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A culpa de Eva

Entendia Eva desde sempre.

Brígida Porto

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A amargura que imprime sua personalidade, poucos sorrisos. Não lembro de ter visto senão satisfação pouca em seus olhos. Sempre uma verdadeira lealdade com a decepção.

Vejo-me então a imitá-la, ao conhecê-la, lembro de procurar, de garimpar lágrimas, dores, rancores e tragédias, na tentativa constante de afastar afeição eterna. Queria Eva a julgar meu egoísmo, meu egocentrismo redundante e reflexivo, queria que Eva sentisse outra dor que não a sua, queria que Eva sentisse e sofresse com a minha dor!

Poderia ter o coração repleto de coragem ao envolver uma nuance de romantismo naquele embarque, dias passados em total sintonia entre sentimentos e espaço físico restrito. Como poderia Eva ser totalmente envolvida na melancolia daquele navio, bem ao fundo em seu casco sombrio, com ecoar de canções e risos!

Eva sonhadora! Eva encantadora! Eva corajosa!

Eva jaz, pulsante em seu ventre o resquício de vida, impossibilitada de nascer, de respirar. Julgada e condenada por mãos hábeis e corações petrificados, será a vitória do fim ante a dor?

Queria eu ter Eva e suas mãos estranhas, estrangeiras em meu rosto, ela então, acompanhando minhas tentativas de libertação! Eva o faz hoje! Eva ensinava por metáforas, sua sabedoria me acompanha e me acalenta.

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 15

Seus olhos verdes, distantes, descritos e insinuados como de gato. Eva não reflete seu olhar, para não encontrar de forma alguma, alegria.

Eva não quer valsar. Julga ser merecedora somente de dores, somente assim pode alcançar o sonho de retornar ao aconchego e então receber a pura manifestação de afeto.

Palavras incompreensíveis, mas nenhum esforço faria para buscar a comunicação pura, (tanto mais aquela sentimental), que busca, apela, pede, roga e almeja por compreensão. Eva não queria esquecer um momento sequer de arrepender-se, viver e conviver com este pensamento e morrer na certeza de que não cumpriu tudo o que merecia.

É preciso mutilação, não somente a autoimposta, mas deixar-se submeter ao canibalismo ainda consciente. O mais cruel flagelo do mea-culpa, o eternizar da dor.

Como prosseguir com as mazelas desta vida, se fora condenada à revelia, e ainda o é, ao aceitar carregar o fardo, solitária? Eva quer então sentir-se mártir ou altiva ao exteriorizar seus direitos ora garantidos nas leis, mas despercebidos nas saletas marmorizadas, refletidas nos espelhos de cristais adornados?

Eva fora criada sob o julgo do paternalismo e aceitara as imposições por acreditar no destino, tendo somente a coragem que determina a vigília das mães amanhecidas nos berços berrantes de amor eterno. Ao embarcar o navio, aquele que faria sua última viagem, e que naufragaria com os sonhos e flagelos de Eva solitária (ou acompanhada e só), em sua própria e libertária transcendência.

Eva não se desnuda, nem de alma nem de carne, ela fora crer que seu amado a libertaria de toda dor, um príncipe encantado. Ele teceria uma passarela ou talvez um manto (melhor seriam se mágicos), para guardá-la, proteção total e irrestrita, e então poderia deleitar-se das habilidades deste artesão.

Um teto todo nosso: narrativas curtas

Buscaria Eva somente esse fim, uma terna e quase perfeita visão da imperfeição: Eva morta com seu filho aprisionado no ventre para eternizar o quadro, Eva jaz mãe eterna!

Para esta vida, Eva fora condenada à expulsão do paraíso, seu julgamento fora eterno: a dor a acompanhá-la e sua culpa a condená-la.

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