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Boa tarde, querida!

Mariana Porto

A senhora que mora na frente da minha casa varre a varanda diariamente, e no mesmo horário. Parece uma atividade sagrada para ela. Mesmo que o vento traga a poeira para o mesmo lugar ou que as folhas de outono continuem caindo, minha vizinha continua varrendo. O barulho da vassoura raspando o piso me lembra o de uma lixa, e me desconcentra completamente, porque mesmo sua casa sendo do outro lado da rua, o som reverbera até o meu quarto no exato momento em que minha aula da faculdade inicia no computador. Soube que perdeu seu marido há mais de um ano, nessa mesma residência. Ele já estava na casa dos 80 e ela tinha 73. Viviam juntos desde os 14 anos dela. Foi o que ouvi de uma vizinha no dia em que ele faleceu. Não consigo nem imaginar como deve ser doloroso estar sozinha depois de uma vida inteira compartilhada com alguém.

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As muitas informações que não possuo sobre ela começam a rodar na minha mente e, em um ato súbito, desligo o aparelho, calço meus sapatos e pego o bolo de laranja que havia preparado para o café da tarde. Quero entender os sentimentos dessa mulher solitária. Quero saber quais outros hábitos ela tem. Quero acompanhá-la em um chá. Atravesso a rua com a travessa em mãos e a encontro ainda segurando a vassoura, sorrindo em minha direção como se esperasse minha visita. Logo, aperta o botão do controle e o portão se abre me convidando para entrar.

– Boa tarde, querida! Quer um chá? – diz.

Um teto todo nosso: narrativas curtas

E como se soubesse o que meus pensamentos anseiam, adentra a porta principal e eu a sigo, com um sentimento de conforto preenchendo meu peito. Nunca havia trocado uma palavra com essa mulher, mas minha alma já a conhecia. – Há tanto tempo que não recebo visitas, querida. Fico feliz que tenha finalmente vindo.

– Finalmente? A senhora me aguardava? – pergunto assustada.

– Estou sempre aguardando algo, querida. Nada mais me surpreende.

E fez–se então o silêncio.

Sento-me à mesa de madeira rústica que fica na cozinha, detectando cada detalhe. Suas mãos, murchas pelo tempo, seguram a chaleira sob a água corrente da torneira. Os cabelos grisalhos, presos de forma frouxa por uma presilha de plástico verde-água. Veste um vestido florido e sandálias confortáveis. Se parece com a minha avó.

– Meus pais sempre moraram nessa mesma casa e eu a observava pela minha janela. – confesso, mesmo parecendo que ela já sabia dessa informação.

– E eu sempre lhe observei de volta, querida. Vi você crescendo e se transformando na moça que é hoje. Mas de longe, sempre de longe.

– Nos conhecemos há tanto tempo e ainda não sei seu nome. –digo pegando a xícara de chá quente que me entrega.

– Minha identidade poucos sabem, querida. Fui esquecida pelo tempo. Meu nome se perdeu quando a voz de quem eu amava se calou.

Ela parece melancólica olhando na direção de algo que não está ali, uma memória.

– Seu marido? – pergunto, tentando confirmar minha própria teoria.

Percebo seu rosto enrijecendo e ela se levanta abruptamente.

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 35

– Aquele homem nunca foi meu amor, querida. Na verdade, você me lembra muito de quem doei meu coração. Ela tinha os cabelos longos e cacheados como os seus. Posso tocá-los?

Concordo e ela se aproxima separando os fios em mechas com seus dedos frágeis. Noto uma lágrima escapar de seus olhos perdidos.

– Por que a senhora varre a varanda todos os dias no mesmo horário? – questiono tentando conseguir alguma informação concreta.

– Na rotina eu não me perco, querida. Não posso deixar o tempo esvair mais partes de mim. Estou tentando sobreviver enquanto ainda consigo.

Afastando–se de mim, encontra em uma gaveta da sala de estar algo que, pela sua expressão, é valioso demais. Vejo em seus dedos uma fotografia muito antiga.

– Esta sou eu. – esclarece me entregando sua relíquia. Na foto em preto e branco, vejo uma jovem sentada embaixo de uma árvore robusta, provavelmente em um parque, descalça. A grama e os raios de sol tocando sua pele clara. Seu sorriso era evidente, pois estava fazendo algo que lhe agradava. Estava escrevendo.

Viro a fotografia e encontro escritos à mão os seguintes dizeres:

“Clara, você é muito mais bonita quando escreve.

08/06/1975”

Eu escrevi todo o nosso romance, querida. Meu e de Joana. Durou quase cinquenta anos toda a nossa história, mas ela já se foi e nunca lerá a dedicatória que fiz para ela. Sabe, hoje eu tenho quase 75 anos, mas posso dizer com tranquilidade que só vivi de verdade os anos em que tive Joana ao meu lado.

– E onde a senhora guarda essa história?

– No peito, querida.

– E a tal dedicatória?

– Foi impressa pela minha voz no dia em que o homem com quem me casei morreu. Contei a ele sobre meu amor secreto e que queria

Um teto todo nosso: narrativas curtas deixá-lo para viver ao lado dela. Já era tarde, querida, mas foi necessário para diminuir essa angústia causada pelo anseio do não vivido. Espero que me entenda.

– E a senhora nunca quis publicar essa história? É melancolicamente bonita. É poética. – meus olhos marejados a observam com fome de mais informações.

– Eu não. Mas você irá. – Clara pega uma caixa no alto de uma prateleira no corredor. – Aqui estão as cartas, as fotos e os cadernos onde eu costumava escrever. Transforme isso tudo no que você preferir, querida. Apenas afaste de mim as lembranças tão doídas.

– Por que eu? – indago perplexa.

– Porque você me lembra Joana, querida. Ao entregar-te a nossa história, sinto que estou finalmente dando o meu coração por completo ao meu verdadeiro amor.

E foi nesse momento que entendi o propósito da minha vida. Prometi a ela criar um universo em que o amor das duas fosse possível.

Na semana seguinte, não pude mais ouvir o som da vassoura no piso. A casa estava à venda.

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 37

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