Adriano Sandri
SOCIALISMO E DEMOCRACIA
Adriano Sandri
SOCIALISMO E DEMOCRACIA
editora
s達o paulo - 2010
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© Editora Lexia Ltda, 2010. São Paulo, SP CNPJ 11.605.752/0001-00 www.editoralexia.com
Editores-responsáveis Fabio Aguiar Alexandra Aguiar Projeto gráfico Fabio Aguiar Revisão Bianca Briones Diagramação Equipe Lexia
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP S219s Sandri, Adriano Socialismo e Democracia / Adriano Sandri. -- São Paulo: Lexia, 2010. 102 p. ISBN 978-85-63557-80-3 Inclui Bibliografia 1. Socialismo – Democracia. I Título
CDD 335
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SUMÁRIO
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APRESENTAÇÃO PARTE I SOBRE SOCIALISMO
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PARTE II SOBRE DEMOCRACIA
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PARTE III PARTIDO
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BIBLIOGRAFIA
APRESENTAÇÃO
“Creio que o pensamento, enquanto tal, nasce da experiência dos acontecimentos de nossa vida e deve permanecer a eles ligado como se fossem os únicos pontos de referência que o pensar pudesse ter”. Hannah Arendt Between Past and Future1
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Lefort,C. Pensando o Político, Paz e Terra, 1991, P. 65: ‘Nenhum escritor designou, de maneira tão rigorosa, o laço entre o pensar e o acontecimento como H. Arendt. Ninguém desvendou, tão bem como ela, em meio ao desconhecido, ao inesperado, ao que faz irrupção em nossas crenças, no universo que partilhamos com nossos próximos, o lugar próprio em que nasce o pensar, a força do engendramento do pensar. Enfrentar o desconhecido, atitude peculiar a H. Arendt, adquire pleno sentido quando rememora o que foi a tibieza dos intelectuais alemães em 1933 – intelectuais que, por conta de um “não pensar”, montaram as construções mais artificiosas, mais falaciosas, que a levaram à decisão, segundo ela mesma disse, de voltar as costas para sempre aos intelectuais, com os quais sabia não ter nada para aprender”. 7
Socialismo, democracia, partido.
Socialismo, democracia, partido: são três temas que, em minha vida, representam experiências, dimensões e espaços criativos. Não são os únicos, pois vivencio outros, como o sindicalismo, o familiar, o religioso. Nesse momento escrevo sobre os três temas porque fazem parte intensa do meu ser educador, espaço que compartilho com centenas de pessoas, e representam sonhos que sonhamos juntos. Escrevo para compartilhar pensamentos marcados por experiências vividas, tendo consciência que são referências que moldam meu pensar e agir. Acho importante apontar, sucintamente, algumas delas, relacionadas com os temas dessas publicações, que podem facilitar o diálogo com quem se interessar em ler minhas reflexões.
Histórico de aprendizado
Humberto Maturana, biólogo e profundo filósofo da linguagem e da educação, coloca uma interessante reflexão sobre o discurso. Afirma, e eu assim entendo suas afirmações, que o ser humano não é um ser lógico, e sim bio-lógico, ou seja, de uma lógica que emana da vida, “bios”. A lógica de nosso pensamento não é uma racionalidade pura, e sim uma lógica que brota da experiência de vida. Experiência de vida que o ser humano constrói e recria na convivência social. O que pensamos, mais do que abstração, é adequação conceitual ao nosso modo concreto de viver, à nossa experiência de vida, ao nosso aprender social e às nossas acomodações ao realismo sócio-político, conformando nossos ideais, projetos, interesses. Consequentemente, nosso discurso é a verbalização de tais ideais, projetos, interesses. Ciente disso, o que vou escrever não é nem pode ser a verdade, e sim uma interpretação refletida de experiências acumuladas ao longo de sessenta e oito anos de existência. Nada mais. Mas também, tudo isso. 8
Lembro de meus pais, na região da Valpolicella, província de Verona – Itália -, como meeiros que tinham muita dificuldade, no imediato pós segunda guerra mundial, de sustentar seus então quatro filhos. Umas das cenas mais marcantes dessa condição foi ver meu pai indignado, correr atrás do fazendeiro que estava reclamando da qualidade do trabalho dele na seleção da uva estragada pela chuva de pedra e jogar o martelo nele, sem atingi-lo. Devia ter cinco ou seis anos. Aos sete anos nos mudamos para a pequena propriedade agrícola de meu pai. Éramos uma família pobre, que vivia da pequena agricultura familiar. Da infância e adolescência lembro muitas coisas boas, sobretudo a vida familiar, mas lembro as discriminações por ser pobre e filho de agricultores. Na escola pública nós, meninos da roça, éramos discriminados pelos meninos que moravam na pequena cidade. Isso, sem dúvida, marcou minha experiência de classe. Estudei e me formei, em 1967, no seminário da diocese de Verona. Antes de me formar, numa audiência com o bispo pedi para exercer meu sacerdócio na América do Sul e, antes, fazer uma experiência como padre operário. Ele aceitou o primeiro pedido, mas ‘desaconselhou’ o segundo. Como padre recémformado, fui trabalhar numa paróquia nova, na periferia de Verona, onde moravam famílias da pequena classe média urbana. Foi então que comecei a perceber aspectos da minha identidade, quais a sensibilidade de classe e a ingenuidade política, característica essa da formação eclesiástica. 1968/1969 são os anos famosos das manifestações de jovens estudantes e dos sindicatos na Europa, e do endurecimento do regime militar no Brasil frente à retomada do movimento estudantil e sindical. Filho da época, tendo a responsabilidade das pastorais das crianças, dos adolescentes e dos jovens, editei umas dezenas de boletins quinzenais, que distribuía aos jovens da paróquia, com análise da situação sócio/política italiana, da guerra no Vietnã, etc. Provocaram muitos debates, discussões,
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simpatias. Sem perceber, provocou a reação dos cristãos ‘de bem’, que obtiveram do bispo meu afastamento da paróquia, só nove meses depois de ter iniciado meu primeiro trabalho. Foi minha primeira demissão do ‘emprego’, minha primeira experiência política. Em 1969 cheguei ao Brasil e fui trabalhar, numa equipe de italianos, em Teresina – PI -, na periferia. O bispo era liberal e apoiava nossa ação social. Com a mudança do bispo, chegou um da ala conservadora. Eu trabalhava bem ligado com a equipe de Dom Helder Câmara, de Recife. O novo bispo não via de bons olhos meu trabalho, discutia comigo porque fazia um trabalho ‘ideológico’, manipulava os jovens, etc., etc. Em 1975 terminou meu contrato com a diocese de Teresina. Voltei para a Itália, pois meu pai estava falecendo. O bispo de Teresina então decidiu me transferir para outra paróquia. Frente à segunda ‘transferência’ compreendi que estava trabalhando num campo sócio/político que não aceitava minha visão de vida e que, como padre, não representava as posições hegemônicas da hierarquia da igreja católica. Decidi voltar para o Brasil para trabalhar na FIAT, que estava se instalando em Betim, MG. Entrei em contato com dirigentes do sindicato dos metalúrgicos de Turim, propondo um intercâmbio. Gostaram da proposta. Por estarmos numa situação repressiva, não comuniquei minha proposta para meus familiares e para nenhuma autoridade da Igreja. Frei Beto, que morava em Vitória, ES, me ajudou a fazer os primeiros contatos em Belo Horizonte com operários organizados na Ação Católica Operária, ACO, que me ajudaram a me inserir na nova realidade. No primeiro semestre de 1976 entrei na FMB, a siderúrgica da FIAT que construía as peças e motores de carros não só da FIAT mundial, mas também de outras multinacionais. Trabalhava de motorista (tinha carteira de habilitação, única habilidade técnica para um trabalho profissional). Para poder frequentar um curso de formação de eletricista de manutenção, aceitei trabalhar
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por quatro meses como ajudante de escritório. Enfim, passei a trabalhar como eletricista de manutenção. Estava aprendendo a viver a vida de operário. Não foi fácil, mas foi bonito. Tanto a mudança da Itália para o Brasil em 1969 como a passagem da vida na estrutura da igreja para a vida de operário transformaram minha personalidade, me ajudando a perceber valores e limites culturais adquiridos na cultura italiana e na cultura eclesial. Em 23 de outubro de 1978, organizados na oposição sindical clandestina dos metalúrgicos de Betim, deflagramos, na nova fase sindical, a primeira greve liderada por uma oposição sindical no Brasil. Foi uma experiência indelével na minha vida. Começamos em maio com uma reunião de militantes da FIAT, FMB e KRUPP, no barraco da favela onde morava, discutindo o primeiro boletim clandestino que tinha preparado, passando por uma série de atividades clandestinas, atuando no sindicato pelego, até conseguirmos a adesão maciça dos metalúrgicos, animados pelas conquistas dos metalúrgicos do ABC paulista. Foi um fato marcante. Voltei para a Itália logo depois da greve, na ocasião em que faleceu minha mãe. Aproveitei para estabelecer os contatos com a FLM, a federação unitária dos metalúrgicos da Itália, que, a partir de então, construiu uma relação formal e eficiente com o ‘novo sindicalismo’ que estava se estruturando aqui no Brasil, naquele final dos anos setenta. Em 1979 atuei na segunda greve da categoria dos metalúrgicos de Betim junto com os colegas da oposição, e tivemos a prisão preventiva decretada, conforme era costume na época em Minas Gerais. Mas não chegamos a ser presos. Durante a greve tive que assumir explicitamente a relação com os sindicatos italianos ao acompanhar e traduzir as intervenções do representante da FLM da Itália nas reuniões na Delegacia do Trabalho e nas assembleias da categoria. Depois da greve a FIAT pediu minha extradição do Brasil. Evitei a extradição adquirindo a na-
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cionalidade brasileira. Mas fui demitido. Era a terceira demissão em minha vida profissional. A etapa seguinte foi a luta para assumir a direção do sindicato dos metalúrgicos de Betim. Para conseguir isso, organizei, com os companheiros metalúrgicos de Betim, quase todos demitidos após a greve, o primeiro núcleo da Pastoral Operária de Minas Gerais, evitando assim a perseguição violenta do regime militar. Desta forma organizamos a chapa de oposição sindical dos metalúrgicos de Betim, uma história a parte. Tivemos que enfrentar uma divisão na esquerda: a oposição sindical contra uma chapa liderada pelo MR8 aliado aos pelegos. Foi minha primeira experiência direta com a complexa e problemática política das esquerdas. Uma vez vencidas essas eleições sindicais, vivenciei o personalismo, presidencialismo e despreparo dos novos dirigentes sindicais e a grande capacidade das esquerdas de se dividirem e colocar sempre em primeira linha as lutas internas. Na década de 1980 continuei na Pastoral Operária, coordenador no estado de Minas Gerais e membro da equipe nacional de formação. Nessas responsabilidades, durante uma década, viajei muitas vezes por todo o Brasil, para seminários de formação sindical. Um dos resultados foi a publicação do livro “Os Trabalhadores e o Movimento Sindical no Brasil”, texto referencial de formação sindical. Saí da Pastoral Operária quando ela se dividiu para apoiar as duas maiores correntes sindicais, a Articulação e a CUT pela Base. Discordava do atrelamento da PO ao movimento sindical. Sempre fui contrário a todo tipo de instrumentalização. Por isso nunca participei de correntes, facções, etc. Na mesma época fui fundador, junto com o diretor da escola de formação da CISL (Confederação Italiana do Sindicato dos Trabalhadores) de Firenze, Pippo Morelli, da Escola Sindical Sete de Outubro, em Belo Horizonte. Antes de aceitar de co-
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laborar para implementar esse projeto de intercâmbio internacional, fui visitar escolas sindicais da Itália, Alemanha e Bélgica. Vi uma problemática complicada, pois as escolas tinham que se submeter às lideranças sindicais, que não as aceitavam como espaços criativos e críticos, mas como espaços de reprodução da política das direções. Ajudei a construir essa escola, mas não era bem recebido, pois minha visão de educação é que, em qualquer espaço institucional ela seja vivenciada, nunca deve ser espaço de reprodução das formas de poder de dirigentes, e sim espaço de elaboração participativa de propostas e vivências políticas. Indesejado, me afastei. Trabalhei em várias ONGs e entidades de formação sindical, inclusive na CUT de Minas Gerais, onde ajudei a planejar e organizar a formação sindical no estado. Trabalhei como assessor de formação sindical no SINDIELETRO-MG, e fui demitido numa sexta-feira à noite, depois que todos os funcionários tinham saído, para não provocar reações. Aprendi, mais uma vez, que as instituições, sejam elas eclesiais ou sindicais, atrás do discurso demagógico, escondem nichos de poder que não gostam de presenças críticas. Na década de 1990 entrei em outro espaço, o acadêmico. Decidi sair do PT, o Partido dos Trabalhadores, quando percebi nitidamente que estava bem fortalecido o grupo que não se pautava mais pela ética na política, mas pelo ‘realismo’ na arrancada à conquista do ‘poder’. O escândalo do ‘mensalão’, uma década mais tarde, em nada me surpreendeu. Entrei no PSB dando continuidade ao que considero ter sido minha verdadeira profissão durante toda a vida, na igreja, no sindicalismo, na universidade, no partido: ser educador, aprender a pensar coletivamente o que se vivencia. Em Minas Gerais, primeiro, e em Brasília, mais tarde, quando me mudei em 1996, realizei minhas primeiras experiências de formação política no espaço partidário.
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Fiz o mestrado em Ciências Políticas na UFMG, concluindo com a dissertação “O Teatro da Democracia’’, onde aprofundei a questão da democracia como cultura e não como processo eleitoral, conforme a definição do liberal/capitalismo que era apresentada naquele curso. Foi no início do mestrado que decidi me engajar na vida partidária. Deixei o PT, Partido dos Trabalhadores, e me filiei ao PSB, Partido Socialista Brasileiro. Minha filiação no PT se deu antes mesmo de seu registro oficial e para que ele pudesse ser reconhecido pela então ditadura militar. Filiei-me para dar força ao movimento que, congregando um conjunto de forças populares e políticas que combatiam a ditadura, defendia o direito à liberdade política e partidária. Mas nunca me engajei no PT, por querer preservar minha função de educador dentro da CUT, central muito disputada entre partidos e correntes da esquerda. Defendo o sistema de incompatibilidades, em várias instâncias políticas. Com a escolha da filiação partidária quis iniciar uma nova experiência, ser educador dentro do espaço partidário. Falarei sobre minha experiência de educador no PSB na terceira parte do livro. Em seguida fiz o doutorado na área da História das Relações Internacionais, na Universidade de Brasília, analisando as relações sindicais entre o sindicalismo italiano e brasileiro a partir do final da década de 1960, com foco nas relações culturais que as fundamentavam. Foi um trabalho inovador tanto pelo campo de pesquisa como pelo foco cultural que o caracterizou. Em 1996 fui trabalhar como docente universitário na Universidade Católica de Brasília, UCB, de onde fui demitido nove anos e meio depois junto com os outros sete colegas que assumiram a direção da ADUCB, Seção Sindical do ANDES/SN, o sindicato nacional dos docentes universitários. Pela segunda vez a UCB demite todos os integrantes da associação dos docentes. Torna-se, assim, mais evidente umas características das instituições confes-
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sionais em geral, o caráter antidemocrático e fundamentalista do sistema da Educação Superior Confessional no Brasil. Dois anos depois dessas demissões, a Justiça do Trabalho reconheceu o caráter discriminatório de nossa demissão; a OIT, Organização Internacional do Trabalho, pediu que o Estado, averiguando o fato, reintegre os demitidos; a Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal condenou a perseguição sindical da universidade, e agora minha luta no sindicalismo é para que, no Brasil, seja reconhecido o direito da organização sindical em todas as empresas. Em 2006 trabalhei como consultor na Educação em Direitos Humanos no Ministério da Educação, MEC, que me proporcionou um aprendizado teórico e político da questão dos Direitos Humanos, como também a vivência de trabalho no setor público, que ainda não tinha experimentado diretamente, com sua não simples problemática. Por fim, a partir do início de 2007, estou trabalhando como assessor de formação política na Fundação João Mangabeira, a fundação educacional do Partido Socialista Brasileiro. Enriquecido pelas variadas experiências de trabalho, na agricultura com meus pais, nos espaços eclesiástico, sindical, das multinacionais, de várias ONGs, universitário, do serviço público e do partido, reafirmo o que coloquei no início: escrevo no espaço de uma ‘bio-lógica’ fruto dessa caminhada, que a delimita e caracteriza. Estou convencido de que, no discurso, não existem verdades absolutas, mas interpretações de realidades que, se de um lado nada mais são que pontos de vista, do outro são visão de um ponto, ou seja, re-criações que nos permitem, na comunicação, oferecer/receber entendimentos diferenciados e úteis confrontos. Ao prestarmos atenção ao discurso do outro, que é a capacidade de entendimento individual, processado pelas experiências e pela inteligência individual, cada um de nós
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se enriquece e entra no espaço da construção da história, espaço típico da sociabilidade humana. Comecei a escrever no início de 2009 as ideias que fui adquirindo nessa trajetória. O objetivo não é discutir no espaço e em nível acadêmico, mas oferecer às pessoas interessadas na ação política, reflexões para debater e pensar. São reflexões de caráter formativo, sem maiores pretensões. São três os temas que estou refletindo: na ordem, socialismo, democracia e partido. Em outra publicação pretendo publicar minhas reflexões sobre sindicalismo. A ordem parte daquilo que no momento estou vivenciando, a construção do socialismo, dentro do qual estão presentes as experiências anteriores. Lidas nessa ordem, será mais fácil entender o que tento expor. Outro objetivo é disponibilizar as reflexões sobre democracia que tive a oportunidade de realizar no mestrado e doutorado com um financiamento parcial da CAPES, portanto público.
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PARTE I SOBRE SOCIALISMO
Premissa Vejo o socialismo como uma nova era civilizatória que, nascida do liberal/capitalismo, está preste a sair de sua fase juvenil. O socialismo já tem história. Boaventura assim o define de forma bem sintética: “Esquerda é o conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos cento e cinquenta anos, resistiram à expansão do capitalismo e ao tipo de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que ele gera, e que assim procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efetivo exercício da liberdade. A essa sociedade alternativa foi dado o nome genérico de socialismo2. 2
Boaventura, de Souza Santos. Porque Cuba se transformou num problema difícil para a Esquerda? Em: Le Monde Diplomatique – Brasil. Encarte CLACSO. N. 22 - Maio 2009. 17
Excepcional também foi a afirmação do João Mangabeira, primeiro Presidente do Partido Socialista Brasileiro: “Socialismo sem liberdade, Socialismo não é. Liberdade sem socialismo, liberdade não pode ser”.
Nos cento e cinquenta anos citados, dentro da civilização sob a hegemonia do liberal/capitalismo, o movimento socialista, entre coerências e incoerências, acertos e erros, disputou espaços no mundo todo, pois a hegemonia de um sistema não significa a não existência de experiências diferentes ou contrapostas. Filho do liberalismo que deu alma ao sistema econômico capitalista, o socialismo foi gerado na fase em que o capitalismo, ao alcançar a hegemonia no mundo manifestava suas limitações, incongruências e perversidades. Nasceu como perspectiva de um novo patamar de civilização que a humanidade deve construir se quiser sobreviver, ela e o planeta em que vive. O socialismo já é parte da história da humanidade, já contribuiu para a humanização dessa história na qual o liberal/capitalismo foi hegemônico, conseguindo afirmar e conquistar os valores dos direitos sociais, legislações trabalhistas e previdenciárias, e toda a legislação internacional sobre Direitos Humanos. São conquistas parciais, ainda não praticadas na sua plenitude e na sua universalidade, mas são espaços que o liberal/capitalismo admitiu graça às lutas e ao sacrifício humano de não poucas pessoas no mundo inteiro. Na sua fase juvenil o socialismo foi um conjunto histórico e teórico de experiências com força para fazer revoluções armadas, mas sem maturidade para convencer que pode ser o condutor hegemônico da nova era civilizatória. Por que considero, historicamente, o socialismo uma força jovem, com o desafio de se tornar madura e capaz de assumir a direção político-cultural da humanidade?
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Ao considerá-lo ‘força jovem’ utilizo um paradigma biográfico. Biografia é sempre uma interpretação subjetiva. A biografia da humanidade, do ser social, é ainda mais subjetiva. Pensar o socialismo de forma biográfica é, quando pouco, desafiador. Mas é o que me apaixona como educador, pois educar é a atividade do perceber, entender e transformar nosso cotidiano, coletivamente. Pensar e debater o socialismo do ponto de vista biográfico me situa num espaço de renovação constante e profunda, e permite entender utopias e limitações.
1. Uma leitura do socialismo na história O foco estará no socialismo que nasceu no espaço do capitalismo europeu. Acompanhando o expansionismo colonizador do mesmo, esse socialismo penetrou em todos os continentes: asiático, americano, africano. Mas sua origem vem do liberal/capitalismo, que, por sua vez, nasceu e cresceu dentro do sistema cristão/feudal, que por sua vez é filho do sistema imperial grego/romano. Minha compreensão biográfica do socialismo é nessa linha, mesmo reconhecendo que, com características peculiares, o socialismo é uma dimensão ética que está presente em todas as civilizações, em todas as experiências políticas da humanidade. O objetivo dessa interpretação genealógica – socialismo como bisneto da civilização greco-romana – é tentar situar o movimento socialista perante os desafios atuais, depois de ter sido proclamado como morto. Contestador e contestado, ele está vivo, mas ainda não alcançou aquela maturidade capaz de ser alternativo ao sistema liberal/capitalista. Essa interpretação pretende dar uma contribuição peculiar no debate sobre socialismo, ciente que, se conseguir fazer pensar, já compensa o esforço.
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