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Da ida até o centro

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O fim

O fim

Marília Carreiro Fernandes

perturbado e fui imediatamente procurar Antônio, para lhe contar o ocorrido.

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Sentados na varanda da minha casa, descrevi a mulher e sua fala. Ele abaixou a cabeça, bateu a mão no bolso, pegou um papel e o fumo dentro de uma sacolinha transparente, fez o cigarro em segundos e o acendeu. Olhou para mim, pensativo. Tragou e começou a dizer que já era para eu ter viajado desde o primeiro sonho. Todo lavrista esperava uma pista para ter o dinheiro da pedra e eu, que sonhei, ainda não tinha saído de casa. Avisou-me que esse sonho podia ser uma espécie de revelação e que competia somente a mim ir até o destino.

Durante o dia, dispusemos em uma bolsa tudo o que seria necessário para fazer uma viagem. Guardei também a carta que meu pai tinha me enviado quando eu ainda morava na cidade. Eu seguiria viagem sem ideia de quando voltaria para casa, já que a moça do sonho não me falou exatamente onde era. Antônio tentou me confortar, dizendo que se eu sonhei com a pista, logo a encontraria. Procurei acreditar nele, por mais que pensasse que tudo seria uma grande perda de tempo.

No meio da madrugada, Antônio bateu à porta para me ajudar com os ajustes finais. Conversamos mais um pouco e ele me explicou coisas básicas, como o que eu deveria fazer se acabasse a água, o cavalo se sentisse mal, ou eu me sentisse mal. O sol castigava naquela época e era preferível descansar nas horas mais violentas, para não prejudicar o andamento da viagem. Deveria tomar cuidado também com andarilhos – alguns tinham más intenções. Era para eu ir na fé, em busca do que

ouvi no sonho. E era para ir sozinho. Conversar o menos possível. Rezar o máximo que pudesse.

Saí com o sol no alto do céu. A viagem poderia ser feita por duas estradas: a que saía do centro da cidade e a que passava pela serra. Optei pela segunda. Eram poucas as pessoas da vila e todo mundo sabia da vida de todo mundo. Não era bom dizer o motivo da viagem. Os mais religiosos acreditariam que eu tinha ido à procura do milagre e alguém, ouvindo isso, poderia me seguir.

Cavalguei alguns quilômetros e senti sede. O sol estava muito forte. Parei embaixo de uma boleira para descansar. Fiquei observando como as boleiras estavam bonitas e como a sombra daquela era magnífica. Apeei do cavalo, folguei a barrigueira, tirei o freio da boca dele, dei milho, água e tomei um cantil também. Há muitas árvores no caminho que tapam o sol. Depois de aproximadamente uma hora, apertei a barrigueira, coloquei o freio de boca, joguei a rédea por cima de cabeça do El Dorado e parti em direção ao norte, sem rumo.

No primeiro dia da viagem, andei por muito chão, encontrei quase ninguém. Às vezes um ou dois. Nada mais que isso. Cavalgava e olhava para o céu alaranjado. As montanhas faziam sombra e em alguns lugares já era noite. Decidi parar perto de duas pedras que formavam uma cabana, um V de cabeça pra baixo. Deitei, mas precisava ficar atento aos ladrões. Se alguém roubasse o meu cavalo ou algum mantimento, as coisas ficariam complicadas, então tive que dormir de olho aberto.

Enquanto observava o céu e suas constelações, pensava na reviravolta da minha vida. Lembrei-me da casa onde vivi durante toda a infância, da escola, da minha mãe sempre presente, cuidando de tudo. Lembrei também da felicidade em que ela ficou quando seus patrões disseram que arcariam com os meus estudos, na melhor

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faculdade de botânica do estado. Planejamos que, depois de formado, voltaria para a cidade e abriria meu próprio negócio.

Terminei a faculdade, mas não tive tempo de montar a farmácia. Virei a página, comecei um novo capítulo vindo para cá, onde (re)construí a vida. Hoje, a fazenda já não é tão procurada por lavristas. Na verdade, na região ainda existem lavristas, mas são poucos. Esse é um negócio antigo. Tudo mudou. A carta feita por meu pai foi enviada numa hora em que tudo caminhava bem. Se não fosse por ela, talvez hoje eu estivesse lá na cidade, morando no mesmo lugar, velho do mesmo jeito. O que me restaram foram as boas memórias de tudo o que vivi. Tanto de lá quanto de cá.

Fiquei confuso quando li aquele escrito de uma pessoa praticamente desconhecida, pedindo para que eu a visitasse. Encontrando com ele, vi os traços que ganhei de herança. Éramos muito parecidos. Compadeci de sua situação. Conversamos sobre os negócios durante uma tarde inteira. Sequer falamos no tempo perdido: ambos sabíamos que era impossível recuperá-lo. Não éramos pai e filho e sim dois homens com o mesmo sobrenome. E o gesto de me passar as terras era questão de honra. Por mais que não fôssemos família há tanto tempo, éramos família nos papéis. E, de fato, eu era o único herdeiro.

Comentei que ainda morava com minha mãe e que seria difícil convencê-la de se mudar para o interior. Sabia de sua profunda mágoa por meu pai. E ele também sabia. Mas talvez a mudança fosse possível, se eu minuciasse o acontecido. Prometi tentar, despedi-me e voltei para a minha casa. Não me arrependo das decisões que tomei. Aprendi muitas coisas morando aqui.

Pensando em tudo, desde a infância até a carta e a mudança, cochilei. Quando o dia amanheceu, alimentei

o cavalo, achei um pedaço de carne seca com farinha e mastiguei também. Partimos.

Por volta das dez horas da manhã do segundo dia, encontrei um homem, também a cavalo, que se apresentou como Justino. Era moreno e tinha mais ou menos a minha idade. Perguntou de onde eu estava vindo, respondi que era de longe. Depois de alguns instantes em silêncio, ele perguntou se poderia seguir viagem comigo. Eu disse não saber para onde estava indo. Sem que eu dissesse sim, Justino continuou ao meu lado.

Fiz, com um pouco de receio de que ele fosse um ladrão, o ritual com El Dorado novamente, na hora do sol mais forte. Sentados embaixo de outra árvore, perguntei sobre a vida do moço e ele me contou alguns detalhes. Justino nasceu na terra do Lampião. Seu pai era um justiceiro e devido à profissão, sua família se mudava constantemente. Passaram por todo o litoral até chegar aqui. Todos eram muito simples e passavam dificuldades financeiras, até que Justino recebeu uma proposta de trabalho. Prontamente aceitou, pensando nas melhores condições que daria para seus pais e irmãos. Tempos depois, o caçula também quis se juntar ao bando e pediu para que Justino propusesse ao patrão o novo funcionário. Trabalharam anos juntos até que a morte os separou. Com o corpo de seu irmão nos braços, Justino jurou vingança. Decidiu sair do emprego e trabalhar como autônomo, fazendo justiça com as próprias mãos. Seguindo a vida de seu pai, também não tinha casa, mas tinha regalias, pois era conhecido de políticos e cidadãos ricos dos locais por onde passava. Era contratado, executava o serviço e sumia no mundo. Como recebia antes, não

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precisava voltar até o mandante. Sua casa era em todo lugar e lugar nenhum.

Conversamos por algumas horas e decidi contar um pouco da minha vida para Justino, tentando esconder os motivos da minha peregrinação. Ele sabia que alguns fatos estavam desconexos, mas respeitou minha decisão de não falar. Pensei que em um momento oportuno pudesse contar o motivo de tudo para ele.

Nessa noite não dormi. Por mais que tivesse adquirido uma confiança quase imediata pelo homem das roupas empoeiradas, isso não foi o suficiente para eu conseguir descansar as retinas. Os cochilos eram breves e sempre acabados por um susto. Susto que eu me dava, inconscientemente, para não dormir. Ao contrário de mim, Justino dormia o sono mais pesado que eu já vi durante toda a vida. A única coisa que tirou para dormir foi o cinto com as suas munições.

É bonito quando você vai para um lugar sem luz elétrica. Uma fogueira não é o suficiente para acabar com as estrelas do céu. Fui observando as constelações, cada uma mais bonita que a outra e pensava na mulher do sonho, nas palavras do meu pai, no Antônio dizendo para eu seguir sem medo que logo encontraria a pista e no Justino, o amigo de longa data conhecido naquele dia. Justino foi providencial nessa viagem. Como uma bússola humana, ele sabia todos os caminhos e tinha ciência de onde poderíamos achar comida para nós e para os animais, que já começavam a ter fome. Saímos em direção a um povoado próximo, onde ele tinha alguns amigos. Chegando lá, paramos num bar de um conhecido. Justino abriu a porta e acenou para o dono, que estava atrás do balcão e o recebeu com festa. Depois de um abraço, o homem perguntou como estavam os trabalhos e o jagunço falou sobre as encomendas, algumas prestações de con-

tas, nada muito diferente do cotidiano. Perguntou pelo dinheiro, ainda tinha bastante; perguntou sobre as munições. Ele precisava de mais. Logo depois, dirigindo-se a mim, disse que o dono do bar era um amigo antigo e de extrema confiança. Era ele quem comprava tudo – como eu já havia pensado – e ajudava, quando preciso.

Sentei e me deleitei com uma dose de cachaça. Fazia tempo que não bebia e depois da primeira eu tomei outas sete ou oito, conversando com Justino e o dono do bar. Recebemos o convite para passar a noite por ali. Os cavalos iriam para o estábulo do Miguel – o dono do bar – e nós para a casa dele, tomar um bom banho e dormir em boa cama. Justino aceitou, porque eu não tinha condições de concordar com nada mais.

O sol já estava alto quando acordei. Dormi profundamente durante a noite inteira, descontando os últimos dias mal dormidos. Desci para o bar e encontrei os dois, no mesmo lugar do dia anterior. Peguei um pedaço de pão com manteiga e um copo de café forte, para combater a ressaca da noite anterior. E no vai e vem das conversas, resolvi perguntar para Miguel como os dois se conheceram.

Justino estava sentado no mesmo lugar quando chegaram uns assaltantes. Um deles, armado, foi em direção ao caixa e pegou todo o dinheiro. Justino, tomando sua cerveja, sacou seu revólver e atirou certeiramente na cabeça do assaltante. Os outros que apoiavam o salafrário, correram. Justino pegou o corpo do chão e entregou-o para um comparsa dele e ninguém sabia, até aquele dia, em que lugar o homem tinha sido enterrado. O trabalho foi bem feito e ninguém falava mais disso.

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Depois de algumas horas de conversa, decidi continuar o trajeto rumo ao norte. Justino seria o protetor da viagem. Por volta das duas da tarde, saímos do bar e seguimos. Conversamos ainda mais e descobrimos algumas coisas um do outro. Tive a impressão, por minutos, que eu já o conhecia de outras vidas.

A noite chegou e optamos por continuar a cavalgada para recuperar o tempo perdido. No caminho, Justino me contou que desde seus 14 anos só fazia a mesma coisa: vivia para dar cabo à vida de ladrões, traidores. Todos os assassinatos que cometia eram de mando. Qualquer demanda política ou econômica. Desafeto ou traição. Ele acertava as contas por qualquer um que se sentisse prejudicado. E recebia bem por isso.

Tinha na mente, uma lista com nomes para encontrar e executar. Contou também que tinha amigos, um homem para cada função quando precisava de apoio: um armava a emboscada, outro executava e um terceiro (às vezes um quarto e um quinto) enterravam o morto. O sexto passava no trajeto, retirando as marcas. Considerava seu trabalho um como outro qualquer. E era. Eu também achava.

No quinto dia, fui acordado por Justino perguntando se eu gostaria de ser pistoleiro. Confuso com a pergunta, disse que não possuía dom, nunca tinha pegado numa arma. Ele prontamente se ofereceu pra me ensinar a atirar. Não tive escapatória.

Paramos perto de um bosque. Fizemos uma mira em uma árvore e Justino me deu a arma. Tremi, suei frio, tive medo. Ele disse que também teve medo da primeira vez que atirou, mas se acostumou e a arma de fogo se

tornou o objeto que mais lhe trazia segurança. Com uma pseudocoragem, recarreguei a pistola. Dei seis tiros, errei cinco. Gastamos bastante munição e eu fui pegando o jeito. Quando entreguei a arma para Justino, ele recusou. Ofereceu-a como presente, disse que o revólver tinha sido de seu irmão e que o jeito como eu comecei a atirar lembrava o dele. Percebi que Justino, apesar do desejo de vingança que carregava em seu peito, ainda sentia a ausência do irmão.

Anoiteceu. Fizemos uma fogueira com galhos de árvores e folhas que achamos pelo caminho e nos sentamos ao redor dela. Justino ainda continuava quieto, mas senti vontade de puxar assunto. Comecei a história falando que nasci numa grande cidade e minha família era feliz até meu pai se mudar. Fui criado por minha mãe, com muito custo. Passamos algumas dificuldades durante a vida, mas nunca nos faltou o que comer. Muito cedo comecei a trabalhar, porque naquela época, mãe solteira não tinha muita aceitação perante à sociedade e, por isso, em algumas épocas ficava mais difícil. Minha mãe era empregada de uma família muito nobre da cidade e eu tive a oportunidade de estudar nos melhores colégios por causa disso. Viraria farmacêutico se o destino não tivesse me levado para onde eu estava. Não entendia nada de terra até ter que viver em uma.

Ele me interrompeu, perguntando sobre meu pai. Não tinha muito que dizer, mas expliquei que fiquei sem notícias dele durante dezoito anos. Achava que não tinha pai mais, porque sempre morei na mesma casa e ele nunca fora me visitar. E que, determinado dia chegou uma carta para mim. Abri a bolsa, retirei-a e li para ele. A carta dizia que meu pai tinha nos deixado – minha mãe e eu – por motivos particulares e não queria se explicar nem pedir desculpas, porque isso não deveria

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ser interesse de ninguém mais, já fazia muito tempo. O importante mesmo era tratar de negócios, pois ele tinha comprado umas terras para o lado noroeste do estado. Gostaria que eu viesse ao encontro dele na fazenda, que eu ainda não conhecia, para saber detalhes sobre as terras. Por último, dizia que não teve mais filhos além de mim, que viveu para cuidar da terra e que gostaria que um dia tudo fosse meu.

Após a carta, contei da herança e das pedras. Meu pai ficou encantado com a lenda das pedras preciosas e acabou passando-a para mim, antes de morrer. Tudo o que me confundia, Justino achou interessante. Continuei ilustrando como cheguei às terras, perdi meu pai, minha mãe, sonhei vezes seguidas com uma mulher me dizendo para ir para o norte, encontrei Antônio e sua família e que Antônio quem disse para eu seguir viagem depois do terceiro sonho e fazer exatamente como a mulher falou. Justino perguntou se eu acreditava mesmo no que estava fazendo. Admiti que muitas vezes não, mas a lavra fazia a cabeça das pessoas. Quando você acha uma pedra de valor, por menor que seja, dá ânimo para procurar mais, na esperança de encontrar outra maior. Contei que achamos, Antônio e eu, algumas pequenas, mas não sabíamos onde estava a pedra do sonho. Se achássemos essa pedra, precisaríamos de proteção. E Justino, com seu trabalho, ajudaria muito. Afirmei que ele poderia fazer tudo morando lá na fazenda, desde sua lista até o assassino do seu irmão.

Assim contratei meu segundo funcionário, um jagunço.

Não reparei a hora em que fomos dormir, mas o clarão do outro dia nos acordou. Fomos – guiados pelo jagun-

ço – para outra terra, um pouco mais povoada. Ele disse que precisava visitar algumas pessoas. Era domingo.

Chegando lá, procuramos por um senhor. Ele nos levou para os fundos de uma casa espaçosa, com um quintal muito grande. Disse que poderíamos tomar banho e trocar de roupas, pois estávamos imundos e já não cheirávamos tão bem. Tinha roupa do nosso tamanho no armário e podíamos escolher qualquer uma. A única ressalva foi que deveríamos estar prontos antes da cerimônia começar.

Vesti uma blusa branca e uma calça preta. Justino optou por uma roupa creme, e continuou com seu colete de couro por cima da blusa. Comemos e bebemos. Na varanda tinha um armário cheio de meiota e pudemos colocar duas na bolsa, como presente do dono da casa. Depois de guardarmos as coisas, o anfitrião disse para eu me assentar ao lado direito da mesa, para que eu pudesse assistir tudo de perto, mas não tão perto quanto Justino, que sentaria um pouco mais próximo da mesa que eu.

Aprendi a fazer os rituais da cerimônia na hora em que ela começou. Fiz meio torto, mas fiz. Respeitava a crença do meu jagunço, estava lá com ele e deveria participar de tudo. Quando acabou, olhei uma mulher ao longe e não consegui tirar os olhos dela. Justino olhou para mim, viu que estava olhando para ela e sorriu maliciosamente, como se eu quisesse algo com a moça. Fitava-a, mas desconsiderava a ideia de Justino. Fitava-a porque ela não me era estranha.

Chegando perto de mim, ele disse que a conhecia e que se eu desejasse falar com ela era só avisar. Ela, quando virou, bateu os olhos em mim e disse meu nome, como numa pergunta. Tremi. Tremi mais que o dia em que peguei o revólver pela primeira vez.

A volta

Marília Carreiro Fernandes

— O senhor veio das bandas do sul, não foi? — Sim – falei. — Esperava pelo senhor. Sei que procura por algo que não sabe o que é. Sei também que você vai encontrar o que precisa, mizifio. Eu posso lhe ajudar. — Quem é você? — Não nos conhecemos, mas posso lhe ajudar – repetiu, pegando o cachimbo.

Nosso primeiro contato foi exatamente assim. Fiquei completamente encabulado com aquela mulher sabendo de onde eu vinha e porque eu estava lá. Era conhecida de Justino, mas ele não podia ter falado com ela porque esteve ao meu lado o tempo todo. Fui falar com Justino, em particular.

— Justino, sei que você a conhece. Falou com ela antes de mim?

— Não, não falei. Ela se virou e nem me viu. Imediatamente falou com você. Ela lhe conhece de onde? — Nunca vi essa mulher. Por instantes fiquei reparando-a e percebi que parecia a mulher dos meus sonhos. Ou eu queria que fosse. Possuía as mesmas características: o cabelo, o olhar, a roupa branca. Tudo igual. Resolvi falar com ela dos sonhos e antes mesmo de eu pronunciar alguma palavra, ela, tragando o cachimbo, disse:

— Eu sei o que você procura, Bento. — Então me ajude.

— Você confia no sonho? — Confio. — Se confia, só tenho a dizer que em um dos cultos, foi revelado a mim que pras bandas do sul tem uma terra com casas, cercas e lagoas. Nessa terra existem pedras preciosas. E eu sei que são as suas terras. Volte para lá e procure-as. Você vai sentir a pedra perto de você. E quando tudo acontecer, utilize todas as maneiras que puder para encontrá-la. Se encontrá-la, não duvide que exista outra ainda maior. Elas podem estar enterradas tanto na terra quanto no céu.

Senti uma enorme frustração por ter andado dias por aparentemente nada. Ela prosseguiu:

— O céu que eu digo não é o céu de Deus e sim o céu dos homens.

E saiu. Fui atrás dela, para descobrir mais sobre a pista. Quando passei pela porta, a mulher já não estava mais lá. Perguntei para Justino quem era a mulher com quem eu havia conversado. Ele respondeu que eu não tinha falado com a mulher – uma grande mãe de santo daquela região – e sim com um espírito e que provavelmente eu não falaria com ele novamente. Justino continuou explicando que estávamos em uma cerimônia espírita. Perguntou se eu seguia alguma religião, eu disse que não. Aproveitei a oportunidade e esclareci que não me incomodava com suas crenças. Inclusive, achava interessante. Estava só assustado porque a mesma mulher que visitou os meus sonhos apareceu justamente onde aconteciam as reuniões dele. — As coisas são assim mesmo, Bento. — Assim como? — Providenciais. Você veio por causa de um sonho se encontrar comigo numa estrada que não conhecia. Imagino que você tenha criado um laço comigo por nunca ter tido um irmão e aparentarmos uma idade próxima. E

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eu me aproximei principalmente por encontrar muito do meu irmão em você. Nada acontece por acaso. E continuou: — Sou um pistoleiro, tenho minha vida. Quero me vingar de quem matou meu irmão e não escondi isso de você em nenhum momento. Você não disse nada para me condenar, então achei que compactuasse comigo.

— E compactuo. Acho que você tem que se vingar pelo seu irmão.

— Então. Também não sei nada mais da sua vida além do que você me contou. E eu acredito em você. Tendo você por perto parece que tenho meu irmão de volta. Não me leve a mal, não aceitei trabalhar para você somente por isso. Aceitei porque gosto do trabalho na lavra e há, pras bandas das suas terras, gente que eu quero. — Entendo. — Protegerei suas terras como se fossem minhas. Depois das revelações e das conversas, decidi voltar para casa. Como já era noite, o dono da casa sugeriu que dormíssemos lá e fôssemos embora à aurora do dia seguinte.

Já de manhã, arriamos os cavalos, arrumamos as bagagens e partimos rumo à vila. O que o espírito me disse ficou em minha cabeça da mesma forma que a última conversa com meu pai. As duas juntas pareciam uma só coisa. Um enigma dentro de outro enigma. Fomos para casa e, como tinha achado o que estava procurando, paramos menos no trajeto. No caminho de volta, Justino ainda me contou mais coisas sobre os nomes de sua lista. Os seis nomes eram de homens. Dois deles deveriam ser mortos por dívidas de terra. Eram da mesma família: pai e filho. Tomaram uma terra que não pertencia a eles e cons-

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