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Escrito por B.R

Maria Carolyna Henriques

Dormir havia se tornado um fardo para Beatrice e, naquela noite, não seria diferente. Se mexeu rebeldemente pela cama, como quem quisesse inconscientemente expulsar aquelas lembranças, as piores de sua breve vida, até hoje. Ela tinha apenas vinte e sete, jovem demais para se sentir cansada da vida, mas velha demais para tentar recomeçar. Era o que eles diziam.

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– Uma mulher divorciada é uma mulher perdida! – a voz dura de seu pai a cortou como navalha, ela olhou para o canto da sala e viu sua mãe, com a mão na boca e os olhos arregalados, encarando o chão. No fundo, ela entendia o sentimento de Beatrice e admirava sua coragem, a coragem que ela não havia tido há quase trinta anos atrás, no primeiro grito, no primeiro levantar de mãos ou na primeira traição.

Porém, nem mesmo o dente quebrado e os lábios inchados de Beatrice pareciam justificar o fato de que sim, ela iria se divorciar, mesmo que fosse deserdada de sua família. Ela achou que seu pai queria apenas a assustar com a ameaça de virar-lhe as costas, porém, na semana seguinte, quando chegou com suas malas e encontrou o cadeado dos portões gigantescos trancados, entendeu a mensagem de sua família.

Vendeu todas as suas joias com o maior prazer, nunca as achou bonitas e usá-las era símbolo de submissão, sentimento esse que a corroeu por seis longos meses, durante seu casamento com o herdeiro do senhor que mais tinha terras da região. Isso não trouxe brilho aos seus olhos, mas sim aos de seu pai, que fazia questão de exibir a todos o jornal que citava o casamento de sua filha com um homem de posses. Ao menos, fazia questão de mostrar até que o escândalo fosse exposto para todos da vila.

Os olhares para Beatrice eram cruéis e mesquinhos. Enquanto ela atravessava a rua principal da pequena cidade, podia ouvir risos e comentários baixinhos. Sabia que continuar ali seria um ato de masoquismo, então, juntou todo o rancor que sentia em seu coração com o pavor que nutria de todos que viviam ali e, agora somente com uma mala e com a pasta onde guardava seus escritos, cuidadosamente, como se lhes fossem a coisa mais valiosa de sua vida, caminhou até um dos cocheiros do lugar, lhe ofereceu um bom dinheiro e pediu para que a levasse até cidade.

Fez questão de, ao chegar, procurar a pensão mais próxima da sede do único jornal da região. Estava decidida a não depender mais de ninguém, precisava usar o único dom que deus a havia dado para se manter: a escrita. Beatrice só se lembrava de sua vida a partir do momento em que havia aprendido a escrever e, desde então, milhares de folhas e tinteiros foram gastos. Nunca havia recebido apoio de ninguém, porém, conforme foi crescendo e entendo sobre os desprazeres de ser uma mulher, decidiu que aquela seria sua principal arma.

Ela acordou, finalmente. Estava suada por inteiro, a camisola se grudou em seu corpo e os lençóis estavam úmidos. Após um banho longo, escolheu o melhor vestido que lhe havia restado, prendeu os cabelos em um coque, colocou um chapéu clochê amarronzado e respirou fundo. Estava pronta, o grande dia havia chegado!

Beatrice, há cerca de duas semanas, começara a se corresponder com o homem mais influente do jornal da cidade e hoje seria o dia no qual eles iriam se conhecer pessoalmente e finalmente ela poderia mostrar o que havia escrito sobre a política do país. Repassou o discurso que havia criado e pegou sua pasta. Eles se encontrariam

Um teto todo nosso: narrativas curtas em um bar que ficava próximo ao jornal. Ela caminhou pelas ruas enquanto repetia mentalmente: “Não sorria, Beatrice, seu dente está quebrado”.

O ambiente era tipicamente masculino, mas isso não a amedrontou, nem mesmo os olhares quando o sino da porta havia anunciado sua chegada, deixando o lugar mais silencioso. Ela foi até o balcão, onde haviam combinado de conversar, observando o único senhor sentado lá. Ele usava um chapéu, tomava cerveja e fumava um charuto. Sua barba branca denunciava sua idade, ele parecia ser mais velho do que ela havia imaginado.

– Senhor Oliver? – ela disse após limpar a garganta, ele se virou e ao bater os olhos na mulher baixa, magra e com aparência frágil, fez uma expressão confusa. Beatrice estendeu sua mão.

– Me chamo Beatrice Ricci, agradeço por me receber. – ele demorou para cumprimentá-la, estendeu sua mão devagar e, arregalou os olhos após perceber de quem se tratava.

– A senhora é B.R? – perguntou. Ela assentiu com a cabeça.

– Prefiro assinar com minhas iniciais, apenas. – Ignorou o olhar de desdém do velho e abriu sua pasta, entregando-lhe as matérias. –Poderia dar uma olhada? Acho que seria muito bom para seu jornal, visto que seus jornalistas têm criticado duramente o governo atual. – ela respirou fundo. Oliver a fitou de cima a baixo e, com o pouco de educação que lhe restava, pegou uma folha qualquer e começou a ler.

Ele, de fato, havia se impressionado com a forma como Beatrice se expressava. Apesar de ter achado um material à frente do tempo atual e escrito de maneira brilhante, não pôde deixar de conter as negativas com a cabeça e os risos debochados que lhe escapavam. Após ler, ele tirou os óculos e deu uma risada forçada.

– A senhora escreveu essa matéria? – Oliver perguntou. Beatrice apenas assentiu. – Desculpe-me, mas não é viável que uma mulher

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 53 escreva notícias políticas e ainda tenha a audácia de emitir sua opinião. Seu marido sabe que escreves com tamanha agressividade?

– Não sou mais casada! – ela disse entre os dentes, sentindo uma bola formar-se em sua garganta. Engoliu seco, fazendo força para não chorar.

– Nesse caso, minha querida – ele começou arrumando os papéis com os escritos de Beatrice e os guardando. – Não é de bom tom que haja uma mulher emitindo opiniões políticas em nosso jornal e isso envolve diversas questões. Desde a credibilidade de sua autoria, que pode ser duvidosa, até mesmo pela influência negativa que pode exercer nas poucas leitoras que temos por aqui. – Beatrice estava abismada, ela pegou sua pasta, que agora estava nas mãos de Oliver, com rapidez.

– Estes escritos são meus! – ela disse, indignada. Ele levantou as mãos, num gesto de dúvida.

– Não é que eu não acredite em sua palavra, mas entendes que pode nos descredibilizar, não entendes? – ele então colocou a mão em seu ombro – Sabe, você deve ter a idade de minha filha e, como pai, te aconselho a voltar para casa. – imediatamente Beatrice lembrou de seu pai, de sua rejeição e falta de apoio. Ela não respondeu, apenas se retirou rapidamente do local.

Quando chegou no seu quarto, já chorando, jogou a pasta na cama e se sentou no chão. Prometeu a si mesma que jamais sairia dali e, por alguns minutos, havia se conformado que sua vida de fato havia terminado.

Por sorte, Beatrice era uma mulher volátil e, não demorou muito para que encarasse os papéis e o tinteiro na mesa em frente à janela. Ela se levantou e foi em sua direção, passou os dedos no papel amarelado, sem nada escrito, como quem a estivesse convidando.

E, então, ela decidiu que usaria seu talento como arma contra aqueles que pisaram nela. Ela começou a escrever.

Um teto todo nosso: narrativas curtas

Por três dias, Beatrice escreveu em dezenas de folhas. Escreveu sobre a falta de protagonismo feminino, sobre a importância de as mulheres estudarem, de não se submeterem a casamentos arranjados e a maridos abusivos. Quando terminou, intitulou as orientações como:

“O Manual da Senhora Livre”.

Ela o admirou por alguns segundos, orgulhosa e cheia de esperança. Sabia que não poderia guardá-lo somente para si, como tantos outros escritos e, por isso, decidiu escrevê-lo de maneira compacta, como um guia ou mesmo manual de instruções. Naquela noite, então, o levou até o único impressor da cidade que, mesmo relutante ao ler o conteúdo, imprimiu centenas de cópias.

Beatrice esperou a madrugada cair e o silêncio pairar pela pequena cidade para que colocasse um exemplar por debaixo de cada porta, de todas as casas que conseguiu. Quando voltou para seu quarto, não resistiu ao cansaço e dormiu pesadamente. Não sabia exatamente quantas horas haviam se passado, mas, a claridade e os barulhos da rua haviam a despertado.

Os murmurinhos eram intensos, a rua estava cheia. Beatrice coçou os olhos e, ainda sonolenta e sem conseguir pensar em nada, foi até a janela. De lá, percebeu diversas mulheres juntas, conversando e cochichando umas com as outras enquanto seguravam seu manual. Seu coração acelerou, não imaginava o impacto que seu escrito estava causando.

Os homens, alguns segurando-o também, falavam alto e se mostravam indignados. Se perguntavam quem diabos havia escrito tais absurdos, que aquilo iria desmiolar suas esposas e filhas. Beatrice sentiu seu coração acelerado e não pôde deixar de conter o sorriso, agora, ela sabia exatamente o que deveria fazer dali em diante.

Arrumou sua mala e decidiu que era hora de partir em direção a vila vizinha, iria distribuir o manual para todas, conforme fosse possível. Colocou sua pasta debaixo do braço e, como sempre, guardou

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 55 ali seus bens mais valiosos, agora com algo que poderia ser chamado de rebeldia ou, como ela preferia, revolução.

Mais tarde, quando a cidade estava mais calma, caminhou em direção até a sua saída. Quando se deu conta, estava passando em frente à sede do jornal e, parado na porta, com um charuto na boca e com seu manual em mãos, estava Oliver. Ele mantinha uma expressão incrédula em seu rosto e isso foi o estopim para que, propositalmente, Beatrice pisasse firme e fizesse com que ele notasse sua presença, conseguindo com sucesso.

Ele arregalou os olhos, enquanto Beatrice somente acenou, com um sorriso provocativo em seu rosto. Finalmente, ele havia entendido tudo. Correu os olhos até o fim do documento e encontrou “Escrito por B.R”, que mesmo pequenas, agora era o que mais chamava atenção do velho homem, engruvinhado de preconceitos, ignorância e agora vergonha.

Ela sabia que, de alguma maneira, seu papel havia sido cumprido.

Beatrice seguiu espalhando seu manual, na esperança de que aquele escrito, para ela tão óbvio, não fosse mais necessário no futuro.

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