5 minute read

Barriguda

Marlene Farjalla

Eu e Carmem somos amigas desde que nos conhecemos numa viagem em grupo pela Espanha. Em Lauro de Freitas, a proximidade de nossas casas, os mesmos interesses, foi estreitando nossos laços de amizade, e a confiança foi, naturalmente, acontecendo. Fazíamos muitas coisas juntas. Conversávamos sobre tudo. Mas, quando o assunto era sobre sua infância, ela ficava cheia de reservas. Sua história era muito intrigante. Curiosa, eu queria os mínimos detalhes.

Advertisement

– Não vou te entregar tudo de vez – ela me disse, e eu concordei. Numa oportunidade, num fim de semana, quando me convidou para acompanhá-la numa visita a Cruz das Almas, queria visitar sua família e amigos, eu aceitei. No lombo da Ignoro, apelido da velha caminhoneta da Carmem, ela ao volante e eu na garupa, partimos de Salvador para o nosso destino. Quando saímos da cidade, logo que entramos na BR 324, peguei meu pequeno gravador portátil e pedi a ela para baixar a volume da música sertaneja que tocava no rádio.

– Vamos começar a gravar sua história? – perguntei, o dedo sobre a tecla “REC” do gravador.

– Tá certo, Clara. Você não desiste mesmo! – O que você quer saber?

– Conte-me sobre sua infância. Você havia me dito que viveu até os dezesseis anos numa fazenda.

– Foi, sim. Pode ligar o gravador.

Eu e o gravador ouvíamos sua história, quando, no meio da estrada, Carmem me diz:

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 23

– Pode desligar o gravador. Não vou te contar mais nada!

Antes de Cruz das Almas, percebi que a Ignoro havia tomado uma estrada de terra batida, a poeira a invadir nossos cabelos, e o cheiro de estrume a inundar nossas narinas. Os pneus procurando as madeiras, Ignoro atravessa um mata-burros; logo após, uma porteira lhe dá passagem. À nossa frente, encimada, uma senhora casa nos recebe. Toda vestida de branco, as janelas de azul pintadas; uma saia, a rodeá-la, toda a bainha bordada de vasos e de redes; a porta de entrada, um sorriso escancarado:

– Boas tardes, minha menina! – Há quanto tempo que não te vejo!

Seja bem-vinda!

Carmem, à minha frente, a passos apressados, a rodear a saia da casa:

– Pra onde estamos indo, Carmem? Não vamos entrar na casa?

– Tenha paciência. Antes, quero te mostrar uma coisa!

Cem metros depois, ao fundo da casa, árvores frutíferas e outras de troncos bem largos, foram se apresentando. Até que, de repente, Carmem estanca:

– Quero te apresentar a essa aqui. Ela é a minha árvore Barriguda. Fiquei muito encantada. Em seguida, estupefata, quando Carmem retira um tampo em sua barriga. De dentro do útero, uma caixinha de madeira pare em suas mãos:

– Toma, o filho é teu! Vou deixar uns dias com você. Depois me devolva.

Com a caixinha em meus braços, me emociono. E choro. Dentro dela, enlaçados de fita, vários caderninhos a lhes dar os braços. Logo os reconheci. Eram os caderninhos, com as letras do nome “material de ensino”, saltando aos olhos no amarelado branco da capa. Não se lembra se o MEC os disponibilizava, a custo bem baixo, para as escolas estaduais ou diretamente para as crianças.

Um teto todo nosso: narrativas curtas

– Nossa, você ainda tem esses caderninhos? – Disse a ela, com os olhinhos saltitantes; os dedinhos na fita a desatá-la, feito uma criança.

– Não, não! Não olhe agora. Leve a caixinha com você.

Após o retorno da viagem, as letrinhas garranchadas, passei alguns dias a devorar seus conteúdos. No domingo seguinte, na praça perto de minha morada, recostada numa gorda figueira, abri meu caderno de escrita e comecei a escrever a história de Carmem. Escrevi do meu jeito:

Carmem, minha melhor amiga, morou quase toda a sua infância numa fazenda, de nome Sapucaia, no Município de Sapeaçu, no Recôncavo Baiano. Tinha oito anos de idade quando começou a escrever em seus improvisados diários. E era nos arredores da casa da fazenda, entre pés de laranja, limão, tangerina, que ela se refugiava à sombra de uma árvore, para esvaziar as angústias que a atormentavam.

Havia outras árvores com sombras familiares ao seu redor. Mas, sombras maternas, ela só encontrava na árvore Barriguda. E, era recostada em sua enorme barriga, ouvindo seus batimentos, que ela escrevia sobre sua infância. Sobre como vivia no ambiente rural, cercada dos animais da fazenda. Ficava observando-os a lamberem suas crias. E, intrigada, se perguntava:

– Por que minha mãe não me lambia?

Sentia que tinha alguma coisa errada com o jeito frio com que a mãe, Dona Lucrécia, a criava, diferente do modo caloroso que cercava seu irmão Carlito, um ano mais velho que ela. A mãe nunca batia nele. Só batia nela. Batia sempre em suas pernas. A vestia com calças compridas para que seu pai e a professora da sua escola, que adoravam crianças, não vissem as roxeadas marcas debaixo delas. Também, ameaçava trancafiá-la no seu quarto, caso contasse para eles.

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 25

– Fiquei muito feia, barriguda! – era o que a mãe sempre respondia quando Carmem perguntava por que não havia retrato de quando estava à sua espera. Sabia que seu irmão era um sobrinho, filho de uma solteira e falecida irmã da mãe, que ela pegara para criar. Passaram-se os tempos. A mãe falecera.

Depois do enterro, sentada na cama da mãe, muito chorosa, uma chave se oferece debaixo de um dos travesseiros. Pelo formato deduziu ser do antigo dunquerque logo à sua frente. Dentro dele, um caderno lhe abre os braços.

– Deve ser de receitas. – Carmem, imagina.

Um bolo a lhe fechar a garganta, um calor a lhe queimar o rosto, Carmem, entalada, avança na leitura:

“… foi o maior desgosto da minha vida, quando Brito chegou com a criança no colo, sem me falar nada, e anunciou que ela ia passar uns tempos em nossa casa. Eu logo a reconheci, os olhinhos de jabuticaba, os fartos cabelos até a cintura, ela era um dos onze filhos de nosso amigo Joel Leôncio. Quando lhe perguntei o que estava acontecendo, ele me disse que o amigo havia lhe tomado muito dinheiro emprestado, que lhe desse mais prazo”.

O coração acelerado, Carmem continua lendo:

“Eu lhe perguntei se a menina era para pagar a dívida ele me respondeu: Pode ser que sim, pode ser que não. Se ele não me pagar eu não devolvo a menina! Quando eu disse a ele que não queria a menina, que fosse devolvê-la, ele berrou: Você é uma mulher seca. Não foi capaz de me dar filhos, então, assunto encerrado. Vamos ficar com ela”.

Carmem, sem acreditar no que estava lendo, se pergunta:

Um teto todo nosso: narrativas curtas

– Será que mais alguém sabia dessa história? Será que Jeruza e seus nove irmãos sabiam?

Resolveu ir para a casa de Jeruza. Era perto, foi andando.

– O que houve, minha filha? – Por que está chorando? – a mãe de sangue, Dona Rosalinda, à porta de sua casa.

– Mainha…

Não disseram mais nada. Apenas, mãe e filha se abraçaram. Desde os cinco anos de idade, as duas famílias amigas e vizinhas, que Carmem via sua mãe de sangue sempre “Barriguda”. Sua árvore já havia parido dez filhos. Onze com ela. Carmem tinha dois anos de idade quando, recém parida, o parto complicado, ela concordou com seu marido Joel deixar que Carmem passasse uns dias na casa da fazenda do Coronel Britivaldo. A mãe, que não sabia da dívida, concordou, desde que a devolvesse, logo que se levantasse da cama. A avó paterna, Dona Leonor, que acompanhava a nora no seu resguardo, mancomunada com o filho devedor:

– Leva essa aqui. A mãe dela tem muitos filhos. Um não vai lhe fazer falta.

– E a dívida fica paga!

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 27

This article is from: