8 minute read

O inverno na Queen’s

capítulo 34

Asaudade de Anne de sua casa desapareceu, ajudada em grande parte pelo cansaço de suas visitas de fim de semana. Enquanto o clima estivesse bom, os estudantes de Avonlea iam para Carmody pela nova ferrovia toda sexta-feira à noite. Diana e vários jovens de Avonlea geralmente estavam dispostos a recebê-los, e todos iam até Avonlea fazendo uma grande festa. Anne achava que aquelas festas das noites de sexta-feira sobre as colinas de outono, no ar dourado e fresco com as luzes das casas de Avonlea brilhando além, eram as melhores e mais desejadas horas da semana.

Advertisement

Gilbert Blythe quase sempre andava com Ruby Gillis e carregava a mochila para ela. Ruby era uma jovem muito bonita, e agora se sentia tão crescida quanto de fato era. Usava saias quando sua mãe deixava e arrumava os cabelos na cidade, embora tivesse que desarrumá-los quando voltava para casa. Ela tinha grandes olhos azuis brilhantes, uma pele reluzente e uma aparência corpulenta e vistosa. Ria bastante, era alegre e tinha bom humor, e gostava de verdade das coisas boas da vida. — Mas não acho que ela seja o tipo de garota para o gosto de Gilbert — sussurrou Jane para Anne. Anne também não achava isso, mas não diria nada por causa da bolsa de estudos da Avery. Também não deixou de pensar que seria muito agradável ter um amigo como Gilbert para brincar, conversar e trocar ideias sobre livros, estudos e ambições. Gilbert tinha ambições, ela sabia, e Ruby Gillis não parecia ser o tipo de pessoa com quem ele poderia discutir essas coisas de maneira proveitosa.

Não havia nenhum sentimento tolo nas ideias de Anne a respeito de Gilbert. Quando pensava nos meninos, eles representavam para ela apenas possíveis bons colegas. Se ela e Gilbert fossem amigos, não importaria

quantos outros ele tivesse nem com quem andava. Ela tinha um talento para amizades. Amigas ela tinha em abundância, mas tinha uma vaga noção de que a amizade masculina também poderia ser uma coisa boa para completar as suas concepções de companhia e fornecer pontos de vista mais amplos em termos de julgamento e comparação. Não que Anne tivesse uma definição tão clara de seus sentimentos sobre o assunto. Mas achou que, se Gilbert tivesse voltado alguma vez para casa com ela no trem, atravessando os limpos campos e os caminhos de samambaias, poderiam ter tido muitas conversas alegres e interessantes sobre o novo mundo que estava se abrindo para eles, suas esperanças e ambições. Gilbert era um jovem inteligente, com as próprias ideias sobre as coisas e uma determinação em tirar o melhor proveito da vida e dedicar o melhor de si. Ruby Gillis disse a Jane Andrews que ela não entendia nem metade das coisas que Gilbert Blythe dizia. Ele falava exatamente como Anne Shirley depois de ter se adaptado e, de sua parte, não achava divertido se preocupar com livros e esse tipo de coisas se não precisasse. Frank Stockley era muito mais determinado, mas não era tão bonito quanto Gilbert, e ela realmente não conseguia decidir de quem gostava mais!

Na Queen’s, Anne atraiu gradativamente um pequeno círculo de amigos ao redor dela, estudantes pensativos, imaginativos e ambiciosos como ela. Ela logo se tornou íntima da garota “rosa avermelhada”, Stella Maynard, e da “garota dos sonhos”, Priscilla Grant, e via esta última como uma donzela de aparência pálida e espírito cheio de travessuras, brincadeiras e diversão, enquanto a vívida Stella, de olhos negros, tinha um coração cheio de sonhos e fantasias melancólicas, tão aéreas e parecidas com o arco-íris quanto as de Anne.

Após as férias de Natal, os alunos de Avonlea desistiram de ir para casa às sextas-feiras e começaram a trabalhar duro. A essa altura, todos na Queen’s haviam encontrado seus lugares fixos nas fileiras da sala de aula e as turmas haviam assumido características distintas e bem estabelecidas de individualidade. Certos fatos se tornaram em geral aceitos. Admitiu-se que os competidores em busca de medalhas haviam se reduzido praticamente a três: Gilbert Blythe, Anne Shirley e Lewis Wilson. A bolsa de estudos da Avery era mais duvidosa, pois qualquer um dentre seis candidatos poderia ganhá-la. A medalha de

bronze em matemática era considerada muito boa, levando em conta que fora conquistada por um menino gordo e engraçado do interior, com testa irregular e um casaco remendado.

Ruby Gillis foi a garota mais bonita do ano na Queen’s. Nas aulas do segundo ano, Stella Maynard ostentava o título da beleza, com uma pequena, mas crítica minoria a favor de Anne Shirley. Todos os juízes designados admitiram que Ethel Marr tinha o jeito mais elegante de arrumar os cabelos, e Jane Andrews — a Jane simples, exigente e consciente — recebeu as honras no curso de ciências domésticas. Até Josie Pye conquistou certo destaque como a jovem de língua mais afiada na Queen’s. Portanto, pode-se afirmar claramente que os antigos alunos da senhorita Stacy se mantiveram nesse grande círculo no meio acadêmico.

Anne trabalhou duro e com determinação. Sua rivalidade com Gilbert era tão intensa quanto jamais fora na escola de Avonlea, embora não fosse conhecida pela classe de maneira geral, mas de alguma forma a angústia havia desaparecido. Anne não queria mais vencer apenas para derrotar Gilbert. Em vez disso, era pela orgulhosa sensação de uma vitória bem conquistada sobre um inimigo digno. Valeria a pena ganhar, mas ela não achava mais que a vida seria insuportável se não conseguisse.

Apesar das lições, os alunos encontraram oportunidades para momentos agradáveis. Anne passava muitas horas livres em Beechwood e geralmente jantava aos domingos e ia à igreja com a senhorita Barry. Esta última estava, como ela admitiu, envelhecendo, mas seus olhos negros não estavam turvos e o vigor de sua língua não havia diminuído nem um pouco. Mas ela nunca usou de palavras contra Anne, que continuou sendo uma das meninas favoritas da velha e crítica senhora. — Essa menina Anne melhora o tempo todo — disse ela. — Eu me canso das outras garotas — há uma igualdade muito provocadora e permanente nelas. Mas Anne tem tantas nuances quanto um arco-íris e cada uma é sempre a mais bonita enquanto dura. Não sei se ela é tão divertida quanto quando era criança, mas me faz amá-la e eu gosto de pessoas que me fazem amá-las. Isso me poupa muitos problemas para conseguir amá-las.

Então, antes que alguém percebesse, a primavera chegou. Lá em

Avonlea, as flores da primavera espreitavam, rosadas, nas terras estéreis, onde as grinaldas de neve persistiam e a “névoa verde” ocupava a floresta e os vales. Porém, em Charlottetown, os alunos atormentados da Queen’s só pensavam e falavam nos exames. — Não parece que o ano esteja quase no fim — disse Anne. — Ora, no outono passado, parecia que faltava tanto tempo ainda — um inverno inteiro de estudos e aulas. E aqui estamos nós, com os exames chegando na próxima semana. Meninas, às vezes sinto que esses exames significam tudo, mas, quando olho para os grandes brotos que se sobressaem naqueles castanheiros e o ar azul e nebuloso no final das ruas, não parecem tão importantes.

Jane, Ruby e Josie, que apareceram por ali, não aceitavam essa visão. Para elas, os exames continuavam muito importantes — muito mais importantes do que os brotos de castanheiro ou as neblinas de maio. Tudo andava muito bem para Anne para ter seus momentos de menosprezar os exames, pois tinha pelo menos a certeza de que iria passar, mas quando todo o seu futuro depende deles — como as meninas realmente achavam —, não se pode interpretá-los filosoficamente. — Eu perdi sete quilos nas últimas duas semanas — suspirou Jane. — Não adianta dizer para não me preocupar. Eu vou me preocupar. Preocupar-se ajuda um pouco — parece que se está sendo produtiva quando se está preocupada. Seria terrível se eu não conseguisse minha licença depois de passar o inverno inteiro na Queen’s e gastar tanto dinheiro. — Eu não me importo — disse Josie Pye. — Se eu não passar este ano, voltarei no próximo. Meu pai pode se dar ao luxo de me mandar. Anne, Frank Stockley disse que o professor Tremaine falou que Gilbert Blythe certamente ganharia a medalha e que Emily Clay provavelmente ganharia a bolsa da Avery. — Isso pode me ajudar amanhã, Josie — riu Anne —, mas neste momento, sinceramente, acho que, desde que eu saiba que as violetas roxas estão brotando no vale abaixo de Green Gables e que as pequenas samambaias estão cutucando nossas cabeças na Alameda dos Enamorados, não faz muita diferença se eu conseguir a Avery ou não. Fiz o melhor que pude e comecei a entender o que significa a “alegria do

esforço”. Depois de tentar e vencer, a melhor coisa é tentar e perder. Meninas, não vamos falar sobre os exames! Olhem para aquele arco de céu verde-pálido sobre aquelas casas e imaginem como deve estar brilhando nos bosques de faia totalmente escuros no horizonte de Avonlea. — O que você vai usar na formatura, Jane? — perguntou Ruby de forma direta.

Jane e Josie responderam ao mesmo tempo, e a conversa se transformou em um falatório paralelo de moda. Mas Anne, com os cotovelos no peitoril da janela, a bochecha macia apoiada nas mãos entrelaçadas e os olhos cheios de visões, olhava desatenta por cima dos telhados da cidade e se projetava para aquela cúpula gloriosa do pôr do sol no céu e, tecia seus sonhos de um futuro possível com o tecido dourado do próprio otimismo da juventude. Todo o além era dela, com suas possibilidades ocultas nos próximos anos — a cada ano uma rosa da promessa a ser tecida em um rosário infinito.

This article is from: