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Colonizando mentes

Pamela Mascarenhas

Minha mãe falava “responda isso” e “diga aquilo” a qualquer contato adulto para a criança que era eu. Não lembro de esperar minha própria expressão. Um dia não respondi mais, nem o “obrigada” nem o “tchau, até mais” do roteiro ensinado por ela.

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Aí, na altura dos meus 40, vem um homem me “guiar”. Era um sábado, 15 de dezembro de 18, Copacabana, eu caminhava em direção ao Leme e avistei. Ele também me viu, acenou. Fui para a outra calçada, e ele foi junto, como se fosse um convite. Ficamos frente a frente. Abriu um sorriso, revirei os olhos. Perguntou como eu estava, não deu tempo para resposta. Insistiu que eu precisava saber tal coisa, passar por não sei onde. Disse que eu era, na visão dele, apesar da minha idade, muito inocente. A boa notícia: eu tinha potencial. Eu teria que começar lendo cinco livros espiritualistas e, como um auxílio na jornada que ele estava me indicando, eu poderia passar por uma terapia holística oferecida por ele, e deveria ir sozinha. Eu estava em uma onda mais espiritualizada, e ele sabia. Também estava há anos passando por terapias holísticas, e ele sabia. Convivemos em um ambiente de trabalho até um pouco antes daquele encontro. Falo demais, e ele tudo ouvia.

Quando eu ia falar “valeu, falou” e me retirar, tive meu primeiro insight metafísico, arregalei os olhos e declarei:

— Você está salvando minha vida. Eu estava sem perspectiva. Tenho uma dívida, pela sua generosidade de me indicar um caminho.

— É natural, tem muito ainda a aprender. Eu sou um iniciado em muitos saberes que apenas pessoas muito avançadas na busca espiri-

Um teto todo nosso: narrativas curtas tual têm acesso. Eu sei bem o que digo e tenho autorização para dizer o que digo. Consigo ver claramente onde você pode chegar.

Anotei um endereço em um pedaço de lenço com o ranço do meu nariz, com a caneta que também estava na minha bolsa de pano.

— Eu quero e preciso te dar um presente, como gesto de gratidão pela sua atenção comigo, e já sei o que posso te dar. Por favor, vá até este endereço e diga ao Carlos que eu te enviei para pegar a escultura. Não levo até você pois estou indo buscar minha mala para uma viagem ao Panamá. De lá, vou providenciar essas leituras e, assim que eu voltar, marcamos a terapia. Mas vá mesmo e assim me fará outro favor, pois o Carlos está ficando sem espaço para guardar essa escultura pra mim.

No caminho para o “Panamá”, vulgo minha casa no Estácio, a 11 km dali, liguei para o Carlos. Ele estava morando há alguns meses em outra cidade, Itaboraí, a 58 km de distância de Copacabana. Também por isso, duvidei que o André fosse seguir a jornada até a prometida escultura. Mas, dois dias depois, lá estava ele.

O nome do homem de Copacabana, a propósito, é André, tem seus cinquenta e tantos anos, um cabelo fino distribuído de forma desarmônica pela cabeça, exala feridas de um poder não realizado e prefiro parar por aqui.

— André, é um prazer te conhecer — disse o Carlos com aquela voz mansa, lenta, dando um abraço nele. O Carlos tem movimentos pausados e costuma usar roupas esvoaçantes e coloridas. Tatuagens aqui e ali, pulseiras, brincos e cordões, o cabelo curtinho que ele mesmo corta.

— Muito prazer, Carlos, eu estou aqui para buscar uma escultura que a Ane quer me presentear.

— Claro, claro, entre, por favor, fique à vontade, tá bem? Eu vou buscar água pra você. Aceita uma frutinha, uma siriguela, uma castanha?

— Aceito a água, por favor.

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 39

Carlos é artista. Quem chega na casa dele corre o risco de ficar envolvido em ensaios e estudos de performance que duram horas, às vezes dias, depende do tempo que você tem.

Já o André é uma pessoa que gosta de informar a qualquer momento que tem um QI acima da média. Parece mentira, mas há seres humanos assim por aí. Aproveito para aconselhar que, com pessoas assim, todo cuidado é pouco.

Como eu tinha pedido, Carlos aproveitou a confiança de André no próprio suposto alto QI para ir envolvendo ele em um “novo e revolucionário” estudo artístico. Homem de posses, André trabalhava quando queria e tinha saído do lugar onde eu ainda trabalho por estar entediado de não fazer diferença no local.

André ficou cinco dias na casa de Carlos, feliz de fazer parte. Teve sua revelação: tinha nascido para ser artista, ia abrir um ateliê e contribuir para a arte brasileira. Carlos, então, teve sua deixa, agradeceu por toda a contribuição de André e pediu gentilmente que se retirasse de sua casa. Sobre a escultura, não sei o que se deu na conversa, talvez André tenha esquecido e Carlos não tocou no assunto já que não tinha escultura ali.

Estava no sofá com minha pipoca, o celular notificou. Era uma mensagem do André, “infelizmente”, não ia poder mais me oferecer sua “terapia de cura”, estava completamente envolvido em outros projetos.

Não me entenda mal, eu não saio por aí colonizando mentes. Foi uma epifania e agora o André parece mais feliz. Boa sorte pra ele.

Um teto todo nosso: narrativas curtas

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