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Belo Horizonte

Vívian Marchezini Cunha

Sávio havia se mudado para o centro de Curitiba no início daquele ano. Fazia planos sobre como aproveitaria o tempo economizado no deslocamento. Antes eram duas horas de ônibus, diariamente, no trajeto de casa para o trabalho e de volta para casa, na periferia. Assistiria aos filmes de que gostava; cozinharia com calma se engajando enfim naquele projeto antigo de cuidar da própria saúde; retomaria a leitura, que no ônibus lhe causava enjoo. Poderia se encontrar com amigos e, quem sabe, se abrir novamente para um relacionamento. Seria bom compartilhar a vida com outra pessoa.

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O apartamento era pequeno. Não, pequeno era o anterior, com dois quartos, suíte e uma varandinha. Esse era minúsculo. Uma quitinete no décimo segundo andar, apenas meia-parede separando a cozinha e o quarto-sala. Um tanque meia-boca e um espaço para a velha máquina de lavar. Tudo teria que ser compacto, por isso tinha vendido seus móveis antigos, o que nem era ruim, já que traziam lembranças demais do ex-casamento. Sávio agora tinha uma cama, a máquina, um fogão simples, uma fritadeira que também fazia as vezes de forno, uma geladeira de 280 litros, uma arara para pendurar os casacos que a cidade fria impunha. Era pouco, mas sentia que enfim seria feliz ali.

Mês de março. Sávio começava a se habituar à nova vida quando tudo foi fechado. O trabalho agora seria remoto. Os cinemas e teatros fechados. Os bares, também. As pessoas confinadas. Nada era seguro, as informações eram desencontradas. As notícias do exterior,

Um teto todo nosso: narrativas curtas mostradas repetidamente nos canais de jornalismo, alimentavam um medo que nem sabia que sentia antes. Logo ele, que tantas vezes cogitou morrer, agora tremia diante da possibilidade de engrossar as estatísticas do vírus.

Sávio foi, aos poucos, criando uma rotina em seus dias iguais, fechado em sua caixinha de 20m2. Acordar. Tomar uma ducha para espantar do corpo o resto de sono. Ligar a tv, sintonizar no canal de notícias. Preparar o café premium na cafeteira italiana, e encher dele a caneca que trouxe da visita ao irmão no Canadá, anos antes. Partir o pão que ele mesmo fizera na véspera, essa nova habilidade que o tédio oportunizou. Passar uma camada generosa de manteiga e ter assim algum prazer. Acessar as redes sociais e ler notícias e comentários sobre o caos mundial, e quem sabe alguma repercussão sobre o reality show, um bem-vindo universo paralelo.

Depois do café da manhã, ligar o computador e passar o resto do dia emendando reuniões que poderiam ser e-mails – longas e desnecessárias – mas que eram também um jeito de interagir com seres humanos, e não letras ou números. Almoço de fast food entregue por aplicativo e colocado no elevador pelo porteiro, sem contato, muitas vezes comido rapidamente em frente à tela para não perder o prazo combinado com o cliente.

Às cinco da tarde dar uma chegada na janela para pegar o único momento em que o sol batia na quitinete e vê-lo se pondo atrás da igreja de torres que buscam alcançar os céus. Era uma vista bonita, o virologista da internet disse que vitamina D é bom para aumentar a imunidade, e seu psicoterapeuta acrescentou que é bom para a produção de neurotransmissores envolvidos no bem-estar. A altura lhe dava um pouco de vertigem, mas se manter afastado do vírus e da depressão valia o preço. Às dezenove horas, desligar o computador e abrir a primeira lata de cerveja para enfim relaxar. Toda noite o plano era preparar um jantar em seguida, mas Sávio era sempre tragado pelo ciclo se preocupar – abrir mais uma cerveja, e comer ficava para o dia seguinte.

Dia que demorava para chegar. Todos os pensamentos que Sávio conseguia evitar ao longo do dia, com trabalho e depois cerveja, encontravam vazão no silêncio das madrugadas. Traziam consigo os medos antigos, dores das quais ele tentava se esconder com seu jeito bonachão e conhecedor dos assuntos mais atuais em música, cinema, tecnologia, política e culinária. Sávio perdeu a conta de quantas noites passou em claro, ora alimentando seus fantasmas, ora tentando desesperadamente afugentá-los daquela pequena quitinete.

E se eu pegar essa doença? Devo fazer parte do grupo de risco, não vou ao médico há anos, nem sei como estão minha glicose, pressão arterial, triglicérides. Se eu morrer, quanto tempo será que demora até alguém descobrir? Talvez ninguém nem se dê conta de que eu morri. Não, talvez o entregador da distribuidora de bebidas perceba pela falta de pedidos. Eu nem tive um filho. Talvez isso seja sinal de sorte. Não vou deixar ninguém órfão. Não devia ter terminado meu casamento. Teria alguém pra compartilhar esse caos hoje em dia. Devia ter sido mais tolerante, ter tentado um pouco mais. Que estúpido. Se estivesse casado ainda, isso tudo estaria mais insuportável. Além de pandemia, discussões e aquele abismo entre a gente. Melhor sozinho. Queria viajar, tudo parece tão perigoso, não há segurança em lugar nenhum. Quanto vai demorar pra eu poder ver meu irmão outra vez? Acho que nunca mais vou amar ninguém. Talvez o mundo acabe antes disso. Certamente ninguém mais vai me amar. Eu, que não consigo manter nada, nenhuma relação. Não consegui manter meu pai em casa. Não consegui fazer minha mãe feliz. Como alguém me amaria? Não há nada de interessante em mim. Sou uma completa falha, um erro no sistema, um design que deu errado. Sou uma farsa, ele pensava insistentemente.

Um teto todo nosso: narrativas curtas

De vez em quando ligava o som e enchia seu pequeno espaço de música. O som distorcido do Radiohead nas noites mais melancólicas, a psicodelia dos Beatles quando tinha saudade dos amigos, a guitarra de Dick Dale quando se dispunha a sentir alguma paz. A surf music do guitarrista, “o maior de todos”, como costumava dizer, sempre o transportava para sua adolescência numa pequena cidade litorânea em Santa Catarina, quando passava horas diante do mar, assistindo à dança dos surfistas nas ondas. Nunca aprendeu a surfar – temia a força do oceano – mas toda aquela imensidão o fazia sentir-se enfim parte de algo muito grandioso. Ele, que sempre fora uma criança e um adolescente deslocado, se perguntando o que afinal veio fazer neste mundo, ali, diante do mar e ouvindo Dick Dale no walkman, sabia que a vida era maior e que ele fazia parte dela. Uma música do guitarrista lhe gerava sobremaneira esse senso de conexão: se chamava Belo Horizonte, que era uma cidade sem mar, e da qual Sávio conhecia muito pouco. Essa sensação era um mistério para Sávio, que ele apenas deixava existir sem buscar solucionar.

Há alguns meses Sávio encomendara num site gringo uma coletânea de vinis de Dick Dale e um toca-discos. Era coisa grande, não sabia onde colocaria aquilo ali no seu cubículo. Mas quando pensava na experiência de ouvir as músicas que amava na qualidade que só o vinil proporcionaria, sentia seu peito se expandir. Um lugar no mundo de novo, mesmo que por alguns minutos. Mas no exterior estava tudo travado, nada saía dos correios de lá por conta da pandemia.

Tudo que tinha era o que já existia mesmo: seus poucos móveis, seus gadgets, seu trabalho, a torrente de pensamentos na madrugada, a cerveja. Tinha também seu medo, cada vez maior, e sua esperança de dias melhores, minguada a cada notícia de mais mil mortos no dia.

Ao longo dos dias e noites confinado, Sávio olhava para a janela da quitinete e sentia seu coração se acelerar, as pernas bambearem, a boca ficar seca. Não era um apaixonamento, embora parecesse. Mas

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 31 era, definitivamente, uma atração. O medo, que sempre o mantivera distante de lugares altos, agora era muito pequeno frente à possibilidade de sair do inferno que era estar preso consigo mesmo dentro daquelas quatro paredes. Arriscado lá fora, insuportável ali dentroespecialmente dentro de sua cabeça.

Naquele dia os jornais noticiaram duzentas mil mortes. Era mais do que o total da população da vila praiana em que havia nascido. Imaginava toda a sua cidade dizimada e o chefe do executivo com suas falas debochadas, desdenhando a dor de quem estava enlutado, gozando com o sucesso do seu plano de morte. Sávio sentia nojo e se via impotente. Assim como se via impotente diante de sua solidão, diante de suas lembranças, diante do futuro miserável que enxergava quando pensava nas escolhas que havia feito até então. Previa mais uma noite de pesadelo, sem pregar os olhos por um minuto sequer. Não suportaria mais aquilo.

Era cinco da tarde. O dia estava chuvoso, cinza. Sentia sua desesperança movendo suas pernas em direção à janela. Não havia sol. Mas haveria alívio. Quem sabe aquele sonho que se repetiu tantas vezes ao longo de sua vida poderia enfim se realizar. O vento levando sua angústia embora, as gotas de chuva apostando corrida com o corpo em queda livre e o chão, esperado chão, quebrando sua dor e seus ossos em pedaços, explodindo seus órgãos internos e todos os seus fracassos.

Sávio abriu a janela, decidido. Enxugou os olhos, respirou fundo. Um passo à frente - seria o último. Parou ao ouvir o toque do interfone. “Saco”, falou baixinho, como se fosse ser ouvido por alguém. “Boa tarde, seu Sávio. Tem uma encomenda aqui pro senhor que precisa ser assinada. O senhor pode descer? Não entendo nada que tá escrito aqui na nota”, disse o zelador ao interfone.

Entre contrariado e intrigado, Sávio colocou sua máscara PFF2, higienizou suas mãos com álcool em gel e chamou o elevador, tor-

Um teto todo nosso: narrativas curtas cendo para não encontrar nenhum vizinho no corredor. Torcida dispensável, pois nesses meses todos poderia contar nos dedos de uma mão os encontros em corredor ou elevador. Desceu. Ao ver a caixa da encomenda não conseguiu conter as lágrimas. Era seu toca-discos e a coletânea de vinis de Dick Dale. Sua fonte de paz na adolescência, seu refúgio da angústia, sua certeza de que fazia parte de algo maior. Sávio sentiu acender dentro de si a esperança que havia perdido há meses. Abraçou a caixa como se abraça um velho amigo, e, sorrindo entre lágrimas, passou o resto da noite na quitinete ouvindo música e cogitando um futuro melhor. Quem sabe, na Belo Horizonte que inspirara Dick Dale naquela música especial.

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