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Conversas com o espelho

Janaina Couvo

Helena acorda e, ao olhar seu reflexo no espelho, chega a uma triste conclusão: são trinta anos vivendo um dia de cada vez... E sem chegar a lugar algum.

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Atualmente, a solidão bate à sua porta com força, algo que ela vem trabalhando há anos na terapia, tentando controlar o avanço da depressão. E é assustador não ter o controle de seus sentimentos, não conseguir respirar fundo diante de situações simples do cotidiano. Em seu estado depressivo, sempre demora uma eternidade para que ela decida o que fazer da sua vida.

Perdeu os pais aos 17 anos, devido a um acidente de ônibus, na cidadezinha onde vivia. Este foi o momento mais marcante de sua vida. Foi a primeira vez que ela se sentiu sozinha no mundo. Faltavam poucos meses para que ela se tornasse maior de idade, e antes de construir seu caminho, ela precisou morar um tempo com uma prima, até esse momento chegar.

Aos 19 anos, ela já era uma mulher independente. Apesar de estar finalizando o ensino médio numa escola noturna, ela precisou se adequar à nova vida: trabalhar pelo dia e estudar à noite. Sempre tinha em sua mente as palavras de sua mãe, que sempre dizia: “Nena, só através dos estudos que você consegue mudar a sua vida, construir sonhos. Não pare de estudar, por mais que surjam pedras no caminho, contorne-as e siga em frente!”. Com essas palavras, ela nunca desistiu, e foi assim que conseguiu entrar para o curso técnico de desenhista, um sonho que ela rabiscava nos seus cadernos desde criança.

Através desse curso, ela foi contratada por uma editora, e passou a fazer parte de um grupo de profissionais que auxiliava na criação das ilustrações. Foi nesse trabalho que ela conheceu sua grande amiga, Zaira, uma revisora que também morava sozinha na capital. Assim, as duas aos poucos foram construindo um laço de amizade forte, que as tornava quase irmãs. Como Helena costumava dizer, eram “irmãs de alma”.

Sempre que podiam, as duas tiravam férias juntas e decidiam fazer uma viagem, conhecer lugares, pessoas. Neste momento, a vida das duas está de cabeça para baixo, pois uma está vivendo o auge da sua depressão e a outra recebeu um diagnóstico de um problema de saúde, que ela guardou a sete chaves, dizendo para si mesma que não se permitiria se abalar tanto. Iria se tratar, mas, antes, sairia em uma viagem com sua grande amiga, pois não saberia se teriam outra oportunidade em pouco tempo, já que seu tratamento seria longo e desgastante.

Procurou Helena, que estava em casa num sábado à noite, comendo pipoca e curtindo suas dores internas e fez a proposta: vamos viajar!

A amiga logo olhou-a com ar de assustada e disse que não dava, porque não estavam de férias, mas, Zaira já havia falado com sua chefe, que entendeu a situação e concordou e fazer um replanejamento das férias das duas, permitindo que elas pudessem viajar por 15 dias. Assim, Helena levantou-se do sofá e abraçou a amiga, com lágrimas nos olhos de alegria, porque era tudo o que ela precisava neste momento em que a depressão estava balançando sua vida Ficou questionando a amiga o porquê dessa decisão repentina. Zaira desconversou, mudando logo de assunto e mostrando as sugestões de viagens para as duas.

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Logo Helena deixou seus pensamentos depressivos para trás e entrou na empolgação de Zaira, saindo para arrumar suas malas, enquanto a amiga também ia para seu apartamento arrumar as suas. Neste tempo, Helena refletiu sobre a sua situação, sua tristeza que muitas vezes fazia com que ela deixasse de viver e sentir as coisas boas da vida. Sabia que tudo dependia dela, mas ter uma amiga como Zaira, que consegue animá-la, incentivá-la a sair deste buraco que a depressão a colocava, era uma grande benção. E por essa amiga ela faria tudo, inclusive, respirar fundo e mandar a depressão embora por um tempo.

As duas decidiram viajar para conhecer a cidade histórica de Ouro Preto, já que estavam em julho e aquela cidade tinha um importante festival cultural neste período.

Saíram dois dias depois, indo para Belo Horizonte e de lá, pegando um ônibus para a cidade histórica. Chegaram num final de tarde, um friozinho gostoso e um clima festivo. Escolheram uma hospedagem no centro, perto de onde tudo acontece. Foi uma semana de muito conhecimento, visita aos museus, exposições, além de shows e muita alegria estampada no rosto das duas. Precisavam daquela viagem!

Antes de retornarem para casa, ainda ficaram um final de semana conhecendo a capital mineira e aproveitando as delícias da sua culinária.

Uma semana se passou, e estavam as duas desmontando as bagagens. No dia seguinte retornaria ao trabalho, renovada depois dessa viagem. Porém, não sabia que Zaira não retornaria. Ela deixou para contar a Helena o seu diagnóstico preocupante de saúde no dia seguinte, num almoço em que ela explicou a necessidade do afastamento do trabalho e como seria sua vida pelos próximos meses.

Helena ficou surpresa, mas já desconfiava de algo, porém, não esperava que se concretizasse. Abraçou a amiga e tornou-se sua companheira diária, dando força ao longo das suas idas e vindas ao

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 43 hospital. Mudou-se para próximo da amiga e, sempre que podia, acompanhava Zaira no tratamento de saúde. Um dia, ela logo que acordou, olhou-se no espelho e fez a mesma reflexão de meses atrás: trinta anos, bem vividos, apesar dos altos e baixos... Estava viva, tinha seu trabalho e uma amiga maravilhosa que estava vivendo um momento difícil, e que encarava tudo com tranquilidade. Por que ela, não ser grata? Essa foi a pergunta que fez, mas já sabia a resposta. teto todo nosso: narrativas curtas

Passou a sentir gratidão pela vida, independentemente de como ela esteja.

De poder ajudar uma amiga em um momento difícil. Em trabalhar, em respirar, criar seus desenhos e ver o nascer e o pôr do sol sempre que possível.

“Gratidão pela vida!” Era isso que ela dizia para si mesma ao se olhar no espelho, todos os dias, ao acordar.

A depressão? Estava sempre ali, à espreita, mas ela fazia o possível para não dar espaço. Aprendera a lidar com ela.

E sua amiga Zaira?

Já fazia planos para uma nova viagem, daqui a um ano, quando estivesse recuperada.

Porque vai passar.

Tudo passa.

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