0067L21610 - Memorias Defunto Autor

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MEMÓRIAS DE UM DEFUNTO AUTOR

MEMÓRIAS DE UM DEFUNTO AUTOR

Dias César

Ilustrações de sergio alves
Murilo

MEMÓRIAS DE UM DEFUNTO AUTOR

(“... sob a pena da galhofa e a tinta da melancolia”)

Texto teatral de Murilo D. César

Ilustrações de Sergio Alves

Memórias de um defunto autor Copyright © Editora Sei Ltda, 2021

DECLARAÇÃO

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Direção editorial: Sandro Aloisio Edição: Caraminhoca Projeto gráfico e diagramação: Estúdio Caraminhoca Ilustrações: Sergio Alves Revisão: Caraminhoca

Material digital do professor: Roberta Martins Produção gráfica: Giliard Andrade

É permitida a alteração da tipografia, tamanho e cor da fonte da ficha catalográfica de modo a corresponder com a obra em que ela será utilizada. Outras alterações relacionadas com a formatação da ficha catalográfica também são permitidas, desde que os parágrafos e pontuações sejam mantidos. O cabeçalho e o rodapé deverão ser mantidos inalterados. Alterações de cunho técnico documental não estão autorizadas. Para isto, entre em contato conosco

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

César, Murilo Dias C421m Memórias de um defunto autor / Murilo Dias César; ilustrações Sergio Alves. São Paulo, SP: Editora SEI, 2021. 104 p. : il. ; 13,5 x 20,5 cm

ISBN 978 65 88620 24 3 (Aluno)

ISBN 978 65 88620 25 0 (Professor)

1. Ficção brasileira. 2. Literatura infantojuvenil 3. Teatro. I.Alves, Sergio II. Título.

CDD 028.5

Elaborado por Maurício Amormino Júnior CRB6/2422

1a edição - 2021

Editora Sei Ltda – CNPJ n.º 27.906.988/0001-09 Avenida Professora Ida Kolb, 551, 3 andar, sala 01, São Paulo/SP, CEP 02518-000

Impressão e acabamento

Oceano Indústria Gráfica e Editora Ltda Rua Osasco, 644 – Rod. Anhanguera, Km 33

CEP 07750-000 – Cajamar SP

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“Em respeito ao meio ambiente, as folhas deste livro foram produzidas com fibras obtidas de árvores de florestas plantadas, com origem certificada.”

CNPJ 19.893.722/0001 40

MEMÓRIAS DE UM DEFUNTO AUTOR

(“... sob a pena da galhofa e a tinta da melancolia”)

Texto teatral de Murilo D. César

Ilustrações de Sergio Alves

Personagens

Ator — napoleão de assis, jovem / napoleão de assis “em espírito”, idoso

Atriz i — marcela, jovem / idosa

Atriz ii — virgília, jovem / idosa

Ator ii — teixeira, jovem / idoso

Ator iii — fernando, jovem / idoso

Ator iv — john barleyhorn, o mordomo / padre / dom pedro ii / capataz / porteiro / juiz / tabelião

Cenário

Dividido em planos, de acordo com as necessidades. Sempre que preciso, o teatro todo, inclusive a plateia, deverá ser utilizado.

Opção: A ação poderá ocorrer num espaço abstrato, em que a interpretação dos atores, os figurinos, os adereços, as músicas, a sonoplastia e os efeitos de luz levarão o público a vivenciar os diversos ambientes indicados no texto.

Época

1860 a 1900 Local Rio de Janeiro

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Nota

Nesta peça, o autor presta sua homenagem ao “eterno bruxo” Joaquim Maria Manuel Machado de Assis. Longe de ser uma colagem de textos do mestre, o texto adapta à linguagem literária teatral apenas o início de Memórias Póstumas de Brás Cubas, para fazer um “passeio” ou uma “visitação” aos principais temas da obra do grande escritor — a hipocrisia, a vaidade, a traição, o ódio, a ambição, o poder, a vingança, o adultério, o niilismo entre outros — procurando captar teatralmente o original e sempre crítico universo machadiano.

Murilo D. César

Perfil dos personagens

Todos os personagens, com exceção de John Barleyhorn, o mordomo, sofrerão transformações a partir do momento em que Napoleão de Assis embarca para um “país indefinido”, a fim de realizar “grandes realizações e conquistas”.

Napoleão de assis

É o personagem que mais mudanças sofrerá durante toda sua trajetória e será apresentado em diversas etapas de sua vida. Juventude — Terá duas fases. Na primeira, Napoleão de Assis é o moço elegante, bonito, simpático, alegre, sonhador, um tanto ingênuo, “quase rico” e possuidor de uma razoável cultura (abandonou a Escola Politécnica). Seu sonho, como o da maioria dos rapazes de sua época e classe social, é se realizar através do casamento, com o qual espera construir um lar, em que terá, no mínimo, seis filhos e, principalmente, três cachorros. Na segunda fase, sete/dez anos após a primeira, depois de suas “grandes conquistas”, Napoleão, consciente do poder do seu dinheiro, torna-se pragmático, esperto, desconfiado, ensimesmado, embora continue lutando para realizar seu sonho de construir um lar com mulher, seis filhos e três cachorros.

Maturidade — Napoleão de Assis já não tem mais sonhos, mas desilusões e ambições. Enérgico, duro, avassalador. Agora tudo, inclusive a imprensa, serve-lhe apenas para aumentar sua fortuna e seu poder. Aparentemente dominado, passa a dominador dos sócios, à custa dos quais aumenta sua fortuna e faz vitoriosa carreira política. Napoleão maduro ama o dinheiro e o poder, que, para ele, se confundem e formam uma coisa só. Tanto que, a certa altura, o seu “espírito” rememora:

…O dinheiro, o meu dinheiro, me dava uma estranha e agradável sensação de poder… (filosófico) E o poder, podem acreditar, nos faz sentir igual aos deuses… Aos deuses!

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Velhice — Um político comum, medíocre, repetidor de chavões (“Neste momento único para a história de nossa pátria, tenhamos a coragem de dizer que o nosso povo, sofrido e trabalhador, deseja um governo do povo, pelo povo e para o povo”), envolvido pela corrupção de seu meio. Nessa fase, sua solidão é absoluta.

Em qualquer fase, Napoleão de Assis nada terá de herói. É apenas mais uma vítima do “deus e diabo do acaso” machadiano, em que o nome do personagem determina o seu destino. Por acaso, ele se chama “Napoleão”. Portanto, se ele, por acaso, se chama “Napoleão”, não poderá ser um homem comum, sendo permanentemente cobrado para realizar grandes feitos, grandes realizações, para fazer justiça ao nome que lhe deram. Parte então para “terras longínquas”, a fim de “honrar o nome que tem, conquistar”. Por acaso, ele se sai bem nessa conquista, enriquece… Por acaso, torna-se um medíocre e bem-sucedido político. Mas, para Napoleão, derrotas e vitórias acabam por se equivalerem e ele é sempre um homem amargo, solitário, sombrio… Alguém que, riquíssimo e poderoso em vida, ao “mergulhar no outro lado”, num amargo e definitivo adeus, diz que: “Nunca tive um único cachorro em toda minha vida!...”

Em síntese, o personagem Napoleão de Assis é um ser essencialmente trágico.

Napoleão “em espírito”

Um “espírito” sarcástico, solitário, ressentido, cruel, que, “antes de embarcar para o desconhecido”, aguarda o “grande momento” de sua vingança contra “os dois casais amicíssimos meus”, degustando-a sadicamente por antecipação. Um espírito que tem ódio, que não cessa nem quando está no “outro lado”. A não ser, talvez, depois de consumada a sua vingança.

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Marcela

A “melhor amiga” (notar as aspas. Ah, essas “melhores amigas…”) de virgília é apresentada em três fases distintas de sua vida.

Primeira fase — Uma típica jovem casadoira da pequena classe-média da época. Bonita, nível intelectual baixo (as mulheres de classe média e rica de então cursavam, no máximo, o chamado ginásio, liam romances açucarados e aprendiam boas maneiras femininas, música, geralmente piano, e dança), sua única perspectiva é um bom casamento com um bom partido. Para tanto, está sempre produzida, isto é, elegantemente vestida e de aparente bom humor. Já nessa primeira fase, Marcela mostra duas faces: uma, de moça ingênua, inocente, fútil e outra face de mulher um tanto interesseira (“Que é que tem você agora, Napoleão? Algumas propriedades e um emprego no funcionalismo público.”).

Segunda fase — Nesta fase, “pós-viagem” de Napoleão, Marcela mostrará outras facetas de sua personalidade. Sua personalidade de mulher ambiciosa e hipócrita aflora.

Terceira fase — Marcela se apresentará em total decadência física, psicológica e moral.

Virgília

A melhor amiga (na verdade, rival) de Marcela também é, nesta primeira fase, uma típica jovem casadoira da pequena classemédia da época. Bonita, elegante, de alguma cultura (lê jornais), sua situação social é melhor que a da amiga, do que resulta ser relativamente pouco o seu interesse pelo dinheiro de Napoleão de Assis. Em compensação, sua vaidade faz com que o pressione a se tornar “um homem de grandes realizações, aventuras, descobertas, conquistas… Um homem do mundo!” Na segunda fase (pós-viagem de Napoleão), como sua melhor amiga mostrará outras facetas de sua personalidade… Na terceira fase, também como a amiga, entrará em decadência física, psicológica e moral.

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Fernando

“Primo” (notar as aspas) de marcela. Na primeira fase, apresenta-se como um frívolo janota bajulador… Na segunda, um tipo esperto, falante, quase honesto, com muito jeito para os negócios. Torna-se sócio de Napoleão no comércio de exportação e tenta lhe passar a perna… Na terceira, é um homem tenso, endividado e dominado por Napoleão.

Teixeira

“Primo” (notar as aspas) de virgília. De nível intelectual superior ao de Fernando, com aptidão para discursos vazios e bajulatórios. Na segunda fase, torna-se sócio de Napoleão no jornal A Tribuna do Povo e, claro, tenta ludibriá-lo, mas… Na terceira, como seu amigo Fernando, é também um homem tenso, endividado, dominado por Napoleão de Assis.

Padre

Idoso, ar cansado, em fim de carreira.

Coroinha

Garoto pré-adolescente.

John barleyhorn, o mordomo

O único personagem não hipócrita da peça. De bom nível intelectual, coloca-se com total lealdade a serviço de Napoleão e é recompensado por isso. Inteligente e com muita experiência de vida, presta-lhe inestimável auxílio, impedindo que caia nas artimanhas de seus falsos amigos. A partir de certo momento, o relacionamento de ambos transforma-se: deixam de ser patrão e empregado para se tornarem grandes amigos e aliados.

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Imperador d. Pedro II

Surge apenas nos devaneios de Marcela. Como o próprio monarca na vida real, o personagem tem algo de solene, bondoso, paternal, compassivo e… e ridículo.

Juiz

Um juiz típico da época, um burocrata.

Porteiro

Senhor idoso, bonachão, nada autoritário.

Tabelião

Um tabelião típico.

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Murilo D. César

Antes do início do espetáculo, surge no telão colocado à frente do palco a poesia:

Ah, bruxo! Tu sabes que neste mundo Todos são iguais… perante o cemitério. Por isso não repousas em nenhum deles… Mas onde a dúvida, sempre ela, rói o frio mármore da verdade e da fé, e onde um velho e cansado diabo joga xadrez com nosso destino, estás sempre por ali, tu, bruxo zombeteiro, pairando no ar com tua pena irônica… Por ali e por aqui, junto de todos nós. Tu, sempre tu, imortal bruxo, que revolves em mim tantos enigmas. Tantos…

(Trecho adaptado da poesia de Carlos Drummond de Andrade em homenagem a Machado de Assis).

Sobrepondo-se à poesia, aos poucos, surge o rosto de Machado de Assis. A poesia vai sendo substituída pelo rosto, que se torna bem nítido. A imagem de Machado permanece por algum tempo, sendo substituída pela legenda:

“Marcela

me amou durante quinze meses e onze contos de

réis.” Machado de Assis

A legenda desaparece. Blackout. Música: Marcha fúnebre de Frédéric Chopin. Surge a imagem de um cemitério em telão no fundo do palco. Três fracos focos de luz sobre personagens imóveis: o primeiro sobre a “estátua viva” de Napoleão de Assis Idoso e “Em Espírito”, em pé num pedestal, com expressão irônica, encapotado e assistindo a seu enterro. Outro foco sobre um padre diante de um caixão de defunto, oficiando cerimônia fúnebre e o terceiro foco, ainda mais fraco, sobre dois casais e John Barleyhorn. Um violinista (ausente) toca a marcha fúnebre. A imobilidade se desfaz. Músi ca continua em tom mais baixo. A cerimônia fúnebre acontece em latim, em foco de luz um pouco mais nítido, está terminando. Não há necessidade de que o público entenda o breve ritual, mas apreenda seu sentido geral.

Observação: a tradução, colocada entre parênteses, servirá tão somente para auxiliar a interpretação do ator que, de modo algum, deverá pender para a caricatura.

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Padre

(Rezando. O tom eleva-se gradativamente) Oremus pro haec fidelium defunctus. (Oremus pelos fiéis defuntos). Requiem aeternam dona eis Domine. (Dai-lhe, Senhor, o descanso eterno). Et lux perpetua luceat eis. (Entre os resplendores da luz perpétua.) Domine exaudi orationem nostra (Ouvi, Senhor, a nossa oração) Et clamor nostrum ad te veniat. (E chegue até vós o nosso clamor). (Dando a bênção final e aspergindo água benta no caixão) In nomine Patris Deo omnipotenti et Filii Christus Iesus et Spiritui Sancti. Per omnia saeculae saeculorum, Napoleão de Assis, frater nostri, requiescat in pacem. Amen. (Em nome do Pai Deus Onipotente, do Filho Jesus Cristo e do Espírito Santo. Por todos os séculos dos séculos, Napoleão de Assis, nosso irmão, descanse em paz. Amém).

O padre asperge água benta no caixão e encerra a cerimônia. Volta a Mar cha Fúnebre num tom discreto. Luz geral apresenta os demais persona gens, que até aqui não passavam de apagados vultos, em volta do túmulo: Teixeira, Fernando, Virgília, Marcela e John Barleyhorn (realmente triste), todos envelhecidos. O padre passa a ocupar posição de segundo plano. Ouve-se agora Serenade, de Schubert, tocada pelo violinista ausente. Enquanto uma “garoa” começa a cair, incomodando os personagens e obrigando-os a abrirem guarda-chuvas e sombrinhas. Napoleão de Assis “Em Espírito” sai do pedestal e dirige-se ao público. Os demais personagens não o veem. A música Serenade continua num tom baixo.

Napoleão “em espírito”

(Nostálgico e irônico)

Fui enterrado hoje, mas morri ontem, às duas horas da tarde, numa agradável sexta-feira do ano de 1900, no Cemitério “Nova Esperança”, do Bairro Cosme Velho, aqui no Rio de Janeiro… Comigo morria um século glorioso e começava a nascer outro, que não vou ver,

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mas que auguro seja mais glorioso ainda… Eu tinha sessenta e quatro anos, rijos e prósperos… Morri de uma simples pneumonia, rico, talvez riquíssimo, no meio de um dos meus mandatos de senador e fui acompanhado ao cemitério por alguns amigos, entre os quais duas respeitáveis e belas senhoras, ou melhor, já não tão belas, que o tempo é o cruel e implacável inimigo de todos nós, especialmente das mulheres… Notem que chovia… Chovia, não; garoava… Umas gotinhas miúdas, incomodativas, que inspiraram um dos meus “melhores amigos”, o Teixeira, sempre muito esperto, a intercalar a engenhosa ideia de referir-se ao tempo em seu discurso fúnebre…

Teixeira

(Quase sincero, discursando)

Estamos aqui reunidos, meus senhores e minhas senhoras, para prestar esta singela e derradeira homenagem a Napoleão de Assis, que foi um dos mais dignos homens públicos de nosso país… Vós que, como eu, tão bem conhecestes este nosso ilustre barão e incorruptível senador, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando conosco a perda irreparável deste grande e ao mesmo tempo modesto homem público, que tanto honrou a humanidade…

Napoleão “em espírito”

(Ao público. Sempre irônico) Por favor, desculpem o meu querido amigo Teixeira… Talvez ele esteja tomado de forte emoção pela minha morte… e sempre foi um pouco exagerado…

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Teixeira

(Discursando)

Este ar sombrio, estas gotas de chuva, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul celestial como uma mortalha, tudo isso, nada mais é do que a dor profunda e cruel que neste momento rói as mais íntimas entranhas da nossa mãe-natureza… Tudo isso nada mais é do que um sublime louvor, uma última e definitiva homenagem que nossa mãe-natureza, irmanada conosco, irmanada com o nosso sofrimento e a nossa dor, presta a Napoleão de Assis, nosso querido e ilustre falecido, cuja morte prematura abre uma lacuna impreenchível em nossas vidas e na vida de nosso país…

Som da música aumenta. Teixeira apanha um punhado de terra e lança-o sobre o caixão. Tenta, sem sucesso, chorar e tira do bolso o lenço com que enxuga lágrimas inexistentes. Fernando, Marcela e Virgília procuram imi tá-lo. O som de Serenade se abaixa.

Napoleão “em espírito”

(Aos demais) Ah, meu querido, bom e fiel amigo Teixeira!… Ah, minhas queridas e respeitáveis senhoras!… Chorai, chorai por mim!… Mas ireis ter uma agradável surpresa quando o Tabelião Firmino abrir, diante de vós, o testamento que expressa a última vontade deste que acabais de homenagear…

Os personagens vão se retirando. John Barleyhorn faz uma referência ao falecido e é o último a se retirar. Napoleão volta a se dirigir ao público. Já se vão embora os meus queridos amigos… (Breve pausa) Até que gostei do meu enterro… Um enterro tranquilo, ouvindo o choro das duas distintas e queridas senhoras (será mesmo que choravam?), a chuva que tamborilava em meu caixão e, principalmente, a música, a bela música

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de Chopin, tocada por um excelente violinista, cujo pagamento foi, sem dúvida, rateado fraternalmente entre meus queridos amigos… Tudo isso, podem acreditar, foi muito menos triste do que eu próprio esperava… Para ser franco, o meu enterro foi uma cena deliciosa… (Breve pausa) Enquanto o meu corpo me condena agora à eterna imobilidade física e moral, e se decompõe lentamente, e se degrada, e se faz planta, e se faz pedra, lodo e pó, e se faz coisa nenhuma; enquanto desapareço da face da terra para todo o sempre, conto para vocês que me dão o privilégio de sua atenção, a minha história, a história de Napoleão de Assis, ou melhor, a história que fez com que esses meus quatro queridos amigos, deixando os seus muitos afazeres, viessem a este cemitério para, contristados, me prestar a última e talvez sincera homenagem… (Breve pausa)

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Memórias de um defunto autor

Não é uma história triste, mas também não é uma história alegre. Talvez seja até mesmo uma história interessante… Peço que a julguem por vocês mesmos… Só posso prometer uma coisa: eu, como defunto autor, contarei as memórias de Napoleão de Assis, as minhas memórias, da forma mais breve, mais sintética, mais sincera possível...

Enquanto se ouve a voz de Napoleão, a música Serenade vai lentamente desaparecendo, em sintonia com as luzes que se apagam em resistência. O telão no fundo do palco projeta a imagem de um jardim. Ouvem-se, vindos de certa distância, certamente de um baile, risos discretos e o som baixo de A valsa dos patinadores, de Johann Strauss II. Surgem, sob luz em foco, Napoleão e Marcela, ambos elegantemente vestidos à moda da época, em pleno vigor e beleza da juventude. Dançam. Ele diz algo ao ouvido dela. Ela, surpresa, sorri e param de dançar. Luz geral. A música continua em tom mais baixo.

Napoleão Então, qual é a sua resposta, Marcela?

Marcela

(Emocionada)

Nem sei o que dizer, Napoleão… Você é tão bom, tão… E eu pensando mal de você… Logo hoje que você vem me pedir em… (Soluça. Tenta chorar sem conseguir) em casamento!… Eu sou boba, boba mesmo… e ingrata, ainda por cima… Desculpe, Napoleão, me desculpe… Por um momento, cheguei a pensar que você e Virgília…

Napoleão (Compreensivo)

Marcela, que bobagem! Nunca tive nada com Virgília. Foi você mesma quem me apresentou a essa sua amiga e por isso que me senti na obrigação de dar alguma atenção a ela. Só por isso… Às vezes, até converso um pouco com Virgília por uma simples questão de educação.

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Marcela

Então está tudo esclarecido. (Suspira aliviada) Ainda bem! Foi só um ciuminho bobo que estava na minha cabeça, compreende?

Napoleão Compreendo.

Marcela

Posso lhe pedir um pequeno favor, Napoleão?

Napoleão Claro.

Marcela

Virgília é minha melhor amiga. Continue sendo cordial com ela… Mas só cordial, hem!

Napoleão (Carinhoso)

Marcela, você sabe muito bem que não existe nada neste mundo que você me peça e eu não faça.

Marcela

“Só cordial”, promete?

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Napoleão

Prometo: “só cordial”. (Riem) Então era esse o problema?

Marcela Era. Napoleão (Na expectativa) Bem, já que está tudo esclarecido e não há mais nenhuma peninha entre nós, quer dizer que… que você aceita minha proposta de casamento?

Marcela (Alegre) Aceito, Napoleão! Aceito!

Napoleão (Felicíssimo) Ah, maravilha! Maravilha! (Abraça-a. Uma valsa. Dançam alguns passos) Marcela, vamos marcar a data e anunciar agora mesmo o dia do nosso…

Marcela (Corta) Calma, Napoleão! Calma… Eu disse que aceito e…

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Napoleão

E... Marcela

E não aceito.

Napoleão (Surpreso) Como não aceita?! Marcela

Eu não aceito agora… para aceitar depois…

Napoleão Mas… Marcela E é por amor…

Napoleão Por amor?!

Marcela

Por amor a você, Napoleão… É por amor a você que eu não aceito… agora.

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Napoleão

Por amor a mim?

Marcela

Se eu aceitar agora, Napoleão, você vai se acomodar, se conformar com o que já tem, com o que você já é… Não vai aspirar, lutar para conquistar mais nada na vida. E o que é que você tem agora, além do que seu pai lhe deixou? Algumas propriedades e um emprego de amanuense no funcionalismo público…

Napoleão

Um emprego no funcionalismo público é um emprego seguro, garantido, todo mundo quer.

Marcela

Mas eu não quero… Eu não quero me casar com um, desculpe, um amanuense, um simples funcionário público. (Irônica) Napoleão-funcionário-público!

Napoleão

Mas seu pai, Marcela… Ele também é um amanuense no funcionalismo público…

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Marcela

E é por isso mesmo, Napoleão, que eu não quero me casar com um funcionário público… Mas a culpa toda de meu pai não progredir na vida foi da minha mãe que deixou que o meu pai se conformasse, que ficasse a vida toda naquela rotina… E eu vi quanto minha mãe sofreu e ainda sofre… A vida toda economizando para o dinheiro render até o fim do mês… A vida toda sem sair uma única vez aqui do Rio de Janeiro, sem se divertir, sem passear, sem viajar… Só, só economizando!… E olha que meu pai é chefe de seção… (Breve pausa) Eu não quero que o meu futuro marido Napoleão fique igual ao meu pai e eu leve uma vida igualzinha à da minha mãe…

Napoleão

Desculpe, Marcela, não quero ser rude, mas será que você não está sendo um pouco… só um pouco… (Não completa)

Marcela

“Egoísta”, você quer dizer?… Se eu fosse uma mulher egoísta, Napoleão, aceitava a sua proposta de casamento e pronto… Para mim, estava tudo resolvido… Mas eu amo você, Napoleão! E, por isso mesmo, não estou sendo egoísta: eu penso em nós, em nós dois… Eu quero que você seja um homem de iniciativa, dinâmico, arrojado, bemsucedido, sempre progredindo na vida… e não um simples funcionário público, entende?

Napoleão

(Aborrecido)

Entendo… Acho que entendo…

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Marcela

(Carinhosa)

Meu tolinho!… Você está triste?… Nós dois, Napoleão, vamos ficar juntos para sempre, você vai ver… Esqueceu que seu nome é Napoleão? E eu sou… (Brincalhona) a sua princesa austríaca Marcela, filha do grande Imperador Francisco I?… (Devaneia) A princesa austríaca!… (Quebrando o clima) Li isso tudo num livro que a Virgília me emprestou sobre a vida do outro Napoleão, o Bonaparte… (Breve pausa) Napoleão, esta noite eu sonhei com você, com nós dois, com o nosso lar… (Lembrando) Já tínhamos uns dez anos de casados…

Napoleão (Corta) Quantos filhos?

Marcela

(Algo irritada pela interrupção) Dois… Dois filhos!

Napoleão Só dois? ... E três cachorros?

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Marcela

Um cachorro – e já é muito!… Napoleão, não me interrompa! (Volta à agradável lembrança) E estávamos comemorando de dez anos de casamento… Uma noite de gala, linda, maravilhosa... Recebemos os mais ilustres convidados… Até o imperador D. Pedro II veio, na sua magnífica carruagem imperial, para a nossa festa…

Marcela devaneia. Música: A valsa do imperador, de Johann Strauss II. Luz imaginação. Surge no telão no fundo do palco um grande salão de baile o Imperador D. Pedro II.

D. Pedro II (Galante) Como vai, Sra. Marcela de Assis? Cada vez mais formosa?

Marcela (Deslumbrada)

Vou muito bem, Majestade!… (emocionada) Muito… Muito obrigada por perguntar…

D. Pedro II

É uma honra ter o prazer de visitar vossa bela casa

Marcela

A honra é minha, Majestade.

Memórias de um defunto autor 26

D. Pedro II

Nesta noite esplêndida em que o distinto e ilustre casal comemora dez anos de feliz casamento, a Sra. Marcela de Assis concede-me o prazer de uma contradança?

Marcela

O prazer é meu, Majestade.

D. Pedro II faz a mesura típica e começam a dançar A valsa do imperador. Ela está tomada de felicidade e/ou vaidade. Logo Dom Pedro II e a “luz ima ginação” desaparecem, mas Marcela não nota isso e continua dançando…

Napoleão

(Despertando-a)

Marcela!… Marcela!… Marcela! (Estala os dedos) Acorde!

Marcela

(A música cessa. Ela acorda e suspira. A imagem do grande salão desaparece)

Ah, meu Deus!… (Breve pausa. Volta a si) Que festa maravilhosa... Só tinha gente importante, ilustre…

Napoleão Onde?

Marcela

(Com um quê de irritação)

Na nossa magnífica festa de dez anos de casamento, ora essa! (Breve pausa) Aliás, você também era importante…

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Napoleão

(Entrando no jogo)

E quem eu era?

Marcela

Você era um comendador, um político, um deputado, que nem aquele que eu vi uma vez fazendo um discurso muito bonito no largo da matriz.

Napoleão

(Irônico)

Não quero ser deputado, não. Deputado é muito pouco. Eu vou ser um… um senador!

Marcela

Um senador?!… Senador é mais importante que deputado?

Napoleão

Muito mais. É por isso que vou ser senador.

Marcela

(Sem perceber a ironia)

Nunca vi um senador… (Pensativa) Você sabe o que faz um senador, Napoleão?

Napoleão

(Tenta disfarçar a ignorância)

Bem, um senador… Um senador é uma pessoa fina, educada, culta… Um cavalheiro!… Um cavalheiro muito

Memórias de um defunto autor 28

importante que faz muitas coisas… Vai ao Senado da República e… e faz muitas coisas… muitas coisas importantes…

Marcela

Como se chama a esposa de um senador?

Napoleão

(Reflete)

Esposa de embaixador é “embaixatriz”. Logo, esposa de senador é “senatriz”… ou senadora… Preciso consultar o dicionário…

Marcela

(Refletindo)

“Senadora… ou “senatriz”?… Acho que é mesmo “senatriz”… (devaneando) Senatriz!… (afirmativa) Esposa de “senador” é “senatriz”!… (breve pausa) E esposa de ministro, Napoleão, como se chama?

Napoleão

(Enfadado)

Acho que é ministra… (longe) Ah, não sei…

Marcela

(Refletindo)

Ministra… Éééé, “ministra”… Então, Napoleão, você vai ser “ministro” e eu vou ser… ministra! (Pensativa) Isto mesmo: Ministra!… Que é que faz um ministro, Napoleão?

Murilo D. César 29

Napoleão

Bem, um ministro… um ministro ajuda o Imperador a… (Interrompe-se ao notar que Marcela devaneia de novo)

Pausa. Um rapaz, elegante e simpático, aproxima-se do casal: é Teixeira.

Napoleão

(Como se a estivesse acordando) Marcela!

Marcela

(Como se despertasse) Ah! Teixeira

Oh, desculpe! (Vai dar meia volta)

Memórias de um defunto autor 30

Marcela

(Chamando-o)

Teixeira! Teixeira, por favor! (Ele volta-se) Quero lhe apresentar Napoleão. (A Napoleão, apresentando-os) Napoleão, este é Roberto Teixeira, meu primo.

Napoleão (Formal) Muito prazer.

Teixeira (Loquaz)

O prazer é meu, todo meu, Sr. Napoleão. Que belo nome o senhor tem: “Napoleão”!… Aliás, falando em “belo”, belíssimo dia, hem!… Ah, espero não estar incomodando o distinto casal. Se estiver, por favor, me digam que eu…

Marcela

De jeito nenhum. Pelo contrário.

Teixeira

É mesmo um prazer conhecê-lo, Sr. Napoleão… Acho que já nos conhecemos, ou melhor, acho que já conheço o senhor de vista. De onde mesmo?… Ah, lembrei! Por acaso o senhor não estudou no Instituto Politécnico?

Napoleão

Apenas até o segundo ano. Depois, eu…

Murilo D. César 31

Teixeira

(CORTA)

Depois vieram os compromissos, os muitos compromissos da vida que fizeram o senhor desis… (não completa) Então, fomos colegas… Falavam muito bem do senhor no Instituto Politécnico, sabia? E eu sempre tive muita vontade de conhecer o Sr. Napoleão e só agora surgiu a feliz oportunidade… Mas que coincidência! Encontrar o senhor aqui, justo em casa de Marcela, minha querida prima. É um prazer, um imenso prazer que eu não posso deixar de…

Continua falante. Música ou som impede que se ouça o que diz. Napoleão, enfastiado, não lhe presta atenção e, às tantas, sai. Sem notar sua saída, Teixeira, muito animado, continua conversando com Marcela, que ri de algo engraçado que ele lhe diz. Napoleão deixa o casal conversando e se dirige ao público.

Napoleão “em espírito”

(Rememorando)

Comendador, deputado, senador, ministro… Refleti sobre a minha conversa com Marcela e concluí que eu nunca iria chegar onde ela pretendia que eu chegasse… Tudo o que eu então queria na vida era muito simples: ser como todo mundo, ter um lar, um lar feliz, uma bela esposa, dois filhos… Dois, não; uns cinco, seis filhos… e três cachorros! Resolvi deixar minha proposta de casamento a Marcela “em suspenso” e fui procurar Virgília… Ah, Virgília!… Ah! Ia me esquecendo de contar para vocês: eu era um rapaz elegante, bonito, alegre, simpático, rico… Rico, não; quase rico… Meu pai me havia deixado diversas propriedades, dinheiro em banco, apólices… Numa coisa Marcela estava certa: o emprego no funcionalismo público não me servia, eu não precisava dele… (breve pausa) Como estava dizendo: eu era um rapaz elegante, bonito, simpático, quase rico e era natural que tivesse mais de uma pretendente… ou,

Memórias de um defunto autor 32

para ser exato, duas: Marcela e Virtília… Éééé, Virgília, a melhor amiga de Marcela… Claro que uma não sabia que eu também namorava a outra ou eu pensava que não sabia… Até então eu estava numa dúvida, uma dúvida cruel, sobre com qual das duas iria me casar “quase recusa” de Marcela à minha proposta de casamento talvez me ajudasse a decidir… Pensando bem: as duas eram muito parecidas… Afinal, as mulheres de um modo geral, são muito parecidas... Eu estaria bem casado com Marcela ou Virgília... (Devaneia) Virgília!… Ah, Virgília!… Agora eu tinha certeza ou quase certeza: Virgilia é quem realmente eu amava!… Ela seria a mulher de meus sonhos, de toda a minha vida… Com minha querida esposa Virgília, eu teria um lar, formaria família, uma grande família, com cinco, seis filhos, três cachorros… (corrige-se) Marcela que casasse com um comendador, deputado, senador, ministro…

Luz em foco sobre Napoleão jovem, com expressão séria, e Virgília, um tanto irritada. O casal está passeando. Luz geral. Imagem de um belo jardim em telão no fundo do palco. Virgília porta uma sombrinha.

Napoleão (Enérgico) Srta. Virgília, tenho o direito de exigir uma explicação. A senhorita não me dirigiu uma única palavra na mesa, durante o almoço. Morri de vergonha na presença de sua família. E logo hoje que eu pretendia pedir a…

Virgília (Corta) Quer saber o motivo?

Murilo D. César 33

Napoleão

Quero. Virgília Então faça o favor de pôr a mão na sua consciência.

Napoleão Já pus, Virgília… O que eu fiz de errado?

Virgília Sr. Napoleão, não me diga que não sabe. Napoleão Não sei. Virgília Jura?

Napoleão

Juro. Breve pausa.

Memórias de um defunto autor 34

Virgília

Você e… e minha amiga Marcela.

Napoleão

(Preocupado)

Sua amiga Marcela? (Mente) Virgília, mal conheço essa sua amiga… Pensei que vocês duas fossem apenas conhecidas e não amigas…

Virgília

Somos muito amigas, por sinal.

Napoleão

E o que tem a sua amiga Marcela?

Virgília

Vi muito bem você olhando para ela com certo ar de…

Napoleão

Ar de quê?

Virgília

Ora, você sabe muito bem. Outro dia, você estava comigo, Marcela ia passando, você olhou para ela, cumprimentou-a e disse para mim, ou melhor, para você mesmo: “Que moça bonita!”… Disse ou não disse?

Murilo D. César 35

Napoleão

Não me lembro… Se eu disse, falei por falar… E daí? Isso só prova que acho sua amiga Marcela bonita e ponto final. Tem estátua que também acho bonita e nem por isso estou interessado em namorar essa estátua… (intencional) Ou melhor, em me casar com essa estátua…

Virgília

(Agradavelmente atingida)

Você disse: casar… com a estátua?

Napoleão

(Sincero)

Eu disse que não estou interessado em me casar com a estátua, mas… mas estou interessado — e muito — em me casar com a senhorita… Em me casar com você, Virgília!

Virgília

(Emocionada) Casar comigo?!

Napoleão

Casar.

Virgília

Posso entender suas palavras como uma proposta de casamento?

Memórias de um defunto autor 36

Napoleão

Minhas palavras são uma proposta de casamento. Pausa. Expectativa.

Virgília Então, Napoleão, devo responder que… (Detém-se)

Napoleão Que aceita?

Virgília Que aceito e… Napoleão (Radiante, toma-lhe a mão) Maravilha! Maravilha! Virgília, vamos anunciar já o nosso…

Virgília (Corta) Calma!… Eu disse que aceito e que… que não aceito!

Napoleão (Surpreso) Como “não aceita”?! Breve pausa.

Murilo D. César 37

Virgília

Já ouviu falar em Sir Francis Burton, Napoleão?

Napoleão

(Algo irritado)

O que é que esse cavalheiro tem a ver com a minha proposta de casamento?

Virgília

Ouviu ou não ouviu?

Napoleão

(Lembrando sem interesse)

Li nos jornais qualquer coisa sobre ele… É um inglês que foi cônsul do país dele no Brasil ou coisa parecida…

Virgília

E o que mais?

Napoleão

Ah! Junto com um amigo, encontrou as fontes do Nilo ou algo assim…

Virgília

Exatamente. E Sir Henry Stanley?

Memórias de um defunto autor 38

Napoleão

(Contendo a irritação)

O que tem esse tal de Stanley?

Virgília

Ouviu ou não ouviu falar dele?

Napoleão

(Lembrando)

Henry Morton Stanley foi o explorador inglês que encontrou o Dr. Livingstone, perdido no sertão da África. Li nos jornais que…

Virgília

(Irônica)

Você leu nos jornais… O meu Napoleão de Assis sempre lê nos jornais!

Napoleão

E tem alguma coisa demais ler nos jornais?

Virgília

(Algo irritada)

Você não entende mesmo? Esqueceu que seu nome é “Napoleão”?

Murilo D. César 39

Napoleão

E daí que meu nome é Napoleão... de Assis, Virgília?

Virgília

(Sincera)

Napoleão, vou ser muito franca com você: estou apaixonada por outro homem!

Napoleão

(Surpreso, nervoso)

Outro homem! Então você tem outro homem! Que absurdo! Era só o que me faltava! (Anda, procurando se acalmar)

Virgília

Quer fazer a gentileza de me ouvir, Napoleão?

Napoleão

Pelo menos você está sendo sincera. Posso perguntar quem é esse… esse cavalheiro?

Virgília

Este outro homem é mesmo um “cavalheiro”, como você diz… Ele é elegante, bonito, jovem, simpático… Pode ter a mesma aparência que a sua… Pode ser até você, Napoleão!

Napoleão

Como assim?

Memórias de um defunto autor 40

Virgília

(Animada)

É um homem de grandes feitos, grandes realizações, viagens, aventuras, descobertas, conquistas… Um grande homem, um homem do mundo! Repito: seu nome é “Napoleão”, esqueceu?

Napoleão

(Mais calmo)

Napoleão… de Assis. Meu nome é Napoleão de Assis. Apenas. Não tenho nada a ver com o outro, o Napoleão Bonaparte.

Virgília

Pois eu quero que tenha!

Napoleão (Irônico)

Vou então já para o Palácio Imperial pedir ao Imperador Dom Pedro II que me nomeie general e sair por aí, conquistando o mundo inteiro…

Virgília

Você não entendeu nada. Se eu citei Sir Francis Burton e…

Napoleão (Corta)

Entendi, sim! Você quer “apenas” que eu seja um Sir Francis Burton ou um Henry Stanley!

Murilo D. César 41

Virgília

É mais ou menos isso…

Napoleão (Irônico)

Se um já encontrou a fonte do Nilo e o outro já encontrou o Dr. Livingstone, para mim sobra bem pouca coisa…

Virgília

É o que você pensa, Napoleão!… Você não entendeu nada: o que eu não quero é que você seja um homem sistemático, rotineiro, monótono… que vai proporcionar à sua esposa uma vida sistemática, rotineira, monótona… O futuro, o futuro vai me dar razão e você vai me agradecer.

Memórias de um defunto autor 42

Napoleão

Virgília, entendi tudo: viajo para a África, China, Índia, Japão — fico rico e famoso, volto e aí você aceita a minha proposta de casamento… (sarcástico, discursivo) “Napoleão”… de Assis, o grande, maior que o outro, após retumbantes vitórias, volta para a sua pátria, sendo aclamado pela multidão e sagrado cavalheiro pelo imperador… Depois de tantas conquistas e glórias, “Napoleão”… de Assis, o grande, volta com o peito cheio de medalhas e uma coroa de louros na cabeça e pede humildemente a mão de sua amada Virgília em casamento!…

Virgília

(Irritada)

Você não entendeu nada! Nada! O que estou tentando dizer a você é que eu não… Ah, desisto de explicar! Desisto! Você não precisa ir para o outro lado do mundo para… (detém-se)

Alguém se aproxima: é Fernando que, ao ouvir a voz de Virgília, recua.

Fernando Oh, desculpe!… (dá meia volta)

Virgília

(Chamando)

Fernando, por favor! (Ele volta-se) Fernando, quero lhe apresentar Napoleão. (apresentando-os) Napoleão, este é o meu primo Fernando.

Napoleão (Irônico, a si mesmo) Parece que hoje é “o dia dos primos”…

Murilo D. César 43

Virgília

Que foi que você disse?

Napoleão

Nada, nada. (Cumprimentando-o formalmente) Muito prazer, Sr. Fernando. Fernando (Falante)

Fernando, um criado a seu inteiro dispor… Mas que magnífico nome o senhor tem: “Napoleão”!… Parece que já conheço o senhor de vista, de algum lugar. A sua fisionomia não me é estranha, pelo contrário, me é bem familiar… (expressão de enfado de Napoleão) Aliás, minha querida prima Virgília fala muito bem do senhor e agora vejo que tem toda razão. Todos nós da família sabemos que o Sr. Napoleão de Assis é um autêntico cavalheiro, uma pessoa muito distinta, muito atenciosa, muito educada…

Música ou som impede que se ouça o que diz. Fernando continua dispa rando as palavras. Logo os três, ou melhor, os dois, Fernando e Virgília se colocam à vontade. Fernando parece estar contando um caso engraçado ou uma anedota. Os três riem. Virgília com certo exagero e Napoleão, um tanto forçado. De repente, ele passa de aborrecido a preocupado. A luz apaga-se em resistência.

Memórias de um defunto autor 44

Passagem de tempo. Imagem de um porto em telão no fundo do palco. Luz em foco sobre Napoleão, sozinho, muito tenso, de malas na mão, pronto para embarcar. Sons característicos de porto. Música ou som indicando solidão. Ele deixa as malas no chão e, abatido, aguarda. Reflete. “Luz-me mória” alterna-se sobre Marcela e Virgília.

Marcela

Eu te amo, Napoleão, eu te amo… E é por isso que eu penso muito em nós dois… Eu quero que você seja um homem de iniciativa, dinâmico, arrojado, bem sucedido, sempre progredindo na vida… e não um funcionário público, entende?…

Foco de luz sobre Marcela desaparece e acende-se sobre Virgília.

Virgília

Este outro homem é um homem de grandes feitos, grandes realizações, grandes viagens, aventuras, descobertas, (enfática) conquistas!… Um grande homem, um homem do mundo! Repito: seu nome é “Napoleão”, esqueceu? Napoleão!

A alternância de focos de luz continua. Marcela e Virgília sorriem, convida tivas, para Napoleão, indeciso e angustiado.

Marcela

Napoleão, eu aceito e… não aceito.

Virgília

Napoleão, eu aceito e… não aceito.

Focos de luz desaparecem sobre as duas. Agora Napoleão ouve suas vozes que se sobrepõem e, por vezes, se confundem, ficando a ressoar em eco.

Murilo D. César 45

Marcela/Virgília

(Vozes em off)

E que você tem agora, Napoleão, além do que seu pai deixou? / Você não entendeu nada, Napoleão. O que eu não quero é que você seja… / Napoleão, sonhei com você, com nós dois, com nosso lar… Já ouviu falar de Sir Francis Burton, Napoleão?… E Sir Henry Stanley?… Esqueceu que seu nome é “Napoleão”? / Esqueceu que seu nome é Napoleão?… Napoleão! Napoleão! Napoleão! Napoleão! Napoleão!… (O nome “Napoleão”, repetido quase “ad infinitum” pelas vozes de Marcela e Virgília, ecoa nos ouvidos de Napoleão de Assis)

Napoleão

(Explode, lancinante)

Pelo amor de Deus! Vocês duas parem com isso!… Parem com isso, senão eu vou ficar…

Percebe que está só. Acalma-se. Sente um imenso vazio. Sirene e / ou apito de navio. Napoleão hesita por instante, recompõe-se, apanha as malas e “embarca”… a luz vai se apagando lentamente…

Imagem de uma “plantation” projetada em telão no fundo do palco. Sons típicos de fazenda ou grande plantação. Música local, cantada em coro: um lamento ou uma elegia. Napoleão de Assis surge diferente: a luta pela vida e / ou pelo enriquecimento tornou-o desconfiado, rijo, áspero. Veste -se como um patrão colonial branco, com revólver visível na cintura. Está sentado numa rede, fumando charuto. Fala ao capataz, abaixado, humil de, chapéu na mão, de costas para o público.

Capataz

Sinhô, nóis tamo tudo trabaiando de sor a sor...

Memórias de um defunto autor 46

Napoleão

(Áspero)

Eu também estou trabalhando, dando duro... A ordem aqui é trabalhar, trabalhar, trabalhar!... Não quero ver ninguém por aí na boa vida!… Olha aqui, já estamos em cima do prazo da entrega!… Escuta bem o que estou dizendo: toda a colheita — Toda — tem que ser feita esta semana de qualquer maneira…

Capataz

Sinhô, mi discurpe, mas só uma semana num vai...

Napoleão (Corta, irritado) Você é ou não é meu capataz?

Capataz

Sô seu capataiz, sim sinhô. Mas...

Napoleão (Mais irritado)

Então não me venha com desculpa, com conversa fiada que eu não quero ouvir mais nada! Repito: a ordem aqui é trabalhar, trabalhar, trabalhar!… Chega de conversa! Agora, vá fazer essa corja de vagabundo trabalhar, antes que perca a paciência e mande botar muita gente no tronco! Vai, vai, vai!

Murilo D. César 47

Capataz

(Humilde, fazendo reverência) Vô indo, meu sinhô... Vô indo... (Sai.)

Napoleão

(Saindo da rede, faz gesto de desprezo, dá uma baforada, tira o chapéu, enxuga o suor do rosto com lenço, abana-se. Ao público) Este calor dos diabos desta terra maldita acaba comigo!…

Esses escravos nativos são uma cambada de vagabundos! Se a gente não os trata no chicote, não produzem nada! É por isso que eu sempre fui contra a abolição da escravatura… (Observa “os seus domínios”) Esta terra só serve pra gente ganhar dinheiro… (Reflete) Já ganhei um bom dinheiro e fiquei tempo demais por aqui… Chega!… Vendo a casa-grande, colheita, as máquinas, as ferramentas, a terra, a escravaria, tudo!… E volto para o meu país… Fiz um ótimo negócio: ganhei muito mais dinheiro do que eu mesmo esperava… Valeu a pena!… Claro que valeu a pena!

Solta uma baforada e reflete sorridente. A luz apaga-se lentamente.

Luz. Uma reunião. Sala ou um local que dê ideia de um bar de certa sofisti cação. Os outros personagens também sofreram transformações. Se antes tinham certo ar ingênuo, agora todos têm um quê de esperteza, de manha, de matreirice. Os figurinos, a maquiagem, a voz e a interpretação do elen co devem fazer com que o público sinta essa mudança. A partir de agora o próprio sentido da peça se altera. Nota-se intimidade entre os casais: Fernando/Virgília e Teixeira/Marcela. Há tensão no ambiente. Marcela e Virgília passam os olhos pela carta que cada uma traz na mão. Após algum tempo, começam a falar e os homens a ouvi-las com atenção.

Memórias de um defunto autor 48

Marcela (Azeda) Napoleão… Napoleão de Assis está de volta…

Virgília (Mostra)

Como andam as coisas, meu Deus! Esta carta, que ele teve a coragem de me mandar, prova que não existem mais moral e decência neste mundo.

Marcela (Mostra carta)

Esta outra mostra muito bem que o tempo todo ele nos enganou e, agora que está para voltar, tem o descaramento de nos escrever… (Com raiva contida) É um… um… um cínico!

Virgília

Depois de tudo, Napoleão ainda pensa que vai se casar com uma de nós… (Irônica) Só se for com você, Marcela!

Marcela (Irritada)

Virgília, você está me ofendendo, sua…

Fernando Calma, por favor!

Murilo D. César 49

Teixeira

Calma! Calma!

Breve pausa.

Virgília

Desculpe, Marcela. Falei sem pensar. (Comenta) Que sujeito pretensioso! Que ele pensa que é? Larga tudo, vai para outro país, se mete no meio do mato, fica muito tempo sem dar notícia e, de repente, resolve voltar, pensando que vai encontrar aqui tudo exatamente como deixou… Que petulância!

Marcela

Agora que Napoleão está muito rico, acha que o dinheiro pode comprar tudo.

Virgília

Quando ele chegar, vai descobrir que nem tudo o dinheiro compra, ele vai ver.

Marcela

Napoleão que não apareça na minha frente!

Virgília

Muito menos na minha!

Fernando e Teixeira entreolham-se. Teixeira faz sinal a Fernando para que tome a palavra.

Memórias de um defunto autor 50

Fernando (Cauteloso)

Eu e o Teixeira estivemos conversando com muita serenidade sobre o problema da volta de Napoleão… Analisamos cuidadosamente todos os diferentes aspectos dessa questão e concluímos que vocês duas, mulheres sensíveis e inteligentes, precisam ser um pouco mais razoáveis, um pouco mais compreensivas…

Marcela

Razoáveis? Compreensivas?!

Virgília Como “compreensivas”?! Compreender o quê?!

Teixeira

É esta a palavra exata: “compreensivas”!

Fernando

Compreensivas!… E pedimos que façam tudo… tudo o que estiver ao alcance de vocês para que Napoleão de Assis, em seu regresso, encontre no meio de seus legítimos amigos um ambiente cordial, fraterno, acolhedor…

Marcela (Irônica)

Ambiente cordial, fraterno, acolhedor? Que absurdo!

Murilo D. César 51

Virgília

Então vocês esperam que nós tratemos Napoleão com…

Teixeira

(Corta)

Por favor, compreendam: as coisas mudam!… Napoleão vai ter muita dificuldade de se readaptar, de recomeçar sua vida em nosso país, entre nós… e vai precisar muito do nosso apoio…

Fernando

Será que precisamos ser mais claros? (Ponderando) Orientar nosso querido amigo Napoleão, que agora possui um capital respeitável, a fazer bons investimentos é uma questão de patriotismo, de dever para com a nossa cidade e o nosso país… E esse dever, pensem bem, está acima de tudo, até muito acima de nós mesmos…

Pausa. Refletem.

Memórias de um defunto autor 52

Teixeira

Marcela e Virgília, por favor, atentem para algo muito importante: a “compreensão” e, principalmente, a “colaboração” de vocês são indispensáveis para que nosso objetivo de orientar o nosso querido amigo Napoleão em seus investimentos financeiros seja plenamente alcançado.

Fernando

A nossa maior preocupação é que Napoleão, inexperiente como ainda é, se deixe influenciar por pessoas sem escrúpulos, faça maus negócios, perca dinheiro, se decepcione e resolva aplicar seus investimentos no exterior e não em nosso país… E, sem investimentos não há desenvolvimento, não há progresso, não há empregos…

Teixeira

Trata-se também de uma questão de patriotismo...

Fernando

Exatamente. É também uma questão de patriotismo!

Breve pausa.

Teixeira

Compreendemos muito bem que vocês têm todos os motivos para estarem ressentidas com Napoleão, mas…

Murilo D. César 53

Virgília

Temos mesmo.

Marcela

Ele enganou nós duas o tempo todo.

Teixeira

Desculpem, não quero defender ninguém, mas o nosso amigo Napoleão não enganou vocês duas, mas apenas uma de vocês, o que é bem diferente…

Virgília

Como não enganou a nós duas?

Marcela

Que absurdo!

Teixeira

Por tudo que vocês nos disseram, só podemos concluir que, com uma de vocês, Napoleão estava sendo muito sincero e iria mesmo se casar; com a outra, não. E é essa outra que, de fato, ou melhor, talvez, Napoleão tenha enganado…

Virgília

Por acaso, você pode nos dizer então com qual de nós duas Napoleão estava sendo “sincero”?

Memórias de um defunto autor 54

Teixeira

Como vocês duas praticamente recusaram a proposta de casamento dele, isso agora é impossível.

Fernando (Algo irritado)

Por favor, estamos perdendo tempo precioso. Esse assunto não vem ao caso agora. Já está completamente superado.

Teixeira

Lembrem-se: ressentimentos não levam a nada, a absolutamente nada. O que passou, passou, é passado… Sejamos práticos e voltemos agora os nossos olhos para o futuro que se descortina diante de nós… Só o futuro, o porvir é que nos interessa!

Fernando O futuro! O porvir!

Teixeira

Justamente por pensar no futuro, no porvir, é que temos de pensar também no presente. E o presente agora é a chegada de nosso querido amigo Napoleão de Assis. E o presente exige de nós ponderação, bom senso, muito bom senso…

Murilo D. César 55

Fernando

A coragem do bom senso!

Teixeira

Então, estamos todos de acordo?

Refletem. As duas mulheres cochicham e fazem gestos de concordância.

Fernando

Já que tudo foi discutido democraticamente entre nós e ninguém mais se opõe, precisamos começar os preparativos para dar as boas-vindas ao nosso querido amigo Napoleão.

Teixeira

(Animado)

Meus amigos, temos muito trabalho pela frente! (Empolgam-se)

Virgília

Não acham que Napoleão vai se sentir muito bem se for recebido com um pouco de música?

Marcela

Napoleão adora música!

Teixeira Excelente ideia!

Memórias de um defunto autor 56

Virgília

A esposa do maestro Cardim é minha amiga. Eu posso conseguir com ela que o marido, que é maestro, mande alguns músicos tocar na chegada de Napoleão.

Teixeira

Que tal umas garrafas de champanha para comemorar a volta do nosso amigo Napoleão?

Fernando Ah, os meus amigos investidores!… Vou convidar alguns dos nossos maiores investidores para recepcionar Napoleão com a gente!

Marcela

Que vocês acham de uma notinha nas colunas sociais? Tenho duas amigas que são colunistas e…

Teixeira

(“Atropelando” Marcela)

Ah, a imprensa! Boa ideia! Meus amigos da imprensa!… A volta de Napoleão é notícia, notícia importante!… Podem deixar a imprensa comigo!

Surgem outras “ideias” para a recepção ao “amigo Napoleão”. Os quatro estão animadíssimos. Falam quase ao mesmo tempo, gesticulando. Mú sica animada ou efeito sonoro impede, por algum tempo, que se ouça o que dizem.

Murilo D. César 57

Virgília

(A Fernando)

Precisamos ser discretos na presença de Napoleão, (Intencional) querido “primo” Fernando…

Fernando

Perfeitamente, querida “prima” Virgília… (Abraça-a)

Marcela

“Primo” Teixeira, nós também precisamos ser discretos na presença de Napoleão…

Teixeira

Discretíssimos, “prima” Marcela!… (Abraça-a)

Marcela

Não vamos magoar nosso amigo Napoleão por tão pouco…

Fernando

Eu sempre admirei o senso prático das mulheres… Principalmente das nossas queridas “primas”… (Riem)

Teixeira

Mãos à obra! Vamos preparar uma bela recepção ao nosso querido amigo Napoleão!… Ao trabalho!

Memórias de um defunto autor 58

A luz se apaga. Foco de luz sobre Teixeira. Está numa sala comum, diante de um espelho, “ensaiando” seu discurso, tentando fazer pose de orador. Tem uma pena e uma folha na mão, cujo conteúdo procura decorar.

Teixeira

(Discursa, ensaiando)

Estamos aqui reunidos, meus senhores e minhas senhoras, para esta modesta, porém sincera recepção ao nosso querido amigo Napo… (Detém-se. Reflete) “Meus senhores e minhas senhoras”… Hum… Será que não está formal demais?… (Acode-lhe uma ideia) Mudemos! (Põe a pena num tinteiro e corrige no texto) “Meus amigos e minhas amigas”… Melhor! (Lê, refletindo) “Modesta, porém sincera”… Usando a palavra “sincera” dá a impressão que a coisa pode não ser realmente “sincera”… Mudemos! (Corrige) Melhor: “esta modesta e singela” recepção ao nosso querido amigo Napoleão… (Detém-se de novo. Interroga-se) “Modesta” e “singela” não são palavras sinônimas?… Ora essa, no discurso, ninguém percebe. (Pigarreia, apruma-se e faz um ar de dignidade. Volta a ensaiar, desta vez “para valer”) Estamos aqui reunidos, meus amigos e minhas amigas, para esta “modesta e singela” recepção ao nosso querido e ilustre amigo, o Dr. Napoleão de Assis, que, saudoso, está de volta à sua amada pátria…

Breve blackout. Palmas, aplausos, vivas, música festiva, etc. Luz. Num re pente, a cena se transforma: o surge uma espécie de palanque, enquan to Teixeira faz discurso, inicialmente inaudível devido ao barulho/música. Estamos em plena recepção a Napoleão de Assis, que acaba de chegar. Acompanhado de um estranho e austero mordomo-segurança, que lhe carrega as malas. Após ter sido cumprimentado e abraçado, sempre se cundado pelo mordomo, Napoleão se coloca no ponto central do palan que. Seu semblante é severo e de breves sorrisos. O som da música festiva aumenta. Todos os personagens estão presentes. Teixeira, o orador, pros segue vibrante:

Murilo D. César 59

… E tal como seu ilustre homônimo, o célebre general, estadista e imperador francês Napoleão Bonaparte, o nosso Napoleão de Assis também regressa plenamente vitorioso de terras distantes! (Palmas, vivas, música mais alta, etc.) Mas se o grande imperador Napoleão Bonaparte saiu de seu país para conquistar povos e terras alheias, o nosso Napoleão de Assis, levado por seu irrefreável impulso humanitário, foi contribuir com o seu esforço, com o seu trabalho, com o suor de seu rosto para o progresso e o desenvolvimento de outras terras e de outros povos! (Sonoplastia: aplausos, vivas, apoios, música mais alta. Clímax oratório) E agora com todo o seu entusiasmo, a sua força e sua coragem, em pleno vigor de sua radiante juventude, Napoleão de Assis, patrioticamente, retorna a seu país, com o patriótico objetivo de…

O discurso é abafado por música ou som. O orador continua vibrante, ges ticulando. Breve blackout.

Memórias de um defunto autor 60

Napoleão “em espírito”

Foi assim que regressei ao meu país. Eu tinha me tornado, de fato, um cidadão rico, riquíssimo… (Corrige-se) Não, não, riquíssimo ainda não… (Luz em foco se acende, irônico) Até que gostei daquela “modesta e singela” recepção que os meus “queridos amigos” me proporcionaram. Parecia mesmo ter sido... sincera… ou, pelo menos, “quase sincera”… (Breve pausa) Mas eu sentia que alguma coisa… alguma coisa… havia mudado desde que eu deixara o meu país… E fiquei na expectativa do que iria acontecer dali para a frente…

A luz apaga-se sobre Napoleão “em espírito”. Música romântica de época. Luz. Napoleão e Virgília conversam, andando pela plateia. A certa distância, John Barleyhorn, o mordomo os acompanha. Virgília nota sua presença, in comoda-se, mas nada diz. Música e/ou efeito de som impede(m) que se ouça a conversa inicial do casal. Virgília é quem mais fala, procurando agradar. Nota-se que Napoleão não está interessado no que ela lhe diz. Às tantas, tira de sua lapela uma flor e dá a Virgília, que sorri agradecida. Parece uma cena quase romântica, mas quando Virgília não olha diretamente para seu acompanhante, continuando a falar, uma sombra turva a expressão de Na poleão, algo tenso. O casal senta-se num banco de jardim, instalado próximo ao palco. Virgília beija-lhe a face… blackout, em que Virgília é substituída por Marcela, que senta no mesmo lugar que a outra ocupava. Marcela, como Virgília, vê o mordomo, que se mantém a certa distância, estranha, mas nada diz. Procurando agradá-lo, lê trecho de um livro a Napoleão, que finge interesse. Marcela fecha o livro e, sempre sorridente, beija o rosto de Napoleão, que se turva, contraído. A luz se apaga. De novo, Virgília em cena.

Virgília (Pondera) Olha, Napoleão, eu continuo sem entender nada de negócios… Mas se o meu primo Fernando é quem está fazendo essa proposta, só pode ser um negócio muito bom. Não é porque ele é meu primo, não, mas o Fernando, apesar daquele seu jeito brincalhão, é uma pessoa séria, honesta, trabalhadora… Muito trabalhadora…

Luz em foco sobre Napoleão, pensativo. Em lugar de Virgília, surge Marcela.

Murilo D. César 61

Marcela

Napoleão, não quero me intrometer em assunto de homem, mas, se eu fosse você, aceitava a proposta do Teixeira. Não é porque ele é meu primo, não, mas o Teixeira, apesar de ser um pouco descontraído, falante, conversador, é uma pessoa muito séria, honesta, trabalhadora, trabalhadora até demais, de ótimo caráter, de extrema confiança…

Falando, porém a música e/ou efeito sonoro impede(m) que se ouça o que ela diz. A luz apaga-se lentamente…

Foco de luz sobre Fernando, sentado numa cadeira giratória. Napoleão, a critério da direção, pode ou não estar presente em cena.

Fernando (Gesticulando, fala animado) Amigo Napoleão, gostou do nome da nossa empresa?

(FRISA) Fernando SILVEIRA, IMPORTAÇÃO, EXPORTAÇÃO & CIA. LTDA. O nome “Napoleão”, que é muito expressivo, está embutido em “& Cia. Ltda.”… Achei melhor não colocá-lo na razão social da firma porque você será o “sócio oculto”, aquele que realmente dá as cartas, manda de fato nos negócios, sem que seu nome apareça… Conversei com minha prima Virgília e ela me disse que, talvez, você iria preferir assim… É para evitar que as pessoas comecem a te assediar, pedir favores, empréstimos, emprego… Mas, se você não quiser que seja assim, a gente muda tudo… O que nós precisamos, meu amigo Napoleão, é de diálogo! Precisamos muito de diálogo… Diálogo!

A luz se apaga sobre Fernando e acende-se sobre Teixeira, num outro pon to do palco, também sentado numa cadeira giratória.

Memórias de um defunto autor 62

Teixeira (Entusiasmado)

Meu querido amigo Napoleão, A Tribuna do Povo vai mudar para muito melhor este país!… Como o próprio título diz, vamos nos dedicar à causa do povo, da opinião pública… Sabe por que não coloquei o seu nome no “expediente” do jornal. Assim, nós poderemos dar início à sua campanha política, através das páginas da Tribuna, sem dar motivo à acusação por parte dos nossos futuros adversários, que o nosso jornal faz publicidade política para você. De início, vamos devagar, dando uma notinha aqui, outra ali: Napoleão de Assis fez isso, fez aquilo. O público vai se acostuma aos poucos com o seu nome… E quando o púbico estiver acostumado, (vibrante) vamos lançar o nosso amigo Napoleão candidato a deputado!… A deputado, Napoleão!… A minha prima Marcela vai ficar muito contente, muito orgulhosa quando você for deputado… Depois, num futuro próximo, lançaremos sua candidatura a senador!… Depois a…

Música triunfalista. Faz um gesto largo, como a dizer que a carreira de Na poleão irá muito longe. Napoleão agora presente sente prazer em ouvi-lo. A luz apaga-se em resistência. Luz. Napoleão “em espírito” reflete…

Murilo D. César 63

Napoleão “em espírito”

(Ao público)

A esta altura, vocês certamente estão pensando: como Napoleão foi ingênuo!… Pois estão enganados: eu não confiava naqueles dois e… Meus “amigos sócios” não sabiam, mas não assinei um único documento, sem que antes fosse examinado pelos meus advogados… (breve pausa) Apesar de tudo, eu queria satisfazer Marcela… e também Virgília… Meu relacionamento com elas não era mais o mesmo, mas como estava rico, muito rico na verdade, já havia até comprado o título de “barão”... Barão do Cosme Velho (foi caro, mas até que valeu a pena)… Eu precisava formar um lar e constituir uma... Uma família... Criar uma... uma... (Procura mentalmente a palavra) Dinastia... Isto mesmo: vou criar uma dinastia! … A dinastia dos Assis!... Filhos!… Seis filhos!… Cachorros!… Três cachorros!… Uma grande família!... A família Assis!...

A dinastia dos Assis! (Breve pausa) Mas... eu iria criar a dinastia dos Assis com... Virgília ou Marcela?... Pensando bem, elas eram tão parecidas... (PAUSA) Mas eu estava falando do Fernando e do Teixeira… Eu procurava não dar essa impressão, mas eu tinha os meus olhos bem abertos para aqueles dois… Se eles tentassem me enganar, com o peso do meu dinheiro, eu esmagaria o Fernando e o Teixeira… Esmagaria impiedosamente!… O dinheiro, o meu dinheiro, me dava uma estranha e agradável sensação de poder… (filosófico) E o poder, podem acreditar, nos faz sentir igual aos deuses…

A luz apaga-se sobre Napoleão “em espírito”. Escritório da casa de Napo leão. Luz sobre John Barleyhorn, o mordomo, que, em uniforme, prepara um coquetel com muita habilidade, colocando-o sobre uma bandeja. Há algo nele de solene, majestoso e assustador… somente agora a luz foca Napoleão, de robe, sentado numa poltrona ao lado da escrivaninha, lendo jornal, fumando, refletindo. O mordomo aproxima-se de Napoleão, colo cando-se a seu lado.

Memórias de um defunto autor 64

Mordomo

(Com forte sotaque)

Excuse me, Sir. Seu bebida, Mr. Napoleon. (Serve-o) Napoleão

Obrigado, John. (Sorridente) Thank you very much, John.

Mordomo

Anything more, sir?

Napoleão Como? Mordomo

(Embaraçado)

Desculpar, Mr. Napoleon. Eu ainda não estar completely habituadou à língua deste seo país… Eu querer dizer: Mr. Napoleon precisar algou mais, sir?

Napoleão

Não, não. Obrigado, John. Pode ir. (Sorrindo) Thank you.

Mordomo

Excuse me, sir Napoleon… Querer dizer, com sua licença. (Faz reverência polida e retira-se. Napoleão acompanha-o com o olhar. O mordomo lhe transmite o prazer de viver em novo “status”)

Murilo D. César 65

Napoleão

(Divertido, imitando)

“Excuse me, sir”… “Seu bebida, Mr. Napoleon”… “Anything more, sir?” (Ri. Reflete) Até que o Teixeira pode ter razão: com a Tribuna do Povo na mão, posso muito bem me candidatar a deputado… (Devaneia) Deputado!… Depois a senador… Senador!… Depois a… (Napoleão sorri, feliz, conjeturando)

Ouve-se som de campainha sineta. Volta o mordomo.

Mordomo

Excuse me, sir. Mr. Fernandou estar esperandou pela senhor.

Napoleão

(Consulta o relógio)

Chegou bem na hora. Faça o Fernando entrar. Ah, John, fique com isto. (Passa-lhe duas folhas de papel) Entendeu tudo o que expliquei?

Mordomo

Don’t worry. Querer dizer, não se preocupar. (Sai).

Napoleão levanta-se rápido e prepara-se para receber Fernando: apanha livro da estante, que finge ler. Entra Fernando, seguido do mordomo, que se posta ao lado de Napoleão. Por várias vezes, sem que Fernando perce ba, Napoleão e o mordomo trocam olhares cúmplices.

Fernando

(Entrando, animado)

Amigo Napoleão! Amigo Napoleão! Como vai? (Napoleão não responde)

Memórias de um defunto autor 66

Mordomo

Mr. Napoleón is very well, querer dizer, estar muito bem.

Fernando

(Estranhando, mas aceitando a intervenção) Claro, claro... Felizmente nós vamos indo muito… (Só agora nota o mordomo ao lado do patrão. Estranha)... Vamos indo muito bem, caro amigo Napoleão... Nossa empresa começa a se expandir: já estamos exportando para Portugal e Espanha… Logo, logo partiremos para a conquista de mercado na França e, depois, (Fazendo gesto grandioso) conquistaremos a Inglaterra, a rainha dos mares, espelho e coração do mundo... A mais poderosa nação da Terra! (Imobiliza-se, empolgado por suas próprias palavras)

Mordomo

(Irônico, enérgico) Wonderful! Magníficou! Excelenta, Mr. Fernanda!… (Quebrando o clima, irônico) E, na momento, as noussas finanças?

Fernando

(Perplexo, pela intervenção do mordomo) O que você disse?

Mordomo

(Severo) Dólar, dólar… querer dizer, situación finacera de noussa empresa, Mr. Fernanda?

Murilo D. César 67

Fernando

(Preocupado, olha para napoleão)

Vão bem, Napoleão, vão bem, graças a Deus… (Encara o mordomo. Volta-se para Napoleão) Só que nesta primeira fase de expansão dos negócios, em nível externo, você compreende, ainda não temos receitas, rendimentos, lucros, mas despesas, gastos, pagamentos… Assim, no momento, para prosseguirmos em nosso ritmo intenso e agressivo de expansão, e partirmos para o mercado internacional — aliás, extremamente competitivo — vamos precisar de mais algum capital de giro para investimento…

Mordomo

(Desconfiado)

How much, querer dizer, quantou mais, Mr. Fernanda? Quantou?

Fernando

(Estranhando, mas aceitando a intervenção)

Não é muito, amigo Napoleão, não é muito. Não se preocupe. Não é muito… relativamente.

Música e/ou som impede(m) que se ouça o que Fernando diz. Napoleão demonstra não ter interesse e indica o mordomo. Fernando, falante, com gestos largos e aponta-lhe um gráfico que tira do bolso. Napoleão consulta o mordomo e, após ouvi-lo, preenche um cheque.

Entrega-o ao mordomo, que o passa a Fernando. Este, após examiná-lo com cuidado, sorri, guarda-o no bolso. Para sua surpresa, o mordomo apresenta-lhe um documento para que assine e já traz na mão uma peque na bandeja com pena e tinteiro. Fernando, apreensivo, olha para o mor domo e para Napoleão, lê o documento e pergunta a Napoleão algo sobre uma cláusula de que não gosta. Napoleão nada diz. O mordomo que lhe indica o documento para assinar. Contrariado, Fernando assina. Estende

Memórias de um defunto autor 68

a mão para cumprimentar Napoleão, mas quem aceita o cumprimento é o mordomo. Encaram-se. O mordomo indica-lhe a saída e o acompanha. Napoleão fica refletindo. Passagem de tempo. Ouve-se som de campai nha/sineta. Napoleão, como antes, prepara-se para receber Teixeira: abre um livro qualquer e finge que o está lendo.

Teixeira

(Entra, animado) Amigo Napoleão, trago ótimas notícias!… A Tribuna do Povo, caro ami… (Repara que o mordomo colocou-se ao lado do patrão. Estranha) A Tribuna do Povo, caro amigo Napoleão, vai muito bem, graças a Deus!… Já temos um bom número de assinantes e de bancas de vendagem. Já começaram a aparecer nossos primeiros anunciantes. Veja só, amigo Napoleão: “Cartas à redação”. (Mostra um pequeno maço, mas quem o apanha e dá rápida olhada é o mordomo) Nossos leitores já nos escrevem entusiasmados, dando opiniões, críticas, sugestões… Viu como na edição de ontem, sutilmente e com muita classe, lançamos o seu nome nas páginas da Tribuna do Povo? (Mostra exemplar do jornal a Napoleão, mas quem o apanha é o mordomo, que o folheia)

Murilo D. César 69

Mordomo

(Irônico, severo)

In sétima pagina, numa cantinha, abaixo da anúncia da uma xaroupa.

Expressão de desagradável surpresa de Teixeira. Napoleão finge não notar.

Teixeira

Um lance jornalístico e propagandístico moderno, meu caro Napoleão!… Da próxima vez, colocamos acima do anúncio do xarope; depois, na sexta página; depois passamos para a quinta, para a quarta…

Mordomo

(Irônico)

Ah! Até chegar first page… até chegar primera página…

Teixeira

(Estranha de novo, mas se conforma)

Na primeira página, nem sempre é bom, caro amigo Napoleão: os leitores podem não gostar e aí… A primeira página, nosso maior trunfo, a gente reserva para as vésperas das eleições e, depois, para anunciar a vitória. A sua vitória, Napoleão!… A vitória de Sua Excelência, o ilustre deputado Doutor Napoleão de Assis!

Mordomo

(Quebrando o clima)

As finanças da journal, Mr. Texera? (Teixeira estranha. Encara o mordomo) As finança da Tribuna da Povou, como estar indou?

Memórias de um defunto autor 70

Teixeira

(Olha para Napoleão, que nada diz) Nossas finanças vão bem, Napoleão, até que vão bem… Mas considerando que, no momento, estamos numa agressiva fase de expansão, de conquista de mais leitores e anunciantes, nossas despesas são grandes e creio que vamos precisar de um pouco mais de capital de giro para…

Música e/ou som impede(m) que se ouça o que Teixeira diz. Teixeira, falante, mostra-lhe um gráfico que tira do bolso e dá breves explicações, mas quem o apanha é o mordomo que dá uma olhada e o repassa para Napoleão, que consulta o mordomo e, após ouvi-lo, preenche um cheque. Entrega-o ao mordomo, que o passa a Teixeira. Este, após examinar o cheque, sorri e guarda-o no bolso. Para sua surpresa, o mordomo apresenta-lhe um docu mento para que assine. Algo ameaçador, já traz na mão uma pequena ban deja com pena e tinteiro. Teixeira, apreensivo, olha para o mordomo e para Napoleão, lê o documento e pergunta sobre uma cláusula de que não gosta, recebendo um gesto de desdém do mordomo e de Napoleão como resposta. Contrariado, Teixeira assina. O mordomo indica-lhe o caminho da saída e o conduz. Por instantes, Napoleão fica refletindo. Devaneia e “vê” Virgília que, num vestido sensual, aproxima-se dele, sedutora. Ao som de música, dança alguns passos. A cena tem um sutil toque de ridículo.

Napoleão

(Esperançoso, abrindo os braços) Minha doce, minha querida Virgília, eu te amo!…

Virgília

(Aproximando-se)

Napoleão!… O meu Napoleão!… Napoleão, o conquistador… Meu querido Napoleão de Assis, eu também te amo…

Napoleão vai abraçá-la, mas Virgília esquiva-se.

Murilo D. César 71

Napoleão

(Num quase desespero)

Mas… Mas eu não fiz tudo o que você queria?… Cruzei o oceano, me aventurei em terras estranhas, arrisquei minha vida, conquistei, empreendi, enriqueci… Fiz tudo isso por amor a você, Virgília…

Virgília

Eu sei, Napoleão. Eu sei… Mas espere.

Napoleão Ainda tenho que esperar? Esperar o quê?

Virgília

Só mais um pouco... Espere só mais um pouco, Napoleão.

Napoleão

Mais quanto… Quanto tempo?

Virgília

Já disse: só mais um pouco, muito pouco… (Sorri, enigmática, e “desaparece”)

Napoleão volta ao presente. Reflete, de novo, devaneia. Música. “vê” Mar cela que, sedutora e em passos de dança, aproxima-se dele. Com um sutil toque de ridículo, a cena, quase igual à anterior, mas sem palavras. Quan do estão para se beijar, Marcela “desaparece”.

Memórias de um defunto autor 72

Mordomo

(Entra. Traz uma carta)

Excuse me, sir. Com licença, Mr. Napoleon.

Napoleão

(Recupera-se do devaneio) Pois não, John.

Mordomo

Carta para a senhor da parte da Mr. Fernandou. O empregadou de Mr. Fernandou estar lá foura, aguardandou resposta da senhor.

Entrega-lhe a carta. Napoleão abre-a e lê.

Fernando (voz em off)

(Opção: o próprio Fernando, ao lado de Virgília, pode aparecer nou tro ponto do palco “escrevendo oralmente” a carta. Virgília acaricia -lhe os cabelos e faz gestos de aprovação)

Meu caro amigo Napoleão, tenho o grato prazer de lhe participar que brevemente, hoje mesmo marcaremos a data, minha prima Virgília e eu iremos nos casar. Desde já convidamos o nosso querido amigo Napoleão, a quem muito estimamos, para a festa de casamento. A cerimônia, será realizada brevemente. Um fraternal abraço. Do sempre seu amigo, Fernando.”

Napoleão

(Explodindo, esmurra a mesa ou o ar)

Miserável! Canalha! Eu bem que desconfiava!… Sabia que a cobra, de uma hora para outra, ia me dar o bote. Canalha! Miserável! Traidor!

Murilo D. César 73

Mordomo

(Assustado)

Mr. Napoleon!… Eu não estar entendendou a senhor…

Napoleão

(Controlando-se)

Desculpe, John. Não é nada com você. Pensei em voz alta. Só isso… Ela também, aquela megera, aquela… (Não completa. Fica ruminando…)

Mordomo

A senhor querer uma calmante?

Napoleão

Não, não, obrigado. Está tudo bem agora, John.

Mordomo

Empregadou da Mr. Fernandou estar lá foura, aguardando resposta da senhor, Mr. Napoleon.

Napoleão

(Muito nervoso, mas tentando ocultar seu estado)

Por favor, John, diga ao empregado que… que não há resposta.

Mordomo

Okey. Excuse me, sir. (Vai saindo. Volta-se) Precisar algou mais, Mr. Napoleon?

Memórias de um defunto autor 74

Napoleão

Não, não, obrigado. Pode ir, John.

Mordomo Excuse me, sir. (Sai)

Napoleão

(Vendo-se sozinho, explode de novo)

Canalha!… Rato! Verme!… Depois de tudo o que fiz por ele… (com ódio) Ele vai se ver comigo, se vai!… No Oriente, a gente resolve essas coisas a bala! (Tira o revólver da gaveta da mesa ou de outro local) Vou meter uma bala na cabeça do canalha do Fernando! Uma não, seis! Descarrego o revólver naquele traidor! No Oriente, a gente não perde tempo em discussão: atira e pronto!

Muito nervoso, aponta a arma como se fosse atirar. Assusta-se com sua própria valentia. “Luz-imaginação”. Num outro ponto do palco. Surge um juiz com a toga característica.

Juiz

(Severo)

Aproxime-se o réu. (Napoleão, assustado, obedece) Por ter cruelmente assassinado o seu sócio Fernando Silveira, sem permitir à vítima nenhuma possibilidade de defesa, este tribunal condena o réu Napoleão de Assis à pena máxima de trinta anos de prisão. Cumpra-se a lei!

O juiz bate o martelo e desaparece. Napoleão, assustado, “volta a si”.

Murilo D. César 75

Napoleão

Bem, também a gente não precisa exagerar. Não estou mais no Oriente e a violência não resolve. Vamos ser civilizados… Mas o Fernando vai se ver comigo, se vai!… (segue para outro ponto do palco, “o seu quarto”, e começa a se aprontar com muita pressa, comentando nervoso) E eu que quase cheguei a pensar que ele talvez pudesse um dia ser meu amigo… Traidor! (Abre um armário. Dentro há diversos ternos e ele fica na dúvida) Visto que terno?… Dá impressão de luto, de fraqueza, de derrota… O branco? (puxa o cabide com o terno) Vai pensar que estou até me congratulando, em paz com ele… (apanha outro) Melhor o terno azul… Este é azul-claro, muito claro, não serve… Ah! Este está bom: azul marinho, sóbrio, discreto… (veste-o, rápido. Vai se acalmando à medida que se apronta) Vou com que gravata? (Escolhe uma e coloca-a diante do espelho. Observa-se. Não gosta. Apanha outra, rápido. Experimenta. Gosta. Está ainda mais calmo. O tom de sua voz suaviza-se cada vez mais) Esse Fernando vai se ver comigo… (“ruminando”) Fernando me deve um bom dinheiro, tenho tudo documentado… Liquido a firma, boto o Fernando na rua, cobro tudo o que ele me deve de uma vez só e aí ele está perdido… (calculista) Mas se eu liquidar a firma e botar o Fernando na rua, como é que ele vai me pagar se não tem onde cair morto?… Tenho de reconhecer que, apesar de tudo, o Fernando tem uma boa visão de negócios… Isso não posso negar…

“Luz-imaginação” sobre Fernando, em outro ponto do palco.

Memórias de um defunto autor 76

Fernando

(Sincero, entusiasmado)

Vamos bem, Napoleão! Felizmente vamos indo muito bem!… Nossa empresa começa a se expandir: já estamos exportando para Portugal e Espanha… Logo, logo partiremos para conquistar mercado na França e, depois, (grandiloquente) conquistaremos a Inglaterra, a rainha dos mares, a mais poderosa nação do mundo! (Faz um gesto grandiloquente e imobiliza-se)

A luz apaga-se sobre Fernando.

Napoleão

(Diante do espelho. Já escolheu a gravata definitiva) Não posso confundir meus sentimentos pessoais com meus negócios; essas coisas não se combinam… Posso romper meu relacionamento pessoal com esse cana… quero dizer, esse… esse… deselegante!… Mas manter meu relacionamento comercial com ele… Ou não posso? Será que uma coisa não vai acabar influindo na outra e prejudicar a firma? (Abre uma gaveta e apanha um retrato. Observa-o com carinho) Virgília! (A própria Virgília surge sorridente num outro ponto do palco, como se fosse o retrato) Meu Deus! Virgília, como você é linda! (Examina melhor o retrato) Que sorriso tão meigo, tão… (parece ter descoberto algo no retrato. Fica na dúvida. Enquanto calça os sapatos. Conversa em parte com o público, em parte consigo mesmo) Que sorriso tão… tão esquisito a Virgília tem!… Como é que eu nunca tinha reparado nisso antes?… Esquisito, não. Esquisitíssimo!… E que olhar!… Olhar oblíquo e dissimulado!… Meio falso… Falso! Falso inteiro!… Virgília é uma mulher falsa! Hipócrita! (Breve pausa) Pensando bem, até que o Fernando não é um mau sujeito. Vai é cair numa esparrela. (Não completa) Afinal, desde que o mundo é mundo, homem é homem, que diabo! Quem sabe, se estivesse no lugar dele,

Murilo D. César 77

eu também não… (detém-se) Até que o Fernando, mesmo sem querer, me prestou um grande favor. Eu estava na dúvida entre duas mulheres: a Virgília é falsa, fingida, hipócrita… Marcela é sincera, meiga, doce… Veio então o meu “quase amigo” Fernando me ajudar a decidir e… (ri, maldoso) caiu na ratoeira que eu mesmo poderia ter caído!… (irônico) Meu “quase amigo” Fernando é um pouco velhaco, um “quase amigo velhaco”, mas, como dizia meu saudoso pai, “para velhaco, velhaco e meio”… (sorri) Vou à casa do meu “quase amigo velhaco” Fernando, digo-lhe meia dúzia de agradáveis falsidades, cumprimento a “noivinha” dele e, depois, corro para os braços de Marcela! (“Luz-imaginação”. Surge Marcela, muito bem vestida, sorridente, num outro ponto do palco. Napoleão encanta-se) Marcela, minha adorada Marcela! É você! É você, só você que Napoleão de Assis realmente ama!

Toma Marcela nos braços e, sorridentes, “dançam” uma valsa. A “luz-ima ginação” apaga-se lentamente sobre o casal dançando… blackout. Breve trecho da Marcha Nupcial de Mendelssohn, seguida de barulho/vozes, etc., tudo típico de uma cerimônia de casamento. Blackout para indicar passagem de tempo.

Luz. Napoleão anda pela plateia, como se tivesse acabado de sair do casamento de Virgília com Fernando e estivesse se dirigindo à casa de Marcela.

Napoleão

(Gesto de desprezo) Ufa! Que alívio! Estava me sentindo sem ar, sufocado, asfixiado naquela festança casamenteira de péssimo gosto! Só de imaginar que um dia pensei em me casar com a megera da Virgília, me sinto mal! Com aquela mulherzinha, minha vida ia ser um inferno! (Com repulsa) Fernando/Virgília; Virgília/Fernando… (Irônico) Para hipócritas, hipócrita e meio, dizia meu saudoso pai: até me agradeceram, quando eu cumprimentei os dois: “Meus parabéns! Vocês nasceram um para o outro, vocês se

Memórias de um defunto autor 78

merecem”… Claro que se merecem: são batatas do mesmo saco! (Faz um gesto como se pretendesse expeli-los para sempre de sua vida) De que tremenda enrascada me livrei! (Breve pausa) Ah, Marcela! Que mulher maravilhosa, magnífica, divina!… Marcela agora é minha, só minha… Agora, mais do que nunca, sinto que sempre amei Marcela, sempre… (Feliz, sonhador) Juntos, vamos criar um lar encantado de paz, harmonia, felicidade… Nossa casa será belíssima, de fazer inveja a toda a cidade… Na frente, um jardim de deliciar os olhos, repleto de rosas, cravos, orquídeas, lírios, dálias, margaridas, violetas, gerânios… No fundo, um pomar com tudo que é árvore frutífera… Nosso lar vai ser a oitava maravilha do mundo!… Vamos formar uma família com seis lindos filhos e três cachorros… Marcela me disse uma vez que um cachorro ela aceitava, mas, com o tempo e com jeitinho, ela vai concordar em termos três cachorros… Três cachorros!… Nosso lar vai se chamar… (Reflete) PARAÍSO!…

Logo na entrada, vou por a placa: “Neste Lar Abençoado e Feliz é Expressamente Proibido Ficar Triste”. (Sorri, antegozando sua futura felicidade) Marcela! A minha Marcela!… Marcela, minha doce e gentil amada, a megera da Virgília estava atrapalhando a minha, a nossa vida!… Agora mesmo vou propor casamento à Marcela e marcar a data, e será o mais breve possível. (Sorrindo) Marcela!… (Ao público) A minha amada Marcela vai ter a maior surpresa da vida dela!

Napoleão sai do palco, já com um ramalhete de flores na mão. Depois de ter dado volta pela plateia, aproxima-se da escada lateral do palco, agora transformado em casa de Marcela. Depara-se com um porteiro uniformizado. Estranha. Ouve-se música, murmúrios alegres e risadas vindas lá de dentro.

Porteiro (Gentil) Desculpe, mas o senhor tem convite?

Murilo D. César 79

Napoleão

Convite para quê?

Porteiro

O senhor não sabe? Para a festa de noivado da Senhorita Marcela Ramos com o Sr. Rubens Teixeira.

Aturdido, derrotado, Napoleão fica sem ação, inerte…

Porteiro

(Percebendo o estado de Napoleão) Desculpe, senhor… O convite é uma simples formalidade. Estou vendo que o senhor é amigo dos noivos. Pode entrar, por favor.

Napoleão

Não, não, obrigado… Eu… Eu me enganei de casa…

Afasta-se, deixando cair o ramalhete de flores. O porteiro apanha as flores e, por instantes, reflete sobre o possível significado delas. A luz apaga-se sobre ele. Foco de luz sobre os noivos que, felizes, começam a dançar uma valsa, enquanto a luz vai se apagando. Na escuridão, ouvem-se gritos de “viva os noivos! Viva!”, seguidos de aplausos e sons característicos de festas de noivado. Pausa. Silêncio. Cemitério (telão no fundo do palco). Noite. Começa uma neblina (gelo seco), que lentamente se espessa. Napoleão está próximo ao seu túmulo.

Memórias de um defunto autor 80
Murilo D. César

Napoleão “em espírito”

(Melancólico, ao público) Morri rico, talvez riquíssimo… (anima-se) A empresa Fernando Silveira Importação, Exportação & Cia Ltda., depois que coloquei o Fernando num cargo burocrático sem importância nenhuma e assumi a direção, realmente progrediu, passando a dar muito lucro... (Reflete) A Tribuna do Povo também deu muito lucro. Como administrador do jornal, o Teixeira se mostrou incompetente, um desastre, mas logo o coloquei num cargo burocrático, com o pomposo título de “editor-chefe”, que não chefiava ninguém, nem editava coisa alguma. Na minha direção, A Tribuna do Povo tornou-se um dos maiores e mais influentes jornais do país… Nas páginas do meu jornal fiz todas as minhas campanhas políticas e me elegi deputado e senador, sempre com ótima votação... E também denunciei adversários políticos corruptos ou suspeitos de corrupção, arruinei grandes industriais, derrubei altos funcionários públicos e até ministros de Estado… Enfim, me tornei um homem poderoso, respeitado e temido pelo governo e pela oposição… (Reflete, amargo) Mais temido que respeitado... (A neblina continua se adensando) Mas, vocês me perguntarão: e Marcela? E Virgília?… Elas estavam no meu enterro, vocês viram… A verdade é que Marcela e eu… Virgília e eu, nós… apesar de tudo, nós… (Irônico) Nós nunca deixamos de ser amigos, bons amigos, amicíssimos… (Melancólico) De certo modo o destino, ou melhor, a vida nos uniu e nós nunca nos separamos… Ficamos sempre “juntos”… Ou melhor, quase juntos… (Breve pausa) Sempre que a situação financeira de Teixeira ou de Fernando piorava ou eu ameaçava os dois pilantras de demissão, eu recebia “visita” de suas virtuosas esposas, minhas queridas e dignas amigas Marcela e Virgília…

Luz sobre os dois casais na plateia, próximos ao palco. Ambos visivelmente constrangidos, especialmente as duas mulheres, que portam véu. Aguar dam. Os homens consultam seus relógios de bolso.

Memórias de um defunto autor 82

Teixeira

Éééé... Está na hora. Fernando Éééé... Está na hora...

Olham para as mulheres.

Marcela

Você primeiro, Virgília.

Virgília

Na última vez, fui eu primeiro. Agora você vai primeiro, Marcela.

A luz se apaga, permanecendo um foco sobre Marcela, que recobre quase todo o rosto com o véu e segue em direção ao palco. Olha para os lados, desconfiada, com um misto de receio e vergonha de estar sendo obser vada. Chega à “casa de Napoleão”. Toca a campainha-sineta. Aguarda. A demora aumenta o seu incômodo.

Murilo D. César 83

Mordomo

(Ar superior, irônico)

Boua tarde, Sra. Marcela! (Olha o relógio) Senhora haver chegadou mais cedou houje… Sua Excelência, o ilustre Senador Napoleon de Assis já estar esperandou pela senhora… As always… querer dizer, como sempre… Como sempre, Sra. Marcela…

Irritada e envergonhada, Marcela entra “na casa de Napoleão”. O mordo mo aguarda a sua saída. Foco de luz sobre Teixeira e Fernando, visivelmen te tensos e enciumados. Entreolham-se num mudo e impotente desespero. Fazem gesto de conformismo e sorvem rapé. Espirram.

Fernando Saúde, amigo Teixeira.

Teixeira

Saúde, amigo Fernando. (Breve pausa. Embaraço) Está quente hoje, não?

Fernando Muito quente.

De novo, sorvem rapé e espirram.

Teixeira

Saúde, amigo Fernando.

Memórias de um defunto autor 84

Fernando

Saúde, amigo Teixeira.

A luz apaga-se sobre eles. Passagem de tempo. Quem sai “da casa de Na poleão” é Virgília.

Mordomo

(Irônico, olha o relógio)

Ah! Sra. Virgília estar saiundou mais cedou… Sua Excelência, o Senador Napoleon de Assis, estar com agenda lotada houje e com prissa… Vejou que estar tudou bem com a senhoura… Ótimou!… (Virgília vai saindo, humilhada) Até a prouxima vez, Sra. Virgília… (Carregando a ironia) As always… querer dizer, como sempre… Until next time... Querer dizer, até a próxima vez.

Virgília irrita-se. Vai dizer qualquer coisa ao mordomo, mas desiste. Foco de luz a acompanha e ela segue pela plateia. Detém-se. Está prestes a explodir.

Virgília

(Com ódio, que tenta controlar) Atrevido! Petulante!

Virgília ainda tenta se conter, mas não consegue; solta um grunhido, faz um gesto de suprema indignação… junta-se ao grupo, no qual está Mar cela. Entreolham-se, sem ter nada dizer e seguem pela plateia. Blackout. Marcha fúnebre de Chopin. Luz sobre Napoleão “em espírito”, agora no cemitério (imagem na tela), próximo ao seu túmulo.

Murilo D. César 85

Napoleão “em espírito”

(Amargo. Ao público)

Terminemos logo com estas minhas memórias. Como já disse, morri rico, riquíssimo e… (Triste) e solteiro… (Irônico) Agora, Teixeira, acompanhado de sua digníssima esposa Marcela, e Fernando, junto com sua digníssima esposa Virgília, que foram “os meus melhores e mais íntimos amigos”, estão no cartório deste distrito, onde vão ouvir a leitura de meu testamento, minha última, definitiva e suprema vontade… (Maldoso) Morri sem deixar filhos e meus queridos amigos têm certeza absoluta de que serão meus herdeiros universais. Talvez sejam...

Cartório. Tensão. Luz sobre Teixeira, Marcela, Virgília e Fernando, todos mui to ansiosos. A leitura do testamento já está na parte principal. Do cemitério mesmo, próximo ao seu túmulo, Napoleão “em espírito” assiste à cena.

Tabelião

“... e, portanto, considerando que meu mordomo, John Barleyhorn, foi meu fiel servidor durante tantos anos de minha vida, deixo a ele metade de todos os meus bens e haveres…”

Os quatro (Os quatro fazem diversos comentários de contido desapontamento) Até que foi justo”… “Ele mereceu”…, “Napoleão tinha um bom coração”, etc.

Memórias de um defunto autor 86

Tabelião

(Lendo. O tom é lento e típico) “Quanto à outra metade, que é também muito considerável, eu, Napoleão de Assis, expresso também a minha vontade, que é a seguinte: considerando que a digna Sra. Marcela Lemos Teixeira e seu digno esposo, Sr. Rubens Teixeira, bem como a digna Sra. Virgília Silveira e seu digno esposo, Sr. Fernando Silveira, foram, durante muitos anos de minha vida, os meus melhores e mais dedicados amigos, que muito contribuíram para a expansão de meus negócios e consequente aumento de minha fortuna… (os dois casais entreolham-se e trocam sorrisos) Considerando também que muito me ajudaram na minha vitoriosa carreira política, especialmente o Sr. Rubens Teixeira com o jornal A Tribuna do Povo… (expressão de satisfação de Teixeira) Considerando a minha especial gratidão para com todos esses meus mencionados amigos… (Expressão de satisfação dos quatro) E considerando, principalmente, que todos esses senhores e senhoras mencionados são piedosos e devotados membros da Irmandade de São Vicente de Paula…”

Os quatro (Comentários diversos) Somos mesmo… Nós já fomos da Diretoria da irmandade, se lembra?… Eu sou devota de São Vicente de Paula… Eu também… Etc.

Murilo D. César 87

Tabelião

(Lendo)

“Eu, Napoleão de Assis, deixo, como já mencionei, a outra metade de todos os meus bens e haveres, no país e no exterior… bem como metade do valor das apólices, dos depósitos em bancos, das joias, das fazendas, das casas, e metade do valor dos demais haveres para… (Breve pausa. A tensão e a inquietude dos quatro aumentam. O tabelião pigarreia)… para a referida e santíssima irmandade de São Vicente de Paula, a fim de que essa mencionada Irmandade possa continuar desenvolvendo ainda mais a prática de suas obras pias e filantrópicas…

Expressões e gestos de cada personagem, indicando espanto, decepção, indignação… som ou música impede que se ouça o que dizem. Num re pente, as imagens dos personagens se congelam, formando por instante um quadro trágico-ridículo até a luz se apagar neste plano. Napoleão “em espírito”, que assistira à cena, sorri ironicamente no outro plano.

Memórias de um defunto autor 88

Imagem de cemitério no telão no fundo do palco. Dois focos de luz: um so bre Napoleão “em espírito” e outro sobre seu túmulo, ao lado. A neblina já um pouco densa permite que parte do túmulo e a expressão de Napoleão “em espírito” sejam visíveis. Música Serenade, de Franz Schubert.

Napoleão

(Melancólico. Ao público) Meus caros amigos, agradeço a vossa atenção às minhas memórias. Agora, com licença, que vou me entregar ao silêncio, ao meu último, definitivo e eterno silêncio… (A neblina o vai envolvendo) Ah, quase me esqueço de dizer: (derrotado, mas irônico) Eu, Napoleão… Napoleão de Assis... Barão… Barão do Cosme Velho… (Reflete. A neblina já o envolve quase completamente) fui um homem temido, poderoso, muito rico, riquíssimo, mas... mas não consegui constituir um lar, uma família... Criar uma dinastia… A dinastia dos Assis!... Não tive uma esposa, nem meus seis filhos, nem meus três cachorros… (num definitivo e lancinante adeus) Nunca tive um único cachorro em toda a minha vida…

A neblina aumenta ainda mais. Primeiro envolve Napoleão completamen te; depois, a imagem do cemitério no telão e, finalmente, envolve tudo… ouve-se o longo uivo de um cachorro, o uivo de dois cachorros e o uivo de três cachorros, que encobrem a música Serenade e lentamente desapare cem. Blackout.

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FIM

NOTA: De acordo com a direção/produção, a seguinte notícia poderá ser reproduzida no telão:

T Ú MULO DE MACHADO DE ASSIS É VENDIDO POR 120 MIL REAIS

Quatro dias após publicar anúncio em jornal, os herdeiros de Machado de Assis venderam o túmulo nº 1.359, quadra 39, do Cemitério São João Batista, em Botafogo, no Rio de Janeiro, que pertenceu ao escritor, por R$ 120 mil reais. A nova proprietária, cujo nome não foi divulgado, é uma mulher de mais de 50 anos, moradora da Avenida Vieira Souto, em Ipanema. “Em conversa comigo, ela afirmou que pretendia comprar o túmulo pelo seu valor histórico e pela sua boa localização”, disse o corretor Antônio Barbosa, que fez a negociação. O jazigo fica em local considerado nobre, próximo aos túmulos de pessoas famosas, como Santos Dumont, Carmem Miranda e Vicente Celestino. O corretor explicou que os herdeiros concordaram no abatimento do preço para a quantia mencionada e que estão respaldados em lei, já que o decreto estadual 3.707, de 6 de fevereiro de 1970, permite esse tipo de transação.

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O masnãomelhorestá na alma espectador.

A pestápessoAmort odemos elogiávontAde

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Murilo D. César

É melhordas nuvensdo que terceirodo andar.

Memórias de um defunto autor 92
alegriapúblicaumaparticular.

melhor nuvenscair Não háumaquealegria valha particular.

D. César 93
Murilo

Murilo Dias César, o autor

Murilo Dias César é paulistano da gema, nascido e criado na cidade da garoa. Formou-se em Educação Física, mas logo enveredou para a dramaturgia. Aos dezessete anos, aventu rou-se como ator amador em um grupo de teatro chamado Academia de representação teatral, o ART. Esse grupo atuava em um anexo da Igreja Matriz do Bairro de Santana. O dire tor do grupo, Sebastião de Souza, vivia procurando uma peça que pudesse oferecer papéis para todos do grupo. Dias César resolveu ousar: escreveu um roteiro e o apresentou para o diretor, que o leu e previu: “Gostei tanto do seu texto que desconfio que sua carreira no teatro seja outra: a de autor”1 . Desde então, dedicou a maior parte de sua vida a escrever textos teatrais e a ministrar aulas de dramaturgia e roteiro. Escreveu já mais de trinta obras teatrais. E, nessa trajetó ria, ganhou muitos prêmios:

• Prêmio Zé Renato de Dramaturgia, por Darwin e o canto dos canários cegos e O legítimo pai da bomba atômica;

• Prêmio Vladimir Herzog de Dramaturgia, por A velha guarda ou A Revolução Partida e pela adaptação para teatro do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos;

• Prêmio Sundance-RioFilme, pelo roteiro adaptado para cinema de São Bernardo;

• Prêmio Artur Azevedo de Dramaturgia, concedido pela ABL-Academia Brasileira de Letras, por A paixão de Oscar Wilde;

• Prêmio Paulo Setúbal de Dramaturgia, concedido pelo Conselho Estadual de Teatro, por Porões ou Suspeito suspei tíssimo.

1 Como o autor relatou em entrevista concedida a Silvio Tadeu para o Portal da Vila Mariana (sem data). Essa entrevista encontra-se disponível em: https://www.portalvilamariana.com/ arte-e-cultura/murilo-dias-cesar.asp aproximadamente 2012 (acesso em: 5 fev. 2021).

Memórias de um defunto autor 94

Foi também um dos fundadores, em 1985, e participante ativo da Associação Paulista de Autores Teatrais (APART), integrando autores, diretores, produtores, cenógrafos e críticos em leituras dramáticas, discussões sobre as peças apresenta das, concursos de dramaturgia, entre outras atividades. Para Murilo Dias César, escrever é “[...] um ato de total en trega ao trabalho”. Quando o dramaturgo começa a imaginar sua próxima peça, passa para uma fase em que nada mais existe, a não ser “[...] o que corre de sua mente para o papel, ou melhor, para a tela do monitor” .

Nascido em 1960, em São Paulo, capital, atuou desde sempre paralelamente à sua formação acadêmica em Letras pela Universidade de São Paulo, nos anos 1980, na área das artes plásticas. Desenho e gravura sempre foram expressões fortes nessa trajetória. Além dessas atividades plásticas e de ter feito algumas exposições, foi ator e fez cenografia quando parti cipou do Grupo Após’tolos de São Paulo, uma ideia irreverente que durou quase duas décadas. Trabalhou como educador na área teatral com grupos da periferia da cidade de São Ber nardo do Campo, tendo dirigido o espetáculo Fala poesia, em 2005 do grupo Faz a diferença, com jovens da região. A paixão pela educação, pelas artes cênicas e pela imagem se traduzem nesta obra, quando expôs cenários e a ambienta ção do teatro, suas coxias e as entranhas do palco, criando no leitor a possibilidade de que ele mesmo se inclua na narrativa e no texto das ricas personagens machadianas desenhadas pelo dramaturgo Murilo Dias César. Já ilustrou alguns livros, sempre com a ideia de permitir ao leitor a exploração de possibilidades abertas

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Sergio Alves, o ilustrador

Memórias de um defunto autor, a obra

Murilo Dias César, nesta obra, faz uma releitura do livro Memórias póstumas de Brás Cubas, publicado em 1880, dirigida a alunos do Ensino Médio. Ele concebe sua peça de teatro como uma homenagem ao eterno “bruxo”2, Joaquim Maria Manuel Machado de Assis, autor dessa obra inaugural do período do Realismo literário brasileiro.

A releitura do dramaturgo se caracteriza primordialmen te pelo humor, aspecto essencial para manter a ironia da obra machadiana, e se constrói como uma peça teatral.

Dias César, em sua peça teatral, revisita as principais carac terísticas e temas da grande obra realista: a hipocrisia, a vaidade, a traição, o ódio, o adultério, a escravidão, entre outras. O objetivo do autor é apresentar aos jovens, por meio deste texto teatral, o singular, o original e sempre crítico, irônico e, por vezes, sarcástico, universo machadiano.

Com essa perspectiva, Dias César aproxima a narrativa de Machado de Assis aos leitores atuais, entrelaçando a narrati va com eventos e personalidades da época, tornando-os mais vívidos. As questões filosóficas postas pelo “defunto autor” ao longo da peça são aquelas que até hoje povoam as mentes dos jovens: a ganância, a hipocrisia, a vaidade, o egoísmo, as insatisfações individuais, o amor, os interesses mesquinhos...

O título da peça teatral brinca, assim como o nome da personagem principal (Napoleão de Assis), com a obra (Memórias póstumas de Brás Cubas) e o nome de seu consagrado autor (Machado de Assis).

Um aspecto a se destacar nesta peça de teatro é a introdução norteadora, na qual se apresenta o perfil das personagens,

2 “Bruxo” foi o termo que Carlos Drummond de Andrade usou para se referir a Machado de Assis no poema em que o homenageia, intitulado “O Bruxo do Cosme Velho”. Durante muito tempo, Machado de Assis morou no bairro do Cosme Velho, na rua de mesmo nome, no Rio de Janeiro. Há relatos de que, nessa época, queimou em um caldeirão, no sobrado em que morava, várias cartas. Isso levou os vizinhos a chamarem o escritor por esse apelido.

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o que vai colaborar muito para a construção a priori de um panorama da peça pelos leitores. As rubricas, por sua vez, são mais extensas do que as comuns e servem como orientações importantes para uma provável montagem da peça.

O enredo de Memórias de um defunto autor tem início quando Napoleão, já falecido, assiste ao seu próprio enterro e o re lata para os leitores. Num tom amargo e sarcástico, observa as onze pessoas que se encontram em seu funeral, inclusive suas envelhecidas ex-namoradas, Virgília e Marcela com seus res pectivos e também envelhecidos maridos, Teixeira e Fernando.

Napoleão não hesita em, sem censura ou arrependimento, contar aos leitores, com detalhes como foi seu namoro com essas duas mulheres e como elas o estimularam a partir para uma grande aventura. Só depois dessa façanha, ele poderia, segundo as moças, fazer justiça ao seu nome – Napoleão – e se tornar digno de casar com elas, ou melhor, com uma delas.

No entanto, ao retornar dessa aventura, e, ao contrário de todas as expectativas, ter se saído muito bem, enriquecendo inclusive, Napoleão depara-se com essas mulheres já compro metidas e noivas de Fernando e Teixeira, que lhe foram apre sentados inicialmente por elas como “primos”. Os dois casais, por sua vez, ao reencontrarem o rapaz e o verem tão bem-sucedido, planejam se aproveitar da amizade com Napoleão para extorqui-lo. Não imaginam, porém, que ele, consciente do que estão tramando, prepara uma astuciosa e cruel vingança.

Não se pode esquecer que Memórias póstumas de Brás Cubas é um dos livros mais recorrentes no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e nos vestibulares do país. Assim, o estímulo à leitura dessa obra é mais do que bem-vindo. E, sem dúvida, a peça Memórias de um defunto autor, de Dias César, por meio da retextualização da obra literária em peça de teatro, lança uma semente de curiosidade que certamente germinará.

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Machado de Assis, uma inspiração

Quem foi, afinal, Machado de Assis? Por que é importante conhecer sua obra? Por que um de seus livros serviu de ponto de partida para a peça de Dias César? Vamos às respostas. Expoente da literatura brasileira, Joaquim Maria Machado de Assis (21/06/1839 – 29/09/1908) nasceu no Rio de Janeiro, mais especificamente no Morro do Livramento, no Bairro da Saúde, então conhecido como Pequena África, devido ao fato de que contava com forte presença de africanos libertos.

Era filho de um casal de escravizados alforriados, oriun dos do arquipélago português de Açores. Sua mãe era lava deira e seu pai pintor de paredes. Ambos sabiam ler, o que era pouco comum na época mesmo entre a população branca. O pouco que se sabe sobre a infância de Machado de Assis é que teria feito o curso então denominado “primário”.

Quando tinha apenas 10 anos, sua mãe faleceu e seu pai casou-se com Maria Inês da Silva. Sua madrasta teve um pa pel importante em sua formação, pois foi ela que o incentivou à leitura e o tornou um autodidata.

Aos 17 anos, Machado começou a trabalhar como tipógra fo da Imprensa Nacional, da qual Manuel Antônio de Almeida (1830-1861)3 era diretor. Foi ele que incentivou Machado de Assis a, nas horas vagas, escrever para diversos jornais e re vistas da época. Autodidata, Machado aprendeu sozinho latim, inglês e francês tão bem que traduziu obras importantes da literatura universal, como Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo; Oliver Twist, de Charles Dickens; Suplício de uma mulher, de Alexandre Dumas Filho; e O corvo, de Edgar Allan Poe.

3

Também carioca, foi autor de Memórias de um sargento de milícias, que publicou inicial mente em capítulos no suplemento A pacotilha do jornal Correio mercantil, entre 1852 e 1853. Foi autor também da peça de teatro Dois amores, finalizada no ano de sua morte. Embora tenha concluído a faculdade de Medicina, nunca exerceu a profissão de médico.

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Além do romance Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis escreveu crônicas, críticas literárias e poesias (das quais a maior parte encontra-se reunida no livro Crisáli das, de 1864). Outros romances do autor foram:

• da fase romântica: Ressurreição (1872); A mão e a luva (1874); Helena (1885); Iaiá Garcia (1878).

• da fase realista: Casa velha (1885); Quincas Borba (1891); Dom Casmurro (1899); Esaú e Jacó (1904); Memorial de Aires (1902).

Machado notabilizou-se também pelos seus mais de duzen tos contos, muitos deles considerados clássicos da literatura contista brasileira, dos quais se destacam:

• em 1881 - Teoria do medalhão;

• em 1882 - O espelho; O alienista; A sereníssima República;

• em 1883 - Conto alexandrino; Um homem célebre;

• em 1884 - A cartomante (1884); Cantiga de esponsais (1884); Noite de almirante (1884); Conto de escola (1884);

• em 1885 - A causa secreta;

• em 1895 - Uns braços (1895).

Considerado pela maioria dos críticos literários, como o maior escritor e romancista, Machado de Assis foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual foi presidente por dez anos.

Por isso tudo é muito importante conhecer esse autor e sua obra! E por isso Dias César homenageou Machado de Assis com a retextualização para o teatro de um de seus roman ces mais relevantes.

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Abrem-se as cortinas!

Ao se iniciar a leitura deste livro, entra-se no universo do teatro. Apresentam-se, de imediato, o perfil de cada personagem, a época e os locais da ação. Na sequência, desenrolam -se as cenas, compostas de diálogos e rubricas. O que é cada um desses elementos?

Uma cena é cada subdivisão das ações dos personagens.

Os diálogos são as falas de cada personagem, que revelam seus pensamentos ou registram diálogos.

As rubricas (ou didascálias) referem-se às anotações do autor que determinam a movimentação dos atores no palco, a entonação de cada fala, a intenção ou o estado emocional do personagem e a iluminação que deve ser usada. Além disso, as rubricas indicam também se a ação transcorre no presen te, no passado (em flashback, como uma lembrança do personagem) ou no futuro (em flashforward, como uma prospecção ou imaginação do personagem).

Essa é geralmente a composição de uma peça teatral. O linguista Sérgio Roberto Costa, em seu Dicionário de gêneros textuais4, define peça teatral como [...] o texto escrito ou encenado em que os diálogos são os que mais bem imitam as situações reais. Nelas os persona gens conversam entre si para dar ao espectador a sensação de estar dentro da cena.

p. 147.

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4 COSTA, S. R. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

Assim, o que você assiste quando vai ao teatro é a materialização de um processo que se origina pela criação de um roteiro por um dramaturgo, que se concebe a partir da contextualização da situação (espaço(s) em que acontecem as ações dos personagens, tempo em que elas se desenrolam etc.) e da apresentação sintética dos personagens, para então seguir para a construção das cenas, com as rubricas e diálo gos. Não se pode esquecer, nessa abordagem processual, do cenário ou “[...] o arranjo dado à cena através da linguagem visual, pictórica e arquitetural”5 .

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5 VASCONCELLOS, L. P. Dicionário de teatro. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 54.

Diálogos entre gigantes

Outra característica que não se pode deixar de mencionar é o diálogo constante entre textos que se revela nesta obra. Inicialmente, o título da peça de Dias César se articula com o do romance de Machado de Assis:

Memórias póstumas de Brás Cubas e

Memórias de um defunto autor

O subtítulo da peça, por sua vez, faz uma remissão clara ao autor do romance: Uma comédia a la Machado

E a epígrafe que acompanha esse título e intertítulo, traz uma expressão usada na obra machadiana logo no seu início:

[...] Obra de finado. Escrevia-a com a pena da galhofa e a tinta da me lancolia; e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. [...]

ASSIS, M. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS, M. Obra completa. V. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 625.

“[...] [sob] a pena da galhofa e a tinta da melancolia”

DIAS CÉSAR, M. Memórias de um defunto autor. São Paulo: SEI, 2021. p. 3.

Memórias de um defunto autor 102

Na sequência, a introdução da peça teatral é feita pela releitura de um trecho do poema A um bruxo com amor (1958), em que Carlos Drummond de Andrade homenageia Machado de Assis, o “bruxo do Cosme Velho”:

A um bruxo com amor

[...]

Todos os cemitérios se parecem, e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida apalpa o mármore da verdade, a descobrir a fenda necessária; onde o diabo joga dama com o destino, estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro, que revolves em mim tantos enigmas.

[...]

DRUMMOND DE ANDRADE, C. A um bruxo com amor. Correio da manhã, Rio de Janeiro, 28 set. 1958.

A um bruxo com amor (releitura)

[...]

Ah, bruxo! Tu sabes que neste mundo Todos são iguais… perante o cemitério. Por isso não repousas em nenhum deles… Mas onde a dúvida, sempre ela, rói o frio mármore da verdade e da fé, e onde um velho e cansado diabo joga xadrez com nosso destino, estás sempre por ali, tu, bruxo zombeteiro, pairando no ar com tua pena irônica…

Por ali e por aqui, junto de todos nós. Tu, sempre tu, imortal bruxo, que revolves em mim tantos enigmas. Tantos…

[...]

DIAS CÉSAR, M. Memórias de um defunto autor.

São Paulo: SEI, 2021. p. 12.

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Murilo Dias César, nesta obra, faz uma releitura do livro Memórias póstumas de Brás Cubas, publicado em 1880. Ele concebe sua peça de teatro como uma homenagem ao eterno “bruxo”, Joaquim Maria Manuel Machado de Assis, autor dessa obra fundamental da literatura brasileira. Este texto teatral se caracteriza pelo humor, aspecto essencial da obra machadiana. Dias César revisita, assim, as principais características e temas da grande obra realista: a hipocrisia, a vaidade, a traição, o ódio e expõe a alma humana com maestria. Apresenta-se ao leitor, por meio deste texto, o singular, o original e sempre crítico, irônico e, por vezes, sarcástico, universo de Machado de Assis.

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