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A vaidade é um ponto de vista

Adna Rahmeier

Dora está de folga. Ontem foi dia de festa na biblioteca, aniversário de 58 anos, no final da tarde todos comeram nega maluca com um café bem passado. Hoje é feriado. O silêncio da casa tomando conta de suas ideias, resolveu se dar de presente um “dia de princesa” como diziam no salão em que trabalhava.

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Começou lavando os cabelos de fios grossos e pretos. Cabelo pesado que pendia liso de sua cabeça. Fez uma mistura com creme de hidratação, babosa de seu jardim e um pouco mais de óleo para pontas ressecadas. Aplicou o creme em cada mecha com atenção e agilidade. Quando terminou, se deu conta que a automaticidade não era produto cosmético para tal ritual. Pra compensar deixou o creme escorrendo 3 horas nas entrelinhas da sacolinha de mercado improvisada como touca.

Depois, deu atenção a suas mãos. Mas, primeiro, decidiu ajeitar as unhas dos pés. Lixou, empurrou a cutícula, pintou. Demorou 1 hora se equilibrando entre a dor nas costas arqueadas para alcançar os dedos e o desconforto para padecer no paraíso com pés sublimes.

Quase desistindo, decidiu fazer as mãos também. Parte do corpo central de sua narrativa. Foi fazendo unhas e ajeitando mãos que a levaram a jornada de conquistar sua casa própria. Achou estranho o movimento das juntas se esticando pra contornar a cutícula da outra mão. Percebeu seu tom de pele. Dora não era nem branca, nem negra. Era morena.

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 21

Assoprando as unhas se flagrou encarando no espelho um rosto que era tão indiferente ao tempo quanto sua própria personalidade. Uma pessoa de terra, seu signo era Capricórnio, se identificava com as raízes das árvores e os campos de trigo que circundavam a cidade onde morava desde o dia do seu nascimento. Quando sentiu as unhas prontas e secas, abriu o chuveiro regulando a temperatura da água na manivela. Abre um pouco, muito quente. Abre muito, muito frio. Queria meio termo. Ela poderia se acostumar com isso de poder ter tempo pra perceber a temperatura da água que a cuida. Deixou morna. Memorizada na paciência tirou o creme dos cabelos. Secou com carinho o couro cabeludo. Pegou a pinça e tirou o excesso de sobrancelha.Então é assim que as madames se sentem após um “dia de princesa”. Na primeira meia hora até que se deslumbrou, nem percebeu, estava cuidando de suas plantas, sujando a pele de barro e acendendo seu cigarro.Um dia de folga, Dora não poderia se acostumar com isso. Puta tempo perdido. Gostava de ser passarinho, que reconstrói todos os dias seu ninho. Apostando na rotina a parte mais valiosa de sua vida. Se refazendo na vitória.

Um teto todo nosso: narrativas curtas

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