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Duas e pouco da manhã

Vanessa Nascimento

— Que horas é o dentista da Manu amanhã mesmo?

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— Logo depois do almoço.

— Vamos ter que almoçar lá perto pra não correr o risco de pegar trânsito e atrasar. Não esquece de levar a escova de dentes. Imagina se a menina abre a boca com os dentes todos sujos? O que o dentista vai pensar de você? Vai achar que é uma mãe de merda.

— Mas você é uma mãe de merda. Quantas vezes a Manu já não foi dormir sem escovar os dentes? Leva o fio dental também.

— Vou levar. Ela deve estar cheia de cárie. Nossa, que mãe de merda.

— É, devia ter pensado nisso nos dias que ficou com preguiça de discutir quando ela fez birra pra escovar os dentes. Agora assume as consequências.

— Duas e quarenta e sete da manhã. Vai dormir que o dia vai ser cheio.

— Ah, só mais uma coisa. Não se esquece de comprar o shampoo anti-caspa do Marco Aurélio. A última vez que ele ficou sem, o ombro do terno ficou todo branco, mostrando puro desleixo. O que você acha que os funcionários dele acharam? Que você é uma esposa de merda.

— Aff, que vida insuportável.

— Duas e quarenta e oito da manhã. Não começa com esse tipo de pensamento, senão não dorme mais hoje. Foca na respiração.

— Inspira.

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 45

— Mas só uma suposição. Se você pudesse estar em outro lugar. Qualquer lugar. Onde estaria?

— Exatamente onde estou. Cuidando da minha família que é onde uma mulher direita deve estar.

— Não. Sério. Finge que a família não existe. Onde estaria?

— Ah, se a família não existisse eu me juntava à trupe de palhaços que vimos lá no centro distribuindo panfletos do espetáculo hoje mais cedo.

— Sabia!

— Sempre sonhei em estudar palhaçaria. Mas claro que ninguém sabe disso. Imagina se o Marco Aurélio descobre que meu sonho é ser palhaça. Me larga na hora.

— E isso seria tão ruim assim? Você não é feliz nesse casamento mesmo. Nunca foi realmente apaixonada pelo Marco Aurelio.

— Tenho que agradecer por ter um homem de bem ao meu lado. Um bom pai e um marido que me respeita. Já viu a quantidade de homem que não presta por aí? Pelo menos com ele tenho a segurança de uma família.

— Se esforçando para ser quem não é? Para pertencer a um mundo que você não quer pertencer?

— Duas e quarenta e nove da manhã. Respira e vai dormir.

— Inspira.

— Expira.

— Isso. Mais uma vez.

— Inspira.

— Expira.

— Então já aceitou que vai morrer sem nunca ter beijado uma mulher?

— Aff. Hoje tá difícil, hein?

— Pede logo o divórcio e vai viver sua vida sem culpa. Sua filha precisa do exemplo de uma mãe feliz. O que adianta estar presente se

Um teto todo nosso: narrativas curtas está sempre de mau humor? Sem querer estar aqui? Pelo menos vai lá. Vai assistir à trupe. Você sabe que quer ver a palhaça Pipoca de novo. É bem no horário do ballet da Manu. Deixa ela lá e vai. Ninguém precisa saber.

— Essa cidade é um ovo. Acha mesmo que os amiguinhos da Manu não vão estar lá? Acho que ela é a única criança que não gosta de circo.

— Se alguém perguntar por ela, diz que ela não gosta, mas que você adora. Então foi sozinha. Simples.

— Pára de falar que é simples.

— Desculpa.

— Agora vai dormir.

— Inspira.

— Expira.

— A palhaça Pipoca deve ser linda por baixo da maquiagem. A voz dela é linda.

— Aff. Vai dormir.

— Não consigo tirar ela da cabeça. Que loucura. Preciso ver aquela mulher de novo.

— Imagina que loucura uma mãe de família séria como você, se apaixonar por uma palhaça? Se alguém descobre... Já tô até vendo você sendo excluída do grupo de WhatsApp das mães.

— Foda-se o que vão dizer! Quantas vezes você já sentiu o coração palpitar do jeito que sentiu quando tocou a mão da Pipoca na hora que ela lhe entregou o panfleto?

— Nenhuma.

— E vai passar a vida toda se perguntando como seria sua vida se tivesse tido coragem de seguir seu coração?

— Você é uma mãe de família. Se dê ao respeito.

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 47 teto todo nosso: narrativas curtas

— Vou só assistir ao espetáculo de longe. Nem que seja pra ver a Pipoca uma última vez. Ou as próximas 3 que vou estar livre. Posso deixar a Manu no ballet e ir na sessão das cinco da tarde.

— Ela nem vai lembrar de você. Deve ter entregue panfletos para centenas de pessoas.

— Mas eu senti que ela também sentiu algo diferente.

— Então vai descobrir o que foi.

— Duas e cinquenta da manhã.

— Inspira.

— Expira.

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