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Tempo das vacas gordas
quem o toma, quem o limpa. A padaria funciona maquinalmente. E todo mundo compra o pão, e gosta.
Justino ainda era desconhecido. Todos na vila que passavam por nós, observavam-no. Logo mais saberiam quem era ele e o que fazia. Combinamos de apresentá-lo como meu funcionário, mas tínhamos certeza que essa identidade não duraria tanto tempo. Ele não ligou para a repercussão. Voltamos para a fazenda.
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A cidade começava a crescer devido à evolução financeira. O aparecimento de algumas pedras maiores nas minhas terras e nas dos lavristas vizinhos movimentava o centro comercial. A economia girava em torno da agropecuária e das pedras preciosas. Começamos a ter uma vida um pouco melhor, se assim posso dizer. Construímos, depois de curto tempo, a casa do pistoleiro.
Dona Ana disse que precisávamos fazer compras, já que algumas coisas da cozinha tinham acabado. Na segunda-feira de manhã, Antônio, Justino e eu descemos a serra em direção ao mercado, para comprar o necessário. Chegando ao centro, decidimos mudar o trajeto e fomos primeiro ao bar. Lá, entre uma dose e outra, conversávamos com os colegas de Antônio, que era mais conhecido do que Justino e eu juntos.
Um desses colegas, disse à surdina para Antônio que nos viu na padaria, conversando algo bem suspeito. E perguntou quem éramos. Ele, discreto, disse que eu tinha herdado as terras. O rapaz ainda insistiu, afirmando que ouviu falar na padaria que quem estava conosco era um pistoleiro de renome, que circulava pelas bandas do norte. Justino ouviu e resolveu perguntar para Antônio sobre o que se tratava a conversa. Ele respondeu que não
Marília Carreiro Fernandes
era nada muito importante, deu a última golada na cachaça e nos chamou para comprar as coisas. Todos suspeitavam, mas tinham medo de perguntar quem era Justino. E Justino gostava disso. Ser temido alimentava seu ego.
Compramos os mantimentos, colocamos na carroça e Antônio foi embora para a fazenda. Era dia de ensinar o ofício aos filhos. Nós decidimos ficar para visitar o Brasília novamente.
Durante a semana a casa não era muito movimentada. Ficamos pouco tempo. Quando soube que Alzira não estava no estabelecimento, fui para a área do bar e esperei Justino, que já estava se engraçando com outra moça. Pedi uma cerveja, pitei um cigarro e por lá fiquei.
Outra vez, perguntaram – agora para mim – sobre a procedência de meu empregado. Ele, voltando do quarto, respondeu que não tinha residência fixa, era autônomo e estava ali para procurar por algumas pessoas. O rapaz que conversava comigo no balcão logo percebeu do que se tratava. E provavelmente depois daquele momento, a vila inteira saberia quem era Justino.
Aqui ainda era um território que não tinha a malícia da pistolagem. Ou pelo menos não tinha pistoleiros fixos. Mas logo que souberam da profissão do Justino, procuraram-no. O primeiro foi o dono da casa de prostituição. Havia um cliente que devia, além dos serviços utilizados na casa, algumas partes de terra. Fazia tempo que a dívida fora criada e quando o chefe foi cobrar, os dois brigaram. Briga por terra ainda é mais complicada que briga por puta. Já que não conseguiram acertar as contas pela conversa, ele pediu a Justino para ameaçá-lo. Ameaça Justino não fazia. Com ele era oito ou oitenta.
Raimundo, o dono do bar, disse que em dias de sábado, o tal cliente chegava por volta das nove ou dez horas da noite. Justino deveria observá-lo e, quando o moço saísse, era para segui-lo e acertar as contas um pouco longe dali. O pedido principal foi não matá-lo no meio do salão, pois era dia de muito movimento. Combinaram em aumentar a música quando fosse dado um sinal.
Acordei bem cedo no sábado e Justino já tinha levantado mais algumas paredes na sua casa. Queria fazer alguma coisa e, como restavam alguns materiais de construção, decidiu ampliar a sala. Não parou quieto em nenhum momento durante o dia. Quando a noite ameaçou a aparecer, tomou seu banho e ficou à espera. Nesse dia, lembro-me bem de termos tomado o café todos juntos: dona Ana, Antônio, os quatro filhos, Justino e eu.
Saímos da fazenda por volta das sete da noite e chegamos ao Brasília antes da hora combinada. Notei que Justino estava elétrico. Matar o deixava assim. Era transcendente. Ele ganhava a vida dos outros a partir do momento que as tirava. No bar, o dono do prostíbulo acenou para ele, com a mesma cara de triunfo. O baile começou e como eu nada tinha com o combinado deles, fui procurar o meu lugar. Logo me achei com Alzira e fui cumprir os deveres da carne.
Mais tarde, voltei para o baile, especificamente para o bar. O dono me disse que Justino tinha saído para cumprir seu dever. Havia armado uma emboscada e daria cabo à vida do devedor-encrenqueiro. O som estava muito alto naquela noite. Esperei por ele. Por volta das três da manhã, quando já não tinha quase ninguém no bar, Justino reapareceu, com marcas no corpo. O defunto, antes de morrer, reagiu à emboscada e tentou brigar com ele. Só que foi parado por uma bala venenosa
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que logo invadiu seu corpo e tomou seu coração. Como Justino estava sozinho, teve que carregar o corpo, cavar a terra e enterrá-lo. Ele disse que havia cavalgado um tanto considerável para enterrar o moço. Só não disse onde foi. Achamos melhor nem perguntar. O pagamento foi efetuado e ganhamos crédito na casa: não precisaríamos pagar por nada mais que consumíssemos.
Depois do sumiço do cliente do prostíbulo, todos suspeitaram de Justino. Mas como não havia provas que incriminassem o pistoleiro, nada foi feito. O problema maior foi a suspeita de Alzira e Consuelo, a dama que esteve com Justino naquela noite e na anterior. Consuelo desconfiou porque o jagunço não ficou pouco tempo com ela da primeira vez. Teria comentado com Alzira que já na segunda noite, o cliente foi rápido e disse que tinha algo a fazer. Ela estava interessada, como muitos da cidade, em descobrir com o que ele trabalhava.
Depois dos deveres cumpridos, Justino me convidou para sair do balcão e ir para uma mesa. Perguntou sobre a mulher do sonho e queria entender os detalhes que ele não sabia da história das pedras preciosas. Contei sobre o céu tangível que o espírito me disse. Como já era domingo – ele achava que os domingos eram dias feitos para o descanso e, por isso, não fazia nada além de meditar e procurar as respostas para as suas dúvidas semanais – achou que encontraria alguma coisa.
Voltamos para a fazenda no final da madrugada. Resolvi dormir logo. Seguindo a filosofia do meu comparsa, tirei o dia para descansar. Justino sumiu depois do almoço. Pegou a pá e a picareta e disse que ia para a mina procurar a pedra. Algumas horas depois, ouvi gritos do Justino. Corri para ver se algo havia acontecido, pensei até que alguém tivesse ido atrás dele para acertar as contas da madrugada anterior. Por sorte não era isso.
Ele tinha achado uma pedra grande e viera me buscar. Antônio ouviu a bagunça e foi conosco.
Chegando ao local, o jagunço apontou para a pedra no canto da parede, bem no alto. Imediatamente começamos a limpar com as mãos a terra que envolvia a pedra, para não correr o risco de quebrá-la. Antônio pegou todos os aparatos na carroça e conseguimos tirar a pedra azulada. Ela valia todo o dinheiro que precisaríamos para viver e educar os pequenos por algum tempo. Voltamos para casa, estupefatos. Ana e as crianças não acreditavam no que viam. Pedi sigilo absoluto para todos.
Passado esse episódio, resolvi fazer um cofre na minha casa para guardar as pedras que ainda acharíamos. E decidi que poderíamos diversificar as fontes de renda. Investiríamos no gado, não deixando de lado a lavra.
Certo dia Justino voltou do centro da cidade com contatos e contratos. Alguns funcionários do governo souberam da fama dele e resolveram ir até o Brasília – já sabiam que ele passava grande parte do tempo por lá.
Entraram no bar e por baixo da mesa Justino imediatamente engatilhou o revólver. Um dos engravatados, prevendo a reação do jagunço, pediu para que ele não atirasse e esclareceu o motivo de estarem ali. Precisavam de ajuda para acabar com ameaças de três homens que prejudicavam o grupo em tempos de campanha eleitoral. Ele ouviu as propostas e estranhamente ficou radiante. Isso sempre acontecia quando alguém lhe propunha um serviço assim. Imagine matando quatro e ganhando muito bem pra isso. Topou.
Depois de me contar da nova empreitada, Justino disse que já havia um burburinho a respeito da pedra.
Alguém imaginou que tínhamos descoberto algo valioso, pois estávamos tranquilos demais em tempos tão difíceis. Todos sabiam da nossa fama, porque vendíamos as pedras menores e não trabalhávamos mais com tanta astúcia. De fato, estávamos satisfeitos com o dinheiro que possuíamos.
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A extração de pedras preciosas nos fez pensar em novas fontes de renda. Decidimos que, além de consumir o gado, também criaríamos o animal para venda. Antônio cuidou da parte de negociar com os produtores vizinhos e pegar algumas dicas de como fazer com que isso funcionasse em nossa terra.
Preparamos o pasto e começamos a alimentar o gado. No início, eram poucos animais, mas com o lucro compramos mais. Triplicamos a quantidade em pouco tempo. Umas 900 cabeças. A boiada comprada vinha pelo centro da cidade, guiada por um vaqueiro. Ainda não existia transporte para levar o gado.
Com o dinheiro arrecadado pelo comércio dos animais e de suas carnes, decidimos comprar um carro. Já tínhamos poupado o suficiente e não nos faria falta o valor do investimento. Precisaríamos logo de um transporte para as carnes encomendadas pelos açougues da região. O nosso primeiro carro foi um Jeep rural Willys 4x4, azul e branco. Atendia às nossas necessidades e facilitava a vida de todos. As crianças adoravam andar na parte de trás e sempre brigavam para ver quem ficava nas janelas, mas cabia todo mundo. Para Justino e eu, ficaria ainda mais fácil ir ao Brasília.
Diálogos
— Cinco tiros. — O quê? Foi assim que Justino começou a conversa logo pela manhã na mesa do café.
— Como assim, homem? – retruquei. — Ué, peguei o serviço, tenho que fazê-lo. — Mas que horas foi isso? — O que você faz de madrugada? Fiquei confuso, apenas sorri. — Esse deu trabalho. É bom começar assim, que dá ânimo pros outros três. – Justino continuou. — Mais três? – como num impulso, cuspi o gole de café. — É. – disse satisfeito. — Tem horas que você me assusta. Caímos na gargalhada. Durante o resto do café conversamos e eu, curioso, tentei arrancar alguma coisa sobre a noite anterior, sem sucesso. O bacana era discreto e respondia somente o necessário – para ele.
Mudando completamente de assunto, Justino perguntou sobre o trabalho do dia: — Quais são as encomendas? — O açougue lá do centro pediu um boi para essa semana. Antônio foi cuidar do abate e logo mais cortaremos as carnes. E dona Ana pediu para tirarmos o leite das vacas. Só isso por enquanto. — E as pedras? — Podemos ir até a mina agora. Quero começar a
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parte do gado depois do almoço e terminar até o fim do dia, porque mais tarde pretendo ir ao Brasília. Quero ver Alzira. Você vem? — Alzira? — É. Aquela que esteve comigo todos os dias em que fui lá. – Preferi não encompridar a conversa, para não ter que dizer nada mais sobre mim.
Terminado o café, fomos para a mina e lavramos, mas o dia não estava para pedras. Voltamos pouco antes do almoço e encontramos as crianças brincando com uma bola feita com panos velhos, costurada por dona Ana.
Por mais que os quatro fossem bastante unidos, Francisco, o mais velho, dava sinais de que as brincadeiras de criança não estavam mais tão interessantes. Tinha crescido e logo poderia ajudar no trabalho da fazenda. Desde pequeno era independente e acompanhava seu pai nos serviços diários. Vendo a brincadeira deles, pensei inclusive em conversar com Antônio e sugerir o emprego para o rapaz quando ele completasse 16 anos – o que não estava muito longe. Carlos e Lúcio, com 13 e 11 anos, respectivamente, protegiam a miúda Rosa, de nove. Os três juntos faziam a maior algazarra possível. Parecia que levavam consigo um pequeno furacão por onde passavam. — Tá na mesa! – Gritou dona Ana da porta da cozinha. Fomos todos.
Depois de almoçarmos e separarmos as encomendas do açougue, tirei uma sesta. Ficar exposto ao sol por tanto tempo me cansava e eu precisava estar bem disposto para a noite que estava por vir. Mais tarde me arrumei e, como agora tínhamos o carro, não precisava sair tão cedo da fazenda.
Perguntei novamente a Justino se ele me acompanharia no passeio. Não se dando por satisfeito, perguntou-me o porquê de eu querer ver Alzira. Todas lá eram iguais e eu podia ter qualquer uma.
O problema é que eu não queria qualquer uma. Alzira era diferente e eu gostava de ir lá para vê-la. E percebia que ela também se agradava com a minha presença. Era só eu chegar ao Brasília que ela logo vinha me cumprimentar e conversar um pouco, antes de irmos até o quarto. Depois de um tempo repetindo esse processo de chegar, ser cumprimentado por ela, conversar e ir até o quarto, todos já sabiam que ela tinha preferências por mim.
Cumpri o meu dever no Brasília e decidi ir embora. O jagunço foi comigo e no caminho de volta para casa perguntou-me qual era o meu sentimento pela dama. Engasguei um “nenhum” e ele, novamente, caçoou de mim. Era impossível que eu estivesse enrabichado por uma moça dama. Moças damas não dão valor para homens, só querem dinheiro e fama. Eu também pensava dessa forma. Fiquei quieto e Justino pensativo.
— Se bem que... — Se bem que o quê, Justino? — Ah, aquela moça, a Consuelo. Ela é bonita. E sabe o que faz.
— Tá gostando dela? — Eu hein, não se pode falar da beleza da moça que eu já estou gostando dela. E outra, não se pode gostar de puta.
— Por que não? — Por que não.