9 minute read

Textos auxiliares

Anne de Green Gables

“(...) não se pode ficar triste por muito tempo em um mundo tão interessante (...)”

Advertisement

Anne Shirley, em Anne de Green Gables

Imagine um vilarejo criado em um romance de ficção e que se torna real. Esse lugar existe e se chama Avonlea, fica na província de Ilha do Príncipe Eduardo, no Canadá, e saiu das páginas encantadoras da história fascinante da menina Anne Shirley, contada por Lucy Maud Montgomery.

Lucy nasceu em Clifton (atualmente New London), nessa mesma Ilha do Príncipe Eduardo, em 30 de novembro de 1874. Apesar de ter vivido em um contexto de época não muito favorável a mulheres escritoras devido a uma forte e presente cultura machista nos meios sociais, Montgomery tornou-se a autora mais lida do Canadá.

Anne de Green Gables se tornou um grande best-seller (nome que se dá aos títulos literários mais vendidos no mundo) logo no momento de sua publicação, em 1908, e até hoje continua a ser um sucesso de vendas e de adeptos, a tal ponto que foi levado às telas do cinema e da TV, por diversas vezes, a mais recente dela em 2017, dando origem à afamada série Anne with an E, criada por Moira Walley-Beckett e transmitida originalmente pelo canal televisivo CBC, do Canadá.

Anne with an E tem sua história baseada na obra de Lucy Maud Montgomery, já venceu diversos prêmios pelo mundo e até hoje é uma das séries mais seguidas nos canais de streaming disponíveis. Mas por que uma história criada em 1908 faria ainda hoje tanto sucesso, se mais de cem anos já se passaram desde a sua primeira publicação? A resposta é simples, mas requer uma importante reflexão.

Primeiro precisamos entender que uma obra literária, quando adaptada de seu gênero textual para as telas das TV, inevitavelmente carregará consigo uma série de modificações. Não foi apenas uma vez que você se deparou com conversas entre amigos, geralmente decepcionados, relatando as diferenças notadas entre uma obra originalmente elaborada para o papel, estritamente literária, que, quando adaptada à TV ou ao cinema, se torna praticamente outra obra, no máximo com referências à primeira, o que costuma causar transtornos em quem busca nas telas somente uma realização imagética e palpável daquilo que leu.

Bem, isso acontece porque aquele que produz a obra cinematográfica tem a árdua tarefa de transformar os caminhos da arte. Ora, é fácil pensar que uma obra literária apresenta características bem distintas de uma obra teatral, cinematográfica, o que as justificam como tipos de artes diferentes. Inevitavelmente, nesse processo de adaptação, alguma coisa de original se perderá pelo caminho.

O que se questiona, porém, é: por que mudar o enredo no momento de adaptação? Qualquer pessoa que tenha assistido a

série Anne with an E e tenha se animado a ler o livro de Lucy Maud Montgomery, ou que faça o caminho contrário, ler o texto para então se enveredar para a TV, notará consideráveis diferenças até mesmo na própria história. Isso acontece devido à magia mais encantadora da literatura: o universo interior da pessoa que lê.

Aquela pessoa que produz uma adaptação para o cinema, com base em um texto literário, passou por uma leitura prévia (ou várias) da obra original. E devido ao universo interior de cada um (suas emoções, sentimentos, experiências próprias), cada leitura se torna única, o que faz com que a abordagem, o foco e o encaminhamento da produção posterior se torne única e discutível aos olhos de outros leitores.

Faça-se a seguinte pergunta: “Se fosse eu a escrever uma adaptação desse livro para a TV, como seria minha série? Em quem eu focaria minhas atenções, o protagonismo? Como seria o espaço? Quais ações mais me interessariam? Quais personagens eu suprimiria ou daria ênfase?”. Se você tomar nota de suas ideias e compará-las a um mesmo exercício de algum amigo, notará que também vocês produziriam adaptações distintas de uma mesma obra.

Perceba que, por meio das perguntas anteriores, desenharam-se características fundamentais que possibilitam entender a obra literária em estudo, Anne de Green Gables, como um típico romance, um tipo de texto que pertence ao gênero narrativo, cujo principal elemento que o compõe é um narrador, uma voz que conduz a história, e que no caso da história de Anne se coloca em terceira pessoa e é onisciente, ou seja, além de contar a história, ainda conhece os pensamentos e sentimentos de cada personagem. Já nesse momento se compõe uma importante distinção de gênero, já que, no cinema, seus olhos fazem o papel de entender aquilo que é papel do narrador na literatura, a descrição (a não ser, evidentemente, que seja uma obra adaptada a portadores de necessidades visuais, que então seguirão com a descrição auditiva).

Além do narrador, são parte importante de um romance as suas personagens. Primários e secundários, dependendo do nível de importância de cada um na história, são eles que dão vida à obra. Há aqueles textos narrativos que, a exemplo de Anne de Green Gables, são bastante descritivos, característica própria de Lucy Maud

Montgomery e da maioria dos autores de sua época, que nos dão as características próprias de cada personagem. O resto fica a serviço de nossa imaginação.

É fácil desenhar em nossa mente uma garotinha cujas tranças vermelhas de seus cabelos foram enfaticamente descritas pelo narrador ao longo da obra. É necessário, no entanto, pensar, por que essa ênfase tão frequente? E é nesse momento que se começa a compreender por que Anne de Green Gables se tornou uma obra tão fascinante a ponto de manter-se atual: há algumas questões de cunho individual e social que ultrapassam as gerações.

Espaço e tempo (contexto) são elementos que, descritos no plano da ação (enredo), completam os elementos próprios do gênero narrativo e que fazem de um romance um local em que nós mesmos, leitores, mergulhamos como sendo nosso e trazemos para nós as reflexões que nos cabem, que servem à nossa existência.

Estrutura da narrativa

• Apresentação

• Desenvolvimento

• Clímax

• Desfecho • Narrador

• Personagens • Tempo • Espaço • Enredo

Elementos da narrativa

O processo descritivo de Lucy Maud Montgomery expõe um dos caminhos de leitura mais importantes de sua obra Anne de Green Gables, que atravessa gerações trazendo até nós essa obra instigante e que possibilita aprender, repensar, desconstruir, mesmo tanto tempo afastado de sua primeira publicação.

A aceitação social e a ideia de pertencimento nos toca a todos. Como edificar, assim, um universo interior de amor-próprio, se suas características físicas, sociais ou comportamentais são postas em xeque o tempo todo pela intolerância daqueles que não aceitam o diferente, que não enxergam que todos somos, em essência, diferentes, únicos? Anne Shirley encontrou refúgio e possibilidade de evolução em sua capacidade de amar e de sonhar, e assim possibilita ao leitor uma viagem agradável através de seus olhos que sofrem e lacrimejam as dores, intolerâncias e mazelas do mundo, mas que se permitem imaginar e ressignificar as relações em busca de uma história reconstruída pelo amor, pelo afeto e pela empatia.

Se no século XXI em que vivemos ainda se faz importante esse tipo de reflexão, entra tantas outras propostas em Anne de Green Gables por Lucy Maud Montgomery, imagine-se então em 1908, quando a obra foi publicada. É fato que, quando em 1912 o vilarejo de Avonlea se tornou real no mapa do Canadá, Lucy já era discutida, refletida e considerada com bastante relevância, o que certamente não a impediu de ser questionada pelas camadas mais conservadoras da sociedade da época.

Em 1874, quando Lucy Maud Montgomery nasceu, o Canadá tinha conquistado sua ata de independência havia apenas sete anos, quando em 1º de julho de 1867, três províncias britânicas concordaram em formar a Confederação do Canadá. Vale lembrar que, desde a chegada das caravelas colombinas no final do século XV, o território canadense se tornou zona de intensos conflitos por dominação entre franceses, ingleses e povos indígenas, motivos pelos quais ainda se podem perceber em sua cultura muitos elementos originários de seus primeiros povoadores, apesar da marcante presença cultural europeia, como os próprios idiomas falados no país, oficialmente o inglês e o francês.

Lucy Montgomery

Anne de Green Gables foi o primeiro romance publicado por Lucy Montgomery, e carrega elementos autobiográficos em seu enredo, como o fato de Lucy ter perdido a mãe para a tuberculose quando ainda era muito criança, com apenas 2 anos, tendo assim passado uma infância bastante solitária na companhia da avó e sem muitos amigos, já que o pai a entregara para ser criada até os 16 anos pelos avós maternos. A imaginação, então, foi sua maior companheira durante seus anos de solidão, e foi ela também que a levou à produção de mais de 500 contos, 21 romances, poesias e artigos jornalísticos e ensaios. Sua obra já vendeu cerca de 50 milhões de cópias ao redor do mundo, e essa mesma imaginação foi assim emprestada àquela que é considerada a personagem mais simpática e envolvente desde Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, Anne Shirley, de Green Gables, definitivamente uma garotinha sonhadora cujo mundo imaginário também lhe é libertador.

Fato é que não somente Anne de Green Gables e também a maioria de suas publicações, que incluem desdobramentos da história de Anne, estão sempre carregadas de temáticas que abordam traumas infantis e abandonos familiares. Lucy até mesmo conviveu por muitos anos com uma profunda depressão, mesmo depois de

casada e mãe de dois filhos, doença que a acompanhou até sua morte em 1942.

Eu perdi minha mente por causa dos feitiços e não ouso pensar no que posso fazer com esses feitiços. Que Deus me perdoe e espero que todos me perdoem, mesmo que não possam entender. Minha posição é horrível demais para suportar e ninguém percebe. Que fim para uma vida em que sempre tentei dar o meu melhor, apesar de muitos erros.

Nota final de Lucy Maud Montgomery

No início do século XX, quando a obra é publicada, assim como no mundo todo, o Canadá vivia uma imersão total em um mundo moderno de após revoluções industriais que modificariam completamente a maneira de ser e viver no mundo. Tecnologias e processos industriais, ainda que obsoletos ou rudimentares aos nossos olhos hoje em dia, forçavam a sociedade a uma nova configuração.

Novas concepções e novos formatos eram exigidos por comunidades inteiras, que entravam em choque de interesses com pessoas mais conservadoras que se recusavam a entender a dinâmica do mundo. Anne de Green Gables faz jus a esses questionamentos em seu enredo, muito embora o contexto da narrativa transcorra na década de 1890, contexto não tão distinto do momento em que a obra é publicada.

E é dessa maneira que finalizamos esta apresentação, resgatando a pergunta feita no início deste texto, que questionava por que uma história criada em 1908 faria ainda hoje tanto sucesso, se mais de cem anos já se passaram desde a sua primeira publicação? Dissemos que a resposta era simples, mas requeria uma importante reflexão. A reflexão foi acima apresentada, e a simples resposta: És suficientemente humano, caro leitor, para encontrá-la nas páginas de Anne de Green Gables?

Um mal-entendido leva a pequena órfã Anne para a fazenda Green Gables. Falante, vivaz e dona de uma mente cheia de imaginação, essa garotinha de apenas 11 anos mudará o rumo da vida dos irmãos Cuthbert e de todos do povoado de Avonlea. Anne não só irá mostrar a todos que a vida pode ser mais bela se assim a imaginarmos, como também nos guiará por caminhos em que os pilares essenciais para uma boa convivência são erguidos por pequenas atitudes, com aprendizagem e trocas diárias com aqueles que estão ao nosso redor. Respeito, compaixão, honestidade, amor e amizade são alguns dos ensinamentos que a jovem Anne nos passa através de suas enrascadas, aventuras e histórias. Escrita no início dos anos 1900, esta obra continua sendo um ícone da literatura infantojuvenil, que agrada não só aos pequenos, mas a todos.

This article is from: