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Lapa

Júnia Gaião

Olha que eu não queria nada disso, até bem pouco tempo era apenas uma senhora casada cheia de bons motivos pra terminar a vida tomando o ansiolítico num café em Paris. Mas a vida invariavelmente me deu olé e já vai tarde a tarde em que decidi que não ia ser tudo igual para sempre. Pois bem, um simples telefonema pra dizer “Como vai, tudo bem? Já está no Rio de Janeiro?” e vem o convite como uma pedrada: “Vamos pro samba comigo?” Acabou, já nem sabia mais o que dizer e, a custo de muita criatividade, terminei a conversa com um: “boa sorte, querido, talvez nos vejamos lá”. Passei o final de semana tendo aula de samba e no domingo à noite a coreografia estava pronta diante da filhota que, pouco mais nova que o moço, disse: “nossa, mãe, ficou demais”. Munida de bagagem minúscula, montada em torno de uma calça mais larga, com certa transparência sutil, e cinco opções de blusa, além do indefectível Conga vermelho, entrei no vôo da Gol com destino ao Rio. Passaram-se quase oito horas, que pareceram oito meses, até que a mensagem surgisse no IPhone. Minha primeira parada na noite seria o Carioca da Gema, seguida do Democráticos, antigo clube de gafieira na Lapa, onde o atualíssimo Moacyr Luz daria uma canja. E só Deus sabe onde eu iria estacionar a alma e o corpo. Com a mensagem, a Devassa inteira se alvoroçou, o chope quase borbulhava na taça e a galera do vamos nessa comemorou: “isso é que é vida, num dia samba, no outro rock´n´roll”. Um banho longo, massagem em torno dos olhos – dizem que a felicidade faz desaparecer as linhas de expressão – e a escolha

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Um teto todo nosso: narrattivas curtas 61 pela descolada combinação da calça larga com a blusa de alcinha. E o Conga. Quando entrei no bar, tive a impressão de que todo mundo me olhou. Fiquei me perguntando se exagerei na roupa, no perfume ou no cabelo, porque nasci nas montanhas e o improviso do Rio é algo muito difícil de assimilar. Acho que vi primeiro a lata de cerveja, mas atrás dela vinha o menino, agora mais magro e barbado, balançando seu olhar de mais do que “oi, querida”. Olha, se alguém disser que uma coisa dessas aos 48 anos não causa um tsunami no coração de uma mulher, eu juro: ou é ruim da cabeça ou doente do pé. Com a sensação de ter subido na onda gigante, fui caminhando até o clube, lugar que há um ano me causaria medo e repulsa. Mas lá estávamos, conversando despreocupadamente, e tudo parecia brilhar. Confesso que as aulas de samba pouco adiantaram e o aprendizado de francês não deu nem para o tira-gosto (aliás, horrível, pois se resumiu a um monte de batatas fritas que seguramente se alojaram na lateral das minhas coxas). “Por favor, vamos falar em português, porque não consigo te ouvir com esse barulho”. Além de três idas ao banheiro e um monte de confissões primárias – do tipo “queimo fumo, sabia?” – a noite ia de vento em popa quando pintou a chance de dançar. Maldisse o sábado e o domingo desperdiçados com cinco ou seis passos que ali não me serviram de absolutamente nada. Enquanto eu ia pra cá, ele ia pra lá. Mas, se no samba as coisas não se consumavam, a mão dele na minha cintura se fez sentir pra lá de concreta. E foi ali, no escurinho do salão, que a gente se beijou. Uma, duas, cinco, sei lá quantas vezes. Não sei até agora como apareci sentada, com as pernas entre as dele e as mãos sem lugar. Só me lembro do arrepio cantado na nuca: “você cheira bem demais”. Alguém deveria dizer que depois das várias dobras e linhas que o corpo adquire após os quarenta, os sussurros vão se tornando difíceis de acreditar, mas ainda melhores de acontecer do que quando a gente tinha vinte anos. Guardadas as proporções, eu me sentia a Sininho voando nas nuvens

Um teto todo nosso: narrativas curtas quando veio a pergunta: “vamos embora?”. Pronto, era o pedido de senha e eu não sabia a resposta. Meu Deus, o que o tempo faz com a gente? De madura caí do galho e fiquei em silêncio tempo bastante pra me afogar dez vezes. “Vamos”, foi a resposta, soprada como um náufrago voltando à superfície. Já na rua, ele encontrou uma amiga cem mil anos mais nova, que me olhou com cara de “nossa, parece sua tia” e desconversou o olhar com um sorriso simpático. Entrei no táxi correndo, quase fugindo da turba que de repente me pareceu hostil como um bando saído do Crepúsculo. E aí veio a bomba: “quer que eu vá pro seu apartamento?”. Olha, sou daquelas que louva a objetividade, mas pelamordedeus, a ordem direta pode ter seus objetos indiretos e substantivos... Respondi um “claro, querido” e o motorista se mandou pra Ipanema. O coração batia desenfreado e me custou várias respirações profundas aprendidas com o Napô na época das meditações budistas. Abri a porta, entramos depressa e o sofá me pareceu o lugar mais seguro. A primeira abordagem, entretanto, foi quase uma colisão entre um Fusca e um ônibus da Cometa. Claro que ele não tinha nada de Fusquinha, e eu, sinceramente, não sabia o tamanho da paz no olho do furacão.

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