Revista Justiça & Cidadania

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Edição 162 • Fevereiro 2014


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Justiรงa & Cidadania | Fevereiro 2014


S umário Foto: Daniela Smania / TJESP

Capa – Desembargador Nalini e o desafio

8 de gerir o maior Tribunal do Brasil Foto: Divulgação

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Justiça e independência

Foto: José Geraldo da Fonseca

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A guerra civil na Síria e a banalidade do mal

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Editorial – Os poderes do Ministério Público

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Decisão judicial: operação delicada

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Promoção da Saúde, Justiça e acessibilidade

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Dumping social ou delinquência patronal na relação de emprego?

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Dom Quixote – Justiça comunitária já atua em 14 estados beneficiando milhares de pessoas

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Justiça Itinerante – Ampliação democrática do acesso à Justiça

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Em Foco – OAB assume uma das maiores tarefas humanas do país

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Advogado é doutor

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Edição 162 • Fevereiro de 2014 • Capa: Daniela Smania/TJESP Av. Rio Branco, 14 / 18o andar Rio de Janeiro – RJ CEP: 20090-000 Tel./Fax (21) 2240-0429 editorajc@editorajc.com.br www.editorajc.com.br

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O a

Ano II - nº 4 - Outubro 2007

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E ditorial

Os poderes do Ministério Público O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindolhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Art. 127 da Constituição Federal

O

poder investigativo do Ministério Público (MP) vem sendo questionado pelos que entendem que essa competência deve ser exercida única e exclusivamente pelo Execu­ tivo, por intermédio, por exemplo, da Polícia Civil. Entretanto, a Constituição, ao determinar que o MP é responsável por promover privativamente a ação penal pública – e sabemos que isso pressupõe a existência mínima de provas capazes para justificar a ação em juízo –, deixou implícito que este tem o poder de investigar. O dito popular “quem pode o mais, pode o menos”, nem sempre se aplica, porque muitas vezes quem pode o mais, não pode o menos – sobretudo no campo da atuação pública ou do direito público, onde a regra de competência há de ser uma regra absoluta. Alguém até pode mais, mas não tudo. É preciso que a lei e a Constituição estabeleçam quem pode. De outra forma, teremos muita gente “podendo tudo”. Assim, o princípio dos poderes implícitos e da Teoria dos Poderes, aqui especificamente, quer afirmar que quem tem o poder de desencadear a ação penal, e, para fazê-lo, o faz por independência, é o Ministério Público, que pode também realizar a fase precedente, a de investigação. A Constituição diz que o MP pode realizar investigações na forma da lei: o Código de Processo Penal, o Código Penal, a Legislação Eleitoral e os Estatutos do Idoso e da Criança e do Adolescente. Os exemplos de códigos e 6

legislação citados, que vêm desde a década de 1960, cabem como referência, pois em todos eles está estabelecido que o Promotor de Justiça pode, para formar opinião, e ainda com o convencimento inicial, realizar investigações. O artigo 129 da Constituição, inciso II, afirma que compete ao MP zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de resguardo aos direitos assegurados na Carta magna. Cabe, portanto, ao promotor zelar pelo efetivo respeito aos poderes públicos na Constituição, e acompanhar se os direitos constitucionais do cidadão estão sendo respeitados pelos poderes. É ainda do texto do artigo 129 a prerrogativa para que o Ministério Público possa realizar investigações e expedir notificações e requisições para os procedimentos de sua alçada e competência. Impedi-lo de realizar investigações no campo penal significa atribuir ao Estado essa prerrogativa, o que de certo modo contraria o sistema constitucional que quer levar à construção de uma sociedade justa e igualitária, razão e fundamento com que se há de rechaçar a possibilidade de exclusão do poder investigatório do Ministério Público. O Ministério é público e não privado. Tudo que é feito no MP tem como finalidade cumprir finalidades públicas, sujeitas a controles, transparências, controle jurisdicional ou do próprio interessado. Não há procedimentos descartáveis no MP, muito menos informalidade. Tudo o que é feito é também uma expressão do Estado. Quando

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Foto: Sandra Fado

a Constituição fala em expedir notificações, requisições ou colher dados em seus procedimentos, ela aborda os trâmites administrativos feitos para subsidiar a atuação do Ministério Público, que pode ser feito em juízo, pelo oferecimento de denúncia, ajuizamento de ação pública ou, ainda, pela expedição de recomendações. Decorre também da Constituição Federal a afirmação de que o trabalho da polícia judiciaria é próprio ou típico das carreiras policiais. Está no artigo 144. Nele se constata que incumbe ao Estado a tarefa da polícia judiciária e há quem queira ver nisso a possibilidade de estabelecimento do monopólio em favor da Polícia Federal ou da Polícia Civil nos estados, ou no Distrito Federal, o que é absolu­ tamente equivocado. O motivo desse engano – na opinião dos defensores da competência investigatória do MP – é o da tradição no Brasil e em todo o mundo que esta fase precedente de investigação, que chamamos de inquérito policial, seja prescindível e dispensável. Exemplificando: se alguém leva ao Promotor de Justiça todas as provas, os papeis e as informações capazes de habilitá-lo ao oferecimento imediato de denúncia, ele não está obrigado a requisitar o inquérito policial. Classificar o inquérito policial de prescindível significa dizer que a atividade da polícia judiciaria é dispensável. Quando necessária, ela deve ser primeiramente feita pelas carreiras policiais ou pelas instituições policiais da Polícia Civil. Mas em nenhum instante a Constituição Federal declara que incide ali um monopólio de exclusividade para a polícia judiciária. Não é razoável e nem seria constitucional que assim se estabelecesse porque é sabido que do próprio sistema, com unidade e ordenação, decorre que os parlamentares também podem investigar. A aprovação da resolução no 23.396 que altera a atuação do MP em crimes eleitorais, de iniciativa do Ministro Dias Toffoli, foi decidida por maioria, com voto contrário do Ministro Marco Aurélio Mello e discordância do Procurador Geral da República, acompanhado pelas manifestações também discordantes do presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, Alexandre Camanho, e do presidente da Associação dos Membros do Ministério Público, César Mattar Jr. As controvérsias levantadas repercutiram intensamente e o Ministro Dias Toffoli fez declarações que, ao retornar da viagem de Costa Rica, onde acompanha as eleições, apresentará relatório onde analisará os argumentos do MP e que “não dá para antecipar um posicionamento sobre isso, seria até uma deslealdade com os ministros. A decisão de aprovar a resolução não foi individual, então não posso mantê-la ou alterá-la individualmente. A decisão é do colegiado.”

A iniciativa do Ministro Toffoli tem sentido lógico e está a merecer observações e uma devida atenção no tocante a certos açodamentos que vêm acontecendo à miúdo com a instauração de inquéritos sem o procedimento de acurada e responsável investigação, pois têm ocorrido casos que, por falta de cuidados na apuração de denúncias e fatos, instituições públicas e privadas e cidadãos probos de reconhecido conceito estão sendo enxovalhados e punidos moralmente, sem que posteriormente lhes sejam reconhecidas culpabilidade, quando o malefício praticado não será mais recuperado. Infelizmente a calúnia, a mentira, a infâmia e a vilania têm sido usadas e abusadas com uma constância impressionante, atingindo indiscriminada e barbaramente a dignidade e a moralidade dos ultrajados com prejuízos insanáveis, de pouco valendo a busca material do dano à moral, vergastada e destruída. A investigação preliminar pelo Ministério Público há de ser necessária e rigidamente obrigatória para evitar o uso e o abuso das denúncias assacadas aleatoriamente. Portanto, pretender alteração no poder investigatório do Ministério Público parece o mesmo que abjurar contra a realidade que vivenciamos do Estado Democrático de Direito.

Orpheu Santos Salles Editor PS: Parte ponderável do editorial decorre da audição de palestra do eminente jurista Márcio Fernando Elias Rosa, Procurador Geral de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo.

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C apa, por Ada Caperuto

Desembargador Nalini e o desafio de gerir o maior Tribunal do Brasil “É preciso acertar o passo com a contemporaneidade e ser mais ousado. A sociedade brasileira não quer outra coisa de sua Justiça: que ela seja efetiva, eficaz e eficiente”, afirma o novo presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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m dezembro do ano passado, em votação realizada no Palácio da Justiça, na capital paulista, o Desembargador José Renato Nalini foi escolhido por seus pares para ser o novo presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJESP). Durante o biênio 2014/15, o magistrado terá ao seu lado os desembargadores Eros Piceli e Hamilton Elliot Akel, respectivamente os novos vice-presidente e corregedor-geral. Eleito com 238 votos dos companheiros de colegiado (66,8% do total de 356 desembargadores que participaram da votação), o presidente Nalini substitui o Desembargador Ivan Sartori no comando do tribunal paulista. Nascido em 1945, na cidade de Jundiaí, José Renato Nalini formou-se em Direito pela Universidade Católica de Campinas. Após atuar como Promotor de Justiça, ingressou na magistratura em 1976 como juiz substituto da 13a Circunscrição Judiciária, com sede em Barretos. Posteriormente, trabalhou também nas comarcas de Monte Azul Paulista, Itu, Jundiaí e na capital. Em 1993, foi promovido ao cargo de juiz do Tribunal de Alçada Criminal, no qual ocupou os cargos de vice-presidente e presidente. 8

Desembargador desde 2004, Nalini integrou a Primeira Câmara de Direito Público do TJESP e, cumulativamente, a Câmara reservada ao Meio Ambiente, desde sua fundação, em 2005, até ser eleito Corregedor-Geral da Justiça – cargo que ocupava até então. Dentro do Tribunal também integrou o Sexto Concurso de Outorga de Delegações, que são os cartórios extrajudiciais, e presidiu o 183o Concurso de Ingresso à Magistratura. Nesta entrevista, além de sua carreira na magistratura e de suas metas à frente da administração do TJESP, Nalini também fala sobre sua paixão: a literatura. Autor de vários livros – entre eles A rebelião da toga, Ética ambiental, Constituição e Estado Democrático, Ética geral e profissional, e Por que Filosofia? –, desde 2003 o magistrado ocupa a cadeira de no 40 na Academia Paulista de Letras e mantém um blog sobre as sessões de APL, meio ambiente e Direito (http://renatonalini.wordpress.com/). Justiça & Cidadania – Qual era sua expectativa em torno da eleição para a presidência do TJESP, já que havia muitos candidatos na disputa? José Renato Nalini – Ofereci meu nome e minha experiência para os colegas. Na verdade, exerci todas as atribuições cometidas a um juiz durante a minha longa carreira. Fui promotor durante quase quatro anos, depois ingressei por concurso na magistratura em 1976. Passei pelo interior e morei nas comarcas onde judiquei. Fui juiz auxiliar da Corregedoria-Geral da Justiça, juiz auxiliar da Presidência do Tribunal, substituto em segundo grau sem prejuízo da assessoria administrativa à cúpula do Tribunal, juiz do Tribunal de Alçada Criminal, no qual cheguei a presidir o Centro de Estudos, depois fui eleito vice-presidente e presidente. No Tribunal de Justiça, integrei a banca de

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Foto: Xxxxxxxxxxxx Daniela Smania / TJESP

Desembargador José Renato Nalini, presidente do TJESP

concurso de ingresso, depois presidi a banca de concurso para outorga de delegações, a banca de concurso de ingresso à magistratura e fui eleito Corregedor-Geral da Justiça. Contei com a colaboração de muitos – 128 – desembargadores para visitas correcionais pelo interior. As comarcas não visitadas, visitei-as pessoalmente. Percorri 70 mil quilômetros por todo o Estado de São Paulo. Embora fossem quatro os candidatos, todos os demais excelentes, nenhum dos outros possuía essa experiência. Foi isso que talvez tenha levado quase 70% do Tribunal a sufragar meu nome. Fiquei feliz por vários motivos: por terminar minha carreira conduzindo o Tribunal a que sirvo há quase 40 anos e pela prova de maturidade dos meus pares ao escolher a experiência e a disponibilidade de continuar a honrar a Justiça. JC – Quais são suas principais propostas de gestão e, dentre elas, o que pode ser considerado como prioridade? Qual será a principal preocupação da presidência? JRN – Levar adiante, com intuito de continuidade, uma gestão exitosa, que foi a de meu amigo, o Desembargador Ivan Ricardo Garisio Sartori, já se mostra um grande desafio. Ao lado disso, pretendo continuar o caminho

“Costuma-se dizer que só não erra quem nada faz. Mas, ao não atuar quando deveria agir, já está errando. Todos temos a obrigação de contribuir para que o mundo seja um pouco melhor porque nós estamos nele. Se nascemos e não modificamos a realidade, não terá valido a pena ter nascido.”

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da informatização, não apenas com aprimoramento do processo eletrônico, mas com a otimização do uso das tecnologias de comunicação e informação disponíveis, caminho salutar para conferir eficiência ao Poder Judi­ ciário. A principal preocupação da presidência hoje é obter recursos financeiros para sustentar essa gigantesca máquina de 2.400 magistrados, quase 50 mil servidores, responsável por vinte milhões de processos. O Tribunal de Justiça de São Paulo é não só o maior tribunal do Brasil, mas a maior Corte de Justiça do mundo. Embora tenha um orçamento alentado, maior do que o de vários estados-membros da federação brasileira, seu gigantismo é insuficiente para fazer face aos compromissos. Pratica­ mente 90% dos recursos são revertidos para o pagamento do quadro pessoal. É preciso conscientizar a sociedade de que, se ela quer solução rápida para as suas demandas, ela precisa investir mais na sua Justiça. JC – Quais serão, do seu ponto de vista, os principais desafios do cargo? JRN – Aumentar a produtividade para que os processos mereçam resposta jurisdicional de acordo com o direito fundamental explicitado no inciso LXXVIII do artigo 5o da Constituição da República; capacitar servidores para que o uso das tecnologias seja otimizado; conscientizar os parceiros – MP, advogados, defensoria, procuradorias – de que o Judiciário precisa de todos para se tornar eficiente. O projeto “Petição 10”, da Corregedoria-Geral da Justiça, foi um passo na tentativa de tornar mais concisa, objetiva, clara e direta qualquer peça processual. Não se vencerá essa excessiva demanda se a singeleza ceder lugar à complexidade em toda e qualquer ação judicial. É óbvio que assuntos específicos merecem um tratamento compatível. Mas há uma grande massa de demandas que poderia ser solucionada por alternativas ao juízo e, mesmo assim, continua a atravancar a capacidade de trabalho de juízes e servidores. Na verdade, esse projeto de renovação da cultura jurídica deveria ter início nas escolas de Direito, que replicam um ensino tipicamente adversarial, indicando o processo judicial como a única resposta para as controvérsias humanas. Enquanto não prosperar a cultura da pacificação e da resolução alternativa dos conflitos menores, a vocação do Judiciário será o cresci­ mento vegetativo até o infinito. Já estamos no limite da capacidade estatal de aumentar a máquina da Justiça. Esse é um desafio não só do Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua dimensão, mas de todo o povo brasileiro. JC – Ter trabalhado como juiz substituto e como corregedor o colocou em contato frequente com diversos municípios do interior. Qual a análise que faz da atuação do TJESP no Estado de São Paulo, como um 10

todo, no que diz respeito ao acesso à Justiça por essa grande massa populacional, distribuída por mais de 600 municípios? JRN – Houve considerável ampliação do acesso à Justiça em todo o Brasil a partir da Constituição de 1988, aquela que mais acreditou no Judiciário. O aumento das demandas é prova disso. O povo ainda acredita na Justiça. Assim não fosse, não recorreria tanto ao Judiciário. Mas ainda falta estrutura suficiente para um atendimento adequado, e não nos utilizamos ainda de todas as potencialidades de tecnologias de informação e comunicação – TIC. Temos de reconhecer o trabalho às vezes heroico de juízes e servidores, que se sacrificam para oferecer a prestação jurisdicional a despeito de ausência de condições favoráveis. Minha gestão na Corregedoria-Geral da Justiça priorizou a motivação do funcionalismo, para que ele continuasse a prestar bons serviços, a despeito de um período longevo de falta de reconhecimento de sua importância, embora justificável, ante as vicissitudes da Justiça Paulista com o advento da Emenda Constitucional 45/2004. Eram quatro Tribunais que tiveram de ser unificados, o que demandou imenso esforço da administração à época. Somente hoje o equacionamento das dificuldades pode ser encarado, após a consolidação desse corajoso projeto que converteu o TJESP no maior tribunal do mundo. JC – Em seu blog, o senhor comentou sobre a contribuição dada à morosidade da Justiça pelos feitos de execução fiscal. Seu trabalho como corregedor, aliás, foi marcado por essa meta de reduzir as execuções fiscais, mais lentas e custosas aos cofres públicos. Como está essa situação no momento? O quê de concreto foi feito para ajudar as prefeituras nesse sentido? JRN – Dos 20 milhões de processos em curso por São Paulo, 12 milhões são execuções fiscais. A rigor, a cobrança de dívida estatal não é missão do Poder Judiciário. Este existe para solucionar conflitos. Uma cobrança de IPTU, por exemplo, não contém controvérsia, ao menos enquanto não houver impugnação do devedor. Ocorre que, por observância da Lei de Responsabilidade Fiscal, os gestores públicos arremessam à Justiça milhares – senão milhões – de CDA – Certidões de Dívidas Ativas, que ficam sob a responsabilidade do Poder Judiciário. Na Corregedoria, incentivei a utilização dos tabelionatos de protesto, após contato com o Tribunal de Contas, e também a adoção de estratégias de cobrança administrativa, a cargo da própria entidade credora, sem prejuízo de edição de leis que estabelecessem um piso para a cobrança judicial. Cada processo custa de 1.300 a 1.500 reais se tramitar em juízo. Não se justifica a cobrança de dívida fiscal inferior a esse patamar. Houve aceitação por parte de inúmeros municípios e também colaboração da Procuradoria-Geral

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do Estado em relação às execuções fiscais estaduais. Mas a luta continua. Tanto que o CNJ discute a desjudicialização das execuções fiscais em audiência pública e é urgente rever a vedação de funcionários municipais atuando nos Serviços Anexos Fiscais. Se isso ocorrer, a Justiça paulista entrará em caos. A lógica seria a utilização de recursos municipais para o funcionamento da Justiça estadual. O município é entidade da Federação e não tem Justiça municipal. Ele precisa arcar com o custo da Justiça no limite de suas possibilidades. E se quiser arrecadar com as execuções fiscais, precisa contribuir efetivamente com o Judiciário de seu estado. JC – E por falar em morosidade da Justiça, agora que o senhor assume a presidência do Tribunal, quais são suas propostas para buscar soluções para esse problema? JRN – Continuar a informatização e a otimização dos recursos tecnológicos disponíveis e já exitosos em outras atividades; intensificar a instalação dos CEJUSC – Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania –, que funcionam perfeitamente conforme se comprovou na gestão passada; capacitar servidores para eliminar trâmites ou fluxos desnecessários; otimizar a gestão de pessoal;

instituir sanção premial para retribuir o acréscimo de produ­ tividade, tudo sem prejuízo de estimular a criatividade e emular saudável competição para detectar as melhores práticas; compensar Varas ou funcionários-padrão, etc. O Judiciário permaneceu durante muito tempo em um hermetismo pernicioso. É preciso acertar o passo com a contemporaneidade e ser mais ousado. A sociedade brasileira não quer outra coisa de sua Justiça: que ela seja efetiva, eficaz e eficiente. JC – A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado aprovou, em dezembro do ano passado, projetos que regulam as mediações judicial e extrajudicial e outro que atualiza as leis que tratam da arbitragem. O senhor acredita que a proposta de facilitar a resolução de conflitos e desafogar a Justiça será atendida? JRN – Sim. Sempre fui adepto das ADR – Alternative Dispute Resolution do direito anglo-saxão e penso que fomos tímidos, durante muito tempo, em adotá-las. São Paulo avançará nesse campo, já que a coordenadoria responsável por conciliação, mediação e outras práticas foi entregue ao Desembargador José Roberto Neves de Amorim, que, durante sua gestão no CNJ, foi um

“Ser juiz é algo que satisfaz, na medida em que o magistrado sabe ser capaz de resolver questões que atormentam o seu semelhante.” Foto: Daniela Smania / TJESP

Desembargador José Renato Nalini, presidente do TJESP 2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 11


impulsionador do tema e emprestará sua expertise e seu entusiasmo para sua intensificação em São Paulo. Tenho a maior esperança de que o tema produzirá mais ambiciosos resultados durante os próximos anos. JC – Também no final de 2013, foi realizada a 8a Semana Nacional de Conciliação, que atendeu a 42,5 mil pessoas. Qual sua opinião sobre os mutirões e de que maneira isso vem contribuindo para desafogar o Judiciário? JRN – O “mutirão” é uma instituição da cultura brasileira. Serviu para a edificação de moradias em um regime de cooperação solidária. Embora talvez não seja exatamente adequado para esses “tours de force” realizados na Justiça, tem servido para evidenciar a intenção de um enfrentamento diferenciado quando a situação reclama certa audácia. Há inúmeros campos em que esse esforço pode amenizar a situação: o julgamento pelo tribunal do Júri, o setor das execuções fiscais – nessa área, a Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo atuou efetivamente na última gestão –, o nevrálgico problema das execuções criminais e tantos outros. Tudo é válido quando se cuide de reduzir o espaço entre o ingresso da pretensão e a sua solução definitiva pelo Judiciário. Mas isso não inibe a sociedade brasileira de rediscutir a sua Justiça. Vamos continuar a crescer ou procurar outros caminhos para a eficiência? É uma discussão da qual ninguém está liberado, porque o equipamento estatal é sustentado pelo povo, e este – por suas lideranças e pelos grupos intermediários – tem mais do que o direito de rediscutir o modelo de Justiça, tem a obrigação de fazê-lo para que as futuras gerações não sejam severas ao avaliar a disfunção do esquema de solução judicial de seus conflitos. JC – Outra de suas metas enquanto corregedor referia-se à regularização fundiária, tendo desenvolvido um trabalho com as prefeituras do interior do estado. Qual sua opinião sobre isso quando observamos a situação da capital paulista, com tantas ocupações irregulares – e até considerando os recentes episódios de incêndios e reintegração de posse? JRN – A regularização fundiária é uma política pública das mais importantes para a República Federativa do Brasil. A vontade do constituinte fez com que a moradia fosse explicitada como direito fundamental. O Estatuto da Cidade, o programa “Minha Casa, Minha Vida”, tudo evidencia a intenção de o Estado Brasileiro resgatar essa mácula: permitir que seres humanos ocupem as ruas, sejam transitórios moradores de glebas que muita vez chegaram a adquirir, mas que, em virtude de empreendedores ines­ cru­pulosos ou ignorantes, não se convertem na ambi­ cionada propriedade. O programa de regularização fun­ diária levado a efeito pela Corregedoria-Geral da Justiça 12

de São Paulo foi um tento histórico e cívico. Mercê da colaboração de muitos parceiros, notadamente as Secre­ tarias da Habitação, o Itesp, as associações de classe extrajudiciais, como a Arisp, conseguiu-se regularizar um número recorde de situações fundiárias. Com isso, não foi apenas uma inclusão cidadã, que permitiu ao ocupante, considerado até invasor, tornar-se titular de domínio, mas uma alavanca para a economia doméstica. O dono da casa pode obter financiamento para reformá-la. Há um sopro de entusiasmo que sacode as comunidades e resgata uma dívida social contraída há séculos. É importante que esses projetos continuem e se aperfeiçoem rumo à democracia participativa de que o Brasil tanto necessita. JC – Além dos assuntos que estão na pauta do dia a dia de seu trabalho como magistrado – a exemplo das questões ambientais –, o seu blog na internet também traz temas do cotidiano, observações humanísticas com viés de crônica. Quantos livros o senhor já lançou nos segmentos de ficção e de não ficção? JRN – Sou muito escrupuloso em relação à ficção. Só escrevi alguns contos, um deles com a participação de outros amigos da área jurídica e lançado no ano passado. Fiz uma biografia de certa forma ficcional de minha mãe, logo após sua morte. Sou fruto de uma afeição profunda pela filosofia e escrevi Pronto para partir?, que a RT-Thomson Reuters preferiu chamar Reflexões jurídico-filosóficas sobre a morte, lancei a 3a edição de Por que Filosofia?, Direitos que a cidade esqueceu, Ética da magistratura, Ética ambiental, estou reescrevendo A rebelião da toga, que é uma revisita à minha tese de Doutorado na USP sobre “Perspectivas do Poder Judiciário e do juiz no limiar do século XXI”, e estou para lançar a 11a edição de Ética geral e profissional. Gosto muito de história também. E leio como verdadeiro devorador de livros. Uma de minhas angústias é a impossibilidade de ler tudo aquilo de que gostaria. Não haverá tempo suficiente! JC – O senhor tem uma relação muito forte com a literatura, inclusive como membro da Academia Paulista de Letras desde 2003. O que significa a literatura para o senhor, até pelo fato de ter criado um projeto de ressocialização do apenado por meio da leitura? Aliás, quais são os resultados e o status desse programa hoje? JRN – A leitura é mágica. Permite uma viagem sem custos. Propicia conhecer pessoas que nunca teremos oportunidade de contatar, até porque já são falecidas. Muda a forma de pensar. Todo livro ajuda você a crescer. Meu maior prazer é a leitura. Por isso apoiei a proposta de estimular os reeducandos a um projeto consistente de leitura. Ideia que não foi bem compreendida e que gerou algumas controvérsias. Mas precisamos acreditar no sistema

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“Se nascemos e não modificamos a realidade, não terá valido a pena ter nascido.”

penitenciário conforme concebido. A sanção é um castigo, mas é também pedagógica. É a oportunidade de repensar as opções, de reformular trajetórias. E os livros podem fazer com que as pessoas reflitam sobre as suas escolhas. Bons livros, em uma leitura orientada, consistente, mais o dever de exprimir o que se extraiu dela, poderão auxiliar na regeneração. O projeto continua e, por seu ineditismo, ainda não há condições de uma conclusiva análise sobre o seu êxito. Mas todas as tentativas são válidas em relação a esse tema complexo que é o sistema penitenciário. Já fizemos, também, uma experiência com as reeducandas que tiveram curso de gastronomia com a equipe de Alex Atala e David Hertz, e foi um sucesso. Também levamos a Orquestra Bachiana, regida por João Carlos Martins, à penitenciária no final do ano de 2013, no encerramento do projeto “Qualidade de Vida”. Costuma-se dizer que só não erra quem nada faz. Mas, ao não atuar quando deveria agir, já está errando. Todos temos a obrigação de contribuir para que o mundo seja um pouco melhor porque nós estamos nele. Se nascemos e não modificamos a realidade, não terá valido a pena ter nascido. JC – Qual a influência da literatura no seu trabalho como magistrado? Quais são seus autores e livros favoritos? JRN – A literatura auxilia na concatenação de ideias, na proficiência vernacular, a encontrar estilo que não seja a repetição enfadonha dos termos técnicos em construções sintáticas medíocres. Quem não lê não pensa, não escreve, não sabe falar. Ler é fundamental. E sempre existe o que aprender. Hoje, talvez o desafio seja a concisão. Temos tempo de menos e tarefas demais. Encontrar boas fórmulas de exprimir o pensamento, com clareza e sinteticamente, é um talento que deveria ser mais desenvolvido e estimulado nas carreiras jurídicas. Gosto muito de Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles, Paulo Bomfim, Norberto Bobbio, Umberto Eco, Machado de Assis, além dos meus favoritos franceses desde Montaigne a Jean Baudrillard, Luc Ferry, Gilles Lipovetsky e outros. Sou um aprendiz e continuo tentando crescer. JC – Falando um pouco sobre a magistratura, um dos aspectos mais apontados pela classe na atualidade é a

falta de estímulo à carreira. Em sua opinião, por que isso ocorre e qual a solução para reverter esse aspecto? JRN – A magistratura já foi uma carreira bem atraente. Há algum tempo, ela foi perdendo sua aura e isso em virtude de múltiplas causas. Primeiro, houve um esgarçamento dos valores em geral. Dentre eles, o respeito, a reverência, a simbologia de algumas funções consideradas diferenciadas. Depois, o volume de trabalho é avassalador, e o Estado-juiz não tem condições de dar vazão à demanda. Isso faz com que as críticas recaiam sobre o profissional encarregado de oferecer soluções para os problemas humanos. Em seguida, houve uma dessacralização geral da Justiça, tão desacreditada em alguns setores, sobretudo em razão de sua invencível lentidão e ineficiência. Tudo isso faz com que as vocações se escasseiem e a magistratura passe a ser considerada emprego público, assim como qualquer outro. Para o vocacionado, ser juiz é algo que satisfaz, na medida em que o magistrado sabe ser capaz de resolver questões que atormentam o seu semelhante. Para quem procura emprego, a magistratura é sofrível. Vive cobrança contínua da sociedade, da mídia, dos parceiros, das corregedorias. Isso tudo precisa ser repensado para que o juiz do futuro volte a ser aquela pessoa plenamente realizada, feliz com sua opção, e, portanto, em condições de melhor oferecer a concreta Justiça humana a quem dela necessite. JC – Em março de 2013, o presidente do Supremo Tribunal Federal instituiu a Comissão de Estudo e Redação de Anteprojeto de Lei Complementar para dispor sobre o novo Estatuto da Magistratura, tendo em vista que a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) está em vigor desde 1975. O que esperar em relação a isso? A reforma do estatuto deverá atender às atuais necessidades dos magistrados? JRN – Há 25 anos, a Constituição previu o Estatuto da Magistratura, por lei de iniciativa do STF, que substituirá a Loman, Lei Complementar Federal 35, de 14.3.1979, considerada à época fruto do autoritarismo. Espera-se que a magistratura mereça atualização e incorpore as profundas transformações do mundo desde a década de 1970/80 e que a reforma venha por partes, para permitir uma discussão tópica, e viabilize a aprovação de novo texto normativo. Uma Lei Orgânica que tivesse a pretensão de prever tudo o que é necessário para esse trato adequado do tema e não deixasse flanco algum teria uma tramitação lenta e sujeita a muitas discussões, o que inviabilizaria a sua aprovação pelos próximos anos. De qualquer forma, é saudável uma retomada de estudos e redação desse anteprojeto. A Justiça depende de seus integrantes. Um novo estatuto poderá estimular o recrutamento de pessoas vocacionadas e aptas ao desempenho de missão imprescindível ao fortalecimento da democracia brasileira.

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Justiça e Independência Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho

Desembargador do TJERJ Presidente da 3ª Câmara Cível Membro do Conselho Editorial

Nota do Editor Um dos fatores que mais dignifica um magistrado na sua judicatura é, indiscutivelmente, a sua independência, livre de pressões, conchavos e interferências de quem quer que seja: governante, potentado, poderoso, político ou seja quem for. O desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, é colaborador e um dos maiores incentivadores da Revista desde a sua primeira edição, em maio de 1999 – quando então exercia a presidência da Associação dos Magistrados Brasileiros –, onde participa e pontifica no Conselho Editorial com sua arguta inteligência e refinada culturas jurídica e humanista, defendendo, como sempre, a independência do Judiciário, o fortalecimento da instituição e da magistratura e apontando caminhos em defesa do Estado Democrático de Direito.

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a Declaração de Independência dos EUA, de 4/7/1776, redigida basicamente por Thomas Jefferson, está inscrito como postulado que as 13 colônias rompiam com a metrópole porque o rei da Grã-Bretanha, entre outros motivos, tentava impor sua tirania fazendo os juízes dependentes da sua vontade. Ali se lançava a semente da garantia fundamental de todas as pessoas receberem julgamento por um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou sobre o fundamento de qualquer acusação criminal, posteriormente reproduzida na Declaração Universal dos Direitos do Homem – aprovada em 10/12/1948 pela Assembleia da Organização das Nações Unidas. A partir de então, a garantia se consolidou no mundo civilizado, integrando todas as constituições contemporâneas, ainda que muitas vezes agredida e violada por déspotas e ditadores de variados matizes e colorações políticas, supostamente afrontados pela sua atuação. Tais considerações vêm a propósito de uma indagação que deve sensibilizar a todos, especialmente aos que militam na área jurídica e, ainda mais especificamente, 14

nas lides judiciais: será a independência dos juízes um elemento ainda essencial ao adequado cumprimento de sua relevante função social? Ou, pelo contrário, nestes tempos de globalização em que vivemos, terá essa independência, antes atributo primordial de qualquer julgamento, sido engolfada tanto pela “tsunami” da jurisdição massiva representada pelas súmulas com efeito vinculante, recursos repetitivos, etc., quanto pela necessidade de atender a metas e a outras exigências indevidamente centralizadoras do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)? Veja-se que este Conselho já se arvora até – parecendo atender à justa indignação popular contra todas as formas de corrupção – a inquirir alguns tribunais sobre suposto percentual insuficiente de condenações em matéria de improbidade administrativa. Isto, obviamente, sem conhecer o conteúdo dos processos e ignorando que, na quase totalidade dos casos, o Ministério Público não recorreu da absolvição. Assim, joga-se para a plateia, e não é à toa que a exCorregedora do CNJ já se aposentou voluntariamente e surge como intrépida candidata, sem um recatado período de quarentena e tendo utilizado a tribuna do Conselho para pavimentar sua pretensão, à senadora pelo Estado da Bahia. Agora, mais recentemente, o Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do CNJ, alçado à condição de celebridade nacional pela relatoria da Ação Penal 470 (mensalão), decreta a prisão de um dos condenados (Deputado João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara Federal), mas não assina o mandado antes de se retirar para um período de férias no exterior, permitindo-se ainda, lá de Paris, criticar apontada omissão dos Ministros Carmen Lúcia e Ricardo Lewandowski, que não o assinaram por considerar que a tarefa caberia ao relator e não a seus eventuais substitutos na Presidência do STF. Ora, qualquer pessoa razoavelmente informada sabe que o juiz criminal que decreta a prisão de condenado deve, como ato de ofício e portanto como dever que não pode ser esquecido, assinar o mandado, cuja preparação

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Foto: Divulgação

imediata não apresenta qualquer dificuldade, daí não ser confortável a versão apresentada pelo relator de não havêlo assinado pelo início das férias no dia seguinte. Por outro lado, a crítica pública e emitida do exterior a seus colegas de Corte, um deles Vice-Presidente, que agiram pela convicção de que a tarefa de assinar o mandado era do relator, atinge também a independência judicial dos criticados, sendo mais um episódio de pressão agravado por se dirigir a juízes do STF. Bem se vê que a independência judicial pode ser afrontada da 1a instância ao STF, devendo ser, com valores social e jurídico resguardados pela Constituição Federal, defendida, independentemente da origem das agressões, sejam internas ou externas ao Poder Judiciário, merecendo repulsa ainda maior quanto mais elevado o cargo ou a posição jurídico-política do autor do atentado.

Mais importante, entretanto, é a verificação de que tais agressões à independência dos juízes debilitam o próprio estado democrático de direito e ferem de morte os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição, tentando fazer de juízes, cuja instituição, como qualquer outra, também apresenta suas máculas, burocratas de toga ou fantoches de um reino de faz-de-conta onde, mais do que os direitos individuais e coletivos, deve contar a vontade dos opressores. Até porque, a democracia não convive com a ideia da transformação dos juízes – por vocação institucional destinados a garantidores dos direitos fundamentais da pessoa humana – em insetos gigantescos como aquele em que o gênio inquietante de Franz Kafka transformou o caixeiro-viajante Gregor Samsa na obra-prima A Metamorfose.

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A guerra civil na Síria e a banalidade do mal Lier Pires Ferreira

Advogado Professor do Iuperj e do IBMEC

Foto: José Geraldo da Fonseca

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m sua obra Eichmann em Jerusalém, de 1963, a pensadora germano-americana Hannah Arendt (1906-1975) cunhou a expressão “banalidade do mal”. O pano de fundo para suas reflexões foi o julgamento de Adolf Eichmann (1906-1962), militar e político nazista enforcado na cidade de Tel Aviv, Israel, por genocídio, crimes contra a humanidade e outras acusações. Trabalhando como correspondente da revista The New Yorker, Arendt não se limitou a descrever o julgamento, mas adotou o próprio Eichmann como objeto de análise. De ascendência judaica, Arendt viu um homem desprovido de quaisquer distorções de caráter ou de ódios particulares contra judeus e outros grupos étnicos. Adolf Eichmann não era um “monstro”, mas um homem que acreditava no que fazia. Por isso, realizava seu trabalho com máximos zelo e eficiência, sem questionar o mal que pudesse estar causando a terceiros. Suas ações estavam orientadas por uma lógica estritamente burocrática e juspositivista, segundo a qual os comandos exarados por seus superiores deveriam ser cumpridos sem qualquer questionamento. Com Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt retomou um importante capítulo da filosofia moral – o mal radical kantiano. Em um mundo marcado pelos horrores da II Guerra Mundial, Arendt viu na filosofia kantiana o renascimento de uma moralidade pura, autônoma, que não dependeria da religião, do direito ou de outra fonte externa de legitimação. Bastaria a relação íntima do homem com sua consciência. Nesse sentido, mais do que uma categoria ontológica ou metafísica, o mal representado por Eichmann tem caráter histórico, político e jurídico, sendo produzido e reproduzido por homens absolutamente comuns, que,

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“Sanada a questão das armas químicas, a guerra civil na Síria saiu das manchetes internacionais. O mundo parece satisfeito com sua atuação. Mas o sofrimento do povo sírio está longe de terminar.”

alheios a uma reflexão ética sobre si e sobre o mundo que os cerca, agem em função de contextos e escolhas que trivializam a dor e banalizam o mal. É o que está acontecendo hoje na Síria. O conflito sírio teve início em janeiro de 2011, pouco depois da eclosão da Primavera Árabe. Em princípio, os manifestantes protestavam pacificamente contra o governo de Bashar alAssad, no poder desde 2000, após suceder a seu pai, Hafez al-Assad, que governara o país por três décadas. Com o crescimento dos protestos, aumentou também a violência política contra os manifestantes. Em um quadro já bastante grave de violação aos direitos humanos, em agosto de 2011, a ONU fez sua primeira condenação contra as ações do governo sírio. A reprimenda das Nações Unidas não surtiu efeito. Os conflitos na Síria estavam em uma espiral ascendente. Manifestantes viraram insurgentes, e as palavras de ordem haviam se transformado em uma sangrenta guerra civil. Em março de 2012, após os bombardeios sobre a cidade rebelde de Homs, o secretário-geral da ONU, Ban Kimoon, teceu novas e duras críticas ao massacre de civis e requereu às autoridades sírias imediato acesso humanitário ao país. Mas nada mudou. Em maio de 2012, a violência alcançou novo pico. Dezenas de civis foram massacrados em Hula por forças leais ao governo. O massacre foi confirmado pelo chefe da missão de observadores das Nações Unidas, Robert Mood, provocando respostas em cadeia da sociedade internacional. Alemanha, Bélgica, Bulgária, Espanha, França, Itália, Holanda e Suíça expulsaram os embaixadores sírios de seus territórios. Uma semana depois, o governo

sírio considerou persona non grata os embaixadores dos EUA e de mais cinco países europeus. Nesse quadro, o governo Barack Obama admitiu pela primeira vez o uso da força. O número de vítimas continuava a crescer. Discursos exaltados eram pronunciados de parte a parte. Mas de concreto nada foi feito. O ápice da repercussão internacional da guerra civil na Síria ocorreu em meados de 2013, com as notícias de que o governo local estava usando armas químicas contra rebeldes e civis. Forças ocidentais capitaneadas pelos EUA estiveram prestes a invadir o país, para o alento de milhões de cidadãos sírios. Mas os debates no Conselho de Segurança da ONU não permitiram o desembarque das tropas. As divergências formais entre EUA, China e Rússia diante do contexto geopolítico do Oriente Médio obstaram uma solução definitiva e integrada, que cessasse o morticínio e devolvesse a paz aos cidadãos sírios e aos seus familiares. O uso de armas químicas foi estancado, mas parece que o governo sírio ganhou um “alvará” para continuar desrespeitando todas as normas de Direito Internacional e matar seus concidadãos exclusivamente com armas convencionais. Sanada a questão das armas químicas, a guerra civil na Síria saiu das manchetes internacionais. O mundo parece satisfeito com sua atuação. Mas o sofrimento do povo sírio está longe de terminar. Nos estertores de 2013, um relatório do Oxford Research Group (ORG) intitulado Stolen Futures: the hiddentoll of child casualties in Syria revelou a face mais dura do mal que assola o país: a morte de crianças e adolescentes. Em um conflito que já gerou dois milhões de deslocados e mais de cem mil mortos, os estudos do ORG mostram que entre março de 2011 e agosto de 2013 houve 11.420 vítimas com idade igual ou inferior a 17 anos, muitas das quais mortas por explosivos. Dessas vítimas, comprovadamente 389 foram assassinadas por franco-atiradores. O relatório também aponta que 746 crianças e adolescentes foram executados sumariamente, sendo certo que centenas foram brutalmente torturados. Os números levantados pelo ORG não são conclusivos e consideram apenas vítimas devidamente identificadas e cuja causa mortis seja conhecida. Há muitos mais. Quantos? Isso já não é o que mais importa. As estruturas político-jurídicas forjadas no segundo pós-guerra para promover a paz e o bem-estar revelam-se incapazes de estancar o morticínio e o sofrimento. Inerte, a sociedade internacional resta insensível à dor alheia. Como Eichmann, ela parece oca de valores e satisfeita em tocar seu cotidiano, indiferente ao mal que se alastra. Quantos ainda terão de perecer para que a indignação e o amor à ética e ao direito façam cessar a guerra civil na Síria? Quantos terão de morrer para que voltemos a ser justamente humanos? Só o tempo dirá.

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Decisão judicial: operação delicada

Luís Carlos Gambogi

Desembargador do TJEMG

Foto: Marcelo Albert/TJEMG

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ois perigos rondam os aplicadores do Direito: um deles, avançar demais, muito, enquanto a sociedade não avança um único passo; o outro, confinar-se nos estritos limites da letra e deprimir a história. No Direito, devemos repelir a interpretação contra legem, mas será sempre bem recebida a interpretação practer legem ou infra legem porque construídas a partir do embate travado entre a realidade e a legislação. A princípio, o intérprete não pode se ligar ao que diz literalmente a lei, mas ficar ali, na lida, lutando, suando, pelejando, garimpando o verdadeiro sentido das palavras e o verdadeiro sentido dos fatos. Diríamosparafraseando Tobias Barreto – que o operador do direito deve navegar como o canoeiro: “arriba em parte aonde lhe permite a força que imprime ao remo; e em parte aonde lhe permite a força da correnteza”. A dinâmica interpretativa do Direito não autoriza decisões contra a ordem jurídica. Aqueles que decidem fora da ordem normativa tornam-se socialmente perniciosos porque, em se julgando acima delas, caminham por espaços imaginários de poder e, ainda que tenham objetivos generosos, põem em risco as poucas conquistas dos fracos ao longo da história ao contraporem, à lei, o engodo. Decisões judiciais fora da ordem jurídica são sempre um risco e, por melhores que sejam, não compensam o déficit democrático que produzem. Porém, sabido que o intérprete não é um ser passivo, que se limita a recolher os dados da realidade; o intérprete

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“Embora comunique ideias, numa sociedade pluralista, o Direito não pode ser visto como um instrumento que veicula uma leitura fechada. Deve estar aberto aos novos anseios sociais e à própria dinâmica da vida, que procura equilibrar a ordem e o movimento ou que procura construir a ordem pelo movimento.”

espalha as sementes que garantem o ciclo da vida porque está no mundo como um ser ativo, num diálogo contínuo com o mundo que o cerca. O Direito, não obstante conhecido e estudado por métodos científicos, não é uma ciência neutra. Além de sua visão de mundo, a sua opção doutrinária encontra-se ingênita à interpretação. Por essa razão cumprelhe exigir de si mesmo que se liberte de seus dogmas pessoais, das aparências e ilusões que nascem dos seus sentidos, enfim, cabe-lhe construir criticamente sua interpretação; deve submeter sua visão pessoal à legitimidade do “querer social” implí­cito na autoridade da lei. Não é empresa porque a aplicação da norma pressupõe a interpretação do objeto investigado (o fato e a norma) e o intérprete, ainda que dono de racionalidade crítica, não consegue deixar de influir no resultado da interpretação. Ao interpretar, leva consigo o cabedal de sua vida, seus valores, enfim, um conjunto de princípios e ideais, que não são meras opiniões ou hipóteses abstratas nem se confundem com o conhecimento vulgar; em verdade, essa sua matéria subjetiva, no âmbito cognitivo científico, opera como que postulando um sentido, uma direção, atitude que, em si mesma, carrega um grau de conhecimento que penetra e fecunda o objeto investigado. Para agravar a complexidade dessa delicada operação, que visa interpretar e aplicar a lei, cabe mais uma vez recordar que na história de todos os povos, quase sempre, as teorias jurídicas e a jurisprudência precedem as leis ou contextualizam-nas no tempo. Isto é próprio da função

interpretativa, de sua dinâmica. A lei fixa o ordenamento positivo, que é estático; o Direito, no entanto, acompanha a vida, que é dinâmica. Embora comunique ideias, numa sociedade pluralista, o Direito não pode ser visto como um instrumento que veicula uma leitura fechada. Deve estar aberto aos novos anseios sociais e à própria dinâmica da vida, que procura equilibrar a ordem e o movimento ou que procura construir a ordem pelo movimento. Por último, lembro que o Direito, se se quer democrático e legitimado, deve ser justo em sua essência. A legitimidade, por óbvio, só pode recair sobre o Direito Positivo. Este, no entanto, embora tenha conteúdo definido, não tem conteúdo definitivo porque é datado; portanto, requer o trabalho da hermenêutica, o labor da ressemantização, da contextualização, passando a ser fruto, a nascer de um processo em que a própria juridicidade exerce um papel de natureza reestruturadora na sociedade, missão esta que retira o Poder Judiciário do calvário de conservar o passado e o põe na função de implementar o futuro ao tempo em que enfrenta os conflitos do presente. O duro, o desafiador, o difícil é que, ao realizar essa delicada operação, o magistrado precisa se equilibrar na leveza do seu espírito de modo a que sua decisão não venha a estrangular a natureza imperativa da ordem jurídica nem venha a criar instabilidade, com posições que se colocam fora dos marcos constitucionais e legais. Em suma, aplicar o Direito equivale a dizer ao pássaro: você tem asas, mas encontra-se numa gaiola linguística; se quer ser pássaro, cante!

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Promoção da Saúde, Justiça e acessibilidade Vera Lucia Góes Pereira Lima

Professora Titular (aposentada) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

Maria Auxiliadora Bessa Barroso

Especialista em Saúde Pública e em Educação em Saúde Pública

Regina Celi Basílio Moreira Zandonadi

Nora Zamith Ribeiro Campos José Maria Arruda

J

Psicóloga Comissária da Justiça da Infância, Juventude e do Idoso

Socióloga

Sociólogo

Promoção da Saúde e direitos de cidadania ustiça e Promoção da Saúde apresentam importantes interseções que abrangem o exercício dos direitos de cidadania com equidade e qualidade de vida. Focaliza-se neste artigo a efetiva inclusão social das pessoas com deficiência na gestão dos chamados “municípios saudáveis”, em consonância com questionamentos pro­ postos na 21a Conferência Mundial de Promoção da Saúde da Uipes1 (Pattaya/Tailândia, 2013). O presente trabalho poderá inspirar reflexões e práticas inovadoras para o aprofundamento das ações de PS. Uma breve retrospectiva ajuda a compreender a interseção entre Justiça e Promoção da Saúde. Na década de 1970, a China convidou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a realizar missões de observação das atividades desenvolvidas em seu meio rural para a melhoria da saúde da população. O relatório dessas visitas mostrou uma ampla participação da comunidade em ações que elevavam o nível de saúde e a qualidade de vida das pessoas, revelando uma visão ampliada de saúde, bem além da orientação predominantemente centrada no controle da enfermidade. Os chamados “médicos descalços” coordenavam as atividades de atenção aos anciãos, ajuda às escolas, envolvimento na saúde ambiental, prevenção de doenças, uso de ervas me20

dicinais e promoção de campanhas de saúde, substituindo assim velhos costumes e mobilizando a comunidade para a formação de hábitos saudáveis (FERREIRA & BUSS apud MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002). O aproveitamento dessas ideias serviu de base para o surgimento de uma nova compreensão de saúde e de vida, presente em diversos documentos, os quais até hoje inspiram políticas e programas mais progressistas em todo o mundo. Entre esses documentos, a Declaração de Alma-Ata em 1978 enfatizou a importância da Atenção Primária em Saúde, reconhecendo a saúde como uma das prio­ ridades da nova ordem econômica internacional (Ibid., 2002). Ela reafirmou a definição de saúde da OMS como o “completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade”, defendendo-a como direito fundamental e principal meta social de todos os governos (OMS, 1948). Enfatizou a necessidade da educação relacionada aos problemas prevalecentes de saúde, envolvendo a participação comunitária. Ampliou, dessa forma, a visão do cuidado da saúde com o envolvimento da própria população e a ação de agentes de saúde, transcendendo a atenção convencional dos serviços de saúde.

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Foto: Depositphotos/ AlphaBaby

No Brasil, a 8a Conferência Nacional de Saúde (1986) destacou os fatores que compõem uma nova visão de saúde. Sem utilizar a denominação de Promoção da Saúde, enunciou uma abordagem de saúde, como resultante da alimentação, da renda, do meio ambiente, do trabalho e do lazer, além do acesso aos serviços de saúde, próxima do conceito de Promoção da Saúde que seria proposto, meses depois, pela Carta de Ottawa (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1986). A I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em Ottawa, Canadá, (1986), sob o patrocínio da OMS, resultou na mencionada Carta de Ottawa, inspiradora de novo paradigma conceitual e propositivo, o qual afirma que “a saúde depende também de fatores políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais, compor­ta­mentais e biológicos que a influenciam positiva ou negativamente” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1996). Tendo por pré-requisitos a paz, a habitação, a educação, a alimentação, a renda, o ecossistema estável, os recursos sustentáveis, a justiça social e a equidade, a Promoção da Saúde baseia-se na capacitação da comunidade para atuar na melhoria da qualidade de vida e saúde, incluindo sua maior participação no controle desse processo, o que demanda o conhecimento das próprias necessidades e a

identificação dos determinantes sociais da saúde visando à sua transformação e à conquista de melhor qualidade de vida com equidade (Ibid., 1996). Percebe-se nesse processo a importância da Justiça, cujo caráter mais evidente é a igualdade de direitos e deveres que possibilitam a vida em comum. Uma sociedade só é justa quando os cidadãos usufruem de condições concretas, amparadas democraticamente. Sua conquista é a base da igualdade, do equilíbrio e da justiça social, a qual só se fará com a participação ativa do cidadão. Para tanto, este deverá estar consciente de seus direitos e habilitado a ter acesso à Justiça quando os vê desrespeitados, além de conhecer os mecanismos que o habilitam ao seu exercício quando os mesmos são violados. A aquisição dessas infor­ mações passa necessariamente pela educação, tendo como corolário a responsabilidade sobre si e sobre os outros, e a capacidade de tomar decisões (SOUZA, 2012). Tais preo­cupações estão também presentes no conceito de Promoção da Saúde. Saúde em todas as políticas O desenvolvimento econômico e social sustentável depende da promoção e da proteção da saúde da população com sua participação consciente. A Promoção da Saúde

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demanda o envolvimento de diferentes níveis de governo e de outros setores (públicos e privados), exigindo uma ação coordenada entre todas as partes envolvidas. Dessa postura deriva a proposta de “saúde em todas as políticas”, tema da 8a Conferência Internacional de Promoção da Saúde – Helsinque, OMS, 2013, entendendo-se que saúde e bem-estar estão intimamente ligados ao ambiente socioeconômico (OMS, 2013). Políticas e ações de promoção da saúde devem assegurar oportunidades e recursos igualitários a todos. Isso inclui a construção de ambientes saudáveis e a ênfase em ações educativas para o desenvolvimento de habilidades, permitindo-se assim escolhas para se alcançar uma melhor qualidade de vida, o que pressupõe a capacidade de as pessoas controlarem os fatores determinantes de sua saúde, condição para o desenvolvimento pleno do seu potencial de vida saudável. Esses debates foram avançando em conferências internacionais de Promoção da Saúde promovidas pela OMS a partir da Conferência de Ottawa. Paralelamente, a União Internacional de Promoção da Saúde e Educação para a Saúde (Uipes) ampliou seu campo de ação a partir de sua 16a Conferência Mundial de Educação em Saúde, em Helsinque (1991), abrangendo a Promoção da Saúde. Desde então, a Uipes vem realizando conferências mundiais destacando temáticas, como: desenvolvimento de políticas públicas saudáveis; ambientes saudáveis; saúde e desenvolvimento; responsabilidade social; estratégias intersetoriais e parcerias; saúde no mundo globalizado; equidade no acesso à saúde; saúde em todas as políticas e melhores investimentos em saúde. Municípios saudáveis e direitos das pessoas portadoras de deficiência Entende-se como cidade saudável aquela onde haja participação da comunidade na busca da qualidade de vida de toda a população, com ênfase na equidade. A inclusão social viabiliza, nesse espaço, a convivência e o desenvolvimento das pessoas de todos os tipos e níveis sociais na realização de seus direitos, suas necessidades e suas potencialidades. Desde os anos 1990, a Opas/OMS apoiara a utilização desse conceito no desenvolvimento de municípios saudáveis na América Latina, estimulando a criação de redes de municípios saudáveis (WESTPHAL, 2000). No Brasil, em 1998, foi realizado em Sobral, Ceará, o I Fórum Brasileiro de Municípios Saudáveis e, em 1999, foi criada a Rede Brasileira de Municípios Saudáveis durante o XV Congresso do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde – Conasems, reunindo 40 secretarias municipais. Em 2013, realizou-se em Brasília o XXIX Congresso Nacional de Secretarias Municipais de 22

Saúde; no entanto, não se tratou da temática da “inclusão dos deficientes” (RUMEL, et al., 2005), cuja relevância é aqui reconhecida como indispensável nos debates desses congressos. A 8a Conferência Internacional de Promoção da Saúde (2013) enfatiza em sua Carta de Compromisso que a saúde é a base do desenvolvimento sustentável e, como direito humano fundamental, deve incluir o conceito de equidade (OMS, 2013), o que permite a todos (incluindo as pessoas com deficiência) participarem das oportunidades neces­sá­ rias à elevação e à manutenção de sua qualidade de vida. A Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, ratificada pelo Decreto-Lei no 3.956/01, assim define a deficiência: “Restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social” (BRASIL, 2001). Essa questão assume expressiva proporção no Brasil e vem mobilizando diversos segmentos da sociedade na busca dos direitos dessa categoria de excluídos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o número de deficientes no Brasil, em 2010, representava cerca de 23,92% da população, alcançando um total de 45.623.910 de pessoas (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2012). Desde a Declaração dos Direitos das Pessoas Porta­ doras de Deficiência (ONU, 1975) e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD da ONU e seu Protocolo Facultativo (ONU, 2006), os países signatários, inclusive o Brasil, estão legislando sobre aspectos que contribuam para a integração plena desse grupo nos direitos de cidadania. A CDPD e seu respectivo Protocolo Facultativo foram ratificados pelo Congresso Nacional e todos os seus artigos considerados de aplicação imediata (BRASIL, 2008). A Constituição brasileira também estabelece em seu art. 24 que compete tanto à União quanto aos estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre a proteção e a integração social das pessoas portadoras de deficiência (BRASIL, 1988). Inclusão social e acessibilidade A legislação brasileira e as normas referentes à acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência física são abrangentes, falhando, no entanto, no seu cumpri­ mento. A Lei no 10.098 (2000) estabelecera normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de mobilidade reduzida “mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma

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de edifícios e nos meios de transporte e de comunicação” (BRASIL, 2000). Em decorrência, a Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT estabeleceu as normas técnicas de acessibilidade, que alcançam todos os edifícios públicos e privados de uso coletivo (BRASIL, 2004). Aos municípios cabe legislar estabelecendo parâmetros nos códigos de obras a serem seguidos nas construções para que as mesmas sejam aprovadas de acordo com as especificações da NBR 9.050 da ABNT (Ibid., 2004). Em 2011, o governo federal instituiu o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência: Plano Viver sem Limite (PVSL), elaborado com a participação de 15 ministérios e do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade), o qual prevê um investimento total de R$ 7,6 bilhões até 2014. A acessibilidade é um dos eixos do PVSL, garantindo que os equipamentos públicos de educação sejam acessíveis para as pessoas com deficiência, inclusive por meio de transporte adequado (BRASIL, 2011). O PVSL assegura a inclusão de vagas de Bolsa-Formação para pessoas com deficiência, devendo investir em salas de recursos multifuncionais; permitir a acessibilidade nas escolas; promover a formação de professores para a realização do atendimento educacional especializado; e obter ônibus escolares acessíveis.

Quanto à formação universitária, o PVSL incluiu um Programa de Acessibilidade na Educação Superior (BRASIL, 2011). No Ensino Técnico, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – Pronatec busca expandir e democratizar a educação profissional e tecnológica no país (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2011). O PVSL abriu espaço para a participação das pessoas portadoras de deficiência na cidadania, dirigindo-se aos Conselhos Tutelares, ao Ministério Público, ao Centro de Referência de Assistência Social – Cras e a outros para corrigir possíveis omissões, procurando dar condições aos deficientes para fortalecerem sua autonomia, criando facilidades para que se insiram no mercado de trabalho por meio de programas de qualificação profissional. Outro importante aspecto para a autonomia é a questão da comunicação: “Acessibilidade também se refere ao direito de se comunicar e ao de ser comunicado, dois direitos que vêm sendo negados a pessoas com deficiência – resultando em impactos na saúde” (RADIS, 2013, p. 1517). Tal precariedade é encontrada na rede de serviços do SUS – baixa capacitação de profissionais para o uso de Libras (Língua Brasileira de Sinais) nos debates eleitorais, espetáculos artísticos, cursos de educação a distância, além de outros.

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Considerações finais O problema focalizado neste artigo – a efetiva inclusão social das pessoas portadoras de deficiência – é um exemplo claro de dificuldades a vencer. Não se trata da construção de legislação mais adequada e justa, pois as leis existem, mas do cumprimento da legislação brasileira que garante os direitos de cidadania aos portadores de deficiência. Implica um compromisso de todos e em especial da gestão dos “municípios saudáveis”, das unidades territoriais e dos

cenários comprometidos com os valores, os princípios e as estratégias da Promoção da Saúde. No momento em que a Política Nacional de Promoção da Saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2006) está sendo submetida a um processo de ampla revisão e atualização, o imperativo da inclusão das pessoas portadoras de deficiência na sociedade deve ser reconhecido como uma de suas prioridades, em particular do programa Saúde em Todas as Políticas.

Notas A União Internacional de Promoção da Saúde e Educação para a Saúde – Uipes (www.iuhpe.org) é uma associação mundial de profissionais e instituições que tem como missão promover a saúde no mundo e contribuir para a equidade na saúde entre os países e dentro de cada país. Opera em estreita cooperação com a OMS, a Unesco e o Unicef.

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Referências bibliográficas BRASIL, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico. BRASIL, 2000. Lei da Acessibilidade. Legislação Federal do Brasil. Brasília-DF. Disponível em: <www.acessobrasil.org.br/index.php?itemid=43>. Acesso em: 2 out. 2013. BRASIL, 2001. Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadora de Deficiência. Decreto no 3.956/01, Art. 1o. Brasília-DF. Disponível em: <www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:federal:decreto:2001-10-08;3956>. Acesso em: 14 set. 2013. BRASIL, 2004. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Normas ABTN. Disponível em: <www.pessoacomdeficiencia. gov.br/app/normas-abnt>. Acesso em: 14 set. 2013. BRASIL, 2006. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. Ministério da Saúde, Série B. Textos Básicos de Saúde, Brasília-DF. BRASIL, 2008. Congresso Nacional: Decreto legislativo no 186, de 9 de julho de 2008. BRASIL, 2011. Plano Viver sem Limite / Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República: Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Brasília DF. Disponível em: <www.pessoacomdeficiencia.gov.br/ app/sites/default/files/arquivos/.pdf>. Acesso em: 12 set. 2013. FERREIRA, J. R.; BUSS, P. M., 2002. Atenção Primária em Saúde. In: Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, Projeto Promoção da Saúde, As Cartas de Promoção da Saúde. Série B: Textos Básicos de Promoção da Saúde. Brasília-DF. GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2012. Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Disponível em: <http://www.pessoacomdeficiencia. sp.gov.br/sis/lenoticia.php?id=967>. Acesso em: 2 out. 2013. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2011. Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – Pronatec. Brasília-DF. Disponível em: <http:// pronatec.mec.gov.br/institucional/base-legal>. Acesso em: 20 set. 2013. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1986. 8ª Conferência Nacional de Saúde – Relatório Final, Brasília-DF. MINISTÉRIO DA SAÚDE, FIOCRUZ, IEC, 1996. Promoção da Saúde: Carta de Ottawa, Declaração de Adelaide, Declaração de Sundswall, Declaração de Bogotá. Brasília-DF. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, Constituição, 1948. Genebra. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1975. Resolução das Nações Unidas no 2.542/75. Disponível em: <http://www.ppd.caop.mp.pr.gov.br/ modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=306>. Acesso em: 4 set. 2013. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2006. A ONU e as pessoas com deficiência – ONU Brasil. Disponível em: <www.onu.org.br/a-onu-emacao/a-onu-e-as-pessoas-com-deficiencia/>. Acesso em: 16 ago. 2013. RADIS, 2013. Cuidado em saúde – Todos devem caber na Sociedade Inclusiva, Comunicação e Saúde, Reportagens – Direito à Comunicação. Rio de Janeiro. Radis/Fiocruz, n. 130. Disponível em: <www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/130/.../direito-comunicacao>. Acesso em: 17 set. 2013. RIO DE JANEIRO, 2001. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Lei no 3.311/2001. Manual para acessibilidade aos prédios residenciais. Disponível em: <www.ibam.org.br/media/arquivos/estudos/manual_acess_rj.pdf>. Acesso em: 17 set. 2013. RUMEL, D.; SISSON, M.; PATRÍCIO, Z. M.; MORENO, C. R. C., 2005. Cidade saudável: relato de experiência na coleta e disseminação de informação sobre determinantes da saúde. Saúde e Sociedade, v. 4, n. 3. São Paulo: Scielo. SOUZA, Wilson Alves de, 2012. Acesso à Justiça: conceitos, problemas e a busca da sua superação. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/ conteudo/acesso-%C3%A0-justi%C3%A7a-conceito-problemas-e-busca-da-sua-supera%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 4 dez. 2013. OMS, 2013. The Helsinki Statement on Health in All Policies. 8th Global Conference on Health Education. Helsinki, Finland. Disponível em: <http:// www.who.int/healthpromotion/conferences/8gchp/en/>. Acesso em: 4 out. 2013. WESTPHAL, M. F., 2000. O movimento cidades saudáveis: um compromisso com a qualidade de vida. Ciência & Saúde Coletiva, 5(1). Rio de Janeiro: Abrasco. Outros sites consultados: - www.healthpromotion2013.org - www.conasems.org.br

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* Ligação gratuita de telefones públicos ou fixos. De celular é cobrada tarifa de ligação local.


Dumping social ou delinquência patronal na relação de emprego? José Augusto Rodrigues Pinto

D

Desembargador (aposentado) do TRT-5ª Região Professor Adjunto IV da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia

1. Introdução ao tema esde o século passado, mormente em sua segunda metade, o Direito passou por impressionante mutação estrutural que, disseminando-se por todos os ramos – clássicos ou emergentes – começa a consolidar resultados neste início do terceiro milênio. Sendo a ciência jurídica um complexo homogêneo, seria temerário dizer que a transformação se dá com mais rapidez e densidade em uns do que em outros segmentos. Mas, não é nenhum despropósito considerá-la mais nítida e enfática nos mais sensíveis ao anseio de efetivo equacionamento e solução dos conflitos humanos espicaçados pelos impactos sofridos em áreas estreitamente afins do conhecimento, como as da Economia e da Sociologia. É o caso, sem dúvida, do Direito Constitucional, por sua função de “direito-síntese”, na magnífica definição de Chaves Junior1; do Direito do Trabalho, por sua missão de sistematizar um tipo de relação jurídica diretamente conectada à dignidade material e moral da vida humana; do Direito Processual, pela certeza de não poder continuar sendo “apenas um meio para obter a defesa do direito subjetivo e a paz jurídica”2, nem vendo o trâmite das lides no Judiciário “ser reduzido à sua dimensão técnica, socialmente neutra, como era comum ser concebido pela teoria processualista” 3, sob pena de se reduzirem os novos direitos sociais e econômicos “a meras declarações políticas, de conteúdo e funções mistificadores.” 4 Nessas rápidas reflexões cabe o forte elo da mutação estrutural do Direito com a figura do dumping social, 26

cuja irradiação ocupou espaço rapidamente no Direito material e processual do Trabalho e chegou aos pretórios nos autos de dissídios individuais. A matéria ainda está em fase de maturação, considerando-se o tempo que levam a cautela jurisprudencial e o conservadorismo normativo para absorver as inovações doutrinárias até cristalizá-las em novos institutos e situações jurídicas. Daí as dúvidas e incertezas, que justificam procurar resposta para duas questões que desafiam o poder de reflexão do jurista: 1ª) A figura ora denominada dumping social no Direito do Trabalho corresponde ao conceito e ao conteúdo do verdadeiro dumping, ou lhe é completamente estranha? 2ª) As medidas doutrinárias de reação repressiva, endossadas pela jurisprudência, à sombra da qualificação de dumping social, são as mais acertadas e eficazes?

2. Origem, conceito, natureza e objetivo do dumping A expressão dumping provém do verbo inglês “dump”, significando desfazer-se de algo e depositá-lo em determinado local, como se fosse lixo. No mercado internacional uma empresa executa dumping quando: (a) detém certo poder de estipular preço de seu produto no mercado local (empresa em concorrência imperfeita); e (b) perspectiva de aumentar o lucro por meio de venda no mercado internacional. Essa empresa, então, vende no mercado externo seu produto a preço inferior ao vendido no mercado local, provocando elevada perda de bem-estar ao consumidor nacional, porque os residentes

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locais não conseguem comprar o produto a ser vendido no estrangeiro.5 Ou seja, em síntese: uma prática de comércio internacional consistente na venda de mercadorias em praça estrangeira por preço sistematicamente inferior ao do mercado interno ou ao de produtos concorrentes, tendo por meta eliminar a concorrência. O conceito próprio do dumping, e sua ambientação internacional, absolutamente claros na lição dos especialistas, são estritamente econômicos, tanto quanto a natureza e o fim colimado. Seu uso evoluiu na face negativa do expansionismo industrial e da globalização das trocas, responsável pela grave deterioração da ética no comércio internacional com vistas à monopolização final da atividade exercida. Os resultados proveitosos para os seus agentes, potencializados pelo passar do tempo e pela mudança da dinâmica econômica, lhe estimularam a multiplicação com maleabilidade formal que passou a dar a impressão de elasticidade conceitual. Deve-se isso, em grande medida, ao que chamaremos de interiorização do dumping, processo de adotado no âmbito exclusivamente nacional ou interno, e de alargamento da ação da esfera comercial para a industrial, transparente nessas variáveis ampliativas de seu alcance primitivo: – Exportação por preço inferior ao vigente no mercado interno para conquistar novos mercados ou escoar excessos de produção. –Venda por preço abaixo do custo para inviabilizar existencialmente a concorrência.

– Ato de venda de grandes quantidades a preço muito abaixo do normal, ou virtualmente desconsiderado, fora do alcance dos competidores. Por esses atalhos se mostra a mudança no perfil de outro ato de concorrência desleal, com o mesmo fim de proveito ilícito, porém com evidente distinção de gênese e de conceito original do dumping. Assim, tangenciando a esfera econômica de identidade e natureza, conseguiu-se a falsa impressão de ser possível admitir extensões conceituais qualificativas do dumping, onde apenas existem meios para sua prática, ou efeitos dela decorrentes. Antes de esmiuçarmos isso, ponderemos que nem toda oferta de produto a preço inferior ao de empresas concorrentes, no plano internacional, ou no interiorizado, caracteriza o dumping, pois nenhuma patologia existe na adoção de métodos apropriados para diminuir o custo de atividade econômica por aumento de produtividade. São exemplos disso o investimento em modernização de equipamentos, o aperfeiçoamento de métodos e técnicas de produção de bens ou prestação de serviços, o treinamento e estímulo remuneratório de pessoal. A patologia de conduta só aparece na malignidade do propósito de sufocar a concorrência, usando fatores que a estimulam, como deixa claro o preâmbulo do “Acordo” celebrado pelos países da Comunidade Econômica Europeia para a adoção de medidas antidumping: Há que se distinguir o “dumping” das simples práticas de venda a preços baixos que resultam de custos

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inferiores ou de produtividade superior. O critério essencial na matéria não é, com efeito, a relação entre o preço do produto exportado e o do mercado no país da importação, mas a relação existente entre o preço do produto exportado e o seu valor normal.6 3. Extensões conceituais A rapidez evolutiva dos fatos de nossa época gera uma espécie de compactação dos ramos do conhecimento pela interação de concepções que antes geravam institutos de atuação hermética em cada qual. O impressionante boom do domínio de recursos técnicos e científicos, impulsores da produção diversificada de riquezas, propiciou aos beneficiários do exercício do dumping enorme variedade de meios abertos nas faixas mais vulneráveis à compressão desleal de custos que, não utilizado por outras empresas, terminará expulsando-as do mercado. No rol daninho desses meios destaca-se, na área civil dos negócios jurídicos, a inadimplência de obrigações contratuais com fornecedores; na área tributária, a sonegação; na área trabalhista, a fraude à legislação tutelar, tão mais rentável quanto menor seja o escudo normativo de proteção do trabalhador. De outra parte, malgrado o desiderato do dumping tenha um alvo muito preciso, assestando sua mira apenas na empresa ou empresas que se deseja excluir da competição, é óbvio que, por tabela, tumultua a 28

ordem jurídica, desequilibrando as relações colaterais de interesse e envolvendo terceiros nas manobras espúrias para completá-lo. Seguramente, a área mais dúctil ao êxito dessas manobras é a da relação de emprego, pelo flanco que o poder de direção, e sua face oposta, a subordinação jurídica e econômica do trabalhador, abrem à atrofia da planilha financeira impiedosamente expurgada de encargos trabalhistas e sociais com o mínimo de resistência do prejudicado, no mais das vezes. As piruetas jurídicas usadas para chegar ao dumping repercutem em toda a ordem social pelo clima de insegurança e insatisfação a que dão lugar, e na dimensão específica do consumo, pela perda de bem-estar destacada por Frahm e Villatore em sua definição do dumping autêntico. O óbvio enlaçamento dos expedientes jurídicos (civis, trabalhistas e consumeristas) usados para conseguir os malefícios econômicos do dumping provocam malefícios sociais decorrentes de seu avanço e clímax, instigando o raciocínio analítico a enxergar neles uma tipicidade de extensão conceitual do próprio dumping, quando não passam de modos para consumá-lo ou de efeitos danosos da consumação. Essa enganosa característica merece análise extremamente atilada, mormente pelas distorções de tratamento repressivo de um imaginário dumping social trabalhista (fusão das extensões social e jurídica), que iremos enfrentar proximamente em nossas especulações (ver n. 5 infra).

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4. Primeira extensão conceitual: dumping social Cremos já estar patente que só cabe no conceito estrito de dumping o conjunto de atos destinados a promover o estrangulamento econômico da concorrência comercial, com o concurso industrial indispensável à criação dos produtos a ser comercializados. Entretanto, o alto teor predatório da natureza do dumping pode ter repercussão sob a forma de dano transindividual difuso que seus efeitos impõem ao organismo social, ou de dano individual homogêneo que impõe aos sujeitos dos contratos que prejudicar. Apenas exemplificando, alternativamente: o fechamento forçado de empresas congêneres, e/ou a supressão de postos de trabalho devida ao encolhimento do mercado, assim como a perda de clientela do fornecedor de matérias primas a empresas extintas por sua pressão. Genericamente danoso à sociedade é o colonialismo econômico advindo do monopólio final. Individualmente danoso ao empregado é o desemprego a que o lança o fechamento da empresa com a qual mantinha sua relação de emprego. As aparentes extensões conceituais do dumping (social, no primeiro aspecto do exemplo, jurídica, no segundo), não passam de efeitos colaterais do dumping, nas áreas sociológica e jurídica. O que procuramos situar e ilustrar é a demonstração de não ser verdade que existem extensões conceituais do dumping, mas sim efeitos colaterais (sociais e jurídicos) de sua prática bem-sucedida. Efeitos – acentue-se – que fundamentam o clamor reativo à deslealdade econômica e a justa censura jurídica da conduta empresarial, porém diversos e distantes do efeito principal do dumping. Então, se existisse a extensão conceitual do dumping social, seu conteúdo seria de deterioração da ordem social pelos efeitos reflexos que ele provoca. Daí se percebe que o comprometimento da ordem social pode, sim, decorrer do dumping empresarial, e deve ser reprimido com ele. Mas, se decorrer do mero exercício abusivo do direito na execução dos negócios jurídicos, é de ser reprimido em si mesmo, com outros desdobramentos. A questão, que encararemos pouco adiante, é de dimensão, (ver n. 7, a). O que não nos parece cientificamente desejável é distorcer o conceito de dumping com extensões que não lhe cabem, quando o que se observa são resultados colaterais de sua prática sem nenhuma identificação com a substância material do instituto. Isso continuará a ser detalhado no item seguinte.

O dumping atropela preferencialmente o Direito em três de seus mais importantes segmentos na dinâmica social moderna: civil, na medida em que invade a área das obrigações (contratos) e do direito de empresa; trabalhista, na medida em que manipula malignamente a relação individual de emprego; e consumerista, na medida em que tumultua as relações de consumo. Aqui defrontamos uma questão de dimensão, pois na maior parte das vezes o que aparenta ser dumping é mera malícia jurídica para tirar vantagem econômica do ilícito contraual, à forfait do prejuízo que inflige ao outro contratante ou a terceiros em face dos negócios jurídicos, e ao próprio todo social. Importante para a tese que procuramos firmar é a veemente repulsa do Direito à confusão entre o fim e os efeitos dos atos que lhe incumbe disciplinar. Em hipóteses como a que analisamos, os efeitos do dumping e da violação abusiva de direitos do trabalhador são muito próximos da similaridade, mas o fim de cada um denuncia naturezas totalmente distintas – sendo muito estranho e inadequado forçá-los a partilhar uma só identidade.

5. Segunda extensão conceitual : dumping jurídico A meta econômica do dumping tumultua a ordem jurídica tanto quanto a social. Até diremos que o faz com intensa frieza porque, além dos danos diretos ou reflexos que impõe aos sujeitos dos negócios jurídicos, deles se serve como ponte para concretizar seu perverso projeto.

A primeira razão revela, com a máxima nitidez, o aspecto da caracterização diferencial entre o dumping e a simples execução contratual abusiva. O comportamento nele delineado é possível pela disparidade legislativa, no plano internacional, que move, por exemplo, a empresa a encerrar a atividade econômica num país para

6. Dumping social na relação de trabalho A extensão conceitual rotulada de dumping social trabalhista corresponde, em verdade, à agressão contratual à relação individual de emprego em benefício do lucro do empregador com sacrifício dos direitos e encargos sociais tutelares do empregado. É óbvio que, indiretamente, isso atinge as empresas concorrentes, mas fica longíssimo do propósito de extermínio empresarial, este, sim, caracterizador do dumping puro. Quando é intenção exercer o dumping (sem qualificativos) a relação de emprego aparece como um dos meios possíveis para o êxito do resultado, por duas razões: 1ª As facilidades proporcionadas pela inexistência ou fragilidade da legislação social de determinados países, ou seu recorrente desrespeito num negócio jurídico em que a desigualdade econômica dos sujeitos torna um deles extremamente vulnerável às pressões ilícitas do outro. 2ª O considerável peso dos encargos contratuais e sociais da mão-de-obra na composição da planilha de custos do produto a ser oferecido ao mercado, devido a uma legislação preocupada em proteger a pessoa do trabalhador.

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estabelecer-se em outro, de onde passa a exportar seu produto a preço irresistível pela concorrência interna, com o fim de extermínio da concorrência. Isso é dumping, em toda a plenitude de sua natureza econômica, embora com inevitáveis efeitos colaterais (social e jurídico). Seu conceito equivocado como dumping social transparece neste comentário: Governos e empregadores de países altamente desenvolvidos frequentemente acusam governos menos desenvolvidos de praticar o dumping social por deliberadamente negligenciar regras trabalhistas. Pode, então, ser o dumping social invocado com o intuito de proteger o mercado interno de países desenvolvidos das mercadorias produzidas pela mãode-obra carente de direitos mínimos do trabalhador: longas jornadas de trabalho, utilização de mão-de-obra infantil, precário sistema previdenciário etc. 7

A segunda razão não revela mais do que o simples descumprimento ilegal de obrigações trabalhistas e encargos sociais, que produz, em escala proporcional, os mesmos efeitos colaterais (social e jurídico) do dumping, mas se distingue, expressivamente, pela natureza e pelo fim. As distinções se retratam na diferença dimensional (ver n. 7, a) ressaltada no seguinte comentário: [...] empresas que deixam de pagar direitos aos seus empregados acabam auferindo mais lucros e, consequentemente, possuem mais recursos para enfrentar as empresas concorrentes, podendo colocar seus produtos no mercado a um preço menor. 8

Por ambas as formas reprováveis de conduta a realidade mostra como é fácil utilizar o Direito (do Trabalho, in casu), inescrupulosamente, em busca do macro resultado econômico do dumping pelo esmagamento da concorrência empresarial, ou do micro resultado de ampliação do lucro pela inadimplência contratual. Esta última hipótese é que está sendo erradamente conceituada, venia permissa, como dumping social. 7. Reação repressiva da doutrina e da jurisprudência Já foi referenciado que, no plano do comércio exterior, medidas de repressão ao dumping, no seu conceito próprio, são concertadas em tratados internacionais e resoluções de organismos supranacionais. Entretanto, no plano do que denominamos interiorização do dumping, quer em seu conceito próprio, quer em suas pretensas extensões conceituais, são patentes a inexistência de legislação protetora do trabalhador e a ineficiência de medidas assestadas contra o desrespeito à legislação protetora representada, em nosso Direito do Trabalho, pela CLT e leis complementares, cujo sistema de penalidades administrativas, além da irrisão dos valores, se notabiliza 30

pela inoperância da apuração das transgressões e da execução judicial das escassas inscrições na dívida ativa da União a que devem provocar. O mal-estar causado por essa desoladora paisagem instigou nossos doutrinadores ao preenchimento do vazio normativo com barreiras substitutivas do mesmo viés econômico do dumping, numa autêntica aplicação do princípio terapêutico similia similibus curantur. Eis o sumo da pregação doutrinaria, respectivamente, no Direito material e processual do Trabalho: O fato é que [...] o Direito Social não é apenas uma normatividade específica. Trata-se, isso sim, de uma regra de caráter transcendental, que impõe valores à sociedade e, consequentemente, a todo o ordenamento jurídico. 9 .......................................................................................... [...] a função jurisdicional passa a ser encarada como uma função essencial ao desenvolvimento do Direito, seja pela estipulação da norma jurídica do caso concreto, seja pela interpretação dos textos normativos, definindo-se a norma geral que deles deve ser extraída e que deve ser aplicada a casos semelhantes. 10

A correlação desses pensamentos com a matéria da nossa abordagem indica os próximos passos da reflexão, atentos ao nexo crucial dessa neo-liberação com a segurança da ordem jurídica. Tais passos conduzem a três avaliações de acerto: Do comportamento doutrinário; Da repercussão judicial do comportamento doutrinário; Do desvio de bom senso judicial quando identifica o dumping em situações de simples transgressão de normas trabalhistas e em impor e dosar sanções pecuniárias repressivas.

A resposta à primeira avaliação é positiva e se condensa no excerto seguinte: As agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos trabalhistas geram um dano à sociedade, pois com tal prática se desconsidera, propositadamente, a estrutura do Estado social e do próprio modelo capitalista com obtenção de vantagem indevida perante a concorrência. A prática, portanto, reflete o conhecido `dumping social´, motivando a necessária do Judiciário trabalhista para corrigi-la. 11 O desrespeito deliberado e inescusável da ordem jurídica trabalhista representa inegável dano à sociedade [...] Portanto, nas reclamações trabalhistas em que tais condutas forem constatadas (agressões reincidentes ou ações deliberadas, consciente e economicamente inescusáveis) de não respeitar a ordem jurídica trabalhista [...] deve-se proferir condenação que vise à reparação

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pertinente ao dano social perpetrado, fixada ex officio pelo juiz da causa, pois a perspectiva não é de mera proteção do patrimônio individual. 12

Dos termos gerais dessas conclusões não temos por que discordar, numa primeira avaliação, diante da já reconhecida evidência de ser possível uma efetiva manipulação do Direito do Trabalho como meio ou instrumento auxiliar para obter o fim econômico do dumping, e o profundo abalo que isso traz à ordem social. A segunda avaliação aponta firme tendência das sentenças lidas para reprimir pecuniariamente, sob o pretexto de suposto dumping social (no caso, trabalhista), ainda que, et pour cause, num avanço meio errático. Tal tendência, entretanto, não autoriza desprezar a adoção de posicionamento contrário, a teor do abaixo transcrito: Pedido de indenização pela prática de dano social feito em ação trabalhista contra empresas do ramo calçadista foi negado pelo juiz Luiz Carlos Roveda, titular da Vara do Trabalho de Brusque [...] O juiz negou o pedido por entender que não é da competência do Judiciário fixar multas não previstas na legislação. Esses pedidos são razoáveis e até se coadunam com os princípios gerais do direito, porém, na essência, elegem o Judiciário para suprimir as deficiências fiscalizadoras do Executivo e a inércia do Legislativo e das organizações sindicais, pondera o juiz.” 13

De nossa parte, convimos em considerar que a ortodoxia (ou o conservadorismo) deste último entendimento trafega na contramão do trânsito do Direito em direção a uma atividade mais solta de preenchimento de vácuos normativos contrários ao interesse social, bastante perceptível nesta observação: [...] no campo mais tradicional do ressarcimento do dano, não se deve reparar só o dano sofrido (pelo autor presente em juízo), mas o dano globalmente produzido (pelo réu à coletividade inteira.) 14

Todavia, é na terceira avaliação que reside o nó de toda a problemática perscrutada, bem merecedor do radicalismo de tratamento do rei Górdio. E, pelo que nos foi dado pesquisar e remoer, um nó que, no entrechoque de fundamentações titubeantes, não está sendo compreendido como conviria no confronto com três fatores vitais de equacionamento correto da matéria: dimensão, valoração e destinação. Meditemos juntos sobre cada um deles. a) Dimensão É notório que as sentenças que estão sendo proferidas na trilha doutrinária não distinguem a altura piramidal da 2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 31


figura do dumping da dimensão rasteira da inadimplência contratual como fonte de lucro ilícito. Tomemos duas ilustrações corretivas da miopia que embaça a clareza da compreensão. Determinada empresa15 foi condenada a pagar R$50.000,00 (cinqüenta mil reais) a uma instituição beneficente completamente estranha à lide trabalhista julgada, sob pretexto de “indenização suplementar” (grifamos) da condenação em horas extraordinárias habituais. O juízo desconsiderou o fato provado de ter havido compensação pelo sistema de banco de horas, firmando-se na observância dos parâmetros da convenção coletiva que a autorizou e na ilação (por falta de apoio na instrução), das “inúmeras reclamações” de idêntico perfil em que já se envolvera. Num outro caso, certa empresa foi condenada a pagar R$100.000.000,00 (sic, cem milhões de reais) por “danos coletivos” dos empregados, ao fundamento de que não pagava horas extraordinárias in itinere. Segundo a ilação da sentença, bastante clara na expressão supositiva, o lucro da empresa “teria sido” (sic, grifamos) de $200.000.000,00 (sic, duzentos milhões de reais) em cinco anos.16 As ilustrações refletem fielmente a conclusão já expressa de que, em tese, empresas que assim trans­ grediram a legislação do trabalho elevaram ilicita­mente seu lucro e superaram as concorrentes com a colocação de produtos ou serviços a preços mais baixos (ver n. 5 supra). Note-se, porém, que em nenhuma das ilustrações há o mínimo indício de prática de dumping, sendo claro que o descumprimento das obrigações contratuais foi um fim em si mesmo e não um meio de extermínio de empresa(s) concorrente(s). Logo, o dano social que respaldou as sanções não foi um efeito de dumping, mas o simples reflexo do dano individual dos empregados (no caso, à saúde, por excesso iterativo de jornada, e financeiro, por privação do pagamento de horas excedentes com adicional indenizatório). Os exemplos que seguem, de caracterização do que está sendo chamado dumping social, são dados por um dos mais vibrantes áulicos do enquadramento linear dos abusos contratuais do empregador nesse conceito: subcontratações, contratação de falsas pessoas jurídicas, transferência da atividade para localidades permissivas de concorrência desleal sufocante da concorrência 17. Mas, o que eles evidenciam é a essencialidade do diferencial de dimensão para identificar o verdadeiro dumping, cujo qualificativo social não compõe sua natureza, pois apenas evidencia um efeito colateral. b) Valoração É igualmente notório estar faltando um critério de valoração que oriente a quantificação do acréscimo 32

condenatório antidumping, por assim dizer. Valoração em três sentidos: o da prova, o do peso da transgressão contratual e o da proporcionalidade entre esta e a reação repressiva. Observe-se, na primeira ilustração feita acima, a ausência de definição e de prova consistente da omissão iterativa de pagamento de horas extraordinárias, única razão para reconhecer uma situação de suposto dumping social. Note-se, ademais, que nenhuma investigação processual sustentou o fundamento das “inúmeras reclamações” em que a empresa se envolveu, nem a proporção entre o número de empregados que não reclamaram e o de reclamações, e muito menos a correlação do número de processos com o quadro de pessoal. Observe-se, ainda, que o reconhecimento da prática do suposto dumping é desdito pela constatação, na mesma sentença, de que “a autora não se desincumbiu do ônus que lhe competia de demonstrar que continuava trabalhando após a batida de ponto” (sic), dúvida que repercutiu explicitamente na iliquidez da condenação. Veja-se, por fim, que o valor arbitrado de toda a condenação não passou de R$ 7.781,30, do qual, abatido o líquido de R$5.000,00, a titulo de danos morais, ficam pouco mais de dois mil reais para a condenação em horas extraordinárias, que foi a base da indenização suplementar por dumping social de valor vinte e cinco vezes maior. Na segunda ilustração, a expressão conjectural “teria lucrado” desnuda o irretorquível empirismo da proporção entre o ganho sideral de duzentos milhões de reais e uma reparação social não menos astronômica equivalente à sua metade (cem milhões de reais). c) Destinação É notória a invariável definição da natureza indeni­ zatória de dano dada às sanções ao chamado dumping social. Mas, as variações qualificativas denotam a vacilação em encontrar o adjetivo certo: indenização suplementar, dano à coletividade, dano coletivo. Esquisitíssimo é que a destinação dos valores favoreça entidades de direito público ou privado (organizações beneficentes, FAT etc.), inteiramente alheias à lide que os originou, e totalmente alheia ao(s) empregado(s) vítima(s) direta e individual(ais) do dano de ordem material e moral. Não há meio de conseguirmos alcançar a razão de ser da escolha. Reflitamos, por amostragem, sobre o cerne fáticojurídico dos casos concretos que mais se repetem: não pagamento de horas extraordinárias habitualmente prestadas e seu adicional. Ora, o excesso de jornada, remunerado ou não, inflige um dano material de duas ordens, ambas inseparáveis do empregado que as prestou: a) pelo desgaste orgânico irrecuperável, redutivo da vida útil de trabalho; b) pela inadimplência da contraprestação

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salarial indenizada. Se o juízo vê desproporção entre o abuso patronal e a condenação, a ponto de merecer uma indenização suplementar, só o empregado pode fazer jus a ela, pois foi ele que sofreu diretamente o dano material e moral causado pela inadimplência, nunca a sociedade sobre a qual apenas se projeta o mal-estar provindo da inexecução faltosa do contrato. Mesmo que o reconhecimento seja de dano coletivo, a violência que o produz é a direito individual homogêneo, cuja reparação é devida ao conjunto dos titulares que o sofreram direta e individualmente – e não a instituições públicas ou privadas, escolhidas aleatoriamente pelo juízo, que não sofreram dano de nenhuma espécie. 8. Reflexões dedutivas parciais Os dados até aqui reunidos, embora não deslindem, per se, o tema, já oferecem uma percepção parcial dedutiva, na medida em que permitem extrair algumas conclusões objetivas, a saber: 1ª) A aceitabilidade, numa ordem jurídica normativamente estruturada, da criação e aplicação pelo Poder Judiciário de sanções extralegais para reparar danos sociais insatisfa­ toriamente reprimidos pelo sistema estabelecido. Por sua ousadia, a doutrinária exige extrema precisão de conceito, natureza, finalidade e alcance das providências que tomar e máximo comedimento de uso, a fim de manter incólume o sentimento da segurança jurídica – oxigênio da sociedade civilizada. 2ª) A evidente falta de formulação de uma teoria consistente em torno do que vem sendo chamado de dumping social. Essa falta compromete a firmeza da adoção pelo Judiciário trabalhista, exatamente por falta de precisão conceitual, de compreensão da natureza, de foco, de finalidade e de comedimento da repressão. 3ª) A sensível ausência de critério uniforme para fixação de valor de sanções pecuniárias, a título de reprimir o chamado dumping social nos dissídios individuais do trabalho, além de desvio de direcionamento da reparação do sujeito passivo direto do dano (o empregado) para o indireto (a sociedade).

Essas deduções, claros sintomas de descompasso entre a realidade fática e a percepção judicial, tingem de tons negativos a imagem do Judiciário trabalhista. De fato, uma das virtudes mais exaltadas da Justiça do Trabalho é o idealismo dos seus agentes – um idealismo que se equilibra perigosamente sobre o fio de navalha do sectarismo ideológico. Assim, o super dimensionamento da conduta contratual faltosa do empregador, ou o sub-dimensionamento do conceito de dumping, como se preferir, pode servir de salvo-conduto à constrição econômica arbitrária da empresa, adquirindo um viés de maniqueísmo ideológico, segundo o qual tudo que

provier do capital é pecaminoso e tudo que provier do trabalho é angelical. A fim de bem caminhar sobre o fio da navalha sem cortar os pés é que tentaremos: a) Nomear e conceituar, de modo juridicamente seguro, o descumprimento abusivo das obrigações da empresa na relação de emprego, distinguindo-o da figura econômica do dumping. b) Justificar a construção teórica da indenização suplementar do dano que causa ao empregado esse descumprimento abusivo. c) Pautar critérios sensatos de quantificação do dano e direcionamento do valor quantificado para quem diretamente o sofreu e, portanto, seja credor da reparação. 9. Deliquência patronal e condenação punitiva O rumo para se chegar onde queremos pode ser encontrado num substancioso trabalho do professor e magistrado Rodrigo Trindade de Souza 18. Nele palpitam idéias irretocavelmente cristalinas sobre comportamentos dos sujeitos dos negócios jurídicos, em geral, e de empregadores no contrato individual de emprego, em particular. Com certeza, elas se ajustam, a molde de luva, ao fecho conclusivo deste estudo. Tais comportamentos, marcantemente anti-sociais, no campo da relação de emprego, receberam do eminente autor o duro e justíssimo rótulo de “delinquência patronal” (grifamos). O castigo que merecem foi rotulado de “condenação punitiva” (grifamos), tradução livre do punitive damage do direito pretoriano ianque, que preferiríamos chamar compensação punitiva, para evitar o risco do pleonasmo. Estabeleçamos com cuidado o conceito das figuras com as quais trabalharemos daqui por diante. Por delinqüência patronal entenda-se o comportamento anti-social do empregador, ínsito na transgressão abusiva e iterativa dos direitos tutelares do empregado na relação de emprego, impondo-lhe prejuízo material ou moral muito superior ao valor de ressarcimento porventura assegurado em Lei. Por condenação punitiva (ou compensação punitiva) entenda-se a reparação pecuniária do dano diretamente causado ao empregado, e indiretamente à sociedade, pelo descumprimento patronal abusivo do contrato individual de emprego, compensativa da insuficiência de reparações asseguradas por Lei. Estabeleçamos, também, a procedência das figuras acabadas de conceituar. Sua gênese e consolidação jurídica vêm da condenação de uma indústria fabricante de veículos automotivos, que recondicionara certo número deles e os lançara no mercado como sendo

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terceira baliza, avocamos as ponderações do Professor Trindade, virtual paradigma das conclusões que enunciaremos ao final:

“O dumping é uma figura de natureza econômica inconfundível, pela origem, conceito, e objetivo, com o simples descumprimento abusivo das obrigações contratuais civis e trabalhistas pelo empregador.

novos, sem dar conhecimento disso às revendas e ao público consumidor. Provado o fato em ação promovida por um dos adquirentes, o juízo condenou a empresa a ressarcir-lhe o prejuízo pela desvalorização do bem adquirido, estimando-o em razoáveis US$4.000,00. Indo além, todavia, considerou que essa indenização não bastava à reparação do dano social reflexo (no caso, a ameaça de lesão jurídica difusa) imanente na conduta astuciosa da ré; por isso, multiplicou-o pelo numero de unidades recondicionadas (l.000) e acrescentou o resultado (US$4.000.000,00) ao valor de ressarcimento do adquirente pela desvalorização, intitulando-a punitive damage. A Suprema Corte confirmou a condenação, com a redução à metade do valor (US$2.000.000,00) já determinada no segundo grau da jurisdição, mas firmou-a como precedente de julgamento de lides similares, estabelecendo três balizas de contenção do arbítrio judicial, a saber: 1) O grau de intensidade da injúria. 2) A equivalência do valor da indenização com o efetivo prejuízo. 3) O equilíbrio com sanções legais civis, penais e administrativas de repressão da mesma conduta. Para enquadrar com segurança o alvo visado na 34

[...] a comparação entre os valores das punitive damages e as penalizações civis e criminais que possam ser impostas por condutas ilícitas pode fornecer um indício de excesso de fixação [...] No julgamento do Exxon Valdéss, houve a análise de todos os demais prejuízos experimentados pela ré lesionante por conta dos fatos determinantes dos pedidos condenatórios, em especial a perda do navio e da carga, custos com limpeza e diversas indenizações compensatórias a que foi condenada. Verificando que a Exxon teve de despender mais de US$3,4 bilhões entre multas e indenizações ressarcitórias, fixou a Corte que ´é difícil imaginar mais adequada punição por conduta negligente.´ 19

Este breve esboço da figura da condenação (compen­ sação) punitiva e de seus limites de bom-senso, afinidades à parte, mostra a nítida diferença entre a noção econômica do dumping e a noção jurídica da inexecução faltosa de relações bilaterais: enquanto o primeiro visa à eliminação da concorrência empresarial por estrangulamento econômico, a segunda visa ao locupletamento ilícito por violação dos direitos de um dos sujeitos do negócio pelo outro. Transpondo isso, atentamente, para a seara circunscrita da relação individual de emprego, a conclusão é inevitável: enquanto a delinquência patronal pode ser um dos meios de exercício do dumping, o dumping dificilmente se completará com a simples prática da delinquência patronal. Daí deflui que a conduta antisocial destinada a aproveitar a ausência ou a debilidade da legislação trabalhista de determinado pais para colocação de produtos cujo barateamento inviabilize a existência de empresa ou empresas concorrentes nacionais (dumping), causará danos diretos à ordem econômica, de que será vítima a sociedade atingida pela pressão monopolista, e à ordem jurídica, de que serão vítimas os trabalhadores cujas relações individuais de emprego deteriorar. Ao contrário, a conduta anti-social que tiver por fim somente otimizar o lucro da empresa pelo descumprimento abusivo das obrigações oriundas das relações de emprego protegidas por legislação tutelar interna (delinquência patronal), causará dano direto aos empregados cujos direitos violar e apenas indireto à ordem jurídica transgredida. Logicamente, o dano social reflexivo do dumping deverá ser reparado à sociedade. Mas, o dano trabalhista intrínseco da delinqüência patronal só poderá ser reparado, com justiça, aos empregados, que o sofreram diretamente. Isso entra pelos olhos, como acreditamos já ter demonstrado (ver n. 7 supra) nos casos de privação recorrente de salários,

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de prestação habitual de horas extraordinárias, ainda que pagas, de falta de atendimento às normas de proteção da saúde e segurança no trabalho, de sonegação de depósitos de FGTS e de sua multa por extinção imotivada do contrato etc. A dedução é tão instintiva que as próprias sentenças, e a doutrina que as alimenta, apesar de proclamaram o fundamento no dumping social, estão denominando o pagamento punitivo pela natureza que realmente lhe corresponde: indenização suplementar. 10. Síntese conclusiva A exposição discursiva do tema cabe nesta síntese conclusiva: 1) O dumping é uma figura de natureza econômica inconfundível, pela origem, conceito, e objetivo, com o simples descumprimento abusivo das obrigações contratuais civis e trabalhistas pelo empregador. 2) A circunstância de sua prática produzir colateralmente efeito social danoso, não autoriza atribuir-lhe a extensão conceitual de dumping social. 3) As medidas de repressão ao dumping, tanto no plano internacional de sua origem, quanto no plano interno a que sua prática se adaptou, são absolutamente distintas de medidas jurídicas para reparação dos danos social e individual que também colateralmente causa. 4) O descumprimento abusivo das obrigações trabalhistas pelo empregador, magnificamente cabí-

vel no severo conceito de delinqüência patronal, inflige um dano material e moral direto ao(s) empregado(s), verdadeiro alvo da ilicitude empresarial, sem embargo de causar o que, no dumping autêntico, é apenas um efeito colateral. 5) Assim, é pertinente dar à delinquência patronal o mesmo trato repressivo dispensado ao dumping, para desestimular sua prática, mediante compensação punitiva ao(s) empregado(s) atingidos), além das indenizações acaso previstas na Lei trabalhista, e valor proporcional à intensidade do dano material e moral efetivamente infligido, como já vem ocorrendo a título de indenização suplementar por dumping social. 6) É lamentável engano destinar à sociedade, por meio de instituições de direito público ou privado, o valor da compensação punitiva, pois na delinqüência patronal o prejuízo real a reparar é do empregado por violação direta de direito individual. 7) Enquanto não regulamentada pela norma jurídica, a compensação punitiva (que vem sendo imposta com o nome de indenização suplementar) por dano decorrente de delinqüência patronal (que vem sendo denominada dumping social) deverá ser quantificada de acordo com a gravidade do comportamento antisocial, a extensão e profundidade do dano causado e a ponderação com sanções legais já previstas para a ilicitude da conduta.

Notas CHAVES JUNIOR, “Instituições de Direito Público e Privado”, Rio de Janeiro, Forense, 1988, p. 142. Aut. e ob. cits., p. 125 3 SANTOS Boaventura de Sousa, “Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade”, 12 ed., São Paulo, Cortez, p. 167. 4 Aut. e ob. cits., p. 168. 5 FRAHM Catarina e VILLATORE Marco Antônio Cesar, “Dumping Social e o Direito do Trabalho”, www.scibd.com./A10 , consultado em 30.06.2011. 6 Google, “Medidas antidumping, Europa”, síntese da legislação da União Européia, verbete Dumping, consultado em 30.06.2011. 7 FRAHM Carina e VILLATORE Marco Antônio Cesar, “Dumping Social...” cit. , p. 2, consultado em 30/06/2011. 8 DE ANDRADE Alexsander F.S., “Dumping social sob a ótica da Justiça do Trabalho”, www.parana-online.com.br, consultado em 15/06/2011. 9 SOUTO MAIOR Jorge Luiz, “O dano social e sua reparação”, São Paulo, Revista LTr – Legislação do Trabalho, 71-1/1317, 10 DIDIER JR. Fredie, “Cláusulas gerais processuais”, Revista da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, Salvador, n. 16, jun./dez. 2011, p. 11 Enunciado n. 04 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, Brasília, outubro 2007. 12 SOUTO MAIOR Jorge, “O dano social...”, cit., p. 1319. 13 “Indenização é indeferida na Justiça do Trabalho”, in Notícias Jurídicas, 21.09.2010, www.jusbrasil.com.br, consultado em 30/06/2011. 14 CAPELLETI Mauro, “Formações sociais e interesses coletivos diante da Justiça Civil”, apud SOUTO MAIOR Jorge Luiz, “O dano social...”, cit., p. 1320, destaque do original. 15 Cf. Proc. n. 0000900-76.2009.5.20.0004, Rte. Anne Marília Santos da Silva, Rda. G. Barbosa Comercial Ltda. 16 www.dgcdt.com.br,consultado em 30/06/2011. 17 SOUTO MAIOR Jorge Luiz, “O dano social...”, cit., p. 1318 18 DE SOUZA Rodrigo Trindade, “Punitive damages e o Direito do Trabalho – Adequação das condenações punitivas para a necessária repressão da delinquência patronal”, São Paulo, Revista LTr – Legislação do Trabalho, 75-05/573 usque 587. 19 Aut. e obr. cits., p. 574/575, destaque nosso. 1 2

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Invista em Itaboraí

A capital dos bons negócios. Distante apenas 39km da capital do Rio de Janeiro, Itaboraí é hoje a grande oportunidade de excelentes negócios para empresas de diversos setores. Sede do Comperj - Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, e com uma Base Industrial e Tecnológica sendo implantada, o município terá em 10 anos, o seu PIB estimado em R$17 bilhões e sua população chegará a 1 milhão de habitantes nesse período. Esses empreendimentos estão atraindo empresas de diversos segmentos, pois hoje com a nova administração municipal, Itaboraí mostra um cenário de progresso e de modernização da cidade. Seu território faz divisa com Tanguá e Maricá, municípios que serão beneficiados pelo Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma via de escoamento que integrará uma importante região do estado que compreende de Itaguaí à Itaboraí, promovendo o desenvolvimento integrado de toda essa região.

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Itaboraí

Conheça Itaboraí, a cidade que será a segunda capital do estado e o melhor lugar para sua empresa.

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D om Quixote, Carlos Alberto Luppi

Justiça comunitária já atua em 14 estados beneficiando milhares de pessoas A trajetória de sucesso do projeto coordenado pela Secretaria de Reforma do Judiciário traduz a importância da cultura da mediação

U

ma das principais medidas do Ministério da Justiça, transformadas em política pública desde 2008, sob a administração da Secretaria nacional de Reforma do Judiciário, está fazendo grande sucesso em 14 estados brasileiros e no Distrito Federal, em áreas e regiões mais vulneráveis socialmente e onde a justiça precisa ser mais acessível à população. É o programa “Justiça Comunitária” que caminha a passos largos para ser implantado em todos os estados brasileiros até o final de 2014. O programa já pres­tou serviços a mais de 100 mil brasileiros, com 80 Núcleos em pleno funcionamento, onde os focos principais são a mediação de conflitos e a adoção de uma política jurídica, baseada em buscar o consenso entre as partes. Uma maneira de evitar trâmites processuais, desobstruir a justiça, satisfazer as partes envolvidas numa demanda e ainda levar a justiça aonde o povo está. As mediações e a conciliação ocorrem, principalmente, em questões de desavenças familiares, vizinhança, posse, propriedade, dívidas comuns e até casos que envolvem pensão alimentícia. A ideia da Justiça Comunitária nasceu em 2000 dentro 38

do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJEDFT). A proposta era levar à população informações jurídicas, efetuar mediações de conflitos e realizar animações de redes sociais, tendo sido planejada e testada por anos, até que, em 2004, o Programa foi lançado, como um projetopiloto, pelo Tribunal em áreas carentes de sua jurisdição. Foi um sucesso. Em 2005, o Programa ganhou o Prêmio Innovare, que completou dez anos em 2013 identificando, divulgando e premiando ações de cidadania desenvolvidas, em todo o Brasil, por operadores do direito, sejam eles: advogados, defensores, magistrados, promotores e até mesmo tribunais. Na história do Instituto Prêmio Innovare, que conta em seu catálogo “com mais de 3 mil projetos validados, de boas práticas no judiciário” e que demonstram a preocupação social da justiça brasileira e seus operadores, conforme explica seu diretor Carlos Araújo em artigo publicado na edição 159 da Revista J&C, o programa da Justiça Comunitária é um dos mais relevantes. Em 2006, foi criado dentro do Programa, ainda existente apenas em áreas do TJEDFT, o mapeamento social com um banco de dados formado na área de atuação de cada Núcleo da Justiça Comunitária, com informações sobre recursos locais, instituições, habilidades pessoais, dificuldades da comunidade e pessoas que poderiam ser agentes comunitários. A experiência comprovou que os moradores “passaram a conhecer o potencial de suas comunidades e começaram a estabelecer novas conexões e fortalecer as existentes”, conforme diz um relatório sobre as atividades iniciais do Programa.

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Foto: Isaac Amorim/ACS/MJ

Flávio Crocce Caetano, Secretário Nacional da Reforma do Judiciário

Em 2008, o Programa se tornou política pública do Ministério da Justiça por meio do Pronasci – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, permi­ tindo sua disseminação em todas as regiões do país, estabelecendo “uma conexão entre problemas e soluções que promoveu um maior senso de responsabilidade pela comunidade, e criou uma espiral positiva de transformação social”, diz um relatório oficial do Programa. Em 2009, foi feita a primeira seleção de agentes comunitários, com 700 selecionados até 2011, orientados por consultores especiais que ministram cursos de capacitação em técnicas de mediação comunitária e conciliação, noções de Direito, animação em redes sociais, terapia comunitária, direitos humanos e cultura cidadã. Estes cursos são oferecidos também aos integrantes das equipes multidisciplinares que atuam em cada Núcleo, integradas por um psicólogo, um advogado e um assistente social e toda a equipe capacita os agentes comunitários.

O Programa compreende a formação de Núcleos específicos em áreas comunitárias, reuniões semanais de avaliação, formação contínua de seus agentes e funciona em locais da própria comunidade, como escolas, templos religiosos, instituições diversas e até residências. Ela não funciona em um local fixo, ela vai aonde o problema existe e o consenso e a conciliação são necessários, a partir da mediação feita por seus agentes com o suporte dos profissionais da equipe multidisciplinar. O Programa foi tão bem aceito que já em 2012 havia 64 Núcleos instalados em 12 estados, número que vem crescendo permanentemente, – agora já são 14 estados – tamanha a demanda existente e seus êxitos comprovados na conciliação de pessoas, na promoção do consenso e no ajuste de acordos diversos. O incentivo à redução de litígios é um dos quatro eixos que estruturam o planejamento estratégico da Secretaria de Reforma do Judiciário. Entre as diretrizes de trabalho, no que diz respeito à cultura da mediação,

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a SRJ busca a reestruturação da justiça brasileira, com a diminuição considerável do número de ações judiciais, o estabelecimento de mecanismos legais e formas alter­ nativas de solução de conflitos, promovendo, ainda, total desafogo no trabalho da justiça brasileira, ampliando a possibilidade de acordos e satisfação das partes antes de qualquer iniciativa litigiosa. A mediação reconhece e valida os sentimentos das partes, baseada no princípio da igualdade, e uma terceira pessoa, imparcial, facilita a comunicação e colabora para que “ambas cheguem a um consenso”. O Secretário Flávio Crocce Caetano garante, até o final de sua gestão: ”Nosso objetivo é levar os Núcleos da Justiça Comunitária a todos os estados e, de preferência, às regiões mais problemáticas e vulneráveis. Os agentes comunitários, membros da própria comunidade, são capacitados a atuar com técnicas de mediação e educação para direitos. Eles são orientados por uma equipe multidisciplinar formada por advogado, psicólogo, assistente social. Estes profissionais ajudam as pessoas a resolverem diversos problemas, estabelecendo um canal de comunicação entre elas focado na importância do consenso, como, por exemplo, problemas de família, vizinhança, questões relativas aos direitos do consumidor”. Através de pesquisas detectou-se que o brasileiro prefere, em sua ampla maioria, o consenso à discussão. Ou seja, prefere o diálogo para solucionar suas questões de caráter jurídico. Podemos citar como exemplo uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos sobre o Sistema de Justiça (CEJUS) da Secretaria de Reforma do Judi­ciário com 1300 cidadãos em 130 municípios brasi­leiros. A pesquisa sobre Resolução Extrajudicial de Conflitos dos Serviços Regulados por Agências Governamentais mostra que o primeiro caminho de 63% dos entrevistados é tentar contato direto com a empresa responsável pelo serviço, enquanto que 15% buscam o Procon e somente 3% vão direto ao Judiciário. “O Brasil precisa implantar essa possibilidade legal para fazer acordos”, diz Flávio Crocce Caetano. No caso da Justiça Comunitária, os Núcleos utilizam pessoas da própria comunidade que tenham concluído o ensino médio, mas precisam ter vivência na comunidade e receberem capacitação. A Escola Nacional de Mediação e Conciliação, outra importante iniciativa de sucesso da Secretaria da Reforma do Judiciário, dá suporte a todo este trabalho. Outro programa da SRJ dirigido pelo Secretário Flávio Crocce Caetano começa a se espalhar pelo país – também transformada em política pública –, e se utiliza dos serviços de orientação em direitos e de serviços do 40

Sistema de Justiça, com foco em solução por consenso e mediação, para agentes comunitários – é o projeto da Casa de Direitos. “Recentemente – explica Flávio Crocce – nós inaugu­ ramos uma nova política pública, a Casa de Direitos. Ela é a união do projeto Justiça Comunitária com os serviços do Sistema de Justiça, de Registro Civil e da Caixa Econômica Federal. Estas políticas fazem com que todos os cidadãos tenham acesso à Justiça e que ela seja de qualidade. Justiça de qualidade é aquela que reconhece o direito e que é prestada no tempo certo”. Será também implantada em todos os Estados como plano da Secretaria de Reforma do Judiciário e, em novembro de 2013, o primeiro passo foi dado com a inauguração da unidade na Cidade de Deus, em parceria com o Governo do Rio, a Caixa Econômica Federal e diversos órgãos de justiça, com atendimento médio de até 7 mil pessoas por mês. A Casa de Direitos está disponibilizando serviços públicos de mediação de conflitos nas áreas comunitárias em atuação conjunta com os Núcleos da Justiça Comunitária. Serviços como identificação civil – com emissão de certidões de nascimento, casamento, óbito, escrituras –, assistência integral da Defensoria Pública, atendimento dos tribunais, do Detran e da Caixa Econômica já fazem parte do dia a dia da população local. A Casa de Direitos é uma unidade física fixa e funciona diariamente com agentes comunitários, consultores e equipes multidisciplinares. Outros serviços como os relacionados ao Procon, Direito do Consumidor e Defensoria Pública da União funcionarão, inicialmente, em sistema de itinerância. No caso da Cidade de Deus, por exemplo, estes serviços estão sendo oferecidos em um trailer localizado em frente à Casa de Direitos, onde também atuam os técnicos do Programa Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. A criação dos Núcleos da Justiça Comunitária obedece a uma seleção feita na própria Secretaria, dentro do Ministério da Justiça, a partir de editais específicos para projetos com essa finalidade. O Ministério da Justiça mantém uma verba anual de cerca de R$ 4 milhões para este projeto e tem como planejamento a implantação de 10 núcleos por ano. O valor da implementação de cada um custa em média 380 mil reais, incluindo a compra de equipamentos, pagamento das equipes multidisciplinares e outras despesas que garantam, comprovadamente, o pleno funcionamento de uma das mais expressivas iniciativas de cidadania, hoje, no país. Até hoje, estima-se terem sido investidos R$ 20 milhões no programa, elogiado internacionalmente.

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Justiça Itinerante

Ampliação democrática do acesso à Justiça

Cristina Gaulia

Desembargadora do TJERJ

O Introdução

“Só pode conhecer e aplicar apropriadamente o direito quem conhece os fatos sociais, sendo capaz de discriminar-lhes os traços característicos, perceber-lhes o encadeamento, as causas e consequências na estrutura social global. É indispensável não só conhecer os fatos, como ser capaz de compreendê-los em conexão com as forças sociais em presença.”

modelo de organização judiciária almejado pela Constituição Federal de 1988, este que teve suas bases aperfeiçoadas pela Emenda Constitucional no 45, em 30/12/2004, que introduz na Lei Maior a chamada “Reforma do Judiciário”, tem como norteador principal o fortalecimento da cidadania no Brasil. Não à toa, a Constituição de 1988 é denominada “cidadã”. Uma Carta de princípios reitores e com propostas objetivas de reforma das instituições públicas e dos mecanismos de poder, com fulcro nos valores liberdade, justiça e solidariedade, para se assegurar a dignidade da pessoa humana em um Estado Democrático de Direito, fazendo prevalecer a igualdade na pluralidade, é o projeto preconizado pelos constituintes e que o Poder Judiciário precisa incorporar de forma plena e consciente em definitivo. Construir um novo Poder Judiciário, no qual a cidadania encontre um Direito concretamente evoluído em direção a uma ordenação congruente com o bem comum, em todas as suas diversas singularidades plurais, passa, inexoravelmente, pela ampliação do acesso ao Judiciário, primeiro degrau de uma longa escada até o alcançar real da verdadeira Justiça. Nas palavras do Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, uma Constituição não é só técnica. Tem de haver, por trás dela, a capacidade de simbolizar conquistas e de mobilizar o imaginário das pessoas para novos avanços. O surgimento de um sentimento constitucional no país é algo que merece ser lembrado.1 (Grifo original)

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O que se pretende é a efetividade do acesso da população à Justiça, o que passa, em um primeiro momento, pela percepção dos Tribunais de que a população brasileira não conhece o Judiciário e seus complexos caminhos procedimentais, não consegue acessar advogados ou defensores públicos, quer pelo custo, quer pela ausência da instituição “Defensoria Pública” em, ainda infelizmente, muitos locais, quer por um endeusamento da Justiça, que a magistratura, em seus castelos de cristal, incentiva, e a falta de informações claras e objetivas, no plano educacional, propiciam.7 A par disso, a população brasileira não tem ainda os meios materiais e a formação necessária para acessar o Judiciário como fazem as classes média e alta. Refere o jornalista José Casado:

Atendimento ao público no programa Justiça Itinerante.

Para tanto, a efetividade das ações administrativas e das políticas públicas do Judiciário deve ser a palavra de ordem. É o próprio texto constitucional que estimula uma revisão dos valores que devem guiar a magistratura: o artigo 37 da Constituição determina a obediência “dos Poderes da União” aos princípios que enumera, entre os quais a eficiência2.3 Se, no passado, portanto, palavras como efetividade e eficiência eram lidas como meras ideais, com exclusivo conteúdo programático, no presente, devem ser interpretadas como conceitos transformadores da burocracia estatal, da burocracia procedimental do Judiciário. Para tanto é preciso de plano fazer desaparecerem as “monoculturas da mente”, uma vez que estas “fazem a diversidade desaparecer da percepção e, consequentemente, do mundo”.4 É necessário, portanto, um desvio da ultrapassada “insinceridade normativa” para uma melhor compreensão do conceito de força normativa da Constituição, alcançando-se assim a essência da efetividade5.6 Diante desse quadro exsurge, forte no § 7o do art.125 da Constituição, o moderno mecanismo da Justiça Itinerante como fórmula do pleno e efetivo acesso da cidadania ao Judiciário, verbis: (...) Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. § 7o O Tribunal de Justiça instalará a Justiça Itinerante, com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários.

É um país com 770 mil advogados, mas apenas 5.500 defensores públicos. São 311 advogados para cada 100 mil habitantes e apenas 3,9 defensores no mesmo universo. Os poucos defensores existentes atendem 90% da população. (...) Órfãos ficam com oito em cada dez brasileiros que sobrevivem com até três salários-mínimos mensais. Não têm quem os defenda – principalmente contra o Estado. Quando encontram um defensor público, geralmente sobrecarregado, precisam entrar na fila e contar os dias no calendário da burocracia (...).8

Funcionamento Nos ônibus da Justiça Itinerante, programa de sucesso do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, na data de hoje atuando em 19 localidades9, o cidadão, mesmo sem sapatos, é atendido pelo juiz togado em audiências que primam pela simplicidade e pela informalidade. A Justiça Itinerante do Estado do Rio de Janeiro atua desburocratizando o processo civil e adotando paradigmas da Lei de Juizados Especiais10 no plano da conciliação, instrução e julgamento, nas áreas do direito das famílias, órfãos e sucessões, cível, infância/ juventude/idoso, registro civil, regularização do estado civil, e já agora podendo fazer o atendimento, também, na área de Fazenda Pública, com fundamento na Lei Federal no 12.153/0911, fundamentados os parâmetros dessa competência, inclusive, por analogia, na norma do parágrafo único do art. 22 da Lei Federal no 10.259/0112. O magistrado designado para atuar na Justiça Itinerante tem competência concorrente nas áreas especificadas acima e atua, em auxílio ao(s) colega(s) a quem a competência caberia originariamente, não só no curso do processo de conhecimento, tentando a conciliação, e em caso de inviabilidade de acordo, colhendo todo o tipo de prova em audiências ou fora delas, mas também executando as sentenças prolatadas. A Justiça Itinerante no Estado do Rio de Janeiro funciona, na grande maioria das localidades, uma vez por

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semana, sempre no mesmo dia, no horário compreendido entre 9 h e 15 h, e no mesmo local onde o ônibus, desde a inauguração, permanece estacionado. Os calendários de atendimento anual são divulgados na abertura do ano, logo após o recesso judiciário, desses já constando os dias em que, por feriados ou pontos facultativos, não haverá expediente. Ao contrário, portanto, da forma convencional de entrega da prestação jurisdicional, é o magistrado – com sua equipe de servidores, e em parceria com o Ministério Público e a Defensoria Pública, cujos órgãos de atuação também se fazem presentes – que vai ao encontro do cidadão que precisa do serviço judiciário. O norteador que move a inauguração das Justiças Itinerantes no Estado do Rio de Janeiro obedece a quatro critérios objetivos sobre os quais se construiu o programa, visando atender ao melhor gerenciamento dos recursos financeiros, materiais e humanos, e à disponibilidade maior ou menor de tais recursos no orçamento judiciário. Tais critérios são: municípios em cuja lei emancipadora não se incluiu a Comarca como célula judiciária própria; municípios com grande densidade demográfica e baixo índice de desenvolvimento humano; municípios com grande extensão territorial e com distritos muito distantes do fórum, e, por fim, territórios em processo de pacificação via Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Os primeiros critérios visam a economia de recursos do FETJ13, eis que são indubitáveis que a alocação de um ônibus da JI, embora com o custo que lhe é inerente, é menos dispendiosa que a construção e a manutenção de fóruns naqueles locais, ou mesmo postos de atendimento, e que há melhoria do atendimento judiciário a cidadãos que antes não tinham como acessar o Poder Judiciário. Como bem consigna a magistrada Renata Vivas, responsável pela Justiça Itinerante de Jardim Catarina, em São Gonçalo: Muitas pessoas aqui não possuem comprovante de residência, o que obsta o acesso à Justiça e a busca por direitos e cidadania. As habitações irregulares também dificultam muito o trabalho dos Oficiais de Justiça. (...) Não é fácil, requer uma doação maior e muita paciência, pois são, na maioria das vezes, pessoas pouco esclarecidas, sem estudo. É preciso explicar e repetir até que a pessoa consiga compreender. Tanto a linguagem como a postura corporal precisam ser diferentes. Aqui não há cadeiras altas, nem tablados, é de igual para igual. Também brinco dizendo que, entrou no ônibus, vamos resolver! E poder ver a satisfação, o alívio e a alegria no rosto das pessoas não tem preço. Esse contato é muito enriquecedor. Como, por exemplo, um casal de idosos já separados há 30 anos e que nunca conseguiram fazer o divórcio ou uma mãe que inicia processo de registro dos seus cinco filhos.14 44

Por outro lado, no campo da pacificação social, presta-se a Justiça Itinerante ao compartilhamento dos deveres e das responsabilidades assumidos pelo Executivo Estadual com o programa das UPP – Unidades de Polícia Pacificadora. Nesse passo, um Poder Judiciário atento e presente, como garantidor de práticas democráticas e dos direitos fundamentais, durante décadas ausentes dos territórios em processo de pacificação, é a medida exata de Justiça distributiva necessária à verdadeira conquista da igualdade em tais localidades15. Para a efetivação da proposta do Executivo de levar segurança às áreas em processo de pacificação, que voltam a integrar-se, assim, ao contexto maior de convivialidade da cidade do Rio de Janeiro, muito já se tem repetido sobre não ser suficiente a ação policial. Na verdade, é necessário que a cidadania nesses territórios deixe de ser uma cidadania de baixa densidade, tornando-se uma cidadania igualitária. Tal concepção, sem distorções ou cidadãos de segunda categoria, concretiza uma cidadania que possibilita a emancipação e a criação de um “novo senso comum político”, e, com isso, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, revalorizando-se “o princípio da comunidade e, com ele, a ideia de igualdade sem mesmidade, a ideia de autonomia e a ideia de solidariedade”, tendo “como corolário a descentração relativa do Estado.”16 Conclusão Cabe ao Poder Judiciário, por meio da Justiça Itine­ rante, legítimo mecanismo constitucional de aprimo­ ramento da garantia de acesso ao Judiciário e à Justiça, fortalecer o sistema de prestação jurisdicional no âmbito de uma Jurisdição “comprometida com o processo de democratização do direito e da sociedade”17. Ao traçarem-se, portanto, as linhas-mestras da adminis­ tração judiciária na contemporaneidade, é inolvidável que, ao lado de sua modernização estrutural, que vem sendo concretizada nos últimos anos com sucesso pelo TJERJ, com a construção e a modernização dos prédios judiciários, a informatização e o processo eletrônico, e, mais recentemente, com as inúmeras medidas de uma especial e intensa segurança de pessoas e coisas entendidas como indispensável, está o cidadão, este para o qual o serviço precisa ser otimizado, não só no plano formal, mas principalmente no plano de uma Justiça mais adequada do ponto de vista social. Como dizem os ambientalistas, é preciso pensar a sustentabilidade do meio ambiente sem esquecer-se do homem, pois de nada valem os investimentos radicais para um ambiente saudável se os seres humanos não forem cuidados como parte essencial daquele. O programa Justiça Itinerante vem realizando ao longo dos seus já agora dez anos de existência, no Estado do Rio de Janeiro, uma proposta diferenciada de acesso à Justiça para populações diferenciadas.

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Não se contesta que tal diferenciação seja transitória, mas ainda há muito a realizar, com a necessária expansão do programa. A forma é diferenciada pois as necessidades são diferentes. Assim como a arbitragem vem sendo incentivada e regulamentada para as empresas que não podem ser prejudicadas com o tempo necessário ao justo processo legal, como a mediação, que visa expandir o processo de solução do conflito, buscando-o em sua essência mais profunda, e não somente em suas consequências superficiais, ou como os Juizados Especiais, que permitiram a consciência de que todo conflito, mesmo os de menor complexidade, deve ser resolvido para uma melhor pacificação social, também a Justiça Itinerante tem um objetivo específico no plano maior da jurisdição. É por meio desse mecanismo de cunho procedimental que políticas legislativas, como a erradicação do sub-registro de nascimento, a facilitação da transformação das uniões estáveis em casamento, a interdição de pessoas doentes e/ou idosas para fins de obtenção de benefícios previdenciários, a pacificação de conflitos possessórios, entre outras, podem ser concretizadas com baixo custo e alto ganho para a sociedade. À guisa de conclusão, consignamos que em 16/10/2012 entrou em vigor a Lei Federal no 12.726, que visa, por meio da Justiça Itinerante, a solução de conflitos rurais e que determina a instituição obrigatória dos “Juizados Especiais Itinerantes, que deverão dirimir, prioritariamente, os conflitos existentes nas áreas rurais ou nos locais de menor concentração populacional.”18 No plano da democratização da Justiça, é chegada a hora em que não nos basta mais que o rei nu circule por convivas igualmente nus a falarem de suas roupas e vestimentas acreditando que realmente estão vestidos.19 O programa Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro firma estratégia de transformação positiva e da integração da sociedade, devendo, por conseguinte, ser incorporado ao planejamento administrativo e orçamentário da Administração Judiciária dos Tribunais.

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Fotos 1 e 2: Atendimento ao público no programa Justiça Itinerante. Foto 3: Juiz Vitor Moreira Lima em atendimento no programa Justiça Itinerante do Complexo do Alemão-Rio.

Notas BARROSO, Luís Roberto. In Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 268-269. 2 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit. Art. 37: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...].” 3 Para melhor compreensão dos conceitos de eficiência e efetividade, é necessário visitar-se a teoria dos conceitos de Reinhart Koselleck, que, em sua obra Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, nas palavras do professor Julio Bentivoglio, revela: “O mundo é sempre interpretado a partir da linguagem, mas Koselleck fará uma definição radical entre História das Ideias da História Conceitual. Na primeira, história e ideias possuem apenas um vínculo externo tendendo a uma existência estática. São eternas, sua aparição ou desaparecimento marcam 1

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somente uma circunstância externa. Uma História das Ideias não nos diz nada do significado destas ou sobre as alterações semânticas ocorridas. Mas quando uma ideia se converte em conceito, a totalidade dos contextos de experiência e significados sociopolíticos aparece. Na medida em que concentra experiências históricas e articula redes de sentido, o conceito assume um caráter essencialmente plural”. BENTIVOGLIO, Julio. A história conceitual de Reinhart Koselleck. Março de 2010. Disponível em: <http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2526/2022>. Acesso em: 20 jun. 2013. 4 SHIVA, Vandana. In Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia, São Paulo: Gaia, 2003, p. 15. Tradução de “Monocultures of the mind”, 1993. 5 “É bem de ver que o próprio reconhecimento da força normativa às normas constitucionais é conquista relativamente recente no constitucionalismo do mundo romano-germânico. No Brasil, ela se desenvolve no âmbito de um movimento jurídico-acadêmico conhecido como doutrina brasileira da efetividade. Tal movimento procurou não apenas elaborar as categorias dogmáticas da normatividade constitucional como também superar algumas das crônicas disfunções da formação nacional, que se materializavam na insinceridade normativa, no uso da Constituição como uma mistificação ideológica e na falta de determinação política em dar-lhe cumprimento. A essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa. BARROSO, Luís Roberto. In O constitucionalismo democrático no Brasil: crônica de um sucesso imprevisto. Revista Fórum, Amaerj – Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, Ano 11. Número 35, abr./mai./jun. – 2013, p. 34. 6 Não sem razão os termos “efetividade” e “eficiência” são considerados sinônimos por Houaiss que, em seu léxico, no verbete referente ao vocábulo “eficiência”, apresenta como definição conceitual: “1. poder, capacidade de ser efetivo; efetividade, eficácia. 2. virtude ou características de (alguém ou algo) ser competente, produtivo, de conseguir o melhor rendimento com o mínimo de erros e/ou dispêndios”, e no que tange à palavra “efetividade”, sublinhar a “1. faculdade de produzir um efeito real. 2. capacidade de produzir o seu efeito habitual, de funcionar normalmente. 3. capacidade de atingir o seu objetivo real. 4. realidade verificável; existência real; incontestabilidade. 5. disponibilidade real. 6. possibilidade de ser utilizado para um fim. 7. qualidade do que atinge os seus objetivos estratégicos, institucionais[...].” In “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 723. 7 O Ministério da Justiça lançou, em 16/12/13, o portal do Atlas do Acesso à Justiça, disponível em <http://www.acessoajustica.gov.br>, do qual consta atualíssimo estudo elaborado em parceria com organizações públicas e privadas, que nas palavras do Secretário da Reforma do Judiciário, Flávio Caetano, revela: “Ainda temos muita dificuldade de que direitos sejam garantidos pela Justiça. O sistema está congestionado, com mais de 90 milhões de processos. E, por incrível que pareça, ainda falta acesso à Justiça porque não temos uma rede nacional de atendimento em nosso País”. Nesse jaez, o secretário secundou a posição do Ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, que declarou: “Efetivamente, nós temos um instrumental que permitirá a juízes, membros do Ministério Público e operadores do direito, participarem mais ativamente dessa construção. É nossa missão fazer com que a Constituição de 1988, o Estado de Direito, saia do mundo das normas e entre no mundo dos fatos”. In Maranhão tem o pior acesso à Justiça e DF, o melhor, aponta estudo. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/12/maranhao-tem-o-pioracesso-justica-e-df-o-melhor-aponta-estudo.html>. Acesso em: 18 dez. 2013. 8 In Órfãos do Judiciário, texto de José Casado, pub. em O Globo, p. 15, ed. 24/12/2013. 9 São as seguintes as localidades onde atuam os ônibus da Justiça Itinerante: Tanguá, desde 27/4/04; Areal, desde 11/5/04; Levy Gasparian, desde 3/8/04; Macuco, desde 10/8/04; Mesquita, desde 30/11/04 (JI cujo funcionamento se encerrará em 30/1/14 em função da inauguração do fórum de Mesquita em dez/13); Carapebus, desde 22/7/05; Jardim Primavera – Duque de Caxias, desde 25/8/07; Tocos – Campos dos Goytacazes, desde 26/11/08; Santo Eduardo – Campos dos Goytacazes, desde 26/11/08; Jardim Catarina – São Gonçalo, desde 12/8/09; Manilha – Itaboraí, desde 27/8/10; Cidade de Deus – Rio de Janeiro, desde 15/6/11; Complexo do Alemão – Rio de Janeiro, desde 22/7/11; Vila Cruzeiro – Rio de Janeiro, desde 6/8/11; Batan – Rio de Janeiro, desde 14/9/11; Rocinha – Rio de Janeiro, desde 6/3/12; Quatis, desde 19/10/12; Jardim Gramacho – Duque de Caxias, desde 29/10/12; Nova Sepetiba – Rio de Janeiro, desde 27/2/13. 10 Lei Federal no 9.099, de 12/9/1999. 11 A Lei no 12.153, de 22/12/2009, dispõe sobre os Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos estados, do Distrito Federal, dos territórios e dos municípios. 12 A Lei no 10.259, de 12/7/2001, dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, dispondo no parágrafo único do art. 22 que “o juiz federal, quando o exigirem as circunstâncias, poderá determinar o funcionamento do Juizado Especial em caráter itinerante, mediante autorização prévia do Tribunal Regional Federal, com antecedência de 10 dias.” 13 FETJ – Fundo Especial do Tribunal de Justiça, criado pela Lei Estadual no 2.524, de 22 de janeiro de 1996, do qual saem os recursos para a construção de fóruns, dentre outros gastos gerais e específicos de manutenção material do serviço judiciário do ERJ. 14 In Boas práticas – uma juíza que faz a diferença. Revista Jus Correge da CGJ/ERJ, dez. 2013, n. 11, p. 23. 15 Consigne-se aqui em complemento meramente ilustrativo, eis que o assunto demandaria específica digressão detalhada, o que fugiria ao objetivo deste trabalho, que uma política pública judiciária, como é o caso do programa Justiça Itinerante desenvolvido pelo Tribunal de Justiça do ERJ, pode ser contextualizada no âmbito das chamadas ações afirmativas de inclusão social. A respeito, lição da professora Kellyne Laís de Almeida, no texto A igualdade e a proporcionalidade – reflexões sobre a ponderação do legislador e a ponderação do juiz nas ações afirmativas, esclarece: “As ações afirmativas são políticas de inclusão social, praticadas por entidades públicas ou privadas, com o objetivo de promover a igualdade material pelo acesso a bens fundamentais de grupos humanos cuja história seja marcada pela discriminação de raça, de etnia, de origem nacional, de gênero, ou até mesmo em razão de deficiências físicas ou mentais. Calcadas no imperativo de justiça distributiva, as ações afirmativas pretendem o compartilhamento de reais oportunidades entre todos os membros da sociedade”. In Ponderação e proporcionalidade no Estado Constitucional. DUARTE, David, SARLET: Ingo W. e BRANDÃO, Paulo de Tarso (orgs.). Rio de Janeiro: Lumen Juris/Direito, 2013, p. 88. 16 SANTOS, Boaventura de Sousa. In Pela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2001, p. 277-278. 17 Ibidem, nr. 17, p. 177. 18 Lei no 12.726, de 16/10/2012 – Acrescenta parágrafo único ao art. 95 da Lei no 9.099 de 26 de setembro de 1995, para dispor sobre o Juizado Especial Itinerante. 19 Adaptação de trecho do texto “Descuido e descaso. A insustentável incoerência do ser”, de GAULIA, Luiz Antônio. In Cuidado e sustentabilidade. PEREIRA, Tânia da Silva (org.). São Paulo: Atlas, 2014, p. 232.

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E m foco, Carlos Alberto Luppi

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ma tarefa gigantesca foi assumida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB): a de acompanhar de perto em todos os estados o sistema carcerário no Brasil, à beira de um colapso, tão grandes e continuados têm sido os casos de violação de direitos humanos relatados nos últimos anos. Diante dessa situação, e a partir das denúncias que a própria entidade fez à Organização dos Estados Americanos (OEA), à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Human Rights Watch (HRW), em 2013, sobre os assassinatos diários de presos e violações de seus direitos nos presídios do Maranhão e de Porto Alegre – com mais de oitenta casos, inclusive decapitações de detentos, que causaram indignação nacional e inter­ nacional –, a OAB anunciou a criação, em caráter de urgência, da Coordenação de Acompanhamento do Sistema Carcerário. Antes mesmo da posse oficial dos seus membros, a Coordenação já tinha iniciado seus trabalhos, instando todas as unidades da OAB a analisar a situação prisional em cada Estado e Município brasileiros em busca de violações de direitos e ocorrência de crimes ou abusos cometidos entre os detentos, com a orientação de ajuizar ações civis públicas cobrando dos governos melhorias urgentes e continuadas nas condições dos presídios e das cadeias nacionais, como uma espécie de mutirão nacional. A Coordenação é presidida pelo advogado Adilson Geraldo Rocha, de Minas Gerais, tendo como vice-pre48

Foto: Sergio Lima/Folhapress

OAB assume uma das maiores tarefas humanas do país

sidente Marcio Vitor Meyer de Albuquerque, do Ceará, e Umberto Luiz Borges D’Urso, de São Paulo, como secretário nacional. Dela também fazem parte 24 advogados de diversos estados brasileiros. Eles estarão incumbidos de acionar todas as instâncias da OAB nos estados e cidades. Uma das medidas urgentes da Coordenação é requerer a todos os juízes dos estados que presos provisórios, à espera de sentenças – e são 40 % da população carcerária do país –, sejam imediatamente separados dos detentos já condenados. Solicitará também que os presos sejam separados de acordo com a gravidade dos crimes, em medida urgente e prática, para evitar assim a promiscuidade, a exploração entre presos e também a ocorrência de crimes de assassinato e de outras espécies atentatórias à dignidade humana. O jurista Miguel Reale foi convidado para dar a partida na ação nacional da OAB e proferiu palestra na solenidade de posse oficial dos membros da Coordenação, em Brasília, convocando a participação de todos. Foram convidados ainda o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo e o diretor geral do Departamento do Sistema Penitenciário Nacional Antônio Eduardo Rossini. Todos os presidentes das Seccionais da OAB foram chamados a Brasília para participar desse esforço nacional da entidade, visando tomar medidas urgentes e que possam evitar, a curto e médio prazos, a explosão do sistema carcerário, com reflexos danosos para toda a sociedade brasileira. “O Estado é diretamente responsável pela proteção

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Foto: Depositphotos/3dmentat

da vida das pessoas submetidas à sua custódia”, declara o presidente nacional da OAB, Marcus Vinícius Furtado Coêlho, ao reafirmar o compromisso da entidade em lutar pelos direitos humanos e pela dignidade das pessoas, de forma incansável e permanente. Os números que a OAB tem nas mãos para dar prosseguimento a este gigantesco trabalho de Acompanha­mento do Sistema Carcerário são impressio­nantes e não passam ao largo das observações internacionais da Human Rights Watch que acaba, em janeiro, de denunciar amplamente o país pela crônica violação de direitos humanos e crimes em sua área de segurança e em seu sistema prisional. O Relatório da entidade global estranha que o país que “está entra as democracias mais influentes do mundo nos assuntos regionais e globais, no plano interno se encontre entre os piores na violação de direitos humanos. De fato, o trabalho da OAB em acompanhar o sistema carcerário do país, denunciar as violações e tentar diminuir índices tão desalentadores é uma tarefa de “Hércules”. O país, com 550 mil detentos, tem a quarta maior população carcerária do mundo e à frente dele estão os EUA, com 2,2 milhões; a China com 1,6 milhão; e a Rússia, com 680 mil presos. Em 2013, o registro oficial computou 218 assassinatos nos 30 maiores presídios do país, mas estima-se que o número de crimes nas cadeias e presídios cheguem, anualmente, a mais de mil. Em muitos estados, o registro oficial assinala apenas as chamadas “subnotificações” em que os crimes são colocados sob a explicação de “em

averiguação” e “a esclarecer”, como acontece, por exemplo, em Mato Grosso do Sul, com 14 casos assim qualificados. A extensão disso pode ser avaliada quando se sabe que 10% da população carcerária está sob custódia policial nos xadrezes e nas cadeias das delegacias – quase 60 mil presos. A situação é mais deplorável ainda quando se sabe que 94 % dos detentos do país estão enquadrados em apenas 9 crimes básicos. Os crimes de tráfico de drogas, onde se enquadram 125 mil detentos, e os crimes contra o patrimônio (furto, roubo e estelionato), pelos quais outros 240 mil detentos respondem, constituem 69% dos casos. E ainda: 229 mil detentos não concluíram o ensino fundamental, ou seja, 41,5 % da população carcerária do país é semianalfabeta, não sabe ler nem escrever direito ou, se sabe ler, não entende logicamente as coisas. E mais: cerca de 110 mil presos já deveriam estar soltos por terem cumprido suas penas, mas eles não sabem disso e a lentidão da justiça, de maneira geral, impede sua soltura. A Ordem dos Advogados do Brasil historicamente prestou relevantes serviços ao país, ao estabelecimento do estado de direito, à democracia. Esteve à frente de lutas sociais e pelos direitos humanos em dezenas de situações no país. Sempre se mostrou atuante, não medindo esforços em benefício da população e na melhoria das leis e, em boa hora, se junta aos esforços do CNJ para investigar e acompanhar de perto a situação carcerária do país, com ordens expressas de promover ações emergenciais para evitar o caos, já bem perto de todos nós.

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Advogado é doutor Eduardo Mayr

outor por direito e por tradição, acrescento. O primeiro registro da palavra “doutor” estaria em um Cânon do ano 390 d.C., por Marcel Ancyran, editado pelo concílio de Saragosso. É o que lembra o jurista mineiro Olavo Luís de Mesquita Diniz, o qual acrescenta que, pelo mesmo, ficava proibido declinar-se dessa qualidade – doctorum – sem permissão (Code de L’Humanité, ed. 1778..., Verdon). O que é certo, contudo, é que o título Doctores Sapientiae só veio a ser utilizado em Roma e outorgado aos filósofos e àqueles que promoviam conferências públicas sobre temas filosóficos, notadamente jurídicos. Tem-se notícia de que tais títulos honoríficos foram concedidos a filósofos como Santo Tomás de Aquino, Duns Scott, Rogerio Bacin e São Boaventura, cognominados ainda de Angélico, Sutil, Maravilhoso e Seráfico, respectivamente. As universidades foram avaras na concessão desse título. A de Bolonha o outorgou a um advogado que passou a ostentar o título Doctor Legum, ao lado dos Doctores ex Ioix, somente dado àqueles versados na ciência do Direito. Em suas origens, esta honraria era atribuída a advogados e juristas, e não a qualquer outra profissão. Há notícias de protestos feitos em relação aos médicos, que indevidamente se apropriaram do título, reservado aos homens que cultivavam as ciências do espírito. O livro dos livros, a Bíblia, refere-se aos “Doutores da Lei”, referindose aos jurisconsultos que interpretavam as leis mosaicas, designando como Phisicum os médicos e curandeiros. O bacharel em Direito que efetivamente milita e exerce a profissão de advogado faz jus a esse título. Em seu Dicionário de tecnologia jurídica, Pedro Nunes explicita: “Bacharel em Direito – primeiro grau acadêmico, conferido a quem se forma numa faculdade de direito. O portador deste título, que exerce o ofício de advogado, goza do privilégio de doutor” (ord. L 11 Tit. 66,42; Pereira 50

Foto: Arquivo pessoal

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Desembargador (aposentado) do TJERJ Advogado

e Sousa, Crim. 75 e not. 188; Trindade, pág. 157, nota 143, in fine e pág. 529; Aux. Jur. 355, Ass 93). Há notícias de um alvará régio editado por D. Maria Pia, de Portugal, pelo qual os bacharéis em Direito passaram a ter o direito ao tratamento de doutores. Como esse alvará – lei, na época – nunca chegou a ser revogado, perdura o seu efeito com a outorga do título de “doutor” a todos os advogados militantes. Um rábula de notável saber jurídico foi agraciado com esse título por meio de um alvará régio especial: Antônio Pereira Rebouças, que não era formado em nenhuma faculdade de Direito. Essa lei remanesce em vigor, como tantas outras que nunca foram revogadas, como o nosso Código Comercial, que é de 1850. Por tradição e por direito, são os advogados “doutores”.

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GONÇALVES COELHO ADVOCACIA

SÃO PAULO

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Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014


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