Labirinto Mínimo, de Fernanda Tatagiba

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folha de guarda

LABIRINTO MÍNIMO FERNANDA TATAGIBA



folha de rosto



Ă€ Dalva Broedel e Fernando Tatagiba.



O fim da nossa jornada será voltar ao começo e perceber o início pela primeira vez. (T. S. Eliot, tradução livre)



o que hรก por trรกs do seu cheiro? perfuro o perfume, afasto a nuca desgrudo o cabelo depois do cheiro vem o comeรงo

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se eu encostasse uma parte de mim em uma parte que é sua e com isso percebesse que não foi engano que não foi só o ombro se depois da desculpa você ficasse mais um pouco - em cada tropeço uma parte do corpo seríamos os primeiros a chegar

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qual corpo está por cima do outro em cima da cama quer dizer muito muito pouco para o colchão mas sempre deixa em dúvida a gravidade

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a distância que separa os corpos no amor mais íntimo no abraço contido ou num soco esse espaço por onde passaria um boi no vácuo da fissura entre peles cabe o que transborda mora o que não acaba

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sombra um tombo contra a luz poรงo fora do fundo sombra a danรงa do sol dorme no alto dentro das montanhas sem som nรฃo sobra, nem some a sombra nunca estรก sรณ

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nĂŁo hĂĄ nada de novo no fogo - a mesma chama que abandona a cinza percorre o sol brasa escondida no olho das formas do antigo sopro subindo por todos os poros povos entre pontes o ventre, a lenha o som da fome seguindo a sombra do tempo

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o som que sobra barulho o som que dobra música o som que solta dança o som que volta voa o som que soma soa o som que some sombra o som que sou só

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uma orelha nunca ouve outra nunca dormem juntas só uma gosta de Beethoven só uma sabe que são duas uma para cada lado da rua a cabeça separa o cabelo esconde no silêncio fazem as pazes fecham os olhos

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doem todas as juntas em tudo que separa uma coisa da outra estala oco cada dobra fundo como se nem osso fosse e se equilibra na ponta de um pelo fino o que falta

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um homem apaixonado com seu olhar estúpido de fragilidade meiguice e medo pode ser morto a qualquer momento rimos de sua miséria uma criança um homem apaixonado não invade castelos nem vira sapo tem um destino desconhecido e não revelado nos contos de fada ridículo e belo

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por um pedaço de carne embaixo da unha um pouco mais fundo transeunte veia entregue a outra minúscula até outro músculo (grande até para ter nome e ser desenhado por crianças) forte para viver até o último momento carne entre ossos no contrafluxo venho com o sangue esse som por onde me ouviram antes de mim músculo não pesa tanto não leva mais do que carregamos

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pintaram de cal o amor na pedra pintaram a pedra de novo, por cima na mesma pedra, um outro amor o mar tira a tinta fraca e o amor verdadeiro a pedra vira areia a onda leva a ĂĄgua seca por isso, pintaram de cal o amor na pedra

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veio do umbigo um vento forte parecia que eu ia murchar voltar pra antes coloquei o dedo para segurar o que ainda tinha mas a mรฃo comeรงou a entrar o braรงo indo sem fim ficou sรณ o buraco que eu vim

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nasceu pode ser visto de longe um homem ou um voo e ainda mais distante é possível sentir o que pulsa e o que antes - mesmo muito de perto não existia

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tudo tão claro que é perigoso olhar confundir os olhos na luz luneta do verniz aquário claro como o dia digerindo o azul todos os raios na imagem (mão por cima do olho) depois da distância agora estrela

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ser simples como antes de ser

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nunca foi descoberto ninguém lembrou ou se interessou não foi pensado revisitado, tropeçado nunca esteve fora da moda nenhuma imagem e som do branco nulo que não é não pode ser esquecido sentido, vendido não tem memória e não se importa o anti-sopro de vida que não é infinita nem finda

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dias enfartados fartos de fatos com mais fome que ontem listas de extermĂ­nio misturadas com as do supermercado ninguĂŠm nota sumiram antes de serem mortos por todos ao mesmo tempo mas acordaram no outro dia como se nem isso mais importasse

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tanta gente com jeito de gente gesto de gente cheiro de gente muitos e ainda outros com gente no corpo mais gente que olho parando a rua descendo a escada grudada secando Ă sombra tirando a roupa para caber mais gente por cima pendurada encolhida nas sobras dos buracos gente que sĂł

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Manequins

ninguém lembra de dar cor ao olho do corpo de plástico mudo e magro sonham dançar a valsa fria com os bonecos da loja ao lado dormem em pé como cavalos parasitas sem presa sobras de nossa pressa possuem a agonia das pedras sem mar a mesma cor de pele de pêssego - não envelhecem depois da bomba resistirão ao medo de barata | 51 |



os fios penduram a cidade enroscam as ruas esticam meus passos fios enfeitados de pipa viram a esquina com seus tênis pendurados verdes dão asas às plantas rasteiras compridos não amarram as nuvens fios no meio-fio fios sem fim riscando o céu de preto fios com outros fios com frio fazem sombra elétrica fios aflitos procuram se esconder não há lugar seguro para o escuro

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antes da foto, uma paralisia - cal sobre o branco sorrisos braços, ombros, ossos e músculos no parapeito do tempo alinhados - não conta o cheiro, voz música quem está atrás da árvore (o atraso do fotógrafo) um pé inchado todos empalhados na festa vestidos de sábado seguros ainda de estarem vivos como agora para sempre salvos no trampolim da luz

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RelĂłgio

junto a ele eu perdia os anos mesmo quando deixei esquecido (quando criança em cima do muro) mesmo quando me devolveram (quando adulto dentro da casa) em todos os lugares insistente como um pedido de desculpas gastando as pilhas removendo os olhos cronometrando a fuga crava o silêncio

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Fernando Pessoa

na cadeira presa ao chão do último andar espremo meu corpo contra o terno preto que encaro o dia sou esses homens que saem do vazio viscoso e imaginário tomando meu café por mim vivo como alguém que vive tantos, sentado andando com um distinto desnível de tudo se não descobrirem esses que não sou terei eu sido o que fui?

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Drummond

virar estátua míope em Copacabana nunca foi meu sonho mas não correria dessas moças não poderia, nem quando vivo de madrugada quando os turistas dormem suas manhãs agitadas - junto com a brisa e o barulho dos poucos carros faço poemas é que o corpo é manso e a fala é baixa como antes mesmo assim alguns parecem adivinhar um sussurro saem com um sorrisinho tímido às vezes olham para trás

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Manoel de Barros

o homem de barba pronta continuava fazendo desenho de criança - o sol sorrindo com duas nuvens brancas se casou com a menina que conseguia fazer årvore hoje mora com a família na casa de cinco linhas

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pรกssaro parado estรกtua de vento

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as nuvens se dividiram para caber o cĂŠu

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as penas do peso das asas apenas venta

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o vento desce nas asas das flores e leva o pouso dos olhos da terra

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a pedra nasce maior que a areia liberta da montanha não ganhará tamanho não mexe não desvia o vento encostada no chão a pedra tem tempo de ser ela

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a montanha ponte invertida uma poça em forma de punho seus homens, seus animais sua fonte de água lisa permanecem só como o último ponto no alto do seu fim esse espinho por onde o sol se expande

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perto do mar do alto a montanha se despe a imagem na รกgua segura a roupa leve

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o cĂŠu salta de dentro da espuma que o sal sonha na linha do mar atrĂĄs do horizonte

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nos dias que o mar amanhece verde e a espuma retorna às nuvens o azul procura refúgio nos pássaros [mais secretos nas flores nunca vistas nas poças entre as pedras assim o céu descansa o infinito

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os seres, insetos, bichos barulho da noite carregam uma sombra Ă paisana um pĂł mĂĄgico e do alto da madrugada acendem as estrelas

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somos o que sobra entre a sombra e o sol

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Índice remissivo

9 11 13 15 19 21 23 25 27 29 31 33 35 39 41 43 45 47 49 51

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o que há por trás do seu cheiro? se eu encostasse uma parte de mim qual corpo está por cima do outro a distância que separa sombra não há nada de novo no fogo o som que sobra uma orelha doem todas as juntas um homem apaixonado por um pedaço de carne pintaram de cal o amor na pedra veio do umbigo um vento forte nasceu tudo tão claro que é perigoso olhar ser simples nunca foi descoberto dias enfartados tanta gente Manequins


53 57 59 61 63 65 67 69 71 75 77 79 81 83 87 89 91

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os fios penduram a cidade antes da foto, uma paralisia RelĂłgio Fernando Pessoa Drummond Manoel de Barros pĂĄssado parado as nuvens se dividiram as penas o vento desce a pedra nasce maior que a areia a montanha perto do mar o cĂŠu salta de dentro da espuma nos dias que o mar amanhece verde os seres, insetos, bichos somos o que sobra


Copyright © 2019, Fernanda Tatagiba Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a permissão expressa e por escrito da autora ou da editora.

Produção editorial, projeto gráfico, preparação, revisão, capa e editoração eletrônica MARÍLIA CARREIRO Ilustrações SIDNEY MACHADO

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (Bibliotecária responsável: Bruna Heller – CRB 10/2348) T216l Tatagiba, Fernanda. Labirinto mínimo / Fernanda Tatagiba ; com ilustrações de Sidney Machado.- Vitória: Pedregulho, 2019. 98 p. : il. ; 13x19cm. ISBN 978-85-67678-42-9 1. Literatura brasileira. 2. Poesias brasileiras. I. Machado, Sidney. II. Título.

CDU 869.0(81)-1

Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura em português 869.0; 2. Gênero literário: poesia -1; 3. Brasil (81)

Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1º de janeiro de 2009. Obra aprovada no Edital Secult/Funcultura nº 007/2018: Seleção e incentivo à produção e difusão de obras literárias inéditas de autores residentes no Espírito Santo.


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Fernanda Tatagiba nasceu em 1984, em Vitória (ES). Filha dos escritores Dalva Broedel e Fernando Tatagiba, começou a escrever poemas na adolescência. Lançou seu primeiro livro de poesia À Sombra das Este livro foi composto Coisas no outono de 2019, Turvas em 2011 pela editora Cousa na tipografia Minion ePro, 11/12, de Cultura e Arte. Leicorpo Vila Velha em Ciências Sociais, atua como sobre papel PólenFormada bold 90g/m². professora na rede Estadual de ensino do Espírito Santo. Os poemas do Labirinto Mínimo foram (quase) todos escritos de 2012 a 2016, período que morou na cidade do Rio de Janeiro.


EDITORAPEDREGULHO.COM.BR

ISBN 978-85-67678-42-9

Realizado com recurso do

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