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Diálogos

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O fim

O fim

Marília Carreiro Fernandes

Justino gostava da Consuelo, prima de Alzira. Só que para ele amor de dama não se levava para casa. Evitava todas as maneiras de falar nela e mudava o assunto sempre que podia. Não se permitia gostar.

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— E outra, Bento. Minha vida é perigosa demais para eu ter uma família. Vou colocar muita gente em risco. Se bem que, se eu perceber que estou em risco, meto bala – falou rindo.

— Então você gosta mesmo da Consuelo.... — Gosto. Mas não posso. Ela é dama. E dama já foi de muita gente.

Chegamos à fazenda e cada um foi para o seu canto. Deitei pensando ainda na Alzira. Ela me tratava muito bem e provavelmente fazia isso com todos os seus clientes. Ou talvez não. Acordei cedo e chamei Antônio para vistoriar o gado. Queria aproveitar e conversar com ele a respeito de Francisco. No café, perguntei por Justino, que até aquela hora não tinha aparecido. Ninguém sabia dele. Imaginei que tivesse na mina ou no pasto, já trabalhando.

— Antônio, andei pensando sobre Francisco. — O que ele fez? – perguntou ressabiado. — Nada. É só que eu observei o modo como ele brincava com os outros três uns dias atrás. Acho que ele já está na idade de conhecer o mundo e trabalhar. Gostaria que, se o senhor permitisse, Francisco trabalhasse conosco na extração de pedra preciosa. Você acha que ele gostará da proposta de emprego? O pagamento pode ser uma porcentagem das pedras encontradas por ele, mais algum em dinheiro para o caso de achar nada.

— É claro. Ele vai gostar muito. E nós também – referindo-se a ele e a dona Ana.

— E com relação ao “conhecer o mundo”? O que o senhor acha?

— Olhe, Bento... Francisco já é rapaz e mesmo assim talvez não tenha consciência do muito que está lá fora. A vida dele foi praticamente toda aqui na fazenda. Espere que ele complete 16 anos. Até lá já terei conversado com ele sobre tudo.

Sentindo que o assunto tinha acabado por ali, mudei o rumo da prosa.

— Muita encomenda da região? Antônio administrava todo o processo do gado. Eu só autorizava as saídas e entradas que ele combinava com os compradores.

— Bom, temos um tanto. O pessoal de Monte Verde ficou sabendo do nosso trabalho e encomendou alguns bois. Precisarei do carro para entregar as partes.

— Se o senhor estiver ocupado, pode pedir para Justino levar a encomenda. O lugar onde ele pega armas e balas é um pouco depois, perto de São Félix. Aí ele aproveita e faz uma viagem só.

— Tudo bem. Vou ver com ele se está interessado. — Aposto que ele irá.

Voltamos do pasto e fomos esperar o almoço na varanda da casa de Antônio. Logo depois ouvimos um barulho de carro, alguém chegando à propriedade. Quem chegava era Justino e o carro era o nosso. O moço parecia um tanto quanto nervoso.

— Eu vou matar você, Bento. — Você está brincando. — Sim. Estou. É modo de dizer. Depois da nossa conversa na volta para casa nessa madrugada, não consegui

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dormir e resolvi voltar ao Brasília para falar com Consuelo. Chegando lá procurei por ela e Raimundo disse que ela estava no quarto. Esperei, para não perder a viagem. Quando reapareceu, logo que me viu, acenou e veio ao meu encontro. Eu disse que precisava conversar com ela. E ali mesmo me desmanchei. Sou um burro. — Mas o que ela falou? – perguntei curioso. — Bom, falou que gostava muito de mim, mas que não conseguiria ser exclusiva. Sabia como era a vida de dona de casa e não se sentia atraída. Gostava mesmo era da farra, do mundo, dos homens e pedindo desculpas, ofereceu o máximo que podia: um tratamento especial para mim no Brasília. E eu aceitei.

Depois de contar o caso, o nervosismo de Justino já tinha acabado e ele deu uma grande crise de riso, dizendo que era um grandessíssimo corno apaixonado.

Não comentei, mas estava disposto a fazer a mesma proposta a Alzira à noite. Queria pedir para ela sair do prostíbulo e vir embora comigo. Imaginava que ela aceitaria e, na mesma hora, arrumaria suas coisas, agradeceria ao Raimundo e, feliz, seguraria em meu braço como se eu estivesse tirando-a do lugar em que ela nunca quisera entrar. Desisti.

Passamos os dois meses restantes do ano investindo na fazenda. Francisco, junto com seu pai, encontrou algumas pedras. Pequenas, mas valiosas. Com o dinheiro, pediu para que Antônio lhe comprasse uma moto. Era menor de idade, mas queria para andar somente na fazenda. Em janeiro, o menino faria 16 anos e como se fosse um presente de aniversário, pediu autorização à mãe para fazer a compra.

Fomos – Antônio, Justino, Francisco e eu – até Monte Verde e compramos uma moto, da escolha do menino. Era um pouco mais cara do que o dinheiro que ele tinha, mas resolvi completar o valor, como presente também.

Lembro-me bem de Francisco no dia da compra da motocicleta. Estava radiante. Voltamos para a fazenda e fui sentado na frente, junto com Antônio, que dirigia o Jeep. Atrás, Justino ouvia o tralálá do jovenzinho. Numa pausa de conversa, Francisco pediu para que o jagunço o ensinasse a atirar.

Repreendi-o de imediato. O pai fez sinal para que eu não falasse e justificou que desde cedo notava no garoto alguma habilidade diferente, por isso investiu na moto. E autorizava a ele aprender a atirar, se Justino quisesse ensinar. Francisco continuaria com os trabalhos na lavra, mas depois do treinamento, viraria comparsa de Justino, que se propôs a educar o menino na arte da pistolagem. E eu passei a ter dois jagunços.

Todos os dias após o café da manhã, Francisco e Justino se encaminhavam para longe e treinavam com as munições que tinham. Coincidiu que os cartuchos de balas começaram a acabar e uma encomenda de carnes ficou pronta. Justino teria que subir a serra e convidou Francisco para ir com ele. Entregariam as peças e depois passariam no distrito perto de São Félix, lá naquele bar onde ele pegou munição, quando estávamos a cavalo.

Antônio encontrava-se satisfeito. Ter um filho pistoleiro era uma honra. Ainda mais discípulo de Justino, um dos homens mais temidos da região. Deixou que o menino aprendesse o ofício, seria bastante útil, já que a fazenda prosperava.

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Foram os dois fazer as entregas e depois recarregar as armas e pegar uma pistola para o garoto no bar do senhor Miguel. A intenção de Justino ao levar Francisco com ele era apresentá-lo ao seu tutor bélico, pois se, um dia não pudesse ir até lá, teria quem substituí-lo.

Não sei como se deram as apresentações, sei somente que o menino voltou da viagem feliz e cansado. Parecia ter amadurecido cinco anos em dois dias. Tinha outra postura, completamente diferente da do menino jogando bola de meia com os irmãos no quintal antes do almoço. Epifanicamente tornou-se homem feito.

Na varanda, conversei com Antônio sobre as novas responsabilidades de Francisco a partir do momento em que aceitou ser comparsa de Justino e meu capanga. Como um oráculo, reafirmou a sua certeza em deixar que o filho seguisse por esse caminho. Tanto dona Ana quanto ele sabiam que seu menino tinha nascido para esse ofício. Defender, de todas as maneiras, sua família e suas terras. Sei que não deveria, mas novamente tive a sensação de estar protegido – agora ainda mais – por ter dois pistoleiros por perto.

Justino chegou, pegou um copo de café e se juntou a nós. Disse, para orgulho de Antônio, que seu filho tinha mesmo era que ser pistoleiro. A mira dele era ótima e, ao contrário de mim, o menino tinha pegado com pulso firme na primeira arma dele. O presente de 16 anos de Francisco, dado por Justino, foi um revólver. Mas ficaria retido com ele e seria entregue apenas nos dias de ação.

Um nó se fez na minha garganta por pensar que aquele menino franzino ia matar alguém. Pedi para que Justino evitasse o máximo possível de deixá-lo atirar. Pedi também para que não envolvesse o carro no negócio, já que todos conheciam o automóvel.

A questão do veículo que os levaria para qualquer lugar já estava definida. Justino pilotaria a moto de Francisco e os dois atuariam somente assim. A moto foi providencial – imagino que Justino já tivesse pensado nisso, mas com essa grande ajuda do acaso e do menino Francisco ter querido aprender a atirar, tudo foi facilitado – para o ofício deles, já que ninguém além de nós da fazenda sabia da compra.

Há tempos eu não ia ao Brasília. Lutava contra a minha vontade de ver Alzira, lembrando sempre do que aconteceu com Justino. No sábado, dia de baile, Francisco disse ao pai que queria ir ao prostíbulo. Antônio veio conversar comigo e pedir para que eu levasse o garoto, já que era casado e depois de casado não teve com mulher nenhuma a não ser a sua.

Eu estava correndo do prostíbulo como o diabo corre da cruz. Mas falando em diabo, não pude resistir à tentação de encontrar Alzira. Meu corpo pedia. Contei pra Francisco sobre a moça e prometi levá-lo à noite. Falei para chamar o Justino que, com certeza, ensinaria mais a ele que eu.

Saímos os três de casa por volta das sete da noite. Francisco ansioso pela sua primeira noite e eu também. Ter que encontrar Alzira me trazia borboletas ao estômago. E Justino estava calmo como quem não tivesse preocupações.

O bar estava especialmente lotado de garimpeiros de outras cidades. Tinha um conjunto musical que tocava as músicas mais famosas da época. Desde Noite Ilustrada até as músicas da Jovem Guarda, tudo era motivo para festa. Justino logo procurou uma moça e apresentou ao

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Francisco. Deixou que ela o levasse para o quarto, para ensinar ao menino a arte do pecado carnal.

Enquanto Francisco se divertia, algo estranho aconteceu no bar. O que deveria ser somente diversão tomou outras proporções. Dois homens de outras cidades se envolveram numa briga por causa de terra. O que entendi depois do corpo de um deles no chão foi que a tal terra era bastante promissora. Os dois eram de famílias ricas, mas muito gananciosos e disputariam a tiro, se fosse preciso. Chegaram ao Brasília e gostaram da mesma moça. Aí já se viu.

Um atirou no peito do outro e sumiu. Na confusão, ninguém viu quem foi. Raimundo chamou a polícia para averiguar o caso. Tiraram o corpo do homem do meio do salão e a festa, por instantes, pareceu que teria fim. Mas algum bêbado que não ouviu e nem viu o acontecido gritou lá do fundo do salão: “cadê a festa? Solta a música!”. E a banda obedeceu. Instantaneamente começaram a cantar os clássicos dos anos 1960 e tudo voltou ao normal. Fui ver se Raimundo precisava de ajuda, mas tudo já tinha sido resolvido.

Grande noite para uns, pequena para outros. Enquanto Francisco estava no bem-bom, não encontrei Alzira no Brasília. Fui até Raimundo e perguntei por ela. Alzira tinha ido até Minas Gerais, visitar a sua mãe. Voltaria só na outra semana, na terça-feira, ele achava. Fiz o que me restava: bebi.

Notei que Justino tinha sumido. Talvez tivesse se engraçado com Consuelo. Mas ela estava bem na mesa à minha frente e quando olhei para a porta do bar, vi o jagunço entrar. Fiz sinal para que viesse até a mim. Queria saber onde tinha ido, já que o bom da vila acontecia era ali.

— Onde você estava? Acabou de morrer um homem aqui no bar.

— Eu sei, eu estava aqui. — E por que veio lá de fora então? — Fui dar uma volta. — Volta? A pé? — Não, eu estava de moto. Com um amigo. O amigo da moto foi o que matou o homem dentro do bar. Justino estava na espreita, para levá-lo para bem longe. Depois de dizer isso, Justino chegou bem próximo a mim e continuou:

— Menos um da lista política. Contou-me depois que além da briga por terra, o homem era um corrupto e ameaçava o engravatado que tinha contratado os seus serviços. E, para não alardear, o amigo dele fez o trabalho: fingiu uma confusão e matouo, para não levantar suspeita de que era crime de mando. Não poderia ser mais do que uma bala e por isso, envenenaram-na. E ele sumiu porque o pagamento era feito imediatamente após a morte. Foram buscar o dinheiro.

Francisco reapareceu acabado quase três horas depois que subira para o quarto com a dama. Pediu uma bebida e, num só gole, bebeu o copo inteiro. Justino e eu rimos do garoto. Perguntamos se tinha ido tudo bem e ele disse que já tinha marcado de voltar no outro dia.

Uma parte da lista

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Justino explicou a Francisco que os assassinatos cometidos por ele geralmente eram encomendados por pessoas de renome. Disse que tinha ainda sete nomes para acertar as contas, cinco numa lista – da qual um já tinha sido assassinado – e dois na outra. O rapaz ajudaria na lista dos políticos. Os nomes encomendados antes de chegar à vila, ele não tinha tanta pressa, pois outros pistoleiros – do grupo – também cuidavam dela.

Os políticos eram bem visados, o que inibia a ação imediata de Francisco. O menino teria que percorrer, no auge dos seus 16 anos, todo o norte do estado em busca dos candidatos. E agir sozinho seria ainda mais difícil: pela idade, não podia pilotar. Por isso, Justino chamou-o para agir em conjunto. O plano principal era usá-lo como isca. O menino era bom de papo e, através de sua aparência – alto, magro e também pelo fato de ter bons modos – poderia fingir que era um jovem candidato a vereador e que acabara de completar 18 anos. Precisava de apoio de alguém mais experiente em sua campanha. Ofereceria muito dinheiro e atrairia, com isso, a vítima para o lugar escolhido. Não era muito difícil acreditarem em sua mentira. Fizeram assim.

Antônio levou o garoto ao alfaiate e encomendou dois ternos pretos de linho e três gravatas com tons de vermelho, cinza e azul escuro, que foram arcados por Justino. Quando os ternos ficaram prontos, Francisco e Justino arrumaram as suas bolsas e se despediram de nós. Dona Ana chorou um pouco, por ter que ficar lon-

ge do filho por alguns dias pela primeira vez. Mas eram apenas alguns dias e por isso se conformou. Antônio se manteve firme e as crianças pediram presentes. Saíram bem cedo em direção ao norte, ao encontro de Miguel. A primeira parada foi somente para pegar algumas armas de calibre mais grosso e as balas envenenadas preparadas pelo tutor – agora dos dois. Miguel elogiou a compostura de Francisco e brincou dizendo que daquela forma ele chegaria até o presidente da República, se quisesse. Estava elegante demais.

Foram no carro de passeio do Miguel, para não levantar suspeitas. Pegaram também uma maleta de documentos, na qual colocaram todas as munições especialmente preparadas para o evento. Seria o primeiro serviço com participação direta de Francisco.

Depois dali, Justino foi diretamente até a casa de um de seus comparsas, no interior de Santo André. O homem já estava pronto para ir com eles e dar cobertura no que fosse preciso. Entraria como guarda-costas do candidato e os acompanharia até o restaurante, sugerido por Francisco, o futuro vereador de Monte Verde. No almoço, o rapaz falaria de sua vontade de comprar um terreno ali perto para começar um novo negócio. Aparentaria de todas as maneiras ser um jovem rico, despertando, através disso, o interesse do político. Continuaria a conversa das terras, dizendo que pagaria à vista a propriedade. Se fosse preciso, até ofereceria uma propina.

Chegaram à cidade e procuraram pela vítima que estava na prefeitura entregando uma papelada. O homem não era candidato a nada, mas tinha influência sobre os outros. Administrava campanhas. Era um salafrário de marca maior.

Fizeram tudo como o planejado. Francisco, garboso, gabou-se de sua riqueza e comentou sua vontade de ser

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