) é recomendável a adoção do posicionamento majoritário do Tribunal de Contas da União, vez que, ante a sua sujeição ao controle e fiscalização deste,11 seus gestores podem ser responsabilizados pelos atos que forem de encontro às orientações por ele emanadas; por outro, o trabalhador privado de acumular licitamente cargos, empregos ou funções públicas, em razão de restrição que extrapola os limites constitucionais, poderá socorrer-se do Poder Judiciário, o qual já demonstrou possuir entendimento contrário, conforme se denota da jurisprudência colacionada.

Notas FILHO. José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 627. 2 TCU. Acórdão 2551/2011 - Primeira Câmara. PROCESSO 007.413/2011-4. Ministro Relator WALTON ALENCAR RODRIGUES. DOU 02/05/2011 3 TST. 8a Turma. PROCESSO No TST-RR-76300-34.2009.5.04.0007. Relator: Juíza Convocada Maria Laura Franco Lima de Faria. DEJT 25/11/2011. 4 http://www.tc.df.gov.br/ice4/legislacao/Parecer_0075_JPA320.htm. Acesso em 22/03/2013. 5 TCU. Acórdão 1606/2012 - Primeira Câmara. PROCESSO 025.870/2006-8. Ministro Relator AUGUSTO NARDES. DOU 11/04/2012. 6 STF, 6a Turma, Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n.o 633.298/MG; Relator: Ministro Ricardo Lewandowski; Julgamento: 13/12/2011. 7 STF, 2a Turma, RE 351905 / RJ - RIO DE JANEIRO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a): Min. ELLEN GRACIE. Julgamento: 24/05/2005. DJ 01/07/2005. 8 STF, Decisão monocrática. AI 762427 GO; Relator: Ministra CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 08/04/2011. DJe-074 19/04/2011. 9 STJ. AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO No 1.007.619 - RJ 2008/0019125-2. 5a Turma. Relator: MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA. DJe 25-08-2008. 10 STJ. MS 15415 / DF MANDADO DE SEGURANÇA 2010/0106093-8 Relator(a) Ministro HUMBERTO MARTINS (1130) Órgão Julgador S1 – PRIMEIRA SEÇÃO. DJe 04/05/2011 11 “Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder. Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária. (Redação dada pela Emenda Constitucional no 19, de 1998) Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete (...)” 1

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D om Quixote, por Ada Caperuto

Uma guerra que se vence com a prevenção Iniciativa pioneira por seu formato, o Noade, do TJ-RN, busca combater o problema da dependência química de maneira preventiva. Referência no Rio Grande do Norte, o programa também tem a missão de assessorar o Poder Judiciário no enfrentamento desta problemática, atuando na recuperação, reinserção social e resgate da dignidade de usuários e demais envolvidos com drogas.

Foto: Arquivo Noade

Lucineide Nascimento, coordenadora do Projeto

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om a efetivação de iniciativas de responsa­ bilidade social, o Poder Judiciário amplia cada vez mais seu campo de ação, agindo de maneira preventiva para que, futuramente, as demandas judiciais sejam minimizadas. Um dos expoentes deste posicionamento – digno dos mais expressivos méritos – é o programa desenvolvido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte (TJ-RN) por meio do Núcleo de Orientação e Acompanhamento aos Usuários e Dependentes Químicos de Natal (Noade). Graças a este trabalho, que está vinculado à 9a Vara Criminal da Comarca de Natal, em abril deste ano foi alcançado o índice de 90% de resolução das demandas que envolvem usuários de entorpecentes no Juizado Especial Criminal da capital do estado. Pioneiro no País por seu modelo de atuação, referência no Rio Grande do Norte como instituição atuante na área da dependência química, o Noade registra o atendimento de quase 6.500 pessoas em 13 anos de atividades. Deve esta conquista, principalmente, à abrangência de sua proposta. “Não existe no Estado qualquer outra instituição que ofereça à demanda de álcool e outras drogas atuação nas áreas da prevenção, do tratamento e da reinserção social, bem como à demanda familiar, a atenção, o apoio e a assistência necessária ao

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Fotos: Arquivo Noade

Equipe técnica do Noade acompanhada do Desembargador Saraiva Sobrinho (de terno), idealizador do projeto

pleno exercício da cidadania, na busca constante de parceiros e capacitação técnica da equipe, na tentativa de oferecer uma resposta às questões relacionadas a essa problemática”, declara a coordenadora do Núcleo, a assistente social Lucineide Nascimento. O Noade figura, desta maneira, como um braço do Poder Judiciário na promoção de efetiva participação deste na área da chamada drogadição, termo que define toda e qualquer modalidade de vício bioquímico. Suas ações visam à diminuição do número de processos relativos a usuários e demais envolvidos com drogas de todos os tipos. O objetivo maior é atuar preventivamente, mas o Núcleo cuida da recuperação e da reinserção de um público-alvo formado, primeiramente, por usuários e dependentes químicos imputáveis, mas estendido aos familiares e pessoas com este tipo de problema em seus lares que estejam interessadas em colaborar com o processo de tratamento e reinserção social destes indivíduos. Segundo o juiz Agenor Fernandes da Rocha Filho, da 9a Vara Criminal da Comarca de Natal, os usuários e dependentes químicos autuados e levados a juízo dispõem de uma oportunidade única: o tratamento prestado pelo Noade suspende, de imediato, o processo do qual esta pessoa fazia parte. “Durante a audiência identificamos o perfil dessa pessoa, se ele realmente atende aos requisitos de uma internação e aí, caso seja da vontade dele, o 58

encaminhamos para o tratamento”, destaca o magistrado, que acrescenta: “A eficácia desse tipo de ação na vida do cidadão depende do interesse de cada um. Infelizmente, a reincidência é muito grande”, lamenta. O autuado que não cumprir com os termos do acordo volta a responder o processo pela via judicial e estará sujeito a cumprir as penalidades da legislação. Atribuições e ações Entre as atribuições do Núcleo está a de assessorar os Juizados Especiais Criminais e os juízes das varas criminais nos processos que envolvam o uso de drogas, propiciando todas as orientações para o efetivo cumprimento das obrigações judiciais, no que concerne ao tratamento de dependência química. Junto aos usuários e familiares, seu papel é o de orientar, encaminhar e acompanhar o processo de tratamento, bem como estimular e participar em ações que propiciem e favoreçam a reinserção social, familiar e ocupacional dos beneficiários. Perante a comunidade, o Noade atua de modo a reduzir o impacto dos problemas sócioeconômico-culturais e dos agravos à saúde associados ao uso do álcool e outras drogas; orienta e estabelece intervenções, considerando a qualidade de vida, o bemestar individual e comunitário. Este trabalho é realizado em três diferentes frentes: prevenção, reinserção e recuperação social. Na primeira,

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Voluntária prestando serviço de orientação à população

compete ao Noade a participação em eventos, realizando um trabalho de orientação à população, através de palestras e panfletagem sobre as consequências do uso de drogas e as possibilidades de tratamento. Entre os mais recentes, estão o Justiça na Praça e o Ação Global, quando foram distribuídos panfletos e realizadas palestras sobre drogas para um público de adolescentes e jovens. “Participamos também de audiências coletivas, preparadas por nossa equipe, com a presença dos Juizados Especiais Criminais. Nessas ocasiões, temos a oportunidade de sensibilizar os autuados quanto ao artigo 28 da Lei de Tóxico (11.343/2008), para o tratamento de dependência química que será ofertado pelo Ministério Público na ocasião da audiência individual”, explica Lucineide. Já na área de recuperação, o Núcleo presta acolhimento aos usuários, encaminhando e acompanhando o tratamento da demanda, estabelecendo contatos com as unidades terapêuticas. De mesmo modo, estende seu apoio às famílias, as quais são encaminhadas a grupos de apoio. Finalmente, no campo da reinserção social, a equipe do Noade busca parceiros que promovam cursos profissionalizantes para encaminhamento da demanda atendida. Também orienta e acompanha o beneficiário no processo de inclusão no mercado de trabalho, intermediando o acesso do mesmo às instituições parceiras que atuam nesta área.

Histórico O Noade foi criado em 1999 por meio da iniciativa do desembargador Saraiva Sobrinho, na época Juiz de Direito da 4a Vara Criminal, sendo acatada pelo presidente do TJ-RN, o desembargador Ítalo Pinheiro. Em 19 de novembro de 2008, o Núcleo foi oficializado através da Lei Complementar no 371/2008. Institucionalmente, sua missão é assessorar os juízes dos Juizados Especiais Criminais e das Varas Criminais nos processos que envolvam seus jurisdicionados no uso de substâncias psicotrópicas – de acordo com a Lei no 11.434/2006. O Núcleo tem como parceiros as secretarias municipal e estadual de Saúde; a secretaria estadual de Segurança Pública e da Defesa Social; a secretaria municipal do Trabalho e Assistência Social; a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); o Hospital Universitário Onofre Lopes; o Ministério Público do Rio Grande do Norte; a Polícia Militar; além de diversas comunidades terapêuticas dedicadas à problemática da drogadição. Serviço Noade Telefone: (84) 3616.9696- 3616.9697 E-mail: noade@tjrn.jus.br Site: http://noade.tjrn.jus.br/

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Invista em Itaboraí

A capital dos bons negócios. Distante apenas 39km da capital do Rio de Janeiro, Itaboraí é hoje a grande oportunidade de excelentes negócios para empresas de diversos setores. Sede do Comperj - Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, e com uma Base Industrial e Tecnológica sendo implantada, o município terá em 10 anos, o seu PIB estimado em R$17 bilhões e sua população chegará a 1 milhão de habitantes nesse período. Esses empreendimentos estão atraindo empresas de diversos segmentos, pois hoje com a nova administração municipal, Itaboraí mostra um cenário de progresso e de modernização da cidade. Seu território faz divisa com Tanguá e Maricá, municípios que serão beneficiados pelo Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma via de escoamento que integrará uma importante região do estado que compreende de Itaguaí à Itaboraí, promovendo o desenvolvimento integrado de toda essa região.

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Itaboraí

Conheça Itaboraí, a cidade que será a segunda capital do estado e o melhor lugar para sua empresa.

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O último a errar Jairo Vasconcelos Rodrigues Carmo

Presidente do IRTDPJ-RJ Diretor da Anoreg-RJ

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em de Rui Barbosa a frase antológica: “O Supremo é o último a errar”. Lembrei-a ao ler Guilherme Fiuza, em “O Globo” de 8.6.2013, no artigo “Use a cabeça, senhor juiz”. Tratava da sabatina no Senado do ministro Luís Roberto Barroso para questionar algumas declarações, concluindo com a exortação que lhe serviu de título. A mensagem final era enfatizar que juízes devem vigiar contra o coração para centrar na racionalidade das decisões. Bem sei das ciladas do coração. Na ordem judicial, porém, cumpre pensar até onde apelos sentimentais interferem nos julgamentos. Avancei questionando se é possível julgar certos fatos da vida a salvo das emoções que agitam os litígios, tanto maior em muitas lides constitucionais, ante as vertentes partidárias, de cunho político ou ideológico, afora o drama das minorias diretamente atingidas, como ilustram os casos recentes sobre aborto de fetos anencefálicos, pesquisa com célulastronco embrionárias, casamento homoafetivo, reserva de terras indígenas, nepotismo, a lei da ficha limpa. Reafirmo o óbvio: tarefa hercúlea ser justo juiz. Imagina juiz do Supremo Tribunal Federal! Nesse sentido, Rui Barbosa foi menos crítico e mais indulgente. A toga não desnatura o ser. Ainda são mulheres e homens a transitar o mesmo chão da nossa comum humanidade. Para agravar, a aplicação das leis, por força de sua universalidade, já dizia Aristóteles, exige o favor da equidade como medida de correção das injustiças. Na quadra atual, aprofunda-se a dogmática da interpretação constitucional baseada na normatividade dos princípios, positivados ou implícitos, como meio de otimização da justiça concreta, nomeadamente os casos difíceis ou de omissão legislativa. O bom juiz ilumina o processo, identificando, quanto possível, a sabotagem da manipulação dos fatos relevantes e 62

“Nessa perspectiva, à vista dos processos, o poder-dever do juiz é infundir-lhes o valor de justiça inato nas leis, ciente que estas podem sonegar direitos elementares segundo a ética dos governantes e a vulnerabilidade dos destinatários das normas positivadas.”

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Foto: Arquivo pessoal

os sofismas argumentativos. Todos os manuais consagram o direito ao contraditório, mas na prática forense, por desídia, incompetência ou condições materiais, esse dogma irrenunciável pode virar jogo de aparências. A sentença qualificada é sempre substantiva, sabendo-se que os adjetivos podem esconder desinformação, ou servir para mascarar a falta de conhecimento da causa. Assim vulnera-se a imparcialidade (e não neutralidade), transmudando-a em peça retórica. Uma autocrítica institucional há de reconhecer o risco de prejulgamentos, o alinhamento ideológico e as carências intelectuais. Para reverter o quadro, clama-se rigor técnico e coragem moral. Fácil falar. A tormenta é que todo processo traduz a verdade dos contendores, versada ao tanger das paixões e interesses sectários. Ao fim e ao cabo, o veredito conservará a cisão inicial com a diferença dos aplausos da parte legitimada pela vitória. Usar a cabeça em nada atenua a frustração dos vencidos pela tese adversária que pode suscitar controvérsias. Enfim, a sentença-cabeça pode não trazer paz ao julgamento. Pior se a irracionalidade ou intolerância forem o nó íntimo a desatar. Após anos de judicatura, acedi em que é preferível um juiz ingênuo e sentimental. No juiz ingênuo, como criança, vejo o entusiasmo da entrega e envolvimento; o viés sentimental é a aptidão para perceber as nuanças da história contada, sentindo o pulsar da vida como ela é. Importa crer desconfiado. Como Tomé, o apóstolo. Nenhuma sentença surge isenta de dúvidas, apesar da palavra final que faz coisa julgada. Isso é especialmente dramático nas questões lacunosas, fronteiriças e extremadas em que o juízo dominante flui sombreado. Sabemos, por experiência, que muitos conflitos expõem problemas profundos e insolúveis no plano persuasivo. Naturalíssimo, portanto, que o justo juiz, sem abdicar do convencimento racional, por obra da reflexão, decida com a consciência queimando incertezas. Para além das virtudes ou vilanias dos personagens, por sobre as diabruras individuais ou coletivas, os juízes não podem declinar do seu ofício, havendo de resolver um cenário humano que, visto em si mesmo, tantas vezes continuará tenso e eclipsado. Daí que as sentenças, na maioria dos casos, parecem como luz entre grades que é o espaço onde os magistrados costumam viver. Juiz ingênuo é como um Dom Quixote que sai para andantes cavalarias. No momento em que inicia a caminhada dá-se conta das ruindades do mundo. Então nele aflora o apego sentimental, convencido de que toda sentença é ato único de responsabilidade coletiva. Para Dostoievski, a sensibilidade só é útil

se gerar solidariedade com a dor dos outros; a ser diferente, acresce Saramago, ela não serve pra nada. Nessa perspectiva, à vista dos processos, o poder-dever do juiz é infundir-lhes o valor de justiça inato nas leis, ciente que estas podem sonegar direitos elementares segundo a ética dos governantes e a vulnerabilidade dos destinatários das normas positivadas. Tarefa para gigantes a defesa da dignidade humana e dos direitos fundamentais. Todos confiam na sólida formação do novo ministro, frutuoso na advocacia, na docência e nas lições doutrinais. Como festeja a sociedade brasileira, também o celebro e lhe dou as boas vindas, com votos de que faça o STF “mais ideal do que é, tal como é”, conforme anelo de Fernando Pessoa em poema de Alberto Caeiro. No fundo, o que todos mais queremos é um modelo de justiça mais justiça do que a Justiça que temos vivenciado. Terá de trabalhar duro, infatigável, todos os dias, com as mãos, a cabeça, o coração, com tudo.

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E m foco, por Ada Caperuto

Cartilha do Ministério do Trabalho explica as diretrizes do Plansat Embora priorize o combate às mortes e invalidez permanente nos locais de trabalho em dois setores econômicos mais críticos – a indústria da construção civil e o transporte –, o Plano Nacional de Saúde e Segurança no Trabalho é voltado a todos os segmentos produtivos e composto por diferentes objetivos, divididos em estratégias de curto, médio e longo prazo.

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arantir a segurança e prover melhores con­ dições aos ambientes e relações de trabalho. Reduzir acidentes, evitando ocorrências de afastamento e, principalmente, os riscos fatais à integridade física dos trabalhadores. Uma medida leva à outra e, todas juntas, consequentemente, minimizam as demandas judiciais nos foros trabalhistas. Todos ganham, sem sombra de dúvida. Este encadeamento de iniciativas e resultados está previsto pela Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho (PNSST), regulamentada pelo Decreto no 7.602, de 7 de novembro de 2011. Em análise macro, o objetivo da norma federal é promover a saúde e a melhoria da qualidade de vida do trabalhador. Em uma visão mais particular, das ações práticas, foi lançado há um ano o Plano Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho (Plansat), pelos ministérios da Previdência Social, Saúde e Trabalho e Emprego. Embora as empresas não tenham um prazo definido para incorporá-las – e ainda não se sabe se será adotada qualquer medida neste sentido –, as diretrizes do Plano são esclarecidas em uma cartilha orientativa lançada pelo MTE e disponível em seu site na internet (http://portal. mte.gov.br/geral/publicacoes), na seção “Segurança e Saúde no Trabalho”. Ainda que priorize o combate às mortes e invalidez permanente nos locais de trabalho em dois setores econômicos mais críticos – a indústria da construção civil 64

“O Plansat foi elaborado pela Comissão Tripartite de Saúde e Segurança no Trabalho (CTSST), criada em 2008 e que conta com representantes do governo e a participação paritária das centrais sindicais e de algumas das principais associações empresariais.”

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e o transporte –, o Plansat é aplicável a qualquer segmento produtivo, sendo composto por diferentes objetivos, divididos em estratégias de curto, médio e longo prazos, além de um conjunto de tarefas de caráter permanente. De modo sintético, as diretrizes são as seguintes: a) inclusão de todos os trabalhadores brasileiros no sistema nacional de promoção e proteção da saúde; b) harmonização da legislação e articulação das ações de promoção, proteção, prevenção, assistência, reabilitação e reparação da saúde do trabalhador; c) adoção de medidas especiais para atividades laborais de alto risco; d) estruturação de rede integrada de informações em saúde do trabalhador; e) promoção da implantação de sistemas e programas de gestão da segurança e saúde nos locais de trabalho; f) reestruturação da formação em saúde do trabalhador e em segurança no trabalho e o estímulo à capacitação e à educação continuada de trabalhadores; e g) promoção de agenda integrada de estudos e pesquisas em segurança e saúde no trabalho. Na prática serão adotados, por exemplo, dispositivos legais e princípios comuns de Saúde e Segurança no Trabalho (SST) para todos os trabalhadores (do setor público e privado), independentemente de sua inserção no mercado, com elaboração, aprovação, implementação e fiscalização conjunta do poder público, em processo dialogado com as organizações dos empregadores e dos trabalhadores. Outro exemplo, neste caso com a diretriz “f ”, de educação

continuada: está prevista a inclusão de conhecimentos básicos em prevenção de acidentes no currículo do ensino fundamental e médio das redes pública e privada. Respaldo mundial O Plansat foi elaborado pela Comissão Tripartite de Saúde e Segurança no Trabalho (CTSST), criada em 2008 e que conta com representantes do governo e a participação paritária das centrais sindicais e de algumas das principais associações empresariais. A coordenação é efetuada pelos representantes de governo, em sistema de rodízio anual. Ali estão presentes a Central Única dos Trabalhadores, Central-Geral dos Trabalhadores do Brasil, Força Sindical, Nova Central Sindical dos Trabalhadores e União Geral dos Trabalhadores. Entre as representações empresariais estão: Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil, Confederação Nacional da Indústria, Confederação Nacional das Instituições Financeiras, Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo e Confederação Nacional do Transporte. O esforço conjunto está de acordo com a Convenção no 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que dispõe sobre Segurança e Saúde dos Trabalhadores e o Meio Ambiente de Trabalho e estabelece o dever do Estado-Membro de elaborar uma política nacional sobre o tema; e o Plano de Ação Mundial sobre a Saúde dos Trabalhadores da Organização Mundial da Saúde

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(OMS), que reforça a necessidade de uma política com coordenação intersetorial das atividades na área. Primórdios Sempre coube ao Ministério da Previdência Social (MPS), através de seu Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), dar amparo aos trabalhadores vítimas de acidentes e doenças profissionais. A proteção acidentária é anterior ao próprio nascimento da Previdência Social (1923), quando, em 15 de janeiro de 1919, o governo editou o Decreto no 3.724, que instituiu a indenização às vítimas de acidentes.1 No entanto, a ação de coibir os acidentes e as doenças profissionais sempre coube ao Ministério do Trabalho, muitas vezes unificado nos diversos períodos com o Ministério da Previdência e Assistência Social. A ação de fiscalização das condições de trabalho e do nascente contrato de trabalho iniciou-se na década de 1930, com a criação do então Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. A legislação que iniciou o detalhamento de cuidados com o ambiente de trabalho foi a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, quando foi editado o Capítulo V, que definiu uma série de regras que as empresas deviam observar para manter as condições salubres de trabalho. Também se instituiu o adicional de insalubridade onde persistissem tais condições, com desdobramentos nas chamadas aposentadorias especiais insalubres no início de 1960, por meio da Lei no 3.807, a Lei Orgânica da Previdência Social. Os anos 1960 e 1970 foram períodos em que se constatou um crescente número de acidentes, mortes e doenças profissionais no Brasil, que era tido como campeão mundial da acidentalidade – a média dos anos 1970 era de 1,5 milhão de acidentes, cerca de 4 mil óbitos e 3,2 mil doenças profissionais. Em 1975, o número de acidentes registrados bateu o recorde de 1,9 milhão, o que significava que, naquele ano, 14,74% dos 12,9 milhões de trabalhadores segurados sofrera algum acidente de trabalho. Para dar maior atenção às questões de Saúde e Segurança no Trabalho, o governo federal criou a Fundacentro em 1966, órgão que se dedica a estudos, pesquisas, formação e aperfeiçoamento da legislação trabalhista na área. Porém, talvez o avanço mais significativo na legislação tenha ocorrido por meio da Portaria no 3.214 de 1978, quando foram criadas as Normas Regulamentadoras (NRs) do Ministério do Trabalho. Estas normas, inicialmente, estabeleceram exigências para que as condições de trabalho fossem melhoradas: ampliou-se o papel das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (Cipas); estabeleceram-se parâmetros e limites no manuseio de substâncias químicas perigosas, maiores controles dos riscos físicos em geral; ampliaram-se os serviços próprios de segurança e medicina do trabalho 66

nas empresas (SESMTs); exigiram-se procedimentos de fiscalização e inspeção prévia das empresas que se instalavam, entre outras. Paulatinamente, a Previdência Social começou a reconhecer novas doenças profissionais por pressão dos sindicatos mais combativos na época (bancários, metalúrgicos e químicos) – entre elas as LER/ DORT, que foram objeto de Instruções Normativas no final dos anos 1980 – e ampliou também o reconhecimento das doenças profissionais em geral. Várias mudanças aconteceram ao longo da década de 1990 e nos primeiros anos do século XXI. Por exemplo, o Ministério da Previdência Social (MPS) propôs o Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP), legalmente instituído em 2006 e implementado em 2007, e o Fator Acidentário de Prevenção (FAP), implementado em 2010. Na Saúde foi criada, em 2002, a Rede Nacional de Saúde do Trabalhador (RENAST) e, em 2005, foi apresentada nova versão da Política Nacional de Saúde dos Trabalhadores (PNST) – até que chegamos à atual PNSST. Ao longo de todo esse processo foram se ampliando ou redefinindo as atribuições específicas dos Ministérios da Previdência Social, da Saúde (MS) e do Trabalho e Emprego (MTE). Estatísticas Os acidentes de trabalho geram custos também para o Estado. Cabe ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) administrar a prestação de benefícios, tais como auxílio-doença acidentário, auxílio-acidente, habilitação e reabilitação profissional e pessoal, aposentadoria por invalidez e pensão por morte. Estima-se que a Previdência Social gastou, só em 2010, cerca de R$ 17 bilhões com esses benefícios. Segundo dados oficiais, o Brasil é o quarto colocado mundial em número de acidentes fatais do trabalho. De acordo com o governo, é registrada, no País, cerca de uma morte a cada 3,5 horas de jornada diária. O número de acidentes de trabalho somou 659 mil em 2007, subindo para 701 mil em 2010. Porém, em 2007, o país tinha 37 milhões de trabalhadores, passando para 44 milhões em 2010. Em termos relativos, houve uma queda de 10%. As três atividades econômicas que registraram maior número de acidentes foram as de atendimento hospitalar, administração pública e o comércio varejista de mercadorias em geral. Essas três atividades foram responsáveis por 13,5% do total de acidentes registrados no ano de 2011.

Nota Referência principal: Estudo “Saúde e Segurança no Trabalho no Brasil: aspectos institucionais, sistemas de informação e indicadores”, publicado em 2011 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e organizado por Ana Maria de Resende Chagas, Celso Amorim Salim e Luciana Mendes Santos Servo.

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