MarĂlia Carreiro Fernandes
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EDITORA
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Marília Carreiro Fernandes
Apresentação da primeira edição Se me perguntarem quais são as maiores recordações que tenho de Pancas – cidade onde nasci e vivi até os meus 16 anos de idade –, direi, sem pestanejar, que são as estórias – e as histórias – que ouvi meus pais e meus avós contarem. Histórias e estórias que eu gostaria de ter vivido, ao menos uma parte delas, para sentir as sensações descritas por meus familiares. ‘Opala Negra’ faz esse papel de transportar o leitor até um lugar já conhecido por muitos, embora com casos curiosos que vão além de seu imaginário. Podem parecer ficção, mas nem sempre o são. E embora tudo pareça realidade, não se pode apostar piamente nessa afirmação. Esta obra é um achado e, apesar de preciosa, não foi encontrada pelos homens de garimpo nas terras ‘do Pancas’; ‘Opala’ é uma valorosa contribuição à história da Cidade Poesia. Um cultivo como nas plantações, com semeadura certa e colheita rica – de detalhes, diga-se. A autora dá um tiro certo – bem, em Pancas, terra cuja alcunha “tiro” não costuma permitir um duplo significado, faz-se necessária a troca do termo. Pois bem: a autora é certeira – melhor assim! – ao fazer bom uso das palavras e do terreno fértil que é a literatura. Permitese divagar entre a realidade, difícil de encarar; a meiarealidade, que é aquela em que não queremos acreditar; e a fantasia, que é a mais doce de se saborear. Um parêntese para me justificar por não ter me arriscado no termo “tiro”, acima: é que “matar, para um 7
pistoleiro, é como tomar um café na padaria. Você toma o seu café e continua o seu dia”, lembra bem a autora no capítulo três. Da narrativa à descrição minuciosa que faz o leitor entrar em cada caso e viver cada um dos personagens – dado o devido trato com as palavras, com sua cadência e suas gírias –, esta obra faculta a quem não viveu em Pancas descobrir um mundo particular no noroeste do estado, recheado de boas histórias, daquelas que nossos avós sempre fizeram questão de nos contar; e a quem viveu, o deleite de rememorar bons momentos, aqueles que merecem ser lembrados, escritos e eternizados em obras como esta.
Fernando Carreiro
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Carta de abertura da segunda edição Marília Carreiro Fernandes
Marília, Não há nada mais inspirador do que um mistério. A vida, carregada deles, torna-se mais instigante quando os segredos universais são colocados em voga, em infindáveis discussões. O imaginário popular alimenta-se disso todo o tempo e, consequentemente, a literatura ganha seu posto equalizador desses segredos. Você, Marília, sabe disso: entrega ao seu Opala negra o tom oculto e emblemático das contações antepassadas de sua terra, convidando o leitor não só à descoberta, mas às descobertas. Seu primeiro livro aparece como um experimento: uma linguagem narrativa acessível, enxertada de enigmas, através dos quais você demonstra avidez por repassar a todos essas inesquecíveis experiências que construíram um passado especialmente misterioso. As frases curtas e rápidas, a leitura dinâmica, expressam o ritmo de um povo arrebatado pela corrida garimpeira. Por outro lado, a jagunçagem é um ingrediente aos intensos ânimos da cidadezinha – que é (“o seu”) Pancas, assim compreendo. Impressiona-me a tradução dos sentimentos de vingança dessa gente rústica. Mesmo aqueles que não se assumem justiceiros, compartilham da mesma sede violenta que é “matar por justiça” e “gostar de ver sangue”. A morte é, por si só, misteriosa. Mas a urgência de matar, a morte encomendada, que transforma o sangue em moeda de troca, tudo isso é ainda mais excitante. 9
A história transmite bem essa angústia, que se mistura cada vez mais à ambição pela pedra ainda maior. Essa fixação é justamente a Opala negra – a pedra dos sonhos que não se realizam. A pedra, ironicamente colorida, mas, é claro, negra de mistério, constitui um detalhe envolvente. É utilizada como roldana da história e da vida do personagem principal. A certa altura, aliás, não sabemos dizer se estamos lendo somente ficção. Mas a literatura é mesmo isso: a saborosa dúvida, o eterno recontar, o viver diversamente, o morrer um pouco a cada parágrafo, é também um céu que não é de Deus, “e sim o céu dos homens”, é tudo isso. Tal qual a busca pela pedra preciosa, num esquadrinhar sem fim – porque o fim é somente quando a pedra brilha diante dos olhos –, a busca que trucida outrem é também a pesquisa pelos recantos – e seu fim é mesmo com o tombo. Mas, se me permite um parêntese, para mim, a obra também é uma pedra pela qual se busca. A diferença está justamente na busca: não há um fim por completo. Depois, a obra precisa ser lapidada, polida, envernizada. Como leitora, digo à autora que as descobertas só se fazem dessa maneira, escrevendo e lendo, reescrevendo e relendo. Então, escreva sempre e cada vez mais. Sarah Vervloet. 08 de setembro de 2013, Vila Velha - ES.
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Da ida até o centro A volta Tempo das vacas gordas Diálogos Uma parte da lista Novos tempos
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Esclarecimentos A volta para o centro A outra parte da lista Detalhes Gerais O plano Começo do fim O tombo do matador O fim
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Todo garimpeiro tem a expectativa de um dia encontrar uma pedra maior do que a última que encontrou. A vida baseada na esperança é o que nos move e nos impulsiona a seguir. Acredito que exista uma última pedra, mas o mistério ainda abarca essas terras.
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Da ida até o centro Uma mulher de cabelos curtos e escuros como a noite, nem baixa nem alta, aparentando quarenta e poucos anos, apareceu no sonho e disse para eu seguir em direção ao norte. Algum tempo depois sonhei novamente com a mulher. Muito mais nítida que no primeiro sonho, me chamava pelo nome e clareava as minhas vistas com seu vestido branco. Repetiu: nalgum lugar do norte eu encontraria a pista. Acordei no meio da madrugada e não dormi mais. Tentei assimilar com o silêncio os sonhos, numa maneira de encontrar rapidamente um significado para os dois. Talvez fosse só um desejo do meu inconsciente, devido à lenda que existe, até hoje, nessas terras. Falando nas terras, cabe um adendo: herdei-as do meu pai. Quando eu era um garoto, ele saiu de casa e veio viver aqui. Por muito tempo não tivemos contato. Cresci, estudei e por volta dos meus vinte e três para vinte e quatro anos, recebi uma carta dele dizendo – dentre outras coisas – que precisava falar comigo, urgente e pessoalmente. Arrumei as malas e encontrei-o aqui na fazenda. Meu pai me explicou a real intenção do chamado. Não queria se desculpar, sequer tentar recuperar o tempo perdido. Disse somente ter sido acometido por uma doença e já sentia o findar de seus dias. E queria, caso eu aceitasse, passar todas as terras – essas que pode se ver daqui até o infinito – para meu nome antes de morrer. Alguém me ajudaria a cuidar de tudo. Eu, até então, um ínfimo po15
bre coitado, disse a ele que não sabia os segredos da terra, pois sempre vivi na cidade e lá não tinha nada disso. Pedi o prazo de uma semana para poder voltar para casa, conversar com minha mãe e decidir nossas vidas. Eu não morava tão longe dali. Ele também não duraria muito. Depois de pouco tempo nos mudamos para cá e aqui estou até hoje. Hoje a fazenda faz divisa com Minas Gerais, mas, quando me mudei para cá, tudo era muito menor. Compramos as terras vizinhas e aumentamos nosso território com o passar do tempo. O garimpo era a maior fonte de renda daquela época e eu aprendi poucos detalhes da lavra com meu pai, já que, logo após a mudança, agravouse a doença e ele não conseguiu mais se levantar. Como éramos os três na mesma casa outra vez, minha mãe voltou a cuidar dele. Não demorou muito para que a morte o levasse e, no sentir, minha mãe – que também já não estava em bom estado de saúde – ficou ainda pior. Um ano depois dele ela também se foi. Minutos antes de morrer, meu pai tentou me contar um mistério de gerações que ninguém jamais conseguiu desvendar. Falou sobre uma pedra preciosa muito maior do que as que já tinham sido achadas e que eu deveria encontrá-la, qual fosse o custo. De tanto pensar que a pedra poderia estar nas minhas terras, comecei a viver para isso, como ele também viveu durante o tempo em que morou na fazenda. Analisava como poderia começar a procurar a riqueza pela propriedade, dormia pensando, acordava pensando. E achei ali perto – como fora me dito – um funcionário para me ajudar na lavra. Era um amigo de longa data e possuía uma profunda admiração por meu pai. Conversando com o homem, eu soube das muitas tentativas que ele e meu pai fizeram para encontrar a pedra 16
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preciosa. Convidei-o para trabalhar comigo. Ele aceitou me ajudar, mas não queria nada em troca, pois era o único amigo do meu pai. Comecei assim um laço com alguém que já tinha uma grande consideração por mim. Chamei-o para morar numa casa ao lado da minha, já construída e precisada de ajustes. Arrumamos a casa e Antônio se mudou com sua esposa e os quatro filhos. Trouxe junto com a mudança um presente. Ganhei um cavalo, mas não sabia montar. Perdi o dia inteiro aprendendo a colocar a cela e outros aparatos para conseguir andar no animal. Precisaria mesmo de algum transporte para percorrer toda a terra. Naquela época, ter carro era privilégio de poucos. El Dorado – batizei-o com este nome devido à Manoa del Dorado – tinha pelagem dourada, bonita. Gostei dele desde o início. Era forte e tinha boa aparência. Fora muito bem educado, não tive problemas.
Criei uma grande simpatia pela família do Antônio. Depois que eles vieram para cá, sempre tive com quem conversar. Cuidamos do terreno e eu aprendi algumas maneiras de adubar, plantar e cuidar da terra. Antônio me ajudou a fazer o pasto, a colocar as cercas e a comprar o gado. O terreno foi ficando bonito com o passar dos anos. Fizemos até uma lagoa. Ainda é um lugar tranquilo para viver. Nossos dias se resumiam em cuidar da terra, sair para escavar e voltar para casa, às vezes com algumas pedras com valores consideráveis, outras com valores simbólicos. Dávamos as últimas às crianças e elas guardavam-nas em potinhos, para brincar de lavrista, como o pai. Brincadeirinha simples, resumida em cavar em enterrar as 17
pedrinhas e encontrar a maioria delas. Elas se divertiam brincando de ser o pai. Antônio era motivo de orgulho da família. E assim seguíamos com nossas vidas. Acordar cedo, tomar o café feito por dona Ana – esposa do Antônio – e sair em busca do sonho do meu pai. Um sonho que não era dele, mas foi dado a ele e depois a mim. Num desses dias, quando andávamos a cavalo, Antônio me contou que ouvira também a tal história de que ali, nas minhas terras, havia uma grande pedra preciosa. E não era uma pedra qualquer. Rezava a lenda que seria necessário bastantes homens para carregá-la. Contou também que essa pedra causaria discórdia entre muitos e ganância em quem soubesse do seu achamento. Perguntei-o quem contou pela primeira vez a lenda e soube que ele tinha ouvido do meu pai. Então, não sei e nunca saberei de quando é essa história e quem a contou pela primeira vez. Sei que, como foi contada a mim, pode ter sido inventada por alguém e ter se tornado uma lenda, justificada na fé das pessoas por uma vida melhor. De início, não estava interessado no tal pedregulho e sim em arrumar pedras menores para o nosso sustento. Só que a vida na lavra não é tão fácil assim. Passamos um longo período vivendo somente dos animais. Comecei a pensar mais frequentemente na história da tal pedra gigante.
Dias depois, a mulher que eu citei no início dessas memórias, apareceu pela terceira vez nos meus sonhos, falando novamente da viagem ao norte. Não consegui ver muitos detalhes do rosto dela – dizem que em sonhos a gente não vê o rosto das pessoas – mas me lembro dos olhos acastanhados e da roupa branca. Acordei 18
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perturbado e fui imediatamente procurar Antônio, para lhe contar o ocorrido. Sentados na varanda da minha casa, descrevi a mulher e sua fala. Ele abaixou a cabeça, bateu a mão no bolso, pegou um papel e o fumo dentro de uma sacolinha transparente, fez o cigarro em segundos e o acendeu. Olhou para mim, pensativo. Tragou e começou a dizer que já era para eu ter viajado desde o primeiro sonho. Todo lavrista esperava uma pista para ter o dinheiro da pedra e eu, que sonhei, ainda não tinha saído de casa. Avisou-me que esse sonho podia ser uma espécie de revelação e que competia somente a mim ir até o destino. Durante o dia, dispusemos em uma bolsa tudo o que seria necessário para fazer uma viagem. Guardei também a carta que meu pai tinha me enviado quando eu ainda morava na cidade. Eu seguiria viagem sem ideia de quando voltaria para casa, já que a moça do sonho não me falou exatamente onde era. Antônio tentou me confortar, dizendo que se eu sonhei com a pista, logo a encontraria. Procurei acreditar nele, por mais que pensasse que tudo seria uma grande perda de tempo.
No meio da madrugada, Antônio bateu à porta para me ajudar com os ajustes finais. Conversamos mais um pouco e ele me explicou coisas básicas, como o que eu deveria fazer se acabasse a água, o cavalo se sentisse mal, ou eu me sentisse mal. O sol castigava naquela época e era preferível descansar nas horas mais violentas, para não prejudicar o andamento da viagem. Deveria tomar cuidado também com andarilhos – alguns tinham más intenções. Era para eu ir na fé, em busca do que 19
ouvi no sonho. E era para ir sozinho. Conversar o menos possível. Rezar o máximo que pudesse. Saí com o sol no alto do céu. A viagem poderia ser feita por duas estradas: a que saía do centro da cidade e a que passava pela serra. Optei pela segunda. Eram poucas as pessoas da vila e todo mundo sabia da vida de todo mundo. Não era bom dizer o motivo da viagem. Os mais religiosos acreditariam que eu tinha ido à procura do milagre e alguém, ouvindo isso, poderia me seguir. Cavalguei alguns quilômetros e senti sede. O sol estava muito forte. Parei embaixo de uma boleira para descansar. Fiquei observando como as boleiras estavam bonitas e como a sombra daquela era magnífica. Apeei do cavalo, folguei a barrigueira, tirei o freio da boca dele, dei milho, água e tomei um cantil também. Há muitas árvores no caminho que tapam o sol. Depois de aproximadamente uma hora, apertei a barrigueira, coloquei o freio de boca, joguei a rédea por cima de cabeça do El Dorado e parti em direção ao norte, sem rumo. No primeiro dia da viagem, andei por muito chão, encontrei quase ninguém. Às vezes um ou dois. Nada mais que isso. Cavalgava e olhava para o céu alaranjado. As montanhas faziam sombra e em alguns lugares já era noite. Decidi parar perto de duas pedras que formavam uma cabana, um V de cabeça pra baixo. Deitei, mas precisava ficar atento aos ladrões. Se alguém roubasse o meu cavalo ou algum mantimento, as coisas ficariam complicadas, então tive que dormir de olho aberto. Enquanto observava o céu e suas constelações, pensava na reviravolta da minha vida. Lembrei-me da casa onde vivi durante toda a infância, da escola, da minha mãe sempre presente, cuidando de tudo. Lembrei também da felicidade em que ela ficou quando seus patrões disseram que arcariam com os meus estudos, na melhor 20
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faculdade de botânica do estado. Planejamos que, depois de formado, voltaria para a cidade e abriria meu próprio negócio. Terminei a faculdade, mas não tive tempo de montar a farmácia. Virei a página, comecei um novo capítulo vindo para cá, onde (re)construí a vida. Hoje, a fazenda já não é tão procurada por lavristas. Na verdade, na região ainda existem lavristas, mas são poucos. Esse é um negócio antigo. Tudo mudou. A carta feita por meu pai foi enviada numa hora em que tudo caminhava bem. Se não fosse por ela, talvez hoje eu estivesse lá na cidade, morando no mesmo lugar, velho do mesmo jeito. O que me restaram foram as boas memórias de tudo o que vivi. Tanto de lá quanto de cá. Fiquei confuso quando li aquele escrito de uma pessoa praticamente desconhecida, pedindo para que eu a visitasse. Encontrando com ele, vi os traços que ganhei de herança. Éramos muito parecidos. Compadeci de sua situação. Conversamos sobre os negócios durante uma tarde inteira. Sequer falamos no tempo perdido: ambos sabíamos que era impossível recuperá-lo. Não éramos pai e filho e sim dois homens com o mesmo sobrenome. E o gesto de me passar as terras era questão de honra. Por mais que não fôssemos família há tanto tempo, éramos família nos papéis. E, de fato, eu era o único herdeiro. Comentei que ainda morava com minha mãe e que seria difícil convencê-la de se mudar para o interior. Sabia de sua profunda mágoa por meu pai. E ele também sabia. Mas talvez a mudança fosse possível, se eu minuciasse o acontecido. Prometi tentar, despedi-me e voltei para a minha casa. Não me arrependo das decisões que tomei. Aprendi muitas coisas morando aqui. Pensando em tudo, desde a infância até a carta e a mudança, cochilei. Quando o dia amanheceu, alimentei 21
o cavalo, achei um pedaço de carne seca com farinha e mastiguei também. Partimos.
Por volta das dez horas da manhã do segundo dia, encontrei um homem, também a cavalo, que se apresentou como Justino. Era moreno e tinha mais ou menos a minha idade. Perguntou de onde eu estava vindo, respondi que era de longe. Depois de alguns instantes em silêncio, ele perguntou se poderia seguir viagem comigo. Eu disse não saber para onde estava indo. Sem que eu dissesse sim, Justino continuou ao meu lado. Fiz, com um pouco de receio de que ele fosse um ladrão, o ritual com El Dorado novamente, na hora do sol mais forte. Sentados embaixo de outra árvore, perguntei sobre a vida do moço e ele me contou alguns detalhes. Justino nasceu na terra do Lampião. Seu pai era um justiceiro e devido à profissão, sua família se mudava constantemente. Passaram por todo o litoral até chegar aqui. Todos eram muito simples e passavam dificuldades financeiras, até que Justino recebeu uma proposta de trabalho. Prontamente aceitou, pensando nas melhores condições que daria para seus pais e irmãos. Tempos depois, o caçula também quis se juntar ao bando e pediu para que Justino propusesse ao patrão o novo funcionário. Trabalharam anos juntos até que a morte os separou. Com o corpo de seu irmão nos braços, Justino jurou vingança. Decidiu sair do emprego e trabalhar como autônomo, fazendo justiça com as próprias mãos. Seguindo a vida de seu pai, também não tinha casa, mas tinha regalias, pois era conhecido de políticos e cidadãos ricos dos locais por onde passava. Era contratado, executava o serviço e sumia no mundo. Como recebia antes, não 22
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precisava voltar até o mandante. Sua casa era em todo lugar e lugar nenhum. Conversamos por algumas horas e decidi contar um pouco da minha vida para Justino, tentando esconder os motivos da minha peregrinação. Ele sabia que alguns fatos estavam desconexos, mas respeitou minha decisão de não falar. Pensei que em um momento oportuno pudesse contar o motivo de tudo para ele. Nessa noite não dormi. Por mais que tivesse adquirido uma confiança quase imediata pelo homem das roupas empoeiradas, isso não foi o suficiente para eu conseguir descansar as retinas. Os cochilos eram breves e sempre acabados por um susto. Susto que eu me dava, inconscientemente, para não dormir. Ao contrário de mim, Justino dormia o sono mais pesado que eu já vi durante toda a vida. A única coisa que tirou para dormir foi o cinto com as suas munições. É bonito quando você vai para um lugar sem luz elétrica. Uma fogueira não é o suficiente para acabar com as estrelas do céu. Fui observando as constelações, cada uma mais bonita que a outra e pensava na mulher do sonho, nas palavras do meu pai, no Antônio dizendo para eu seguir sem medo que logo encontraria a pista e no Justino, o amigo de longa data conhecido naquele dia. Justino foi providencial nessa viagem. Como uma bússola humana, ele sabia todos os caminhos e tinha ciência de onde poderíamos achar comida para nós e para os animais, que já começavam a ter fome. Saímos em direção a um povoado próximo, onde ele tinha alguns amigos. Chegando lá, paramos num bar de um conhecido. Justino abriu a porta e acenou para o dono, que estava atrás do balcão e o recebeu com festa. Depois de um abraço, o homem perguntou como estavam os trabalhos e o jagunço falou sobre as encomendas, algumas prestações de con23
tas, nada muito diferente do cotidiano. Perguntou pelo dinheiro, ainda tinha bastante; perguntou sobre as munições. Ele precisava de mais. Logo depois, dirigindo-se a mim, disse que o dono do bar era um amigo antigo e de extrema confiança. Era ele quem comprava tudo – como eu já havia pensado – e ajudava, quando preciso. Sentei e me deleitei com uma dose de cachaça. Fazia tempo que não bebia e depois da primeira eu tomei outas sete ou oito, conversando com Justino e o dono do bar. Recebemos o convite para passar a noite por ali. Os cavalos iriam para o estábulo do Miguel – o dono do bar – e nós para a casa dele, tomar um bom banho e dormir em boa cama. Justino aceitou, porque eu não tinha condições de concordar com nada mais.
O sol já estava alto quando acordei. Dormi profundamente durante a noite inteira, descontando os últimos dias mal dormidos. Desci para o bar e encontrei os dois, no mesmo lugar do dia anterior. Peguei um pedaço de pão com manteiga e um copo de café forte, para combater a ressaca da noite anterior. E no vai e vem das conversas, resolvi perguntar para Miguel como os dois se conheceram. Justino estava sentado no mesmo lugar quando chegaram uns assaltantes. Um deles, armado, foi em direção ao caixa e pegou todo o dinheiro. Justino, tomando sua cerveja, sacou seu revólver e atirou certeiramente na cabeça do assaltante. Os outros que apoiavam o salafrário, correram. Justino pegou o corpo do chão e entregou-o para um comparsa dele e ninguém sabia, até aquele dia, em que lugar o homem tinha sido enterrado. O trabalho foi bem feito e ninguém falava mais disso. 24
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Depois de algumas horas de conversa, decidi continuar o trajeto rumo ao norte. Justino seria o protetor da viagem. Por volta das duas da tarde, saímos do bar e seguimos. Conversamos ainda mais e descobrimos algumas coisas um do outro. Tive a impressão, por minutos, que eu já o conhecia de outras vidas. A noite chegou e optamos por continuar a cavalgada para recuperar o tempo perdido. No caminho, Justino me contou que desde seus 14 anos só fazia a mesma coisa: vivia para dar cabo à vida de ladrões, traidores. Todos os assassinatos que cometia eram de mando. Qualquer demanda política ou econômica. Desafeto ou traição. Ele acertava as contas por qualquer um que se sentisse prejudicado. E recebia bem por isso. Tinha na mente, uma lista com nomes para encontrar e executar. Contou também que tinha amigos, um homem para cada função quando precisava de apoio: um armava a emboscada, outro executava e um terceiro (às vezes um quarto e um quinto) enterravam o morto. O sexto passava no trajeto, retirando as marcas. Considerava seu trabalho um como outro qualquer. E era. Eu também achava.
No quinto dia, fui acordado por Justino perguntando se eu gostaria de ser pistoleiro. Confuso com a pergunta, disse que não possuía dom, nunca tinha pegado numa arma. Ele prontamente se ofereceu pra me ensinar a atirar. Não tive escapatória. Paramos perto de um bosque. Fizemos uma mira em uma árvore e Justino me deu a arma. Tremi, suei frio, tive medo. Ele disse que também teve medo da primeira vez que atirou, mas se acostumou e a arma de fogo se 25
tornou o objeto que mais lhe trazia segurança. Com uma pseudocoragem, recarreguei a pistola. Dei seis tiros, errei cinco. Gastamos bastante munição e eu fui pegando o jeito. Quando entreguei a arma para Justino, ele recusou. Ofereceu-a como presente, disse que o revólver tinha sido de seu irmão e que o jeito como eu comecei a atirar lembrava o dele. Percebi que Justino, apesar do desejo de vingança que carregava em seu peito, ainda sentia a ausência do irmão. Anoiteceu. Fizemos uma fogueira com galhos de árvores e folhas que achamos pelo caminho e nos sentamos ao redor dela. Justino ainda continuava quieto, mas senti vontade de puxar assunto. Comecei a história falando que nasci numa grande cidade e minha família era feliz até meu pai se mudar. Fui criado por minha mãe, com muito custo. Passamos algumas dificuldades durante a vida, mas nunca nos faltou o que comer. Muito cedo comecei a trabalhar, porque naquela época, mãe solteira não tinha muita aceitação perante à sociedade e, por isso, em algumas épocas ficava mais difícil. Minha mãe era empregada de uma família muito nobre da cidade e eu tive a oportunidade de estudar nos melhores colégios por causa disso. Viraria farmacêutico se o destino não tivesse me levado para onde eu estava. Não entendia nada de terra até ter que viver em uma. Ele me interrompeu, perguntando sobre meu pai. Não tinha muito que dizer, mas expliquei que fiquei sem notícias dele durante dezoito anos. Achava que não tinha pai mais, porque sempre morei na mesma casa e ele nunca fora me visitar. E que, determinado dia chegou uma carta para mim. Abri a bolsa, retirei-a e li para ele. A carta dizia que meu pai tinha nos deixado – minha mãe e eu – por motivos particulares e não queria se explicar nem pedir desculpas, porque isso não deveria 26
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ser interesse de ninguém mais, já fazia muito tempo. O importante mesmo era tratar de negócios, pois ele tinha comprado umas terras para o lado noroeste do estado. Gostaria que eu viesse ao encontro dele na fazenda, que eu ainda não conhecia, para saber detalhes sobre as terras. Por último, dizia que não teve mais filhos além de mim, que viveu para cuidar da terra e que gostaria que um dia tudo fosse meu. Após a carta, contei da herança e das pedras. Meu pai ficou encantado com a lenda das pedras preciosas e acabou passando-a para mim, antes de morrer. Tudo o que me confundia, Justino achou interessante. Continuei ilustrando como cheguei às terras, perdi meu pai, minha mãe, sonhei vezes seguidas com uma mulher me dizendo para ir para o norte, encontrei Antônio e sua família e que Antônio quem disse para eu seguir viagem depois do terceiro sonho e fazer exatamente como a mulher falou. Justino perguntou se eu acreditava mesmo no que estava fazendo. Admiti que muitas vezes não, mas a lavra fazia a cabeça das pessoas. Quando você acha uma pedra de valor, por menor que seja, dá ânimo para procurar mais, na esperança de encontrar outra maior. Contei que achamos, Antônio e eu, algumas pequenas, mas não sabíamos onde estava a pedra do sonho. Se achássemos essa pedra, precisaríamos de proteção. E Justino, com seu trabalho, ajudaria muito. Afirmei que ele poderia fazer tudo morando lá na fazenda, desde sua lista até o assassino do seu irmão. Assim contratei meu segundo funcionário, um jagunço.
Não reparei a hora em que fomos dormir, mas o clarão do outro dia nos acordou. Fomos – guiados pelo jagun27
ço – para outra terra, um pouco mais povoada. Ele disse que precisava visitar algumas pessoas. Era domingo. Chegando lá, procuramos por um senhor. Ele nos levou para os fundos de uma casa espaçosa, com um quintal muito grande. Disse que poderíamos tomar banho e trocar de roupas, pois estávamos imundos e já não cheirávamos tão bem. Tinha roupa do nosso tamanho no armário e podíamos escolher qualquer uma. A única ressalva foi que deveríamos estar prontos antes da cerimônia começar. Vesti uma blusa branca e uma calça preta. Justino optou por uma roupa creme, e continuou com seu colete de couro por cima da blusa. Comemos e bebemos. Na varanda tinha um armário cheio de meiota e pudemos colocar duas na bolsa, como presente do dono da casa. Depois de guardarmos as coisas, o anfitrião disse para eu me assentar ao lado direito da mesa, para que eu pudesse assistir tudo de perto, mas não tão perto quanto Justino, que sentaria um pouco mais próximo da mesa que eu. Aprendi a fazer os rituais da cerimônia na hora em que ela começou. Fiz meio torto, mas fiz. Respeitava a crença do meu jagunço, estava lá com ele e deveria participar de tudo. Quando acabou, olhei uma mulher ao longe e não consegui tirar os olhos dela. Justino olhou para mim, viu que estava olhando para ela e sorriu maliciosamente, como se eu quisesse algo com a moça. Fitava-a, mas desconsiderava a ideia de Justino. Fitava-a porque ela não me era estranha. Chegando perto de mim, ele disse que a conhecia e que se eu desejasse falar com ela era só avisar. Ela, quando virou, bateu os olhos em mim e disse meu nome, como numa pergunta. Tremi. Tremi mais que o dia em que peguei o revólver pela primeira vez.
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A volta — O senhor veio das bandas do sul, não foi? — Sim – falei. — Esperava pelo senhor. Sei que procura por algo que não sabe o que é. Sei também que você vai encontrar o que precisa, mizifio. Eu posso lhe ajudar. — Quem é você? — Não nos conhecemos, mas posso lhe ajudar – repetiu, pegando o cachimbo. Nosso primeiro contato foi exatamente assim. Fiquei completamente encabulado com aquela mulher sabendo de onde eu vinha e porque eu estava lá. Era conhecida de Justino, mas ele não podia ter falado com ela porque esteve ao meu lado o tempo todo. Fui falar com Justino, em particular. — Justino, sei que você a conhece. Falou com ela antes de mim? — Não, não falei. Ela se virou e nem me viu. Imediatamente falou com você. Ela lhe conhece de onde? — Nunca vi essa mulher. Por instantes fiquei reparando-a e percebi que parecia a mulher dos meus sonhos. Ou eu queria que fosse. Possuía as mesmas características: o cabelo, o olhar, a roupa branca. Tudo igual. Resolvi falar com ela dos sonhos e antes mesmo de eu pronunciar alguma palavra, ela, tragando o cachimbo, disse: — Eu sei o que você procura, Bento. — Então me ajude. 29
— Você confia no sonho? — Confio. — Se confia, só tenho a dizer que em um dos cultos, foi revelado a mim que pras bandas do sul tem uma terra com casas, cercas e lagoas. Nessa terra existem pedras preciosas. E eu sei que são as suas terras. Volte para lá e procure-as. Você vai sentir a pedra perto de você. E quando tudo acontecer, utilize todas as maneiras que puder para encontrá-la. Se encontrá-la, não duvide que exista outra ainda maior. Elas podem estar enterradas tanto na terra quanto no céu. Senti uma enorme frustração por ter andado dias por aparentemente nada. Ela prosseguiu: — O céu que eu digo não é o céu de Deus e sim o céu dos homens. E saiu. Fui atrás dela, para descobrir mais sobre a pista. Quando passei pela porta, a mulher já não estava mais lá. Perguntei para Justino quem era a mulher com quem eu havia conversado. Ele respondeu que eu não tinha falado com a mulher – uma grande mãe de santo daquela região – e sim com um espírito e que provavelmente eu não falaria com ele novamente. Justino continuou explicando que estávamos em uma cerimônia espírita. Perguntou se eu seguia alguma religião, eu disse que não. Aproveitei a oportunidade e esclareci que não me incomodava com suas crenças. Inclusive, achava interessante. Estava só assustado porque a mesma mulher que visitou os meus sonhos apareceu justamente onde aconteciam as reuniões dele. — As coisas são assim mesmo, Bento. — Assim como? — Providenciais. Você veio por causa de um sonho se encontrar comigo numa estrada que não conhecia. Imagino que você tenha criado um laço comigo por nunca ter tido um irmão e aparentarmos uma idade próxima. E 30
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eu me aproximei principalmente por encontrar muito do meu irmão em você. Nada acontece por acaso. E continuou: — Sou um pistoleiro, tenho minha vida. Quero me vingar de quem matou meu irmão e não escondi isso de você em nenhum momento. Você não disse nada para me condenar, então achei que compactuasse comigo. — E compactuo. Acho que você tem que se vingar pelo seu irmão. — Então. Também não sei nada mais da sua vida além do que você me contou. E eu acredito em você. Tendo você por perto parece que tenho meu irmão de volta. Não me leve a mal, não aceitei trabalhar para você somente por isso. Aceitei porque gosto do trabalho na lavra e há, pras bandas das suas terras, gente que eu quero. — Entendo. — Protegerei suas terras como se fossem minhas. Depois das revelações e das conversas, decidi voltar para casa. Como já era noite, o dono da casa sugeriu que dormíssemos lá e fôssemos embora à aurora do dia seguinte.
Já de manhã, arriamos os cavalos, arrumamos as bagagens e partimos rumo à vila. O que o espírito me disse ficou em minha cabeça da mesma forma que a última conversa com meu pai. As duas juntas pareciam uma só coisa. Um enigma dentro de outro enigma. Fomos para casa e, como tinha achado o que estava procurando, paramos menos no trajeto. No caminho de volta, Justino ainda me contou mais coisas sobre os nomes de sua lista. Os seis nomes eram de homens. Dois deles deveriam ser mortos por dívidas de terra. Eram da mesma família: pai e filho. Tomaram uma terra que não pertencia a eles e cons31
truíram nela. O dono, como era um político muito rico, mandou que ele desse fim à vida deles. Pagou um preço alto por isso. Outro estava envolvido com roubos na cidade onde estávamos e corríamos o risco de encontrá-lo. Justino avisou que se isso acontecesse, teria que atrasar um pouco a viagem, pois faria o serviço de uma vez. Dois estariam próximos à minha terra. Eram fugitivos. Traíram, cada um a seu modo, o fazendeiro para quem trabalhavam. E saíram corridos de lá, porque senão o próprio dono das terras se vingaria deles. Era um homem bravo e depositava toda sua confiança em Justino, tanto que pagou ainda mais dinheiro que o primeiro. Em alguns lugares do mapa, Justino tinha capangas que lhe amparariam no básico. Esses mesmos homens ajudavam-no a procurar não só os quatro últimos, mas todos da lista. Ele trabalhava sozinho, mas tinha amigos. E o último era o homem que matou seu irmão. Como a volta estava mais tranquila, paramos em um hotel de beira de estrada, alimentamos os cavalos e pedimos dois dormitórios. Numa das paredes da recepção tinha um cartaz anunciando um show no cabaré ali perto naquela noite. Decidimos ir. Arrumados, pontualmente estávamos lá. Os Strip-teases clareavam nossos olhos, alimentavam nossos corpos. Há tempos eu não ia a um lugar como aquele. Justino se ajuntou a uma das moças rapidamente. Eu demorei um pouco mais, mas também me virei. Precisava me distrair depois de toda a andança. E um jeito fácil era esse. Ir para lá, pagar, ter uma mulher e voltar para o hotel. E assim fizemos. Permanecemos no cabaré por algum tempo. Voltamos, dormimos, acordamos bem cedo e saímos em direção à vila.
Passando por um lugarejo, Justino avistou um de seus comparsas e perguntou-o como estavam as coisas. O ho32
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mem informou que o ladrão estava num boteco a alguns metros dali. Justino decidiu acabar com o salafrário ali mesmo. Perguntou quantos dariam suporte e o capanga respondeu que mais três, além dele. Pediu um revólver mais forte, que acertasse a longa distância e balas envenenadas. Não queria correr o risco de errar os tiros. Não tive coragem para ir. Uma hora depois, ouvi disparos e rapidamente Justino estava de volta com um sorriso no rosto, como se nada tivesse feito. Fiquei um pouco assustado, mas não demonstrei. Por fim, acabei me sentindo protegido por tê-lo comigo. Depois do assassinato, tivemos que dar uma grande volta na estrada e passar por muitos lugares, para não deixar vestígio. Encontramos mais comparsas e Justino avisou para riscar o ladrão. O ladrão saiu do bar e montou seu cavalo. De longe, Justino o acompanhou e, na hora oportuna, disparou um tiro, derrubando-o da montaria. Chegando mais perto, viu que ele ainda respirava. Deu mais um tiro, esse na cabeça. O homem era bom de mira. Os capangas só precisariam dar fim ao corpo. Cavalgamos até outra vila que eu não conhecia. Era um atalho para voltar para casa. Decidimos dormir por lá, já que o céu nublado não nos favorecia naquela noite.
Não esperamos o amanhecer para partir. Com os atalhos, em mais um dia – ou até menos – estaríamos em casa. Fui contando para Justino como a terra era bonita e sobre Antônio, sua família e como o destino me ligou a eles. O caseiro, de certa forma, substituía meu pai, desde quando se mudou para a fazenda. Cuidava, com dona Ana, de tudo o que fosse preciso para o meu bem-estar. Os dois tinham quatro filhos. Três deles mesmo e um de 33
criação. Mas o de criação era a cara da dona Ana, nem parecia não ser nascido dela. Comentei, com admiração, a brincadeira que vi antes de viajar. As crianças admiravam muito a Antônio. Era um homem vivido, incansável, pronto para tudo. Disposto e bem humorado, cantava sem parar. Desafinado que só, chegava a ser engraçado. Justino parecia gostar das histórias que eu contava. Não demorou muito para pararmos. Estava quente e os cavalos precisavam de água, até mais que a gente. El Dorado aparentava cansaço. A viagem foi longa para ele. Apesar de bem treinado, andamos durante oito dias ou mais, não me lembro direito. A alimentação não foi a das melhores e os animais sentiam isso. Nós também, mas era melhor que eles comessem o restante da comida deles e nos levassem para casa. Na bagagem ainda restava um pouco de feijão e carne seca. As cachaças que ganhamos do pai de santo já tinham acabado. Comemos o que restava na bagagem, já pensando nas maravilhosas refeições preparadas por dona Ana. Estávamos perto da fazenda. Descansamos embaixo da boleira e saímos às duas da tarde, andamos até o pôr-do-sol, quando avistamos a pedra em V de cabeça para baixo. Mais uma vez, procuramos alguns galhos e fizemos uma fogueira. Dormimos por lá. Bem cedo acordamos e continuamos nosso trajeto. Por volta de onze horas da manhã, chegamos à fazenda. Dona Ana e Antônio estavam na varanda e logo nos viram. Ficaram alegres com nossa chegada e, após os cumprimentos e apresentações, os dois foram preparar o almoço, um verdadeiro banquete. Como estávamos esfomeados, Justino e eu não esperamos todos se sentarem à mesa para almoçar. Após o almoço, resolvi tirar uma sesta enquanto Antônio mostrava para Justino toda a terra e explicava para ele como estava e seria o trabalho na lavra. 34
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Tempo das vacas gordas Enquanto não construíamos um barraco para Justino, o jagunço passou a morar em minha casa. Emprestei o meu quarto a ele e fiz do quarto do meu pai um bom lugar para descansar. Ainda com o espírito de turista recém-chegado, Justino pediu para conhecer o centro da vila. Era um pouco afastado da fazenda, mas tínhamos outros cavalos – os nossos estavam descansando da viagem – que nos levariam até lá. Nessa época, a vila tinha aproximadamente mil habitantes. Era um lugar novo, as pessoas conheciam-na somente pelo garimpo e, por isso, atraía muitos trabalhadores. Os moradores, geralmente homens, dedicavam-se à procura das pedras preciosas. Quando me mudei para cá, não tinha a rede elétrica que hoje é distribuída em todo o lugar. A energia funcionava em determinados períodos e tinha hora certa para desligar. Antes das nove horas da noite, quem não tinha um gerador em casa, começava a preparar seus castiçais. A vila apagava. Somente algumas casas continuavam acesas. Por volta de 1960, a vila foi emancipada. O ano coincidiu com a fundação de Brasília. Impressionou a todos a forma como o governo criou uma nova capital para o país, com todas aquelas promessas de evolução de 50 anos em 5. Desde muito tempo tinha-se a ideia da criação de um novo lugar para a capital, no interior do país, longe do litoral e dos ataques inimigos. O presidente atribuiu ao terreno solitário o dever de ser o lugar das decisões políticas. E assim o fez. 35
Por influência desse marco, o dono da casa das luzes coloridas e ainda sem nome resolveu batizá-la, talvez para prestar homenagem ou simplesmente porque achou bonito, com o mesmo nome. Tínhamos uma Brasília, a capital dos prazeres, na vila. E fomos para lá. As mulheres que lá trabalhavam eram muito bem arrumadas. Com suas roupas impecáveis, andavam, durante o dia, pelas ruas de terra batida – não havia calçamento – sempre com um cachorrinho preso a uma corrente. Eram maquiladas e se portavam muito bem com um salto alto. Os cabelos então, nem ouso dizer: o laquê dava inúmeras formas a eles. Além de tudo isso, sabiam se portar, não eram abusadas e não chamavam a atenção, a não ser pela beleza. Era difícil um final de semana que não tivesse festa. Como era sábado, todos os garimpeiros da vila e dos territórios vizinhos estavam lá para gastar o dinheiro que ganharam com as pequenas pedras tiradas durante a semana. Sentamos numa mesa e esperamos as moças nos servirem. Imediatamente, duas sentaram conosco e começamos a conversar. Alzira fazia jus ao nome que tinha. Era bonita, carismática. Por alguns instantes esqueci-me do meu real intuito indo ao Brasília. Aquela mulher não tinha nascido para ser dama. Poderia ter estudado ou até mesmo esperado por alguém, mas talvez as condições não favoreceram para tal. Não que eu condenasse as damas, longe de mim. Mas ela era diferente. Perguntei a ela se poderia somente conversar comigo, por enquanto. E antes que ela respondesse, continuei dizendo que, se fosse preciso, eu pagaria também por esse tempo. Acabei por saber um pouco de sua vida. A moça veio do interior de Minas Gerais, em busca de uma vida melhor. Ficou sabendo por uma prima que também trabalhava na casa – e mais antiga de profissão – que lá 36
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precisavam de mais uma mulher. O lucro era certeiro, porque a vila era rodeada de garimpeiros. Somente não podia revelar à família o que fariam por essas bandas. A história que contariam era qualquer uma, menos a real. E, devido às justificativas financeiras apontadas pela prima, a moça decidiu viajar e fixar trabalho na vila. Não era exclusiva de ninguém. Duas vezes ao ano ia até Minas Gerais para visitar sua mãe e dois irmãos. Como o pai era falecido e a mãe já de idade (Alzira era a caçula), a filha sempre levava algum dinheiro para a família. Era louvável a sua atitude de ter se mudado para outro lugar porque teve uma proposta de emprego como secretária. A música era uma mistura de tango e bolero, ritmos propícios para o local. Chamei a dama para dançar e depois me dirigi para o quarto. Justino já tinha ido há tempo. Amanhecemos no prostíbulo. De lá, saímos para a única padaria, famintos. Enquanto tomávamos o nosso café, começamos a conversar sobre os trabalhos que ainda não tinham sido feitos por Justino e sobre seu ofício. Matar, para um pistoleiro, é como tomar um café na padaria. Você toma o seu café e continua o seu dia, fazendo o que lhe é de direito, enquanto alguém limpa o que você deixou sujo. Lava, tirando suas digitais. E seca. E guarda. Quem está perto de você vê que você foi à padaria, mas isso já é tão corriqueiro que ninguém mais se importa. Ou não quer se importar. Ou tem medo. Às vezes a sede é grande e o matador toma mais de um café por dia, dependendo da vontade. Às vezes o vício é tamanho que dá vontade de tomar a garrafa de café inteira, num só gole, e queimar a garganta e tudo o que há por dentro. Só que existe uma receita para ser seguida, senão passa da linha. E passar da linha nesse caso é excesso de cafeína. O pistoleiro segue à risca a receita. Toma seus cafés. Todo mundo sabe quem faz o café, quem o serve, 37
quem o toma, quem o limpa. A padaria funciona maquinalmente. E todo mundo compra o pão, e gosta. Justino ainda era desconhecido. Todos na vila que passavam por nós, observavam-no. Logo mais saberiam quem era ele e o que fazia. Combinamos de apresentá-lo como meu funcionário, mas tínhamos certeza que essa identidade não duraria tanto tempo. Ele não ligou para a repercussão. Voltamos para a fazenda.
A cidade começava a crescer devido à evolução financeira. O aparecimento de algumas pedras maiores nas minhas terras e nas dos lavristas vizinhos movimentava o centro comercial. A economia girava em torno da agropecuária e das pedras preciosas. Começamos a ter uma vida um pouco melhor, se assim posso dizer. Construímos, depois de curto tempo, a casa do pistoleiro. Dona Ana disse que precisávamos fazer compras, já que algumas coisas da cozinha tinham acabado. Na segunda-feira de manhã, Antônio, Justino e eu descemos a serra em direção ao mercado, para comprar o necessário. Chegando ao centro, decidimos mudar o trajeto e fomos primeiro ao bar. Lá, entre uma dose e outra, conversávamos com os colegas de Antônio, que era mais conhecido do que Justino e eu juntos. Um desses colegas, disse à surdina para Antônio que nos viu na padaria, conversando algo bem suspeito. E perguntou quem éramos. Ele, discreto, disse que eu tinha herdado as terras. O rapaz ainda insistiu, afirmando que ouviu falar na padaria que quem estava conosco era um pistoleiro de renome, que circulava pelas bandas do norte. Justino ouviu e resolveu perguntar para Antônio sobre o que se tratava a conversa. Ele respondeu que não 38
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era nada muito importante, deu a última golada na cachaça e nos chamou para comprar as coisas. Todos suspeitavam, mas tinham medo de perguntar quem era Justino. E Justino gostava disso. Ser temido alimentava seu ego. Compramos os mantimentos, colocamos na carroça e Antônio foi embora para a fazenda. Era dia de ensinar o ofício aos filhos. Nós decidimos ficar para visitar o Brasília novamente.
Durante a semana a casa não era muito movimentada. Ficamos pouco tempo. Quando soube que Alzira não estava no estabelecimento, fui para a área do bar e esperei Justino, que já estava se engraçando com outra moça. Pedi uma cerveja, pitei um cigarro e por lá fiquei. Outra vez, perguntaram – agora para mim – sobre a procedência de meu empregado. Ele, voltando do quarto, respondeu que não tinha residência fixa, era autônomo e estava ali para procurar por algumas pessoas. O rapaz que conversava comigo no balcão logo percebeu do que se tratava. E provavelmente depois daquele momento, a vila inteira saberia quem era Justino. Aqui ainda era um território que não tinha a malícia da pistolagem. Ou pelo menos não tinha pistoleiros fixos. Mas logo que souberam da profissão do Justino, procuraram-no. O primeiro foi o dono da casa de prostituição. Havia um cliente que devia, além dos serviços utilizados na casa, algumas partes de terra. Fazia tempo que a dívida fora criada e quando o chefe foi cobrar, os dois brigaram. Briga por terra ainda é mais complicada que briga por puta. Já que não conseguiram acertar as contas pela conversa, ele pediu a Justino para ameaçá-lo. Ameaça Justino não fazia. Com ele era oito ou oitenta. 39
Raimundo, o dono do bar, disse que em dias de sábado, o tal cliente chegava por volta das nove ou dez horas da noite. Justino deveria observá-lo e, quando o moço saísse, era para segui-lo e acertar as contas um pouco longe dali. O pedido principal foi não matá-lo no meio do salão, pois era dia de muito movimento. Combinaram em aumentar a música quando fosse dado um sinal. Acordei bem cedo no sábado e Justino já tinha levantado mais algumas paredes na sua casa. Queria fazer alguma coisa e, como restavam alguns materiais de construção, decidiu ampliar a sala. Não parou quieto em nenhum momento durante o dia. Quando a noite ameaçou a aparecer, tomou seu banho e ficou à espera. Nesse dia, lembro-me bem de termos tomado o café todos juntos: dona Ana, Antônio, os quatro filhos, Justino e eu. Saímos da fazenda por volta das sete da noite e chegamos ao Brasília antes da hora combinada. Notei que Justino estava elétrico. Matar o deixava assim. Era transcendente. Ele ganhava a vida dos outros a partir do momento que as tirava. No bar, o dono do prostíbulo acenou para ele, com a mesma cara de triunfo. O baile começou e como eu nada tinha com o combinado deles, fui procurar o meu lugar. Logo me achei com Alzira e fui cumprir os deveres da carne. Mais tarde, voltei para o baile, especificamente para o bar. O dono me disse que Justino tinha saído para cumprir seu dever. Havia armado uma emboscada e daria cabo à vida do devedor-encrenqueiro. O som estava muito alto naquela noite. Esperei por ele. Por volta das três da manhã, quando já não tinha quase ninguém no bar, Justino reapareceu, com marcas no corpo. O defunto, antes de morrer, reagiu à emboscada e tentou brigar com ele. Só que foi parado por uma bala venenosa 40
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que logo invadiu seu corpo e tomou seu coração. Como Justino estava sozinho, teve que carregar o corpo, cavar a terra e enterrá-lo. Ele disse que havia cavalgado um tanto considerável para enterrar o moço. Só não disse onde foi. Achamos melhor nem perguntar. O pagamento foi efetuado e ganhamos crédito na casa: não precisaríamos pagar por nada mais que consumíssemos. Depois do sumiço do cliente do prostíbulo, todos suspeitaram de Justino. Mas como não havia provas que incriminassem o pistoleiro, nada foi feito. O problema maior foi a suspeita de Alzira e Consuelo, a dama que esteve com Justino naquela noite e na anterior. Consuelo desconfiou porque o jagunço não ficou pouco tempo com ela da primeira vez. Teria comentado com Alzira que já na segunda noite, o cliente foi rápido e disse que tinha algo a fazer. Ela estava interessada, como muitos da cidade, em descobrir com o que ele trabalhava. Depois dos deveres cumpridos, Justino me convidou para sair do balcão e ir para uma mesa. Perguntou sobre a mulher do sonho e queria entender os detalhes que ele não sabia da história das pedras preciosas. Contei sobre o céu tangível que o espírito me disse. Como já era domingo – ele achava que os domingos eram dias feitos para o descanso e, por isso, não fazia nada além de meditar e procurar as respostas para as suas dúvidas semanais – achou que encontraria alguma coisa. Voltamos para a fazenda no final da madrugada. Resolvi dormir logo. Seguindo a filosofia do meu comparsa, tirei o dia para descansar. Justino sumiu depois do almoço. Pegou a pá e a picareta e disse que ia para a mina procurar a pedra. Algumas horas depois, ouvi gritos do Justino. Corri para ver se algo havia acontecido, pensei até que alguém tivesse ido atrás dele para acertar as contas da madrugada anterior. Por sorte não era isso. 41
Ele tinha achado uma pedra grande e viera me buscar. Antônio ouviu a bagunça e foi conosco. Chegando ao local, o jagunço apontou para a pedra no canto da parede, bem no alto. Imediatamente começamos a limpar com as mãos a terra que envolvia a pedra, para não correr o risco de quebrá-la. Antônio pegou todos os aparatos na carroça e conseguimos tirar a pedra azulada. Ela valia todo o dinheiro que precisaríamos para viver e educar os pequenos por algum tempo. Voltamos para casa, estupefatos. Ana e as crianças não acreditavam no que viam. Pedi sigilo absoluto para todos. Passado esse episódio, resolvi fazer um cofre na minha casa para guardar as pedras que ainda acharíamos. E decidi que poderíamos diversificar as fontes de renda. Investiríamos no gado, não deixando de lado a lavra.
Certo dia Justino voltou do centro da cidade com contatos e contratos. Alguns funcionários do governo souberam da fama dele e resolveram ir até o Brasília – já sabiam que ele passava grande parte do tempo por lá. Entraram no bar e por baixo da mesa Justino imediatamente engatilhou o revólver. Um dos engravatados, prevendo a reação do jagunço, pediu para que ele não atirasse e esclareceu o motivo de estarem ali. Precisavam de ajuda para acabar com ameaças de três homens que prejudicavam o grupo em tempos de campanha eleitoral. Ele ouviu as propostas e estranhamente ficou radiante. Isso sempre acontecia quando alguém lhe propunha um serviço assim. Imagine matando quatro e ganhando muito bem pra isso. Topou. Depois de me contar da nova empreitada, Justino disse que já havia um burburinho a respeito da pedra. 42
Alguém imaginou que tínhamos descoberto algo valioso, pois estávamos tranquilos demais em tempos tão difíceis. Todos sabiam da nossa fama, porque vendíamos as pedras menores e não trabalhávamos mais com tanta astúcia. De fato, estávamos satisfeitos com o dinheiro que possuíamos.
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A extração de pedras preciosas nos fez pensar em novas fontes de renda. Decidimos que, além de consumir o gado, também criaríamos o animal para venda. Antônio cuidou da parte de negociar com os produtores vizinhos e pegar algumas dicas de como fazer com que isso funcionasse em nossa terra. Preparamos o pasto e começamos a alimentar o gado. No início, eram poucos animais, mas com o lucro compramos mais. Triplicamos a quantidade em pouco tempo. Umas 900 cabeças. A boiada comprada vinha pelo centro da cidade, guiada por um vaqueiro. Ainda não existia transporte para levar o gado. Com o dinheiro arrecadado pelo comércio dos animais e de suas carnes, decidimos comprar um carro. Já tínhamos poupado o suficiente e não nos faria falta o valor do investimento. Precisaríamos logo de um transporte para as carnes encomendadas pelos açougues da região. O nosso primeiro carro foi um Jeep rural Willys 4x4, azul e branco. Atendia às nossas necessidades e facilitava a vida de todos. As crianças adoravam andar na parte de trás e sempre brigavam para ver quem ficava nas janelas, mas cabia todo mundo. Para Justino e eu, ficaria ainda mais fácil ir ao Brasília.
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Diálogos — Cinco tiros. — O quê? Foi assim que Justino começou a conversa logo pela manhã na mesa do café. — Como assim, homem? – retruquei. — Ué, peguei o serviço, tenho que fazê-lo. — Mas que horas foi isso? — O que você faz de madrugada? Fiquei confuso, apenas sorri. — Esse deu trabalho. É bom começar assim, que dá ânimo pros outros três. – Justino continuou. — Mais três? – como num impulso, cuspi o gole de café. — É. – disse satisfeito. — Tem horas que você me assusta. Caímos na gargalhada. Durante o resto do café conversamos e eu, curioso, tentei arrancar alguma coisa sobre a noite anterior, sem sucesso. O bacana era discreto e respondia somente o necessário – para ele. Mudando completamente de assunto, Justino perguntou sobre o trabalho do dia: — Quais são as encomendas? — O açougue lá do centro pediu um boi para essa semana. Antônio foi cuidar do abate e logo mais cortaremos as carnes. E dona Ana pediu para tirarmos o leite das vacas. Só isso por enquanto. — E as pedras? — Podemos ir até a mina agora. Quero começar a 44
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parte do gado depois do almoço e terminar até o fim do dia, porque mais tarde pretendo ir ao Brasília. Quero ver Alzira. Você vem? — Alzira? — É. Aquela que esteve comigo todos os dias em que fui lá. – Preferi não encompridar a conversa, para não ter que dizer nada mais sobre mim. Terminado o café, fomos para a mina e lavramos, mas o dia não estava para pedras. Voltamos pouco antes do almoço e encontramos as crianças brincando com uma bola feita com panos velhos, costurada por dona Ana. Por mais que os quatro fossem bastante unidos, Francisco, o mais velho, dava sinais de que as brincadeiras de criança não estavam mais tão interessantes. Tinha crescido e logo poderia ajudar no trabalho da fazenda. Desde pequeno era independente e acompanhava seu pai nos serviços diários. Vendo a brincadeira deles, pensei inclusive em conversar com Antônio e sugerir o emprego para o rapaz quando ele completasse 16 anos – o que não estava muito longe. Carlos e Lúcio, com 13 e 11 anos, respectivamente, protegiam a miúda Rosa, de nove. Os três juntos faziam a maior algazarra possível. Parecia que levavam consigo um pequeno furacão por onde passavam. — Tá na mesa! – Gritou dona Ana da porta da cozinha. Fomos todos.
Depois de almoçarmos e separarmos as encomendas do açougue, tirei uma sesta. Ficar exposto ao sol por tanto tempo me cansava e eu precisava estar bem disposto para a noite que estava por vir. Mais tarde me arrumei e, como agora tínhamos o carro, não precisava sair tão cedo da fazenda. 45
Perguntei novamente a Justino se ele me acompanharia no passeio. Não se dando por satisfeito, perguntou-me o porquê de eu querer ver Alzira. Todas lá eram iguais e eu podia ter qualquer uma. O problema é que eu não queria qualquer uma. Alzira era diferente e eu gostava de ir lá para vê-la. E percebia que ela também se agradava com a minha presença. Era só eu chegar ao Brasília que ela logo vinha me cumprimentar e conversar um pouco, antes de irmos até o quarto. Depois de um tempo repetindo esse processo de chegar, ser cumprimentado por ela, conversar e ir até o quarto, todos já sabiam que ela tinha preferências por mim. Cumpri o meu dever no Brasília e decidi ir embora. O jagunço foi comigo e no caminho de volta para casa perguntou-me qual era o meu sentimento pela dama. Engasguei um “nenhum” e ele, novamente, caçoou de mim. Era impossível que eu estivesse enrabichado por uma moça dama. Moças damas não dão valor para homens, só querem dinheiro e fama. Eu também pensava dessa forma. Fiquei quieto e Justino pensativo.
— Se bem que... — Se bem que o quê, Justino? — Ah, aquela moça, a Consuelo. Ela é bonita. E sabe o que faz. — Tá gostando dela? — Eu hein, não se pode falar da beleza da moça que eu já estou gostando dela. E outra, não se pode gostar de puta. — Por que não? — Por que não. 46
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Justino gostava da Consuelo, prima de Alzira. Só que para ele amor de dama não se levava para casa. Evitava todas as maneiras de falar nela e mudava o assunto sempre que podia. Não se permitia gostar. — E outra, Bento. Minha vida é perigosa demais para eu ter uma família. Vou colocar muita gente em risco. Se bem que, se eu perceber que estou em risco, meto bala – falou rindo. — Então você gosta mesmo da Consuelo.... — Gosto. Mas não posso. Ela é dama. E dama já foi de muita gente. Chegamos à fazenda e cada um foi para o seu canto. Deitei pensando ainda na Alzira. Ela me tratava muito bem e provavelmente fazia isso com todos os seus clientes. Ou talvez não. Acordei cedo e chamei Antônio para vistoriar o gado. Queria aproveitar e conversar com ele a respeito de Francisco. No café, perguntei por Justino, que até aquela hora não tinha aparecido. Ninguém sabia dele. Imaginei que tivesse na mina ou no pasto, já trabalhando.
— Antônio, andei pensando sobre Francisco. — O que ele fez? – perguntou ressabiado. — Nada. É só que eu observei o modo como ele brincava com os outros três uns dias atrás. Acho que ele já está na idade de conhecer o mundo e trabalhar. Gostaria que, se o senhor permitisse, Francisco trabalhasse conosco na extração de pedra preciosa. Você acha que ele gostará da proposta de emprego? O pagamento pode ser uma porcentagem das pedras encontradas por ele, mais algum em dinheiro para o caso de achar nada. — É claro. Ele vai gostar muito. E nós também – referindo-se a ele e a dona Ana. 47
— E com relação ao “conhecer o mundo”? O que o senhor acha? — Olhe, Bento... Francisco já é rapaz e mesmo assim talvez não tenha consciência do muito que está lá fora. A vida dele foi praticamente toda aqui na fazenda. Espere que ele complete 16 anos. Até lá já terei conversado com ele sobre tudo. Sentindo que o assunto tinha acabado por ali, mudei o rumo da prosa. — Muita encomenda da região? Antônio administrava todo o processo do gado. Eu só autorizava as saídas e entradas que ele combinava com os compradores. — Bom, temos um tanto. O pessoal de Monte Verde ficou sabendo do nosso trabalho e encomendou alguns bois. Precisarei do carro para entregar as partes. — Se o senhor estiver ocupado, pode pedir para Justino levar a encomenda. O lugar onde ele pega armas e balas é um pouco depois, perto de São Félix. Aí ele aproveita e faz uma viagem só. — Tudo bem. Vou ver com ele se está interessado. — Aposto que ele irá.
Voltamos do pasto e fomos esperar o almoço na varanda da casa de Antônio. Logo depois ouvimos um barulho de carro, alguém chegando à propriedade. Quem chegava era Justino e o carro era o nosso. O moço parecia um tanto quanto nervoso. — Eu vou matar você, Bento. — Você está brincando. — Sim. Estou. É modo de dizer. Depois da nossa conversa na volta para casa nessa madrugada, não consegui 48
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dormir e resolvi voltar ao Brasília para falar com Consuelo. Chegando lá procurei por ela e Raimundo disse que ela estava no quarto. Esperei, para não perder a viagem. Quando reapareceu, logo que me viu, acenou e veio ao meu encontro. Eu disse que precisava conversar com ela. E ali mesmo me desmanchei. Sou um burro. — Mas o que ela falou? – perguntei curioso. — Bom, falou que gostava muito de mim, mas que não conseguiria ser exclusiva. Sabia como era a vida de dona de casa e não se sentia atraída. Gostava mesmo era da farra, do mundo, dos homens e pedindo desculpas, ofereceu o máximo que podia: um tratamento especial para mim no Brasília. E eu aceitei. Depois de contar o caso, o nervosismo de Justino já tinha acabado e ele deu uma grande crise de riso, dizendo que era um grandessíssimo corno apaixonado. Não comentei, mas estava disposto a fazer a mesma proposta a Alzira à noite. Queria pedir para ela sair do prostíbulo e vir embora comigo. Imaginava que ela aceitaria e, na mesma hora, arrumaria suas coisas, agradeceria ao Raimundo e, feliz, seguraria em meu braço como se eu estivesse tirando-a do lugar em que ela nunca quisera entrar. Desisti.
Passamos os dois meses restantes do ano investindo na fazenda. Francisco, junto com seu pai, encontrou algumas pedras. Pequenas, mas valiosas. Com o dinheiro, pediu para que Antônio lhe comprasse uma moto. Era menor de idade, mas queria para andar somente na fazenda. Em janeiro, o menino faria 16 anos e como se fosse um presente de aniversário, pediu autorização à mãe para fazer a compra. 49
Fomos – Antônio, Justino, Francisco e eu – até Monte Verde e compramos uma moto, da escolha do menino. Era um pouco mais cara do que o dinheiro que ele tinha, mas resolvi completar o valor, como presente também. Lembro-me bem de Francisco no dia da compra da motocicleta. Estava radiante. Voltamos para a fazenda e fui sentado na frente, junto com Antônio, que dirigia o Jeep. Atrás, Justino ouvia o tralálá do jovenzinho. Numa pausa de conversa, Francisco pediu para que o jagunço o ensinasse a atirar. Repreendi-o de imediato. O pai fez sinal para que eu não falasse e justificou que desde cedo notava no garoto alguma habilidade diferente, por isso investiu na moto. E autorizava a ele aprender a atirar, se Justino quisesse ensinar. Francisco continuaria com os trabalhos na lavra, mas depois do treinamento, viraria comparsa de Justino, que se propôs a educar o menino na arte da pistolagem. E eu passei a ter dois jagunços.
Todos os dias após o café da manhã, Francisco e Justino se encaminhavam para longe e treinavam com as munições que tinham. Coincidiu que os cartuchos de balas começaram a acabar e uma encomenda de carnes ficou pronta. Justino teria que subir a serra e convidou Francisco para ir com ele. Entregariam as peças e depois passariam no distrito perto de São Félix, lá naquele bar onde ele pegou munição, quando estávamos a cavalo. Antônio encontrava-se satisfeito. Ter um filho pistoleiro era uma honra. Ainda mais discípulo de Justino, um dos homens mais temidos da região. Deixou que o menino aprendesse o ofício, seria bastante útil, já que a fazenda prosperava. 50
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Foram os dois fazer as entregas e depois recarregar as armas e pegar uma pistola para o garoto no bar do senhor Miguel. A intenção de Justino ao levar Francisco com ele era apresentá-lo ao seu tutor bélico, pois se, um dia não pudesse ir até lá, teria quem substituí-lo. Não sei como se deram as apresentações, sei somente que o menino voltou da viagem feliz e cansado. Parecia ter amadurecido cinco anos em dois dias. Tinha outra postura, completamente diferente da do menino jogando bola de meia com os irmãos no quintal antes do almoço. Epifanicamente tornou-se homem feito. Na varanda, conversei com Antônio sobre as novas responsabilidades de Francisco a partir do momento em que aceitou ser comparsa de Justino e meu capanga. Como um oráculo, reafirmou a sua certeza em deixar que o filho seguisse por esse caminho. Tanto dona Ana quanto ele sabiam que seu menino tinha nascido para esse ofício. Defender, de todas as maneiras, sua família e suas terras. Sei que não deveria, mas novamente tive a sensação de estar protegido – agora ainda mais – por ter dois pistoleiros por perto. Justino chegou, pegou um copo de café e se juntou a nós. Disse, para orgulho de Antônio, que seu filho tinha mesmo era que ser pistoleiro. A mira dele era ótima e, ao contrário de mim, o menino tinha pegado com pulso firme na primeira arma dele. O presente de 16 anos de Francisco, dado por Justino, foi um revólver. Mas ficaria retido com ele e seria entregue apenas nos dias de ação. Um nó se fez na minha garganta por pensar que aquele menino franzino ia matar alguém. Pedi para que Justino evitasse o máximo possível de deixá-lo atirar. Pedi também para que não envolvesse o carro no negócio, já que todos conheciam o automóvel. 51
A questão do veículo que os levaria para qualquer lugar já estava definida. Justino pilotaria a moto de Francisco e os dois atuariam somente assim. A moto foi providencial – imagino que Justino já tivesse pensado nisso, mas com essa grande ajuda do acaso e do menino Francisco ter querido aprender a atirar, tudo foi facilitado – para o ofício deles, já que ninguém além de nós da fazenda sabia da compra.
Há tempos eu não ia ao Brasília. Lutava contra a minha vontade de ver Alzira, lembrando sempre do que aconteceu com Justino. No sábado, dia de baile, Francisco disse ao pai que queria ir ao prostíbulo. Antônio veio conversar comigo e pedir para que eu levasse o garoto, já que era casado e depois de casado não teve com mulher nenhuma a não ser a sua. Eu estava correndo do prostíbulo como o diabo corre da cruz. Mas falando em diabo, não pude resistir à tentação de encontrar Alzira. Meu corpo pedia. Contei pra Francisco sobre a moça e prometi levá-lo à noite. Falei para chamar o Justino que, com certeza, ensinaria mais a ele que eu. Saímos os três de casa por volta das sete da noite. Francisco ansioso pela sua primeira noite e eu também. Ter que encontrar Alzira me trazia borboletas ao estômago. E Justino estava calmo como quem não tivesse preocupações. O bar estava especialmente lotado de garimpeiros de outras cidades. Tinha um conjunto musical que tocava as músicas mais famosas da época. Desde Noite Ilustrada até as músicas da Jovem Guarda, tudo era motivo para festa. Justino logo procurou uma moça e apresentou ao 52
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Francisco. Deixou que ela o levasse para o quarto, para ensinar ao menino a arte do pecado carnal. Enquanto Francisco se divertia, algo estranho aconteceu no bar. O que deveria ser somente diversão tomou outras proporções. Dois homens de outras cidades se envolveram numa briga por causa de terra. O que entendi depois do corpo de um deles no chão foi que a tal terra era bastante promissora. Os dois eram de famílias ricas, mas muito gananciosos e disputariam a tiro, se fosse preciso. Chegaram ao Brasília e gostaram da mesma moça. Aí já se viu. Um atirou no peito do outro e sumiu. Na confusão, ninguém viu quem foi. Raimundo chamou a polícia para averiguar o caso. Tiraram o corpo do homem do meio do salão e a festa, por instantes, pareceu que teria fim. Mas algum bêbado que não ouviu e nem viu o acontecido gritou lá do fundo do salão: “cadê a festa? Solta a música!”. E a banda obedeceu. Instantaneamente começaram a cantar os clássicos dos anos 1960 e tudo voltou ao normal. Fui ver se Raimundo precisava de ajuda, mas tudo já tinha sido resolvido. Grande noite para uns, pequena para outros. Enquanto Francisco estava no bem-bom, não encontrei Alzira no Brasília. Fui até Raimundo e perguntei por ela. Alzira tinha ido até Minas Gerais, visitar a sua mãe. Voltaria só na outra semana, na terça-feira, ele achava. Fiz o que me restava: bebi. Notei que Justino tinha sumido. Talvez tivesse se engraçado com Consuelo. Mas ela estava bem na mesa à minha frente e quando olhei para a porta do bar, vi o jagunço entrar. Fiz sinal para que viesse até a mim. Queria saber onde tinha ido, já que o bom da vila acontecia era ali.
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— Onde você estava? Acabou de morrer um homem aqui no bar. — Eu sei, eu estava aqui. — E por que veio lá de fora então? — Fui dar uma volta. — Volta? A pé? — Não, eu estava de moto. Com um amigo. O amigo da moto foi o que matou o homem dentro do bar. Justino estava na espreita, para levá-lo para bem longe. Depois de dizer isso, Justino chegou bem próximo a mim e continuou: — Menos um da lista política. Contou-me depois que além da briga por terra, o homem era um corrupto e ameaçava o engravatado que tinha contratado os seus serviços. E, para não alardear, o amigo dele fez o trabalho: fingiu uma confusão e matouo, para não levantar suspeita de que era crime de mando. Não poderia ser mais do que uma bala e por isso, envenenaram-na. E ele sumiu porque o pagamento era feito imediatamente após a morte. Foram buscar o dinheiro. Francisco reapareceu acabado quase três horas depois que subira para o quarto com a dama. Pediu uma bebida e, num só gole, bebeu o copo inteiro. Justino e eu rimos do garoto. Perguntamos se tinha ido tudo bem e ele disse que já tinha marcado de voltar no outro dia.
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Uma parte da lista Justino explicou a Francisco que os assassinatos cometidos por ele geralmente eram encomendados por pessoas de renome. Disse que tinha ainda sete nomes para acertar as contas, cinco numa lista – da qual um já tinha sido assassinado – e dois na outra. O rapaz ajudaria na lista dos políticos. Os nomes encomendados antes de chegar à vila, ele não tinha tanta pressa, pois outros pistoleiros – do grupo – também cuidavam dela. Os políticos eram bem visados, o que inibia a ação imediata de Francisco. O menino teria que percorrer, no auge dos seus 16 anos, todo o norte do estado em busca dos candidatos. E agir sozinho seria ainda mais difícil: pela idade, não podia pilotar. Por isso, Justino chamou-o para agir em conjunto. O plano principal era usá-lo como isca. O menino era bom de papo e, através de sua aparência – alto, magro e também pelo fato de ter bons modos – poderia fingir que era um jovem candidato a vereador e que acabara de completar 18 anos. Precisava de apoio de alguém mais experiente em sua campanha. Ofereceria muito dinheiro e atrairia, com isso, a vítima para o lugar escolhido. Não era muito difícil acreditarem em sua mentira. Fizeram assim. Antônio levou o garoto ao alfaiate e encomendou dois ternos pretos de linho e três gravatas com tons de vermelho, cinza e azul escuro, que foram arcados por Justino. Quando os ternos ficaram prontos, Francisco e Justino arrumaram as suas bolsas e se despediram de nós. Dona Ana chorou um pouco, por ter que ficar lon55
ge do filho por alguns dias pela primeira vez. Mas eram apenas alguns dias e por isso se conformou. Antônio se manteve firme e as crianças pediram presentes. Saíram bem cedo em direção ao norte, ao encontro de Miguel. A primeira parada foi somente para pegar algumas armas de calibre mais grosso e as balas envenenadas preparadas pelo tutor – agora dos dois. Miguel elogiou a compostura de Francisco e brincou dizendo que daquela forma ele chegaria até o presidente da República, se quisesse. Estava elegante demais. Foram no carro de passeio do Miguel, para não levantar suspeitas. Pegaram também uma maleta de documentos, na qual colocaram todas as munições especialmente preparadas para o evento. Seria o primeiro serviço com participação direta de Francisco. Depois dali, Justino foi diretamente até a casa de um de seus comparsas, no interior de Santo André. O homem já estava pronto para ir com eles e dar cobertura no que fosse preciso. Entraria como guarda-costas do candidato e os acompanharia até o restaurante, sugerido por Francisco, o futuro vereador de Monte Verde. No almoço, o rapaz falaria de sua vontade de comprar um terreno ali perto para começar um novo negócio. Aparentaria de todas as maneiras ser um jovem rico, despertando, através disso, o interesse do político. Continuaria a conversa das terras, dizendo que pagaria à vista a propriedade. Se fosse preciso, até ofereceria uma propina. Chegaram à cidade e procuraram pela vítima que estava na prefeitura entregando uma papelada. O homem não era candidato a nada, mas tinha influência sobre os outros. Administrava campanhas. Era um salafrário de marca maior. Fizeram tudo como o planejado. Francisco, garboso, gabou-se de sua riqueza e comentou sua vontade de ser 56
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vereador, da necessidade de alguém para ajudá-lo na campanha, da vontade de comprar as terras. Falou tanto que o homem, num impulso ganancioso, ofereceu a terra dele e disse que, saindo dali, poderiam visitá-la. Imaginou que a mala que Francisco portava já era o dinheiro para algum pagamento. Com a primeira parte do plano concluída, foram no carro do assistente político até o terreno que poderia ser a fazenda de Francisco. O homem preferiu dirigir, para ter certeza de que tudo não se passava de uma armadilha. Chegaram os dois até a terra. Justino os seguiu com o comparsa, de moto. Rapidamente o jagunço rendeu os dois e, com uma arma apontada para o corrupto, Francisco amarrou suas mãos e seus pés. O comparsa chegou logo em seguida, jogou uma muda de roupa velha em Francisco e disse que era para ele se trocar rapidamente. Olhou nos olhos do homem com as mãos amarradas, disse que só estava cumprindo ordens e que mandaram lhe dizer que aquilo era um pagamento por tudo o que tinha roubado. Justino cavava a cova e Francisco foi ajudá-lo. Quando terminaram, o comparsa disparou o primeiro tiro e, num impulso, Francisco virou o rosto para não ver. Mais dois tiros e, com o corpo ainda quente, desataram seus membros e arremessaram o homem para dentro do buraco. Francisco acabou de enterrar e socar a terra, evitando os vestígios maiores. Terminado o serviço, o comparsa recebeu sua quantia, agradeceu por ter participado e rumou para sua casa. Francisco, ainda meio abalado, entrou no carro e Justino os conduziu até o bar de Miguel. Francisco sentiu culpa depois de ter matado o homem. Tinha matado, para ele. Ter fingido ser político, seduzido com dinheiro e levado a vítima até a terra para 57
aniquilá-la já era, para ele, um assassinato. Tapar o buraco também era culposo. Imaginava que nunca seria livrado da culpa eterna por ter participado do crime. Matar não era libertador e nem honroso. Quis sumir. Mas não podia mais. Entrou na vida de pistolagem e já seria reconhecido por mais um além de Justino. E sentia o dever de ajudar a proteger a fazenda dos ladrões que porventura poderiam surgir na corrida do garimpo.
Com o turbilhão de pensamentos a respeito do que tinha feito, Francisco voltou calado para a terra de Miguel. Ainda estava abalado, mas por não querer decepcionar Justino, falou com firmeza sobre o acontecido quando foi perguntado, dando a impressão de que a sensatez e a discrição de quem lhe ensinou a atirar já faziam parte dele. Virou motivo de orgulho. Francisco pediu para tomar um banho antes de sair. Justino estava atônito, esperou pelo menino conversando aceleradamente, atropelando suas próprias palavras. Miguel sabia, pelo comportamento do jagunço, que tudo tinha sido um sucesso. Depois de entregar o carro, pegaram a moto e voltaram para a fazenda. Francisco teve o mesmo comportamento quando perguntado sobre o dia. Disse, além do acontecido, que estava cansado e foi deitar. Com o primeiro cantar do galo, Francisco se levantou, lavou o rosto e resolveu fazer o café. Sentia-se diferente. Dona Ana levantou cedo também e, numa conversa rápida com o filho, orientou-o a não se prender ao que tinha feito. Era o seu trabalho. Deveria esquecer o dia anterior e começar um novo, junto com o sol. 58
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Tomou o seu café e decidiu se afastar durante a manhã. Queria pensar no que havia feito e no que ainda haveria de fazer. Existia um contrato verbal e ele não poderia descumprir. Seria motivo de vergonha para todos, que a essa hora já estavam orgulhosos. O menino recebia bem pelo que fazia. Entregava grande parte do dinheiro para dona Ana, que investia na família. Pegou a pá, a picareta, seu revólver por precaução e foi para o garimpo. Por lá ficou durante toda a manhã, quebrando a terra, cavando. Assim como cada pedaço de terra no chão, pensava que não poderia voltar atrás. Ali mesmo se conformou com o destino. Ficou, por instantes, nervoso. E descontou no material de trabalho. Pegou a picareta e fincou-a com toda a força na parede de terra que reagiu, não deixando que o instrumento se encaixasse nela. Assustado, esqueceu-se de tudo. Alguma pedra tinha ali, já que não tinha conseguido furar a terra. Devagar foi tirando a terra que envolvia a pedra. Resolveu voltar até a casa e chamar seu pai e, com sua ajuda, conseguiu extrair a segunda pedra, ainda mais azul e maior que a primeira. Levaram a pedra até a varanda da casa de Antônio e logo me gritaram para ir até lá. Levantei-me no pulo e corri, ainda bagunçado pelo sono e quando avistei a pedra, achei que ainda sonhava. Fiquei ainda mais maravilhado do que da primeira vez. Essa segunda pedra era como a descrita pela mulher do sonho. Havia mesmo a tal pedra. E estava lá, na mesa de Antônio. Abracei os dois e agradeci muito ao garoto pela bamburrada. Ele também estava feliz e parecia em êxtase. Voltou a ser o Francisco de antes. Essa nova fase da vida dele orgulhava a todos. Decidi vender a primeira pedra e guardar a nova. A azulada valia muito mais de cem milhões de cruzados, a moeda da época, e tinha quase duas arrobas. Reforcei a segurança do cofre. Naquela época estávamos bem 59
de vida. Não precisaríamos vender as duas pedras e o dinheiro arrecadado com a primeira daria para investir na agropecuária. Com Antônio e Justino, decidi que deveríamos plantar café e contratar funcionários para cuidar do gado. Antônio cuidaria dos novos trabalhadores, pois sabia quem era de confiança na região. Entreguei a ele o dinheiro suficiente para que comprasse um caminhão e o equipasse com o necessário para transportar o gado. Escolhemos o Conilon para ser o café produzido em nossa fazenda. Fizemos o coveamento e vimos que o terreno tinha boa densidade para o plantio. Na época certa, depositamos as sementes e direcionamos alguns contratados para cuidar do processo de adubação e acompanhar o desenvolvimento da plantação.
Todo o processo demorou alguns meses, mas nossa fazenda crescia muito bem. Vendíamos o gado – tanto vivo quanto abatido, as pequenas pedras preciosas encontradas na lavra e começamos a ensacar o café. Recebíamos encomendas de todo o estado. Para o nosso contentamento, chegou rede telefônica na cidade. Pudemos instalar uma linha fixa na fazenda e as encomendas passaram a ser feitas também por ela. Decidimos colocar o aparelho na casa de dona Ana e ela seria a encarregada por anotar todas as encomendas e contatos. Tudo corria muito bem até que numa sexta-feira Antônio decidiu ir ao cafezal pagar os empregados. Como todos começavam a trabalhar antes do completo amanhecer e estava chegando a hora do almoço, resolveu dispensar os homens, para começarem o final de semana mais cedo. Poderia guardar o material de trabalho sozinho. 60
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Quando chegava perto do galpão, foi rendido por um homem jamais visto nessa região. O sujeito já chegou dizendo que era pistoleiro e que, se ele não fizesse o ordenado, receberia chumbo. E do grosso. Com a arma apontada para a cabeça de Antônio, mandou-o entrar no galpão e pegar algum automóvel para que pudesse fugir. O ladrão só não contava com o acaso. Francisco estava cochilando por entre os pés de café quando ouviu o barulho. Levantou vagarosamente e pode observar seu pai na mira do calibre. Sem pensar duas vezes, sacou seu revólver e mirou também na cabeça do ladrão. Foi acompanhando seus passos e, quando seu pai entrou no galpão para pegar a moto e entregá-la ao bandido, disparou um tiro que acertou as costas do ladrão. Quando o ladrão caiu, Francisco correu, pegou a arma que estava no chão, deu mais um tiro por prevenção e colocou a pistola na a cintura. Foi chorando ao encontro de seu pai, pedindo desculpas ao mesmo tempo em que o abraçava. Ouvindo os tiros, corri com Justino para o cafezal. Chegando lá, vi somente o cadáver no chão. Fui checar o galpão e lá estavam os dois, pai e filho, intactos. Justino, arrancando Francisco de seu pai, agradeceu-o com um abraço sincero por ter eliminado, mesmo sem saber, um bandido da sua lista antiga. O morto era um fugitivo, rival de Justino.
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Novos tempos Tudo evoluía, a fazenda cada dia dava mais lucros e todos estavam satisfeitos. Menos eu. Decidi, sem falar com ninguém, que deveria rever Alzira. Fui um covarde quando decidi me afastar do prostíbulo. Justino ter chegado furioso contando o não que tinha recebido de Consuelo quando propôs o ajuntamento dos dois foi o ponto final da história que eu mal acabara de começar. Fui até o centro negociar a pedra encontrada por Justino. Existia um fazendeiro interessado nela e achei que seria ótima oportunidade de venda. Chamei Antônio para me acompanhar na empreitada, já que ele era muito mais experiente que eu nesse negócio. Saímos após o almoço, tínhamos hora marcada para a reunião. Chegando ao destino, conversamos sobre a lavra, a agropecuária e o lucro da fazenda, oferecemos os serviços para o fazendeiro e negociamos a pedra por alguns milhões de cruzados. Quando o negócio foi feito, pedi para que Antônio me esperasse, porque eu tinha que visitar o Brasília. Raimundo me recebeu, mesmo sendo ainda antes do horário. Nada tinha de muito diferente desde a última vez que eu tinha ido lá. Só algumas mulheres novas, que chegaram de outras cidades. Sugeriu para que eu ficasse até a noite. Contei a ele da minha vontade de encontrar Alzira. Ele disse que o estado da moça não era dos melhores e seria bom que conversássemos. E ali mesmo do bar gritou por ela, que prontamente apontou da sacada, res62
pondendo-o. Desceu as escadas correndo, veio em minha direção. Subimos.
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Justino e Francisco ficavam cada vez mais amigos. O mais novo começava a pegar gosto, depois de ter matado o ladrão que mataria seu pai, por atirar. Depois daquela eventual morte, os dois cuidaram do corpo. Ninguém sabe, ninguém viu onde o levaram. Quando tudo estava normalizado, os dois combinaram de ir atrás de mais gente da lista do Justino. Os dois devem ter sumido durante um bom tempo, não me lembro ao certo. Avisaram para nós que ficariam de tocaia numa terra próxima a Monte Verde, vizinha da fazenda que foi tomada e acertariam as contas com dois criminosos da redondeza. Dias passados e nada de voltarem. Dona Ana chegou a pensar no pior. Eu, como já tinha viajado com Justino, sabia que o curso poderia ter mudado e esperei que aparecessem. Quando estava perto de completar um mês que ninguém sabia deles, chegaram os dois na moto de Francisco. A mãe foi logo saber o porquê de tanta demora e o pequeno mostrou, levantando a blusa, o que quase lhe tirou a vida: um tiro no abdome. Desesperada, dona Ana implorou para que o filho saísse da vida que levava, mas sem sucesso. O menino até tinha achado divertido levar o tiro, pois parecia que ele estava num duelo de verdade. E tinha levado a melhor. Francisco foi com muita sede ao pote e não viu que o pai do rapaz estava de longe, a observá-los. Chegou maltrapilho perto do jovem, pedindo-lhe emprego. Disse que a vida estava difícil e precisava de algum trocado para sobreviver. Foi chegando perto do outro, que sem 63
muito desconfiar, deu trela. Disse que poderia ver com o pai alguma coisa que lhe fosse útil. Ainda no fingimento, Francisco abraçou-o, como num gesto humilde. Pegou a arma e atirou de baixo pra cima, furando desde a barriga até o coração. No ouvido do rapaz, disse somente que a dívida da família custava o seu sangue e que a partir daquela hora, tudo estava acertado. O fazendeiro logo se assustou com o tiro e viu seu filho sendo jogado ao chão. Estava armado e era bom de tiro. Mirou em Francisco, mas na mesma hora em que atirou, o menino virou o corpo e por essa sorte, o tiro pegou de raspão. Justino socorreu o rapaz que, sangrando, subiu na moto e sumiu. A missão ficou pela metade. O tempo do sumiço foi para cuidar do garoto, fazer com que ninguém sequer desconfiasse do que havia acontecido. As fazendas naquela época não eram muito movimentadas e nessa só morava a família. Voltariam para matar o pai. Curado e em casa, Francisco sentia sede de vingança. Queria a qualquer custo, voltar até a fazenda e devolver o tiro que o pai do rapaz tinha lhe dado. Cada dia que se passava, o menino gostava ainda mais do que fazia, talvez até mais do que Justino. Resolveu que, a partir dali, também agiria por conta própria. Mas era um menino ainda. Não contava para ninguém além de mim sobre a vontade que tinha. Ao mesmo tempo, era amável e dedicado à família. Quem o encontrasse pela cidade, nunca desconfiaria do seu trabalho. Para todos, era apenas mais um lavrista que também cuidava de gado. Trabalhava na roça, junto com seu pai. Pedi para que ele não fosse sozinho, sua mãe ainda estava abalada com o tiro de raspão. Pedi também para que me avisasse de tudo o que faria dali pra frente. Queria tempos e prazos, para providenciar algo, se necessário fosse. Ficamos combinados. 64
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Logo depois, encontrei-me com Antônio que resumiu o dia. Informou-me que havia gente de fora do estado querendo comprar do nosso gado, 800 cabeças. E pagariam à vista, o que muito nos agradou. Relembrei que começamos com um número inferior a esse e que, enfim, estava tudo conforme o meu planejamento.
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Nessa época, Justino ainda ia ao Brasília e tinha uma espécie de relacionamento duradouro com Consuelo, mas ninguém entendeu – ou não quis entender. O moço era muito evoluído para nossa época. Francisco estava cada dia mais apaixonado pela profissão e vivia para ela: assumiu o lugar de Justino, que dava mais ordens do que (as) executava. As outras crianças de dona Ana e Antônio já frequentavam a escola do centro da cidade e o casal levava e buscava os pequenos, todos os dias. Quando não estavam fazendo isso, cuidavam do trabalho leve da roça. Contratamos pessoas mais jovens para cuidar do café e do gado. Deixamos que os trabalhadores fizessem suas casas na fazenda, que passou a ter vizinhança. Havia mais gente, mais criança, mais festa e mais amigos. Além disso, viramos referência quando o assunto era comercialização de carne bovina. O dinheiro que ganhamos com isso dava para pagar os funcionários e comprar novas máquinas para a fazenda. Antônio cuida, até hoje, dessas tarefas administrativas – não confia em mais ninguém para fazê-las.
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A volta para o centro Nunca fui adepto a religiões, mas tive vontade de voltar ao Centro, em busca de uma pista sobre a pedra da lenda. Tive vontade de voltar a me dedicar à lavra, motivo principal que me fez mudar para a fazenda. Só que a lavra até então tinha dado exatamente o que a mãe de santo havia me dito. Uma pedra no alto e outra maior que a primeira. Lembrei-me dela confirmando que havia uma terceira, ainda maior, na região. Chamei Justino e Francisco para me acompanharem na ida para o norte, mas dessa vez de carro. Gastaríamos um final de semana, indo ao sábado, dormindo por lá e voltando no domingo, após a cerimônia. Francisco não pode ir. O final de semana da viagem era o que ele tinha combinado com outro capanga de armarem a emboscada para o homem que tinha lhe acertado o tiro. Restou-me o Justino, que prontamente aceitou. Fazia tempos que ele não visitava o terreiro. Ajeitamos todas as coisas e saímos depois do almoço. Chegamos ao destino já era noite. Todos nos receberam ainda melhor do que da primeira vez. E, ao contrário da primeira, estávamos limpos e bem vestidos, comparação pela qual viramos alvo de brincadeiras. Sentindo-me em casa, já tirei do bagageiro do carro uma grande peça do boi abatido um dia antes e entregueia ao dono da casa. Ele agradeceu e cortou um pedaço, acendeu o fogo e fizemos um petisco para beliscarmos. Depois de bebermos e comermos, decidimos descansar. 69
Eu queria reencontrar aquela mãe de santo – ou o espírito que estava nela – e perguntar onde estava a terceira pedra. Justino sabia disso e também procurava pela mesma resposta. Apesar de pistoleiro, era lavrista. Compartilhava dos mesmos anseios que Antônio, Francisco e eu. Na altura da vida, não éramos mais empregados e funcionários, já tínhamos virado uma família. Todo o dinheiro das pedras vendidas era dividido. Todos sabiam a senha do cofre. Todos defendiam a fazenda da mesma forma. A segunda viagem para o norte me fez relembrar de muita coisa. Pensei no rumo da vida, nos meus pais falecidos, na grande família construída. Éramos, Justino, Francisco, Rosa, Carlos, Lúcio e eu, irmãos. Antônio cuidava dos três adotivos da mesma forma que cuidava dos seus três filhos biológicos. Não tínhamos nem fazíamos distinções. Eu estava satisfeito com tudo, mas sabe como é a vida do lavrista: quer sempre achar uma pedra maior do que a anterior e, a única pista que tive foi a que a mãe de santo me deu, anos antes da segunda visita. Precisava tentar a sorte. Esperei pela cerimônia do domingo de manhã. Sentei, desta vez, à mesa, como Justino.
— Que bom que você voltou, Mizifio. E com um tapa nas costas, Justino mandou que eu conversasse com o espírito. — V-voltei para pedir ajuda. — Mizifio é um moço muito abençoado. Deve saber que toda ajuda que pedir, terá. E um pouco mais calmo, continuei: — Graças à sua ajuda consegui encontrar uma pedra que garantiu o sustento da minha família inteira por muito tempo. E tem dado tudo certo na fazenda. Só que, 70
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mesmo com tudo o que já aconteceu, ainda tenho vontade de encontrar a terceira pedra, a que todo mundo ouve falar, mas ninguém sabe onde está. — As coisas não são tão fáceis quanto parecem. Até vocês encontrarem essa pedra, muito ainda tem que acontecer... Muitos ciclos devem ser fechados. Dessa vez, ninguém veio falar comigo depois da mesa e a decepção foi parecida com a primeira vez em que fui ao centro. Só recebemos a confirmação de que existe uma terceira pedra, ainda maior que as duas anteriores. E confirmação por confirmação, qualquer um pode confirmar, até eu confirmaria. Mas Justino, um homem de fé, acreditava em tudo o que acontecera lá. Voltamos para casa conversando sobre o que ouvimos e presenciamos e também sobre as listas. Há tempos que esse assunto não era pautado. Estava tudo indo bem. Faltavam apenas alguns dos nomes, mas o que intrigava Justino era que ele não fazia ideia do paradeiro do homem que matou seu irmão. E ele não queria morrer sem cumprir a tarefa de se vingar pela morte do caçula da sua família. Mas disse que só se preocuparia de fato quando terminasse com os serviços já recebidos. Chegamos à fazenda e decidi ir até a lavra sozinho, para refletir sobre tudo o que ouvi na celebração. Eu não acreditava tanto quanto Justino, mas talvez pela fé dele comecei a crer que realmente a grande pedra estava na região. Enquanto procurava pedras menores, lavrava, pensando onde seria a região dita pelo espírito. Poderia não ser na minha terra, claro. Região pode ser muito lugar. Mas ao mesmo tempo em que desacreditava na ideia, não entendia o motivo pelo qual o espírito falou comigo as duas vezes, insinuando que eu deveria continuar procurando. Talvez a pedra estivesse realmente aqui. Decidi deixar as coisas como estavam. 71
A outra parte da lista Francisco me contou alguns dias depois qual foi a estratégia para matar o homem que lhe acertou o tiro na barriga. Junto com o camarada amigo do Justino, observaram a rotina do homem por dois dias. No terceiro, esperaram a noite cair e as luzes da casa se apagarem. No escuro, foram até o que imaginavam ser o quarto dele, mas não esperavam encontrar uma mulher no mesmo ambiente – um detalhe importantíssimo que os dois se esqueceram de pensar. Decidiram então deixar a morte, ali na porta, para outro dia. Só que Francisco, além de bom atirador, dava-se também ao desastre. Na saída, esbarrou num jarro que caiu de uma estante, fazendo um verdadeiro estardalhaço. Correram os dois pela grama do lado de fora da fazenda e subiram na moto, dando a entender que realmente tinha algum ladrão ou pistoleiro na casa. Com a frustrada ação do menino, Justino decidiu assumir o trabalho. Disse que esperaria os ânimos baixarem para agir novamente. Certo dia, quando Justino e Francisco estavam no Brasília, um dos capangas veio dizer aos dois que o outro fugitivo por quem procuravam estava perto de São João. Decidiram, na mesma hora, ir até lá, de carro. Justino aproveitaria para passar no bar do Miguel e recarregar o estoque das balas envenenadas, que estava no fim. Antes mesmo do almoço, já chegaram ao bar e atualizaram Miguel dos fatos. Ele contou ainda que um homem passou por ali outro dia e se comportou de forma 72
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estranha. Toda hora olhava para os lados, como se fugisse ou procurasse alguém. Parecia querer roubar. Devia ser mesmo o homem que procuravam. Justino contou que havia recebido o recado de que o homem estava por ali, um pouco mais próximo de Monte Verde. Decidiu seguir viagem e subiu a serra. Não foi tão difícil achar o camarada. Na primeira hora de chegada ao local, encontraram-no no bar e puxaram conversa, pedindo bebidas. Ofereceram ao moço, como cortesia. Engrenaram num papo muito bom até o anoitecer. Justino pediu para que o dono do bar trocasse suas doses de cachaça por água, sem que ninguém além dele percebesse. Quando viu que o homem já estava mais pra lá do que pra cá, resolveu oferecer carona para ele até a sua casa. O moço todo desconfiado, passou de desconhecido a amigo de Justino e Francisco. Foram os três. Francisco, assim que entrou no carro, dormiu, para o desgosto de todos. O outro moço, Justino fez questão de fazê-lo ficar desperto. No meio da serra, parou o carro, pediu para que o indivíduo descesse e disse que era ali o fim da jornada. A casa deles era a última luz do alto de um morrinho, que não dava para levar o carro. Convidou-o para entrar na mata e ir até lá. No início do caminho, sacou a arma e atirou, matando o fugitivo e acordando Francisco, ainda no carro. Levou o corpo até a ribanceira, passando pela estrada e por Francisco, meio bêbado. Pediu para que o menino empurrasse o corpo morro abaixo. Voltaram para a fazenda.
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Detalhes Depois de me contar todo o episódio do dia anterior, Justino se lembrou da lista que já estava quase no fim e, consequentemente, do motivo principal de tudo o que acontecera até aquele dia de sua vida. Ele precisava encontrar o assassino do seu irmão. Aurélio era um garoto, ainda não tinha 17 anos completos. Queria se casar com uma menina lá pras bandas de Minas Gerais e ter, no mínimo, cinco filhos. Moça de família respeitada na cidade. Família política. Ele ia à igreja todo domingo para encontrá-la. Tinha sonhos. Queria ser pistoleiro, mas por devoção ao seu irmão, por quem tinha o mais sincero respeito. E tudo acabou cedo, com o mesmo veneno das balas de Justino, que guardava um profundo rancor pelo assassino de seu irmão, mesmo sem saber quem era. Um dos informantes de Justino ouviu dizer que um homem com as mesmas características do assassino tinha se mudado para o centro da cidade havia alguns meses e foi até a fazenda alertá-lo. O jagunço ficou obcecado pela ideia de matar o indivíduo. Queria saber exatamente da sua rotina para não falhar. Decidiu que, antes de tudo, aproximar-se-ia dele, numa conversa bastante informal, descobriria seus interesses e esperaria o momento certo para descobrir qual o motivo que o levou a matar Aurélio. E, como pensado, seguiu-o. Descobriu que o tal homem construía perto da igreja, atrás da praça do centro 74
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da cidade, um ponto de comércio. Só não sabia do que se tratava, mas já era algo certo. Ele tinha fixado residência, o que muito colaborava. Certo dia, quando Justino chegou ao Brasília, avistou o homem de longe e instantaneamente pegou o revólver que estava em sua cintura. Conteve-se da vontade de atirar dali mesmo e, sem demonstrar, chegou até o balcão, pedindo a mesma bebida do sujeito. Puxou assunto perguntando se o moço era turista. Emendaram uma conversa atrás da outra, falaram sobre negócios, investimentos, dinheiro. O homem foi para um dos quartos e Justino o esperou pacientemente. Voltaram a conversar, mas nada sobre pistolagem. Era muito cedo para esse contato. Naquela noite, Consuelo não teve Justino, que só queria saber do assassino.
Pela manhã, Justino contou a Francisco que tinha encontrado a última vítima de sua lista pessoal e sentia que depois de matá-la, seu irmão poderia descansar em paz. Francisco considerava Justino e também se sentiu no dever de acabar com a vida do homem, o que foi instantaneamente reprovado por Justino. Ele queria fazer tudo sozinho. Explicou para o garoto que se aproximaria com cautela e tentaria virar amigo do assassino. Talvez até convidá-lo para algum serviço, no intuito de gerar um pacto de confiança entre os dois. Pensou nos mínimos detalhes, para que nada desse errado. Justino ansiava pela tarde, hora que sairia em direção ao prostíbulo, com a esperança de encontrar Tobias. Apresentou, no segundo dia, as mulheres do Brasília 75
para ele e caracterizou todas com quem havia dormido. Disse que ele poderia escolher qualquer uma, menos Consuelo, que era a sua dama. Alguns dias se passaram e os dois se encontravam no Brasília constantemente. Francisco, que também ia, mas numa frequência menor, fingia não saber da história, a pedido de Justino. Numa dessas idas, quando estavam os três, Francisco perguntou a profissão de Tobias, que disse ser banqueiro. E era mesmo. O tal comércio seria o primeiro banco a ser instalado na cidade. Conversaram e beberam mais, até que Tobias confessou gostar de liberar o estresse com caçadas. E que também ganhava um dinheiro extra matando pessoas. De dia bancário, à noite pistoleiro. Desencadearam um papo que varou a madrugada, sobre casos diferentes, divertidos, grandes e pequenas encomendas, quantos serviços já tinham sido feitos por eles. Francisco, já meio tonto, se engraçou com uma dama e resolveu subir para o quarto. Os dois continuaram conversando. Aproveitando o momento, Justino inventou uma história de ter matado um garoto uma vez, por briga, e perguntou quantos anos tinha a vítima mais nova de Tobias. Tobias descreveu um menino franzino, de aproximadamente 16 anos. Pele queimada de sol e cabelo liso, de corte índio e um olhar inocente, sonhador. Exatamente como Aurélio. Justino esqueceu-se da dor e perguntoulhe onde tinha sido. O homem continuou dizendo que nas Minas Gerais, aproximadamente cinco anos antes, havia um político muito rico que prezava as filhas e a esposa. E descobriu que um garoto havia tirado a honra de sua família através de sua filha mais nova. Mesmo a menina dizendo para o pai que os dois se casariam porque estavam apaixonados e nasceram um para o outro 76
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e que fora ela quem decidiu não esperar o casamento, não teve outra reação o pai. Mandou matar o garoto. Enquanto contava a história, Justino se esqueceu do ódio que manteve a partir do momento que soubera que Tobias estava na cidade e era ele quem tinha atirado no irmão. A profissão dos dois – de Justino e de Tobias – era a mesma. Matavam por encomenda. Descobrindo que o verdadeiro assassino de seu irmão era o tal político, quis saber mais, alegando que a história estava interessante. Tobias continuou dizendo que a filha do tal político jamais se casou e rezava a lenda que ela ainda era apaixonada por Aurélio. Mas teve um filho, o resultado do romance com o garoto (isso ele soube depois pelo próprio político, que já tinha se tornado prefeito da cidade onde tudo aconteceu, numa visita que fez à casa da família). Embasbacado e sem pensar direito, Justino pediu licença a Tobias e foi se encontrar com Consuelo, para ver se colocava as ideias no lugar. Tobias também se engraçou com uma dama e foi para o quarto. Francisco desceu sozinho para o salão e pediu uma bebida forte. A bebida alimentava ainda mais o ódio que ele achava que sentia por Tobias, por suspeitar que ele era o assassino de Aurélio. Quando Tobias descia as escadas do Brasília, Francisco, meio tonto, gritou por ele, que olhou imediatamente para a arma apontada em sua direção. Todas as mulheres entraram em desespero, gritaram e correram, com medo do que pudesse acontecer. A música parou e alguns tentaram conter o garoto, que estava em estado de fúria. Justino, ouvindo o alvoroço, decidiu se vestir e sair do quarto para ver o que acontecia. Num reflexo, também sacou a arma e apontou para Francisco, que mantinha em punho a arma apontada para Tobias, que não estava armado. 77
Justino pedia para que Francisco não atirasse, porque senão ele seria obrigado a fazer isso também. Ele estaria atirando num inocente, o que era contra todas as regras dele. E caso atirasse, teria que pagar com seu sangue. Mesmo com tudo dito e a arma ainda apontada, Francisco atirou e Justino também.
Todos correram desesperados pelo salão e foram embora. Restaram somente Raimundo e Justino, que imediatamente foram socorrer Francisco e Tobias. Francisco levou um tiro no braço que fez com que a bala desviasse do seu rumo certeiro – ou quase, já que estava bêbado. Acertou a perna de Tobias, que não entendeu o motivo da tentativa de assassinato, já que o garoto se mostrou amigo desde o início. Raimundo decidiu buscar o médico da cidade e deixou os três sozinhos no salão. Com raiva, Justino explicou aos berros para Francisco quem realmente era Tobias. Depois de tudo entendido, os três acharam a situação até divertida. O tiro no braço fez com que Francisco voltasse à consciência e entendesse que o assassino de Aurélio não era Tobias. Mais do que nunca, Francisco e Justino queriam vingança. E tinham como chegar até o tal político. Tobias era o caminho. Depois do episódio no Brasília, todos sabiam quem era Francisco e os que ainda tinham dúvida da profissão de Justino pararam de ter naquela noite. Eu fiquei mais ainda na fazenda após esse dia. Sabia das histórias através de Justino, Francisco e Tobias, que ainda vem aqui de quando em vez. Com o tempo, viramos amigos.
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Gerais Francisco, Justino e Tobias resolveram viajar, no carro do terceiro, para as Minas Gerais. Tobias tinha prometido levar Justino para conhecer o tal homem que encomendou a morte de Aurélio. Combinaram a mesma estratégia que Justino utilizou para se aproximar do banqueiro, mas dessa vez com assuntos relacionados à lavra e à venda de pedras preciosas. Francisco seria o negociante e irmão mais novo de Justino. Chegaram à cidade, todos muito bem vestidos, aparentando até mais do que tinham. Foram à prefeitura, mas o prefeito não estava. Tobias mandou levar recado a ele, dizendo que estava lá com um amigo antigo que trabalhava com pedras preciosas, assunto que era interesse de ambos. O recado foi dado e receberam outro de volta. O prefeito mandou que Tobias levasse o amigo à casa dele, pois não voltaria à prefeitura naquele dia. Se tivessem combinado, não sairia tão certo. Foram os três para casa do prefeito, numa fazenda mais afastada do centro, assim como a nossa. Chegaram. Tobias abraçou o dono da casa e apresentou-lhe Francisco e Justino, os homens das pedras preciosas. Quando Justino começou a mostrar as pequenas pedras que tinha levado como modelo, um menino magrinho, franzino igual ao seu irmão, de cabelo liso e corte índio passou correndo pela sala. Vendo as visitas, parou curioso. Quis entrar no assunto, era muito esperto. Mas foi reprovado pelo avô. 79
Aquele primeiro contato com a criança deu a sensação de que Aurélio ainda vivia, mesmo que fosse noutro corpo, no corpo de seu filho. Continuaram a olhar as pedras e, como tinham todas na fazenda, Justino prometeu voltar à Minas Gerais logo, para trazer as encomendas. Justino tinha agora um motivo maior do que todos os outros: seu sobrinho, idêntico ao irmão quando tinha a mesma idade dele. Até a voz era parecida. Ficou impressionado com tamanha semelhança. Queria voltar lá, antes de tudo, pela criança. Queria tentar uma aproximação.
Quando voltou à casa do assassino do seu irmão, Justino não deixou transparecer em momento algum qual era seu maior objetivo. Fez negócio, vendeu as pedras encomendadas – fez questão de levá-las exatamente como tinham sido pedidas – e conversou bastante sobre outros assuntos. Não pareceu ser pistoleiro. Tinha ficado até a hora do almoço na prefeitura e recebeu um convite de ir até a fazenda para almoçar. Estava com fome, não podia negar. E finalmente conheceu Marta, a mãe de seu sobrinho. O menininho, após avistar Justino, correu para encontrá-lo, para estranheza da mãe do garoto. E com a recepção calorosa do pequeno, Marta começou a analisar Justino e achou algumas semelhanças com relação ao comportamento de Aurélio, quando os dois ainda namoravam. A forma com que o moço começava uma conversa e sua voz lembrava muito o falecido. A partir dessas semelhanças, Marta pensou que pudesse reviver o que teve com Aurélio. E talvez Justino fosse o homem certo. Era trabalhador, simpático e bom de assunto. Deveria ser um bom pai também. Resolveu 80
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investir no coitado. E ele já tinha gostado dela, mas estava focado no trabalho. Por educação, conversou com a moça todas as vezes que fora solicitado. Antes não tivesse feito. O moço era de um enrabichar fácil e com ela não foi diferente. Ainda bem que Justino não era homem da vida, porque senão ia viver apaixonado pelo mundo. Justino não se envolveu assumidamente com a jovem. Ela tinha todas as qualidades e provavelmente seria uma boa esposa. Um dos motivos pelos quais ela queria sair de casa – e sair de casa era a mesma coisa que casar – era o mau trato do pai. Desde que engravidou, perdeu todo o prestígio, seu pai a tratava com indiferença. Mas isso não ia durar muito tempo.
Justino começou a fazer visitas semanais à fazenda e ganhou tanta confiança que nem precisava do chefe da família estar em casa para ele aparecer. Era uma alegria quando chegava à casa, sempre levava presentes para o garotinho. Nunca mencionou Aurélio e sabia que o irmão entenderia o que teria de fazer. Aproveitou um momento que estava sozinho com Marta e resolveu beijá-la. Desde quando Aurélio morreu, ninguém mais tinha tomado essas liberdades com ela. Como Justino não era boa bisca, foi logo levando a moça para algum lugar da casa onde não pudessem encontrá-los. Ficou assim durante um tempo. Os dois trocavam coincidências, conveniências e confidências. O relacionamento deles, se é que posso dizer assim, foi ficando forte, mas Justino hora alguma se esqueceu de Consuelo. Marta estava enamorada e adorava a forma como as coisas seguiam. Depois de alguns meses, a jovem resolveu contar a Justino sobre a vida do pai do filho dela. Vida essa que 81
o pistoleiro sabia de cor. E contou a história de que Aurélio tinha sido assassinado, mas não sabia por quem e nem o porquê. Justino ficou um pouco atordoado como sempre ficava quando ouvia ou pensava em seu irmão. Sabia que podia confiar em Marta e por isso decidiu contá-la a verdade. Disse a ela que Aurélio era seu irmão e que, sem mais nem menos, tiraram a vida dele. E, por isso, ele vinha peregrinando desde a época em que o garoto morreu até aqueles dias atrás do mandante do crime. Contou ainda que sentia um vazio no peito que só seria preenchido com uma bala em outro peito. Ele tinha sede de vingança. E a vida foi muito boa com ele quando decidiu mostrar Tobias, o pistoleiro que tinha acertado seu irmão – que ela até aquele dia não sabia – e, através de Tobias, tivesse sabido da verdade. Contou a ela quem realmente era o assassino. Quando mexemos em gavetas, as coisas guardadas há muito tempo sempre tem cheiro. E esses cheiros nos levam ao passado. A conversa foi uma abertura de gaveta para Marta, que agora sabia quem tinha matado o grande amor de sua vida. A moça foi tomada por uma grande revolta e, talvez por influência indireta de Justino, quis se vingar do pai, homem que só fez mal a ela durante todo esse tempo. Por que não forçou o casamento dos dois, como sempre acontecia quando uma moça ficava grávida do seu namorado? Os dois já iriam se casar de qualquer forma. Não entendia o motivo que levou o pai a mandar matar Aurélio, um rapaz tão bom e correto. Deveria ter matado a ela, que foi quem provocou tudo. Justino e Marta agora se juntaram, não para continuar a família já iniciada, mas para terminar o que o pai da moça tinha começado. Foi doloroso para ela saber que o 82
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pai seria assassinado, mas o que doía mais era a morte de sua vida. Era uma mulher sem planos, sem vontades. Justino foi a esperança dela que, após saber de toda a verdade, preferiu se fechar novamente. Os dois deixaram o coração de lado para virar comparsas. Combinaram que quando tivesse tudo certo, os dois agiriam juntos. E Justino voltaria lá algumas vezes, agora menos, para visitá-los – o sobrinho e ela. Gostou muito do menino, era o reflexo do irmão. E, como sua crença permitia, acreditava até que o pequeno poderia ser o irmão novamente. Queria preservar essa imagem. Marta não precisaria mais pensar em casar para sair de casa. Aquela fazenda não teria dono, já que suas irmãs eram casadas e sua mãe tinha falecido. Tudo continuaria da mesma maneira, mas sem o seu pai – o que para ela seria muito melhor. Poderia administrar a fazenda e seguir sua vida da maneira que bem entendesse.
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O plano Justino articulou sozinho o plano e foi até a fazenda contar para Marta, que o ajudou a modificar alguns detalhes. Sugeriu que fingissem um namoro, para aproximá-lo ainda mais do pai dela. E assim fizeram. O prefeito era um homem não muito correto, se assim posso dizer. E devido a isso, tinha pessoas que cuidavam de sua segurança. Alguns pistoleiros ficavam sempre no mesmo lugar que ele, mesmo que ninguém os visse. Estavam prontos para qualquer evento, o que dificultava muito o desenvolvimento do plano. Mesmo com todos os obstáculos, Justino pediu para conversar com o pai de Marta. O homem logo pensou nas pedras preciosas e chamou-o ao seu escritório. Justino contou quais eram suas reais intenções com Marta, o que agradou ao outro. Foi advertido que se fizesse alguma coisa de errado, pagaria caro. A filha já fora desonrada uma vez e ele não queria mais vergonha naquela casa. Tentou coibir Justino com a história de Aurélio, o que o enfureceu ainda mais e fez com que ele tivesse vontade de acabar com tudo de uma vez por todas. Mas não poderia tomar decisão sem o apoio de Marta. Ela também queria fazer parte disso. Justino e Marta começaram a namorar e não saíam de casa para não desagradar ao pai. Concluíram que seria impossível atirar no prefeito. Descobririam rapidamente quem fora o assassino e acabariam com Marta. Resolveram optar pelo veneno. Algo de efeito prolongado, que 84
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matasse após o café, quando já estivesse a caminho da cidade, da prefeitura; algo que parecesse um acidente. Queriam que fosse imediato. Justino veio me perguntar qual remédio seria bom para tal e eu acabei contando algumas receitas da farmácia – quase não me lembrava que tinha feito o curso – e alguns dias depois voltou à fazenda, disposto a entregar o veneno à Marta. Justino chegou bem cedo e explicou o que exatamente faria: após o pai acordar e descer para o café, Justino diria que queria conversar com ele fora da casa. E pediria a mão de sua filha em casamento, numa conversa um pouco demorada. Marta, como sabia da preferência de seu pai por suco em vez de café, pediria para a mulher que trabalhava na cozinha da fazenda preparar uma jarra de suco de laranja, o preferido dele. Quando Justino e o prefeito voltassem, ela já teria posto o veneno para diluir na jarra de suco e sentaria para tomar o café e ouvir que sua mão estava prometida a Justino. E que, dali em diante, ela deveria cuidar dos preparativos para o casamento. Mas nem tudo saiu como o esperado. Marta fez todo o seu trabalho sem que ninguém percebesse, Justino atuou muito bem e o pai concedeu a mão da filha a ele. A felicidade era tanta que o prefeito decidiu inverter o dia. Tomaria café em vez de suco e passaria o dia em casa. Como eram somente os três na mesa, não havia perigo de alguém morrer envenenado. Com o plano frustrado, Justino decidiu que deveria fazer tudo como ele sabia. Deveria matar o prefeito da mesma forma que morreu seu irmão. Na volta para casa, passou no bar de Miguel e pediu para que ele preparasse algumas balas para a tarde do sábado. Ainda era terça-feira e haveria tempo de sobra para ele fazer isso. Chegando à cidade, foi direto ao banco encontrar Tobias. Explicou-lhe em que estava metido e pediu ajuda. 85
Tobias pediu para que não conversassem ali sobre o assunto. Os dois marcaram de se encontrar na mesma noite no Brasília. Como faltavam poucas horas para anoitecer, Justino resolveu esperar no bar. Depois de tantos dias, reviu Consuelo. Ela disse que notou a ausência dele e que ele não era mais o mesmo. Parecia ter mudado com os dias passados. Estava mais animado, mais disposto e até alegre. Sorria com facilidade, o que não era do feitio dele. Justino não comentou nada com Consuelo. Nem das viagens, do prefeito, do noivado e do plano. Disse somente que estava muito ocupado para ir ao Brasília naqueles dias, mas que estava lá por ela. Mesmo dizendo tudo isso, Justino não era mais o mesmo. Começou a pensar que talvez toda essa história de fingir noivado com Marta tinha virado a sua cabeça e feito com que ele quisesse, de fato, casar-se com ela. Mas não comentou com Consuelo. Tinha medo de sua reação. Tinha medo por Marta. A noite chegou e Tobias se encontrou com Justino no Brasília. Depois de tudo conversado, o banqueiro sugeriu que Justino terminasse com tudo logo de uma vez numa emboscada e convidou-se para o trabalho. Como era de confiança do prefeito, ele não suspeitaria e Francisco também poderia entrar na dança. Tobias daria cobertura, pois também tinha um contrato com o prefeito, Justino ficaria à paisana, porque era namorado de Marta e Francisco mataria. O medo maior era usar Francisco para matar o prefeito. O menino corria o risco de morrer também, se Tobias não chegasse antes do que todos os outros pistoleiros à casa. Esperariam a hora em que todos estivessem dormindo e Francisco entraria. Tobias estaria na porta dos fundos, dando cobertura para a fuga do garoto. Atiraria e correria, passando pelo quintal e encontrando Justino 86
em sua moto, pronto para fugir. Marta também saberia antes, para não se assustar. Justino precisava falar com ela e com Francisco.
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Determinado dia, três homens chegaram à fazenda, procurando por Justino. Ele prontamente os atendeu, segurando na parte de trás da calça a arma engatilhada, pronta para acertar quem fosse preciso. Mas não era nada. Os capangas do seu sogro traziam notícias de Marta, que queria vê-lo rapidamente. E ele pediu para avisála que só poderia ir até lá no domingo, dois dias depois. Queria saber o que era, mas nenhum capanga sabia. Justino tinha um mal: curiosidade. No sábado mesmo pegou o carro e foi para a casa da moça. Antes, passou no bar do Miguel e pegou as balas encomendadas. Ela lhe contou que os métodos preventivos utilizados nas vezes em que ficaram juntos não deram certo e estava grávida de um filho dele. Contou também que o pai estava pressionando-a a marcar a data do casamento. Tinha dito que queria Justino morando na fazenda e ajudando-o nos negócios. Já fazia planos. E o plano dos dois mesmo, nada de dar certo. Para seu próprio espanto, Justino ficara feliz em saber que havia um filho dele crescendo na barriga de Marta. Pensou em pedi-la em casamento de verdade, mas não se precipitou. Pensaria no assunto antes de tomar qualquer decisão. Disse para ela que queria o filho, se ela quisesse passar novamente por tudo, mas sem o pai saber e maltratá-la novamente. Decidiram ter o filho. Justino gostava de Marta, mas estava ligado a ela por um plano para matar seu quase futuro sogro. Sentia algo que era bloqueado por compla87
cência ao irmão, primeiro amor de Marta. Marta também se via numa situação consideravelmente complicada e não sabia o que fazer. Mas confiava em Justino e sabia que ele decidiria tudo. Os dois formavam um bom casal. O problema era Consuelo. Indo novamente ao Brasília com Tobias e Francisco, os companheiros de farra, contou para os dois e depois da conversa deles, decidiu abrir o jogo com Consuelo. E a atitude dela foi, novamente, espantosa para Justino. Ela achou engraçada a história do fingimento do noivado e da veracidade da gravidez. Disse que não poderia dar um filho a ele por causa de sua profissão, mas que estava feliz porque ele tinha se encontrado. Mas que, mesmo casado, quando ele sentisse falta dela, saberia onde encontrá-la. E sei que acabaram essa conversa no quarto da dama. Com o assunto resolvido, Justino decidiu pedir de fato a mão de Marta em casamento. Mandou que o joalheiro fizesse um anel com uma pedra retirada da lavra por ele mesmo e, depois de pronta, levou-a para Minas. Chegando ao destino, pediu ao sogro para conversar em particular com a noiva. Foram até o escritório e lá ele disse que tinha gostado dela de verdade desde o primeiro dia em que a viu na fazenda, mas que se deixou levar pelo ódio que sentia pelo prefeito; que o filho esperado por eles era um sinal de que tudo aquilo deveria ser verdadeiro e que queria tentar, mas entenderia se não desse certo ou se ela não quisesse. Para a felicidade de Justino, Marta aceitou tentar. Já tinham o essencial: eram cúmplices. Entregou o anel para a moça que, radiante, colocou-o no dedo e foi mostrá-lo ao pai e ao filho. Por instantes, todo o ódio foi esquecido.
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Depois do casamento marcado, ficou ainda mais difícil executar o plano de matar o prefeito. Concordavam que tinham que terminar o serviço, mas seria muito mais complicado a partir de então. O assassino era o avô dos filhos de Marta. Um dos filhos era de Justino. Marta ficou com medo da culpa que carregaria pelo resto da vida. Como Justino pediu a mão de Marta em casamento, o prefeito voltou a tratá-la bem. E isso fez com que ela se esquecesse de tudo o que tinha acontecido, afinal de contas, era o pai dela. A sede de vingança sentida pelo pistoleiro era grande. O alvo estava ali, sempre perto para o resto da vida de um deles. Contra a vontade de Marta, Justino decidiu executar o plano com Francisco e Tobias. Foram os três para a fazenda e Tobias entrou na casa, verificando o terreno. Depois do sinal dado por ele, Justino parou no local indicado e esperou. Francisco foi casa adentro, pelas portas dos fundos, passou sombreando por Marta e foi direto ao quarto. Acordou o prefeito e disse para ele que o tiro era por Aurélio, que nada de mal tinha feito. E deu outro tiro. E outro. E a cada tiro, esquecia-se do que havia do lado de fora da casa, dos capangas, da morte que também estava próxima dele. Atirava e gargalhava. Atirava e queria mais, queria mais balas, quantas fossem necessárias para perfurar todo o corpo daquele desgraçado que tinha acabado com a vida de um de seus irmãos. Atirou até ser chamado por Tobias, que o mandou correr dali. Tobias inventaria posteriormente, a desculpa de que lutou com o pistoleiro e que não conseguiu acertá-lo. Justino sumiu com Francisco na garupa da moto, extasiado por ter cumprido o serviço. Teriam que chegar rápido à fazenda, porque provavelmente teriam que voltar para Minas depois. Com o pai morto, a menina 89
se sentiu culpada, mas se lembrou de Aurélio, do que tinha acontecido e decidiu que seu pai teve o fim que mereceu. Não foi ver, porque seria demais. Somente destampou os ouvidos do filho que dormia calmamente e mandou algum capanga buscar Justino para consolá-la.
Ao amanhecer, Justino já estava na fazenda novamente. Conversando com Marta, descobriu que Francisco tinha atirado tudo o que pode em seu pai. Francisco estava estranho. Além de matar por justiça, gostava de ver sangue. Nunca matou por nada, mas muitas vezes, ver sangue era o suficiente para ele. Com toda a família reunida na fazenda, o corpo foi velado. Muito choro – inclusive de Marta – e dor. Justino olhava tudo com bastante curiosidade. Nunca estivera em velório. O corpo de seu irmão foi encontrado já em decomposição e o que coube a ele foi enterrá-lo numa cova rasa. Muitos pareciam felizes de ver o prefeito morto. A polícia estava atrás do assassino, mas o menino não levantaria suspeita. Ninguém naquela região sabia qual era sua verdadeira profissão. Os que o conheciam, sabiam somente que ele era apenas um lavrista e empregado de Justino. Com o tempo, Marta esqueceu – ou quis esquecer – a morte do pai. Apesar de ter tido grande importância, pois era o prefeito da cidade e ninguém tinha suspeitas de quem pudesse ser o assassino, depois que o vice-prefeito assumiu o cargo, tudo começou a ser esquecido.
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Começo do fim Marta herdou a fazenda do seu pai. Dedicou-se às terras, do jeito que sempre quis, liderando e direcionando o trabalho para a pecuária. Justino auxiliava-a, mas no começo, ficava mais aqui do que em Minas. Criamos uma parceria com relação à produção e distribuição de carnes, já que estávamos bem próximos e nossos interesses eram parecidos. Com a morte de seu irmão vingada, Justino decidiu que a pistolagem poderia ser uma segunda opção em sua vida e se mudou de vez para Minas Gerais, para gerir sua fazenda e cuidar de sua nova família, para a lástima de Francisco. Este, por sua vez, ficou perdido, sem parceiro e sem controle. Francisco resolveu trabalhar sozinho. Sempre levava seu revólver e algumas munições extras em um bornal, aonde quer que fosse. Fazia muito tempo que não matava ninguém. Estava aparentemente perturbado. Justino, que com a notícia da gravidez de Marta resolveu abandonar tudo e direcionar sua vida para sua família, deixou indiretamente para Francisco a tarefa de continuar a vida de pistolagem. Repassou para ele uma boa quantia em dinheiro, como pagamento das duas últimas encomendas e o menino se resignou. Permito-me dedicar os finais dessa memória à Francisco, já que todos estavam resolvidos: Antônio, dona Ana e seus meninos estavam bem, com suas vidas tranquilas. Justino se casou e mudou para Minas, deixando 91
tudo – inclusive Consuelo – por aqui. E eu sempre vivi na fazenda, então não há nada além do que já está escrito. Francisco, com o tempo, passou a ser conhecido por todo o norte do estado. Varria vidas em qualquer lugar que estivesse. São Félix, Monte Verde e seus distritos não eram páreo para o garoto, que se transformou num verdadeiro furacão com balas. Fazia justiça para todos, mas se especializou em ajudar políticos, dando cobertura aos governantes do interior. Tornou-se cruel: sentia prazer em matar e não escondia isso de ninguém.
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O tombo do matador O revólver calibre 38 ainda era o favorito de Francisco. Seus primeiros tiros foram dados com ele, mas ele também era adepto à espingarda papo-amarelo, as duas melhores armas na época. O menino – que já não tinha nada de menino – estava consumido pelo desejo de matar. Já tinha se tornado um pistoleiro profissional, respeitado e temido e, por isso, circulava impunemente pela região. Ninguém ousava desafiá-lo. Distanciavam-se dele. Aliouse ao governador da região e tomou conta dos dois distritos de nossa cidade e de Monte Verde, completamente. Chegava aos lugares, sempre no intuito de matar alguém. Em Monte Verde, um valentão resolveu puxar assunto. Francisco não sentia mais nada de bom e só via maldade nas pessoas. Todos queriam sua cabeça, mas ninguém tinha coragem de desafiá-lo. Esse valentão tentou e se deu mal. Francisco também se deu mal. Um coronel, recémchegado na região, cercou e prendeu-o. Mas a felicidade da população local em ver Francisco preso durou pouco tempo. Havia, na cadeia, um aliado de Justino que, por favor à ele – e também por medo do garoto, libertou Francisco. Ele saiu da prisão ainda com mais sede de sangue e foi a uma padaria, em Monte Verde mesmo. Chegando lá, despertou a atenção de todos. Gritou aos quatro cantos que se, alguém soubesse onde estava o coronel, era para chamá-lo ao café, que o desejo dele era trocar umas palavrinhas com quem mandou detê-lo. 93
Seu ego, alimentado pelo medo das pessoas, deixavano ainda mais com fama de sanguinário. Tomou a ponte sobre o Rio Claro e voltou para cá. Viajava à noite, evitando armadilhas. Mesmo parecendo outra pessoa, Francisco ainda tinha muito respeito pelos pais e irmãos. Visitava a mãe regularmente e conversava com ela sobre os lugares por onde tinha passado, sem detalhamentos. Mas logo que chegava, saía novamente. Não queria atrair pistoleiros para a Fazenda, já que eu não tinha mais ninguém que vigiasse o território o tempo todo.
O governo queria ocupar somente as fronteiras, para evitar que Minas Gerais dominasse as nossas terras. Mas a divisa do estado ainda não era muito ocupada. E onde havia gente, havia medo de Francisco. Por ser aliado de um dos homens desse mesmo governo, Francisco ganhou grande território e construiu sua casa na área mais estratégica para todos: próximo à divisa do estado. Contratou jagunços para cuidar da roça e ajudá-lo nos assassinatos. Passou a não distinguir o certo do errado, matava por dever ou prazer. Se ficasse uma semana sem ver um corpo estirado no chão e coberto de sangue, mudava completamente o humor – que já não era bom. Gostava de ver o corpo ereto bater com toda a sua força no chão. Gostava do barulho, gostava da dor estampada em rostos que não fossem dos seus. Apesar desse comportamento, Francisco nunca ultrapassou o seu território e sempre protegeu os seus pistoleiros. Muitos dos assassinatos que cometeu foram em defesa do seu povo. Não tinha medo de ninguém e não se desviava do perigo. Acreditava que tudo o que fazia 94
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e sua morte não seriam em vão e acreditava também que sentia a chegada do inimigo. Sua política territorial foi marcante nos tempos finais de sua vida. Não admitindo ameaças às terras – tanto lá quanto cá, atirava em quem fosse preciso. Era meio aliado da polícia, meio aliado dos políticos. Os mais perigosos chefes, por exemplo, quando eram presos ou se encontravam em situações delicadas, eram executados por Francisco. E certa cobertura era dada a ele, por isso. Armava emboscadas, capturava suas vítimas e triunfava sobre elas. Somente em seu território. Conhecia todos os pistoleiros da região e respeitava fronteiras. Algumas mulheres da cidade gostavam da postura de Francisco. Não se destacava pela beleza, mas era justiceiro. Ele, por seu lado, não se encantava por nenhuma mulher específica e não tentava nada com as que gostavam dele. Dedicava-se somente à sua justiça. Chegou um tempo em que só ouvíamos falar do garoto, não o víamos mais. Sabíamos que, se houvesse qualquer sinal de que ele estaria na cidade, todos iam para suas casas, como um recolher obrigatório. Voltou algumas vezes ao Brasília nessa época. Com Raimundo, sua relação era normal, já que o homem o conhecia desde muito tempo. Optava pela dama com quem passaria a noite e, depois disso, tudo voltava ao normal. As mulheres não tinham medo dele, porque recebiam um bom tratamento por parte do rapaz. Infelizmente, Francisco morreu da mesma forma que viveu. Uma noite estava no Brasília e, quando saiu de lá, o último homem da lista de Justino, que perdeu seu filho num abraço de Francisco, pegou-o despreparado e atirou em suas costas. Jogado, no chão da rua, o homem disse que o tiro era para vingar a morte de seu filho e que agora ele poderia morrer em paz. As últimas forças 95
de Francisco foram para pegar a arma em seu bornal e mirar no homem, que levou trĂŞs tiros e tambĂŠm morreu, deitado ao lado de Francisco.
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O fim Quando Francisco morreu, muita coisa mudou. A pistolagem para nós era um assunto quase enterrado. Justino lamentou-se por deixar escapar o menino, mas nada poderia ser feito. O destino escolheu que estivéssemos todos em nossos devidos lugares. Voltamos a nos dedicar ao garimpo e à comercialização do gado. Eu, particularmente, cuidava da lavra. As gemas que mais apareciam eram azuis, Águas Marinhas. Encontrávamos ainda, depois de tanto tempo, muitas delas. Pequenas, puras, que davam um bom dinheiro e segurança para os garimpeiros que trabalhavam na fazenda. Como voltei a lavrar, voltei também a pensar no que fora me dito anos antes sobre as três pedras. Duas foram achadas em minha fazenda, mas não fazia ideia de onde estava a terceira. A área de escavação já estava quase toda esburacada e não havia para onde continuar a procura. Eu acreditava que a terceira pedra poderia estar nas minhas terras, mas não a encontrava de jeito nenhum. Os sonhos sempre são aliados dos garimpeiros. Dessa vez, não sonhei com a mulher de branco. Francisco reapareceu numa dessas madrugadas, limpído e sereno, dizendo que tinha visto a terceira pedra, a maior e última pedra da região. Conversei com ele para saber se ela estava escondida em nossa fazenda, mas não obtive resposta. Depois, o menino me disse que a opala negra estava enterrada num lugar profundo, muito distante da estrada e de difícil acesso. Há um canteiro, no centro 97
da cidade, que seria a porta de entrada para encontrar a pedra. A opala, de tão colorida, seria de fácil enxergar entre as terras abaixo do monumento. Depois desse sonho, Francisco nunca mais apareceu. Jamais saberei se a Opala Negra – que, por incrível que pareça, é colorida – realmente existe. Aos olhos, às mãos e aos desejos, ela é inacessível.
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© Editora Pedregulho, 2014 © Marília Carreiro Fernandes, 2014
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Coordenação editorial MARÍLIA CARREIRO FERNANDES Revisão KÉZIA LIDÓRIO Projeto gráfico, diagramação e ilustrações THIAGO LUIZ MENDES DUTRA Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
Esta história é inspirada em causos de pistolagem e garimpo, muito comuns entre as décadas de 1950 a 1970. As personagens e os cenários são fictícios.
Editora Pedregulho www.editorapedregulho.com.br Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Fernandes, Marília Carreiro, 1989 F363o Opala negra / Marília Carreiro Fernandes. 2. ed. - Vitória : Pedregulho, 2014. 100 p. : il. ; 21 cm ISBN: 978-85-67678-06-1 1. Ficção brasileira. 2. Literatura brasileira. I. Título. CDU: 821.134.3(81)-3
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Este livro foi composto em Officina Serif e impresso em papel pólen soft natural 80g/m² pela GM Gráfica e Editora para a Editora Pedregulho em agosto de 2014.
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