0087L21603 - O Misterio Estrela Vesper

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DECLARAÇÃO

Direção editorial: Sandro Aloisio

Coordenação de arte: Renné Ramos

Capa e projeto gráfico: Fernando Antonio Pires

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Coordenação de revisão: Miriam de Carvalho Abões

Revisão de texto: Sâmia Rios, Ornella Miguellone e Estúdio Caraminhoca

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Material digital do professor: Patrícia Montezano

Produção gráfica: Giliard Andrade

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Organização: Sandro Aloisio Produção: Equipe M10

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Munduruku, Daniel M965m O mistério da estrela Vésper / Daniel

Paulo, SP: Lafonte, 2021 144 p. : il. ; 20,5 x 27,5 cm

ISBN 978 65 5870 069 2 (Aluno) ISBN 978 65 5870 070 8 (Professor)

1. Ficção brasileira. 2. Literatura infantojuvenil. I. Título. CDD 028.5

Elaborado por Maurício Amormino Júnior CRB6/2422

1a edição – 2021

Todos os direitos desta edição reservados a Editora Lafonte Ltda

Impressão e acabamento Oceano Indústria Gráfica e Editora Ltda Rua Osasco, 644 – Rod. Anhanguera, Km 33 CEP 07750-000 – Cajamar SP

Rua Cel. Joaquim Tibúrcio, 869 Belo Horizonte/MG. CEP.: 31741 570 Contato: (31) 9 8837 8378 | contato@edocbrasil.com.br www.edocbrasil.com.br

“Em respeito ao meio ambiente, as folhas deste livro foram produzidas com fibras obtidas de árvores de

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG) Munduruku São

O MISTÉRIO

DA ESTRELA

DANIEL MUNDURUKU

UIVÉSPER
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Esta obra é uma homenagem a três guerreiras indígenas que estimo de coração:

Eliane Potiguara Severiá Idiorê Xavante Darlene Taukane Kura-Bakairi

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Capítulo

VOVÓ ENEDINA E A ESTRELA

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Era mesmo mágico o jeito que minha avó Enedina tinha de contar histórias. Ela era uma mulher muito baixinha, com cabelos longos e grisalhos, mas, quando resolvia contar as aventuras que viveu ou ouviu da boca dos mais velhos, parecia que seu espírito a fazia maior, transportando-a para lugares desconhecidos.

A história que irei contar aconteceu de verdade. Eu estava lá e a vivi em companhia de outras pessoas que poderão confirmar tudo o que for narrado aqui.

Antes de começar, no entanto, quero me apresentar a você, leitor. Bem, meu nome é Kaimé Kan. Sou de um clã do qual faz parte um gru po de guerreiros, formado por homens fortes e valentes. Os rapazes do nosso clã são preparados para o combate durante sua formação inicial, que começa quando ainda são muito jovens. Para serem aceitos, eles passam por vários rituais, até se tornarem homens maduros e prontos para a vida. Depois disso, todos se casam e formam suas famílias, e tudo começa de novo com as crianças que deles nascem.

Isso acontece com os homens. Para nós, mulheres, é diferente. Ah, ia me esquecendo de dizer que sou uma menina e que, para nós, os ri tuais foram pensados para nos educar a sermos pessoas responsáveis pela vida doméstica. Quando há algum problema, as mulheres da aldeia discutem em conselho. Os homens também participam, cabendo a eles levar a debate com os outros homens.

Quando a menina nasce, ela é conduzida pelo pai ao centro da aldeia e apresentada para toda a comunidade. Ali é feito um ritual para que ela cresça com coragem e possa oferecer muitos filhos ao nosso povo. É um ritual bonito. A criancinha fica desesperada, esperneia, grita, mas tem de aguentar firme até que seja abençoada pelo nosso pajé. Depois disso, é levada à nova mamãe, para que seja alimentada no seio. Às vezes penso que ser homem é melhor que ser mulher. Seja porque os homens saem mais pelos caminhos da floresta, seja porque não são obrigados a carregar os filhos na própria barriga durante tanto tem po. Sou mulher e gosto de ser mulher, mas que é mais difícil é.

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Minha avó Enedina era o que se poderia chamar de feiticeira. Ela era muito misteriosa, cheia de segredos e palavras mágicas. Ela me ensinou muitas coisas. Quer dizer, ela ensinava a todas as mulheres da aldeia um monte de coisas esquisitas, como ficar invisível para ouvir uma conversa ou preparar uma poção mágica para prender um homem nos encantos do amor. Ela não escolhia muito a hora, local ou pessoa para dizer o que queria. Simplesmente dizia. Todas nós ouvíamos com atenção quando ela começava a cantar as canções que dizia ter aprendido dos antepassados no mundo dos sonhos. Confesso que eu a achava um pou co maluca e tinha um pouco de medo dela. Eu não gostava de ficar sozi nha com a minha avó. Meu pai ria de mim quando eu dizia isso para ele, pois a achava inofensiva. No seu modo de entender, vovó tinha ficado assim quando o marido dela, meu avô, havia morrido de uma forte febre, e ela não conseguiu fazer nada para salvar sua vida. Dali em diante, vovó nunca mais foi a mesma.

Um dia quis saber de meu pai o que a tornava tão conhecedora das coisas. Ele me disse que vovó não quis ser apenas mais uma mu lher dentro da comunidade. Ela sempre queria participar de todas as atividades. Para isso, teve de contar com o apoio do vovô, que lhe foi ensinando outros conhecimentos que estão além de nosso campo de visão. Ele, que era um grande chefe, sabia ser sábio e vigoroso ao mesmo tempo, mas também era um grande conhecedor das coisas do espírito. Ele a conduziu por esse caminho, e isso tornou minha avó uma mulher temida e um pouco desprezada por não querer ocupar seu lugar dentro da comunidade.

Quando ouvi isso, fiquei gostando mais dela. E entendi também por que, sempre que eu batia o pé para fazer alguma coisa que não me agradava, meu pai dizia que eu tinha puxado à minha avó. Entre elas estava a obrigação de escolher um marido desde nova. Eu achava aqui lo um horror. Não que eu não entendesse as razões do meu povo, mas simplesmente achava que era uma violência impor a uma criança tanta responsabilidade com tão pouca idade. Claro que muitos pais entendiam

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isso e acabavam assumindo a obrigação de escolher o companheiro ideal para a filha. É verdade que isso, em muitos casos, virava negociação entre homens adultos. E que era feito em nome da tradição, em nome dos ancestrais que, penso eu, não andam muito pelos lados de cá ultimamente.

Entre as manias de minha avó estava a de guardar dentes que ela mesma extraía das crianças. Ela tinha mais de duzentos, segundo suas contas. Eu achava que era mais. Ela dizia que, pelos dentes, era possí vel saber o caminho de cada criança na vida. Um dia eu quis saber dela qual seria o meu caminho. Ela chacoalhou um bambu onde guardava os dentes, fechou os olhos e me confidenciou que meu destino era ser ela.

Na hora gelei. O que poderia significar aquilo? Ela notou minha aflição, passou as mãos pelos meus cabelos e disse apenas que não me preocupasse, porque isso não era ruim.

Em outra ocasião, perguntei a ela o que eu precisaria fazer para conseguir realizar um desejo muito esperado. Ela olhou para mim com um sorriso bem sincero e me conduziu até sua cozinha. Em seguida, vi rou-se para mim e disse:

— Você tem de libertar uma estrela do seu cativeiro. Se fizer isso, todos os seus desejos se realizarão.

— Onde posso encontrar essa estrela? — quis logo saber.

Ela apenas encolheu os ombros, como se quisesse dizer: “Se eu soubesse, já teria ido lá!”

Fiquei matutando por muitos dias o que ela havia me dito. Minha avó falava sempre de um jeito misterioso, enigmático, e quase nunca dava respostas prontas, mas deixava pistas. Então resolvi reunir minhas amigas mais próximas para contar o que vovó havia me falado. Contei tudo a elas, numa ocasião em que fomos tomar banho juntas no final do dia. Algumas riram à vontade e chamaram vovó de louca varrida. Outras tentaram me convencer de que era tudo maluquice dela e de que nada daquilo poderia ser levado a sério. Fiquei furiosa com elas. Felizmente,

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outras amigas me ouviram com atenção e perguntaram o que eu pre tendia fazer.

— Ir atrás da estrela — respondi sem pestanejar.

— Como você fará isso, se nem sabe que direção tomar? — quis saber Tonhõ.

— Escolher o caminho é mais fácil, pois terei de fazer isso de qual quer forma. Quero encontrar e libertar a estrela para que ela atenda meu pedido. Se isso acontecer, serei para sempre feliz.

— E que pedido é esse?

— Segredo. Só posso contar para quem me acompanhar.

Um silêncio tomou conta depois das minhas palavras. Naquele mo mento percebi a loucura que estava propondo para minhas amigas. Não poderia exigir que elas fossem em busca de um sonho que era apenas meu. Especialmente porque elas já estavam comprometidas com seus noivos e maridos, apesar da pouca idade de todas nós. Deixei passar uns instantes para voltar a falar.

— Vocês não precisam me acompanhar se não quiserem. O sonho é meu, a busca tem de ser minha.

— Se ao menos você nos dissesse do que se trata...

— Não posso, amiga. Não posso. Tudo tem de ser em segredo, por enquanto. O que posso dizer é que pretendo contar com os poderes so brenaturais de vovó. Ela vai me dar a direção que devo seguir.

— Ela já sabe disso?

— Não.

— Quando você pretende contar a ela?

— Bem, assim que vocês concordarem em me acompanhar.

Falei isso e deixei que elas decidissem o que queriam fazer. É claro que houve certo tumulto... deixei que trocassem ideias e me fizessem todas as perguntas que queriam. Procurei responder uma por uma. Na minha cabeça estava tudo organizado. Eu já sabia cada passo que iríamos dar até chegarmos aonde eu queria.

Das seis amigas que eu gostaria que fossem comigo, quatro to param. As outras duas deram desculpas esfarrapadas, mas prometeram

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não contar a ninguém o que iríamos fazer, afinal, não era para preocupar nossos pais. Este foi o combinado.

No dia seguinte, marcamos de nos encontrar bem cedo na casa de vovó, que morava sozinha desde o falecimento de meu avô. Éramos cinco meninas com idades aproximadas de treze anos. Todas nós estávamos sendo preparadas para o ritual de maioridade. Depois dele, teríamos de casar com um dos rapazes da comunidade. Eu ainda não tinha preten dente, mas minhas amigas estavam todas comprometidas desde pequenas. Isso as tornava felizes e tristes ao mesmo tempo.

Vovó Enedina já estava acordada quando paramos na frente da sua porta, antes mesmo de o sol nascer. Ela sorriu quando nos viu. Dentro de sua casa ardia um fogo que deixava o lugar bem quente e, sobre o braseiro, havia uma panela de barro cozinhando mingau de banana, que exalava um delicioso aroma. Vovó mandou que nos sentássemos en quanto nos servia o mingau na cuia feita de cabaça.

— Eu sabia que vocês viriam hoje — ela disse, disfarçando um sorriso.

Não falamos nada, mas nos entreolhamos, como que perguntando de que forma ela sabia disso, se tudo tinha sido resolvido na noite ante rior. Ela esperou a gente elogiar o mingau, que estava mesmo delicioso, antes de retomar a palavra.

— Há muito tempo aguardo um grupo assim, como o de vocês. Quando falei para Kaimé Kan sobre a estrela e vi sua reação, achei que tinha chegado o momento de dar continuidade ao sonho que sempre persegui, mas nunca consegui realizar.

Vovó fez um silêncio profundo, que parecia carregar alguma lem brança. Depois andou por um tempo pela pequena sala esfumaçada e foi até o embrulho escondido no telhado interno. Retirou o pacote com intenso cuidado e o colocou sobre a mesa da sala. Todas nós ficamos curiosas a respeito do que aquele pacote escondia. E fomos nos aproxi mando lentamente, enquanto vovó ia desenrolando o objeto, que parecia querer explodir em nossas caras

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Capítulo 2

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UMA HISTÓRIA SEM FIM

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Quando menos esperávamos, para nossa decepção, vovó Enedina voltou e fechou o pacote de novo. Assim, voltamos imediatamente para nossas posições iniciais, aguardando que a velha senhora retomasse a palavra. Com gestos duros, ela mandou que nos sentássemos nos bancos espalhados pela casa. Obedecemos com pron tidão, pois queríamos mesmo saber do que se tratava.

Em seguida, ela colocou o objeto ainda coberto em seu colo. Ficou acariciando-o por longos minutos, enquanto nos matava de curiosidade. Só então retomou a fala, levantando os olhos em nossa direção. Sorriu, buscando retribuição, e depois nos disse:

— Esta é minha estrela. Eu a encontrei há muito tempo, e desde então tem ficado aqui, escondida por estes trapos velhos. Às vezes con versamos para animar uma à outra. Ela está aqui todos esses anos esperando que um grupo como o de vocês aparecesse para que eu pudesse contar sua história. Ela precisa muito de vocês. Sem sua ajuda, ela irá desaparecer para sempre do nosso belo céu. E o pior é que ela não tem mais muito tempo. Enquanto vovó falava, o objeto ia ficando cada vez mais brilhante. Segundos depois ficamos todas ofuscadas pela luz que saía da estrela de vovó. Ela ria de satisfação quando surgiu à nossa frente uma moça mara vilhosamente linda chamada Kaxipã. Estava meio zonza, mas aos poucos foi voltando ao normal até se fixar em pé, ao lado de sua senhora, minha avó.

Ficamos espantadas com a aparição mágica que havia acontecido na nossa frente. Minhas amigas – especialmente Dasca, a mais jovem de todas nós – não conseguiram se conter. Todas se aproximaram para tocar a linda moça que aparecera praticamente do nada. Minha avó ria baixinho, vendo nosso espanto diante daquilo. Depois nos mandou falar baixo para não acordarmos toda a aldeia. Seria muito difícil de explicar o que estava acontecendo se alguém, além de nós, presenciasse aquilo.

Voltamos a nos sentar. Dasca, Vitória-Régia, Tonhõ e Karu ain da não haviam conseguido fechar a boca da surpresa que tiveram. Até

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lágrimas saíam de seus olhos. Vovó serviu água para todas nós. Depois nos falou que a estrela tinha chegado até ela numa noite muito escura, na mesma ocasião em que seu marido havia partido para o mundo dos mortos. Ela contou que tinha ficado tão triste que vagou durante muitos dias e noites pela floresta. Nesse tempo, caminhou a esmo, sem rumo, pois não conseguia entender como ela, uma curandeira que cuidava de todo mundo, não havia curado seu próprio marido. Daí saiu gritando no meio do mato, e todos na aldeia pensaram que ela havia ficado maluca. De repente, num dia em que caminhava totalmente desesperada pela fome e pela sede, ela se sentou no topo de um morro. Lá de cima podia ver uma cachoeira que caía entre as rochas, enchendo uma lagoa com águas cristalinas. Pensou em descer, mas percebeu que estava mui to longe, e a descida era muito íngreme, tornando sua vontade impossível. Seu relato estava carregado de emoção:

— Foi então que, cansada e esgotada como estava, desejei mor rer. Deitei meu corpo ali mesmo, no chão, e chamei meu amado lá do mundo das estrelas para que me levasse para junto dele. Depois disso não sei o que aconteceu, pois quando despertei já era noite alta e este embrulho estava do meu lado. Eu o peguei em minhas mãos e fiquei balançando como se fosse uma criança. Eu sabia que era um sinal mandado por seu avô. Fiquei um bom tempo ali, parada, e, quando o dia amanheceu, voltei para casa.

Vovó estava triste quando terminou de narrar sua história. Todas nós estávamos chorando. Lá fora, o dia parecia que já estava forçando a noite para tomar seu lugar. Vovó sabia disso e por isso pediu que nos aproximássemos, como se fôssemos um time, além de balbuciar algumas palavras. Falou que a estrela precisava de nós, pois ela tinha vindo à Terra buscar seu irmão, que havia sido raptado por um feiticeiro solitário que vivia do outro lado da cachoeira. Era preciso libertar o rapaz para que a estrela pudesse voltar ao céu, levando seu irmão junto com ela.

O rapto do irmão da estrela havia acontecido na mesma noite em que o embrulho apareceu perto da minha avó. A estrela conseguiu fugir

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do bruxo e buscou se refugiar nos braços dela. Desde então as duas estão à espera de jovens corajosas que possam e queiram fazer a jornada pela libertação de Kaxikã – a estrela da felicidade, irmão de Kaxipã.

— Vão. Vocês precisam ir logo, antes que o sol tome conta de tudo. Ninguém pode ver vocês. Corram! — disse minha avó.

— Qual o caminho que devemos seguir?

— Não posso dizer. Vocês terão de descobrir sozinhas. Eu estarei sempre torcendo por vocês.

Karu ainda tentou perguntar algo, mas tive de impedi-la de falar, porque alguns rapazes já estavam levantando de suas redes para caçar. Fechei sua boca com minha mão, enquanto observávamos os primeiros movimentos da aldeia. Depois fomos saindo com cuidado e entramos definitivamente no mato para buscar Kaxikã, a estrela da felicidade.

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Capítulo

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PRIMEIROS TOMBOS

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Seguindo meus instintos, fui guiando minhas amigas em direção ao centro da floresta. A nossa primeira decisão foi sair da rota pela qual caminhavam os rapazes atrás de caça. Com certeza, pensava eu, o trajeto que minha avó tinha tomado aquele dia não era tão óbvio. Nós não podíamos nos esquecer de que ela havia sumido por muitos dias, e isso só aconteceu porque ela saiu das trilhas dos caçadores. E muitos homens partiram à sua procura e não a encontraram. É provável que a tenham procurado nos lugares mais conhecidos. Certamente não pensaram com a cabeça dela para poder imaginar onde estaria escon dida. Minha avó sempre foi muito criativa. Não era sem motivo que a consideravam uma pessoa estranha dentro da comunidade desde quando meu avô ainda estava vivo. Vovó sempre olhou de um modo diferente para a realidade, e isso a fez amiga do que não se pode provar – o que não é pensado pelos demais tem interesse para ela. Comuniquei esse pensamento às minhas amigas. E elas concorda ram comigo.

— Os homens são muito óbvios! — disse Tonhõ, arrancando uma gargalhada de todas nós.

— É isso mesmo. Eles sempre fazem as mesmas coisas. Não têm criatividade. Vivem dizendo que é preciso seguir a tradição, como se isso fosse desculpa para ficar fazendo sempre as mesmas coisas — refletiu a pequena Dasca, de maneira surpreendente.

Novas gargalhadas.

Eu fiquei quieta, mas sabia que elas tinham razão. Lembro de uma amiga minha dizendo que os meninos tinham caixinhas na cabeça. Dizia isso porque achava os meninos muito desatentos; eles entravam numa caixa e não conseguiam sair dali sem uma boa ajuda. Eu guardei essa ideia na cabeça para usar na hora certa.

Ficamos caminhando por mais algum tempo, sem rumo definido. Fomos falando mais coisas sobre os homens e suas manias. Lembramos do gosto deles de sair por dias para caçar no mato, quando sabíamos que, na verdade, eles usam muito essa desculpa para poderem viver

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outras aventuras. Rimos à vontade. Apenas nossa nova amiga, Kaxipã, não havia dito nada desde que saímos da aldeia.

Resolvi dar um sinal para que parássemos por uns momentos. Era preciso descansar daquela longa caminhada. Não tanto pela distância percorrida, mas pela velocidade com que andamos. Então nos acomoda mos à beira de um pequeno lago, que oferecia água em abundância. As meninas se deitaram à margem, enquanto Kaxipã e eu nos sentamos um pouco mais atrás. Nós duas começamos a rir das presepadas das outras, que brincavam nas águas da lagoa como um bando de crianças.

Foi assim que eu me aproximei ainda mais da estrela. Só então pude observar como ela era mesmo bonita. Sua pele muito morena contrastava com seus cabelos loiros, quase brancos. Tinha lábios carnudos e olhos avantajados, como os de um jacaré no momento do bote. Seus pés eram pequenos e suas mãos, enormes. Quando ela percebeu que eu a admirava, sorriu com simpatia. Aproveitei aquele gesto para conversar um pouco.

— Ainda não ouvimos sua voz, Kaxipã. Gostaria que nos visse como irmãs aqui no meio da mata. Temos de nos ajudar. Estamos nesta jornada, da qual pouco sabemos, por você e por seu irmão, mas é preciso compreender melhor tudo o que está acontecendo.

Não entendi o motivo, só que ela se encolheu, abraçando os joelhos e escondendo o rosto entre eles. Percebendo a aflição da nossa nova amiga, as outras meninas se aproximaram. Nós nos abraçamos como um time. Permanecemos assim por uns bons segundos, até sermos interrom pidas por uma forte rajada de vento, que fez as copas das gigantescas árvores praticamente se debruçarem sobre nós. Aquilo pareceu engra çado, no entanto, Kaxipã, que se levantou primeiro, apontou para outro lugar. Sua expressão era de medo. Saímos dali no momento exato em que uma árvore imensa despencou no lugar onde estávamos sentadas.

A estrela, que tinha corpo e jeito de moça, abraçou-nos novamente. Disse que era preciso sair dali o mais rápido possível.

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— Ele sabe que estamos aqui. E vai fazer de tudo para nos destruir.

— Ele quem? — eu quis saber.

— O bruxo do qual sua avó falou.

— Como ele sabe que estamos aqui se faz tão pouco tempo que partimos? — perguntou Vitória-Régia, enquanto se preparava para correr.

— Além de ser um grande feiticeiro, que conhece as pessoas e as coisas, ele sabe que os próximos dias são essenciais para a conquista do poder das estrelas.

A resposta não foi muito clara, por isso tentamos fazer outras per guntas. Ela prometeu que mais tarde nos contaria tudo, pois agora só nos restava correr, e muito, daquele lugar assustador.

E assim fizemos. Como nossa experiência em explorar o meio do mato era muito pequena comparada com a dos homens, que são acostumados às armadilhas da floresta, em alguns momentos nos atrapalhamos com os cipós das árvores. Parecia que eles estavam rindo da gente.

Bem, muitos tombos depois, avistamos um lugar que parecia apro priado para passarmos aquela primeira etapa da nossa jornada. Era uma clareira formada naturalmente. Ao redor daquele espaço, algumas ár vores nos dariam proteção à noite. Imaginamos que dormindo próxi mas umas das outras o frio diminuiria. Mas o que me preocupava na quele momento é que ainda não tínhamos comido, pois não havíamos carregado provisões conosco. Ou seja, havia a necessidade de procurar alimentos na floresta, mesmo com os poucos recursos e conhecimento que tínhamos acumulado durante nossa preparação para a vida adulta.

Isso valeu algumas observações de minhas amigas. Para elas, os homens aprendiam as artes da guerra e da caça enquanto as mulheres aprendiam a limpar o que era trazido por eles. E isso era injusto, na opi nião delas. Eu concordava com elas, só que eu achava a organização da nossa aldeia adequada para todos poderem fazer suas atividades e ter comida em boa quantidade para viver bem.

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A opinião delas refletia um pouco o que pensavam as outras me ninas da aldeia. Mas o importante naquele momento era que, por sorte, o local escolhido para passar a noite estava repleto de frutas. O pomar estava carregado. Devoramos tudo que encontramos. Ao menos colher frutas a gente sabia bem.

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Capítulo

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O SORRISO DA CAPIVARA

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Anoite caiu sobre nós trazendo uma brisa fria. Vit – como pas samos a chamar Vitória-Régia – era a mais prendada do nosso grupo. Ela sabia fazer fogo esfregando varetas secas, descobrir água nos caules das plantas, amassar frutas em folhas das palmeiras e colher batatas de plantas que, para nós, eram desconhecidas. Foi por isso que ela logo assumiu a tarefa de cuidar de nossa alimentação. A pequena Dasca a ajudava, pois dizia querer ser como Vit.

Enquanto as duas procuravam ali por perto gravetos, raízes, água e frutas, o restante da turma procurava material para levantar a tenda que nos abrigaria durante a noite. Normalmente, esse é um trabalho dos homens. Como essa não é uma preocupação das mulheres, é bem difícil de fazer o trabalho mais pesado. Ainda mais porque era preciso cortar ou quebrar galhos grandes com as próprias mãos. Ao final, fizemos um abrigo meia-boca, que mal acomodava a todas nós, mas demos um jeitinho. Depois de forrar o chão com palhas e folhas, criamos umas camas até confortáveis. Vit fez uma fogueira na porta do nosso acampamento, que nos manteve aquecidas e espantou os animais noturnos que poderiam tentar se aproximar da gente.

Demorei a dormir. As meninas logo adormeceram, pois o dia fora realmente cansativo. Fiquei virando de um lado para o outro sem encon trar o sono que me levasse para o mundo dos sonhos. Permaneci assim por um longo tempo. Estava preocupada com o destino daquele grupo, que havia saído da aldeia por minha causa. Além disso, precisava ajudar a estrela Kaxipã, que tinha de salvar seu irmão do controle de um poderoso feiticeiro. Como foi tudo muito rápido, eu não me sentia preparada para enfrentar tamanho desafio. Será que minha avó sabia o que estava acontecendo? Poderia gritar o nome dela caso precisasse?

Por mais que pensasse, não conseguia encontrar saída alguma. Andar sem rumo ou seguir em direção a uma queda-d’água para encon trar os primeiros sinais do tal feiticeiro? Mesmo lembrando o que minha velha avó dizia, que era preciso sempre seguir a intuição, aquele conselho parecia não funcionar quando a vida real acontecia. Ela vivia num mundo

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de fantasia, habitado por espíritos e fantasmas. Para as pessoas da aldeia, ela era totalmente louca. Será que eu também era louca por ter aceitado cumprir essa jornada?

Não sei em que momento, mas cochilei. Ou será que a grande ave aproximando-se de mim era real? Ela era imensa. Estava sobre o corpo de uma estranha capivara, que ficou olhando para mim durante longo tempo. Quando acordei, era dia. As meninas já estavam espalhadas, pre parando uma refeição. Para meu espanto, aquele pedaço da floresta era muito mais lindo que à primeira vista. Estava repleto de pássaros que cantavam desesperadamente para acordar o dia. O sol batia direto na clareira onde a gente passou a noite, incendiando tudo com seu brilho. As meninas estavam alegres, soltas.

A primeira a me cumprimentar foi Tonhõ. Estava com um sorriso lindo no rosto. Quis saber o motivo daquela felicidade, e ela me disse que havia sonhado com seu amado. No sonho ela descobriu que ficaria com ele para sempre. E que não se importava se ele havia sido escolhido por seus pais. Pois ela sabia que aquele era seu homem para toda a vida. Fiquei feliz com minha amiga, mas confesso que estranhei muito aquelas palavras, porque todos sabiam que Tonhõ não concordava em ter de se casar com alguém que ela não amava.

Depois vi a pequena Dasca, que também expressava uma felicidade inocente. Perguntei a ela o que havia acontecido. Estranhamente, ela contou a mesma história de Tonhõ. Achei esquisito aquilo. Então chamei a Vit. Ela veio meio a contragosto. Estava entretida com alguma coisa. Não queria falar naquele momento. Ela desconversou quando perguntei. Depois continuou seus afazeres.

Achei melhor perguntar a Kaxipã o que havia acontecido.

— Acho que você sabe melhor que eu, Kaimé Kan.

Fiquei surpresa com as palavras dela. Mas depois explicou melhor:

— Elas estão encantadas, pois beberam o líquido da planta sagrada, que brota da árvore Kiu. Essa planta traz felicidade e bem-estar. As pes soas tomam a seiva dela e acham que tudo será uma felicidade eterna.

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Não fique preocupada, isso não depende delas, mas da planta.

— E por que eu não estou do mesmo jeito que elas?

— Seu sonho foi diferente. O líquido não fez o mesmo efeito. Você está protegida por dois espíritos. Eles sempre te acompanham.

— Como assim?

— Você tem a visão do futuro, dada pelo gavião real. E tem a capa cidade de encontrar caminhos seguros, dada pela capivara.

— Foi por isso que eles apareceram no meu sonho?

— Sim. Para lembrá-la de sua missão.

As palavras da estrela me fizeram entender que ela queria que seguíssemos em frente. Então tive de despertar minhas quatro amigas do transe em que estavam. Não foi muito fácil. Elas estavam totalmente embriagadas pelo néctar da planta. Depois de muita água, conseguimos sair dali.

— Deve ser isso que os homens sentem quando ficam em cima da gente — disse a encantada Tonhõ.

Nós todas rimos da inocência dela.

— Na verdade, quando estão em cima da gente, eles roncam — res pondeu a Vit, desinibida.

— Acho que eles não sentem é nada quando estão com a gente. Gostam mesmo quando estão com os outros companheiros, farreando pela floresta.

Rimos das palavras de Karu. Nunca a tínhamos ouvido falar daquele jeito. No fundo, concordávamos que os homens eram muito difíceis de compreender, mas que eles gostavam de deixar pistas de como são, isso gostavam.

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Capítulo 5

A DOR DA PERDA

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Osegundo dia de caminhada não nos trouxe muita surpresa. Segui meus instintos. Sabia que minha avó não tinha andado por caminhos fáceis. Era preciso coragem para chegar ao lugar certo. Seguimos em silêncio por um longo período. As meninas estavam envergonhadas após passar o efeito das ervas. Perto de mim ia sempre a estrela Kaxipã. Ela servia como um farol para iluminar os caminhos por onde passávamos. E tinha se tornado uma boa conselheira, conduzindo as coisas sempre ao lugar certo.

— O papel de uma estrela é mostrar caminhos, minha amiga — ela dizia sempre.

Já era por volta do meio-dia quando fizemos uma nova parada. As meninas estavam cansadas e com dor de cabeça intensa. Viviam se quei xando. Fui ao mato e tirei uma touceira da planta que ajuda a diminuir esse tipo de dor. Arranquei numa puxada só, mas não sem antes ter feito o ritual que meus pais me ensinaram. Segundo eles, cada planta tem um espírito protetor e é muito importante que cada pessoa faça o ritual quan do deseja arrancá-la de seu lugar. Na verdade o que cura não é a planta, mas o ritual que se faz. A planta é um meio. O fim é a cura. Cantava as canções e fazia as orações antes de preparar os chás e as infusões para aplicar nas pessoas. Sempre dava certo. Dessa vez não foi diferente, e as meninas também se livraram daquela dor de cabeça infernal que tanto as perturbava. Demoramos quase meio dia para resolver esse assunto. E foi então que aconteceu o pior. No final do dia, Dasca saiu para procurar alimento. Nós ficamos preparando as camas e a cobertura para nossa cabana, pois a noite estava chegando. O tempo passou e não percebemos a demora da nossa amiga. Somente por volta das seis da tarde é que começamos a nos preocupar. Karu estava aflita. Sabia que ela não costumava demorar tanto tempo. Saiu pela clareira gritando o nome de Dasca, mas não houve resposta alguma. As outras meninas também ficaram agitadas, imaginando o pior. Tive que acalmar todo mundo. Chamei todas ao alojamento e procurei dizer palavras de conforto e esperança. Disse que iríamos nos dividir em

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dois grupos para procurarmos por ela pelas redondezas. Kaxipã preferiu ficar longe do nosso grupo, mas notei que seu rosto procurava disfarçar a sensação do pior. “O que poderia ter acontecido a ela?”, imaginava eu, tentando encontrar a resposta no vento.

Não quis ficar naquela agonia de só esperar. Preferi partir para o mato, gritando o nome da pequena Dasca. Percorremos um bom pedaço de mata e nada de a encontrarmos. As meninas começaram a chorar in tensamente. Sofriam com a possibilidade de não encontrar mais aquela amiga querida. Eu acabei me sentindo culpada pela situação. Se não fosse por minha causa, nossa amiga não estaria vivendo, agora, essa situação desesperadora.

Mais uma vez alguém tinha que mudar aquele cenário. Resolvi aju dar do jeito que sabia:

— Vamos ficar calmas. Não adianta desesperar, pois assim não conseguiremos pensar direito. Nosso povo diz que é preciso manter os nervos no lugar certo para poder pensar melhor. O que poderá ter acon tecido com a pequena Dasca? Pode ter caído num penhasco. Pode ter machucado o pé e não consegue andar. Pode estar presa em algum canto esperando por socorro. Vamos continuar juntas a nossa jornada. Agora nós temos dois compromissos: com a Kaxipã e com a Dasca. Quanto an tes acharmos o local em que o feiticeiro esconde o irmão da estrela, mais rápido voltaremos para casa e para nossos amigos. Minhas palavras surtiram o efeito esperado, pois as três amigas se levantaram num salto e arrumaram as coisas para partirmos. Em pouco tempo estávamos todas prontas. Mantive minha posição de líder e abra cei a estrela enquanto seguimos caminho em direção ao desconhecido. Quem sabe nossa amiga nos desse alguma pista... Foi assim que passa mos a segunda noite de nossa aventura, acordadas e caminhando.

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Capítulo

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PRIMEIROS SINAIS

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Quando o dia surgiu, trazendo a claridade do sol, ficamos muito aliviadas. Talvez fosse possível encontrar rastros da nossa amiga Dasca. Descansamos pouco, andamos muito. Talvez por isso o dia tenha passado muito rápido. No final daquela jornada, tínhamos seguido a minha intuição. Eu ainda achava que era a minha avó que estava nos guiando e vigiando.

E foi quando o dia parecia estar se aproximando do seu final que avistamos algo. É que um forte barulho de água caindo nos chamou a atenção. Era tão intenso o som da água que lembrava a queda de uma cachoeira. Até parecia que ela queria nos chamar em sua direção...

Imediatamente acendemos uma fogueira ali. A euforia era grande, mas a lembrança de Dasca nos levava de volta à realidade. Era preciso ainda trabalhar bastante para cumprir com nossos compromissos.

Do alto de onde estávamos dava para ver a cachoeira, que caía e nos fazia entender que a grande queda-d’água devia inspirar cuidados, caso teimássemos em continuar descontroladas. Como o dia já se en caminhava para seu final, decidimos permanecer naquele mesmo ponto para descansar. Não adiantava tentar escalar a montanha àquela hora do dia, pois correríamos o risco de nos perder e enfrentar muitos perigos na escalada. Também estávamos realmente cansadas da longa caminha da. Kaxipã concordou com a decisão, mas deixou claro que o feiticeiro estava observando a gente, que ele poderia tentar algo naquela mesma noite para nos afastar de seu esconderijo. Eu entendia a preocupação da estrela, mas não poderia ser diferente. Era preciso vigiar a noite toda, e fizemos isso em forma de rodízio. Cada uma de nós ficaria acordada em um período da noite.

O cansaço era tanto que as meninas dormiram logo. Eu fiquei vi giando no primeiro turno. Também estava cansada, mas não podia cobrar delas nenhum esforço a mais. Eu mesma estava colocando em dúvida nossa missão. Meu egoísmo tinha colocado em risco a vida de minhas amigas, especialmente da pequena Dasca, que, àquela hora, poderia estar

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ferida ou até... Preferi não pensar nisso. Minha intuição dizia que ela es tava bem. Mas o que é uma intuição se não uma forma de olharmos para dentro de nós mesmas?

Nem sei como aconteceu, porque estava entre o sono e a realidade, mas juro que vi Kaxipã se levantar por sobre nosso acampamento e flu tuar. Acho que ela pensou que eu estava dormindo. Eu já havia notado que a estrela não dormia muito. Algumas vezes sentia que nos observava com um olhar estranho. Então deixei que seguisse em frente. Levantei com cuidado e procurei caminhar sem fazer barulho, pois eu queria sa ber aonde ela ia. Como a estrela não brilhava como as outras vezes, se gui seus cabelos loiros, que se destacavam na escuridão. E ela seguiu em frente, em direção oposta à cachoeira. De vez em quando parecia mexer a cabeça como se falasse com alguém. Aquilo me deixou desconfiada. Ao chegar a uma pequena clareira da floresta, Kaxipã parou, sentou sobre as pernas e fez gestos com as mãos, como se batesse num tambor. Dele saía um som muito fraco, que era acompanhado de gritos, como o uivo do lobo. Aquele som foi me deixando sonolenta. Ao que parece, adormeci. Só despertei quando ouvi um grito trazido pela noite. Estranhamente, eu estava agora diante da nossa cabana. As meninas já estavam de pé e rindo de mim.

Num único salto, levantei e me coloquei de pé.

— O que aconteceu? — perguntei aflita.

— Nada que a gente saiba. E com você? Pelo que percebemos, você acabou dormindo aí mesmo, sem pedir para ninguém ocupar o seu lugar — disse a Vit.

Fiquei envergonhada. Elas tinham razão. O que havia acontecido? Olhei para Kaxipã, que disse com simplicidade:

— Depois eu explico.

E continuamos nossa jornada.

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7D
Capítulo

MEIO MISTÉRIO DESVENDADO

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Estava me sentindo muito estranha. As meninas perceberam isso, mas preferiram não comentar nada comigo. Tonhõ choramingava com fome, e as demais procuravam por alimento perto de nosso acampamento. Kaxipã se mantinha em um misterioso silêncio, como se escondesse algo. Minha cabeça girava num misto de medo e esperança.

No momento seguinte, ouvimos uma voz que nos chamava. Vinha da direção da cachoeira. Ficamos atentas e eufóricas com a possibilida de de ser Dasca, tentando nos comunicar algo. Já íamos correr para lá quando Kaxipã nos impediu.

— Calma, meninas. Pode ser uma armadilha. Tenho a impressão de que o feiticeiro está nos observando. Isso pode ser mais um de seus maldosos truques. É melhor continuarmos aqui e esperar mais um pouco.

— Não podemos ficar aqui, Kaxipã. Nossa amiga pode estar em perigo e precisando de nós. Não tem sentido chegar até aqui e não poder fazer mais nada — disse Vit, com raiva na voz.

— Eu compreendo você, irmã, mas acho que a estrela tem razão. Aqui estamos protegidas e somos mais fortes. Na floresta nos tornamos alvo fácil para o feiticeiro — procurei convencê-la.

— E qual é seu grande plano, Kaimé Kan?

Pedi a elas que se sentassem. Precisávamos nos acalmar. Na verdade, eu não tinha plano nenhum, apenas uma confusão mental que não con seguia resolver. Precisava ganhar tempo para colocar as ideias no lugar enquanto tentava achar uma solução.

— Vamos primeiro nos alimentar. Estamos fracas. Nossos avós dizem sempre que nosso corpo precisa estar bem tratado para que nosso pensamento tenha forças para resolver os problemas.

Parece que minhas palavras surtiram efeito. Elas sabiam que era im portante lembrar a voz da tradição em horas como essas. Fiquei feliz por ter perto de mim pessoas tão amáveis. Brinquei sobre isso e elas concordaram comigo.

Nossa primeira providência foi investigar nas proximidades do acampamento. Cada uma foi para um lugar. Pedi que não se afastassem

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muito. E, se houvesse qualquer suspeita, que voltassem imediatamente ou dessem um aviso. Kaxipã permaneceu no acampamento à nossa espera. Quando todas saíram, me escondi atrás de uma grande árvore e fiquei observando a estrela. Queria entender por que ela estava estranha. Dei uma flechada certeira, como o meu povo diz. Logo que adentramos a mata, Kaxipã flutuou. Quando estava na altura de uma pequena árvore, rodopiou para criar um círculo ao redor de seu corpo. Aquilo me deixou um pouco tonta, mas segurei a sensação de ânsia e me posicionei melhor. Segundos depois, ouvi-a cantar uma música que se parecia com um uivo da mãe-d’água. Então fiquei zonza, quase sem conseguir man ter o foco no que estava vendo. No momento seguinte, tudo silenciou e a estrela voltou ao chão, enfraquecida. Corri até ela num salto.

— Kaxipã, você está bem? O que aconteceu? Com quem você estava falando? Por que escondeu isso de nós?

A estrela nada respondeu. Apenas me olhou com carinho e pediu que a deixasse sozinha por uns instantes. Obedeci sem perguntar mais nada. Voltei para a floresta. Queria procurar algo para comermos antes que as outras meninas voltassem. Felizmente o lugar estava cheio de raízes comestíveis, frutas e água. Aos poucos, cada uma foi chegando e trazendo uma variedade de alimentos que nos bastariam. Colocamos tudo aquilo sobre algumas palhas que Karu providenciou e começamos nosso banquete.

Kaxipã, que se mantinha distante, aproximou-se do grupo e passou a contar uma história enquanto nos alimentávamos.

— Há muito tempo houve um encontro entre os meus ancestrais estrelas. Eles conversaram sobre os rumos do universo, pois conhecem muitos mundos e parte deles está correndo perigo igual ao que acontece aqui na Terra. Lá do alto, acreditem, podemos ver quase tudo o que os seres vivos fazem, de bem ou de mal. Lá de cima podemos, inclusive, com a força que as estrelas conseguem transmitir, mudar o destino das coisas.

Ficamos todas caladas e atentas às palavras dela.

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— Esse poder todas as estrelas têm. Acontece que um dos mais sá bios conselheiros das estrelas quis ir além e se encantou por uma garota, e ela também desejava muito se casar com ele. A garota era muito parecida com Dasca: inteligente, bonita, dócil e alegre. Então o conselheiro, após ouvir o chamado da menina, disfarçou-se de homem velho e desceu à Terra para satisfazer o desejo dela.

Naquela altura, já estávamos enfeitiçadas com as palavras de Kaxipã. Karu demonstrava inquietação, pois queria muito saber o des fecho da história. Eu pedi que se acalmasse para acompanhar a história da estrela.

— Quando ele aqui chegou, foi desprezado pela garota, porque se parecia com um homem velho. Ela desejava se casar com um moço novo, bonito, forte, cheio de energia e apareceu aquela figura velha e sem beleza. Enlouquecida, ela o ofendeu. Isso o deixou desiludido. Acontece que ele não poderia voltar para o céu, uma vez que havia se tornado triste. Lá em cima não cabe a tristeza, pois esse sentimento podia contaminar as demais estrelas. Os pais da moça ingrata tentaram convencer a filha a mudar de ideia, mas ela estava resolvida e não aceitou de modo algum se casar com o conselheiro das estrelas.

Tonhõ já enxugava uma lágrima que insistia em sair de seus olhos. As outras estavam curiosas para saber o que havia acontecido. Eu também.

— A moça que conquistou o coração do meu amigo tinha uma irmã. Ela ficou com muita pena daquele velho e aceitou se casar com ele. Disse que ficaria para sempre morando com ele porque sabia que era um homem bom. Mesmo sendo mais nova, ela já estava entrando na fase em que poderia se casar. Na tradição daquele povo, isso só aconteceria se a mais velha arranjasse marido. A situação era muito delicada. A aldeia foi consultada. Os sábios reuniram o conselho para tentar ouvir a voz dos ancestrais. Somente dias depois é que eles decidiram: a jovem poderia se casar com o homem de fora.

— Como assim? A comunidade não sabia que ele era uma estrela? — indagou Karu, pedindo explicação.

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— A família não havia contado essa parte da história para o povo da aldeia. Preferiu guardar segredo para não aumentar a curiosidade de todos. Eles temiam que alguém tivesse inveja da moça. Disseram apenas que era um estrangeiro. A comunidade o aceitou e a jovem se casou com o conselheiro das estrelas. Teve festa e tudo. O que ninguém sabia era que o homem velho tinha um segredo.

Antes de Kaxipã continuar, foi ouvido outro som vindo da direção da cachoeira. Com o susto, nós nos levantamos. Todas estávamos bem atentas. O som parecia ser de um grupo que marchava para a guerra. Pedi rapidamente às meninas que desmanchassem o acampamento e se preparassem para o pior. Elas atenderam ao meu pedido em silêncio, para que ninguém soubesse qual era nossa posição.

Foram longos minutos que passamos, ouvindo vozes bem estranhas. Felizmente era um alarme falso. Não se tratava de um grupo em marcha, mas do vento uivando sobre a copa das árvores. Pareciam vozes humanas.

Depois de sairmos de nossos esconderijos, reunimo-nos novamen te. Kaxipã chegou em seguida. Ela nos disse, no entanto, que o fim da história só poderia ser contado mais tarde, porque sentia que era preciso apressar o passo, pois seu irmão estava correndo o risco de morrer.

— Ele não irá aguentar por muito mais tempo. Temos de continuar nossa jornada agora — falou a estrela.

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Capítulo 8

ATORMENTADO

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Partimos da clareira sem demora. O som da cachoeira estava à nossa frente. Parecia que com uma curta caminhada chegaríamos perto de encontrar nossa querida amiga. Enquanto andava, atenta aos vários sons e ruídos da mata, fiquei pensando na história que Kaxipã estava contando. Até ensaiei um final para ela, imaginando como tudo teria acontecido. Parece que minhas colegas também estavam pensan do nisso, pois todas ficaram em profundo silêncio. Como eu ia à frente, de vez em quando virava o pescoço para ter certeza de que ninguém havia se perdido ou se desviado do caminho. Kaxipã também se mostra va bem segura. No meu íntimo, eu sabia que tudo se encaminhava para seu final. Aquela missão haveria de ficar na minha história para sempre. Graças à minha teimosia e insistência, claro.

À medida que seguíamos nossa caminhada, o som da cachoeira aumentava. A umidade que o vapor de água criava já era sentida, e isso au mentou a dificuldade para andar, uma vez que nossos pés escorregavam quando pisávamos sobre as folhas molhadas. Havia pequenas subidas na trilha. Com nossa passagem, o chão se tornou lamacento. As meninas já estavam exaustas quando chegamos ao topo. A vista era maravilhosa e fez valer nosso esforço. Todas nós ficamos encantadas com a beleza do local. Abaixo de nós havia um lindo lago de águas cristalinas, nascido a partir da montanha azulada que víamos à nossa frente. Tonhõ quis correr para mergulhar naquele paraíso, mas pedi cautela, pois para nós aquele era um lugar desconhecido.

— Nossa tradição pede cuidado com o que é belo. O bonito pode ser perigoso ou é apenas uma ilusão criada por nosso corpo cansado – eu disse, tentando explicar os meus motivos.

As meninas concordaram, sinalizando com a cabeça, e seguimos caminhando, com lentidão e cuidado. Kaxipã abriu um largo sorriso ao ver aquele espetáculo, e também nada disse. O dia já estava chegando ao seu final – eu até pensei que o tempo estava passando mais rápido. Talvez fosse melhor continuarmos apenas no dia seguinte. Estávamos cansadas pelo esforço feito. Um bom banho seria bem-vindo. Houve

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alguma reclamação, mas ninguém sugeriu outra ideia, então ficou por isso mesmo.

— O tempo parece estar passando mais rápido hoje — disse Karu, tentando desfazer o mal-estar.

— Também tive essa impressão — disse Kaxipã, com seu jeito inocente.

Olhamos para ela quase ao mesmo tempo.

N— Assim que o acampamento estiver preparado, continuarei a his tória iniciada antes.

Ao ouvir essas palavras, logo nos pusemos a trabalhar com bastan te energia. Estávamos especialmente interessadas no desfecho daquela história. Nós nos dividimos para realizar diferentes atividades, pois o trabalho andaria mais rápido, do mesmo jeito que fazemos na aldeia quando é preciso colher frutas ou tirar perfume da árvore cheirosa.

Pouco tempo depois, já estávamos tomando um refrescante banho nas águas do lago. Dessa vez, no entanto, não fizemos nenhum barulho. Não queríamos chamar a atenção dos espíritos da floresta com a nossa presença.

Kaxipã nos olhava com interesse incomum. Era como se sentisse inveja de nossa condição humana. Perguntei isso a ela, assim que tirei a cabeça do lago.

— Viver lá em cima é muito rico. Podemos ver muitas coisas que outros seres não podem. Podemos observar espetáculos maravilhosos que acontecem por todo o universo. Podemos ficar tristes quando nossas parentas mais velhas explodem no infinito, mas também podemos feste jar o nascimento de novas irmãs, que ocorre de tempos em tempos. Tudo isso, porém, é pouco importante quando apreciamos a alegria que os humanos têm mesmo com pequenas coisas. Não sentimos inveja. Talvez tenhamos pena de nós mesmas.

— Você nunca se apaixonou por um humano, Kaxipã? — perguntou Vit, deixando a bela estrela com a face avermelhada.

— Bem, não vamos entrar nesse assunto. Venham aqui para a

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margem que vou lhes contar o que aconteceu com o conselheiro das estrelas.

Sorri para ela, entendendo que não queria falar sobre sua vida íntima com a gente. A água estava muito boa e o som da cachoeira produzia uma paz muito agradável em nós. Senti vontade de morar ali para sem pre. Quem sabe quando encontrasse minha estrela poderia desejar isso. Pensei de olhos fechados. Quando os abri, notei que Kaxipã tinha ouvido o meu pensamento.

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Capítulo 9

QUASE OUTRA METADE DA HISTÓRIA

Quando saímos do rio, preparamos um lanche reforçado. Estávamos cansadas, mas prontas para ouvir a história de Kaxipã, que nos aguardava.

— O conselheiro das estrelas tinha um segredo. Todos os dias, logo cedo, ele saía para trabalhar. Na tradição de seu povo, o homem tem de ser trabalhador e capaz de sustentar sua esposa. A jovem pedia para ir junto. Queria cuidar da roça com ele, pois a idade que aparentava poderia tornar o trabalho mais difícil. Ele entendia a preocupação da esposa, mas não concordava que fosse junto. “É um trabalho para homem”, ele dizia. Kaxipã continuou a nos contar:

— O que parecia estranho para a moça é que, ao final da tarde, o marido trazia sempre coisas gostosas para casa: frutas, raízes, carne de caça. Isso a deixava desconfiada.

“Como um homem velho podia trabalhar tanto? O que será que ele fazia lá na floresta?”

Cheia de dúvidas, a moça consultou seus pais e contou o que es tava acontecendo. Eles também estranharam aquele comportamento e aconselharam-na a investigar.

Quando ele sair pela manhã, vá atrás dele sem que seja vista — disse seu pai. E assim ela fez. No dia seguinte, após a primeira refeição, o marido seguiu a mesma rotina. Disse a ela que naquele dia demoraria um pouco mais, porque precisava ir mais longe na floresta. Repetiu seu pedido, para que ela não o seguisse, pois isso poderia dar azar a ele. Kaxipã deu uma parada. Ficou admirando o céu azul que já estava se misturando com o alaranjado do final do dia, anunciando a noite que viria. Nós a observamos sem dizer palavra. Nosso costume ensina a ouvir as histórias dos mais velhos sem preocupação com o tempo que passa. As histórias precisam entrar na gente, os velhos costumam dizer. Assim como Kaxipã, também apreciamos o sol que se punha. Por um instante cheguei a pensar em como seria a casa de nossa amiga estrela. Parece que ela ouviu o meu pensamento, pois se voltou para o lado em que es távamos viradas e disse, sem cerimônia:

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— Vocês precisam dormir. Amanhã será um dia bem agitado. Depois eu termino a história.

Protestamos juntas contra aquela decisão da estrela. Era injusto ela despertar nossa curiosidade e depois dar as costas para a gente. Ela riu de nós, mas se recusou a continuar. Ficamos muito bravas, porém sa bíamos que ela tinha razão. Estávamos tão cansadas que todas boceja vam. Ninguém mais aguentava ficar acordada. Só por isso concordamos em nos deitar sobre a cama de palha de malva e dormir. Ainda consegui ver o rosto iluminado de nossa amiga estrela antes de pegar no sono.

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Capítulo

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SUSTO AO AMANHECER

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Anoite passou muito rápido. Ao menos foi essa a sensação que tive quando acordei pela manhã. O sol já estava alto e refletia na água cristalina do lago. Minhas amigas acordavam lentamente. Elas se espreguiçavam feito as tartarugas da floresta. Tudo parecia nor mal até que me dei conta do silêncio absoluto que fazia. Não havia se quer o som da cachoeira, os gritos das araras ou dos macacos. Tudo esta va mudo. As meninas também perceberam, pois logo se aproximaram de mim. Tentamos falar umas com as outras, mas nossas vozes não saíam da garganta. Olhei para Kaxipã, procurando uma explicação. Ela sorria tranquilamente, como se nada estivesse acontecendo. Aos poucos me peguei gritando sem que pudesse ouvir minha própria voz. Então tomei uma atitude contrária. Com gestos, pedi calma às meninas. Fiz sinal para que elas se sentassem e fechassem os olhos. Elas concordaram. Fui também me acalmando, procurando pensar na beleza do lugar, nas palavras de minha avó e na tradição de minha gente. Procurei esquecer qualquer pensamento e o barulho do meu coração. Nesse clima, adormeci. Não foi de verdade. Foi um sonho apenas. Mas me pareceu bem real. Quando acordei naquela manhã, ainda não havia sol. Na verdade, o céu estava nublado, anunciando chuva. Fortes trovoadas e relâmpagos o atravessavam. Ouvi tudo com muita nitidez e minhas queridas amigas ainda dormiam sobre a cama de malva. Kaxipã não estava no lugar de costume, mas isso não me incomodou nem um pouco. Eu tinha a impres são de que realmente sabia o que estava acontecendo. Tive o impulso de despertar todo mundo, começar o dia e terminar, de vez, com toda aquela agonia. A ideia era encontrar a pequena Dasca e voltar para casa. A estrela do meu sonho que fosse realizar sua vontade com outra pessoa. Respirei fundo antes de tomar qualquer atitude e voltei a dormir. Acordei assustada, porque Tonhõ me sacolejava. Olhei para o tem po e descobri que tudo não passara de um sonho. Levei as duas mãos ao cabelo e pensei na loucura que havia vivido em tão poucas horas. Minhas amigas perceberam que eu estava assustada. Karu me perguntou o que havia acontecido.

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— Tive um sonho muito estranho — respondi, sem entrar em detalhes.

— Você precisa contar para nós. Os sonhos são mensageiros do mundo ancestral — lembrou-me Karu.

Balancei a cabeça afirmativamente. Ela tinha razão. Não havia moti vo para ficar guardando aquelas imagens apenas para mim. Fiz um gesto e chamei-as para perto de mim. Então contei o que se passou. Elas ouviram com atenção. Karu baixou a cabeça como se buscasse algo no fundo de si. De repente, ela falou:

— A sabedoria ancestral diz que teremos mudança de tempo à frente. Até agora tivemos tempo bom, apesar dos apuros e do sumiço de Dasca. A sabedoria diz que tudo vai mudar e que teremos de correr contra o tempo para não sermos atingidas por fortes rajadas de vento, que poderão nos arrancar de nossos objetivos e destruir nossos sonhos. Karu parou de falar com a mesma naturalidade. Tivemos de ampa rar nossa amiga, porque sabíamos que ela tinha visitado os ancestrais no mundo deles. Vit foi até o lago, trouxe uma moringa cheia de água e serviu a ela, que, aos poucos, foi recuperando a consciência. Quando despertou, quis saber o que havia acontecido. Disse que não se lembrava de nada. Então contei a ela o que ela mesma havia dito para todas nós. Ela se surpreendeu, dizendo que nada disso acontecera antes em sua vida. A gente sabia disso, por isso tratamos de acalmar Karu.

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Capítulo

NO CAMINHO DO MAL

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Comemos a sobra dos alimentos do dia anterior. Não teríamos tempo para buscar novas comidas na floresta. Era uma questão de horas para que a mensagem do sonho virasse realidade. Tínhamos de nos apressar. Kaxipã parecia aflita, mas pouco falava, ainda que eu perguntasse algo a ela. Eu custava a entender o que devia fazer, embora meu coração estivesse tranquilo.

Sugeri que tomássemos o caminho indicado por Kaxipã. Ela havia dito que seria preciso atravessar a cachoeira para adentrar a caverna que o manto de água escondia. Tivemos de dar uma volta grande para chegar lá, pois o lago se estendia por muitos metros, em várias direções. Nossa opção em ir por terra foi a melhor. Nadar até lá poderia ser muito perigoso. Rumamos em direção à entrada da cascata, torcendo para que tudo fosse rápido. Eu sempre tive medo de noites sem lua. Em cavernas nunca havia entrado. Conhecia meus medos e apenas torcia para que nada fosse demorado.

Atravessamos alguns braços de rio e caminhamos sobre pedras com todo cuidado para evitar acidentes que pudessem nos atrasar. Pedi atenção às meninas, que prontamente atenderam. A cachoeira deixava as pedras molhadas, e o perigo de escorregamento existia. Cautelosas, seguimos adiante.

A água que caía com força nos assustou. Karu ficou um pouco para trás, mas não a deixei. Éramos um grupo e tínhamos que permanecer unidas. Demos as mãos quando entramos na caverna. Kaxipã chamou nossa atenção, pois não estava se sentindo bem.

— Como assim? — perguntei.

— Este é o caminho do mal. Uma estrela fica muito fraca ao entrar num lugar onde as energias boas e ruins estão misturadas. Eu sou uma presa fácil para o feiticeiro. É aí que está meu irmão. Se ele sair, con seguirá recuperar sua força e coragem. Mas dentro da caverna é prisio neiro e não tem energia para lutar. Vocês têm de me ajudar a entrar na caverna, não quero deixá-las sozinhas.

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As palavras que Kaxipã havia dito foram difíceis para nós. Estávamos preocupadas com a estrela, o que faríamos sem ela?

Entramos na caverna. Nossos olhos não estavam acostumados com aquela escuridão, por isso ficamos paradas por alguns minutos. Aproveitamos essa pausa para nos encorajar e fazer um pacto: não sol taríamos as mãos umas das outras e aguentaríamos as provas que viriam pela frente.

Os primeiros metros foram os mais terríveis. O chão parecia se me xer embaixo dos nossos pés. Soltamos gritos quase silenciosos, pois sa bíamos que precisávamos ficar calmas e concentradas. Eu mesma estava inquieta, mas procurava manter o equilíbrio, imaginando que logo co nheceria minha estrela. Em seguida, notamos uma leve luz azulada que brilhava mais à frente. Ela vinha das paredes da caverna. Eram pequenas pedras que ficavam piscando como se fossem estrelas no céu. Rimos da observação quando Karu disse isso. E era verdade. Parecia haver um céu estrelado no interior daquela caverna, indicando o caminho. Suspiramos aliviadas ao perceber que havia mais luz pela frente. Mais confiantes, seguimos adiante, amparando Kaxipã, que se sentia mais fraca à medida que entrávamos na caverna.

O caminho ficou mais estreito quando chegamos ao final de uma gale ria. Nela havia duas entradas diferentes. Com gestos perguntei às meninas para onde seguir. Elas me olhavam assustadas, dizendo não saber. Fechei os olhos, buscando algum sinal dentro de mim. Ouvi minha avó dizer: “use o amuleto, use o amuleto”. Sem pensar, levei a mão ao peito e lembrei que ela havia me dado um ao sair de sua casa. Tirei o colar em que ele estava pen durado e segurei-o no alto da cabeça, fechando os olhos. Minhas amigas e Kaxipã me seguiram nesse gesto. De repente, senti minha mão ficar quen te e abri os olhos para verificar o que acontecia. Notei que a pedra do muiraquitã, amuleto que representa pessoas ou animais, ao qual são atri buídas qualidades sobrenaturais, brilhava, e um raio atingia o portal da esquerda. Era isso. O amuleto estava indicando o caminho. Então surgiu uma enorme serpente à nossa frente. Gritamos desesperadas. O espírito

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prático de Tonhõ foi importante nesse momento, pois reagiu com agi lidade e nos puxou contra a parede da caverna, obrigando todas nós a avançar em direção à entrada indicada. Mas a boiuna (serpente gigante escura, capaz de tomar a forma de qualquer embarcação e, por vezes, de uma mulher) se lançou novamente contra nós, iniciando uma perseguição enlouquecida. De nosso lado, procuramos correr em disparada para não sermos atingidas.

Eu ia à frente do grupo e, quando tentei alcançar a entrada da esquerda, fui atirada ao chão, sendo obrigada a largar a mão de Kaxipã, que vinha logo atrás de mim. Um pequeno lago se formou e nos separou. Uma pedra se moveu em minha direção. Por pouco não me acertou em cheio. Fui puxada para o lado por Tonhõ, que também teve tempo para escapar.

Vit, Karu e Kaxipã gritaram enquanto eram sugadas para dentro da terra e a parede se fechava. Tonhõ e eu só conseguimos puxar Kaxipã, as outras foram engolidas. No meio da confusão, notamos que até a ser pente havia sumido. Nós ficamos desesperadas. Kaxipã havia sentado no canto da parede e parecia cansada, desanimada. Foi tudo muito rápido. Corremos para perto da estrela e a amparamos na hora exata em que desmaiava. Tonhõ me ajudou a carregá-la para outro local, mais arejado, embora não houvesse muita circulação de ar ali. Joguei água em seu rosto até que ela recuperasse os sentidos.

— O que aconteceu, Kaxipã? — quis saber Tonhõ.

— A caverna está tirando toda a minha energia e me deixando fraca. Vocês precisam continuar a missão, pois sinto que tudo está em perigo. Corram, pois logo o feiticeiro destruirá meu irmão.

— Para onde seguir? Nossas amigas foram tragadas pela terra. Você está aí, fraca, correndo risco de desmaiar. A única ajuda que temos é o medalhão que a vovó me deu. O que fazer?

— O medalhão já mostrou o caminho uma vez. Confie nele. Continuem o mais depressa possível, para que tenham tempo de salvar as meninas e meu irmão.

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Decidimos seguir em frente, mas não antes de colocarmos Kaxipã em local seguro. Ela precisava respirar um ar mais puro. Depois partimos para a caverna da direita.

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Capítulo

PLANOS DO FEITICEIRO

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Eu já havia perguntado mais de uma vez para Kaxipã qual seria o plano do feiticeiro nessa história toda. Ela sempre desconversava. Isso me deixava desconfiada. Vovó tinha pedido que eu confiasse nela, mas tinha hora que eu não conseguia fazer isso. Era tudo muito confuso. Como confiar em palavras tão cheias de vazios? Como acre ditar em algo que não vem de um ser real? Meu povo se condicionou a viver o mistério, pois está sempre envolvido em resolver suas neces sidades diárias. Por isso aprendemos a confiar nas forças da natureza. Aí estão o mistério e a resposta para nossas dúvidas, dizem os sábios. Confesso que para mim isso é difícil. Parece que eu nasci errada, pois sempre fico me indagando o porquê das coisas. Minha mãe já brigou comigo tantas vezes que até perdi a conta. Ela sempre pede que eu con fie na força da sabedoria que está escondida nas folhas das árvores, no canto dos pássaros, no correr das águas. Ela pede que eu feche os olhos quando a dúvida me estiver incomodando. Já fiz isso muitas vezes, eu digo a ela. Acontece que, quando fecho os olhos, outras dúvidas me vêm ao coração e tudo vira um ciclo sem fim. Eu bem que tentei, mas não tenho tido muita sorte. Escolhi, parece, o caminho da dúvida para sobreviver no lugar onde moro.

Estava perdida nesses pensamentos quando Tonhõ chamou minha atenção. A gruta ficava mais fechada à nossa frente. Teríamos de nos arrastar para seguir adiante. Quis ir primeiro, mas minha amiga insistiu que eu ficasse para trás. Ela era menor que eu em tamanho, e isso facilitava sua passagem. Ela ultrapassou rapidamente aquele trecho mais estreito, para em seguida voltar entusiasmada.

— Tem gente morando no fundo dessa caverna, Kaimé Kan. Como é possível?

Fiquei espantada com a informação. Não podia imaginar que era possível haver vida num lugar tão isolado, tão distante da luz, da clari dade, das estrelas. Deixei minha amiga respirar.

— Não faço a mínima ideia de como conseguem, mas vamos se guir com bastante cuidado, pois pode ser uma armadilha para nossos

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sentidos. Não esqueça que estamos em um lugar onde nossas forças estão sendo testadas o tempo todo.

Tonhõ balançou a cabeça, concordando. Acocorei-me como ela e fui ver o que havia ali. Meu corpo cansado e um pouco pesado se arras tou lentamente. Foi mesmo espantoso o que vi: havia gente ali mesmo! Era como se fosse uma cidade subterrânea. Voltei para conversar com Tonhõ, que havia se sentado em uma pedra.

— Impressionante, irmã. Nossa missão fica cada vez mais interes sante e confusa ao mesmo tempo. Isso não lhe lembrou de algo, Tonhõ?

Ela fez um gesto de que estava em dúvida. Eu pedi que se lembras se das histórias que sempre ouvimos de nossos avós.

— Pense bem. Nossos avós dizem que os ancestrais vieram de onde?

— Do fundo da terra — dissemos as duas ao mesmo tempo.

— É mesmo! — disse minha amiga, levando as mãos à cabeça.

— Parece que estamos no princípio da história do nosso povo, e que o tempo andou para trás.

— Você se lembra, Kaimé Kan, quando ouvimos essa história pela primeira vez, na época em que estávamos isoladas, preparando-nos para a vida adulta?

Disse que sim e deixei que ela continuasse a falar.

— Depois que nossa avó contou como aconteceu a saída do buraco, a gente riu pra valer. Era muito esquisito imaginar aquilo.

Rimos novamente quando nos lembramos da história que nos contaram, não só nossos ancestrais moravam dentro da terra, como eram muito felizes lá, pois tinham de tudo e não passavam necessidades. Um dia, no entanto, um caçador que vinha de terras distantes viu um enorme tatu e o perseguiu até conseguir acertar uma flecha nele, com uma seta amar rada a um barbante. Nosso ancestral sabia que não teria força para parar o animal e por isso amarrou o barbante à flecha, assim não perderia sua caça, caso ela corresse. O animal correu muito ao ser atingido. Mas nosso ancestral ficou ali, firme, seguro. Já o grande tatu, que era forte e não queria se entregar, entrou por um buraco formado no céu, com a forma de

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um arco, e passou para o outro lado, arrastando o caçador. Depois que os dois atravessaram o portal do mundo de cima, o tatu gigante conseguiu se soltar e fugiu do nosso ancestral.

Dei um tempo daquela lembrança. Havia muitos detalhes no meu pensamento. Pedi a Tonhõ que também lembrasse um pouco dessa his tória, pois talvez os detalhes pudessem ajudar na nossa missão.

— Nosso ancestral ficou atordoado quando chegou ao mundo de cima. Para ele, era tudo muito novo, e seus olhos não estavam acostu mados a ver tanta claridade. Ficou ali encantado com tudo o que via e nem sequer podia acreditar. Somente depois de algum tempo é que percebeu, aquele lugar era maravilhoso e seu povo certamente gostaria de conhecê-lo. Andou um pouco, sentiu o perfume das flores, pisou no chão, banhou-se na água límpida, subiu na árvore gigantesca, admirou o voo dos pássaros, percebeu que a paisagem ia muito além do que seus olhos podiam ver. Então ele achou que deveria voltar para contar ao conselho da sua comunidade aquela novidade. Fez isso com rapidez. Chegando ao mundo de dentro, reuniu todos e contou sua descoberta. Alguns não acreditaram nele e o chamaram de louco, outros ficaram curiosos para saber como chegar lá. Houve os que não ligaram e os que nem compareceram à reunião. O conselho dos anciãos se reuniu para debater a novidade. No final, decidiram enviar um grupo de jovens para investigar essa história. Quando retornaram com os detalhes, o conselho se sentiu na obrigação de convocar todos e comunicar o que tinha decidido: o povo se mudaria para o mundo de cima.

Tonhõ também parou por um momento. Estava visivelmente emo cionada com a história, pois entendia que ela era verdadeira, e que nosso povo não tinha nos enganado. Eu a abracei longamente. Fiz questão de lembrar o final.

— Por decisão do conselho, todos precisavam atravessar o portal que separava os dois mundos. Foram convocadas todas as mulheres para confeccionar uma grande corda com o melhor algodão. Essa corda se ria lançada para o mundo de cima e, por ela, o povo subiria aos céus.

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E assim foi feito. Primeiro subiram as mulheres e as crianças; depois os mais velhos; em seguida, os homens mais preguiçosos e os adolescentes. Isso aconteceu durante muitos dias. Quando chegou a vez de os jovens bonitos e corajosos que estavam entrando na idade adulta subirem para ocupar seu lugar no mundo de cima, a corda não resistiu e se rompeu. O culpado foi um tremor de terra que sacudiu o mundo todo naquela hora, obrigando os que estavam no chão a correr para salvar suas vidas. Isso criou uma divisão entre os mundos. Quem estava na parte de cima se espalhou e não pôde mais voltar. Aos poucos foram esquecendo onde estava localizado o portal para poderem retornar, pois, com o abalo, ele havia se fechado para sempre. Os que estavam no mundo subterrâneo não tinham mais condições de subir, pois, de onde se encontravam, não conseguiam ver o portal. Quem ficou em cima teve de se organizar para não morrer de fome e sede. Tiveram de aprender a plantar mandioca, ca çar seus alimentos e até inventaram cantos de saudade. Seu lugar agora era outro. Os sábios que os acompanharam iam contando as histórias do mundo subterrâneo, para que jamais esquecessem sua origem.

Tonhõ me interrompeu, dizendo que foi nessa época que apareceu a morte. Antes disso, as pessoas não morriam. Com a separação do mun do, os habitantes do lado de cima precisavam morrer para retornar ao perfeito mundo subterrâneo.

No final nos abraçamos, com os olhos cheios de água. Recuperamos a esperança, lembrando a história de nosso povo. Estávamos renovadas, embora não soubéssemos o que fazer ainda. O medalhão em meu pescoço brilhava, como se dissesse que era preciso seguir em frente. Então voltamos a nos arrastar pelo buraco. No final dele, notamos que o es paço se abria e facilitava nossa entrada. O lugar era cheio de galerias, como se fossem pequenos quartos onde as pessoas dormiam. A gente se movia com rapidez e cuidado, pois não podíamos ser surpreendi das, mesmo que desse a impressão de não haver perigo ali. Tonhõ foi à frente e ouviu vozes vindas de uma câmara mais distante. Ela me chamou para verificar, e eu confirmei. Fomos adiante na tentativa de

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ouvir alguma coisa com mais clareza. Eram dois seres pequenos que conversavam. Pareciam duendes da floresta. Tonhõ quis falar com eles, mas eu não deixei. Dentro da câmara, os dois conversavam sobre os planos do feiticeiro.

— Nosso mestre vai dar a volta por cima. Ele vai conseguir fazer com que os inimigos dele se ajoelhem a seus pés — disse o que parecia ser o chefe.

— Tenho minhas dúvidas. O mundo lá de cima não vai deixar isso acontecer. Nosso mestre é muito sábio, mas ele não está contando com a amizade dos humanos. Eles são fracos quando agem sozinhos, mas fortes quando estão em grupo.

— Nosso mestre sabe disso, não é? Não foi por causa dessa tal solidariedade que ele foi condenado a viver na escuridão? Ele tem tudo bem planejado e não vai deixar que nada o afaste do plano de vingança contra essa gente.

— E o menino estrela? O que vai acontecer com ele?

— Ele terá de ser eliminado. Sem ele no caminho, o mundo de cima ficará fraco, por causa do desequilíbrio que acontecerá. Nós vamos ver o mundo de cima se acabar e então tomaremos conta de tudo.

O duende soltou uma gargalhada tão barulhenta que nos assustou. Tonhõ ficou com medo de continuar. Eu a acalmei e expliquei que isso só aconteceria se a gente deixasse. Deveríamos impedir que aquele plano desse certo. Tonhõ entendeu o que eu falei e se acalmou.

Dentro da caverna, os duendes continuavam falando. Fizemos total silêncio. Era preciso alguma pista para seguir. O que parecia mais novo continuava em dúvida sobre o malvado plano do feiticeiro.

— Nosso mestre não tem falado muita coisa para nós. Ele fica sen tado por horas em seu trono e nada nos conta. Por que está fazendo isso?

— Não sei. Também acho estranho. Sei que alguma coisa o está preocupando. Talvez seja algo ligado àquelas duas meninas xeretas que sequestramos. Ele tem receio de que as coisas deem errado em seu pla no. Eu até tentei acalmar nosso mestre, mas não tive resultado. Ele disse

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que precisa da moça do medalhão. Quando ela estiver presa, o menino estrela não terá nenhuma chance.

— E onde ela está?

— Ele disse que a menina aparecerá quando chegar a hora.

Uma voz estridente soou. Os dois duendes se assustaram e saíram da câmara com rapidez. Estavam sendo chamados pelo feiticeiro.

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13E
Capítulo

ENCONTRANDO DASCA

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Seguimos os duendes sem que eles nos vissem. Os dois seguiram por uma galeria que se abria aos poucos, mostrando que havia luz no seu interior. Os homenzinhos fizeram uma saudação quando chegaram ao local, mas não conseguimos ver com detalhes o rosto do outro lado. Talvez fosse o feiticeiro.

O que me deixou um pouco desconfiada foi ver as duas realidades acontecendo ao mesmo tempo. Tonhõ e eu vimos com nossos próprios olhos o mundo ancestral funcionando normalmente, com pessoas viven do sua própria história sem se dar conta do que acontecia com a gente. Parecia que estávamos na mesma dimensão, mas invisíveis. Como isso podia acontecer? Que tipo de realidade estávamos vivendo? Minha amiga pareceu adivinhar meus pensamentos, pois naquela hora apontou para baixo. Olhei e vi que os dois duendes circulavam normalmente entre as pessoas, mas não eram vistos por elas. Todos os ignoravam. Contei para Tonhõ meus pensamentos. Ela disse que já ha via pensado nisso também, mas que não chegou a nenhuma resposta. Trocamos sorrisos e balançamos os ombros, como quem não se importa.

De repente, surgiu um barulho vindo da galeria. Um vulto passou por ali. Era o feiticeiro! Sentimos arrepios. Era possível ouvir vozes vindas lá de dentro. O malvado falava com alguém.

— Pequenas intrometidas! Vocês acham que podem me enfrentar?

Não podem. Meu poder é maior que o sentimento de vocês. A força de vocês nem cócega faz em mim. Talvez se estivessem juntas. Mas divididas não têm chance.

Uma gargalhada forte escapou da galeria e nos fez tremer.

— Sua estrela, pequena Dasca, é forte. Por isso você foi a primei ra que eu quis tirar do grupo. Com você por lá, logo, logo seu grupo se fortaleceria, pois sua inocência interior é poderosa. Essa seria a única maneira de alguém barrar meu plano perfeito de conquista da minha própria estrela. Em breve eu vou viver com ela minha história de amor.

Ao ouvir o nome de Dasca, quase demos um grito. Graças aos espí ritos ancestrais, ela estava viva. Isso nos daria mais forças para continuar

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nossa jornada. Pelo que entendemos, Vit, Karu e Kaxikã também estavam por lá. O feiticeiro continuou.

— Não sei o que contaram para vocês, mas eu nem sempre fui tão cruel. Meu coração pertencia a uma estrela que me desprezou. Meu ódio cresceu tanto que me tornou amargo com a vida e me fez desejar vingança. Meu povo me mandou para a floresta. Eles queriam que eu morresse, mas consegui aprender os segredos da floresta com a ajuda do mundo subterrâneo.

O feiticeiro continuou falando sem parar. Parecia que Dasca o ou via, mas não podia responder coisa alguma. Ele contou que o mundo subterrâneo não era aquele que se podia ver, mas o mundo dos excluídos como ele. Nesse mundo aprendeu sua feitiçaria, enquanto preparava seu plano de vingança contra o mundo que o havia expulsado.

— Quando chegar o momento do eclipse, terei minha estrela de volta. Por sorte, isso acontecerá logo. Mas eu preciso de vocês para sair vitorioso.

Nova gargalhada, dessa vez mais branda. Esticamos o pescoço, tentando ver o que acontecia dentro da câmara. Notamos que Dasca estava sentada em algum lugar, porque suas pernas curtas balançavam, mostrando impaciência. Tínhamos de agir com rapidez. Kaxipã precisava da gente para impedir aquela loucura.

Ouvimos um barulho vindo por trás. Tratamos de nos esconder, imediatamente. Os duendes passaram por nós, levando nossas amigas que haviam sido sequestradas. Suspiramos aliviadas. Tonhõ teve a ideia de lançar o assobio que usamos quando queremos nos encontrar escon didas das outras pessoas. Assim que ela assobiou, Karu olhou para trás e nos procurou. Ela sorriu discretamente, como se nos avisasse que havia compreendido tudo. Vit também tinha ouvido.

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Capítulo 14

GOLPE DE SORTE

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Seguimos os duendes mais um pouco. Tínhamos de contar com a sorte para que nosso resgate desse certo. Minha intuição dizia que eu precisava ser confiante, porque tudo daria certo. Respiramos fundo e entramos na câmara, contando com a distração do feiticeiro, que olhava para o nada.

Dasca percebeu quando entramos, pois Tonhõ assobiou nova mente. O sinal estava dado e agora era aproveitar a oportunidade que aparecesse.

Num dado momento, o feiticeiro se voltou para trás, como se sen tisse a nossa presença. Olhou para todos os cantos da câmara cuidado samente. Viu que os duendes chegavam, trazendo nossas duas amigas, e isso o fez relaxar. Que sorte!

Os homenzinhos as colocaram lado a lado. Elas não podiam se to car, mas conseguiam conversar uma com a outra por meio de olhares. Essa técnica é ensinada por nosso povo desde que somos crianças. O bruxo se aproximou das duas como se as examinasse. Chegou bem per to de Karu e cheirou seus cabelos, como se buscasse sua essência. Fez o mesmo com Vit. Depois ergueu sua cabeça para o alto e puxou o ar. Estava satisfeito.

— Finalmente tenho tudo de que preciso para fazer meu feitiço. Nada poderá me deter agora. Nem mesmo Kaimé Kan e sua outra amiga. Elas são inúteis sem a companhia de vocês.

E soltou uma gargalhada bem alta, como se desejasse ser ouvi do. A gente se encolheu no canto da câmara — não podíamos nos trair logo agora. Por um momento pensei que ele sabia de nossa presença. Balbuciei algumas palavras para Tonhõ, pedindo a ela que me seguisse para fora da câmara. Só podíamos contar com nossos instintos e agir com rapidez e precisão. Mas faltava saber onde estava o menino estrela, para podermos sair dali com todos sãos e salvos. Era essa nossa missão.

Não sabia o que fazer. No meu pensamento, pedi inspiração para minha avó. Fechei os olhos, esperando a resposta. No meu peito, o me dalhão tremeu. E uma imagem foi se formando. Surgiu uma inscrição na

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parede da caverna. Eram símbolos antigos. Quando abri os olhos, contei o que vi a Tonhõ, que me ajudou a decifrar a imagem. Saímos da câmara e nos pusemos a procurar, pois a imagem dizia que havia uma saída por ali. Corremos no sentido oposto de onde estávamos e entramos num lu gar muito escuro. O medalhão entrou em ação imediatamente, clarean do nossa passagem. Seguimos rente à parede, enquanto ouvíamos o som agudo dos morcegos. Eles estavam incomodados com nossa presença. Mentalmente, pedi perdão àqueles seres pela intromissão. E pareceu até que tinham me ouvido, pois o barulho cessou.

Andamos mais uns cem metros e encontramos as inscrições que o medalhão havia me mostrado. Elas brilhavam no escuro e representavam uma história, que contava a origem daquela caverna. Pelo menos foi assim que entendemos. O medalhão vibrou no meu peito e eu fechei os olhos, sem pensar. A história veio completa na minha cabeça.

“Em tempos antigos, nossos nobres companheiros andaram por aqui. Não havia escuridão, e todos os caminhos eram iluminados pela verdade que habitava o coração de cada pessoa. Éramos Estrela-Gente. Tínhamos a luz do coração que sempre brilhava e nosso caminho era se guro. Um dia recebemos a triste notícia de que um de nós tinha partido para a Terra atrás de um chamado humano. Ele não resistiu aos encantos de uma mulher e por ela resolveu abandonar tudo e partir. Muitos de nós decidimos ir em sua busca, com a intenção de fazê-lo voltar ao céu, nosso lar. Ele se escondeu, pois não saberia dizer não aos seus amigos. Para não desistirmos do nosso irmão, bolamos o plano de ficar aqui em vigilância e não permitir que pessoas mal-intencionadas descobrissem os poderes de nosso parente. Talvez quisessem fazer alguma coisa con tra ele. Foi assim que fizemos estas câmaras escuras, onde podemos manter nossa essência, mas sem precisar explicar nossa presença neste mundo. Aos poucos, no entanto, fomos nos envolvendo com os humanos, descobrindo sentimentos, e desejamos ficar por aqui. Nossos ancestrais escreveram suas histórias nas cavernas, sua antiga morada, para deixar registrado que passaram por aqui. Os escritos são uma garantia de que

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temos um caminho e que precisamos descobrir qual é. Mas também te mos de preservar nossa identidade para que o mundo viva em harmonia. Apenas almas puras podem ter contato conosco. Depois elas esquecem. É isso que garante nossa segurança.”

Quis perguntar algo, mas temia não ser ouvida. Por isso fiquei de olhos fechados, para poder encontrar resposta.

“Estamos esperando alguém que nos una novamente ao nosso mundo. Essa pessoa pura poderá desfazer os laços que nos prendem ao nosso antepassado que veio para cá e nos libertar para sempre. Como já ensinamos tudo que sabemos para os seres humanos, precisamos agora voltar para nosso mundo.”

Fiquei parada por mais um instante. Não sabia como libertar as estrelas. Na verdade, não conseguia encontrar motivos para isso. A voz ancestral disse que o feiticeiro queria usar Kaxikã, a estrela da felicidade, para aumentar seu poder e se vingar de quem enganou sua filha e a dei xou sem abrigo. Entendi, então, que era preciso procurar Kaxipã e saber o final da história que ela estava nos contando. A solução do mistério es tava ali. Contei isso para Tonhõ, que me disse que também havia ouvido o ancestral. Então resolvemos voltar imediatamente e encontrar Kaxipã. Atravessamos as galerias com a maior velocidade possível. Nossa visão já havia se acostumado à escuridão, assim ficou mais fácil de en carar o caminho de volta. Pouco tempo depois, já estávamos na gale ria anterior. Encontramos nossa amiga estrela deitada no mesmo lugar em que a deixamos. Ela mostrava fraqueza ainda, mas estava melhor. Contamos rapidamente o que havia se passado. Ela elogiou nossa cora gem e disse que tivéramos sorte, mas que era hora de correr.

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Capítulo 15R

NOVA PARTE REVELADA

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Kaxipã se levantou, firmando as duas mãos na parede. Ela pediu que nos sentássemos um pouco. Imaginei o motivo disso e fiquei pensando que nossas amigas perderiam o final daquela história, pois começamos a ouvi-la juntas. Kaxipã se antecipou ao meu pensa mento, dizendo que, em seu tempo, elas também saberiam o final, e que agora eu e Tonhõ apenas a ouvíssemos. Achei meio estranho aquilo, mas aceitei o fato de que a realidade era aquela. — Quando a mulher do conselheiro-estrela viu que ele havia partido para a roça, ela o seguiu sem ser percebida. Seu marido andou por longas horas, atravessando matas, igarapés, igapós e campos naturais. Chegou finalmente a um lindo lugar, onde colocou seus instrumentos de trabalho. A moça se escondeu por trás de grandes árvores para não ser percebida e ficou observando os movimentos dele. Viu quando o marido começou a cavar a terra, e dela iam saindo diferentes formas de raízes, que ele pegava e colocava no cesto, que ficou abarrotado em pouco tempo. No entanto, o que mais a impressionou foi quando o marido começou a retirar sua própria pele e a se transformar em um moço forte e bonito. Seus olhos se arregalaram quando viram aquela transformação. Quis ir logo tomar satisfação com ele, mas teve receio, pois o marido havia dito que ela estava proibida de segui-lo. Mesmo assim, ela não resistiu e foi ao encontro do agora jovem esposo. Ele, por sua vez, ficou furioso com a visita inesperada da esposa.

“— O que você veio fazer aqui, minha esposa? — perguntou o agora jovem marido.

“— Falei com meus pais sobre sua proibição, e vim olhar o que você fazia. Eles me aconselharam a seguir você. — ela respondeu.

“— E o que você viu?

“— Vi meu marido colher diferentes alimentos do chão. Vi você co locar tudo no cesto e tirar a pele do homem velho e se vestir com a pele do moço que agora está à minha frente. A comunidade precisa saber de tudo.

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“Tudo bem, mas saiba, após eles saberem essas coisas, terei de partir para minha casa. Se você quiser, venha junto. Se não, deverá ficar por aqui mesmo.

”Depois que a mulher ouviu suas palavras, ela ficou desesperada. Era muito difícil escolher qual o melhor caminho a seguir para não expor seu marido ao ridículo. E os dois caminharam de volta à aldeia. O moço não quis mais se transformar em homem velho e acabou revelando um antigo segredo de sua gente. Ao chegar, eles já estavam sendo aguarda dos pelo pai dela. Ao ver os dois juntos, o homem se exaltou.

“O que significa isso, meu genro?

“Meu sogro, o senhor precisa acreditar, mas eu sou o mesmo ho mem que veio aqui uma vez pedir trabalho para conquistar a mão da sua filha. Só que sua filha mais velha não me quis e rejeitou meu amor, só porque eu aparentava ser um homem velho. Sua filha mais nova me quis mesmo assim, me aceitou do jeito que eu era, e por isso quis oferecer a ela o melhor do conhecimento que eu trouxe das estrelas.

“A irmã mais velha, ouvindo aquela história e vendo que o homem que rejeitou era um belo e atraente moço, exigiu o direito de ficar com ele. Ele, porém, não a quis mais e abraçou com força sua esposa querida. A mulher rejeitada ficou então desesperada e começou a gritar com ele, prometendo que se vingaria daquela humilhação. E, como num passe de mágica, ela se transformou num pássaro e voou para longe. Com o passar do tempo, o jovem virou um importante chefe na comunidade e ensinou a todos as artes da caça, pesca, a plantar raízes para alimentar aquele povo que até então conhecia muito pouco essas artes. Também ensinou como fazer os rituais de agradecimento aos espíritos ances trais, para que nunca faltasse nada a eles. Depois disso, ele se despediu da comunidade, pegou sua esposa amada e voltou ao céu, onde ocupou seu lugar de estrela Vésper.”

Quando acabou de falar, Kaxipã estava visivelmente emocionada. A história de seus antepassados mexia muito com ela. Tonhõ e eu também suspiramos, emocionadas com aquele desfecho tão lindo.

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Segundos depois, nossa amiga estrela nos fez voltar para a realida de. Tínhamos de retornar para a caverna antes do pôr do sol, pois aquele seria o último dia para fazer com que seu irmão, Kaxikã, voltasse para casa. Eu disse a Kaxipã que não entendia ainda como havia acontecido esse sequestro e como ela havia chegado à casa de vovó.

Kaxipã nos confidenciou que havia sido enviada para me encontrar. No tempo ancestral, já havia uma profecia de que tudo isso aconteceria e que alguém com espírito muito puro seria o responsável por trazer paz e harmonia para o universo.

— Antes de encontrá-la, precisava ter certeza, para não cometer nenhum engano. Seu avô foi o enviado do nosso povo para se casar com sua linda avó. Ela nada sabia até acontecer a morte física dele. Para não a deixar desamparada, ele lhe revelou que o plano astral estava preparado para os acontecimentos. Quando sua mãe nasceu e depois você, seu avô também estava presente espiritualmente. Tempos depois, sua avó teve de fingir que enlouquecera para que a comunidade não desconfias se de nada. Ela se isolou e construiu a casa onde hoje mora, bem distante da aldeia. As pessoas acharam que ela ficou assim porque havia perdido o marido. A verdade é que eu já havia me revelado a ela e precisava ficar protegida enquanto você crescia.

Kaxipã deu uma pausa para enxugarmos as lágrimas que escorriam de nossos olhos. Eu fiquei pensando como a história contada por nossos velhos se repetia naquele momento. Ela olhou para mim e para Tonhõ com um sorriso feliz e depois continuou a falar:

— Durante alguns anos, convivendo com sua avó, aprendi mui tas coisas sobre os humanos. Descobri o porquê dos sentimentos, das emoções. Notei como são sensíveis para as coisas do invisível e como são especiais no trato com os outros seres humanos. Podem ser cruéis também. Percebi, então, porque meu ancestral se apaixonou por um ser tão insignificante em relação ao tamanho do universo. Na verdade, ele olhou para o coração humano quando a pequena Dasca não se importou com a aparência de velho que ele tinha.

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— Dasca? Como assim? — perguntamos eu e Tonhõ, quase ao mes mo tempo.

— Dasca era o nome da irmã mais nova da história que eu contei a vocês. O feiticeiro que hoje vocês irão enfrentar é, na verdade, a irmã mais velha dela, que se transformou em pássaro. Ela se tornou imortal após ter saído da aldeia, vítima do encantamento que jogou sobre si mesma quando prometeu vingança. Ela pensa que poderá reconquistar Kaxikã, meu irmão, se destruir o amor eterno vivido por eles. Dasca é, na verdade, minha cunhada ancestral.

Nossos queixos quase caíram no chão. Precisamos nos apoiar na parede para não sermos derrubadas pela força daquelas palavras. Agora tudo fazia sentido. Fomos preparadas para salvar o universo da força dessa vingança, que poderia destruir tudo com a desarmonia nascida de uma rejeição.

— Agora vocês precisam partir, meninas. O tempo está se esgotan do. Usem todo o conhecimento contra o malvado feiticeiro. Vocês sabe rão como quando chegar a hora de enfrentá-lo. Vocês duas são minhas irmãs agora, são estrelas também, e nada no mundo pode nos impedir de brilhar.

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Capítulo 16

PRONTAS PARA O DUELO FINAL

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Voltamos o mais rápido possível para a caverna. Tonhõ e eu está vamos decididas a pôr um fim nessa história conturbada em que nos havíamos envolvido, ainda que sem querer. Fiquei pensando nos motivos de vovó. Só agora entendia tudo o que ela havia passado esse tempo todo sem poder revelar nada para ninguém. Fiquei com meu coração apertado ao me imaginar fugindo dela, após ter ouvido dizer que era uma louca. Entendi por que sempre mamãe dizia que as pala vras são capazes de destruir a vida de uma pessoa por inteiro. Tive de aceitar minha falta de compaixão por ela. Voltando para casa, terei de fazer muito carinho nela!

A caverna parecia ter se tornado nossa amiga. Passamos pelos obs táculos já conhecidos sem dificuldades. Era como se entrássemos em nossa própria casa. Fomos direto para a câmara principal, onde estavam o feiticeiro, os duendes e nossas amigas sequestradas. Não sabíamos onde estava Kaxikã, mas tudo era uma questão de tempo.

Ao ouvir vozes, nós nos abaixamos para não sermos percebidas. Por alguns segundos seguramos a respiração. Depois de ter passado o susto, seguimos adiante para podermos olhar de perto o grupo preso ali.

Tonhõ se arrastou em direção ao local, como uma serpente se ar rasta quando vai atacar sua presa. Próxima da entrada, ela conseguiu visualizar Dasca, Vit e Karu, que estavam amarradas umas próximas das outras. Isso facilitaria nosso trabalho de resgate. Ela fez o som da mata para se comunicar com as meninas, que imediatamente entenderam que nós estávamos por ali. Vit respondeu. Disse que estavam todas muito bem, mas cansadas e que queriam voltar para casa o mais rápido possível. Tonhõ contou a elas o plano que iríamos colocar em prática. Elas se animaram. Com o mesmo silêncio, minha parceira de aventura se retirou do local sem ser percebida.

Quando ela voltou para perto de mim, conversamos sobre nossa estratégia. O ideal seria que uma de nós tentasse desviar a atenção do feiticeiro e dos duendes enquanto a outra soltaria as cordas das meninas e se esconderia com elas.

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“— E se nada disso desse certo?”, perguntou-me Tonhõ com os olhos. Levantei os ombros e respondi, também com os olhos, que teríamos de improvisar.

Tonhõ quis fazer o trabalho de isca e saiu, tão logo ouviu os passos das pessoas que estavam se aproximando da câmara. Ainda conseguimos pegar um pouco da conversa do feiticeiro com seus duendes.

— Vamos começar minha vingança imediatamente. A noite está caindo no mundo lá de fora. A minha hora chegou!

— O mestre irá destruir as estrelas neste instante? — indagou o duende chefe.

— Destruirei Dasca, que foi minha irmã em outra era. Sem o amor dela, Kaxikã, que é na verdade MINHA estrela, voltará a ser o meu marido.

— E o que acontecerá ao mestre?

— Retomarei minha antiga forma de mulher bela e formosa. Formarei uma família com meu amado e poderei ser feliz novamente.

Entendemos que aquela era a hora ideal para agir. Tonhõ saiu de nosso esconderijo e correu, fazendo o máximo de barulho que podia para chamar a atenção dos três. E foi exatamente isso que aconteceu. Quando os duendes ouviram os gritos da menina, eles se alvoroçaram. Saíram numa correria danada para tentar alcançar minha amiga, enquanto o feiticeiro seguiu na direção da câmara. Nessa hora, eu entrei em ação e cheguei ao local antes dele. Infelizmente, consegui desamarrar apenas Dasca até o malvado aparecer.

— Ora, ora, ora. Quem está aqui não é a valente Kaimé Kan? Finalmente nos encontramos! Assim minha vingança será perfeita. Acabarei com todas vocês de uma só vez.

Escondi Dasca atrás de mim, para que ele não a machucasse. Minhas outras amigas tentavam se soltar, desesperadamente. O feiticei ro continuou a falar.

— Talvez você não saiba com quem está se metendo, menina. Talvez sua avó querida não tenha lhe contado toda a história. Talvez não tenha dito que você caiu numa armadilha.

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Fiquei confusa com aquelas palavras. Havia mais coisas que eu ainda não sabia. Desafiei o feiticeiro a contar.

— Talvez a neta querida não saiba que foi enviada aqui para ser destruída. Eu nunca quis fazer mal a Kaxikã nem a Kaxipã. Tudo não pas sou de um plano para trazer você e suas amigas até mim, pois são vocês que eu sempre esperei. E agora todas estão em minhas mãos.

O malvado soltou uma gargalhada enquanto observava os duendes trazendo Tonhõ presa pelos braços.

— Viu? Agora está tudo conforme eu havia planejado. Eu vou rea lizar o ritual que vai devolver minha antiga forma e trocar estas cinco estrelas humanas pelo meu grande amor. Preparem-se para subir para sempre. Vocês vão se transformar em estrelas eternas e não sairão mais do céu.

Ficamos assustadas. Aquilo parecia loucura. Então tínhamos sido levadas ali com o propósito de sermos trocadas por Kaxikã? Desesperada, gritei com o feiticeiro.

— Tudo o que você está nos dizendo é mentira. Acredito na minha avó. Ela não mentiria para mim. Para nenhuma de nós. Viemos aqui para libertar a estrela que você fez prisioneira. Vamos lutar até o fim. Nosso mundo é aqui, e aqui queremos ficar para sempre. Não pense que tudo está acabado para nós, porque somos filhas de um povo guerreiro que nunca se entrega.

Dito isso, corri para fora, levando Dasca comigo. Minha reação fez com que os duendes soltassem Tonhõ, que aproveitou a oportunidade e foi para junto das meninas e as libertou das cordas. Como se fosse combinado, nós quatro nos alinhamos para enfrentar o feiticeiro, que parecia ter entrado num transe, porque não se mexia. Isso confundiu seus parceiros, que não sabiam o que fazer naquele momento. Então fo mos para cima deles e os prendemos com as mesmas cordas que tinham sido usadas nas minhas amigas. Depois, os levamos para fora, enquanto a câmara se enchia de uma luz cada vez mais forte.

— O que está acontecendo? — quis saber Vit.

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— Não faço a mínima ideia, mas parece que o feiticeiro está sofren do os efeitos de seu próprio feitiço — eu respondi, com pouca certeza.

— E qual seria? — perguntou Karu.

— Acho que é o efeito do tempo. Tendo ficado muito tempo aqui embaixo, seus poderes enfraqueceram e, no momento em que ia nos destruir, sua força se voltou contra ele mesmo — mais uma vez falei, imaginando que estava entendendo aquilo tudo.

— O que irá acontecer com ele? — Karu quis saber.

— Alguém vai querer ficar aqui para ver? — brincou Tonhõ.

— Vamos sair daqui o mais rápido possível, porque eu também es tou ficando confusa — tratei de dizer, antes de dar no pé.

Corremos para fora da caverna. Kaxipã estava lá nos esperando. Ao nos ver, correu ao nosso encontro e abraçou uma a uma com visível alegria. Respiramos todas, finalmente aliviadas. A noite já estava alta e muitas estrelas brilhavam no céu, como se estivessem a nos saudar. Contei as palavras do feiticeiro a ela, que, após ouvi-las, baixou a cabeça e nos confidenciou que eram mesmo verdadeiras. Tomamos um susto. Ela, então, nos contou o que aconteceu.

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Capítulo

UMA

HISTÓRIA SEM FIM

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história que vocês viveram vai além do tempo ou daquilo que chamamos de hoje. Ela vem sendo construída numa sequência tão longa como a vida. Não começou hoje nem vai terminar agora. Ela é feita de negociação, pois há forças que duelam o tempo todo para dominar o fio que constrói a vida.

Ficamos atentas às palavras da estrela, que se apoiou numa rocha para falar. A noite já estava sendo visitada pelo dia, e os primeiros raios começavam a surgir no horizonte, revelando as cores daquele lugar. Havia um cansaço nos dominando. Parecia que o som da voz de Kaxipã nos conduzia para um mundo de sonhos e fantasia. Tentei resis tir, mas parece que adormeci, pois sonhei que estava num lugar muito bonito. Crianças corriam de um lado para o outro com visível alegria. Ao longe, avistei minhas quatro amigas rodeadas por seres diferentes, alados. Aos poucos, fui me acostumando àquela visão e me dei conta de que também eu estava cercada por pequenos seres que brincavam a minha volta. Deixei-me levar pela bagunça do lugar e estendi a mão para um desses pequeninos seres que me chamava. Acompanhei suas andanças pelas ruas do lugar. Minhas amigas também vieram. Fomos deixadas na base de uma grande árvore. Havia uma clareira enorme, por onde entrava muita luz. Dela desciam e subiam seres de todos os tipos. Achamos aquilo bastante divertido e rimos, umas para as outras. Tudo parecia harmônico naquele lugar.

Dasca foi para junto de mim e pegou na minha mão. Ela me chamou com um gesto e disse que queria voltar para casa. Naquele momento, algo aconteceu, pois tudo se desmoronou diante de nos sos olhos e nos fez voltar à realidade. Outra vez estávamos junto de Kaxipã. Ela sorria para nós, como se soubesse o que havíamos sonha do. Perguntei meio a contragosto:

— O que aconteceu? Parece que dormimos e sonhamos o mesmo sonho.

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Ela então balançou a cabeça afirmativamente. Não disse pala vra alguma sobre o que havia acontecido, mas continuou a narrar sua história.

— Neste mundo em que me movimento e que tem a idade do uni verso, existem forças que se enfrentam o tempo todo. Há quem queira comandar as galáxias simplesmente pelo gosto do poder. Acontece, no entanto, que há entre essas forças muita inveja deste pequeno planeta chamado Terra. Aqui os sentimentos se embaralham e isso confunde muito nosso mundo, sempre tão previsível e monótono. No entanto, foi feito um acordo entre os seres do Cosmos para que não mexam com a vida da Terra. Nós, estrelas, somos os olhos do planeta e ficamos vigian do para que nada aconteça e venha arruinar toda a magia que aqui vem sendo construída ao longo de milênios e milênios.

Kaxipã fez mais uma pausa. Tudo estava ainda muito confuso para nós.

— Quando o malvado feiticeiro armou sua vingança, seu principal objetivo era destruir a estrela Vésper. Isso faria com que ele dominasse o mundo humano, pois sem estrela imperaria. Como vocês sabem, a es trela Vésper é a principal guardiã da Terra. E, se ela fosse destruída, tudo ficaria mais fácil para o feiticeiro.

— Ainda não entendi como entramos nessa história toda — pergun tou Dasca, com ar de desconfiança.

— Vocês foram preparadas para este momento. Quando tomamos conhecimento dos planos diabólicos do feiticeiro, começamos a procurar meios de pará-lo. Tudo foi pensado para terminar bem. É bom que eu diga, também, que nós, as estrelas, nada podíamos ter feito contra ele. Somente os humanos podem salvar seu mundo. E vocês se saíram muito bem. O sonho coletivo que tiveram foi para informar que o esfor ço feito por vocês valeu a pena. A vida é muito mais misteriosa do que aparenta ser, minhas amigas. Quando tudo parece estar desmoronando, sempre há uma força que o empurra para seu começo e tudo se renova e transforma.

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Ficamos embasbacadas ao ouvir nossa companheira de aventura. Naquele momento passamos a compreender o porquê de seu mistério e distanciamento enquanto passávamos maus bocados. Ela simplesmente não podia interferir nas nossas decisões, apenas mostrar o caminho. A li berdade de decidir era sempre nossa. Isso nos deixou mais felizes do que já estávamos, pois aliviava o coração das desconfianças que tínhamos guardado em relação a ela.

Kaxipã, ao nos ver sorrir, continuou sua fala.

— Como eu havia dito antes, essa história não acaba aqui. Haverá outros confrontos entre as forças do universo. Será preciso unir forças com todos os seres do bem para continuarmos lutando pela liberdade. Depois de tanta aventura, certamente vocês precisarão conhecer outras pessoas que fazem a mesma coisa em muitas partes do mundo. Querem?

— Queremos — respondemos todas ao mesmo tempo.

— Então vocês precisam voltar para casa, pois lá será revelado um novo caminho para seguir a luta.

Ficamos entusiasmadas. Queríamos mesmo voltar para casa, pois havíamos ficado muito tempo longe, e logo nossa falta seria notada. Perguntamos como seria nossa volta, e Kaxipã nos falou que não encon traríamos problemas em nosso retorno.

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Capítulo

VOLTANDO PARA CASA

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Seguimos o caminho de casa tão logo o dia raiou. A fome era tanta que fomos coletando o que conseguíamos de alimento. Tonhõ, que tinha a mão boa para o artesanato, confeccionou um cesto para cada uma de nós. Precisávamos levar algo para casa, assim teríamos desculpas para explicar nosso sumiço. Em pouco tempo já estávamos com os cestos lotados. Embora pesassem bastante, a caminhada foi bem rápida. Trocamos poucas palavras no percurso, só parando para peque nos momentos de descanso.

Quando nos aproximamos da aldeia, ouvimos um estranho barulho. Pedi às meninas que recuassem enquanto ia ver o que era. Andei com passos curtos, evitando pisar em galhos secos. O barulho vinha do iga rapé. Parecia que alguém tomava banho nele. O curioso é que era uma parte do rio onde ninguém costumava vir, por haver boatos de estranhos acontecimentos ali, como o desaparecimento de guerreiros em tempos antigos. Fui me aproximando cada vez mais. A mata cerrada não dava clareza para ver o que se passava. Abri uma fresta e o que vi me assus tou. Tive de chamar minhas companheiras para me certificar de que não estava ficando louca. Elas vieram com o mesmo cuidado. Fiz sinal para que não falassem, ficou parecendo que ninguém respirava. Primeiro veio Tonhõ, que levou as duas mãos à boca de susto. Depois, uma atrás da outra veio chegando. E todas repetiam o gesto.

— Isso não é possível — disse Vit, maravilhada.

— Depois dessa aventura toda, você acha que não é mesmo possível? — brincou Karu, cutucando a colega.

Rimos da piada dela. Agora entendíamos o que a estrela tinha nos dito sobre os mistérios do mundo. Continuamos olhando fixamente para aquele lugar.

— É Yara! — exclamou Dasca, emocionada, mas tentando se conter.

Ao dizer isso, mesmo num tom bem baixinho, a moça de cabelos compridos e cauda de peixe olhou em nossa direção. Ao nos ver, esboçou um sorriso e disse, como se cantasse uma canção:

— Obrigada! Vocês salvaram o mundo das águas.

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De repente, outras vozes entoaram a mesma canção. Eram duen des, seres alados, homens-pássaros, crianças com os pés virados para trás, um enorme mapinguari (gigante lendário de formas semelhantes às do homem, a quem persegue para devorar especialmente a cabeça), árvores falantes, borboletas coloridas. Eram muitas as vozes que nos agradeciam. De onde estávamos, e já sem medo de sermos notadas, sau damos todos aqueles seres mágicos que até então só conhecíamos por meio das histórias de nossos avós. Eles se curvavam diante de nós e nos aplaudiam. Ficamos sem graça. Aos poucos, todos foram se retirando floresta adentro e nos deixaram sozinhas.

Retornamos à trilha de casa. Estávamos silenciosas. O coração ba tia feliz. Num gesto espontâneo, demo-nos as mãos e rumamos para nossa aldeia, compartilhando a certeza de que vivíamos num mundo perfeito.

Ah, o que aconteceu quando chegamos à aldeia?

Essa é outra história.

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POSFÁCIO

A história que vocês acabaram de ler é uma ficção baseada em muitos mitos tradicionais dos povos indígenas brasileiros. Desde o começo, minha intenção era contar várias histórias dentro de uma mesma narrativa. Queria mostrar que o mundo indígena é repleto de fantasia, magia, disputa entre o bem e o mal — forças que vivem se digladiando para dominar o mundo vivente, este mesmo em que nos movemos e que nos dá a impressão de ser o melhor dos mundos.

Muitas histórias, de vários povos, foram usadas. Mas o mito princi pal — o da estrela Vésper — é contado pelo povo Karajá. Ele fala da irmã que queria a estrela para si e, quando ela veio em forma de um velho sem beleza física, o recusou. Sua irmã mais nova aceitou se casar com ele, que depois se revelou um moço forte e bonito e ensinou muitas coisas para o povo Karajá, que habita o estado do Tocantins e tem na pintura corporal sua principal característica.

A outra narrativa usada — a do mundo do fundo da Terra — aparece também nas histórias de diversos povos, como os Munduruku, que acre ditam ser filhos do fundo da Terra.

Juntei esses mitos para mostrar que os indígenas são mesmo filhos da natureza, independentemente de suas diferenças étnicas.

Quando eu era criança, ouvia muitas histórias parecidas com a que acabei de contar, por isso sempre tive vontade de fazer algo parecido. Não gostaria que meu amigo leitor ou amiga leitora ficassem pensando que os povos indígenas são iguais ou têm a mesma história. Queria, sim, que aprendessem a importância da magia — ela é a mola propulsora de nossa esperança, e, quando nossos povos lutam pelo direito de viver conforme o modo ancestral, nós estamos lutando para salvar a magia que ainda existe escondida nas folhas das árvores, nos rios, na vida, enfim.

Minha esperança é que esta obra possa estimular a todos que quei ram conhecer ainda mais nossos povos e lutar conosco para a manuten ção de todas as formas de vida.

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Daniel Munduruku

OBRA

O Mistério da Estrela Vésper

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A história de O Mistério da Estrela Vésper é uma ficção baseada em muitos mitos tradicionais dos povos indígenas brasi leiros. Desde o começo, o autor demonstra a intenção de contar várias histórias dentro de uma mesma narrativa. Relata que que ria mostrar que “o mundo indígena é repleto de fantasia, magia, disputa entre o bem e o mal — forças que vivem se digladiando para dominar o mundo vivente, este mesmo em que nos movemos e que nos dá a impressão de ser o melhor dos mundos.”.

A narrativa é uma aventura de cinco meninas guerreiras que partem para um mundo subterrâneo com a missão de salvar a estrela da felicidade chamada Kaxikã, raptada há muito tempo por um velho feiticeiro. Mas será que essas jovens meninas com idades entre treze e quatorze anos serão capazes de conseguir essa façanha? É o que se descobre ao longo da leitura do livro. Muitos já ouviram, desde a infância - seja pela oralidade ou

escrita - algumas histórias mitológicas e folclóricas brasileiras como as lendas do Saci-Pererê, Iara, Boitatá, Mula Sem Cabeça, dentre tantas que povoam nosso imaginário. Essas histórias, de modo ge ral, estão relacionadas aos elementos da natureza e aos seus mis térios: as florestas, os rios, as cavernas. Elas também estão ligadas aos povos tradicionais, como os indígenas, sertanejos, quilombolas e ribeirinhos que difundem suas prosopopeias para retratar os seus modos de vida.

Mas provavelmente você nunca teve a oportunidade de ter lido um livro sobre essas histórias populares contadas por quem nasceu e cresceu ouvindo as lendas em sua comunidade tradicional, nesse caso, especificamente em uma tribo indígena. Mas esse mo mento chegou, a aventura da qual vocês estão prestes a embarcar foi escrita por um indígena! Pois é, existe no Brasil literatura indí gena, muitos escritores nascidos em suas tribos passaram a escrever suas histórias para que elas fossem registradas e nunca esquecidas, principalmente pelas consequências do processo de aculturação so frido pelas etnias indígenas, no qual aos poucos a cultura do “ho mem branco” vem se sobrepondo e apagando as tradições seculares dos povos da floresta.

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O AUTOR

O autor de O Mistério da Estrela Vésper é o escritor Da niel Munduruku. Ele nasceu em Belém, capital do estado do Pará, em 1964. Sua origem pertence à etnia indígena Munduruku, do qual carrega o seu sobrenome. Quando jovem foi estudar Filoso fia, História e Psicologia na Universidade Salesiana de Lorena-SP, posteriormente fez mestrado e doutorado em Educação na USP Universidade de São Paulo e pós-doutorado em linguística pela UFSCAR - Universidade Federal de São Carlos-SP. Diretor-presi dente do Instituto UKA – Casa dos Saberes Ancestrais. Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República desde 2008. Membro fundador da Academia de Letras de Lorena. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior, entre eles o Prêmio Jabuti; Prêmio da Academia Brasileira de Letras; Prêmio Érico Vanucci Mendes (outorgado pelo CNPq); Prêmio Tolerância (outorgado pela Unesco). Muitos de seus livros receberam o selo Altamente Recomendável, outorgado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Daniel tornou-se uma referência em literatura indígena e já publicou mais de cinquenta livros com temáticas de lendas sobre os povos indígenas brasileiros e é um ativo militante na defesa das tradições nativas.

Daniel Munduruku

Depoimento do autor sobre a obra

Muitas histórias, de vários povos, foram usadas de inúmeras maneiras. Mas aqui o mito principal — o da estrela Vésper — é con tado pelo povo Karajá. Ele fala da irmã que queria a estrela para si e, quando ela veio em forma de um velho sem beleza física, o recusou. Sua irmã mais nova aceitou se casar com ele, que depois se revelou um moço forte e bonito e ensinou muitas coisas para o povo Karajá, que habita o estado do Tocantins e tem na pintura corporal sua prin cipal característica.

A outra narrativa — a do mundo do fundo da Terra — aparece também nas histórias de diversos povos, como os Munduruku, que acreditam serem filhos do fundo da Terra.

Juntei esses mitos para mostrar que os indígenas são mesmo filhos da natureza, independentemente de suas diferenças étnicas. Quando eu era criança, ouvia muitas histórias parecidas com a que acabei de contar, por isso sempre tive vontade de fazer algo pa recido. Não gostaria que meu amigo leitor ou amiga leitora ficassem pensando que os povos indígenas são iguais ou têm a mesma história. Queria, sim, que aprendessem a importância da magia — ela é a mola propulsora de nossa esperança, e, quando nossos povos lutam pelo direito de viver conforme o modo ancestral, nós estamos lutando para salvar a magia que ainda existe escondida nas folhas das árvo res, nos rios, na vida, enfim. Minha esperança é que esta obra possa estimular a todos que queiram conhecer ainda mais nossos povos e lutar conosco para a manutenção de todas as formas de vida.

Daniel Munduruku
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GÊNERO

O gênero literário de O Mistério da Estrela Vésper

A literatura é uma das expressões artísticas que garantem através da escrita os registros históricos das sociedades, sem ela, a possibilidade de formas culturais de determinados povos desapare cerem é significativa, principalmente com o processo de coloniza ção a partir do século XVI e a consequente aculturação dos povos tradicionais instituída pelos colonizadores europeus, associados aos dias atuais com o fenômeno da globalização e homogeneização cultural promovida pelo consumo desenfreado estimulado pelas propagandas impostas pelo modelo de sociedade contemporâneo.

A história das meninas lideradas pela jovem Kaimé Kan é baseada na lenda de Tainá, do povo Karajá, foi adaptada e recon tada pelo escritor Daniel Mundukuru, além da história da estrela Tainá, o autor acrescentou também mitos tradicionais de outros povos indígenas, como a lenda do fundo da terra, que conta a ori gem da etnia Munduruku. O que temos aqui então é um reconto na forma de uma novela, que aborda a mitologia.

As sociedades que têm o hábito da escrita como forma de registros tendem a ter uma fragmentação menor da sua história, mesmo com a imposição de outras sociedades nos seus modos culturais. Os livros servem de registros de tempos pretéritos com a perspectiva de manutenção das tradições. Mas não podemos desconsiderar os povos em que a escrita é secundária e as formas de representação e manutenção das tradições ocorre pela expressão da oralidade, tal como exemplo, os povos tradicionais das florestas brasileiras com as suas mais variadas etnias indígenas. As formas de representação das tradições passadas de geração para geração através da oralidade são muito comuns em comunidades autóctones, ou seja, de povos nativos, porém, suas histórias correm sérios riscos de desaparecerem com o processo de aculturação dado pelo contato com o “homem branco”, que

desde a colonização promoveu um etnocídio, um genocídio cultural dos povos tradicionais, seja pela violência, transmissão de doenças ou de imposição linguística e cultural.

Diante da diminuição significativa da população dos povos indígenas, como preservar as histórias e tradições desses povos, que têm como hábito a representação das suas expressões culturais transmitidas através da oralidade? Esse desafio é respondido através da literatura indígena, como uma forma de representar as tradições de seus povos através da arte da escrita. De modo geral, a temática da literatura indígena é predominantemente baseada em mitologias e lendas, como no caso deste livro, que é repleto de elementos que abordam a origem e a ancestralidade da formação das etnias e os seus mistérios metafísicos.

No Brasil, a mitologia é incorporada ao folclore, um conjunto de expressões artísticas populares que contempla lendas, danças, festas, literatura, músicas, culinária, sotaques, entre outras formas de representações culturais que representem as características populares, que de modo geral são bastantes diversificadas e regiona lizadas, dado a grande extensão territorial do país. As lendas são as narrativas que abordam os personagens mitológicos e representam os significados da cultura popular através das histórias orais ou es critas. Grande parte das lendas folclóricas que povoam o imaginário popular brasileiro é carregada de elementos de histórias oriundas dos povos indígenas, como a lenda do Boitatá, uma gigante cobra que cuspia fogo pelas narinas; Curupira, menino travesso de cabe los longos e vermelhos com os pés virados para trás, afugenta as pessoas que representam ameaça a floresta; Iara, a menina que foi salva pelos peixes e se transformou em sereia, que com seu canto atrai os homens para o fundo do rio, entre tantas outras lendas que enriquecem o folclore nacional.

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TEMÁTICA

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temática de O Mistério da Estrela Vésper

Voltando do espaço sideral para o plano terreno, vamos conhecer um pouco sobre a etnia Karajá, que de acordo com o IBGE (2010) - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população desta etnia está estimada em 3.000 habitantes, distribuídos geograficamente pelos estados do Tocantins, Pará, Mato Grosso e Goiás. Grande parte das aldeias está localizada na maior ilha fluvial do mundo, a ilha do Bananal, cercada pelas bacias hidrográficas dos rios Araguaia e Tocantins. Apesar do contato com os “brancos” e um amplo processo de aculturação, os Karajá ainda mantêm suas tradições como língua própria, artesanatos, rituais festivos, sendo uma das principais a festa de Aruanã, que representa os espíritos que saem do fundo do rio para celebrarem a criação do povo.

A lenda do fundo da terra, contada pelo povo Munduruku remete a ideia de um mundo subterrâneo onde vivia os primei ros ancestrais, que posteriormente formaram a civilização. Um dia, um ancestral caçador encontrou um Tatu gigante, como o bicho era forte e correu, o caçador seguiu o animal e encontrou um portal que levava ao mundo de cima. O caçador ao entrar no mundo de cima, viu florestas, animais, rios e ficou encan tado, quando voltou para contar a novidade para a população do mundo subterrâneo, as lideranças decidiram que todas se mudariam para o mundo de cima. As mulheres confeccionaram

uma grande corda e assim as crianças, mulheres e os mais velhos passaram pelo portal, quando chegou a vez dos mais jovens e fortes aconteceu um terremoto, e o portal foi fechado, os que ficaram no mundo de cima tiveram que aprender a plantar para não morrer de fome e os que ficaram no mundo subterrâneo se transformaram em espíritos que são cultuados através de rituais pelos que habitam o mundo de cima.

O povo Munduruku está localizado geograficamente na mar gem direita do Rio Tapajós, predominantemente no estado Pará e uma pequena parte nos estados do Amazonas e Mato Grosso. De acordo com o IBGE (2010), a população Munduruku conta com cerca de 11.500 pessoas, a origem etnológica deriva do Tupi e são conhecidos como formigas vermelhas, por ser um povo guer reiro, nas batalhas sempre se pintavam de urucum e atacavam em massa, semelhante a um formigueiro.

Ao longo do livro “O Mistério da Estrela Vésper”, Daniel Mun duruku aborda um tema importante do seu povo, que também é uma problemática da sociedade ocidental capitalista e tem sido bastante debatido, a questão de gênero. A história apresenta elementos da divisão do trabalho entre homens e mulheres e qual o papel das mulheres na sociedade. De forma sutil, a narrativa é carregada de questionamentos contra o machismo imposto pelos homens.

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TEMÁTICA

Por ser uma sociedade patriarcal, os Mundurukus enten dem que as mulheres são menos ativas na estrutura social, os homens são responsáveis pela caça, passando longos períodos na floresta, sendo uma atividade mais valorizada, enquanto as mulheres cuidam dos afazeres domésticos da tribo, dessa maneira, os valores masculinos se sobrepõem aos femininos.

Além da divisão do trabalho, a história aborda sobre o ca samento arranjado, quando as índias desde novas são prometidas para outros índios em acordos entre as famílias, o que para a per sonagem principal Kamé Kan é inadmissível, uma violência contra uma criança impor uma responsabilidade tão grande.

O livro mostra também os desafios de ser mulher em uma sociedade indígena, e para contemplar a valorização feminina, os principais personagens são mulheres, como a avó da menina Kamé Kan, a feiticeira e curandeira Enedina, que orienta sua neta Kamé e suas amigas Tonhõ, Vitória-Régia, Karu e Dasca na aven tura de salvar a estrela. Quem acompanha as meninas nessa saga é a estrela Kaxipã, irmã de Kaxikã, a estrela da felicidade seques trada pelo curandeiro.

Existem muitas obras literárias que abordam a temática do índio no Brasil, como as primeiras obras do escritor José de Alencar, ainda no século XIX com a romantização do índio puro, sem ser cor rompido abordado na trilogia O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874) ou as histórias de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, obra do modernismo brasileiro lançada em 1928 pelo escritor Mário de Andrade, Quarup do escritor Antônio Callado, lançado em 1967 entre tantas outras obras. Todas são obras importantes que tratam dos povos indígenas, mas que não foram escritas por indígenas e esse é o diferencial do livro que você leu, ele foi escrito por um indígena. E então, está esperando o que? Bora descobrir o Mistério da Estrela Vésper.

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NARRATIVA

A narrativa

O livro O Mistério da Estrela Vésper é dividido em estrutura e elementos da narrativa de acordo com os quadros abaixo.

Estrutura da Narrativa

O enredo do livro é escrito em gênero narrativo representado por elementos lendários e mitológicos associando personagens reais e sobrenaturais baseados no folclore brasileiro.

• Apresentação: Introdução sobre quem são os personagens, os lugares em que a história se passa.

• Desenvolvimento: Problemática da história, elementos são introduzidos para que o leitor possa contextualizar o que está por vir.

• Clímax: É o momento em que acontece os principais acontecimentos da história, ponto chave.

• Desfecho: Resolução do ponto chave e a conclusão da trama.

Elementos da Narrativa

• Narrador: A história é narrada em 1° pessoa pela protagonista Kamé Kan. Em determinados momentos o autor utiliza o discurso direto para representar diálogos entre personagens e o discurso indireto narrando diálogos entre os personagens.

• Personagens: Divididos em protagonistas (Kamé Kan) e secundários (avó de Kamé a feiticeira e curandeira Enedina, as amigas Tonhõ, VitóriaRégia, Karu e Dasca, as estrelas Kaxipã e Kaxikã e o feiticeiro da caverna e seus duendes.)

• Tempo: Presente e passado: A narrativa se passa no presente e em vários momentos volta ao passado para retratar as lendas que dão sequência para a história.

• Espaço: Presente: Aldeia indígena, floresta. Passado: Mundo subterrâneo.

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Com a ambição de realizar todos os seus desejos, Kaimé Kan, uma jovem rebelde, conhece um segredo guardado por sua avó, uma poderosa feiticeira que a envia em uma missão para salvar o mundo. Atravessando a floresta, Kaimé e mais quatro amigas enfrentam inúmeros perigos e aprendem o valor da natureza, vivendo uma incrível aventura em que a amizade, a coragem e o desejo de liberdade nos fazem lembrar de que nunca devemos desistir de nossos sonhos.

Em uma narrativa ao mesmo tempo divertida e vigorosa, Daniel Munduruku nos guia em uma jornada pelos costumes e lendas de diversos povos indígenas, em que o real e o sobrenatural se misturam para nos mostrar que o verdadeiro desafio reside em cada um de nós; é uma busca incansável que confronta não só nossas escolhas, mas também nossa própria identidade.

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